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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 776
(Ano IX)
(09/01/2017)
ISSN- -
BRASÍLIA ‐ 2017
Boletim
Conteú
doJu
rídico-ISSN
–-
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1 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.57818
Boletim Conteúdo Jurídico n. 776 de 09/01/2017 (ano IX) ISSN
‐ 1984‐0454
ConselhoEditorial
COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.
Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário
Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.
Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.
Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.
País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. SHN. Q. 02. Bl. F, Ed. Executive Office Tower. Sala 1308. Contato: editorial@conteudojuridico.com.br WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR
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Publicação
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SUMÁRIO
COLUNISTA DO DIA
09/01/2017 Rômulo de Andrade Moreira
» A ressurreição de Tolstói ‐ uma resenha sobre a justiça criminal
ARTIGOS
09/01/2017 Cley Anderson de Queiroz Rodrigues » A imprescritibilidade do crime de injúria racial
09/01/2017 Andre Vicentini Gazal
» Da descriminalização da conduta tipificada como crime de desacato a
autoridade
09/01/2017 Carolina Dias Martins da Rosa e Silva
» Igualdade formal x igualdade material: a busca pela efetivação da
isonomia
09/01/2017 Juliana Vieira Bernat de Souza
» A Administração Pública e o terceiro setor
09/01/2017 Thiago Conde Ferreira Farias
» Da antiga Legislação sobre Crime Organizado (Lei nº 9.034/95) aos
avanços da Lei 12.850/13
09/01/2017 Gabriel Marcio Passos Carvalho Bahia Sapucaia
» A decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz
09/01/2017 Tauã Lima Verdan Rangel
» Injustiça Hídrica: A escassez de água e a estruturação de uma nova
faceta da Injustiça Ambiental
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A RESSURREIÇÃO DE TOLSTÓI - UMA RESENHA SOBRE A JUSTIÇA CRIMINAL
RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA:
Procurador de Justiça do Ministério Público
do Estado da Bahia. Professor de Direito
Processual Penal da UNIFACS. Pós‐
graduado, lato sensu, pela Universidade de
Salamanca/Espanha (Direito Processual
Penal). Especialista em Processo pela
UNIFACS.
O grande escritor russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial (autor dos épicos "Guerra e Paz" - 1860, e "Anna Kariênina - 1870), no final do ano de 1889, começou a escrever uma história (que, inicialmente, denominou "A história de Kóni"), que seria também um marco em sua trajetória como escritor: chama-se "Ressurreição". O romance começou a ser publicado na Rússia apenas em março de 1899, em fascículos e bastante censurado. Somente em 1936 viria a ser publicada uma versão completa e fidedigna, com o texto reconstituído por filólogos russos.[1]
Este livro, atualíssimo, "focaliza o sistema judiciário e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferentes do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, Tolstói lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios."[2]
O protagonista do romance é um nobre russo, chamado Dmitri Ivanovich, que se vê envolvido no julgamento de Katiucha, uma mulher que seduzira anos atrás, ainda quando muito jovens, ambos. Ele, pertencente à nobreza russa, ela agora uma prostituta (antes uma empregada
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de sua velha tia). Nekhliúdov, agora, encontra-se como jurado no processo de sua primeira amante. Katiucha, antes uma bela moça, agora está como acusada de homicídio e submetida na prisão aos mais variados maus-tratos.
Desde logo, como jurado, Nekhliúdov tem a consciência de que, naquela condição, "era preciso cumprir de maneira conscienciosa, como sempre faço e julgo devido, uma obrigação social. Além de tudo, muitas vezes isso se revela interessante. (...) Em todos - apesar de aquilo afastar muitos deles de suas atividades e negócios e apesar de dizerem que era um transtorno -, em todos, havia um sinal de um certo prazer com o cumprimento de uma importante missão social." Importante esta visão do escritor russo acerca dessa função pública tão delicada que é a de jurado. Que bom seria que todos pensassem assim...
Nekhliúdov, ao entrar pela primeira vez no Tribunal, passa a descrevê-lo: "No canto direito pendia um caixilho onde havia uma imagem de Cristo com uma coroa de espinhos, ali ficava também o leitoril, e logo ao lado direito ficava a escrivaninha do promotor. (...) No tablado, à direita, ficavam as cadeiras para os jurados, também de espaldar alto e dispostas em duas fileiras, e embaixo, as mesas dos advogados.(...) A figura do presidente e dos juízes, em seus uniformes de golas com bordados de ouro, quando subiram ao tablado, era muito impressionante. Eles mesmos sentiam isso e todos os três, como que embaraçados com sua imponência, de maneira tímida e apressada, de olhos baixos, sentaram-se em suas cadeiras de braços... (...) A sala enorme, os retratos, os lustres, as cadeiras estofadas, os uniformes, as paredes grossas, as janelas, recordando todo o colosso daquele prédio e o colosso ainda maior da própria instituição, todo o exército de funcionários, escrivães, guardas, contínuos, não só ali, mas em toda a Rússia, que recebiam salário em troca daquela comédia da qual ninguém tinha a menor necessidade."
Perguntado por outro personagem, em certo momento da narrativa, qual seria o objetivo da atividade de um Tribunal, e antecipando logo que não era fazer justiça, respondeu, ceticamente, Nekhliúdov que era manter os "interesses de uma classe. O tribunal, a meu ver, é apenas um instrumento administrativo do estado de coisas vigente, vantajoso para a nossa classe." Nada obstante ter sido contestado que "se atribui ao tribunal
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um propósito um tanto diferente", disparou, certeiramente, Nekhliúdov: "Teoricamente, mas não na prática, como eu percebi. O tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos criminosos." Após ser-lhe dito que o objetivo do Tribunal era a reabilitação, retruca: "Bela reabilitação, a das prisões. (...) O que se faz agora também é cruel e não só é incoerente, como também é estúpido a tal ponto que é impossível entender como pessoas mentalmente sadias podem tomar parte de um processo tão absurdo e cruel como é a justiça criminal." Boa resposta camarada!
Analisando a figura do Promotor de Justiça, Nekhliúdov traça-lhe um perfil bem interessante e, coincidentemente, semelhante com o de algumas figuras que até hoje vê-se no Ministério Público e, em geral, na burocracia pública brasileira: "Era muito ambicioso, estava tenazmente resolvido a fazer carreira e por isso julgava necessário conseguir a condenação em todos os processos em que desempenhasse as funções de promotor. (...) Katiucha teve um sobressalto assim que o promotor virou-se para ela. Não sabia como nem por que, mas sentia que ele queria o seu mal." Nekhliúdov descreve o Promotor como um homem "extraordinariamente tolo", não somente por sua própria natureza, mas pelo fato de ter concluído "o curso do liceu com uma medalha de ouro e de ganhar um prêmio na universidade pela sua tese sobre a servidão no direito romano e por isso era extremamente pretensioso, vaidoso (para o que contribuía mais ainda o seu sucesso com as damas)." A propósito, ao descrever a personalidade de um Ministro aposentado de Petersburgo, Tolstói, ancorado em seu personagem, traça outro perfil bastante atual de um carreirista: "Era imponente ao extremo e, onde fosse necessário, podia transmitir uma impressão não só de orgulho, como também de inacessibilidade e de grandeza, mas onde fosse necessário podia ser também servil até a paixão e a infâmia; ele não tinha quaisquer princípios gerais ou regras, de moralidade pessoal ou pública, e por isso podia concordar com todos, quando necessário, e, quando necessário, podia de todos discordar. Agindo assim, empenhava-se apenas em manter um tom comedido e não cair em flagrante contradição consigo mesmo, e afora isso, fossem morais
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ou imorais suas ações em si mesmas, e quer dessem origem a um bem supremo ou a um dano supremo para o Império Russo ou para o mundo todo, ele sentia-se perfeitamente satisfeito. (...) Quando teve de retirar-se para a aposentadoria, ficou claro para todos que não só não era um homem especialmente inteligente nem tinha uma compreensão profunda das coisas, como também era muito limitado e pouco instruído, e que, embora fosse um homem muito seguro de si, mal conseguia erguer suas opiniões ao nível dos editoriais dos jornais conservadores mais vulgares. Revelou-se que não havia nele nada que o destacasse dos outros funcionários..." Qualquer semelhança com os dias atuais terá sido, como se costuma dizer nas novelas da Rede Globo, mera coincidência...
Agora vejam que absoluta contemporaneidade estas reflexões do arrependido aristocrata russo, após presenciar os horrores do cárcere onde se encontrava Katiucha: "Da cadeia e da miséria, parece que ninguém escapa. Se não é a miséria, é a cadeia. (...) Naqueles estabelecimentos as pessoas eram sujeitas a toda sorte de humilhação desnecessárias - correntes, cabeças raspadas, roupa vergonhosa, ou seja, eram privadas do principal motor das pessoas fracas para levar uma vida boa: a preocupação com a opinião das outras pessoas, a vergonha, a consciência da dignidade humana. (...) Encontravam-se o tempo todo numa situação em que mesmo uma pessoa extremamente boa e virtuosa, por força de um sentimento de autoconservação, pratica e perdoa nos outros as ações mais horríveis em sua crueldade. (...) Eram reunidas à força com crápulas extraordinariamente degradados pela vida (e por essas mesmas instituições, sobretudo), assassinos e malfeitores, que, assim como o fermento na massa, agiam em todas as pessoas ainda não inteiramente degradadas pelos procedimentos empregados contra elas. (...) Em todas as pessoas sujeitas a tais influência, incutia-se do modo mais convincente possível a ideia de que toda sorte de violência, crueldade, bestialidade não só não era proibida, como era permitida pelo governo quando isso era vantajoso para ele e, portanto, era mais permitida ainda para aqueles que se achavam sem liberdade, na penúria e na desgraça."
Naquela época no Império Russo, como hoje no Brasil, "centenas de milhares de pessoas, todos os anos, eram levadas ao mais alto grau de degradação e, quando estavam plenamente degradadas, eram postas em
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liberdade para espalhar, no meio de todo o povo, a degradação que assimilaram nas prisões. (...) É como se tivessem formulado o problema de como aprimorar, como tornar mais eficaz, um modo de degradar mais pessoas. (...) Pessoas simples, comuns, com as exigências da moralidade russa, social, camponesa, cristã, abandonavam essas noções e assimilavam noções novas, prisionais, que consistiam sobretudo em que toda profanação, toda violência contra a pessoa humana, toda aniquilação da pessoa humana é permitida, quando for conveniente. Depois de viver numa prisão, as pessoas, com toda a sua alma, se davam conta de que, a julgar pelo que acontecera com elas, todas as leis morais de respeito e de compaixão à pessoa humana, pregadas pelos mestres morais e eclesiásticos, tinham sido abolidas na realidade e que, portanto, elas também não eram obrigadas a segui-las. (...) A única explicação para tudo o que se fazia era a repressão, a intimidação, a reabilitação e a represália legítima, conforme estava escrito nos livros. Mas na realidade não existia nada de semelhante nem a uma coisa, nem à outra, nem à terceira, nem à quarta. Em vez de repressão, havia apenas a propagação do crime. Em vez de intimidação, havia o estímulo aos criminosos, muitos dos quais, como os vagabundos, iam voluntariamente para a prisão. Em vez de reabilitação, havia a contaminação sistemática de todos os vícios. Já a sanha de represália não só não era aplacada pelos castigos do governo, como crescia no meio do povo, lá onde antes nem existia. (...) Tudo isso era feito constantemente, ao longo de centenas de anos, com a única diferença que, antes, arrancavam os narizes e cortavam as orelhas, depois marcavam o corpo com varas em brasa e agora algemavam e transportavam em barcos a vapor, e não em carroças."
Antes do julgamento principal, Nekhliúdov presenciou o de um jovem acusado de furtar de um galpão"três passadeiras velhas, no valor de três rublos e sessenta e sete copeques" e "de que ninguém precisava." Diante do "menino" acusado, refletiu: "Eles são perigosos, ao passo que nós não somos?... (...) Mesmo que esse menino fosse, para a sociedade, o mais perigoso entre todos os que se encontram nesta sala, o que se deveria fazer, de acordo com o bom senso, quando ele é preso? Afinal, é óbvio que o menino não é nenhum facínora especial, mas sim a pessoa mais comum do mundo - todos veem isso - e que se tornou o que é agora só porque vivia em condições que engendram pessoas assim. E, portanto, parece claro,
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para que não existam meninos assim, é preciso esforçar-se para eliminar as condições em que se formam essas criaturas infelizes. E o que fazemos? Agarramos um menino desses que, por acaso, caiu nas nossas mãos, sabendo muito bem que milhares iguais a ele continuam à solta, e o metemos na prisão, em condições de completa ociosidade, ou então o mandamos para o trabalho mais insalubre e absurdo (...). A fim de eliminar as condições que fazem surgir tais pessoas, não só não fazemos nada como ainda incentivamos os estabelecimentos em que elas são criadas. (...) Formamos desse modo não uma e sim milhões de pessoas, depois prendemos uma delas e imaginamos que fizemos alguma coisa, nos protegemos e nada mais se exige de nossa parte. (...) Seria melhor dirigirmos a centésima parte de nosso esforço para ajudar essas criaturas abandonadas, a quem encaramos agora como se fossem apenas braços e corpos, necessários para a nossa tranquilidade e o nosso conforto. Afinal, bastaria apenas aparecer uma pessoa que tivesse pena dele, quando, por carência de recursos, foi trazido da aldeia para a cidade, e prestasse socorro àquela carência. (...) Mas não apareceu nenhuma pessoa que sentisse pena dele durante todo o tempo em que, como um bicho, viveu na cidade... (...) Nós, todos nós, pessoas decentes, ricas, instruídas, em vez de cuidarmos de eliminar as causas que levaram esse menino à sua situação atual, queremos corrigir o problema atormentando ainda mais esse menino." Após todas estas reflexões, Nekhliúdov "admirou-se de como pôde ficar sem perceber tudo isso antes, como outros podiam não perceber." Belas palavras para os que defendem a diminuição da imputabilidade penal pela idade.
Diante de ladrões, homicidas e prostitutas, pensa Nekhliúdov que "as pessoas a quem o destino ou os próprios pecados e erros colocaram numa determinada situação, por mais irregular que ela seja, criam uma visão geral da vida em que a sua situação lhes parece boa e respeitável. Para a manutenção de tal visão, conservam-se instintivamente num círculo de pessoas onde se adota a mesma opção que elas criaram a respeito da vida e do seu lugar nela. Isso nos espanta quando se trata de ladrões, que se gabam de sua habilidade, de prostitutas, que se gabam de sua devassidão, de assassinos, que se gabam de sua crueldade. Mas isso nos espanta apenas porque o círculo-ambiente dessas pessoas é restrito e, sobretudo, porque nos achamos fora dele. Porém não ocorre o mesmo fenômeno com
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os ricos, que se orgulham da sua riqueza, ou seja, da espoliação, ou com os chefes militares, que se orgulham do seu poderio, ou seja, da violência? Não enxergamos em tais pessoas uma noção da vida, do bem e do mal deturpada, com o propósito de justificar a sua condição, apenas porque o círculo de pessoas que adotam essas noções deturpadas é maior e nós mesmos pertencemos a ele."
Em um determinado momento de sua trajetória de jurado, Nekhliúdov debruça-se sobre os estudos sobre o positivismo criminológico (liderado pelos italianos), cuja "escola denominava tipos criminosos e cuja existência na sociedade é considerada como a principal prova da necessidade da legislação criminal e da punição": os chamados "tipos degenerados, criminosos, anormais". Ele, então, compra os "livros de Lombroso, Garofalo, Ferri, Maudsley, Tarde, e lê atentamente. Porém, à medida que os lia, decepcionava-se cada vez mais. Aconteceu com ele o que sempre acontece com pessoas que se voltam para a ciência não para representar um papel na ciência: escrever, debater, ensinar, mas se voltam para a ciência com perguntas diretas, simples, vividas; a ciência lhe dava resposta para milhares de perguntas diferentes, sutis, eruditas, ligadas à legislação criminal, só não respondia a pergunta para a qual ele buscava resposta: para que e com que direito algumas pessoas, quando elas mesmas são iguais às pessoas a quem elas torturam, chicoteiam e matam? Respondiam-lhe com discussões para saber se existe ou não, no homem, o livre-arbítrio. Era ou não possível saber se um homem era criminoso pelas dimensões do crânio etc? Que papel tem a hereditariedade no crime? Existe uma imoralidade congênita? O que é moral? O que são a loucura e a degenerescência? O que é o temperamento? Que influência exercem no crime o clima, a alimentação, a ignorância, a imitação, o hipnotismo, as paixões? O que é a sociedade? Quais as suas obrigações? Etc., etc. (...) Havia ali muita coisa inteligente, erudita, interessante, mas não a resposta para o principal: com que direito alguns castigam os outros? Não só não havia essa resposta, como todos os raciocínios destinavam-se a esclarecer e justificar o castigo, cuja necessidade era reconhecida como um axioma." Tolstói referia-se ao que Zaffaroni, mais de um século depois, chamou de "apartheid criminológico", iniciado em 1857 por Morel, e que teve no Brasil, como um dos mais importantes representantes, o baiano Raimundo Nina Rodrigues, que chegou a ser "caricaturizado por Jorge
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Amado, com a licença literária, que o fez viver, algumas décadas mais, no personagem de Nilo Argolo de Araújo, de sua famosa novela ´Tenda dos Milagres`, também levada aos cinemas."[3]
Em outra oportunidade, ao conversar Nekhliúdov com uma outra prisioneira, foi-lhe dito por ela que o mais difícil de suportar, "mesmo que as privações fossem três vezes maiores", era "o choque moral que a pessoa recebe quando é presa pela primeira vez." Disse-lhe, então, a desgraçada: "Quando me prenderam pela primeira vez, e prenderam sem nenhum motivo, eu tinha vinte e dois anos, tinha uma filha pequena e estava grávida. Por mais que fosse penosa para mim a privação da liberdade, naquela ocasião, e ficar separada da criança e do marido, tudo isso era nada em comparação com o que senti quando compreendi que havia deixado de ser uma pessoa e me tornara uma coisa. (...) Lembro que o que mais me transtornou foi que o oficial da guarda, quando me interrogou, me ofereceu um cigarro para fumar. Então ele sabia que as pessoas gostam de fumar, sabia que as pessoas amam a liberdade, a luz, sabia então que as mães amam os filhos e que os filhos amam as mães. Pois então como é que me separam impiedosamente de tudo o que me era caro e me trancaram como uma fera? É impossível suportar isso impunemente. Se alguém acreditasse em Deus e nas pessoas, acreditassem que as pessoas amam umas às outras, depois disso deixaria de acreditar. Desde então, parei de acreditar nas pessoas e fiquei mais áspera - concluiu ela sorrindo." Hoje, uma grande parte dos presos no Brasil, especialmente ainda submetidos à prisão provisória, é de mulheres acusadas, em sua maioria, por tráfico de drogas. Deixam elas, em casa, em desamparo, os filhos havidos com os seus homens que as obrigaram a transportar drogas ilícitas, de lá para cá, de cá para lá, como se traficantes fossem. E a Justiça criminal, hipocritamente, equiparam-nas a traficantes de drogas, selando para sempre os seus destinos e os dos seus filhos, também desgraçados pela sorte, pela vida e por cada um dos seus deuses.
Logo, "tornou-se claro para ele (Nekhliúdov), agora, que todo aquele mal terrível do qual ele era testemunha nas prisões, nas cadeias, e a segurança serena dos que produziam aquele mal provinham apenas do fato de que as pessoas queriam fazer uma coisa impossível: corrigir o mal, sendo más. Pessoas pervertidas queriam corrigir pessoas pervertidas e
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achavam que iam chegar a isso por um caminho mecânico. Porém de tudo isso resultava apenas que pessoas carentes e interesseiras, após tomarem para si como profissão aquele castigo ilusório e a correção das pessoas, degradavam-se elas mesmas até o último grau e não paravam de degradar também aqueles a quem torturavam. (...) A objeção permanente sobre o que fazer com os malfeitores - seria possível deixá-los assim, sem castigo? - já não o perturbava. Tal objeção teria sentido se ficasse comprovado que o castigo reduzia os crimes, corrigia os criminosos; mas, quando se comprova exatamente o contrário e é evidente que não está no poder de algumas pessoas corrigir as outras, então a única coisa razoável que se pode fazer é parar de fazer aquilo que não só é inútil, como também nocivo, e ainda por cima imoral e cruel. Há vários séculos mortificam as pessoas que são consideradas criminosas. Pois bem, elas desapareceram? Não desapareceram, a sua quantidade apenas aumentou, por conta dos criminosos degradados pelos castigos e também por conta daqueles criminosos que são juízes, promotores, carcereiros, que julgam e castigam pessoas." Então, Nekhliúdov deu-se "conta de que todos aqueles vícios que se desenvolviam entre os prisioneiros (...) não eram acidentes, nem fenômenos de uma degeneração, de um tipo criminoso, de uma monstruosidade, como interpretavam sábios obtusos para agradar o governo, mas sim a consequência inevitável do erro incompreensível segundo o qual umas pessoas podem castigar outras." Ou seja, é o castigo pelo castigo, o punir pelo punir, a maldade pela maldade, tudo verdadeiramente sem sentido.
O que revoltava Nekhliúdov, "acima de tudo, era o fato de que, nos tribunais e nos ministérios, os cargos serem ocupados por pessoas que ganhavam um grande salário, tomado do povo, a fim de, mediante a consulta a livros redigidos por funcionários iguais a eles e com as mesmas motivações, enquadrar as ações das pessoas, que violavam as leis escritas por eles, em determinado artigo e, conforme esse artigo, mandar tais pessoas para algum lugar, onde quer que fosse, contanto não as vissem mais, onde elas ficavam sob o poder absoluto de cruéis e insensíveis guardas, carcereiros, soldados de escolta e onde pereciam aos milhões, espiritual e fisicamente." É assim, até hoje, a lógica da legislação penal: simbólica, populista, perversa e carente também de qualquer sentido.
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Em certa oportunidade, ao conversar com um General russo sobre corrupção, este disse a Nekhliúdov: "Dizem-me: erradicar a corrupção. Mas erradicar como, quando todos são corruptos? E quando mais baixo o posto, mais corrupto." Viva a República de Curitiba (leia-se, Operação Lava Jato), cujos alguns integrantes nunca leram uma vírgula além do Direito; no máximo uns livrinhos norte-americanos de autoajuda, tipo Donald Trump.
Ao presenciar as mais diversas torturas feitas a prisioneiros, Nekhliúdov perguntou a si mesmo: "Será que estou louco e vejo coisas que os outros não veem, ou loucos são aqueles que fazem o que estou vendo? Mas as pessoas (e como eram numerosas) faziam aquilo, que tanto o espantava e horrorizava, com uma convicção tão tranquila de que era não apenas necessário, mas também muito útil e importante, que era difícil admitir que toda aquela gente estivesse louca; também não podia admitir que ele mesmo estivesse louco, porque tinha consciência da clareza dos seus pensamentos. Por isso encontrava-se numa perplexidade constante." Tolstói não imaginaria que no século XXI estaríamos ainda às voltas com a tortura, física ou mental. A cada minuto no Brasil um preso é torturado, segundo meus cálculos...
Ao conversar com uma prisioneira que estava encarcerada junto a presos políticos, Nekhliúdov concluiu que "a convivência com os novos camaradas revelou para ela novos interesses na vida, das quais não tinha a menor ideia. Pessoas tão maravilhosas, ela não só jamais conhecera como não podia sequer imaginar que existissem." Disse ela: "Aprendi coisas que ficaria a vida inteira sem aprender", passando a entender "os motivos que orientavam aquelas pessoas e, por ser alguém do povo, solidarizou-se plenamente com elas. Entendeu que aquelas pessoas estavam ao lado do povo e contra os senhores; e o fato de que aquelas mesmas pessoas serem senhores e sacrificarem seus privilégios, sua liberdade e sua vida pelo povo, obrigava-a dar um valor especial a tais pessoas e admirar-se com elas." Então, aproveitou-se Tolstói para descrever a opinião dele sobre presos políticos: "Havia entre eles pessoas que se tornaram revolucionárias porque consideravam-se sinceramente obrigadas a lutar contra o mal existente. (...) A diferença, em favor dos revolucionários, entre eles e as pessoas comuns, era que a exigência de
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moralidade entre os revolucionários era mais alta do que as adotadas na esfera das pessoas comuns. Entre os revolucionários, consideravam-se obrigatórios não só a abstinência, a austeridade, a veracidade, o desinteresse, mas também a disposição de sacrificar tudo, até a própria vida, para a causa comum."
Para encerrar, deixo este trecho, como se fora uma última reflexão, e para que não sejamos hipócritas nos julgamentos dos outros:
"Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas, pratiquem as maldades mais terríveis sem sentirem-se culpadas, só haveria uma solução possível: que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço do Estado, no qual é possível tratar as pessoas como se fossem coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que vi hoje. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor, assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos danos a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. E não pode ser diferente, porque o amor recíproco entre as pessoas é a lei básica da vida humana. É verdade que uma pessoa não pode obrigar-se a amar da mesma forma como
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pode obrigar-se a trabalhar, mas isso não quer dizer que se pode tratar as pessoas sem amor, ainda mais quando se exige algo delas. Se você não sente amor pelas pessoas, fique quieto, cuide de si, das coisas, do que quiser, mas não das pessoas. Da mesma forma como só se pode comer sem causar dano e de modo proveitoso quando se tem vontade de comer, assim também só se pode tratar com as pessoas de modo proveitoso e sem causar dano, quando se ama."
NOTAS:
[1] Rubens Figueredo, tradutor da obra, na apresentação da edição brasileira de 2010, da Editora Cosac Naify.
[2] Idem.
[3] A Questão Criminal - La Palabra de los Muertos, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2013, p. 85.
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A IMPRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE INJÚRIA RACIAL
CLEY ANDERSON DE QUEIROZ RODRIGUES: Advogado formado pela Universidade Potiguar. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte.
Resumo: O presente artigo tem por objeto analisar a recente decisão do
Superior Tribunal de Justiça no que tange a imprescritibilidade do crime
de injúria racial bem como as discussões no âmbito doutrinário,
ressaltando suas diferenças e semelhanças com o crime de racismo.
Palavras‐chave: Crime de injúria racial. Crime de Racismo.
Imprescritibilidade. Diferenças e semelhanças.
Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão.
Referências.
1. INTRODUÇÃO
Trata‐se o presente artigo de um estudo acerca da imprescritibilidade
do crime de injúria qualificada por motivo de raça e sua comparação com
o crime de racismo. Como restará demonstrado, a diferenciação das duas
condutas afronta com princípios constitucionais tais como: isonomia e
igualdade. Tanto é verdade que os doutrinadores pátrios afirmam com
veemência que tal diferenciação é prejudicial a mandamento
constitucional expresso. Neste sentido, as questões que se colocam são: o
crime de injúria racial é imprescritível tal qual o crime de racismo? Quais
as diferenças e semelhanças entre tais condutas? São essas o objeto de
estudo deste artigo. Ao final, buscaremos construir um conceito de
racismo social e definir suas implicações no direito brasileiro.
2. DESENVOLVIMENTO
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Tem‐se que o crime de injúria racial, definido na Lei 7.716/89, vem
sendo objeto de apontamentos constantes da doutrina e jurisprudência,
notadamente com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça de
considerar tal conduta imprescritível, comparando‐a ao crime de racismo.
Em primeiro momento é de suma importância diferenciarmos injúria
qualificada do crime de racismo. O primeiro está capitulado no art. 140 do
Código Penal e o segundo está disciplinado, conforme dito alhures, na Lei
7.716/89.
Nesse sentido, conceitua Cleber Masson (2011, p. 184):
“A injúria qualificada, assim como os
demais crimes contra a honra, reclama seja a
ofensa dirigida a pessoa ou pessoas
determinadas. Destarte, a atribuição de
qualidade negativa à vítima individualizada,
calcada em elementos referentes à raça, cor,
etnia, religião ou origem, constitui crime de
injúria qualificada (CP, art. 140, § 3º). Esse crime
obedece às regras prescricionais previstas no
Código Penal.”
Noutro pórtico, tecendo comentários acerca do crime de racismo,
asseveram Amaury Silva e Arthur Silva (2012, p. 108):
“O crime exige no elemento subjetivo a
atuação dolosa do agente, haja vista que o
sujeito ativo deve ter consciência do seu ato,
bem como a clara e evidente intenção de
ofender. Integra ainda o elemento subjetivo a
finalidade de discriminação em razão de raça,
cor, etnia, religião, origem, condição do
ofendido como idoso ou deficiente. Não há
forma culposa.”
Nesse sentido, é importante ressaltar que no último mês janeiro de
2016 a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu considerar o
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crime de injúria imprescritível[1]. Nos termos do voto do relator, citando
Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei 9.459/97 foi introduzido
um novo delito no cenário de racismo, portanto, imprescritível,
inafiançável e sujeito à pena de reclusão.
Rebatendo críticas contrárias ao seu entendimento, asseverou o
respeitável autor que ”os que pensam ser a injúria racial uma simples
injúria, um crime contra a honra como outro qualquer, com a devida vênia,
nunca foram vítimas da referida injúria racial, que fere fundo e segrega as
minorias. É uma prática racista, a meu ver, das mais nefastas[2].”.
Da mesma forma, o conceito de racismo já foi objeto de discussão no
Supremo Tribunal Federal, ocasião na qual a Corte definiu o conceito
constitucional de racismo[3]. Naquela oportunidade, a maioria dos
ministros adotou o conceito de racismo social enquanto qualquer
discriminação que inferiorize/desumanize determinados grupos
relativamente a outros (“raça”, portanto, assume um significado
sociológico).
Logo, nos parece razoável que a conduta de ofender alguém por
motivos de raça (aqui se leia mais uma vez o conceito sociológico adotado
pelo STF) seja inquestionavelmente uma conduta racista. Por sua vez, a
diferenciação doutrinária e jurisprudencial dos crimes de racismo e injúria
racial pode levar a um desfecho não esperado: punição mais branda de
uma conduta que é inegavelmente preconceituosa e discriminatória.
CONCLUSÃO
Em primeiro momento, reconhecemos a discussão doutrinária e
jurisprudencial das diferenças e/ou semelhanças nos crimes de injúria
racial e de racismo. Consideramos, antes de qualquer juízo de valor, que
as condutas são igualmente odiosas e merecem punições equiparáveis
(com diferenças nas eventuais dosimetrias de pena, claro).
Neste sentido, temos que a diferenciação das condutas apenas
contribui para afastar o mandamento constitucional de extirpar da
sociedade toda e qualquer conduta racista, numa notória afronta aos
princípios da isonomia e igualdade.
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Sendo assim, conclui‐se que o crime de injúria racial deverá ter o
mesmo tratamento do crime de racismo, sendo uma conduta
imprescritível, inafiançável e sujeita a pena de reclusão, conforme aduz a
Carta Magna.
REFERÊNCIAS
MASSON, Cleber. Direito Penal Parte. Especial. Arts. 121 a 212,.
Esquematizado. 3.ed. São Paulo: Método, 2011.
SILVA, Amaury e Silva, Artur Carlos. Crimes de racismo. São Paulo:
Editora J.H. Mizuno (2012).
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais
comentadas. 5. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
DECRETO‐LEI No . , DE DE DEZEMBRO DE . – CÓDIGO
PENAL BRASILEIRO. Disponível em Acesso em 15 de dezembro de 2016.
Supremo Tribunal Federal ‐ HABEAS CORPUS RS. Pleno. Rel.
Min. MOREIRA ALVES. DJ 1712/2003
Superior Tribunal de Justiça. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL:
DF / ‐ . Sexta Turma. Ministro ERICSON MARANHO
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP). DJ 18/06/2015
NOTAS:
[1] EDcl no AgRg nº 686.965 – DF, 6ª T., rel. Ericson Maranho desembargador convocado do TJ/SP, 13/10/2015, v.u. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=49761759&num_registro=201500822903&data=20150831&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
[2] Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria Acesso em: 15 de Dezembro de 2016
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[3] Disponível em http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms Acesso em: 15 de dezembro de 2016.
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DA DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA TIPIFICADA COMO CRIME DE DESACATO A AUTORIDADE
ANDRE VICENTINI GAZAL: Defensor Público do Estado de São Paulo. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Direito Constitucional.
RESUMO: O presente estudo visa analisar a recente decisão proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça, em sede do REsp nº 1640084‐SP apresentado
pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Palavras‐chave: Desacato –Funcionário Público – Pacto de São José da
Costa Rica ‐ Status Supralegal ‐ Descriminalização.
INTRODUÇÃO
A aproximação com o tema em discussão ocorreu nos estudos para as
defesas dos indivíduos, em razão das constantes denúncias que
cumulavam ou não determinado crime com o delito previsto no artigo 331
do Código Penal.
O presente trabalho analisará a temática a partir da recentíssima
decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
1. BREVE ANÁLISE DO CRIME DE DESACATO
O artigo 331 do Código Penal diz:
“ Desacatar funcionário público no exercício da função ou em
razão dela:
Pena – detenção, de 06 (seis) meses a 2 (dois anos), ou multa”.
Em primeiro lugar, importante definir o conceito de funcionário
público. Segundo o Vocabulário Jurídico, de Plácido e Silva:
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"Já assim se diz, no sentido da lei brasileira, para a pessoa
que está legalmente investida em cargo público. E, desse modo,
toda pessoa que exerce cargo criado por lei, em número certo
e denominação própria, remunerado pelos cofres públicos[1]"
No Direito administrativo, existem várias teorias e o brilhante Hely
Lopes Meirelles leciona que:
“Funcionários públicos são os servidores legalmente
investidos em cargos públicos da Administração Direta e
sujeitos às normas do Estatuto da entidade estatal a que
pertencem. O que caracteriza o funcionário público e o
distingue dos demais servidores é a titularidade de um cargo
criado por lei, com denominação própria, em número certo e
pago pelos cofres da entidade estatal em cuja estrutura se
enquadra (cargo público). Pouco importa que o cargo seja de
provimento efetivo ou em comissão: investido nele, o servidor
é funcionário público, sob regime estatutário, portanto”[2].
O Código Penal visando evitar essas discussões teóricas adotou uma visão ampliada do conceito de funcionário público em seu artigo 327:
“Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público”.
Portanto, o conceito de funcionário público a ser utilizado é legal,
previsto no artigo mencionado acima.
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Em relação ao sujeito ativo e passivo, a doutrina e jurisprudência, de
forma majoritária, entendem que qualquer pessoa pode praticar, inclusive
funcionários públicos.
A questão fundamental em relação ao sujeito, após essa decisão do
STJ, se refere a quem seria o sujeito passivo primário e secundário. Por
enquanto, passaremos a visão anterior a decisão, ou seja, o sujeito passivo
do crime de desacato é, de forma primária, o Estado e de forma secundária
o funcionário público ofendido em sua honra profissional (funcional).
A conduta punida no crime de desacato é, em resumo, menosprezar,
humilhar, achincalhar, desprestigiar o servidor, por qualquer meio, na
presença do funcionário.
2. O JULGAMENTO DO RE 466.343 E O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
O julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343 representou uma
mudança da jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal a
respeito do status dos tratados Internacionais de direitos Humanos no
Brasil.
Em resumo, o STF entendeu, de forma majoritária, que a norma de
direito humano deveria receber status de norma supralegal, ou seja, entre
as normas constitucionais e as demais normas infraconstitucionais.
Destacaremos as palavras do Min. Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto proferido nos autos do RE nº. 466.343, para exemplificar o entendimento adotado:
“Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos
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internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916”. (g.n., STF, Recurso Extraordinário, nº. 466.343, rel. Min. Cesar Peluso)[3]
Portanto, o STF entendeu que a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) possui status normativo
supralegal.
3. DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESACATO A AUTORIDADE PELO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084- SP
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo interpôs o Recurso
Especial nº 1.640.084 requerendo a absolvição de um agente acusado da
prática do crime de desacato, em razão da incompatibilidade deste delito
com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Alegou, em síntese, que o crime não existe mais em nosso
ordenamento jurídico, destacando que a Relatoria para Liberdade de
Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos firmou
entendimento de que as normas de direito interno que tipificam o crime
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de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana
de Direitos Humanos.
O relator Ministro Ribeiro Dantas acolheu o pedido da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo declarando a incompatibilidade do tipo
penal de desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos nos
seguintes termos.
O Ministro destacou que os Estados Partes, de acordo com artigo 2
cumulado com o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos,
assumiram a obrigação de solucionar as questões de antinomias
normativas que pudessem suprimir ou limitar o efetivo exercício de
direitos e liberdades fundamentais.
Como o Brasil, através do Supremo Tribunal Federal, reconheceu, no
mínimo, que os tratados internacionais de direitos humanos têm força
supralegal, seria perfeitamente possível, a partir do controle de
convencionalidade, compatibilizar as normas internas com os tratados de
direitos humanos. Conforme ensinamentos da doutrina do professor
Valério Mazzuoli
"Nesse sentido, entende‐se que o controle de
convencionalidade (ou o de supralegalidade) deve ser exercido
pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos
quais o país se encontra vinculado. Trata‐se de adaptar ou
conformar os atos ou leis internas aos compromissos
internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes
deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano
do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais
internacionais (ou supranacionais) devem realizar esse tipo de
controle, mas também os tribunais internos. O fato de serem os
tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos)
imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico,
garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de
supralegalidade das leis no Brasil" (MAZZUOLI, Valério. O
controle jurisdicional da convencionalidade”.[4]
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Importante destacar que o controle de convencionalidade não se
confunde com o controle de constitucionalidade, pois o caráter supralegal
dos tratados de direitos humanos é suficiente para suprimir ou alterar
normas internas.
No presente caso o STJ entendeu que o artigo 331 do CP seria
incompatível com o artigo 13 do Pacto São José da Costa Rica, que protege
as liberdades de pensamento e expressão, fundamentando
principalmente nas seguidas decisões da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, que já havia se manifestado em diversos casos que
deveria prevalecer o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica e na
Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão que estatuiu no
número 11 que “leis de desacato” atentam contra a liberdade de
expressão e o direito à informação. Além de outros diversos argumentos.
4. CONSEQUÊNCIAS DA DECISÃO
Diante da recentíssima decisão, os fatos que configuravam o crime de
desacato podem ser enquadrados como crime contra honra.
A primeira mudança notável é que o sujeito passivo primário e
secundário foi alterado. Agora, o sujeito passivo primário seria o
funcionário público ofendido e o sujeito passivo secundário seria o Estado.
Além disso, a ação penal passaria de Ação Penal Pública
Incondicionada para Ação Penal Pública Condicionada à Representação ou
Ação Privada (Queixa‐Crime), nos termos da Súmula 714 do Supremo
Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
A decisão do STJ é de suma importância, pois a lei de desacato
proporciona um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que
aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio
fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle
popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos.
Isso fica claro no caso brasileiro, pois os crimes contra a honra são de
ação penal privada ou pública condicionada e possuem penas de um mês
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a um ano, enquanto que o desacato é de ação pública incondicionada e
sua pena é de seis meses a dois anos. Ademais, as leis de desacato
dissuadem as críticas pelo temor das pessoas às ações criminais. Inclusive,
aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das
declarações efetuadas restringem indevidamente a livre expressão
porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em
opiniões, e, portanto, não podem ser provadas.
As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu
propósito é defender a “ordem pública” (um propósito permissível para a
regulamentação da expressão em virtude do artigo 13 da Convenção), já
que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona
adequadamente e constitui a maior garantia da ordem pública.
Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato,
mediante os quais o Estado pode defender sua reputação frente a ataques
infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou
impetrando ações cíveis por difamação ou injúria.
Concluindo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça parece ser
acertada, mas ainda dependerá de uma confirmação no futuro em
eventual controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2012.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 8ª ed. Salvador:
Editora JusPodivm, 2016
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 6ª ed.
Niterói: Editora Impetus, 2010
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 6ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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MAZZUOLI, Valério. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade
das Leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011
NOTAS:
[1] Vocabulário Jurídico, de Plácido e Silva, Ed. Forense, 3º ed., pág. 331
[2] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 6º ed., pág. 370
[3] Disponível para consulta através do site: http://www.stf.gov.br/ portal/ inteiroTeor / pesquisar Inteiro Teor.asp.
[4] O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 133-134
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IGUALDADE FORMAL X IGUALDADE MATERIAL: A BUSCA PELA EFETIVAÇÃO DA ISONOMIA
CAROLINA DIAS MARTINS DA ROSA E SILVA: Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco; Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
RESUMO: o trabalho em questão faz uma breve reflexão acerca do princípio da igualdade consagrado pela Constituição Federal de 1988, analisando a evolução da ideia de isonomia desde os tempos remotos até o momento atual. Em seguida, realiza um estudo acerca da dicotomia entre o princípio da igualdade em suas acepções formal e material. Por fim, busca averiguar o verdadeiro significado da isonomia após o advento da Constituição Federal de 1988, minuciando de que forma o princípio da igualdade atua para corrigir distorções e equalizar desigualdades existentes entre os indivíduos.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição, igualdade, isonomia
ABSTRACT: The presente work aims to present a brief reflection on the principle of equality enshrined in the Federal Constitution of 1988, analyzing the evolution of the idea of isonomy from the earliest times to the present. After, studies the dichotomy between the principle of equality in its formal and material meanings. Finally, it seeks to ascertain the true meaning of isonomy after the advent of the Federal Constitution of 1988, analyzing how the principle of equality acts to correct distortions and equalize diferences between individuals.
KEYWORDS: Constitution, equality, isonomy
SUMÁRIO: 1. Evolução do princípio da igualdade. 2. Igualdade formal. 3. Igualdade material. 4. O dever de tratamento desigual e o elemento discriminador. 5. Conclusão. Referências.
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INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Realizando uma interpretação sistemática da Carta Magna, contudo, chega-se à conclusão de que a Lei Maior consagra muito mais do que a mera igualdade perante a lei, mas uma igualdade substancial entre os indivíduos, conforme será visto adiante.
1. EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
A evolução do princípio da igualdade pode ser fragmentada em várias fases. Faz-se necessário conhecer cada uma delas para uma correta compreensão do real sentido da expressão “isonomia”.
Na antiguidade, vigorava a total desigualdade entre os indivíduos. A estratificação social e os privilégios das classes dominantes não eram questionados, uma vez que a própria sociedade legitimava essa desigualdade entre ricos e pobres, e não havia qualquer preocupação em neutralizar as distorções sociais vigentes.
No período medieval, contudo, o absolutismo monárquico, pautado pelo direito divino de governar e na concentração do poder nas mãos do Rei, foi responsável pela geração de uma crise generalizada. O surgimento das concepções iluministas contribuiu para a formulação de críticas ao poder absoluto ilimitado, desaguando em revoluções que culminaram na queda do absolutismo.
Com o advento do liberalismo, entretanto, apenas foram obtidos direitos de índole individual, pois o Estado liberal era baseado na ideia de não intervenção do Estado na vida dos cidadãos. Surgem, portanto, tão somente as denominadas “liberdades individuais” ou “direitos de caráter negativo”.
Com a Revolução francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, surge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
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1789. No entanto, como apenas direitos individuais foram alcançados nesse período, a isonomia assumiu uma feição puramente formal. Falava-se apenas em “igualdade perante a lei”.
Em pouco tempo, instaura-se a crise do Estado liberal, na medida em que havia a necessidade de um Estado que garantisse o bem-estar social, pois as desigualdades e injustiças existentes tornavam-se cada vez mais insustentáveis.
Nesse período, surge o Estado Social, que passa a intervir nas mais diversas searas com vistas a garantir aos cidadãos uma existência minimamente digna e a assegurar direitos de índole positiva, tais como a educação, a saúde, o trabalho e a moradia. A isonomia assume, nesse momento, uma face nitidamente substancial.
Com a promulgação da Constituição de 1988, resta nítida a adoção, pelo Ordenamento Pátrio, do princípio da igualdade em sua acepção substancial, haja vista a busca pela concretização dos chamados direitos sociais a serem implementados pelo Estado.
2. IGUALDADE FORMAL
A igualdade em seu sentido puramente formal, também denominada igualdade perante a lei ou igualdade jurídica, consiste no tratamento equânime conferido pela lei aos indivíduos, visando subordinar todos ao crivo da legislação, independentemente de raça, cor, sexo, credo ou etnia.
Com a Revolução Francesa, afirmava-se a igualdade perante a lei, em uma perspectiva puramente negativa, na medida em que submetia todos os indivíduos ao império da lei geral e abstrata, desconsiderando assim as desigualdades existentes no plano fático.
A igualdade em sua face formal, contudo, é insuficiente, na medida em que desconsidera as peculiaridades dos indivíduos e grupos sociais menos favorecidos, não garantindo a estes as mesmas oportunidades em relação aos demais.
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É nesse sentido que adveio a crise no liberalismo estatal, uma vez que o neutralismo do Estado criava inúmeras situações de injustiça, já que a igualdade puramente formalista favorecia tão somente uma parcela elitista da sociedade, em detrimento dos mais fracos.
Nessa esteira, com o advento do Estado Social, houve a reconstrução do sentido de igualdade. O Estado adquire uma feição intervencionista com o fito de proteger os grupos menos favorecidos, efetivando os seus direitos fundamentais.
Nesse momento, surge a concepção de igualdade em sua acepção substancial, que não se limita apenas ao plano jurídico-formal, mas busca uma atuação estatal positiva.
3. IGUALDADE MATERIAL
Denominada por alguns de igualdade real ou substancial, a igualdade material tem por finalidade igualar os indivíduos, que essencialmente são desiguais.
Sabe-se que as pessoas possuem diversidades que muitas vezes não são superadas quando submetidas ao império de uma mesma lei, o que aumenta ainda mais a desigualdade existente no plano fático. Nesse sentido, faz-se necessário que o legislador, atentando para esta realidade, leve em consideração os aspectos diferenciadores existentes na sociedade, adequando o direito às peculiaridades dos indivíduos.
De acordo com o professor Marcelo Novelino, “a igualdade não deve ser confundida com homogeneidade”[1]. Nessa esteira, a lei pode e deve estabelecer distinções, uma vez que os indivíduos são diferentes em sua essência, devendo os iguais serem tratados igualmente e os desiguais tratados desigualmente, de acordo com suas diferenças.
Denota-se que a isonomia em seu aspecto substancial visa corrigir as desigualdades existentes na sociedade, pois os indivíduos são desiguais sob as mais diversas perspectivas. Ademais há, ainda, no seio social, indivíduos e grupos historicamente mais vulneráveis ou que necessitam de tratamento diferenciado, seja pelo legislador, seja pelo aplicador do direito. Portanto,
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não se pode conceber que sejam os mesmos tratados pelo Ordenamento Jurídico como se idênticos fossem.
A Constituição Federal, simultaneamente, assegura a igualdade formal e determina a busca por uma igualdade substancial. Em seu art.5º, caput, a Carta Magna prevê a chamada cláusula geral do princípio da igualdade ou isonomia, que visa obstar quaisquer discriminações ou distinções injustificáveis entre indivíduos, nos seguintes termos:
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. [2]
De acordo com o professor Alexandre de Moraes[3], a igualdade assegurada pela Constituição de 1988 atua em duas faces: em relação ao poder legislativo ou executivo, este quando edita leis em sentido amplo, na medida em que obsta a criação de normas que violem a isonomia entre indivíduos que se encontram na mesma situação; E, também, em relação ao intérprete da lei, ao impor que este a aplique de forma igualitária, sem quaisquer diferenciações.
Dessa forma, resta claro que a Carta de 1988 buscou aproximar as concepções de igualdade formal e material. Há inúmeros dispositivos constitucionais que buscam a eliminação de desigualdades de fato, como o art. 3º, que dispõe que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso VI). [4]
4. O DEVER DE TRATAMENTO DESIGUAL E O ELEMENTO DISCRIMINADOR
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Conforme José Afonso da Silva[5], Aristóteles foi responsável por inserir o princípio da igualdade na seara da filosofia, quando explicitou que “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um o que é seu”. A referida afirmação, apesar de vaga, denuncia que “o enunciado geral de igualdade, dirigido ao legislador, não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma ou que todos devam ser iguais em todos os aspectos”[6].
Nessa linha, Robert Alexy, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, ensina que “se houver uma razão suficiente para o dever de um tratamento desigual, então, o tratamento desigual é obrigatório”[7]. Ainda de acordo com Alexy,
A assimetria entre a norma de tratamento igual e a norma de tratamento desigual tem como consequência a possibilidade de compreender o enunciado geral de igualdade como um princípio da igualdade, que prima facie exige um tratamento igual e que permite um tratamento desigual apenas se isso for justificado por princípios contrapostos.
Portanto, na busca pela concretização da isonomia em sua feição substancial, é legítimo ao legislador criar distinções com a finalidade de igualar oportunidades em prol de indivíduos e grupos menos favorecidos, uma vez que, historicamente, negros, mulheres e idosos sempre se encontraram em situação de hipossuficiência no seio da sociedade.
Dessa maneira, a lei pode e deve eleger como critério de diferenciação elementos baseados em situações, pessoas e até mesmo em coisas.[8]
Fatores como idade, gênero, raça e orientação sexual são aptos a legitimar o legislador a criar diferenciações a fim de atingir a igualdade material, corrigindo distorções.
Conforme explicitou Novelino, “para ser compatível com o princípio da isonomia, o elemento discriminador, cuja adoção exige uma justificativa racional, deve ter por finalidade promover um fim constitucionalmente consagrado. O critério utilizado na diferenciação deve ser objetivo, razoável e proporcional”[9].
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Assim, para que haja o discrímen é imprescindível que este se baseie em critérios realmente passíveis de serem aferidos objetivamente. A lei deve estabelecer distinções visando suprir as desigualdades existentes no plano fático, a fim de que os indivíduos possam galgar os mesmos objetivos e oportunidades.
Celso Antônio Bandeira de Mello[10] entende que é possível que a lei atinja uma categoria específica de pessoas, ou até mesmo um só indivíduo, desde que vise sujeito indeterminado e indeterminável no presente. Isto porque
o primeiro tipo de norma é insuscetível de hostilizar a igualdade quanto ao aspecto ora cogitado, isto é, quanto à “individualização atual do destinatário”, porque seu teor geral exclui racionalmente este vício. O segundo também não fere a isonomia, no que pertine ao aspecto sub examine, porque não agride o conteúdo real do preceito isonômico: evitar perseguições ou favoritismos em relação a determinadas pessoas.[11]
O tratamento desigual, entretanto, deve ser pautado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de se criar situações de privilégio infundado.
Nesse sentido, segundo ensina Celso Antônio Bandeira de Melo[12], “a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita”, devendo haver uma “adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”. Portanto, o elemento discrímen deve “guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados”, sob pena de ferir a isonomia e criar-se favoritismos ilegítimos.
5. CONCLUSÃO
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O princípio da igualdade é tema extremamente complexo, e sua compreensão só é possível quando analisada a sua origem histórica e evolução ao longo dos tempos.
Como forma de regulação da sociedade, a isonomia alcançou uma feição substancial às custas de lutas sociais e movimentos revolucionários, tornando-se instrumento de grande valia em prol das minorias.
Não restam dúvidas de que a ideia aristotélica de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um o que é seu” alcançou seu ápice com a promulgação da Lei Maior, não obstante estarmos muito longe da concretização plena do princípio da isonomia. Nesse sentido, andou bem o constituinte de 1988 ao determinar, sem medir esforços, a busca incessante pela igualdade em seu aspecto mais democrático e pluralista.
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NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª. ed.rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010.
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SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 33ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010. NOTAS:
[1] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010. p.392.
[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1988.
[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 65.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1988.
[5] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 33ª Ed. rev. e atual. São Paulo:Malheiros, 2010. p. 213.
[6] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 397.
[7] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 410.
[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.23.
[9] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010, p. 392.
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[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.25.
[11] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.26..
[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.39.
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A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O TERCEIRO SETOR
JULIANA VIEIRA BERNAT DE SOUZA: Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, residente jurídico na Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro (2009 - 2011) e residente Jurídico na Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (2011 - 2013).
Resumo: A dicotomia público-privado, cada vez mais, vem sendo relativizada. Assiste-se a um fenômeno que se convencionou chamar de “a fuga para o direito privado”. Neste contexto, a Administração Pública contemporânea ganha contornos empresariais, passando a preocupar-se com o controle dos resultados, em prestígio à eficiência. Assim, partindo-se do pressuposto de que o setor público não-estatal pode atuar de maneira mais eficiente, passam-se para as mãos da sociedade civil os serviços não exclusivos do Estado, onde não se faz necessário o uso do Poder do Estado. A atuação estatal passa a ser de fomento e regulação dessas atividades. Nesta seara, crescem as parcerias público-privadas[1], dentre as quais as efetivadas com as entidades do Terceiro Setor. Enfim, a relação entre a Administração Pública e o Terceiro Setor é uma realidade, de sorte que começam a surgir questionamentos, dúvidas, que incumbem ao jurista dirimir. Um desses problemas e ponto crucial do estudo, relaciona-se com a necessidade ou não de licitação nas contratações empreendidas com e pelas as entidades do Terceiro Setor.
Palavra-Chave – Administração Pública. Descentralização. Parcerias Público-Privadas. Terceiro Setor. Licitação.
SUMÁRIO: 1. Fundamento e Conceito de Terceiro Setor. 1.1. Breve Contexto Histórico. 1.2 Princípios Norteadores da Administração Pública Gerencial. 1.2.1 Princípio da Subsidiariedade. 1.2.2 Princípio da Participação. 1.2.3 Princípio da Autonomia. 1.2.4. Princípio da Profissionalização. 1.2.5. Princípio da Transparência. 1.2.6 Princípio da
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Consensualidade. 1.3 Principais Fundamentos do Terceiro Setor: O Princípio da Subsidiariedade e o Fomento. 1.4 A relação do Terceiro Setor com a Administração Pública. 1.5 O Conceito de Terceiro Setor. 1.5.1 A exigência de finalidade pública. 1.5.2 A expressão “paraestatal” e o Terceiro Setor. 1.5.3 O conceito de Terceiro Setor. 2. As Entidades do Terceiro Setor. 2.1 A divergência sobre quais entidades compõem o Terceiro Setor. 2.2 Serviços Sociais Autônomos (Sistema “S”). 2.2.1 Serviço Social Autônomo criado antes da Constituição da República de 1988 e o Serviço Social Autônomo criado após a Constituição da República de 1988: diferenças? 2.3.Organizações Sociais – OS e organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. 2.3.1. O Contrato de Gestão e o Termo de Parceria. 2.3.2. Outros aspectos dos regimes jurídicos das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público. 2.4 Entidades de Apoio. 3. O Terceiro Setor e as Licitações. 3.1 As Licitações. 3.2. Serviço Social Autônomo e Licitação. 3.3. Organizações Sociais, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Licitação. 3.3.1 A escolha das entidades para receberem a qualificação de OS e de OSCIP. 3.3.2. A escolha das OS e das OSCIP’s para celebrarem contrato de gestão ou termo de parceria com o Poder Público. 3.3.3. A contratação realizada por OS e OSCIP’s com utilização de recursos públicos. 3.3.4. A contratação pela Administração Pública de OS e OSCIP’s (sem ser para celebração de contratos de gestão e termos de parceria). 3.4 Entidades de Apoio e Licitação. 4. Conclusão.
1 FUNDAMENTOS E CONCEITO DE TERCEIRO SETOR
1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO
Antes de conceituarmos o Terceiro Setor e explicitarmos os seus fundamentos, é necessário analisar brevemente o contexto histórico da existência das entidades do Terceiro Setor.
Com efeito, o surgimento das entidades do Terceiro Setor, bem como das agências reguladoras, ocorreu em função da crise do Estado brasileiro, incapaz de, sozinho, satisfazer as necessidades coletivas da população.[2]
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Com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o Governo Fernando Henrique Cardoso evidenciou a preocupação com a mudança do Estado burocrático para um Estado gerencial.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tratar da evolução da administração pública, aponta três fases: (i) administração regaliana, do absolutismo, onde prevalecia o interesse do rei, (ii) administração burocrática, do estatismo, em que passou a prevalecer o interesse do Estado, (iii) administração gerencial, da democracia, onde prevalece o interesse da sociedade. Acrescenta que a transição da administração burocrática para a administração gerencial, no Brasil, iniciou-se antes de finalizada a mudança da administração regaliana para a burocrática, vez que, segundo ele, “as atividades e comportamentos do Estado-administrador continuam aferrados a conceitos e princípios do patrimonialismo, do paternalismo e do assistencialismo personalizantes e ineficientes.”[3]
Em que pese a crítica acima referida, o fato é que a transição do Estado burocrático para o gerencial, no Brasil, chamada de reforma administrativa, iniciou-se pautada em duas etapas: primeiro foram feitas reformas constitucionais (Emenda Constitucional 19/1998) e posteriormente começou uma etapa legislativa ordinária, ainda inconclusa.[4]
O Estado gerencial é aquele preocupado com os resultados e com o atendimento dos interesses da sociedade. Para alcançar tais misteres, o Estado afasta-se de determinadas atividades, assumindo, muitas vezes, um papel regulatório. Enfim, o Estado gerencial é mais eficaz. Ao tratar da reforma administrativa, explica Silvia Faber Torres que ela é “consistente na substituição de um modelo burocrático de gestão, que se concentra no processo e se caracteriza por ser lenta, cara e orientada para si mesma e não para o administrado, por um modelo gerencial, direcionado aos resultados e ao cidadão.”[5]
Neste contexto, ensina Paulo Modesto: Não prover diretamente o serviço não quer dizer
tornar-se irresponsável perante essas necessidades sociais básicas. Não se trata de reduzir o Estado a
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mero ente regulador. O Estado apenas regulador é o Estado Mínimo, utopia conservadora insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais. Não é este o Estado que se espera resulte das reformas em curso em todo o mundo. O Estado deve ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos e econômicos estratégicos.[6]
Diante desta tendência do Estado em se tornar predominantemente, mas não exclusivamente, regulador, passou-se a estimular a atuação de particulares que colaborem com a administração pública. Destarte, o Terceiro Setor vem crescendo e se fortalecendo no Brasil.[7]
1.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL
Conforme explicitado, o florescimento do terceiro setor tem como raízes a transição da administração burocrática para a gerencial (reforma administrativa). Destarte, mister adentrarmos no estudo dos princípios norteadores do Estado gerencial.
Leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto que a partir dos princípios da eficiência e da legitimidade surgiram novos princípios fundantes do novo conceito de Administração Pública. Sustenta que esses novos princípios podem ser classificados em três ordens: políticos, técnicos e jurídicos.[8]
Dentre os princípios políticos inserem-se o princípio da subsidiariedade e o princípio da participação; na ordem dos princípios técnicos há os princípios da autonomia e da profissionalização; e, finalmente, dentre os princípios jurídicos colocam-se o princípio da transparência e o princípio da consensualidade.[9]
Passa-se, agora, à análise dos referidos princípios.
1.2.1 Princípio da subsidiariedade
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O princípio da subsidiariedade remonta à doutrina social da Igreja Católica, tendo sido expressamente previsto na Encíclica Quagragesimo Anno do Papa Pio XI (1931). [10]
Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o referido princípio “diz respeito à relação entre níveis de concentração de poder e respectivos níveis de interesses a serem satisfeitos.”[11]
Pode-se constatar no princípio uma dimensão externa e uma interna.
Pela dimensão externa[12] do princípio da subsidiariedade dá-se primazia ao indivíduo, a quem se reconhece o direito e a prioridade de atuação em busca da satisfação de seus interesses. Em segundo lugar, cabe aos grupos intermédios a satisfação de seus interesses coletivos. E, finalmente, compete à sociedade civil como um todo a atuação em prol de seus interesses gerais. Destarte, o Estado somente atuará quando a sociedade não puder fazê-lo em função da necessidade do exercício da coação. Assim, somente se transfere às entidades públicas aquelas atividades que, por sua natureza ou complexidade, demandem a ação imperativa do Estado.[13][14]
Na dimensão interna ou política do princípio da subsidiariedade, tem-se que, na atuação estatal, a primazia é do ente local (no federalismo brasileiro, os Municípios), que se encontra mais próximo da sociedade, tendo, portanto, melhores condições de conhecer e atender às suas necessidades; quando as decisões e ações locais forem insuficientes, as demandas passam para o ente regional (no Brasil, os Estados); por fim, atuará o ente nacional (no caso brasileiro, a União), quando os entes regionais não puderem agir eficientemente. Assim, os Municípios são competentes para os assuntos de interesse local, os Estados para os de interesse regional e a União para os de interesse nacional. [15]
Com efeito, o princípio da subsidiariedade espraia-se para fora das fronteiras nacionais, de sorte que “a atuação dos Estados soberanos deverá preferir sempre à entidades inter e supranacionais, que só deverão agir quando as entidades políticas nacionais não tenham condições de
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satisfazer certos interesses gerais que transcendam sua capacidade de ação.”[16]
Percebe-se, pois, que o Estado subsidiário cria uma verdadeira cadeia de subsidiariedade.[17]
Dessa forma, sustenta Silvia Faber Torres que a Administração Pública contemporânea deve, cada vez mais, utilizar-se da subsidiariedade “com vistas a assumir um papel mais restrito – porém não minimalista – de mediador, criando condições para que os homens realizem adequadamente seus fins, com o que se propiciará uma relação estável entre o poder público e a sociedade.”[18]
1.2.2 Princípio da participação
Num contexto de democracia participativa, é essencial a participação dos administrados nas decisões do poder público que influirão em sua esfera de interesses.
É importante ressaltar que a participação dos cidadãos, através de variados instrumentos, tais como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular, o recall[19],legitima a atuação estatal, que certamente será cumprida com mais facilidade pelos administrados, vez que terá maior aceitação social.[20]
1.2.3 Princípio da autonomia
O princípio da autonomia confere flexibilidade a entidades e órgãos para que adequem suas funções às necessidades de gestão da coisa pública.[21]
Essa flexibilidade permite maior eficiência e economicidade, o que seria impensável no seio de um Estado burocrático, onde há a necessidade de observâncias de padrões rígidos e burocratizados.
Conforme leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “esta nova concepção parte da fixação prévia da finalidade para determinar-se a partir
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de um âmbito de competência, invertendo a visão clássica, que partia da fixação da competência para referi-la a uma certa finalidade.”[22]
Neste contexto, amplia-se a autonomia de gestão de entes da Administração Pública e estende-se a autonomia a entes para e extraestatais.[23]
O princípio da autonomia é aplicado além da estrutura do Estado, por meio das transferências de execução das atividades estatais a entes da sociedade, com fins ao atendimento dos interesses públicos.[24]
Convém ressaltar que as referidas transferências operam-se apenas quanto ao exercício, vez que a titularidade estatal conferida pelo ordenamento jurídico é indisponível, indelegável.[25]
Ganha importância nesta seara a figura das entidades intermédias, que serão analisadas adiante.
1.2.4 Princípio da profissionalização
Com arrimo na doutrina de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, podem-se apontar duas razões que determinam uma gestão profissional em detrimento de uma gestão burocrática: (i) a necessidade de a Administração atuar em searas que exijam cada vez mais conhecimentos técnicos, onde praticamente não há escolhas políticas, (ii) a necessidade de que a Administração não se conforme em utilizar-se de recursos humanos (pessoal) menos qualificados que os das entidades privadas.[26]
O princípio da profissionalização encontra-se intimamente ligado ao princípio da eficiência, afastando, por conseguinte, a desnecessária burocratização do seio das entidades públicas. Vale citar as palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto segundo o qual, o princípio da profissionalização
afasta qualquer burocratização de entidade ou órgão público além do mínimo indispensável para o cumprimento das suas tarefas de rotina, ou seja, o desempenho das atividades-meio. De resto, todas as
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atividades devem ser necessariamente orientadas pela atividade-fim, ou seja, pela finalidade.[27]
1.2.5 Princípio da transparência
A atuação transparente da Administração Pública permite a efetivação do controle estatal – realizado pela própria Administração Pública e pelos demais Poderes – e do controle social – empreendido pelas entidades da sociedade civil e pelos cidadãos.[28]
De fato, na medida em que permite a realização dos dois tipos de controle referidos, o princípio da transparência é veículo de efetivação dos princípios da participação e da impessoalidade.
Num contexto de democracia participativa e de Estado gerencial, a transparência da ação estatal é fundamental para a legitimação de seus atos.
1.2.6 Princípio da consensualidade
Pelo princípio da consensualidade, a atuação da Administração Pública em relação à sociedade, sempre que possível, deve pautar-se pelo consenso, em detrimento da imperatividade.[29]
A idéia é mudar a mentalidade da Administração Pública. Durante muito tempo a Administração se pautou no ato administrativo; a atuação era impositiva. Hoje, o ato administrativo anda ao lado dos contratos administrativos e outros atos jurídicos; a Administração tem buscado ouvir o particular e ajustar suas vontades. Saímos de uma Administração Pública impositiva e vamos para uma Administração Pública consensual, cuja atuação é pautada pela participação cada vez maior dos administrados.
Insta salientar que a Administração Pública pode ser exercida por subordinação ou por coordenação. Nas sempre elucidativas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
A Administração Pública subordinativa é unilateral, hierarquizada e linear, sendo suas
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manifestações tradicionais praticamente esgotadas, enquanto a Administração Pública coordenativa é multilateral, equiordinada e radial, apresentando manifestações sempre novas e em plena expansão.[30]
Como manifestação da consensualidade, difunde-se a atuação da Administração Pública por meio de pactos: contratos e acordos. A principal diferença entre essas figuras é que os contratos pressupõem prestações recíprocas, com vistas ao atendimento dos distintos interesses dos contratantes, ao passo que nos acordos, as prestações são integrativas, objetivando alcançar o interesse comum. [31]
A consensualidade já começa a se tornar uma realidade na Administração Pública e deve, cada vez mais, ser buscada, uma vez que torna as normas e decisões mais aceitáveis e obedecidas, simplifica a gestão estatal, facilita o controle contra abusos, dentre inúmeros outros benefícios.
1.3 PRINCIPAIS FUNDAMENTOS DO TERCEIRO SETOR: O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE E O FOMENTO
Dentre os principais fundamentos do Terceiro Setor, destacam-se o princípio da subsidiariedade (já estudado) e o fomento.
A idéia de subsidiariedade estatal se dá tanto na ordem econômica (arts. 173 e 174 da Constituição da República), como na ordem social.[32] Interessa para o presente estudo a aplicação do princípio da subsidiariedade na ordem social.
A chamada reforma da sociedade caracteriza-se pela transformação da mentalidade da sociedade que, atuando de forma cooperativa e solidária, passa a assumir a tarefa de coesão social.[33] O princípio da subsidiariedade, por sua vez, é um dos pilares da referida reforma. O Estado subsidiário, conforme já explicitado, deixa de atuar em alguns setores, permitindo e encorajando a atuação da própria sociedade civil organizada.
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Neste contexto, ganham importância as entidades intermédias. Cumpre, neste diapasão, trazer à baila as lições de Silvia Faber Torres, pela sua clareza e síntese:
(...) as entidades intermédias, que integram a sociedade pluralista e se colocam entre o indivíduo e o Estado, consistem em verdadeira garantia da liberdade frente ao poder público centralizador e autoritário. Elas não são comunidades políticas, porquanto não fazem parte do governo, mas tampouco são privadas. São, ao revés, realidades sociais formadoras do corpo político do Estado, que têm reconhecidas suas esferas de competências próprias, cujo desempenho vem tendo sua relevância ampliada a cada dia.[34]
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, ao tratar das entidades intermédias, afirma que:
(...) a expressão abrange tanto os entes intermédios criados pela sociedade para cuidar de problemas derivados da existência desses novos interesses coletivos e difusos, quanto os que possam ser criados pelo próprio Estado, para atuar, por delegação, mais proximamente das comunidades diretamente interessadas, podendo, deste modo, tanto se apresentarem como entes nascidos da própria esfera do Estado, como a ele aderir, como entes privados delegatários de cometimentos públicos, tudo com um amplo arco de opções, desde os entes mais próximos aos mais afastados do Estado, conforme seja necessário para atingir o máximo de eficiência e de efetividade na ação de colaboração.[35]
Dentre as entidades intermédias, por sua vez, encontram-se as entidades do Terceiro Setor.
Com efeito, a subsidiariedade confere autonomia aos entes do Terceiro Setor em face da ação estatal; assim, o Terceiro Setor pode atuar
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em prol do interesse público, que deixou de ser monopólio estatal. Abre-se, pois, espaço ao público não-estatal, devendo o Estado garantir a atuação dos entes intermédios.[36]
Quando o Terceiro Setor age, o Estado economiza recursos, que serão empregados em outros setores, e as necessidades da população são igualmente atendidas. Cada vez mais, então, o Estado se utiliza da atuação de particulares para o atendimento do interesse público.
Neste sentido, é necessária a colaboração do Estado para a atuação das entidades do Terceiro Setor. Isto é feito através da atividade de fomento.
Para a análise do tema, faz-se preciso uma curta digressão: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao classificar as atividades da Administração Pública quanto à natureza dos interesses, fala em administração extroversa e em administração introversa.[37]
A administração pública introversa ou interna é aquela atividade administrativa interna, que diz respeito ao dia-a-dia da Administração Pública. Refere-se à gestão de pessoal, bens e serviços internos da Administração Pública. Ou seja, a administração introversa preocupa-se com os próprios interesses institucionais da Administração Pública, com a sua atividade-meio (interesses públicos secundários).[38]
A administração pública extroversa ou externa refere-se às atividades típicas do Estado prestadas para os particulares em geral, pelo próprio Estado ou por seus delegados. Isto é, a administração pública extroversa é caracterizada pela satisfação das atividades-fim da Administração Pública.[39]
Segundo a classificação de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, são cinco as atividades que compõem a administração pública extroversa, quais sejam: o exercício da polícia, a prestação de serviços públicos, o ordenamento social, o ordenamento econômico e a prestação de fomento público. [40] No presente estudo, tratar-se-á do fomento público, por ser um dos fundamentos do Terceiro Setor.
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O ilustre administrativista brasileiro conceitua o fomento público como
a função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de outras entidades públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por seu turno, as atividades que a lei haja considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.[41]
Para fins didáticos, o citado professor divide o estudo do fomento público em quatro seções: planejamento estatal, fomento social, fomento econômico e fomento institucional.[42]
O fomento público social é o que ocorre no caso dos serviços sociais autônomos[43], enquanto o fomento público institucional é o inaugurado pelas Leis nº 9.637/1998 – referente às organizações sociais – e nº 9.760/1999 – que disciplina as organizações da sociedade civil de interesse público.[44]
Através do fomento, o Estado auxilia a atuação do Terceiro Setor, sem, contudo, substituí-lo.[45]
É interessante ressaltar que o fomento é um dos instrumentos da subsidiariedade “pelos quais se garantem os sensíveis valores que lhes são intrínsecos, entre eles a justiça e a liberdade, com estimular a sociedade para que, ela própria, realize os interesses que lhes correspondem e promova, assim, o interesse público.”[46]
Com efeito, a atividade de fomento alicerça-se no fato de que a sociedade pode atuar de modo a satisfazer os interesses públicos, e essa atuação merece ser incentivada e subsidiada.[47] É interessante para o Estado estimular a atuação do particular porque, caso este deixe de satisfazer os interesses públicos, o Estado terá que fazê-lo, o que importará em dispêndios orçamentários (que são escassos), em necessidade de recursos humanos (pessoal), etc.
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Finalmente, cumpre explicitar que a atividade de fomento pode ser realizada por diversos meios, dentre os quais isenções fiscais, subvenções, desembolso efetivo, dentre outros instrumentos. De todo modo, o fomento deve ser realizado dentro dos limites da razoabilidade e excepcionalidade, “sob pena, de um lado, de tornar-se um privilégio injustificado em favor de alguns grupos sociais e, de outro, de manter a sociedade sob a dependência constante do poder público.”[48]
1.4 A RELAÇÃO DO TERCEIRO SETOR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A doutrina administrativista em geral, ao tratar do tema do Terceiro Setor, ensina que ele coexiste com o Primeiro e o Segundo Setores.[49] Com efeito, o Primeiro Setor é o Estado, o Segundo Setor é o mercado, enquanto o Terceiro Setor é composto por entidades privadas sem fins lucrativos e de fins públicos.[50]
É importante salientar, conforme Fernando Borges Mânica, que o requisito da ausência de finalidade lucrativa não é suficiente para enquadrar uma entidade no Terceiro Setor; é essencial que a entidade tenha finalidade pública[51], como veremos em seguida.
Pela análise desta simples classificação já resta claro que o Terceiro Setor não faz parte do Estado, não integra a Administração Pública. Entretanto, é essencial delimitarmos a relação existente entre a Administração Pública e o Terceiro Setor. É o que se passa a fazer.
A Administração Pública pode ser subdividida em Direta e Indireta. A Administração Pública Direta brasileira é formada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, “a Administração Direta é o conjunto de órgãos que integram as pessoas federativas, aos quais foi atribuída a competência para o exercício, de forma centralizada, das atividades administrativas do Estado.”[52]
A Administração Pública Indireta, por sua vez, é composta pelas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, que agem mediante delegação. Nas palavras do ilustre
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doutrinador, a “Administração Indireta do Estado é o conjunto de pessoas administrativas que, vinculadas à respectiva Administração Direta, têm o objetivo de desempenhar as atividades administrativas de forma descentralizada.”[53][54]
No que tange aos concessionários e permissionários de serviços públicos, eles não integram a Administração Pública.[55]
As entidades do Terceiro Setor também não integram a Administração Pública, mas com ela se relacionam.
Já ficou assente que as entidades do Terceiro Setor atuam em prol do interesse público, de sorte que colaboram com o Estado na realização de alguns de seus misteres.
O Estado, em regra, efetua a descentralização[56] de suas atividades por meio da delegação. As delegações administrativas podem ser concretizados por meio da lei, do contrato administrativo, do ato administrativo complexo e do ato administrativo – delegações legal, pactual e unilateral.[57]
Com relação às entidades do Terceiro Setor, sua atuação é respaldada pela delegação social feita pelo Estado. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, na delegação social “a transferência se opera em favor de entes criados pela própria sociedade, dedicados à colaboração no atendimento de interesses legalmente considerados como públicos.”[58]
Por meio da delegação social, o Estado limita-se a atuar subsidiariamente, sempre que as entidades privadas possam atuar com maior eficiência. [59]
Finalmente, há que se ressaltar que as entidades do Terceiro Setor agem em colaboração com o Estado, agem em parceria com o Estado com vistas à concretização do interesse público. Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as enquadra no que denomina de Administração Associada, que estaria ao lado da Administração Direta e da Administração Indireta. [60]
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1.5 O CONCEITO DE TERCEIRO SETOR
Desde logo, há que se ressaltar que não há consenso quanto ao conceito de Terceiro Setor, bem como não há consenso quanto às entidades que o integram. O tema é debatido e tortuoso, razão pela qual merece uma análise cuidadosa.
1.5.1 A exigência de finalidade pública
Expôs-se na seção anterior que o Terceiro Setor é composto por entidades privadas sem fins lucrativos e com finalidade pública. Quanto ao requisito da ausência de finalidade lucrativa, a doutrina parece ser unânime ao exigi-lo. Porém, no que se refere à exigência de finalidade pública, há certa divergência, que merece ser apontada.
Explica Fernando Borges Mânica que há quem entenda que se enquadra no Terceiro Setor todas as entidades que não estejam albergadas pelos outros dois setores (Estado e mercado).[61] Assim, há autores que defendem que nem todas as entidades do Terceiro Setor têm finalidade pública, havendo entidades que visam aos interesses privados.[62]
Defendem esses autores que “(...) grande parte do setor é composta por organizações com fins coletivos privados, como uma organização para observação de pássaros tropicais (...) ou aquelas que cultivam orquídeas (...) ou ainda grupos literários e artísticos.”[63]
Neste diapasão, seria totalmente inútil a adoção de um conceito de Terceiro Setor que abrangesse todas as entidades sem fins lucrativos, vez que o conjunto de todas essas organizações não possuiria um regime jurídico próprio.[64] Um conceito amplo assim serviria mais para confundir do que para trazer uma definição precisa do que é o Terceiro Setor.
Destarte, “Terceiro Setor não deve ser entendido como um conceito amplo e residual.”[65]
Assim, possível é constatar que o requisito da finalidade não lucrativa não basta para enquadrar uma entidade no âmbito do Terceiro Setor. É preciso mais: a entidade privada deve ter finalidade pública.[66]
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1.5.2 A expressão “paraestatal” e o Terceiro Setor
Colhendo as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as entidades paraestatais “são pessoas jurídicas de direito privado, criadas por lei para desempenhar, por delegação legal, atribuições de natureza executiva no campo das atividades sociais e econômicas cometidas ao Estado.”[67]
Di Pietro, por sua vez, conceitua as paraestatais como “pessoas privadas que colaboram com o Estado desempenhando atividade não lucrativa e às quais o Poder Público dispensa especial proteção, colocando a serviço delas manifestações do seu poder de império.”[68]
Certo é que em doutrina e jurisprudência não há consenso quanto ao conceito de entidade paraestatal.[69] Isto causa imprecisões e dúvidas para o intérprete, razão pela qual há quem prefira não empregar a expressão.[70]
Há entendimento no sentido de que as paraestatais englobariam as entidades da Administração Indireta e os serviços sociais autônomos.[71] Outros entendem que somente as autarquias são paraestatais.[72] Existem juristas que enquadram como paraestatais as empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas e serviços sociais autônomos.[73] E há aqueles que defendem que são paraestatais todas as entidades integrantes do Terceiro Setor, “o que abrange as declaradas de utilidade pública, as que recebem certificados de fins filantrópicos, os serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI), as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público.”[74]
Percebe-se, portanto, que o tema é tortuoso, havendo muito mais dissenso que consenso. Destarte, prefere-se, neste estudo, deixar de lado a expressão “paraestatal”.
1.5.3 O conceito de Terceiro Setor
Finalmente, não se poderia terminar este capítulo sem se trazer o conceito de Terceiro Setor. Também aqui a tarefa não é simples, razão
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pela qual se faz necessário buscar em doutrina alguns conceitos, para, depois, tentar-se formular um.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a conceituação é a seguinte: são entidades privadas, instituídas por
particulares; desempenham serviços não exclusivos do Estado, porém em colaboração com ele; se receberem ajuda ou incentivo do Estado sujeitam-se a controle pela Administração Pública e pelo Tribunal de Contas. Seu regime jurídico é predominantemente de direito privado, porém parcialmente derrogados por normas de direito público.[75]
Fernando Borges Mânica, por sua vez, conceitua o Terceiro Setor “como o conjunto de pessoas jurídicas de direito privado, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que (i) desenvolvam atividades de defesa e promoção dos direitos fundamentais ou (ii) prestem serviços de interesse público.”[76]
Gustavo Justino de Oliveira sustenta que o Terceiro Setor pode ser compreendido como:
o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por organizações privadas não-governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e privados).[77]
O autor fala em um Direito do Terceiro Setor, que seria
o ramo do Direito que disciplina a organização e o funcionamento das entidades privadas sem fins lucrativos, as atividades de interesse público por elas levadas a efeito e as relações por elas desenvolvidas entre si, com órgãos e entidades integrantes do aparato estatal (Estado), com entidades privadas que exercem
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atividades econômicas eminentemente lucrativas (mercado) e com pessoas físicas que para elas prestam serviços remunerados ou não remuneradas (voluntariado).[78]
Na tentativa de conceituar o Terceiro Setor, e adotando-se um conceito simples, tem-se que o Terceiro Setor é formado por entidades privadas, sem fins lucrativos e com finalidade pública, alicerçado na subsidiariedade estatal e no fomento público.
2 AS ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR
2.1 A DIVERGÊNCIA SOBRE QUAIS ENTIDADES COMPÕEM O TERCEIRO SETOR
Inicialmente, não há unanimidade em doutrina com relação a quais entidades integram o Terceiro Setor.
Com efeito, parece que o consenso existe apenas quanto às organizações sociais e às organizações da sociedade civil de interesse público, que toda doutrina afirma serem integrantes do Terceiro Setor.[79]
No que tange aos serviços sociais autônomos, parte dos juristas[80] os incluem no âmbito do Terceiro Setor, enquanto outros[81] os excluem.
Valter Shuenquener de Araújo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro acrescentam ao rol das entidades do Terceiro Setor as entidades de apoio.[82]
Cumpre notar que os serviços sociais autônomos e as entidades de apoio não possuem uma lei geral trazendo, de maneira uniforme, suas características. O que há é legislação esparsa, o que imprime certa dificuldade ao estudo.
No que tange às organizações sociais, há a Lei Federal nº 9.637/98; enquanto as organizações da sociedade civil de interesse público são disciplinadas pela Lei Federal nº 9.790/99. Insta salientar que Estados,
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Distrito Federal e Municípios podem trazer suas respectivas leis, em respeito à sua autonomia federativa.
Passa-se, então, ao estudo das principais entidades do Terceiro Setor (serviços sociais autônomos, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e entidades de apoio), sem se esquecer de mencionar que não são as únicas, vez que há outras entidades que podem se enquadrar no conceito de Terceiro Setor, tal como as entidades de utilidade pública, dentre outras.
2.2 SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS (SISTEMA S)
Os serviços sociais autônomos, assim como todas as entidades do Terceiro Setor, são entidades privadas, sem fins lucrativos, que prestam atividade de interesse público. Também são chamados de Sistema S em função da constatação de que o nome dessas entidades costuma a começar com a letra “s”; como por exemplo: SESI, SENAI, SESC, SENAC, SEBRAE.
A expressão serviço social autônomo é consagrada em doutrina, porém não é imune a críticas. José dos Santos Carvalho Filho prefere a nomenclatura “pessoas de cooperação governamental”[83] porque, ao seu sentir
o termo serviço tem mais o sentido objetivo de tarefa, atividade do que o subjetivo de pessoa. Mas, ainda que se use serviço autônomo, no sentido subjetivo, teremos inevitavelmente a noção de pessoa. Por outro lado, o adjetivo sociais não basta para qualificar essas entidades, porque os objetivos podem ser sociais stricto sensu, de formação profissional, de amparo empresarial etc. Por isso, preferimos realçar o lado da cooperação dessas pessoas, além de qualificar suas atividades como serviços de utilidade pública, de sentido mais abrangente.[84]
Cumpre, neste passo, trazer as palavras de Hely Lopes Meirelles: Serviços sociais autônomos são todos aqueles
instituídos por lei, com personalidade de Direito
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Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares convencionais (fundações, sociedades civis ou associações) ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatutárias.
(...) Essas instituições, embora oficializadas pelo
Estado, não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários. Recebem, por isso, oficialização do Poder Público e autorização legal para arrecadarem e utilizarem na sua manutenção contribuições parafiscais, quando não são subsidiadas diretamente por recursos orçamentários da entidade que as criou.[85]
Com efeito, o serviço social autônomo não é integrante da Administração Pública.[86] Ademais, não presta serviço público; realiza, ao revés, atividade privada de interesse público (serviços não exclusivos do Estado).[87] E é justamente por conta da natureza da atividade prestada pelo Sistema S que o Estado fomenta a sua atuação, conforme visto no capítulo anterior.
Não existe uma lei uniforme tratando dos serviços sociais autônomos; o que há, eventualmente, são diplomas legais específicos que vão estabelecer uma autorização legal para a criação de uma entidade do Sistema S. Ou seja, a lei autoriza a criação dessas pessoas privadas e, em regra, não é o Poder Executivo que irá fazê-lo (como ocorre com entidades da Administração Indireta), mas entidades privadas: as Confederações Nacionais.[88] Por exemplo, o Decreto-lei nº 9.403/46 autorizou a
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Confederação Nacional da Indústria a criar e organizar o Serviço Social da Indústria – SESI, enquanto o Decreto-lei nº 9.853/46 conferiu à Confederação Nacional do Comércio o encargo de criação e organização do Serviço Social do Comércio – SESC.
Note-se, ainda, que os serviços sociais autônomos são pessoas privadas, destarte seu nascimento se dá com o registro de seus atos constitutivos no registro civil competente, na forma do artigo 45[89] do Código Civil.[90]
Neste ponto surge uma divergência na doutrina, a saber: a maior parte dos juristas entende que essas entidades podem se revestir das mais variadas formas – associação, sociedade civil, fundação –, desde que não possuam finalidade lucrativa[91]; entretanto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto defende que os serviços sociais autônomos devem ser instituídos como associações civis.[92]
Insta salientar que a Constituição da República, em uma passagem, faz referência aos serviços sociais autônomos: artigo 240.[93] O dispositivo se restringe a explicitar que o serviço social autônomo vai ser remunerado por contribuição social. Marcos Juruena Vilella Souto, com propriedade assevera que
isso não transforma a natureza da entidade, nem, muito menos, as vincula à Administração, ainda que haja um conjunto de regras incidentes sobre a aplicação dos recursos recebidos do Estado no que concerne às finalidades fomentadas e ao dever de prestar contas. No entanto, como entidades privadas, não sujeitas a hierarquia e com receita própria, não podem receber imposição sobre maneira de efetuar suas despesas, apenas podendo ser glosadas as ilegais ou improbas.[94]
É importante notar que as contribuições sociais[95] são espécies do gênero tributo. Como é sabido, em regra, tributo somente pode ser criado por lei e a lei que cria a contribuição social diz para onde ela será dirigida.
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Como regra hoje, o INSS[96] faz a arrecadação e repassa para as entidades do Sistema S.
As atividades do serviço social autônomo, todavia, podem ser custeadas por outras receitas além das contribuições sociais.[97]
Apesar de não integrar a Administração Pública, como o Sistema S é, em grande parte, custeado por receitas tributárias, nos moldes do artigo 149[98] da CRFB, tem-se que a ele é aplicado um regime jurídico semelhante ao aplicado à Administração Pública em alguns aspectos.[99]
Assim, as entidades do serviço social autônomo estão submetidas ao controle do Tribunal de Contas (artigo 70, parágrafo único, c/c artigo 71, II, da CRFB)[100], além de uma supervisão ministerial feita pelo Ministério de sua área de competência (controle por vinculação).[101] “No direito positivo, o art. 183[102] do DL nº 200/67 autoriza o controle feito pelo Poder Público dos serviços sociais autônomos. O controle por vinculação é feito por cada Ministério com competência nas atividades realizadas por cada serviço social autônomo.”[103]
Cumpre agora referir-se ao regime dos agentes: os trabalhadores das entidades do Sistema S são regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT.[104] As questões que se discutem são (i) se há ou não a necessidade de realização de concurso público para sua admissão e (ii) se há teto para a remuneração dos trabalhadores dos serviços sociais autônomos.
Com efeito, a doutrina parece concordar que os trabalhadores dos serviços sociais autônomos não são escolhidos mediante concurso público.[105] O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já teve a oportunidade de afirmar que o Sistema S não precisa realizar concurso público para a contratação de pessoal.[106] A interpretação que se faz do artigo 37, II, da CRFB é que o concurso público só é exigível para as entidades administrativas. Entretanto, em nome da moralidade, da legalidade e da impessoalidade, autores como a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[107] sustentam haver a necessidade de um processo seletivo para a escolha de pessoal.
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No que tange ao teto remuneratório, aqui também a doutrina em geral afirma que os serviços sociais autônomos não estão submetidos ao regime previsto no artigo 37, XI, da CRFB.[108] Isto porque o artigo 37, XI tem como destinatários apenas as entidades da Administração direta e indireta, não abrangendo, pois, o Sistema S. Todavia, não se pode deixar de mencionar o entendimento do Tribunal de Contas da União no sentido de que os dirigentes de entidades do serviço social autônomo deveriam ter limitação remuneratória.[109]
No que se refere aos bens integrantes do patrimônio do serviço social autônomo, não há dúvidas de que são bens privados.[110] Mas assevera Valter Shuenquener de Araújo que “nada impede que entre os bens utilizados pelos serviços sociais haja bens cedidos temporariamente pelo Poder Público. Esses bens continuarão sendo públicos, e não integram, por se tratar de uma mera posse de caráter transitório, o patrimônio dos serviços sociais.”[111]
Outro tema que merece destaque quando se estuda o Sistema S é a exigência ou não de licitação. Todavia, por se tratar do foco central do presente estudo, será analisado no próximo capítulo.
Há, ainda, que se mencionar a questão referente ao foro competente para processar e julgar o Sistema S. Já é pacífico que as entidades do serviço social autônomo estão sujeitas à jurisdição da Justiça Estadual.[112] Neste sentido, há a Súmula 516[113] do Supremo Tribunal Federal, que se refere especificamente ao SESI, mas tem aplicação a qualquer outro serviço social autônomo.[114][115] Entretanto, resta claro que se houver também interesse de qualquer pessoa discriminada no artigo 109, I, da CRFB, a competência será da Justiça Estadual.[116]
2.2.1 Serviço social autônomo criado antes da Constituição da República de 1988 e serviço social autônomo criado após a Constituição da República de 1988: diferenças?
É importante mencionar, de forma sucinta, o peculiar entendimento de Marcos Juruena Vilella Souto no sentido de que há diferenças fundamentais entre as entidades do Sistema S criadas antes da
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Constituição da República de 1988 e as criadas pelo Poder Público após a Constituição da República de 1988.
Para o mencionado autor, os serviços sociais autônomos criados antes da Constituição da República de 1988 não integram a Administração Pública, devendo se submeter a regime jurídico diverso do da Administração Pública[117] - que é o regime visto acima.
Em breves linhas, ao ver do professor, os ditos serviços sociais autônomos criados pelo Poder Público após a Constituição de 1988 têm a natureza de uma das pessoas insertas no artigo 37, XIX, da CRFB, uma vez que o Poder Público não poderia se valer de outras formas que não as do referido dispositivo.[118] Exemplos citados pelo próprio jurista são a APEX e a ABDI.[119]
Note-se, todavia, que a doutrina e a jurisprudência em geral não fazem a distinção apontada.
2.3 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS – OS E ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO – OSCIP
Diferentemente dos serviços sociais autônomos e das entidades de apoio, as organizações sociais (OS) e as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) têm leis específicas trazendo a sua disciplina – respectivamente, Lei nº 9.637/98 e Lei nº 9.790/99. As referidas leis são federais, podendo os Estados, Distrito Federal e Municípios editarem suas respectivas leis para estabelecerem essas qualificações em seus âmbitos.
Inicialmente, impende esclarecer que organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público não são novos formatos de pessoas jurídicas de direito privado, mas, ao revés, representam qualificações jurídicas especiais conferidas a pessoas jurídicas privadas já existentes (fundações privadas ou associações civis). Ou seja, as pessoas jurídicas não nascem como organizações sociais ou como organizações da sociedade civil de interesse público; elas adquirem essa condição após sua qualificação por parte do Poder Público, caso atendam às exigências especificadas em lei.[120]-[121]
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Uma diferenciação que desde logo pode ser feita em relação às OS e às OSCIP refere-se justamente à qualificação: a concessão da qualificação de OS é discricionária, enquanto a concessão da qualificação de OSCIP é vinculada.
A Lei nº 9.637/98, em seu artigo 1º, caput, diz que
o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde (...). (grifo nosso)
Ademais, dispõe o artigo 2º, II: São requisitos específicos para que as entidades
privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social:
II- haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social (...). (grifo nosso)
Assim, o critério para concessão do título de organização social é discricionário, a cargo do Ministério competente para regular e/ou supervisionar a área de atividade prestada pela pessoa jurídica.[122] Valter Shuenquener de Araújo sustenta ser “inadequada a opção legislativa pela discricionariedade do ato, pois ela é capaz de facilitar a corrupção e a violação do princípio da isonomia quando do momento do deferimento.”[123]
Por outro lado, o critério para conceder a qualificação de OSCIP é vinculado: preenchidos os requisitos legais, o Ministério da Justiça deve conceder o título à entidade.[124] Isto se dá porque o artigo 1º, §2º da Lei nº 9.790/99 dispõe expressamente que a outorga da qualificação de
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organização da sociedade civil de interesse público é ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos pela referida lei.
No que tange à desqualificação das entidades, tem-se que, para as OS, o artigo 16 da Lei nº 9.637/98 diz que ela poderá ocorrer quando constatado o descumprimento dos termos do contrato de gestão em processo administrativo, enquanto a Lei nº 9.790/99, em seu artigo 7º, diz que há a perda da qualificação de OSCIP, a pedido ou mediante decisão proferida em processo administrativo ou judicial. Em ambos os casos será assegurada a ampla defesa e o contraditório.
A doutrina, por sua vez, dissente quanto à natureza do ato de desqualificação das organizações sociais. Há quem defenda que a perda da qualificação é um ato vinculado (apesar de o ato de qualificação ser discricionário), ou seja, havendo descumprimento do contrato de gestão, a entidade deverá ser desqualificada.[125] Todavia, outros entendem que “a discricionariedade na qualificação permite uma discricionariedade também no ato de desqualificação”[126], vez que “o interesse público que justificou a qualificação da entidade como organização social pode, com o passar dos anos, não mais justificar a manutenção do título.”[127]
Por outro lado, a doutrina parece concordar que o ato de desqualificação de uma organização da sociedade civil de interesse público é vinculado.[128]
Visto isto, passa-se à análise de quais entidades podem receber a qualificação de OS e quais podem receber a qualificação de OSCIP.
Com efeito, o artigo 1º da Lei nº 9.637/98 determina que podem ser qualificadas como OS pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que desempenhem atividades na área de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Ademais, o referido diploma, em seu artigo 18 e seguintes, permite que a organização social resulte não da sociedade civil, mas da extinção de entidades federais, nas hipóteses ali consignadas.
No que tange às OSCIP’s, a Lei nº 9.790/99 trouxe uma disciplina mais detalhada. Além de dizer que somente pessoas jurídicas de
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direito privado sem fins lucrativos podem receber a qualificação de OSCIP (artigo 1º) e de mencionar as áreas de atuação (artigo 3º[129]) – que, diga-se, são bem mais amplas que as das organizações sociais –, trouxe em seu artigo 2º[130] uma lista de pessoas jurídicas que não podem ser qualificadas como OSCIP. Nas palavras de Valter Shuenquener de Araújo, “essa previsão legal demonstra uma nítida preocupação do legislador com a concessão indiscriminada do título de OSCIP a entidades privadas. Restringiu-se para evitar abusos.”[131]
Cumpre ressaltar que as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público não prestam serviço público propriamente dito, e sim atividades privadas de interesse público.[132] Vale trazer a lume, entretanto, as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro quanto a uma exceção referente especificamente às organizações sociais:
a própria lei, em pelo menos um caso, está prevendo a prestação de serviço público pela organização social, hipótese em que ela exerce atividade delegada pelo poder público; com efeito, quando a entidade absorver atividade de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde, deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7º da Lei nº 8.080, de 19-9-90. Vale dizer que prestará serviço público e não atividade privada; em conseqüência, estará sujeita a todas as normas constitucionais e legais que regem esse serviço, até porque não poderia a lei ordinária derrogar dispositivos constitucionais.[133]
Em sentido diverso do que se expôs, José dos Santos Carvalho Filho defende que tanto as organizações sociais, como as organizações da sociedade civil de interesse público prestam serviços públicos.[134]
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Uma vez que as entidades são qualificadas como OS ou como OSCIP, elas poderão formalizar vínculos com o Estado, quais sejam, respectivamente, o contrato de gestão e o termo de parceria.
2.3.1 O contrato de gestão e o termo de parceria
Primeiramente, mister consignar que o contrato de gestão firmado com a OS e o termo de parceria firmado com a OSCIP têm a mesma natureza jurídica, apesar da nomenclatura distinta.
No direito brasileiro a expressão contrato de gestão vem sendo utilizada para designar diferentes acordos: há os contratos de gestão celebrados com entidades da Administração Indireta ou com órgãos da própria Administração Direta e há os contratos de gestão firmados com as organizações sociais.[135]
Anteriormente a qualquer previsão constitucional ou legal, a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD (antes de ser privatizada) e a Petrobrás celebraram contratos de gestão, com base no Decreto s/nº de 10-06-1992 e no Decreto nº 1.040 de 27-01-1994, respectivamente.[136] O Tribunal de Contas da União, entretanto, em respeito ao princípio da legalidade não admitiu que decretos pudessem servir de meio para afastar dessas entidades o dever de cumprimento da lei.[137] Neste contexto, a partir da Emenda Constitucional nº 19/1998, a Constituição da República, em seu artigo 37, §8º, passou a autorizar a celebração de contrato[138] que permitisse a ampliação da autonomia dos órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta, com a observância de uma norma legal específica.[139]
No âmbito legal, há o artigo 51 da Lei nº 9.649/98, que fala expressamente em contrato de gestão e se refere às agências executivas.
Com efeito, esse contrato de gestão serve para ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos ou entidades administrativas.
Este contrato de gestão merece críticas. Em primeiro lugar, não tem verdadeiramente natureza jurídica de contrato, mas de consórcio. Isto
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porque os contratos têm como característica principal a existência de interesses contrapostos, ao passo que os convênios se caracterizam pela convergência de interesses, que é o que ocorre nesses contratos de gestão onde o objetivo comum é a satisfação do interesse público.
Ademais, todo órgão público (artigo 48, XI, da RFB) e todas as entidades da Administração Indireta dependem de lei para sua criação (ou a lei cria diretamente as autarquias e as fundações públicas de direito público ou autoriza a criação das estatais e das fundações públicas de direito privado – artigo 37, XIX, da CRFB). A autonomia desses órgãos e entidades decorre diretamente da lei, não podendo, pois, um ato infralegal fazer ampliação, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Uma última crítica, referente somente aos contratos de gestão firmados com órgãos, é no seguinte sentido: os órgãos públicos não têm personalidade jurídica, portanto, não têm capacidade contratual. Pelo princípio da imputação, a atuação do órgão público é imputada à respectiva pessoa administrativa a que aquele órgão faz parte. Assim, a celebração de um contrato com um órgão público implicaria em um auto-contrato (contrato consigo mesmo), o que, em princípio, é vedado pelo ordenamento.
Feita essa digressão, há que se deixar claro que o contrato de gestão acima referido em nada tem a ver com o contrato de gestão firmado pelo Poder Público com uma organização social.
Quanto aos contratos de gestão celebrados com organizações sociais também é necessário criticar a nomenclatura empregada pela lei (artigo 5º e seguintes da Lei nº 9.637/98). O vínculo existente entre a organização social e a Administração não é contratual[140]; ao revés, o ajuste envolve “interesses comuns em regime de cooperação”.[141]
Na valiosa lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: não se trata de contrato, porque não são pactuadas
prestações recíprocas, voltadas à satisfação de interesses de cada uma delas em separado, senão que, distintamente, as partes ajustam prestações conjugadas em regime de colaboração, dirigidas à
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satisfação de um mesmo interesses público que lhes é comum, o que caracteriza um pacto não contratual.
Está-se, portanto, diante de um ato administrativo complexo, em que há solidariedade de interesses e, por isso, conjugação consensual de vontades e de meios, e não de um contrato, no qual, por definição, há uma composição de interesses divergentes e, por isso, o estabelecimento de prestações recíprocas.
A tais atos a doutrina classifica como convênios, embora fosse ainda mais apropriado enquadrá-los como acordos de programa (...).[142]
Diferentemente dos contratos de gestão acima analisados (do artigo 37,§ 8º, da CRFB), os contratos de gestão firmados com organizações sociais não visam a ampliar a autonomia dessas entidades, que, por serem entidades privadas, já gozam de ampla autonomia. Ao revés, eles restringem a autonomia dessas entidades privadas, que terão que respeitar as exigências contidas no respectivo contrato de gestão.[143]
Com efeito, o contrato de gestão é o instrumento pelo qual a organização social e a Administração Pública formalizam um vínculo jurídico. Através dele, serão fixadas metas a serem cumpridas pela entidade privada e, em troca, o Poder Público concede benefícios de diversos tipos, submetendo as entidades a um controle de resultados.[144] A Lei nº 9.637/98 especifica os benefícios que podem ser concedidos pelo Poder Público, a saber: cessão de bens públicos, cessão de servidores públicos e transferência de recursos orçamentários.
Os termos de parceria celebrados entre as organizações da sociedade civil de interesse público e o Poder Público, conforme mencionado, têm a mesma natureza que o contrato de gestão da OS, caracterizando-se, portanto, como convênio administrativo.[145] Mais ainda: assim como os contratos de gestão, os termos de parceria restringem “a autonomia da entidade que, por receber diferentes tipos de incentivo, fica sujeita a controle de resultados pelo Poder Público, além do controle pelo Tribunal de Contas.”[146]
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O artigo 10, §2º da Lei nº 9.790/99 traz as cláusulas essenciais do termo de parceria: o objeto, contendo a especificação do programa de trabalho; as metas e os resultados a serem atingidos e os respectivos prazos de execução; critérios objetivos de avaliação de desempenho; previsão de receitas e despesas; obrigatoriedade de se apresentar relatório anual, com a comparação entre as metas e os resultados alcançados, acompanhado de prestação de contas; publicação na imprensa oficial do extrato do termo de parceria e de demonstrativo de sua execução física e financeira.
A Lei das OSCIP’s, diferentemente da Lei das OS, não especifica as formas de fomento ou cooperação entre o Poder Público e a entidade privada. Há apenas referência a bens e recursos de origem pública.[147]
2.3.2 Outros aspectos dos regimes jurídicos das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público
Para a entidade privada ser qualificada como organização social, em seu Conselho de Deliberação Superior necessariamente deve haver a participação de representantes do Poder Público e de representantes da sociedade civil (artigo 2º, I, d, Lei nº 9.637/98).[148] Nas organizações da sociedade civil de interesse público, a participação de representantes do Poder Público no Conselho é facultativa (artigo 4º, parágrafo único, Lei nº 9.790/99).[149]
No que se refere ao regime jurídico dos agentes, tem-se que os trabalhadores das organizações sociais, bem como os das organizações da sociedade civil de interesse público são regidos pela CLT e sua admissão não é feita mediante concurso público.[150] Sustenta, entretanto, Walter Claudius Rothenburg que a seleção de pessoal deve pautar-se pela impessoalidade, defendendo, ainda, que o pessoal selecionado deve ter alguma estabilidade.[151]
Note-se, ainda, que o artigo 14 da Lei nº 9.637/98 expressamente admite a cessão de servidores a organizações sociais, com ônus para o Poder Público. A Lei nº 9.790/99 não traz essa possibilidade de forma expressa para as OSCIP’s, porém, a despeito da omissão, a doutrina admite
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que o termo de parceria preveja a cessão de servidores com ônus para a origem.[152]
Os bens das OS e das OSCIP’s são privados.[153] Deve-se mencionar que o artigo 12, §3º da Lei nº 9.637/98 permite a destinação de bens públicos às OS mediante permissão de uso, desde que haja expressa previsão no contrato de gestão. Com relação aos bens das OSCIP’s é importante deixar consignado que sempre que a aquisição de um bem imóvel pela entidade for feita com recursos provenientes do termo de parceria, o referido imóvel fica gravado com cláusula de inalienabilidade (artigo 15 da Lei nº 9.790/99).
Passa-se agora à análise do controle exercido sobre as OS e OSCIP’s. As contas das organizações sociais são julgadas e fiscalizadas pelo Tribunal de Contas, conforme os preceitos do artigo 70, da CRFB.[154] As OSCIP’s também são controladas pelo Tribunal de Contas, na medida em que administrem bens e/ou valores de natureza pública (artigo 4º, VII, d, da Lei nº 9.790/99).[155]
Por fim, no próximo capítulo será tratado o tema sobre a exigência ou não de licitação no âmbito das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público.
2.4 ENTIDADES DE APOIO
As entidades de apoio, segundo os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são
as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, instituídas por servidores públicos, porém em nome próprio, sob a forma de fundação, associação ou cooperativa, para a prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da administração direta ou indireta, em regra por meio de convênio.[156]
Assim como nas demais entidades do Terceiro Setor, as entidades de apoio exercem atividade privada de interesse público, que é
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fomentada pelo Estado. Ou seja, elas não prestam serviço público.[157] Atuam geralmente em hospitais públicos e universidades públicas.[158]
Há que se ressaltar que, diferentemente do que ocorre nas organizações sociais e nas organizações da sociedade civil de interesse público, não há uma legislação trazendo a disciplina das entidades de apoio. O que existe, no âmbito federal, é a Lei nº 8.958/94, que trata das relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio.[159]
Com efeito, a referida lei surgiu para trazer mecanismos de controle em relação às entidades de apoio[160]. Conforme noticia a doutrina, o diploma fora editado em função de decisão do Tribunal de Contas da União (D.O.U. de 25/11/92, Seção 1, p. 16.302-16.305) no sentido da ilegalidade do vínculo jurídico então existente entre as fundações de apoio e as universidades federais.[161]
Entendeu o Tribunal de Contas da União que as fundações de apoio criadas sem destinação de recursos públicos não teriam que prestar contas, entretanto, “ficam proibidas de utilizar a qualquer título e sob qualquer forma, servidores, bens, móveis ou imóveis pertencentes a instituições públicas federais.”[162] A decisão criticou, ainda, a possibilidade de servidores terem “acesso a uma complementação financeira por via oblíqua”[163], bem como o fato de “se viabilizar a admissão de recursos humanos, a compra e a estocagem de materiais longe dos controles oficiais, embora às custas da verba pública.”[164]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro traz profundas críticas às entidades de apoio, vez que entende ser duvidosa a legalidade de sua forma de atuação, porque se utilizam do patrimônio público e de servidores públicos sem se utilizarem do regime jurídico imposto à Administração Pública.[165] Em suas palavras:
Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos, na própria sede da entidade pública, com equipamentos pertencentes ao patrimônio desta última; só que quem arrecada toda a receita e a
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administra é a entidade de apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas, sem a observância das exigências de licitação para celebração de contratos e sem a realização de concurso público para a admissão de seus empregados. Essa é a grande vantagem dessas entidades: elas são a roupagem com que se reveste a entidade pública para escapar às normas do regime jurídico de direito público.[166]
No que se refere à prestação de contas, em função do artigo 70, parágrafo único, da CRFB, esta deve ser feita.[167]
Os bens das entidades de apoio são privados, pois elas são pessoas jurídicas de direito privado. Entretanto, tais entidades, no desempenho de seus misteres, costumam usar bens públicos.[168] Ao tratar especificamente das fundações de apoio, leciona Di Pietro que “o próprio ato de instituição das fundações de apoio, em muitas delas padece de vício, pois o patrimônio é irrisório em relação aos seus objetivos institucionais.”[169]
Com efeito, a própria Lei nº 8.958/94 permite que as entidades de apoio utilizem bens da instituição federal de ensino (artigo 6º), exigindo, todavia, que a referida utilização se dê pelo prazo necessário à concretização do projeto de ensino e mediante ressarcimento.
Com relação aos agentes, é comum que servidores públicos prestem serviços para essas entidades.[170] Mais uma vez, a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro formula, acertadamente, críticas a essas entidades:
A própria situação dos servidores públicos que trabalham nesses entes de apoio resvala com a ilegalidade e a imoralidade. Embora, literalmente, não acumulem cargos, empregos e funções, porque uma das entidades em que prestam serviços é partícula, na realidade os vencimentos que recebem da entidade pública e o salário que recebem do ente em
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cooperação são, em última análise, oriundos dos cofres públicos.[171]
A Lei nº 8.958/94, por sua vez, em seu artigo 4º, permite que servidores públicos federais das instituições federais de ensino participem das atividades realizadas pelas entidades de apoio. Entretanto, esses servidores só poderão trabalhar nas entidades de apoio fora de sua jornada de trabalho. A referida determinação, apesar de moralizante, não é imune à crítica supra referida.
Finalmente, o tema das compras e alienações, ou seja, a discussão se há ou não necessidade de licitação, será analisado com cuidado no próximo capítulo.
3 O TERCEIRO SETOR E AS LICITAÇÕES
3.1 AS LICITAÇÕES
O tema referente às licitações é dos mais importantes e essenciais no Direito Administrativo.
Com efeito, a licitação é um procedimento[172] que, observada a igualdade de condições entre todos os licitantes, objetiva selecionar a proposta mais vantajosa.[173]
Conforme leciona Marcos Juruena Villela Souto: A todos deve ser assegurada igualdade de
oportunidade em oferecer seus bens e serviços para a Administração; por outro lado, o Administrador, por força do citado dever de eficiência, deve escolher a proposta que melhor atenda ao interesse público. A esse processo de escolha da proposta mais vantajosa para a contratação com a Administração se dá o nome de licitação.[174]
Há que se ressaltar que a exigência de licitação permite o respeito a princípios nucleares do Direito Administrativo, tais como:
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impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade, isonomia, dentre outros.
A licitação é a regra para a Administração Pública direta e indireta, conforme se extrai do artigo 37, XXI, da CRFB.
A Lei nº 8.666/93 traz as normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. O referido diploma é fruto do exercício da competência legislativa conferida à União pelo artigo 22, XXVII, da CRFB.
Entretanto, no que tange às entidades da Administração Indireta exercentes de atividade econômica – sociedades de economia mista e empresas públicas – o artigo 173, 1º, III, da CRFB prevê que estarão submetidos a um estatuto jurídico próprio de licitações e contratação. Ocorre que o aludido estatuto ainda não fora editado, razão pela qual a matéria continua sob a disciplina da Lei nº 8.666/93.[175]
De acordo com o magistério de Marçal Justen Filho, no futuro, haverá dois regimes básicos, um
destinado à Administração direta e autárquica e outro para as entidades de direito privado organizadas segundo padrões empresariais. O regime especial para essas últimas não consistirá na liberação pura e simples para a realização de contratações, sem observância de limites ou procedimentos determinados.[176]
Em linhas gerais, o presente capítulo visa, principalmente, a analisar se as entidades do Terceiro Setor, por fazerem, muitas vezes, uso de recursos públicos, devem ou não se utilizar do procedimento licitatório, e, em havendo necessidade de licitação, a discriminar qual o procedimento a ser adotado: o da Lei nº 8.666/93 ou outro.
Deve-se ter em consideração o fato de que as entidades do Terceiro Setor são privadas, não integram a Administração Pública, mas exercem atividades de interesse público. Desta feita, essas entidades não podem se submeter integralmente ao regime de direito privado, tampouco
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integralmente ao regime de direito público. Deve-se buscar o consenso.[177]
Passa-se agora à análise do tema.
3.2 SERVIÇO SOCIAL AUTÔNOMO E LICITAÇÃO
Desde logo, há que se ressaltar que o assunto não é pacífico.
Um primeiro posicionamento que merece anotação é o do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem o serviço social autônomo não tem que fazer licitação.[178]
Leciona o autor que os serviços sociais autônomos são associações civis e por isto se lhes aplicam as garantias insertas no artigo 5º, XVIII[179], da CRFB – que impedem ingerências estatais nas associações civis. Com base neste raciocínio, o jurista chega à conclusão de que “só serão admitidas as interferências estatais previstas constitucionalmente como necessárias para a garantia da prossecução de suas respectivas finalidades sociais.”[180] Continua dizendo que “há, portanto, condicionamentos constitucionais a serem observados, não podendo ser criados nem ampliados por leis infraconstitucionais, já que o legislador constitucional as estabeleceu numerus clausus.”[181]
Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, há apenas quatro ordens de interferências constitucionais sobre o Sistema S: (i) o controle a posteriori de contas – previsto no artigo 70, parágrafo único c/c artigo 71, II, da CRFB; (ii) a responsabilidade pessoal dos dirigentes, que podem responder por improbidade administrativa – prevista no artigo 37, § 4º, da CRFB; (iii) o controle pelo mandado de segurança contra ato de seus agentes – artigo 5º, LXIX, da CEFB; (iv) a responsabilidade patrimonial objetiva – com base no artigo 37, § 6º, da CRFB, vez que, para o autor, o serviço social autônomo presta serviço público.[182]
No que tange à sujeição do Sistema S às normas de licitações, sustenta o administrativista que é uma interferência inconstitucional.[183] Isto porque, a Constituição da República, ao falar da licitação (artigos 22,XVII; 37, XXI; 173, § 1º, III) não se referiu a nenhuma
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outra entidade que não fosse da Administração Direta ou Indireta; e, como restou claro, o serviço social autônomo não integra a Administração Pública.[184]
Destarte, o legislador infraconstitucional não poderia ampliar o rol dos destinatários da regra de licitação. Nas palavras do autor:
A inclusão no rol das pessoas sujeitas à Lei nº 8.666/93, encontrada no seu artigo 119, é, pois, inconstitucional, ainda porque o legislador ordinário ampliou a expressão constitucional ‘empresas sob seu controle’ (artigo 37, XXI, CF) para ‘entidades controladas direta ou indiretamente pela União (art. 119, Lei nº 8.666/93).
Mas mesmo assim, os serviços sociais autônomos não estão sob controle da União, nem direta nem indiretamente, pois seus órgãos diretivos se compõem, em sua maioria, de representantes de entidades privadas não só não-governamentais como apolíticas.[185]-[186]
A posição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, entretanto, não é consagrada na prática e não é adotada pela maioria da doutrina.
Para José dos Santos Carvalho Filho, os serviços sociais autônomos devem observar as regras da Lei nº 8.666/93. Entende que não há qualquer vício no fato de o legislador infraconstitucional ter ampliado o rol dos destinatários da licitação, vez que a regra da licitação consagra princípios fundamentais. Pouco importa quem gasta o dinheiro público; ao se gastar dinheiro público deve haver licitação. O autor traz o parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 8.666/93 para, partindo da premissa de que o Sistema S seria controlado indiretamente pela Administração Pública, exigir a obrigatoriedade da observância do referido diploma legal.[187]
Esse entendimento, a par de minoritário em sede doutrinária, foi parcialmente consagrado no Decreto nº 5.504/05 (artigo 1º, § 5º[188]), que exige licitação formal, preferencialmente pregão eletrônico, para o gasto de recursos públicos.
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Finalmente, há um terceiro entendimento, que é majoritário entre os juristas e que conta com a nossa adesão. A licitação consagra, dentre outros princípios, o da moralidade e o da impessoalidade. Assim, por meio de uma interpretação teleológica, a regra que a Constituição da República pretendeu ao exigir a licitação para a Administração Pública é no sentido de que quando houver gasto de dinheiro público, ele deve ser feito de maneira impessoal. Como as entidades do Sistema S são privadas, não integram a Administração Pública, a exigência de observância à Lei nº 8.666/93 retiraria a eficiência dessas entidades, criando uma burocracia desnecessária.
O Supremo Tribunal Federal, na ADIn nº 1.864-PR, que trata de entidade do serviço social autônomo do Estado do Paraná – o PARANAEDUCAÇÃO –, assim se manifestou:
A Constituição Federal, no art. 37, XXI, determina a obrigatoriedade de obediência aos procedimentos licitatórios para a Administração Pública Direta e Indireta de qualquer um dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. A mesma regra não existe para as entidades privadas que atuam em colaboração com a Administração Pública.
Neste contexto, o que se exige das entidades do serviço social autônomo ao gastar recursos públicos é a observância dos princípios constitucionais relacionados com a licitação[189], e isto pode ser feito com a “adoção de um regulamento próprio de licitações e contratações administrativas com regras próprias simplificadas, previamente aprovadas pelo TCU.”[190]
O Tribunal de Contas da União, por sua vez, na Decisão Plenária nº 907/97, entendeu que as entidades do Sistema S não estão sujeitas à Lei nº 8.666/93, mas devem criar regulamentos próprios que incorporem princípios gerais do processo licitatório.[191]
Segundo Marçal Justen Filho, “ditos regulamentos, no entanto, têm de ser compatíveis com a Lei nº 8.666.”[192]
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Com relação ao gasto de dinheiro privado pelas entidades do Sistema S, não é necessário processo seletivo algum.
3.3 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS, ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO E LICITAÇÃO
Nas organizações sociais e nas organizações da sociedade civil de interesse público, para facilitar a compreensão, o estudo acerca da necessidade ou não de realização de licitação será subdividido.
3.3.1 A escolha das entidades para receberem a qualificação de OS e de OSCIP
De um modo geral, a doutrina sequer cogita a necessidade de licitação ou algum outro processo seletivo para que se conceda a qualificação de OS ou de OSCIP.
Destarte, no caso das OS, preenchidos os requisitos legais, o Poder Público analisará a conveniência e oportunidade em qualificar certa entidade como OS (ato discricionário). A qualificação de OSCIP, por sua vez, será conferida ao ente que preencher os requisitos legais (ato vinculado).
Com efeito, a licitação não se faz realmente necessária porque a mera qualificação não dá direito a qualquer benefício proveniente do Poder Público. Isto é, com a qualificação não há nenhum repasse de recursos públicos, cessão de servidores ou de bens; os benefícios só passam a ser concedidos após a formalização de contrato de gestão ou de termo de parceria.
3.3.2 A escolha das OS e das OSCIPs para celebrarem contrato de gestão ou termo de parceria com o Poder Público
Uma vez qualificadas as entidades como organização social ou como organização da sociedade civil de interesse público, elas estão, em tese, aptas a formalizarem vínculos com a Administração Pública, conforme visto no capítulo anterior. A questão a ser analisada, então, é quanto à exigência ou não de licitação para que a Administração Pública
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escolha a OS ou a OSCIP com quem celebrará contrato de gestão ou termo de parceria, respectivamente.
Poder-se-ia aventar uma primeira solução no sentido de que, como a natureza jurídica dos contratos de gestão e termos de parceria é de convênio administrativo, não seria exigida a licitação. Isto porque o artigo 2º, da Lei nº 8.666/93 impõe a regra da licitação quando houver contratação com o Poder Público. Então, como convênio não é contrato, não seria aplicado o referido dispositivo. Aplicar-se-ia, ao revés, o artigo 116, da Lei nº 8.666/93, que não fala expressamente em licitação.
O Superior Tribunal de Justiça, especificamente quanto aos contratos de gestão firmados com as organizações sociais, já se manifestou no sentido de que não se exige licitação para a sua celebração.[193]-[194]
Por outro lado, parte numerosa da doutrina defende a necessidade de realização de licitação para a escolha das OS e das OSCIP’s que firmarão contrato de gestão e termo de parceria com o Poder Público, salvo hipóteses de dispensa ou inexigibilidade.[195]
Isto se dá, conforme salienta Marçal Justen Filho, em respeito a dois princípios fundamentais da licitação: (i) a indisponibilidade do interesse público – que impede a Administração de ceder bens, pessoal e recursos a terceiros por mera liberalidade, e impõe que se escolha a melhor alternativa[196]; (ii) o princípio da isonomia – que impõe que todas as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público têm o direito de ser tratadas de maneira isonômica.[197]
Desta forma, havendo a possibilidade de competição, deverá ser realizado o procedimento licitatório.[198]
Pela precisão, merece ser transcrita a lição de Marçal Justen Filho:
Será imperioso que o Estado divulgue sua intenção de promover contratos de gestão com determinado objeto. Não é possível que as contratações de gestão façam-se às ocultas, sem cumprimento do requisito da publicidade. Para tanto,
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o Estado terá o dever de estabelecer as condições básicas previstas para o contrato de gestão. Em última análise, a existência de um único interessado somente poderá ser apurada mediante a realização de procedimento de natureza seletiva, ao qual tenham acesso todos os possíveis interessados. A inexigibilidade poderá decorrer, porém, de peculiaridade da atividade objeto do contrato de gestão, em que a competição não possa ser selecionada por critérios objetivos.[199]
Ressalte-se que, tanto nos contratos de gestão como nos termos de parceria, a entidade privada assume a obrigação de prestar atividades em benefício da comunidade.[200] Por conta disso, Marçal Justen Filho defende a similitude com os contratos de concessão de serviço público, sugerindo, inclusive, que, sendo o caso de licitar (ou seja, não sendo hipótese de dispensa ou de inexigibilidade), deve ser obedecido o modelo da Lei nº 8.987/95.[201]
Registre-se, desde logo, que discordamos do eminente jurista, tendo-se em conta que, ao nosso sentir, organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público não prestam, em regra, serviço público.
No que se refere especificamente às OSCIP’s, o artigo 23 do Decreto nº 3.100/99 faculta que a escolha da entidade com quem se celebrará o termo de parceria seja feita através de publicação de edital de concurso de projetos. José Anacleto Abduch Santos defende que o dispositivo não produz qualquer inovação, apenas tratou de ressaltar a modalidade de concurso já contemplada na Lei nº 8.666/93.[202] O Tribunal de Contas da União, por sua vez, já afirmou que não é nulo termo de parceria firmado sem concurso de projetos.
Observe-se, ainda, que a entidade que deseja firmar contrato de gestão ou termo de parceria deverá atender os requisitos de capacidade técnica reputados necessários em vista do objeto, as exigências referentes à qualificação jurídica e à regularidade fiscal.[203]
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Há também um terceiro posicionamento no sentido de que não é necessária a observância da Lei n 8.666/93, mas “a objetividade precisa ser assegurada, pelo que tem de ser oferecida oportunidade a que os parceiros privados interessados concorram.”[204] Ou seja, algum procedimento objetivo de escolha deve ser realizado. É o que nos parece mais correto.
3.3.3 A contratação realizada por OS e OSCIP’s com utilização de recursos públicos
Formalizado o contrato de gestão ou o termo de parceria, as organizações sociais ou as organizações da sociedade civil de interesse público necessitam realizar contratações para o cumprimento das metas fixadas com o Poder Público. Não raras vezes, essas contratações com terceiros são concretizadas mediante a utilização de recursos públicos repassados pelo Poder Público.
Tendo-se em conta que há o gasto de dinheiro público, há que se defender a observância dos princípios que inspiram a regra da licitação.[205] A exigência de observância da Lei nº 8.666/93 implicaria uma burocratização excessiva e dissonante com o ideário da reforma administrativa, que inspirou o surgimento de entidades como as OS e as OSCIP. Entretanto, permitir que essas entidades contratem terceiros, utilizando recursos públicos, sem qualquer procedimento objetivo de seleção poderia dar azo a fraudes e favorecimentos. Assim, em nome da eficiência, da moralidade, da impessoalidade, o ideal é a utilização de procedimentos objetivos simplificados.
As Leis nº 9.637/98[206] e nº 9.790/99[207] exigem que as OS e as OSCIP’s elaborem um regulamento próprio que contenha os procedimentos a serem adotados para a contratação de obras, serviços, compras e alienações.
Note-se que há um aparente conflito entre as Leis nº 9.37/98 e nº 9.790/99 – que pedem a elaboração de um regulamento próprio – e o Decreto nº 5.504/05 – que diz que as OS e OSCIP’s deverão realizar pregão eletrônico. Com efeito, tendo-se em conta que o decreto viola frontalmente o disposto nos diplomas legais, tem-se que o artigo 1º, § 5º do Decreto nº
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5.5.4/05 é ilegal, não merecendo aplicação. O Tribunal de Contas da União vem afirmando que os regulamentos prevalecerão.
3.3.4 A contratação pela Administração Pública de OS e OSCIP’s (sem ser para celebração de contratos de gestão e termos de parceria) –
Além do contrato de gestão e do termo de parceria, a Administração firma contratos instrumentais com as OS e as OSCIP’s relacionados com os contratos de gestão e termos de parceria anteriormente firmados.
No caso das OS, o artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93, previu dispensa de licitação para a hipótese de “celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.”[208]
Valter Shuenquener Araújo critica o dispositivo, porque, segundo ele, impede a competitividade entre organizações sociais que atuem na mesma área.[209] Sustenta o autor que
a despeito de a Lei nº 8.666 não fazer restrições, o seu art. 24, XXIV, deve apenas ser empregado, por conta dos princípios da competitividade, da isonomia e da moralidade, quando não existirem motivos que justifiquem uma competição entre as organizações sociais da área que se pretende contratar. Fora dessa circunstância, a licitação merece ser promovida.[210]
Marçal Justen Filho, por sua vez, ao tratar do tema não invoca a existência de qualquer vício no disposto pelo artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93.[211] Em suas palavras:
Uma vez firmado o contrato de gestão, as futuras contratações de prestação de serviço – já previamente identificadas – serão pactuadas sem necessidade de nova licitação. O requisito da objetividade da atuação administrativa estará satisfeito através da disputa para obtenção do contrato de gestão. As regras constitucionais acerca da atividade administrativa
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disciplinam a conduta dos agentes públicos quando selecionam organização social para o contrato de gestão.[212]
Em abril de 2015, a sessão plenária do STF julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.923, por maioria, entendeu que a Lei nº 9.637/98 e o artigo 24, XXIV da Lei nº 8.666/93 são constitucionais, conferindo interpretação conforme a Constituição no tocante às regras que dispensam licitação em celebração de contrato de gestão firmado entre o Poder Público e as organizações sociais para prestação de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente cultura e saúde (considerados serviços não privativos do Estado).
O voto condutor foi de Luiz Fux, com a ressalva da necessidade de controle da aplicação das verbas públicas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas. Salientou que não obstante a dispensa da licitação, ainda assim a seleção de pessoal deve ser feita de forma pública, objetiva e impessoal, nos termos do regramento próprio editado pela entidade.
Embora a matéria de fundo contida na ADI diga respeito tão somente às Organizações Sociais, o tema está inserido num contexto de maior abrangência e de suma importância para o alcance dos objetivos do Estado brasileiro. Qual seja, no contexto dos limites da atividade administrativa de fomento às organizações da sociedade civil com base na Constituição da República.
Merece ser transcrito trecho do voto do Ministro condutor, Luiz Fux:
(...)“Em outros termos, a Constituição não exige que o Poder Público atue, nesses campos, exclusivamente de forma direta. Pelo contrário, o texto constitucional é expresso em afirmar que será válida a atuação indireta, através do fomento, como o faz com setores particularmente sensíveis como saúde (CF, artigo 199, parágrafo2º, interpretado a contrario sensu – “é
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vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”) e educação (CF, artigo 213 – “Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades”), mas que se estende por identidade de razões a todos os serviços sociais”.
(...) “Disso se extrai que cabe aos agentes
democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, desde que, por qualquer modo, o resultado constitucionalmente fixado – a prestação dos serviços sociais – seja alcançado. Daí porque não há inconstitucionalidade na opção, manifestada pela Lei das OS’s, publicada em março de 1998, e posteriormente reiterada com a edição, em maio de 1999, da Lei nº 9.790/99, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo foco no fomento para o atingimento de determinados deveres estatais”.[213]
Note-se que, após a leitura do artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93, a doutrina parece concordar que a referida dispensa de licitação somente ocorre se o contrato tiver por objeto atividade contemplada no contrato de gestão. Ademais, somente há a dispensa de licitação se o contrato do artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 for firmado entre a OS e a entidade federativa que lhe deu a respectiva qualificação.[214]
Finalmente, tem-se que o artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 refere-se expressamente somente às OS, não fazendo qualquer menção às
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OSCIP’s. Todavia, a referida dispensa de licitação merece ser estendida às OSCIP’s. Isto porque os contornos jurídicos das OS e das OSCIP’s são similares.[215]
3.4 ENTIDADES DE APOIO E LICITAÇÃO
Valter Shuenquener de Araújo sustenta que a contratação das entidades de apoio pode ser feita com dispensa de licitação, nos termos do artigo 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93.[216] No que tange às instituições federais de ensino, o artigo 1º da Lei nº 8.958/94 prevê expressamente a dispensa nos moldes da Lei nº 8.666/93, devendo o contrato ser celebrado por prazo determinado.
No que se refere às compras e alienações realizadas pelas entidades de apoio, tem-se que, como são entidades privadas, não precisam observar o procedimento da Lei nº 8.666/93.[217] As instituições federais de ensino, por sua vez, tiveram sua liberdade limitada pela Lei nº 8.958/94. Prevê o artigo 3º, I, que as referidas entidades de apoio deverão observar a Lei nº 8.666/93 na execução de contratações que envolvam a aplicação de recursos públicos.
4 CONCLUSÃO
Em função da crise do Estado brasileiro, que se tornou incapaz de, sozinho, satisfazer as necessidades coletivas da população, iniciou-se a reforma administrativa, que objetiva a transformação do Estado burocrático para o Estado gerencial. A administração gerencial, preocupada com o resultado e com o atendimento dos interesses da sociedade, é norteada pelos princípios da subsidiariedade, participação, autonomia, profissionalização, transparência e consensualidade.
Neste cenário, prosperam as entidades do Terceiro Setor, que, atuando em parceria com o Estado, passam a assumir a execução de atividades de interesse público. O Estado fomenta a atuação da sociedade civil e somente atua, subsidiariamente, quando a sociedade não puder fazê-lo.
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O Terceiro Setor não faz parte da Administração Pública; é formado por entidades privadas, sem fins lucrativos e com finalidade pública, alicerçado na subsidiariedade estatal e no fomento público.
Dentre as entidades do Terceiro Setor, podem ser destacadas o serviços sociais autônomos, as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e os entes de apoio.
Os serviços sociais autônomos, também denominados de Sistema S, não contam com uma legislação uniforme que trate de sua disciplina. Ao revés, o que há, eventualmente, são diplomas legais específicos que vão estabelecer uma autorização legal para a criação de uma entidade do Sistema S.
A Constituição da República refere-se aos serviços sociais autônomos, em seu artigo 240, explicitando que serão remunerados por contribuição social. Por conta disto, submetem-se ao controle efetivado pelo Tribunal de Contas, além de uma supervisão ministerial.
Os trabalhadores do Sistema S são regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas, sendo certo que não são escolhidos mediante concurso público e não se submetem ao teto remuneratório previsto na Carta Federal para os servidores públicos.
As organizações sociais são disciplinadas pela Lei nº 9.637/98, enquanto as organizações da sociedade civil de interesse público têm seu tratamento na Lei nº 9.790/99. Elas não representam novos formatos de pessoas jurídicas de direito privado, mas, ao revés, são qualificações jurídicas especiais conferidas a pessoas jurídicas privadas já existentes (fundações privadas ou associações civis).
O critério para a concessão do título de OS é discricionário, ao passo que a concessão do título de OSCIP é um ato vinculado.
Uma vez qualificadas, as OS podem celebrar contrato de gestão com o Poder Público, e as OSCIP’s, termo de parceria. Ambos os instrumentos possuem a mesma natureza jurídica, qual seja, a de convênio
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administrativo, vez que veiculam interesses comuns e não contrapostos (como ocorre nos contratos).
Através do contrato de gestão e do termo de parceria serão fixadas metas a serem cumpridas pela entidade privada e, em troca, o Poder Público concede benefícios de diversos tipos, submetendo as entidades a um controle de resultados.
Os trabalhadores das OS e das OSCIP’s não são selecionados mediante concurso público e são regidos pela CLT.
As referidas entidades são controladas pelo Tribunal de Contas, na medida em que administrem bens e/ou valores de natureza pública.
As entidades de apoio, por sua vez, não contam com uma legislação uniforme de regência. Há, entretanto, a Lei nº 8.958/94, que trata das relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio.
Assim como as demais entidades do Terceiro Setor, as entidades de apoio são controladas pelo Tribunal de Contas.
Tema de relevo refere-se à necessidade ou não de as entidades do Terceiro Setor se submeterem à regra da licitação. O assunto não é pacífico, tendo a jurisprudência agora trazido um norte, mantendo o sentido da desnecessidade do procedimento licitatório, contudo, sendo todo o procedimento guiado de forma pública, objetiva e pessoal.
Com efeito, no que tange aos serviços sociais autônomos, o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto sustenta a desnecessidade de realização de licitação. Em posição diametralmente oposta, José dos Santos Carvalho Filho defende a necessidade de observância do procedimento licitatório da Lei nº 8.666/93.
Deve prevalecer, entretanto, o entendimento no sentido de que o serviço social autônomo, ao gastar recursos públicos, deve observar os princípios constitucionais relacionados com a licitação, mas não precisa – ou melhor, não deve – seguir o regramento da Lei nº 8.666/93. Destarte, o
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ideal é a adoção de um regulamento próprio simplificado de licitações e contratações.
Com relação às organizações sociais e às organizações da sociedade civil de interesse público, para que as entidades privadas recebam as referidas qualificações, não se faz necessário licitar, afinal a mera qualificação não implica em repasse de recursos públicos, cessão de servidores ou de bens; os benefícios só passam a ser concedidos após a formalização de contrato de gestão ou de termo de parceria.
Para a celebração de contrato de gestão ou termo de parceria, há posição no sentido de que não é exigida a observância do procedimento licitatório. Mas há, todavia, em divergência, quem defenda a necessidade de realização do procedimento formal de licitação.
Parece mais acertado defender que se realize algum procedimento simplificado e objetivo de escolha da entidade que firmará o contrato de gestão ou o termo de parceria.
No que se refere especificamente à contratação de obras, serviços, compras e alienações, pelas organizações sociais e pelas organizações da sociedade civil de interesse público, as Leis nº 9.637/98 e nº 9.790/99 exigem que as OS e as OSCIP’s elaborem um regulamento próprio que contenha os procedimentos a serem adotados.
Finalmente, quando as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público celebram contratos com a Administração Pública, cujo objeto seja atividade contemplada no contrato de gestão ou no termo de parceria, há dispensa de licitação.
As entidades de apoio, por sua vez, em regra não precisam observar o procedimento licitatório da Lei nº 8.666/93. No que tange às instituições federais de ensino, todavia, por expressa previsão da Lei nº 8.958/94, deverão observar a Lei nº 8.666/93 na execução de contratações que envolvam a aplicação de recursos públicos.
Enfim, em linhas gerais, as entidades do Terceiro Setor não precisam, em regra, observar o procedimento licitatório da Lei nº 8.666/93,
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vez que isto macularia o propósito de imprimir maior eficiência, criando uma burocracia desnecessária. Entretanto, como, muitas vezes, há recursos públicos envolvidos, faz-se prudente a realização de procedimentos simplificados de escolha, em preservação aos princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade.
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NOTAS:
[1] O termo parcerias público-privadas é utilizado, aqui, em seu sentido amplo. Não se refere especificamente às parcerias público-privadas da Lei nº 11.079/2004.
[2] Neste sentido, ARAÚJO, Valter Shuenquener de. Terceiro setor: a experiência brasileira. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (Org.). Direito Administrativo. Niterói: Impetus, 2005, p. 263-290. p. 265.
[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. In: ______. Mutações de Direito Administrativo. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.17.
[4] Ibidem, p. 17.
[5] TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 160-161.
[6] MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 214, p. 55-68, out./ dez., 1998.p. 59.
[7] Neste sentido, leciona SILVANO, Ana Paula Rodrigues. Fundações públicas e terceiro setor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 57 apud ARAÚJO, op. cit., p. 267: “diante da crescente tendência de o Estado tornar-se um Estado predominantemente regulador, não mais o Estado produtor e provedor de outrora, vem se fortalecendo na sociedade brasileira o denominado Terceiro Setor.”
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[8] MOREIRA NETO, op. cit., p. 19.
[9] Ibidem, p. 19-28.
[10] TORRES, op. cit., p. 7; MOREIRA NETO, op. cit., p. 20; Idem, Princípios informativos e interpretativos do direito administrativo. In: ______. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 265-313. p. 285.
[11] Ibidem, p. 285; Idem, Mutações do direito administrativo, p. 20.
[12] O enfoque externo do princípio da subsidiariedade leva em conta o aspecto social; a relação entre o Estado e a sociedade.
[13] TORRES, op. cit., p. 10; MOREIRA NETO, op. cit, p. 20; idem, Princípios informativos e interpretativos do direito administrativo, p. 286.
[14] Leciona ainda TORRES, op. cit., p. 10, embasada no magistério de Chantal Millon-Delsol, que o princípio da subsidiariedade apresenta uma perspectiva negativa e uma positiva. “Pela primeira, a autoridade em geral e o Estado em particular não devem impedir as pessoas ou os grupos sociais de conduzirem suas próprias ações; a segunda determina que cada autoridade tem por missão incitar, sustentar e finalmente suprir, quando necessário, os atores insuficientes.”
[15] MOREIRA NETO, Mutações do direito administrativo, p. 20-21. Vale, ainda, transcrever a síntese formulada pelo autor em: Idem, Novos institutos consensuais da ação administrativa: gestão pública e parcerias. In: ______. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. P. 315-349. p. 321: “Em síntese, atende-se ao princípio da subsidiariedade sempre que a decisão do poder público venha a ser tomada da forma mais próxima possível dos cidadãos a que se destinem. Tal proximidade visa a garantir que o órgão administrativo considerará sempre em suas decisões: primeiro, que sejam respeitados os direitos e iniciativas dos cidadãos e das entidades privadas; segundo, que qualquer intervenção administrativa só se produza em caso de inexistência ou insuficiência da iniciativa individual ou social; terceiro, que neste caso, a intervenção só se dará na medida indispensável para atender ao interesse público legal e legitimamente definido; e,
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quarto, que outros entes ou órgãos administrativos menores não tenham condições de agir com eficiência.”
[16] Idem, Cidadania e advocacia no estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 50, p. 111-126, 1997. p. 118.
[17] Ibidem, p. 118: “Articula-se, assim, uma cadeia de subsidiariedade, na qual o ente maior é sempre subsidiário do menor e, por isso, o maior só tem razão e dever de intervir quando os menores não tenham condições de atuar de modo eficiente.”
[18] TORRES, op. cit., p. 15.
[19] O recall é a revogação política popular de mandato eletivo, isto é, a destituição de um representante eleito no curso de seu mandato.
[20] MOREIRA NETO, Novos institutos consensuais da ação administrativa: gestão pública e parcerias, p. 274; Idem, Mutações do direito administrativo, p. 22.
[21] MOREIRA NETO, op. cit., p. 22-23.
[22] Ibidem, p. 23.
[23] Ibidem, p. 23.
[24] Sobre o tema: Idem, Transferências de execução de atividades estatais. In: ______. Mutações do Direito Administrativo. . 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 119-142.
[25] Ibidem, p. 124.
[26] Idem, Mutações do direito administrativo, p. 24.
[27] Ibidem, p. 24.
[28] Ibidem, p. 25.
[29] Ibidem, p. 26.
[30] Ibidem, p. 42.
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[31] Idem, Novos institutos consensuais da ação administrativa: gestão pública e parcerias, p. 334.
[32] TORRES, op. cit., p. 121-190.
[33] Ibidem, p. 122. Explicita, ainda, a citada autora: “Com a crise do Estado social, modificam-se, também, as diretrizes fundamentais da sociedade, que foge, hoje, aos modelos autoritários, paternalistas e tutelares, intensificando-se o processo de expansão de seu primado e liberdade. Transformam-se, sobretudo, as fronteiras da relação entre Estado e sociedade, prevalecendo, sob a premissa de que o poder estatal não é o único ator na solução das necessidades e interesses públicos, novas formas de gestão da demanda social: uma gestão participativa, plural e, até mesmo, privada.”
[34] TORRES, op. cit., p. 124.
[35] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 14. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2006. p. 550.
[36] TORRES, op. cit., p. 125.
[37] MOREIRA NETO, op. cit., p. 115-120.
[38] Ibidem, p. 116.
[39] Ibidem, p. 116.
[40] Ibidem, p. 118.
[41] Ibidem, p. 524.
[42] Ibidem, p. 524.
[43] Ibidem, p. 534.
[44] Ibidem, p. 552.
[45] Neste sentido, mas referindo-se genericamente às entidades intermédias: TORRES, op.cit., p. 131.
[46] Ibidem, p. 165.
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[47] Ibidem, p. 165.
[48] Ibidem, p. 129.
[49] Por todos: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 413-414; MÂNICA, Fernando Borges. Panorama histórico-legislativo do terceiro setor no Brasil: do conceito de terceiro setor à lei das OSCIP. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 163-194, p.164-170.
[50] DI PIETRO, op. cit., p. 413; MÂNICA, op. cit., p. 163-164.
[51] MÂNICA, op. cit., p. 170.
[52] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 392.
[53] Ibidem, p. 396.
[54] Insta salientar que a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao elencar as entidades participantes da Administração Indireta, acrescenta os consórcios públicos. O artigo 6º, §1º, da Lei nº 11.107/2005 diz que se a pessoa jurídica criada para gerir o consórcio público for de direito público, ela integrará a Administração Indireta de todos os entes consorciados. Entretanto, a lei nada diz quando a pessoa jurídica criada for de direito privado. Ainda assim, sustenta a autora que “embora o art. 6º só faça essa previsão com relação aos consórcios públicos constituídos como pessoa jurídica de direito público, é evidente que o mesmo ocorrerá com os que tenham personalidade de direito privado. Não há como uma pessoa jurídica política (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) instituir pessoa jurídica para desempenhar atividades próprias do ente instituidor e deixá-la fora do âmbito de atuação do Estado, como se tivesse sido instituída pela iniciativa privada. Todos os entes criados pelo Poder Público para o desempenho de funções administrativas do Estado têm que integrar a Administração Pública Direta (se o ente for instituído como órgão sem personalidade jurídica) ou Indireta (se for instituído com personalidade jurídica própria). Até porque o desempenho dessas atividades dar-se-á por meio de descentralização de atividades administrativas, inserida na
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modalidade de descentralização por serviço”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 238-239). A doutrina em geral, por sua vez, não vem colocando o consórcio público diretamente no rol da Administração Indireta. Entende que se for pessoa jurídica de direito público é uma autarquia e se for pessoa jurídica de direito privado é uma empresa pública ou uma sociedade de economia mista. José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, defende que caso seja instituída pessoa jurídica de direito privado, ela está fora da administração descentralizada. (CARVALHO FILHO, op. cit., p. 201).
[55] Aqui é preciso observar que a professora Di Pietro defende que formalmente as concessionárias e permissionárias de serviço público não integram a Administração Pública Indireta (art. 37, XIX, da Constituição da República; art. 4º, II, DL 200/1967); todavia, deveriam integrar a Administração Indireta porque materialmente prestam atividade administrativa. (DI PIETRO. Direito Administrativo. p. 357). O nosso ordenamento jurídico, entretanto, adota o critério formal ou subjetivo, sendo certo que só pessoas criadas diretamente pelo Estado ou cuja criação seja autorizada pelo Estado por meio de lei é que podem integrar a Administração Indireta.
[56] “Descentralização, em sentido amplo, vem a ser qualquer método de distribuição do planejamento, da decisão, da execução e do controle administrativos entre entes, órgãos, ou agentes, sejam coordenados, sejam subordinados entre si.” (MOREIRA NETO, op. cit., p. 121).
[57] Ibidem, p. 121.
[58] Idem, Transferências de execução de atividades estatais, p. 129-130.
[59] Idem, Curso de direito administrativo, p. 549.
[60] Ibidem, p. 266-281.
[61] MÂNICA, op. cit., p. 164.
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[62] Neste sentido, FRANCO, Augusto de. A questão do fim público das organizações do terceiro setor. In: RELATÓRIO sobre o desenvolvimento humano no Brasil. São Paulo: PNUD/IPEA, 1997. p. 6; COELHO, Simone Tavares. Terceiro Setor: um estudo comparado entre o Brasil e os Estados Unidos. São Paulo: SENAC, 2000. p. 59; FERRAREZI, Elisabete. OSCIP: saiba o que são Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Brasília: Agência de Educação para o Desenvolvimento, 2002. p. 15-16 apud MÂNICA, op. cit., p. 166.
[63] COELHO, op. cit., p. 59 apud MÂNICA, op. cit., p. 166.
[64] Ibidem, p. 167.
[65] Ibidem, p. 167.
[66] Ibidem, p. 170.
[67] MOREIRA NETO, op. cit., p. 261.
[68] DI PIETRO, op. cit., p. 414.
[69] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 399-400.
[70] Ibidem, p. 400.
[71] Ibidem, p. 400.
[72] CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1986.p. 52 apud CARVALHO FILHO, op. cit., p. 400.
[73] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 316-318 apud CARVALHO FILHO, op. cit., p. 399. E também: MOREIRA NETO, op. cit., p. 260-268, que inclui, ainda, os Conselhos de fiscalização do exercício profissional.
[74] DI PIETRO, op. cit., p. 414.
[75] DI PIETRO, Parcerias na administração pública, p. 250.
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[76] MÂNICA, op. cit., p. 175. Note-se que o autor refere-se à voluntariedade para afastar do conceito entidades criadas por lei, como ocorre com o serviço social autônomo.
[77] OLIVEIRA, Gustavo Justino. Estado contratual, direito ao desenvolvimento e parceria público privada. In: TALAMINI, Eduardo ET AL. (Coord.). Parceria público-privada: uma abordagem multidisciplinar. São Paulo: RT, 2005, p. 73-119. p. 86 apud OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Gestão privada de recursos públicos para fins públicos: o modelo das OSCIP. In: ______. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 213-259. p. 217.
[78] Ibidem, p. 214.
[79] SOUTO, Marcos Juruena Villela. “Outras entidades públicas” e os serviços sociais autônomos. In: ______. Direito administrativo em debate. 2ª série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 81-82; DI PIETRO, op. cit., p. 250; Idem, Direito Administrativo, p. 414; MÂNICA, op. cit., p. 183-189; ARAÚJO, op. cit., p. 273-283; MOREIRA, Egon Bockmann. Organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e seus “vínculos contratuais” com o Estado. Fórum Administrativo: direito público. Belo Horizonte, ano 6, n. 62, p. 7085- 7092, abr. 2006. p.7086.
[80] SOUTO, op. cit., p. 81; DI PIETRO, Parcerias na administração pública, p. 250; Idem, Direito Administrativo, p. 414; ARAÚJO, op. cit., p. 269-272.
[81] MÂNICA, op. cit., p. 174; MOREIRA, op. cit., p. 7086.
[82] ARAÚJO, op. cit., p. 283; DI PIETRO, op. cit., p. 416-418.
[83] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 458-459.
[84] Ibidem, p. 459.
[85] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro.24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 336-337.
[86] Ibidem, p. 336; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 459; DI PIETRO, op. cit., 416; Idem, Parcerias na administração pública, p. 268; SOUTO, op. cit., p. 81; ARAÚJO, op. cit., p. 270; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Natureza jurídica dos serviços sociais
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autônomos. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 207, p.77-94, jan./mar. 1997.p. 89. No mesmo sentido, já se posicionou o Ministro Maurício Corrêa na ADIn 1.864.
[87] DI PIETRO, op. cit., p. 269; Idem, Direito administrativo, p. 416; op. cit., p. 81; ARAÚJO, op. cit., p. 269.
[88] Ibidem, p. 269; DI PIETRO, op. cit., p. 416; Idem, Parcerias na administração pública, p. 268.
[89] “Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.”
[90] ARAÚJO, op. cit., p. 269; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 459.
[91] MEIRELLES, op. cit., p. 336; ARAÚJO, op. cit., p. 269.
[92] MOREIRA NETO, op. cit., p. 90.
[93] “Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.”
[94] SOUTO, op. cit., p. 88.
[95]“A ressalva constitucional visa a deixar claro que as contribuições do sistema S, embora sejam pagas pelos empregadores e se calculem sobre a folha de salários, como acontece também com diversas contribuições do art. 195, não se destinam ao sistema da seguridade social (previdência, saúde e assistência social), senão que visam a financiar as atividades das entidades privadas do sistema sindical no objetivo maior da formação profissional da juventude, coadjuvado pela prestação do serviço social.” TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e
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tributário, v. 4 – Os tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 612.
[96] Nada impede, entretanto, que a lei atribua capacidade tributária a outra pessoa.
[97] ARAÚJO, op. cit., p. 271.
[98] “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.
§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que trata o art. 40, cuja alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União.
§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo:
I - não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação; II - incidirão também sobre a importação de produtos
estrangeiros ou serviços; III - poderão ter alíquotas: a) ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou
o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro; b) específica, tendo por base a unidade de medida adotada. § 3º A pessoa natural destinatária das operações de importação
poderá ser equiparada a pessoa jurídica, na forma da lei. § 4º A lei definirá as hipóteses em que as contribuições incidirão
uma única vez.”
[99] SOUTO, op. cit., p. 82; DI PIETRO, op. cit., p. 268.
[100] ARAÚJO, op. cit., p. 270; MOREIRA NETO, op. cit., p. 91; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 461.
[101] ARAÚJO, op. cit., p. 270; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 461.
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[102] “Art . 183. As entidades e organizações em geral, dotadas de personalidade jurídica de direito privado, que recebem contribuições para fiscais e prestam serviços de interêsse público ou social, estão sujeitas à fiscalização do Estado nos têrmos e condições estabelecidas na legislação pertinente a cada uma.”
[103] ARAÚJO, op. cit., p. 270.
[104] Ibidem, p. 271.
[105] Ibidem, p. 271; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 464.
[106] ADIn 1.864. O voto do Ministro Maurício Corrêa é no seguinte sentido: “Não procede a afirmação de ofensa ao artigo 37, II, da Carta Federal, tendo em vista que, conforme ficou salientado, os serviços sociais não integram a Administração Pública, a quem está endereçada a norma constitucional. Somente a lei ou as normas internas podem sujeitar os entes de cooperação à observância de contratar seus empregados mediante concurso público.”
[107] DI PIETRO, Direito Administrativo, p. 416.
[108] ARAÚJO, op. cit., p. 271; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 463.
[109] Acórdão 508/2005, do Plenário (Proc. 009.540/2002-0); Acórdão 1.381/2002, 1ª Câmara; Acórdão 2.371/2003, 1ª Câmara.
[110] ARAÚJO, op. cit., p. 272.
[111] Ibidem, p. 272.
[112] Ibidem, p. 270; CARVALHO FILHO, p. 463.
[113]“ Súmula 516: O Serviço Social da Indústria (SESI) está sujeito à jurisdição da Justiça Estadual.”
[114] Note-se que, no passado, em função de as entidades do serviço social autônomo receberem contribuições sociais – que são tributos federais –, entendia-se que havia interesse da União a justificar a competência da Justiça Federal. Todavia, hoje resta pacífica a competência da Justiça Estadual. Isto porque o artigo
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109, I, da Constituição da República não se referiu ao serviço social autônomo, bem como não se referiu às sociedades de economia mista federais. Se a sociedade de economia mista federal é processada e julgada na Justiça Estadual, com mais razão o serviço social autônomo.
[115] O próprio Supremo Tribunal Federal já aplicou a Súmula 516 a outros serviços sociais autônomos que não o SESI. Recurso Extraordinário 366.168.
[116] ARAÚJO, op. cit., p. 270.
[117] SOUTO, op. cit., p. 101.
[118] Ibidem, p. 90-91.
[119] Ibidem, p. 90.
[120] ARAÚJO, op. cit., p. 273; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 305 e 308; MODESTO, op. cit., p. 61 (referindo-se especificamente às organizações sociais); OLIVEIRA, op. cit, p. 218 (referindo-se especificamente às organizações da sociedade civil de interesse público); BRAGA, Luziânia C. Pinheiro. Organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP): promoção e construção de (novos) direitos e assessoria jurídica de caráter suplementar. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 261-280. p. 268-269 (referindo-se especificamente às organizações da sociedade civil de interesse público).
[121] Com efeito, sobre o tema merecem ser transcritas as palavras de MODESTO, op. cit., p. 57: “A concessão caso a caso de títulos jurídicos especiais a entidades do terceiro setor parece atender a pelo menos três propósitos. Em primeiro lugar, diferenciar as entidades qualificadas, beneficiadas com o título, relativamente às entidades comuns, destituídas dessa especial qualidade jurídica. Essa diferenciação permite inserir as entidades qualificadas em um regime jurídico específico. Em segundo lugar, a concessão do título permite padronizar o tratamento normativo de entidades que apresentem características comuns relevantes, evitando tratamento legal casuístico dessas entidades. Em terceiro lugar, a outorga de títulos permite o estabelecimento de um mecanismo de controle de aspectos da atividade das entidades qualificadas, flexível por
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excelência, entre outras razões, porque o título funciona como um instrumento que admite não apenas concessão, mas também suspensão e cancelamento.”
[122] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 305; FREITAS, Juarez. Regime peculiar das organizações sociais e o indispensável aperfeiçoamento do modelo federal. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 214, p. 99-106, out./dez., 1998. p. 104; MOREIRA, op. cit., p. 7087.
[123] ARAÚJO, op. cit., p. 275. Há, ainda, quem sustente ser inconstitucional essa discricionariedade: MÂNICA, op. cit., p. 185.
[124] MOREIRA, op. cit., p. 7088; ARAÚJO, op. cit., p. 280; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 309.
[125] MOREIRA NETO, Curso de Direito Administrativo, p. 277: “uma vez outorgado, o reconhecimento já não mais poderá ser discricionariamente revogado, admitindo, apenas, ser cassado, mediante processo regular de desqualificação, desde que nele comprovado o descumprimento de obrigações assumidas (art. 16, §1º, leg. cit.) ou a invalidade ou a perda das condições essenciais à qualificação obtida (art. 2º, I, leg. cit.).”; CARVALHO FILHO, op. cit, p. 306: “a despeito de a lei haver empregado a expressão ‘poderá proceder à desqualificação’, dando a falsa impressão de que se trata de conduta facultativa o certo é que, descumpridas as normas e cláusulas a que está submetida, a Administração exercerá atividade vinculada, devendo (e não podendo) desqualificar a entidade responsável pelo descumprimento."
[126] ARAÚJO, op. cit., p. 276.
[127] Ibidem, p. 276.
[128] Ibidem, p. 280; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 309.
[129] “Art. 3o A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades:
I - promoção da assistência social;
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II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;
III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;
IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;
V - promoção da segurança alimentar e nutricional; VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e
promoção do desenvolvimento sustentável; VII - promoção do voluntariado; VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e
combate à pobreza; IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-
produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;
X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;
XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;
XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo.
Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins.”
[130] “Art. 2o Não são passíveis de qualificação como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no art. 3o desta Lei:
I - as sociedades comerciais; II - os sindicatos, as associações de classe ou de representação
de categoria profissional; III - as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação
de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais;
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IV - as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas fundações;
V - as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios;
VI - as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e assemelhados;
VII - as instituições hospitalares privadas não gratuitas e suas mantenedoras;
VIII - as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras;
IX - as organizações sociais; X - as cooperativas; XI - as fundações públicas; XII - as fundações, sociedades civis ou associações de direito
privado criadas por órgão público ou por fundações públicas; XIII - as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de
vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.”
[131] ARAÚJO, op. cit., p. 280.
[132] DI PIETRO, Parcerias na administração pública, p. 264 e 274. Há ainda quem defenda que as organizações sociais não prestam serviço público em sentido estrito, mas prestam serviço público em sentido amplo: FORTINI, Cristiana. Organizações sociais: natureza jurídica da responsabilidade civil das organizações sociais em face dos danos causados a terceiros. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, nº 6, jun./jul./ago., 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 20 jan. 2009. p. 6. Referindo- se somente às OSCIP: OLIVEIRA, op. cit., p. 220-222.
[133] DI PIETRO, op. cit., p. 264.
[134] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 305 e 310.
[135] DI PIETRO, op. cit., p. 256.
[136] Ibidem, p. 256-257; ARAÚJO, p. 274.
[137] Ibidem, p. 274.
[138] A Constituição não utiliza a expressão contrato de gestão, mas a referida nomenclatura é consagrada na lei e na doutrina.
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[139] Ibidem, p. 274; DI PIETRO, op. cit., p. 259.
[140] MOREIRA, op. cit., p. 7091.
[141] ARAÚJO, op. cit. P. 274.
[142] MOREIRA NETO, op. cit., p. 277-278.
[143] DI PIETRO, op. cit., p. 263-264.
[144] Ibidem, p. 262-263 e 266.
[145] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 309; DI PIETRO, op. cit., p. 276.
[146] Ibidem, p. 276.
[147] Ibidem, p. 275.
[148] “Essa foi a forma encontrada para viabilizar uma maior e mais direta fiscalização do Estado sobre as ações dessas entidades.” ARAÚJO, op. cit., p. 273.
[149] Ibidem, p. 281.
[150] Ibidem, p. 278 e 281-281;
[151] ROTHENBURG, Walter Claudius. Algumas considerações sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações do Estado com empresas e organizações sociais. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 87-109.
[152] ARAÚJO, op. cit., p. 281.
[153] Ibidem, p. 278 e 282.
[154] Ibidem, p. 277; CARVALHO FILHO, op. cit., p. 306.
[155] DI PIETRO, op. cit., p 276; PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Os tribunais de contas e o terceiro setor: aspectos polêmicos do controle. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007.p. 309-332. p. 316-317.
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[156] DI PIETRO, Direito Administrativo, p. 416-417.
[157] ARAÚJO, op. cit., p. 284.
[158] DI PIETRO, op. cit., p. 417.
[159] Ibidem, p. 417; Idem, Parcerias na administração pública, p. 284; ARAÚJO, op. cit., p. 283.
[160] Ibidem, p. 283.
[161] Ibidem, p. 283; DI PIETRO, op. cit., p. 278-280; Idem, Direito Administrativo, p. 418.
[162] Idem, Parcerias na administração pública, p. 279.
[163] Ibidem, p. 279.
[164] Ibidem, p. 279.
[165] Idem, Direito Administrativo, p. 418.
[166] Idem, Parcerias na administração pública, p. 281.
[167] Ibidem, p. 282.
[168] ARAÚJO, op. cit., p. 285-286.
[169] DI PIETRO, op. cit., p. 281.
[170] ARAÚJO, op. cit., p. 285.
[171] DI PIETRO, op. cit., p. 282.
[172] Marçal Justen Filho fala das existência de um “devido procedimento licitatório”: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 79-80.
[173] GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[174] SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e contratos administrativos. 2. ed. Rio de Janeiro: Esplanada: ADCOAS, 1994. p. 9.
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[175] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 17.
[176] Ibidem, p. 17-18.
[177] “Embora não se cogite de submissão absoluta dos entes privados ao regime jurídico peculiar à Administração Pública, parece certo que, ao menos o regime de direito privado a que estão sujeitas em face de sua natureza jurídica será parcialmente derrogado em virtude de determinadas circunstâncias. Estas circunstâncias envolvem (a) a realização de atividades de natureza estatal, e, (b) a gestão de recursos públicos. A presença destas duas circunstâncias, em conjunto ou isoladas, exigem a aplicação do regime jurídico administrativo, vale dizer, o conjunto de normas, princípios e valores que orientam a atuação da Administração Pública, ainda que de forma parcial.”: SANTOS, José Anacleto Abduch. Licitação e terceiro setor. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. (Coord.). Terceiro setor, empresas e estado: novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007.p. 281-308. p. 295.
[178] MOREIRA NETO, Natureza jurídica dos serviços sociais autônomos, p. 93.
[179] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;”
[180] Ibidem, p. 90-91.
[181] Ibidem, p. 91.
[182] Ibidem, p. 91-92.
[183] Ibidem, p. 91.
[184] Ibidem, p. 93.
[185] Ibidem, p. 93.
[186] O professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto só cita a inconstitucionalidade do artigo 119, da Lei nº 8.666/93; entretanto,
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como ele reputa o referido artigo inconstitucional, salvo melhor juízo, deveria fazê-lo também em relação ao artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, vez que há um trecho da sua redação que é idêntico ao do artigo 119.
[187] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 462-463. “Primeiramente, o fato de o art. 22, XXVII, da CF, aludir apenas à administração direta e indireta não exclui a possibilidade de o legislador exigir que outras pessoas se submetam também à Lei nº 8.666/93. Afinal, se a própria lei autorizou a criação de tais pessoas, nada impediria que instituísse mecanismos especiais de controle, pois que afinal todas têm algum elo de ligação com o Poder Público. Desse modo, o Estatuto, como lei federal que é, poderia alargar o alcance do dispositivo constitucional para incidir sobre tais entidades (como o fez realmente no art. 1º, parágrafo único), por isso que a Constituição em nenhum momento limitou a lei licitatória apenas às pessoas da Administração Direta e Indireta, exigiu-se tão-somente que para estas sempre haveria subordinação ao Estatuto.
Por fim, não se nos afigura correto o entendimento de que a expressão ‘controladas indiretamente’ se refira somente às sociedades reguladas pela Lei nº 6.404/76. A circunstância de as entidades, embora organizadas pelo setor privado, terem sido previstas em lei, somada ao fato de lhes ter sido instituído o direito a contribuições parafiscais pagas obrigatoriamente pelos contribuintes, caracterizando-se como recursos públicos, é fundamento mais do que suficiente para submetê-las a controle do Poder Público, e isso realmente ocorre em relação a suas contas, que, como vimos, sujeitam-se a controle do Tribunal de Contas. Aliás, se uma entidade aufere recursos pagos obrigatoriamente por terceiros, é de se esperar que seja fiscalizada pelo Poder Público. Esse é um postulado antigo e inafastável do regime democrático. Daí nenhuma estranheza pode causar o fato de a lei submetê-las também a controle em sede de contratos e licitações.”
[188] “Art.1o Os instrumentos de formalização, renovação ou aditamento de convênios, instrumentos congêneres ou de consórcios públicos que envolvam repasse voluntário de recursos públicos da União deverão conter cláusula que determine que as obras, compras, serviços e alienações a serem realizadas por entes públicos ou privados, com os recursos ou bens repassados voluntariamente pela União, sejam contratadas mediante processo
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de licitação pública, de acordo com o estabelecido na legislação federal pertinente.
§ 5o Aplica-se o disposto neste artigo às entidades qualificadas como Organizações Sociais, na forma da Lei no 9.637, de 15 de maio de 1998, e às entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, na forma da Lei no 9.790, de 23 de março de 1999, relativamente aos recursos por elas administrados oriundos de repasses da União, em face dos respectivos contratos de gestão ou termos de parceria.”
[189] ARAÚJO, op. cit., p. 272.
[190] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 32.
[191] “A partir da Decisão 907/97 – Plenário (Ata 53/97) firmou-se o entendimento de que os Serviços Sociais Autônomos não se subordinam aos estritos termos da Lei nº 8.666/93 e sim aos regulamentos próprios.” (Acórdão 1.337/2003 – 1ª Câmara, Min. Relator Humberto Guimarães Souto, D.O.U. de 02-07-2003)
[192] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 33.
[193] Resp nº 952.899-DF, Relator: Min. José Delgado, Órgão Julgador: Primeira Turma, Julgamento: 03-06-2008, Publicação: DJ de 23-06-2008.
[194] Curiosamente, entretanto, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em decisão anterior, já decidira de forma contrária: “O contrato de gestão, por resultar benefícios patrimoniais, deve, obrigatoriamente, ser precedido de licitação. O fato de já ter sido celebrado e consumado não afasta a possibilidade da decretação de sua nulidade, com efeitos ex-tunc. A Administração Pública tem compromisso maior com os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade, eficiência e transparência. O procedimento licitatório só pode ser dispensado ou inexigível nas situações previstas na Lei nº 8.666/93. Impossível ampliar as situações nela previstas. O descumprimento ou inobservância de princípios legais e constitucionais que norteiam a atuação estatal presume o risco do dano.” Resp 623.197-RS. Relator: Min. José Delgado, Órgão Julgador: Primeira Turma, Julgamento: 28-09-2004, Publicação: DJ de 08-11-2004. p. 177.
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[195] SANTOS, op. cit., p. 300; JUSTEN FILHO, op. cit., p. 266: “Não é admissível afirmar que a Administração seria livre para realizar o contrato de gestão, sem maiores parâmetros jurídicos. O contrato de gestão não é uma espécie de porta aberta para escapar das limitações do direito público. Portanto e até em virtude da regra explícita do art. 37, inc. XXI, da CF/88, o Estado é obrigado a submeter seus contratos de gestão ao princípio da prévia licitação.”
[196] Ibidem, p. 266. O autor traz o exemplo de “duas organizações sociais que disputam contrato de gestão de um hospital. Suponha-se que uma delas disponha-se a investir recursos próprios, para reforma e melhoramento das instalações. Já a outra organização social nada pretende investir, mantendo o estado precário até então existente. Seria possível defender, em face da Constituição a liberdade da Administração para escolher uma das duas organizações sociais? É óbvio que não, eis que uma das alternativas é muito mais vantajosa que a outra.”
[197] Ibidem, p. 266. “Se houver pluralidade de sujeitos em situação de competição pela realização do contrato de gestão, o princípio da isonomia exige a observância de um procedimento seletivo, em que o julgamento deverá fazer-se segundo os princípios constitucionais da objetividade, moralidade e economicidade.”
[198] Ibidem, p. 267; SANTOS, op. cit., p. 299.
[199] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 267.
[200] Ibidem, p. 267; SANTOS, op. cit., p. 298.
[201] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 267.
[202] SANTOS, op. cit., p. 300.
[203] Ibidem, p. 300; JUSTEN FILHO, op. cit., p. 30.
[204] ROTHENBURG, op. cit., p. 103.
[205] SANTOS, op. cit., p. 301.
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[206] “Art.4o Para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, devem ser atribuições privativas do Conselho de Administração, dentre outras:
VIII - aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que deve adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade;”
“Art.17. A organização social fará publicar, no prazo máximo de noventa dias contado da assinatura do contrato de gestão, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público.”
[207] “Art. 14. A organização parceira fará publicar, no prazo máximo de trinta dias, contado da assinatura do Termo de Parceria, regulamento próprio contendo os procedimentos que adotará para a contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios estabelecidos no inciso I do art. 4o desta Lei.”
[208] ARAÚJO, op. cit., p. 275.
[209] Ibidem, p. 275.
[210] Ibidem, p. 275.
[211] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 266-267.
[212] Ibidem, p. 31.
[213] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade – nº 1.923 – DF. Relator: Min. Ayres Britto, Voto-Vista: Min. Luiz Fux, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento: 16-04-2015.
[214] ARAÚJO, op. cit., p. 275.
[215] JUSTEN FILHO, op. cit., p. 267-268.
[216] ARAÚJO, op. cit., p. 285.
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[217] Ibidem, p. 286.
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DA ANTIGA LEGISLAÇÃO SOBRE CRIME ORGANIZADO (LEI Nº 9.034/95) AOS AVANÇOS DA LEI 12.850/13
THIAGO CONDE FERREIRA FARIAS: Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UES/PE) e Advogado.
Resumo: O presente trabalho procura expor detalhadamente os avanços
normativos na legislação pertinente ao tema, demonstrando os
contrapontos das duas principais legislações que trataram das
organizações criminosas dentro do ordenamento jurídico pátrio.
Abstract: The present work seeks to expose in detail the normative
advances in the legislation pertinent to the subject, demonstrating the
counterpoints of the two main legislations that deal with criminal
organizations within the legal order of the country.
Palavras Chaves: Crime – Organizado – Organização – Legislação – Direito
– Penal.
Introdução
Amplamente difundida na sociedade, a criminalidade organizada,
apareceu ao longo da historia como um mecanismo social paralelo ao
regimento estatal. Observa‐se que se trata de um fenômeno social
emergente, que vem inovando nas maneiras de condução dos
empreendimentos criminosos, forçando o legislador a se manter em
constante atualização e compatibilização a realidade do crime
contemporâneo. Contudo, a conceituação do que viria a ser considerado
como “crime organizado” sempre apareceu como um ponto crucial e
extremamente delicado de ser debatido na seara legislativa.
Especificamente, no Brasil, este ponto sempre demonstrou grande
fragilidade ao ser colocado em pauta. É reconhecido que o entendimento
jurídico e legislativo brasileiro pegava conceitos emprestados para
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conceituar e delimitar os aspectos das organizações criminosas ao longo
do tempo, quer seja através da Convenção de Palermo, quer seja através
de leis internacionais que abordavam o mesmo tema.
Não obstante a esta lacuna legislativa, em meados do ano de 2013
restou publicada a última e mais nova legislação correspondente aos
ilícitos praticados por “Organizações Criminosas”, trazendo uma nova
roupagem acerca dos institutos fragilmente já debatidos no ordenamento
jurídico brasileiro. A nova legislação especializada trouxe um novo ângulo
sobre o instituto em comento, criando novos conceitos importantes e
ainda não abordados pelos dispositivos pré‐existentes no país, a saber,
finalmente introduziu um conceito completo de organização criminosa no
corpo legislativo pátrio. Tal conceituação insurgiu‐se como um novo
marco legislativo e como cerne principal do novo instituto legislativo
elaborado, vindo a delimitar com exatidão as situações que se
enquadrariam como atividades de sociedades criminosas.
Partindo deste novo marco legal, iniciou‐se um novo estudo sobre
este conteúdo e destacando‐se drásticas modificações no cenário penal
vigente.
Outrossim, resta imprescindível tecer comentários sobre a
consequente revogação da antiga lei de combate ao crime organizado sob
o nº 9.034/95, que timidamente descrevia o enquadramento em
atividades criminosas em caráter organizativo, bem como o iniciou de
modificações de importantes aspectos no código penal e processual penal
brasileiro.
Entre as novidades elaboradas pela citada lei, é possível destacar
como tema principal, a tão aguardada elaboração da definição legal e
conceitual do que vem a configurar‐se como organização criminosa;
trouxe também a elaboração de diversos outros institutos inovadores e
colaboradores em caráter investigativo e procedimental dando maior
suporte ao combate destas organizações como se observa no tocante
a “Ação Controlada”; “Infiltração de Agentes” e principalmente
da “Colaboração Premiada”.
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Desta forma, novas modalidades investigativas foram geradas
junto da atual legislação, contrapondo‐se a defasada previsão legal
contida no bojo da Lei 9.034/95. Resta consagrado que a antiga lei iniciou
um caminho investigativo no cenário brasileiro. Contudo, pecava
gravemente em diversos pontos cruciais deste tema, deixando as
autoridades públicas incapacitadas de atuar com eficiência no combate ao
crime organizado.
Insta salientar que, através da novo corpo legal houve a
possibilidade de acesso, independentemente de autorização judicial aos
dados cadastrais dos indiciados que informem sua qualificação pessoal,
filiação, endereço, informações de registros telefônicos e viagens
mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições
financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de
crédito, dando‐se pelo Ministério Público e autoridades policiais nas
figuras dos Delegados de Polícia Civil de forma direta.
Tratou‐se de um aspecto inovador que garantia maior
legitimidade operacional aos órgãos legais que atuam na frente de
combate ao crime organizado, ampliando e simplificando o modus
operandi de atuação destas instituições.
Neste contexto, o presente estudo visa contextualizar as principais
inovações jurídicas ocasionadas pela vigência da lei nº 12.850/2013, que
deram maior amplitude aos poderes do Estado no combate à
criminalidade organizada e atuação em defesa da segurança pública.
1. Legislativo Comparado
Em conformidade a progressão legislativa instaurada no
ordenamento jurídico brasileiro, demonstra‐se necessária uma
contextualização comparativa entre os institutos relativos ao crime
organizado, abordando as disposições legislativas passadas e atuais,
buscando uma melhor compreensão da importância das inovações
normativas adotadas com a nova estruturação de combate ao crime.
No ordenamento brasileiro, o tratamento desta matéria restou
iniciado com a regulamentação feita pela lei 9.034/95, tratando‐se da
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primeira lei sobre crime organizado. A época de sua promulgação,
constituiu‐se como um marco legal revolucionário. A revogada lei 9.034
definiu e estabeleceu timidamente alguns meios básicos e precários de
produção de prova, bem como alguns poucos procedimentos de
investigação relacionados aos delitos decorrentes da formação de
quadrilha ou bando voltados para pratica de crime organizado de qualquer
natureza.
De forma bastante rudimentar, a antiga lei disponibilizava
dispositivos com natureza eminentemente processual, trazendo em seu
bojo um início aos procedimentos de investigação e produção probatória
como por exemplo o instituto da ação controlada, infiltração policial e
colaboração premiada.
Entretanto, a lei restou deficiente ao não concretizar de forma
clara os meios permitidos e disponíveis para execução das modalidades de
investigação, também quedando ausente em delimitar a abrangência
destas atuações e quem seriam os legitimados para executá‐las.
Em uma analise superficial da legislação, observou‐se uma
precariedade na redação do texto, tendo em vista que os institutos ali
contidos não ofereciam a segurança jurídica necessária para o bom
desempenho no combate a modalidade criminosa cerne da lei.
Noutro giro, também quedou como aspecto negativo o tocante a
imprecisão de conceituação sobre o que seria a organização criminosa e
de quem viria a ser o agente que pratica este fato delituoso. Observou‐se
que o passou‐se a utilizar as definições contidas no corpo da Convenção
de Palermo como tentativa de minimizar a lacuna jurídica existente.
Em oportuno, seguindo a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal, tratados internacionais, como a Convenção de Palermo, que não versem matéria concernente aos direitos humanos, estão subordinados aos parâmetros da Constituição da República. Logo, consequentemente apontou-se para a inconstitucionalidade a utilização dessa Convenção como suporte ao art. 7º da Lei n. 9.034/95 por contrariar consagrados
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princípios constitucionais, a saber, legalidade, proporcionalidade, razoabilidade.
Neste contexto, ainda permanecia presente a lacuna jurídica por falta de uma definição do que se entenderia por organizações criminosas. Lembre-se que nesta primeira Legislação atinente ao crime organizado, que se deu sob o nº 9.034/1995, tratou-se da apenas criação de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.
Assim resta possível visualizar as latentes diferenças trazidas com a publicação da nova lei que enfrenta o tema. Podemos observar claramente essa diferenciação na leitura do artigo que inaugura o corpo legal, a saber:
Art. 1o Esta Lei define organização criminosa e
dispõe sobre a investigação criminal, os meios de
obtenção da prova, infrações penais correlatas e o
procedimento criminal a ser aplicado.
§ 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Da leitura do dispositivo, compreende‐se que a Lei nº 9.034/1995
restou defasada quando do tratamento do principal tema proposto. A
vigência da lei 12.850/13 trouxe em suas primeiras linhas a conceituação
do que viria a formar uma organização criminosa. Observa‐se que este
dispositivo se difere ao criminalizar a associação de pelo menos quatro
pessoas para o fim de cometer infrações penais de modo geral.
Já a Lei nº 9.034/1995, entretanto, não se restringia à conduta
tipificada pelo Código Penal, sendo aplicável a ilícitos perpetrados por
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo. O crime
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organizado não era definido pelo legislador, sendo a tarefa deixada para
os doutrinadores e estudiosos do direito penal.
Assim, a nova Lei do Crime Organizado passou a ser aplicável não
somente aos crimes cometidos por quadrilha ou bando (art. 288 do CP),
mas também àqueles cometidos por organizações ou associações
criminosas de qualquer tipo desde que encaixadas nos novos moldes
descritos pelo diploma legal emergente.
Seguindo a diante destes dispositivos, observava‐se uma antiga
lista dos procedimentos aplicáveis especialmente às investigações
relacionadas aos ilícitos que se enquadram como atividades de crime
organizado. A nova lei remontou a presença dessas medidas no novo
corpo legal, reafirmando que esses procedimentos são de possível
implementação em qualquer fase da persecução criminal, significando
que podem ser utilizados inclusive durante o inquérito policial.
Tratando‐se de ação policial, esta poderá ser adiada com o
objetivo de aguardar um momento mais oportuno para a desestruturação
da organização criminosa, alcançando um maior numero de criminosos e
conhecendo mais profundamente a sua movimentação operacional. Esta
modalidade de atuação passou a ser consagradamente conhecida como
hipótese de retardamento da prisão em flagrante. Relembrando a
Doutrina pátria, que o agente policial deve observar o princípio da
razoabilidade e proporcionalidade quando se utilizar dos procedimentos
da ação controlada.
No seguimento do corpo legal infere‐se o tocante ao acesso dos
dados, documentos e informações, este que resultará no resguardo do
sigilo proposto pelo art. 5º, XII, da Constituição Federal de 1988. Este
sobredito dispositivo vela pelo sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicaçõestelefônicas.
A Lei do Crime Organizado deve ser, portanto, encarada como um
dispositivo elaborado e concebido sob a proteção dos limites impostos
pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o art. 3º da própria lei
de combate determina que, na ocorrência da possibilidade de violação de
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sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência seja realizada
pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
Contudo, assevera o Prof. Gabriel Habib que, a lei encontrou
problemas na redação deste art. 3º, que inevitavelmente foi instado por
meio da “ADIN 1570”, tendo por base a redação que determinava a
atuação pessoal do juiz na produção da prova. De certo, resta sabido e
pacífico na jurisprudência brasileira o conhecimento sobre dispositivos
constitucionais que determinam a atuação imparcial do magistrado, bem
como a proibição do juiz inquisitor.
Entretanto, no tocante às informações fiscais e eleitorais,
deparou‐se com um entendimento de inconstitucionalidade pelo
Supremo Tribunal Federal, demonstrando não caber qualquer atuação
pessoal do juiz na produção probatória, ainda quando se trate de
investigação de crime organizado. Na realidade, o Supremo identificou
mais uma tentativa de criar a figura do “juiz da instrução”, figura esta que
não consta possível no ordenamento brasileiro.
O procedimento previsto atinente a captação e interceptação
ambiental, descreve que esta ocorrerá quando um dos interlocutores
colher dados e informações em diálogo do qual também participa,
diferenciando‐se da interceptação telefônica que aparece como
procedimento adotado com a instalação de “escuta telefônica” por
terceiros, perfeito por autorização judicial.
Por último, a infiltração de agentes policiais trata‐se de
procedimento através do qual o agente de polícia age como se fosse
membro da organização criminosa, na função estrita de colher provas dos
crimes cometidos no meio organizacional, perfazendo‐se também por
meio de autorização judicial, e devendo esta autorização. A doutrina
explica o texto legal reforçando a legitimidade da atuação do agente
quando do decorrer deste meio investigativo. Observa‐se que na própria
lei foi trazido uma garantia do agente de atuar criminosamente em
conjunto com seus comparsas quando esta atuação seja necessária para
manutenção de seu disfarce. A lei reforça, ainda, que as condutas
praticadas pelo agente devem guardar a devida proporcionalidade com a
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finalidade da investigação, caso contrário resultará em responsabilização
do agente pelos excessos cometidos. Por outro lado, o mesmo dispositivo
esclarece que, quando não for possível agir de outro modo, o agente
infiltrado não terá punição em virtude da inexigibilidade de conduta
diversa.
2. Conclusão
Diante todo o exposto, observou‐se que a progressão legislativa
de combate ao crime organizado no âmbito nacional teve uma sequencia
positiva, logrando êxito em corrigir as lacunas existentes ao longo do
tempo. Contudo, trata‐se de um trabalho constante e de caráter
inteiramente inovador, devendo o legislador se manter atento aos novos
meios de atuação criminosa.
Ao longo da historia, observou‐se em diversas partes do mundo
que as organizações criminosas são organismos entranhados no corpo
social, participando das diversas áreas da sociedade. A historia mostra que
o combate a esses grupos operacionais desafiaram a justiça quando da
possibilidade de persecução legalmente instituída. Trata‐se de um
trabalho árduo e cansativo, demonstrando‐se que para cada novo
instituto legal criado para o combate cirúrgico da criminalidade
organizada, esta cria novas hipóteses de conduta criminosa, requerendo a
constante atualização legislativa e jurisprudencial para o efetivo e eficaz
combate.
Neste sentido, a evolução da legislação penal mostrou que a lei
12.850/13 consagrou‐se como um marco essencial nesta nova fase de
combate as organizações criminosas. Apareceu com uma legislação sólida
e bem estruturada, trazendo diversos institutos jurídicos inovadores e que
ampliaram a legitimidade investigativa e operacional dos órgãos de
combate.
Não se podendo esquecer do reforço e valorização da figura da
delação premiada, bem como a liberdade de acesso as informações dos
investigados, lembrando que tal acesso restou acertadamente redigido na
nova lei, respeitando todos os direitos constitucionais conhecidamente
consagrados.
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3. Referências Bibliográficas
HABIB, Gabriel; GARCIA, Leonardo de Medeiros. Leis Penais Especiais,
TOMO II, 5 ed. São Paulo: Jus Podivm Editora, 2014.
HABIB, Gabriel; GARCIA, Leonardo de Medeiros. Leis Penais Especiais,
Volume Único, 1 ed. São Paulo: Jus Podivm Editora, 2016.
PACELLI, Eugenio. A Lei de Organizações Criminosas – Lei
. / Disponível em:
<http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso‐de‐processo‐penal‐
17a‐edicao‐comentarios‐ao‐cpp‐5a‐edicao‐lei‐12‐85013‐2/>. Acesso em
13.09.2013.
SANCHES, Rogério. Palestra sobre a Lei . / : Organização
Criminosa. Disponível em: <http://youtu.be/ElkgbG5VD0w>. Acesso em:
11.09.2016.
SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal Parte Geral. 2 ed. São
Paulo: Jus Podivm Editora, 2016.
SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal Parte Especial – Volume
Único. 2 ed. São Paulo: Jus Podivm Editora, 2016.
Masson, Cleber, Direito Penal Esquematizado – parte geral – vol. 1, 9º
Ed. rev., atual. e ampl., Rio de janeiro: forense; São Paulo: Método, 2015
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A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO PELO JUIZ
GABRIEL MARCIO PASSOS CARVALHO BAHIA SAPUCAIA: Formado em direito pelo Centro Universitário Jorge Amado/BA e Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito/BA.
RESUMO: Com o presente artigo objetivou‐se realizar um estudo acerca
da decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz, buscando desde os
primórdios, nos modelos processuais adotados pelo país, os poderes
instrutórios conferidos aos juízes. Confrontou‐se tais poderes com alguns
princípios constitucionais penais, como forma de descaracterizá‐los frente
ao modelo adotado pela Constituição, o modelo acusatório, bem como os
direitos e garantias positivados nela, e em nosso Código de Processo
Penal, o qual, mesmo com as recentes mudanças trazidas pela Lei
12.403/11, ainda possui traços inquisitoriais, incompatíveis com o modelo
atual de sistema penal, como também, incompatíveis com as garantias
positivadas na constituição, uma vez que, o juiz decreta a prisão
preventiva de ofício ao indivíduo no curso da ação penal, dessa forma,
cerceando um dos maiores direitos do ser humano, a sua liberdade, assim,
contrariando os princípios da imparcialidade e da presunção de inocência.
Palavras‐Chave: Constituição Federal. Princípios. Prisão preventiva.
Sistemas processuais penais.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS; 2.1
SISTEMA ACUSATÓRIO; 2.2 SISTEMA INQUISITÓRIO; 2.3 SISTEMA
MISTO; DOS PRINCÍPIOS; 3.1 PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL; 3.1.1 AO
PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE; 3.2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA OU NÃO CULPABILIDADE; DA PRISÃO PREVENTIVA E SUA
DECRETAÇÃO DE OFÍCIO; CONCLUSÃO.
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1 INTRODUÇÃO
O modelo de sistema penal adotado pela nossa Constituição
Federal é o acusatório, baseada no Estado de Direito, que prevê princípios
e garantias individuais e intrínsecas ao ser humano, e que assume dentro
do nosso ordenamento jurídico uma posição de supremacia,
superioridade, devendo ser seguida por todos os outros ramos do Direito,
em especial o Direito Penal e Processual Penal, por tratarem de forma
direta com os direitos e garantias de maior valor, tais quais a vida, a
integridade física e a liberdade.
Com o estudo feito acerca da prisão preventiva e a sua
decretação de ofício pelo juiz, constatamos em sede de medida cautelar,
algumas arbitrariedades por parte deste no momento da decretação, pois
com a nova redação trazida pela Lei 12.403/11, o legislador aumentou o
seu âmbito de atuação, podendo agora, decretá‐la de ofício se no curso
da ação penal, ou seja, sem necessidade não de provocação, agindo assim
com total imparcialidade. Percebe‐se também que, ao se tratar de uma
medida cautelar, onde a prisão é uma exceção, e a liberdade é a regra,
deve‐se agir com muita cautela, partindo de um pressuposto de ultima
ratio, pois se trata do cerceamento da liberdade do indivíduo, baseada no
princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, elencada de
forma expressa em nossa Carta Maga.
Contudo, algumas observações devem ser feitas acerca da
decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz, a partir da nova
redação do artigo 311 do CPP, trazida pela Lei 12.403/11, de forma a
enfatizar o seu caráter defasado, com traços ainda inquisitoriais, onde o
juiz age de forma parcial, atuando como parte no processo, cerceando a
liberdade do indivíduo, antecipando uma pena, jogando um suposto
culpado ao cárcere, presumindo a sua culpabilidade. Vale ressaltar que,
frente a uma sociedade em desenvolvimento, pautada no Estado
Democrático de Direito, que prevê a todos direitos e garantias individuais,
tal medida cautelar deve ser analisada com muita cautela, aspirando
novos rumos, buscando seguir a norma suprema, rumo a um Direito
Processual Penal garantista.
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O objetivo geral deste trabalho é o estudo acerca da decretação
da prisão preventiva de ofício pelo juiz, abrangendo os seus poderes
instrutórios com enfoque no modelo de sistema penal adotado, bem
como nos princípios positivados na Constituição Federal.
Porém, para melhor entendermos a problemática aqui trazida,
fez‐se necessário trazer os modelos de sistema penal adotados ao longo
da história, seguindo de alguns princípios constitucionais penais de grande
relevância para o tema, e por fim, a análise do tema principal, traçando as
novas mudanças, bem como, citando outras legislações que tratam do
mesmo tema.
O trabalho foi dividido em três capítulos buscando aprimorar o
assunto para um melhor entendimento do leitor. O primeiro capítulo trata
dos sistemas processuais penais e suas características; o segundo capítulo
traz os princípios constitucionais penais e sua relevância para o tema
estudado; o terceiro e ultimo capítulo trata sobre a prisão preventiva e
sua decretação de ofício, e dentro deste, mencionou‐se as novidades
trazidas pela Lei 12.403/11; como também uma análise feita ao artigo 20
da Lei 11.340/06.
2 DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
2.1 O SISTEMA ACUSATÓRIO
O surgimento do sistema processual acusatório se deu nos
primórdios da Grécia antiga, onde os conflitos eram caracterizados em
públicos e privados, e onde se desenvolveu a participação direta do povo
no exercício da acusação e como julgador.
Prevalecia o sistema de ação popular para os delitos mais
graves, onde qualquer pessoa podia acusar, e acusação privada para os
delitos menos graves.
Os conflitos privados eram caracterizados pela sua
insignificância, onde os seus efeitos não causassem nenhum tipo de
problema em meio a sociedade, mas trazia algum constrangimento tão
somente a seara privada de um individuo em particular.
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De outra forma, os conflitos públicos representavam uma
afronta a sociedade, e como foi citado acima, qualquer um que se sentisse
ofendido poderia propor a sua acusação.
Neste mesmo período do Direito Romano, surgem as duas
formas do processo penal, a cognitio e a accusatio. A cognitio se
caracterizava por ser designada aos órgãos do Estado, ou melhor, aos
Magistrados, onde lhes outorgavam os maiores poderes, podendo este,
entender e esclarecer os fatos da forma como entendesse melhor.
Já nos últimos séculos da República, esse procedimento passou
a ser insuficiente para o momento em que a sociedade vivia, pois este
modelo era escasso de proteção e garantias, principalmente para as
mulheres, e com isso, passou a ser uma arma de grande potencial político
nas mãos dos Magistrados.
Já na accusatio, a acusação era assumida de forma esporádica
e espontânea por um cidadão do povo. Surgiu então no último século da
República e marcou o período de inovação no Direito Processual romano.
Inovação esta que, se tratando de delito público, a persecução e o
exercício da ação penal eram designados a um órgão distinto do
Magistrado, não mais pertencente ao Estado, e sim a um representante
do povo, que tinha o condão de acusar.
Historicamente, o que caracterizou o sistema acusatório foi a
separação entre a figura do Juiz e o papel de acusador, a garantia ampla
defesa, do contraditório, da imparcialidade, a paridade entre as partes, a
oralidade dos atos processuais, entre outros.
Portanto, conclui‐se que a persecução penal foi oriunda da
acusação popular, e é neste momento que o sistema acusatório começa
se consolidar, de forma onde há a imparcialidade dos julgadores, bem
como da separação das funções de quem julga, e quem acusa.
Luiz Flávio Gomes cita Luigi Ferrajoli,”referência” um dos
maiores defensores do garantismo, para enfatizar o que se entende pelo
sistema acusatório, que assim o define:
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Todo sistema processual que configura o juiz
como um sujeito passivo rigidamente separado das
partes e o processo como iniciativa da acusação, a
quem compete provar o alegado, garantindo‐se o
contraditório (...) podemos, ao contrário, chamar
inquisitório o processo em que o juiz procede de
ofício na busca de provas, atuando em segredo e por
escrito, com exclusão de qualquer contraditório ou
limitação deste. Em suma: é acusatório o modelo que
respeita a proibição do no “procedat iudex ex
officio".
Contudo, na época do império o sistema acusatório foi se
mostrando insuficiente frente as novas necessidades do Estado em
combater os delitos. Com esta insatisfação, a figura do Juiz “inquisidor”
volta à tona, de forma que os próprios invadissem cada vez mais as
funções de acusar e julgar, reunindo assim numa só esfera todas as
funções.
A partir desta necessidade da sociedade, os Juízes passam a
proceder de ofício, sem sequer uma acusação, realizando eles mesmos a
investigação e logo após, sentenciando. E, se no início prevalecia a
publicidade dos atos, agora não mais, de forma que foi sendo substituído
pelos processos a porta fechada.
A publicidade também garante ao acusado, o contraditório e a
ampla defesa, uma vez que, sabendo o motivo da imputação a sua pessoa,
irá se utilizar das medidas processuais possíveis para a sua defesa. É de
suma importância ressaltar que o acusado é sujeito de direitos, todos
garantidos pela nossa Constituição, de forma clara e expressa.
No sistema acusatório, as provas devem ser produzidas com um
mínimo de respeito aos direitos e garantias do acusado, dessa forma, não
mais tratando o acusado como um objeto do processo, assim como era no
modelo inquisitivo. Como bem assevera Aury Lopes Jr:
O mais interessante é que não aprendemos com
os erros, nem mesmo com os mais graves, como foi a
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inquisição. Basta constatar que o atual CPP atribui
poderes instrutórios para o juiz, a maioria dos
tribunais e doutrinadores defende essa “postura
ativa” por parte do juiz (muitas vezes invocando a tal
“verdade real”, esquecendo a origem desse mito e
não percebendo o absurdo do conceito), proliferam
projetos de lei criando juízes inquisidores e “juizados
de inquisição”.
As diferenças entre o sistema acusatório e o inquisitório são
evidentes, pelo fato de que o primeiro se externa com as garantias dos
direitos humanos, com a presunção da inocência, o segundo se caracteriza
pelo arbítrio, pela aplicação da lei sem a presença dos direitos dos
acusados, pelas irregularidades.
Trata‐se de repensar essas questões que permeiam o sistema
acusatório atual, e reformular, de forma que, se crie um terreno onde o
acusado tenha condições de se pronunciar, de falar, de forma livre no
processo penal, e não voltar aos tempos onde o sistema englobava o juiz‐
inquisidor.
Há muitas discussões nos dias atuais, acerca da classificação do
sistema processual penal brasileiro. Alguns doutrinadores afirmam que,
após a Constituição de 1988, o nosso processo penal se enquadra como
acusatório, onde as funções acusatórias e julgadoras são destinadas a
órgãos distintos.
Em outra linha de pensamento, alguns doutrinadores
discordam de tal posicionamento, dizendo que em decorrência da atual
legislação brasileira, o sistema processual penal não poderia ser
classificado com acusatório puro, mas sim inquisitivo garantista.
É neste contexto que vamos trabalhar, na defesa de um sistema
processual acusatório, onde as diversas funções, de acusar e julgar, são
distribuídas a vários órgãos do estado, de forma que o juiz seja imparcial,
e que, a decretação da prisão preventiva de oficio seja requerida por parte
do Ministério Público, dessa forma, respeitando os princípios
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constitucionais que norteiam todo o ordenamento, e em especifico, o
processo penal.
No mesmo sentido, Denilson Feitosa, afirma:
No cotidiano forense, é comum se afirmar que o
sistema brasileiro é acusatório, primeiro, pelo
simples fato que o juiz ou tribunal não pode começar
o processo penal de oficio, ou seja, o juiz ou tribunal
depende de um pedido acusador (propositura da
ação penal ou oferecimento da denuncia ou queixa)
para poder iniciar o procedimento que leva ao
julgamento (sentença condenatória ou absolutória),
que é a fase de persecução penal que, no Brasil, é
denominada processo penal (propriamente dito);
segundo, porque as partes debatem durante o
processo, em contraditório, e se afirma a ampla
defesa” (...)
É também, de suma importância, relatar que a nossa
Constituição Federal optou pelo sistema acusatório, como também traz os
princípios que devem norteá‐lo, de forma a proteger os indivíduos de
possíveis abusos por parte do estado.
2.2 O SISTEMA INQUISITÓRIO
Nasce no final do período Republicano de Roma, onde devido a
ascensão do império, passa‐se a adotar um regime, ou melhor, um critério
de regulação e manutenção do poder de punir daqueles que não
seguissem as normas.
Devido as grandes opressões, invasões, e guerras, o sistema
processual que vinha sendo usado, o sistema accusatio, que tinha como
características a acusação pública, se tornou insuficiente, pelo contexto
que a sociedade romana vivia, e também o fato de que cada vez mais os
atos se concentravam na mão de uma só pessoa.
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Com a Idade Média, não se falava mais em um poder único, pelo
fato de que agora, a sociedade era dividida em feudos, onde em cada
feudo havia um senhor feudal, responsável por aquele território, e
consequentemente, responsável pelas leis ali impostas.
Vale ressaltar a grande influência da igreja católica, ou melhor,
do direito canônico, que de forma bem organizada, difundia a ideia de que
o direito penal nada mais era do que, a salvação do homem, e que,
partindo desse princípio, nada mais justo do que a própria igreja
solucionar tais conflitos.
A partir daí, a Igreja passa a realizar os papeis de instrução e
julgamento dos casos concretos, com pequenas participações do povo.
Logo após, começa o período da monarquia, e com ele veio a necessidade
de se criar um sistema que regulasse e controlasse um instrumento eficaz
no controle da criminalidade.
Nasce então, o advento do sistema inquisitivo, onde as funções
de acusar e julgar eram reunidas num só órgão, ou seja, não existia outra
figura além do juiz, que tinha todos os poderes, tanto instrutórios, como
os decisórios.
O surgimento do sistema processual inquisitivo se deu no
mesmo período, e de certa forma, juntamente com a ascensão do
cristianismo como religião oficial.
Com a grande ascensão, a monarquia passou a almejar o
domínio absoluto, tentando assim, afastar a influência da Igreja Católica
dos atos do poder. Com este anseio por parte da monarquia, a igreja inicia
uma grande perseguição que intitularam de “a caça as bruxas”,
perseguindo todos aqueles que foram de encontro aos seus ideais.
Vislumbrando combater a fragilidade que os assolava, a igreja
resolve concretizar ainda mais o período inquisitorial, marcado pelo
afastamento do contraditório e da ampla defesa, bem como da oralidade,
e a desnecessidade de acusação, como salienta Jacinto Coutinho (2001,
p.18):
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Trata‐se sem duvida, do maior engenho jurídico
que o mundo conheceu; e conhece. Sem embargo de
sua fonte, a igreja, é diabólica na sua estrutura (o que
demonstra estar ela, por vezes é ironicamente,
povoada por agentes do inferno), persistindo por
mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com
uma finalidade específica e, porque serve – e
continuará servindo, se não acordarmos ‐, mantém‐
se hígido.
Nesta época, já era possível vislumbrar as facetas do sistema
inquisitorial, que tinham como modelo: a concentração das funções de
julgar e acusar, falta de imparcialidade do julgador, a possibilidade
irrestrita de produção de provas de ofício e inexistência de defesa, pois
como diz o ilustre Aury Lopes Jr:
O primeiro abandona sua posição de arbitro
imparcial e assume a atividade de inquisidor,
atuando desde o inicio também como acusador.
Confundem‐se as atividades do juiz e acusador, e o
acusado perde a condição de sujeito processual e se
converte em mero objeto da investigação.
Para que se entenda de forma mais clara a inquisição, é
necessário voltar no tempo e se fazer uma análise do comportamento da
igreja durante a história. Logo se percebe que era um sistema fundado na
intolerância, advinda da “verdade absoluta”.
O grande problema da busca da verdade real, está no fato de o
juiz deixar de lado a inércia para partir em busca dessa tal verdade, e
consequentemente, agindo sem nenhuma imparcialidade.
A fase abrangida pela Inquisição foi também caracterizada pelo
autoritarismo, onde o sistema inquisitório constituiu um instrumento de
iniquidade e injustiças. Não havia de forma alguma respeito aos direitos
dos acusados, à sua incolumidade física, aos direitos humanos, uma vez
que o emprego da tortura era normal, como meio de obtenção da
confissão, que neste tempo era tida como a rainha das provas, e uma
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forma muito utilizada e que caracteriza muito bem este sistema. Foi um
marco de violência e arbitrariedade nesta fase histórica.
O sistema inquisitivo também era caracterizado pela ausência
de processo e juiz penal era o órgão que exercia a autotutela dos
interesses repressivos do estado.
Não há duvidas de que o sistema inquisitório veio para atender
as necessidades tanto da igreja, como das classes dominantes, que sempre
almejaram por tanto poder em suas mãos. Dessa forma, todos os atos
serviam para embasar um sistema totalitário fundado na intolerância.
Portanto, é possível concluir que, no modelo de organização
inquisitória, há a uma disparidade entre acusação e defesa, a ausência de
publicidade e oralidade do processo, e uma extrema falta de segurança
jurídica, uma vez que, é dada ao chefe de Estado a capacidade de violar a
coisa julgada, sempre que achar necessário.
2.3 O SISTEMA MISTO OU ACUSATÓRIO FORMAL
O sistema misto ou acusatório formal tem suas raízes na
Revolução Francesa, por volta de 1789, onde os ideais de igualdade,
liberdade e fraternidade, e as ideias iluministas estavam em grande
ascensão, e toda essa forma de pensar e de agir dos iluministas, fizeram
com que todos os seus seguidores fossem de encontro ao modelo
inquisitivo que prevalecia na Europa.
Este sistema, nada mais é do que a união dos sistemas
inquisitivo e acusatório, que se caracteriza em três fases: a investigação
preliminar, realizada pela polícia judiciária; a instrução preparatória,
realizada pelo juiz instrutor; e a fase judicial. É importante salientar que,
como na fase da instrução preparatória vigora sistema inquisitivo, o
procedimento é secreto e escrito, a cargo do juiz, quem tem poderes
inquisitivos, como também com o intuito de colheita de provas, onde o
autor do fato é tratado como mero objeto de direitos, não havendo o
contraditório e a ampla defesa.
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Com a fase da instrução preparatória e o recebimento da
acusação, inicia‐se a terceira fase, a fase judicial, onde se percebe as
características do sistema acusatório, no qual o autor do fato, ou melhor,
o acusado é tratado como um sujeito de direitos. Vale ressaltar que é
somente nesta última fase, ou seja, no momento do julgamento, que
percebe‐se a inserção de alguns princípios, como, a presunção da
inocência, sendo considerado inocente até que se prove o contrário, bem
como os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório.
O sistema foi se tornando insuficiente, e foi sendo modificado
aos poucos, como assevera Tourinho Filho:
Esse sistema misto, que se espalhou por quase
toda a Europa continental, no próprio século em que
surgiu, começou a sofrer sérias modificações, dada a
tendência liberal da época, exigindo que fossem
aumentadas as garantias do réu. E, realmente, na
própria França, a Lei Constans, de 8‐12‐1897,
assegurava ao acusado o direito de defesa no curso
da instrução preparatória.
No direito pátrio ou atual, o sistema adotado não é o processo
acusatório puro, mas sim um sistema acusatório com traços inquisitivos,
pois são muitos os poderes conferidos ao juiz, aquele que deve julgar com
imparcialidade, se mantendo equidistante das partes.
3 DOS PRINCÍPIOS
Com este capítulo tem‐se como objetivo realizar uma análise
sobre os princípios constitucionais, em específico, aqueles inerentes ao
processo penal, e de forma ainda mais direta, no contexto da decretação
da prisão preventiva de oficio pelo juiz, uma análise da perspectiva de
onde, e como estes princípios limitam o poder punitivo do Estado, dentro
dos direitos e garantias positivados pela Constituição Federal, bem como
do modelo de sistema acusatório garantista, o qual deveria ser seguido
pelo nosso CPP, assegurando os princípios em todas as fases do processo,
mas que adota de forma clara o sistema penal misto, permitindo ao juiz,
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em algumas situações, o poder de investigar, acusar e julgar, como se
percebe na redação do novo artigo 311, quando se trata da decretação de
ofício pelo juiz, mas não cabe no momento trazer tais características, que
em breve será citado, no capítulo posterior. A partir daí, iremos dar um
foco maior aos atos praticados pelo Estado, na figura do Juiz, quando este
de alguma forma vai de encontro aos princípios constitucionais, que como
sabemos, são princípios gerais, norteadores de todas as áreas do Direito,
e que precisam ser garantidos.
Vale salientar desde o inicio, a importância desses princípios no
ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Constituição Federal deve
ser o ponto de partida para as demandas civis, penais, e processuais, o que
será aqui analisado de forma direta e exclusiva alguns princípios
norteadores do processo penal, em especial, acerca de uma das medidas
cautelares, a prisão preventiva.
Como bem esclarecido acima, os princípios constitucionais são
considerados os pilares de todo o ordenamento jurídico, pois orientam o
juiz de como agir diante das normas jurídicas, e das situações concretas a
ele apresentadas. São muitos os princípios do processo penal que
encontram garantias na Constituição Federal, sendo alguns deles, os mais
importantes, quando falamos em prisão preventiva.
Antes de adentrarmos especificamente aos princípios e
garantias, cumpre ressaltar a força normativa dos princípios, que de
maneira clara e direta, Aury Lops Jr diz: Vale destacar que os princípios
gozam de plena eficácia normativa, pois são verdadeiras “normas”. Os
princípios (especialmente os constitucionais) são normas fundamentais ou
gerais do sistema.
Passaremos agora ao estudo dos princípios que regem o
Processo Penal:
3.1 PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
O princípio do Juiz Natural inseriu‐se no direito brasileiro, com
uma dupla garantia na Constituição, acerca da proibição dos tribunais de
exceção, e a garantia do juiz competente.
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A constituição Federal em seu art. 5°, inciso LIII, diz que:
“Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente”. A partir deste princípio, extraímos a garantia e a
necessidade de se ter um juiz imparcial, técnico, e consequentemente,
competente para resolver os conflitos do Poder Judiciário, evitando
arbitrariedades por parte do Estado.
O breve estudo feito ao referido princípio, nos remete a outro
de grande importância dentro do tema, que é o princípio da
imparcialidade.
3.1.1 AO PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE
O princípio da imparcialidade é sem duvida, um dos mais
importantes princípios a ser estudado por nós quando se fala em
decretação da prisão preventiva de ofício pelo Juiz, pois como estudamos
durante todo este trabalho, percebemos a necessidade de se obter um
sistema penal no modelo acusatório, ou seja, onde há uma clara divisão
nas funções de acusar e julgar, onde o juiz se encontra como um mero
espectador, agindo com imparcialidade. E não mais como um sistema
misto, onde na fase preliminar, ou de investigação, se mostra totalmente
inquisitório, surgindo aos poucos o contraditório e a ampla defesa, e a
paridade de armas entre o estado, na figura do juiz, e o acusado.
Passamos a refletir sobre tal imparcialidade, quando nos
deparamos com situações de extrema afronta tanto aos princípios e
garantias constitucionais, quanto ao modelo acusatório. Dai então, cai
tudo por terra quando se atribuem poderes instrutórios (ou
investigatórios) ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é
característica essencial do princípio inquisitivo, que leva, por
consequência, a fundar um sistema inquisitório (COUTINHO, 2001).
O juiz deve incorporar e agir de tal maneira, sendo imparcial e
garantindo um julgamento justo as partes, como preleciona os ilustres
Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, ao dizer:
A imparcialidade é entendida como
característica essencial do perfil do juiz consistente
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em não poder ter vínculos subjetivos com o processo
de modo a lhe tirar o afastamento necessário para
conduzi‐lo com isenção. O juiz interessado deve ser
recusado, e os permissivos legais para tanto se
encontram no art. 254 (hipóteses de suspeição), e no
art. 252 (hipóteses de impedimento).
Não se pode aceitar um Juiz parcial. Uma vez que o Estado
chama para si a responsabilidade de um julgamento justo, com base nas
provas ali apresentadas, com base nos direitos e garantias positivados na
Constituição, essa missão não poderia ser cumprida se, no processo, não
houvesse a imparcialidade do juiz.
Com a análise do princípio em tela, logo nos direcionamos a
examinar os inúmeros atos que afrontam os princípios e garantias
constitucionais, juízes com aspectos ainda inquisitoriais, agindo com
arbitrariedade e sem nenhum aspecto garantidor, assim como está
positivado na Constituição Federal, e como deveria ser seguido, como um
órgão garantidor e guardião da nossa Carta Magna. Estes princípios
constitucionais norteiam todo o sistema processual penal, de forma
intrínseca ao Estado, na figura do Juiz.
Com bem assinalado pelo Ministro César Peluso, não se pode
admitir um juiz suspeito, um juiz que tenha se contaminado com outros
tipos de prova, que se influencie com os elementos da investigação
preliminar, voltando aos tempos da inquisição, onde o juiz atuava em
todas as fases do processo, como já foi trazido em outro momento, em
capítulo anterior.
Ao estudarmos todos estes princípios, e confrontá‐los com o
tema trazido no presente trabalho, logo associamos a alguns atos
praticados pelos juízes, que vão de encontro aos princípios acima
relacionados, como é o caso do art.311 do CPP, e sua nova redação, onde
constatamos uma clara inconstitucionalidade por estarmos diante da
figura do Juiz inquisitório.
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Após a análise dos referidos princípios, cumpre‐nos fazer
menção ao art. 311 do CPP, e sua nova redação, trazendo as características
e peculiaridades da decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz.
3.2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (OU DA NÃO
CULPABILIDADE)
O princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade
tem uma grande relevância no tema aqui estudado, pois estamos falando
sobre sistemas processuais e a decretação da prisão preventiva, temas nos
quais deve se ter uma atenção redobrada ao referido princípio, como
também está inserido num contexto internacional, pois tal princípio está
contido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, onde
traz em seu art. 11.1, que: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a
que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade,
de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as
garantias necessárias para sua defesa”. Tal princípio foi abarcado pelo
nosso ordenamento jurídico desde a entrada em vigor da Constituição
Federal de 1988, que trouxe em seu art. 5°, inciso LVII, que: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória.
Antes mesmo de entrar no núcleo do princípio em tela, acho de
suma importância trazer as palavras de Cesare Beccaria, que em 1764, em
sua mais importante obra, Dos delitos e das penas, já chamava a atenção
de que: “um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz,
e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que
ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.
Após uma breve explanação acerca do referido princípio,
partiremos para uma análise do texto de lei que positiva este princípio.
O art. 5°, inciso. LVII da Constituição Federal assegura a todos
os cidadãos a presunção de inocência antes de uma sentença
condenatória transitada em julgado, ou seja, antes de se efetivar a
sentença, somos todos presumivelmente inocentes, incumbindo o ônus
probatório a acusação, e lembrando que o cerceamento da liberdade só
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será necessário em situações excepcionais, ou seja, o encarceramento só
deve ocorrer como uma medida de estrita necessidade.
Vale destacar aqui, que o princípio da presunção de inocência
tem sido encarado algumas vezes com outros preceitos e outras
denominações, como sinônimo de não culpabilidade. Ao se comparar a
forma como tal princípio foi positivado nos Tratados Internacionais e na
Constituição Federal, percebe‐se que no primeiro, refere‐se a presunção
de inocência, e na Constituição Federal não se trata da expressão
inocência, e sim a expressão de que ninguém será considerado culpado.
Devido à diversidade de termos usados acerca do referido princípio, o
preceito inserido na Constituição Federal passou a ser considerado como
a presunção de não culpabilidade.
Na jurisprudência brasileira, ora se faz referência ao princípio
da presunção de inocência, ora ao princípio da presunção de não
culpabilidade. Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de
inocência e presunção de não culpabilidade, sendo inútil e
contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias ‐ se é que isso é
possível ‐, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.
Dessa forma, mesmo havendo ideias divergentes acerca da
terminologia correta, o sentido de tal princípio continuará prevalecendo,
de forma bem expressa em nossa Constituição, onde estabelece que
somente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória
poderá afastar o estado inicial de inocência, o qual é assegurado a todos.
Feito essa análise, concluímos que na atual ordem
constitucional, não se admite uma distinção entre as duas denominações.
Sabemos que, enquanto não transitar em julgado a sentença
condenatória, a culpa não se estabelece.
Percebe‐se a importância que o referido princípio tem em nosso
ordenamento jurídico, uma vez que, está positivado em nossa
Constituição, bem como nos tratados e convenções internacionais,
devendo ser seguido com observância a asseguração da integridade do
suposto acusado.
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O princípio da presunção de inocência deve ser observado com
um cuidado maior quando se fala em medidas cautelares, em especial, a
prisão preventiva e poder que o juiz tem em decretá‐la. Nos casos de
quebra de sigilo fiscal, telefônico, bancário, busca e apreensão, ou até
mesmo a exposição da figura do acusado, com sua imagem posta em redes
de televisão, onde tais informações podem trazer problemas irreversíveis.
Muitos desses atos constituem desrespeito e violência ao
princípio da presunção de inocência, por agir de forma equivocada,
implicando ao acusado uma antecipação da sua suposta pena.
Conclui‐se então que, deve haver um cuidado maior ao se tratar
das medidas cautelares, em especial, a prisão preventiva, por se tratar de
um assunto que aqui será abordado, como também, o que se refere aos
atos praticados pelos juízes, que por vezes, vão de encontro aos princípios
constitucionais.
4 DA PRISÃO PREVENTIVA E A SUA DECRETAÇÃO DE OFÍCIO
Nosso objetivo neste ultimo capítulo, é trazer o instituto da
prisão preventiva, suas peculiaridades, seus requisitos e pressupostos,
como também, alguns comentários acerca da sua nova redação, trazida
pela Lei 12.403/11, que trata de uma das medidas cautelares previstas em
nosso ordenamento. Bem como, fazer uma síntese dos assuntos tratados
neste artigo como um todo, trazendo a ideia de um Estado Democrático
de Direito, pautado nas garantias fundamentais dos indivíduos, como
também, os atos praticados pelos juízes, que muitas vezes ultrapassa sua
seara, agindo de tal forma que foge aos princípios constitucionais penais,
e o modelo de sistema penal adotado em nosso país, o misto.
A prisão preventiva é uma espécie do gênero prisão cautelar de
natureza processual. É uma medida determinada pelo juiz, onde limita ou
restringe a liberdade do acusado, em qualquer fase da investigação
policial ou do processo penal, como rege o novo art. 311 do CPP:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação
policial ou do processo penal, caberá a prisão
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preventiva decretada pelo juiz, de oficio, se no curso
da ação penal, ou a requerimento do Ministério
Público, do querelante ou do assistente, ou por
representação da autoridade policial.
Após a breve explanação do texto de lei, enfatizamos nas
mudanças mais significativas trazidas pela nova redação, e o que chama
mais a atenção, é a expressão “decretada pelo juiz, de ofício, se no curso
da ação penal.” Aparentemente, como se disse, a prisão preventiva foi
disciplinada à luz do sistema acusatório, haja vista que limita a sua
decretação de ofício, impedindo‐a no pré‐processo, relegando o
magistrado à condição de zelador de garantias naquela fase. (FRANÇA)
Com a análise da nova redação, percebe‐se que o legislador
aumentou o espaço de decretação de prisão preventiva quando usou a
expressão “se no curso da ação penal”, ampliando de forma absurda os
poderes dos magistrados.
Percebe‐se que a atuação do juiz na fase pré‐processual é
baseada no sistema penal acusatório, ou seja, onde o magistrado deve agir
de forma equidistante, com imparcialidade, assunto que já foi explicitado
anteriormente, como também de modo a assegurar os direitos e garantias
dos indivíduos, obedecendo a todos os princípios positivados na
Constituição Federal.
Mas não parece tão simples assim, uma vez que o legislador se
equivocou ao dar poderes aos magistrados, para decretá‐la no curso da
ação penal, como bem preleciona o ilustre professor Misael Neto:
Eis aí o descuido – ou o propósito – do legislador
reformista. É que, a luz de um sistema processual
acusatório, fundado na presunção de inocência, na
paridade de armas e, sobretudo, na imparcialidade
do julgador, a possibilidade de este último impor,
sem provocação da acusação, a mais severas das
medidas cautelares consiste em clara ofensa ao
devido processo (penal) legal.
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Vale salientar que, a luz de um Estado Social e Democrático de
Direito, e de uma Constituição Federal pautada na observância e
positivação dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, há um
claro dever por parte do poder público em assegurá‐los, dessa forma,
respeitando á dignidade da pessoa humana. Sendo assim, não se admite
um modelo de persecução penal lastreado, ainda, nas raízes de um
sistema inquisitorial.
Em resposta as palavras de Nestor Távora e Rosmar Alencar,
Misael Neto cita Dalbora, que assevera:
Então, vale fixar que o sistema acusatório,
albergado, como regra, pela Constituição Federal do
Brasil, não admite que o magistrado atue como
parte. É dizer, não permite que ele, exorbitando as
suas funções num processo penal de garantias,
decrete uma medida restritiva da liberdade, de
natureza processual, sem o menor intento da
acusação neste sentido.
Portanto, fica claro que só caberá a prisão preventiva durante a
investigação criminal ou no curso do processo penal. A Lei 12.403/11
alterou sua redação, substituindo a expressão “inquérito policial”, por
investigação policial, e também mudou o termo “instrução criminal”, para
processo penal.
Ou seja, a prisão preventiva é uma medida excepcional, que
deve ser usada em ultimo caso, e só será cabível, se preenchidos os
pressupostos e requisitos do art. 312 do CPP, devendo ser revogada se não
houverem motivos abarcados no referido artigo, justamente pelo fato de
que não se admite em nosso ordenamento, a execução antecipada da
pena. Pois, deve se levar em conta, que qualquer restrição à liberdade de
locomoção, fere a um direito fundamental do qual possui o indivíduo,
assim, devendo‐se evitar, por se tratar de um Estado Democrático de
Direito, onde os indivíduos possuem direitos e garantias que devem ser
asseguradas pelo Estado, na figura do juiz.
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Dessa forma, somente a comprovada autoria de um suposto
crime cometido por qualquer indivíduo, é o que fundamenta a
necessidade de se tomar tal medida cautelar. Ou melhor, não só na prisão
preventiva, como em qualquer outro tipo de prisão, pois estamos falando
de uma antecipação da pena.
Vilmar Pacheco leciona sobre a prisão preventiva, ao dizer:
“Entre os artigos 311 e 316 do Código de Processo Penal, o legislador
dispõe sobre a prisão preventiva que, da mesma natureza jurídica das
prisões em flagrante e temporária, é processual, provisória e
acautelatória, exigindo, para a privação da liberdade do agente, além do
decreto fundamentado pelo juiz os requisitos fundamentais do fumus
delicti comissi e periculum libertatis.”
Ao analisarmos outras legislações, podemos perceber um
caráter parcial e inquisitorial por parte do juiz, como é o caso da Lei
11.340/06, a famosa Lei Maria da Penha, que traz em seu artigo 20° a
seguinte redação: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução
criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de
ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação
da autoridade policia”.
Frente ao referido artigo e a nova redação do artigo 311do CPP,
percebe‐se que a Lei Maria da Penha não recepcionou a nova redação
trazida pela Lei 12.403, uma vez que, o artigo 20 da mencionada Lei, prevê
exatamente o contrário, permitindo que o juiz decrete a preventiva em
qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal. Ao
confrontarmos os dois dispositivos, percebemos que o artigo 20 da Lei
Maria da Penha, por ser bem mais recente, acabou recepcionando o
antigo texto trazido pelo artigo 311 do CPP, que hoje, com nova redação,
acabou por trazer este impasse na doutrina e na jurisprudência.
Diante da questão em tela, é necessário que se pergunte, a nova
redação do artigo 311 do CPP revogou o contido no artigo 20 da Lei Maria
da Penha? Prevalecerá a norma geral ou a específica? Como se dará sua
aplicabilidade?
A professora Alice Bianchini entende que:
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(...) não obstante ofender o sistema acusatório
(já que o juiz acaba por perder a necessária posição
equidistante), no momento da ponderação de
interesses, há que preponderar a norma de proteção
integral à mulher em situação de risco. (art.4°, LMP).
Tal posicionamento é respaldado pelas
estatísticas, as quais demonstram o elevadíssimo
índice de homicídios, dentre outras violências,
praticados por homens cuja vitima mulher mantinha
ou manteve cm ele uma relação íntima de afeto
(BIANCHINI, 2012).
Com respeito a jurista e doutrinadora Alice Bianchini, pensamos
de forma diferente ao discordarmos de tal posicionamento, chamando a
atenção de que tal mudança ainda é muito recente, e não há
jurisprudência a respeito. Discordamos, porque é perceptível no artigo 20
da Lei Maria da Penha uma violação ao sistema acusatório, onde o
magistrado age com total imparcialidade, deixando de lado o caráter
equidistante, bem como as garantias intrínsecas ao indivíduo, de forma a
abandonar os princípios norteadores do processo penal, os quais já foram
citados em outro momento. Sendo assim, acreditamos que a Lei Maria da
Penha foi revogada pela nova redação do art.311 do CPP, sendo ilegal a
decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado.
Concluímos que não há justificativa para tanto, pois, não se
permite uma punição excessiva, tampouco se permite dois dispositivos
que se contradizem, e possam vir a causar grandes debates e discussões
acerca da prisão preventiva frente a qual dispositivo prevalecerá. Vale
ressaltar que, a expressão adotada pelo referido artigo, ao autorizar o juiz
a decretar a prisão preventiva de oficio, vai de encontro a sistemática do
CPP, bem como, da Constituição Federal, sem contar que afronta o
sistema penal acusatório, podendo causar algumas arbitrariedades por
parte do Estado, na figura do juiz, referente ao direito de liberdade do
acusado, baseado nos princípio da inocência ou da não culpabilidade, pois
estamos falando de uma medida cautelar que deve ser observado em
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vários pontos, e só deverá ser usada em ultimo caso, podendo se revelar
um grande retrocesso no processo penal.
5 CONCLUSÃO
Ante o exposto no decorrer deste trabalho, conclui‐se que há
uma incompatibilidade entre a nossa Constituição Federal, e o nosso
Código de Processo Penal, uma vez que a primeira é baseada no modelo
de sistema penal acusatório, lastreada pelo Estado de Direito, que prever
direitos e garantias aos indivíduos, já o segundo, é baseado no modelo de
sistema penal inquisitório, pois em diversos dispositivos, inclusive no
referido artigo 311, percebe‐se a atuação do juiz como um verdadeiro
inquisidor, agindo como parte no processo, assumindo o condão de
acusar, processar e julgar, tratando o acusado como um objeto, ignorando
os princípios previstos na Constituição Federal, tais como o da publicidade,
presunção de inocência, da imparcialidade.
Não vivemos mais em tempos de inquisição, de ditadura, onde
as monarquias absolutistas ditavam as regras, fazemos parte de um
Estado Democrático de Direito, onde a nossa norma superior é a
Constituição Federal, e deve ser seguida por todos. Sendo assim, não se
admite mais atuações que remontem a história e traga este sistema
ultrapassado, defasado, para a nossa sociedade.
Não se pode admitir que o juiz atue como parte, com
parcialidade, sem observar os princípios e garantias constitucionais, de
forma a decretar de ofício uma medida de extrema cautela, como é a
prisão preventiva, indo de encontro a presunção de inocência do suposto
acusado, retirando‐lhe sua liberdade, jogando‐o ao cárcere, que em nosso
país é de péssima qualidade, pondo sua integridade física e psíquica em
risco, sem antes ter a certeza de tal acusação.
O legislador reformista trouxe algumas mudanças no instituto
da prisão preventiva, mas conservou seu caráter inquisitorial, uma vez
que, permite ao juiz atuar de ofício frente a uma medida que deve ser
analisada de forma sucinta. Uma vez que o juiz, ao verificar ao longo do
tramite do processo, encontra uma das hipóteses que ensejam a
decretação da preventiva, deve ouvir o Ministério Público ou o
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querelante. Esta atuação do juiz é mais apropriada ao modelo de sistema
penal acusatório, atendendo o previsto na Constituição Federal,
assegurando os direitos e garantias fundamentais como a imparcialidade.
O Direito deve se adaptar a sociedade, a sua evolução,
buscando sempre a justiça, mas de forma digna, assegurando aos
indivíduos os seus direitos de primeira geração, os quais gozam desde o
nascimento, como a vida e a liberdade. Pensar e refletir acerca das
arbitrariedades por parte do juiz já é um grande passo para a mudança, e
a sociedade clama por ela, sem ter que assistir a estagnação e retrocesso
por parte do Estado.
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INJUSTIÇA HÍDRICA: A ESCASSEZ DE ÁGUA E A ESTRUTURAÇÃO DE UMA NOVA
FACETA DA INJUSTIÇA AMBIENTAL
TAUÃ LIMA VERDAN RANGEL: Doutorando
vinculado ao Programa de Pós‐Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos
Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Especializando em
Práticas Processuais ‐ Processo Civil, Processo
Penal e Processo do Trabalho pelo Centro
Universitário São Camilo‐ES. Bacharel em
Direito pelo Centro Universitário São Camilo‐
ES. Produziu diversos artigos, voltados
principalmente para o Direito Penal, Direito
Constitucional, Direito Civil, Direito do
Consumidor, Direito Administrativo e Direito
Ambiental.
Resumo: Verifica‐se, sobretudo nas últimas décadas, o desenvolvimento de um
discurso pautado na preocupação com o esgotamento e exaurimento dos recursos
naturais, em especial aqueles dotados de valor econômico, a exemplo das matrizes
energéticas (petróleo). Em um cenário de achatamento da população, sobretudo
aquela considerada como vulnerável, condicionada em comunidades carentes e
bolsões de pobreza, diretamente afetada pelos passivos produzidos, diante das
ambições de desenvolvimento econômico, constrói‐se um ideário de justiça
ambiental, buscando, a partir de um crescimento que conjugue anseios econômicos
com preservação socioambiental, assegurar a conjunção de esforços a fim de
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minorar os efeitos a serem suportados. Justamente, nesta delicada questão, o
presente debruça‐se em analisar a questão da injustiça climática, potencializado
pelo discurso de desenvolvimento econômico que tende a polarizar a problemática
social, em busca pelo influxo de capitais na realidade local.
Palavras‐chaves: Desenvolvimento Econômico. Meio Ambiente Urbano. Injustiça
Ambiental. Injustiça Hídrica.
Sumário: 1 Considerações Iniciais; 2 O Espaço Urbano em uma Perspectiva
Ambiental: A Ambiência do Homem Contemporâneo em Análise; 3 O Fenômeno da
Industrialização como Elemento Agravador da Injustiça Ambiental: O Embate entre
o Desenvolvimento Econômico e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado; 4
Injustiça Hídrica: A escassez de água e a estruturação de uma nova faceta da
Injustiça Ambiental
1 Considerações Iniciais
No decorrer das últimas décadas, em especial a partir de 1980, os temas
associados à questão ambiental passaram a gozar de maior destaque no cenário
mundial, devido, em grande parte, com a confecção de tratados e diplomas
internacionais que enfatizaram a necessidade da mudança de pensamentos da
humanidade, orientado, maiormente, para a preservação do meio ambiente.
Concomitantemente, verifica‐se o fortalecimento de um discurso participativo de
comunidades e grupamentos sociais tradicionais nos processos decisórios.
Observa‐se, desta maneira, que foi conferido maior destaque ao fato de que a
proeminência dos temas ambientais foi içada ao status de problema global,
alcançado, em sua rubrica, não apenas a sociedade civil diretamente afetada, mas
também os meios de comunicação e os governos de diversas áreas do planeta. Tal
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cenário é facilmente verificável na conjunção de esforços, por partes de grande
parte dos países, para minorar os impactos ambientais decorrentes da emissão de
poluentes e os adiantados estágios de degradação de ecossistemas frágeis.
Nesse passo, a industrialização de pequenos e médios centros urbanos,
notadamente nos países subdesenvolvidos, encerra a dicotomia do almejado
desenvolvimento econômico, encarado como o refulgir de uma nova era de
prosperidade em realidades locais estagnadas e desprovidas de dinamicidade, e a
degradação ambiental, desencadeando verdadeira eco‐histeria nas comunidades e
empreendimentos diretamente afetados. Por vezes, o discurso desenvolvimentista
utilizado na instalação de indústrias objetiva, em relação à população diretamente
afetada, expor tão somente os aspectos positivos da alteração dos processos
ambientais, suprimindo as consequências, quando inexistente planejamento
prévio, socioambientais. Diante deste cenário, o presente, a partir do referencial
adotado, busca conjugar uma análise proveniente do entendimento da justiça
ambiental, colhendo das discussões propostas por Henri Acselrad, Selene
Herculano e José Augusto de Pádua, sobretudo, no que se refere à caracterização
de variáveis repetidas nos processos de instalação de empreendimento
econômicos, em especial a população diretamente afetada.
De igual modo, o presente socorre‐se do aporte doutrinário
apresentado pelo Direito Ambiental e pelo Direito Urbanístico, calcado nos
conceitos tradicionais e imprescindíveis para o fomento da discussão, utilizando,
para tanto, do discurso apresentado por Paulo Affonso Leme Machado, Paulo Bessa
Antunes Filho, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, José Afonso da Silva e Romeu Thomé.
Ora, os conflitos socioambientais, advindos do agravamento da injustiça ambiental
experimentada por comunidades, dá ensejo à discussão acerca do embate entre os
princípios constitucionais do desenvolvimento econômico e do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, ambos alçados à condição de elementos para
materialização da dignidade da pessoa humana.
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2 O espaço urbano em uma perspectiva ambiental: a ambiência do
homem contemporâneo em análise
Inicialmente, ao adotar como ponto inicial de análise o meio ambiente
e sua relação direta com o homem contemporâneo, necessário faz‐se esquadrinhar
a concessão jurídica apresentada pela Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981
(2013), que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e
mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Aludido diploma,
ancorado apenas em uma visão hermética, concebe o meio ambiente como um
conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Nesse primeiro momento, é
possível deixar em clara evidência que o tema é dotado de complexidade e
fragilidade, eis que dialoga uma sucessão de fatores distintos, os quais são
facilmente distorcidos e deteriorados devido à ação antrópica.
José Afonso da Silva (2009, p. 20), ao traçar definição acerca de meio
ambiente, descreve‐o como “a interação do conjunto de elementos naturais,
artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em
todas as suas formas”. Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2012, p. 77), por sua vez,
afirma que a concepção definidora de meio ambiente está pautada em um ideário
jurídico despido de determinação, cabendo, diante da situação concreta, promover
o preenchimento da lacuna apresentada pelo dispositivo legal supramencionado.
Trata‐se, com efeito, de tema revestido de maciça fluidez, eis que o meio ambiente
está diretamente associado ao ser humano, sofrendo os influxos, modificações e
impactos por ele proporcionados. Não é possível, ingenuamente, conceber, na
contemporaneidade, o meio ambiente apenas como uma floresta densa ou
ecossistemas com espécies animais e vegetais próprios de uma determinada região;
ao reverso, é imprescindível alinhar o entendimento da questão em debate com os
anseios apresentados pela sociedade contemporânea. Nesta linha de exposição, o
Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029/AM,
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já salientou, oportunamente, que:
[...] o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde
pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a
Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós
sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o
próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio
ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a
partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver
desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente
equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico,
porque salta da própria Constituição Federal. (BRASIL, 2013b).
Pelo excerto transcrito, denota‐se que a acepção ingênua do meio
ambiente, na condição estrita de apenas condensar recursos naturais, está
superada, em decorrência da dinamicidade da vida contemporânea, içado à
condição de tema dotado de complexidade e integrante do rol de elementos do
desenvolvimento do indivíduo. Tal fato decorre, sobremodo, do processo de
constitucionalização do meio ambiente no Brasil, concedendo a elevação de
normas e disposições legislativas que visam promover a proteção ambiental. Ao
lado disso, não é possível esquecer que os princípios e corolários que sustentam a
juridicidade do meio ambiente foram alçados a patamar de destaque, passando a
integrar núcleos sensíveis, dentre os quais as liberdades públicas e os direitos
fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas
constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do
meio ambiente” (THOMÉ, 2012, p. 116).
Diante do alargamento da concepção do meio ambiente, salta aos olhos
que se encontra alcançado por tal acepção o espaço urbano, considerado como a
ambiência do homem contemporâneo, o qual encerra as manifestações e
modificações propiciadas pela coletividade no habitat em que se encontra inserta.
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Trata‐se, doutrinariamente, do denominado meio ambiente artificial ou meio
ambiente humano, estando delimitado espaço urbano construído, consistente no
conjunto de edificações e congêneres, denominado, dentro desta sistemática, de
espaço urbano fechado, bem como pelos equipamentos públicos, nomeados de
espaço urbano aberto, como salienta Fiorillo (2012, p. 79). Extrai‐se, desse modo,
que o cenário contemporâneo, refletindo a dinamicidade e complexidade do ser
humano, passa a materializar verdadeiro habitat para o desenvolvimento do
indivíduo. Neste sentido, inclusive, Talden Farias descreve que:
O meio ambiente artificial é o construído ou alterado pelo ser
humano, sendo constituído pelos edifícios urbanos, que são os
espaços públicos fechados, e pelos equipamentos comunitários, que
são os espaços públicos abertos, como as ruas, as praças e as áreas
verdes. Embora esteja ligado diretamente ao conceito de cidade, o
conceito de meio ambiente artificial abarca também a zona rural,
referindo‐se simplesmente aos espaços habitáveis pelos seres
humanos, visto que neles os espaços naturais cedem lugar ou se
integram às edificações urbanas artificiais. (FARIAS, 2009, p. 07).
É possível, assim, caracterizar o meio ambiente artificial como fruto da
interferência da ação humana, ou seja, “aquele meio‐ambiente trabalhado,
alterado e modificado, em sua substância, pelo homem, é um meio‐ambiente
artificial” (BRITO, 2013). Neste cenário, o proeminente instrumento legislativo de
tutela do meio ambiente humano, em um plano genérico, está assentado na Lei Nº.
10.257, de 10 de Julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição
Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências,
conhecido como “Estatuto da Cidade”, afixando os regramentos e princípios
influenciadores da implementação da política urbana, de maneira que a cidade
extrapole sua feição de apenas um grupamento de indivíduos em um determinado
local, passando a desempenhar a função social. Fiorillo (2012, p. 467), ao tratar da
legislação ora mencionada, evidencia, oportunamente, que aquela “deu relevância
particular, no âmbito do planejamento municipal, tanto ao plano diretor (art. 4º, III,
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a, bem como arts. 39 a 42 do Estatuto) como à disciplina do parcelamento, uso e
ocupação do solo”.
Com efeito, um dos objetivos da política de desenvolvimento urbano
previsto no artigo 182 da Constituição Federal, são as funções sociais da cidade, que
se realizam quando se consegue propiciar ao cidadão qualidade de vida, com
concretização dos direitos fundamentais, e em consonância com o que disciplina o
artigo 225 da Carta Magna, que garante a todos o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. E as funções sociais da cidade se concretizam quando
o Poder Público consegue dispensar ao cidadão o direito à habitação, à livre
circulação, ao lazer e ao trabalho. Ora, “dado ao conteúdo pertinente ao meio
ambiente artificial, este em muito se relaciona à dinâmica das cidades. Desse modo,
não há como desvinculá‐lo do conceito de direito à sadia qualidade de vida”
(FIORILLO, 2012, p. 549), tal como o direito à satisfação dos valores da dignidade
humana e da própria vida. A questão em discussão já sofreu, inclusive, construção
jurisprudencial, sendo possível, apenas a título de ilustração, transcrever:
[...] Praças, jardins, parques e bulevares públicos urbanos
constituem uma das mais expressivas manifestações do processo
civilizatório, porquanto encarnam o ideal de qualidade de vida da
cidade, realidade físico‐cultural refinada no decorrer de longo
processo histórico em que a urbe se viu transformada, de
amontoado caótico de pessoas e construções toscas adensadas, em
ambiente de convivência que se pretende banhado pelo saudável,
belo e aprazível. 3. Tais espaços públicos são, modernamente, objeto
de disciplina pelo planejamento urbano, nos termos do art. 2º, IV, da
Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), e concorrem, entre seus vários
benefícios supraindividuais e intangíveis, para dissolver ou amenizar
diferenças que separam os seres humanos, na esteira da generosa
acessibilidade que lhes é própria. Por isso mesmo, fortalecem o
sentimento de comunidade, mitigam o egoísmo e o exclusivismo do
domínio privado e viabilizam nobres aspirações democráticas, de
paridade e igualdade, já que neles convivem os multifacetários
matizes da população: abertos a todos e compartilhados por todos,
mesmo os "indesejáveis", sem discriminação de classe, raça, gênero,
credo ou moda. 4. Em vez de resíduo, mancha ou zona morta ‐
bolsões vazios e inúteis, verdadeiras pedras no caminho da plena e
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absoluta explorabilidade imobiliária, a estorvarem aquilo que seria o
destino inevitável do adensamento ‐, os espaços públicos urbanos
cumprem, muito ao contrário, relevantes funções de caráter social
(recreação cultural e esportiva), político (palco de manifestações e
protestos populares), estético (embelezamento da paisagem
artificial e natural), sanitário (ilhas de tranquilidade, de simples
contemplação ou de escape da algazarra de multidões de gente e
veículos) e ecológico (refúgio para a biodiversidade local). [...].
(Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 1.135.807/RS/
Relator: Ministro Herman Benjamin/ Julgado em 15.04.2010/
Publicado no DJe em 08.03.2012) (BRASIL, 2013a).
O meio ambiente humano passa a ser dotado de uma ordem
urbanística, consistente no conjunto de normas, dotadas de ordem pública e de
interesse social, que passa a regular o uso da propriedade urbana em prol da
coletividade, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem‐estar dos cidadãos.
“A ordem urbanística deve significar a institucionalização do justo na cidade. Não é
uma ‘ordem urbanística’ como resultado da opressão ou da ação corruptora de
latifundiários e especuladores imobiliários, porque aí seria a desordem urbanística
gerada pela injustiça” (MACHADO, 2013, p. 446). Nesta perspectiva, está‐se diante
de um nível de planejamento que objetiva estabelecer patamares mínimos de
organização do uso dos diversos fragmentos de um determinado recorte espacial,
atentando‐se para as potencialidades e capacidades inerentes aos sistemas
ambientais desse espaço, sobremodo na ambiência urbana que, devido à
complexidade a população, apresenta interseções peculiares. Ao lado disso, não é
possível deixar de destacar que os ambiente urbanos tendem a ser diretamente
influenciados e modificados pela realidade social.
Trata‐se de uma significação em busca por uma ordem na utilização do
espaço sob planejamento, de maneira que assegure a integridade ambiental, a
manutenção dos serviços ambientais, a reprodução de seus recursos e “a
manutenção dentro de uma trajetória evolutiva ‘estável’ (o que significa não criar
um desequilíbrio irreversível que leve à degradação da paisagem). Enfim, é a busca
pela sustentabilidade na utilização do espaço” (VICENS, 2012, p. 197). Ultrapassa‐
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se, diante do painel pintado, a concepção de que os centros urbanos, por sua
essência, são apenas aglomerados de indivíduos, por vezes, estratificados em
decorrência de sua condição social e econômica. Absolutamente, ainda que esteja
em um plano, corriqueiramente, teórico, é possível observar que a preocupação em
torno das cidades foi alçada à condição de desenvolvimento de seus integrantes,
passa a sofrer forte discussão, em especial quando a temática está umbilicalmente
atrelada aos processos de remoção de comunidades ou, ainda, alteração do cenário
tradicional, a fim de comportar os empreendimentos industriais.
3 O fenômeno da industrialização como elemento agravador da
Injustiça Ambiental: o embate entre o desenvolvimento econômico e
o meio ambiente ecologicamente equilibrado
O modelo de desenvolvimento liberal, estruturado no de individualismo
econômico e mercado, consistindo na confluência de articulações entre a
propriedade privada, iniciativa econômica priva e mercada, passa a apresentar,
ainda na década de 1960, os primeiros sinais da problemática socioambiental. “Esse
modelo de crescimento orientado por objetivos materiais e econômico puramente
individualista, regido por regras jurídicas de natureza privada, dissociou a natureza
da economia, alheando desta, os efeitos devastadores dos princípios econômicos
na natureza” (FRAGA, 2007, p. 02). Entre o final da década de 1960 até 1980, o
discurso, envolvendo a questão ambiental, explicitava a preocupação com o
esgotamento dos recursos naturais que eram dotados de maior interesse
econômico, sobretudo no que se referia à exploração do petróleo. Verifica‐se, neste
primeiro contato, que a questão do meio ambiente estava cingida à preocupação
com a sobrevivência da espécie humana, numa aspecto puramente econômico.
Diante da possibilidade do exaurimento dos recursos naturais dotados
de aspecto econômico relevante, é possível observar uma crise civilizatória advinda
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não apenas da escassez daqueles, à proporção que são degradados, mas também
em decorrência do modelo econômico adotado, o qual, por seu aspecto,
desencadeou um desequilíbrio ambiental maciço colocando em risco a
sobrevivência da espécie humana, assim como, na trilha dos efeitos produzidos, o
aumento do desemprego pela mecanização dos meios de produção, a miséria e a
marginalidade social. O processo predatório ambiental potencializa um cenário
caótico urbano, verificado, sobretudo, nos grandes centros, com formação de
comunidades carentes e favelas, reduto da população marginalizada, constituindo
verdadeiro bolsão de pobreza.
Conforme Lester R. Brown (1983, p. 05), as ameaças à civilização são
provocadas pela erosão do solo a deterioração dos sistemas biológicos e
esgotamento das reservar petrolíferas, além do comprometimento de elementos
essenciais à existência humana, como, por exemplo, acesso à água potável.
Aludidas ameaças desencadeiam tensões ambientais que se concretizam em crises
econômicas, causadas pela dependência de alguns países dos produtos alimentícios
oriundos de outros países, bem como das fontes de energia produzidas pelos
combustíveis fósseis. É possível, neste cenário, verificar que a crise socioambiental,
surgida nos Estados Unidos, a partir da década de 1960, devido à mecanização dos
meios de produção e a dependência de recursos naturais, em especial matrizes
energéticas (petróleo), de outros países, forneceu o insumo carecido para a
construção da justiça ambiental, advinda da criatividade dos movimentos sociais
forjados pela luta da população afrodescendente que protestava contra a
discriminação causada pela maior exposição desta população aos lixos químicos,
radioativos e indústrias geradoras de poluentes. Selene Herculano, ao abordar a
definição do tema, coloca em destaque:
Por Justiça Ambiental entenda‐se o conjunto de princípios que
asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos,
raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das
consequências ambientais negativas de operações econômicas, de
políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como
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resultantes da ausência ou omissão de tais políticas [...]
Complementarmente, entende‐se por Injustiça Ambiental o
mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga
dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de
trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais
discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis.
(HERCULANO, 2002, p. 03).
Pela moldura ofertada pela justiça ambiental, infere‐se que nenhum
grupo de pessoas, seja em decorrência de sua condição étnica, raciais ou de classe,
suporte ma parcela desproporcional de degradação do espaço coletivo.
“Complementarmente, entende‐se por injustiça ambiental a condição de existência
coletiva própria a sociedade desiguais onde operam mecanismos sociopolíticos que
destinam a maior carga dos danos ambientais” (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA,
2004, p. 09). Diante do exposto, o termo justiça ambiental afigura‐se como uma
definição aglutinadora e mobilizadora, eis que permite a integração de dimensões
ambiental, social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento,
corriqueiramente dissociados nos discursos e nas práticas. “Tal conceito contribui
para reverter a fragmentação e o isolamento de vários movimentos sociais frente
ao processo de globalização e reestruturação produtiva que provoca perda de
soberania, desemprego, precarização do trabalho e fragilização do movimento
sindical e social como todo” (ACSELRAD; HERCULANO, PÁDUA, 2004, p. 18).
Neste quadrante, mais que uma expressão do campo do direito, justiça
ambiental assume verdadeira feição de reflexão, mobilização e bandeira de luta de
diversos sujeito e entidades, ais como associações de moradores, sindicatos, grupos
direta e indiretamente afetados por diversos riscos, ambientalistas e cientistas.
Joan Martínez Alier (2007, p. 35) colocou em destaque que, “até muito
recentemente, a justiça ambiental como um movimento organizado permaneceu
limitado ao seu país de origem”, conquanto o ecologismo popular, também
denominado de ecologismo dos pobres, constituam denominações aplicadas a
movimentos populares característicos do Terceiro Mundo que se rebela contra os
impactos ambientais que ameaçam a população mais carente, que constitui a
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ampla maioria do contingente populacional em muitos países. É aspecto tradicional
dessas movimentações populares, a base camponesa cujos campos ou terras
destinadas para pastos têm sido destruídos pela mineração ou pedreiras;
movimentos de pescadores artesanais contra os barcos de alta tecnologia ou outras
foram de pesca industrial que impacta diretamente o ambiente marinho em que
desenvolve a atividade; e, ainda, por movimentos contrários às minas e fábricas por
parte de comunidades diretamente atingidas pela contaminação do ar ou que
vivem rio abaixo das instalações industriais poluidoras.
Ao lado disso, em realidades nas quais as desigualdades alcançam maior
destaque, a exemplo do Brasil e seu cenário social multifacetado, dotado de
contradições e antagonismos bem peculiares, a universalização da temática de
movimentos sustentados pela busca da justiça ambiental alcança vulto ainda maior,
assumindo outras finalidades além das relacionadas essencialmente ao meio
ambiente, passando a configurar os anseios da população diretamente afetada,
revelando‐se, por vezes, ao pavilhão que busca minorar ou contornar um histórico
de desigualdade e antagonismo que se arrasta culturalmente. Trata‐se, pois, de um
discurso pautado na denúncia de um quadro de robusta injustiça social, fomentado
pela desigual distribuição do poder e da riqueza e pela apropriação, por parte das
classes sociais mais abastadas, do território e dos recursos naturais, renegando, à
margem da sociedade, grupamentos sociais mais carentes, lançando‐os em bolsões
de pobreza. É imperioso explicitar que os aspectos econômicos apresentam‐se, no
cenário nacional, como a flâmula a ser observada, condicionando questões
socioambientais, dotadas de maior densidade, a um patamar secundário. Selene
Herculano coloca em destaque que:
A temática da Justiça Ambiental nos interessa em razão das
extremas desigualdades da sociedade brasileira. No Brasil, o país das
grandes injustiças, o tema da justiça ambiental é ainda incipiente e
de difícil compreensão, pois a primeira suposição é de que se trate
de alguma vara especializada em disputas diversas sobre o meio
ambiente. Os casso de exposição a riscos químicos são pouco
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conhecidos e divulgados, [...], tendendo a se tornarem problemas
crônicos, sem solução. Acrescente‐se também que, dado o nosso
amplo leque de agudas desigualdades sociais, a exposição desigual
aos riscos químicos fica aparentemente obscurecida e dissimulada
pela extrema pobreza e pelas péssimas condições gerais de vida a
ela associadas. Assim, ironicamente, as gigantescas injustiças sociais
brasileiras encobrem e naturalizam a exposição desigual à poluição
e o ônus desigual dos custos do desenvolvimento. (HERCULANO,
2008, P. 05).
A partir das ponderações articuladas, verifica‐se, no território nacional,
o aparente embate entre a busca pelo desenvolvimento econômico e o meio
ambiente ecologicamente equilibrado torna‐se palpável, em especial quando a
questão orbita em torno dos processos de industrialização, notadamente nos
pequenos e médios centros urbanos, trazendo consigo a promessa de
desenvolvimento. Neste aspecto, a acepção de “desenvolvimento” traz consigo um
caráter mítico que povoa o imaginário comum, especialmente quando o foco está
assentado na alteração da mudança social, decorrente da instalação de
empreendimentos de médio e grande porte, promovendo a dinamização da
economia local, aumento na arrecadação de impostos pelo Município em que será
instalada e abertura de postos de trabalho.
“O grande atrativo aos centros urbanos faz com que o crescimento se
dê de forma desordenada, gerando diversos problemas cuja solução passa pela
implementação de políticas públicas, necessariamente antecedidas de um
planejamento” (ARAÚJO JÚNIOR, 2008, p. 239). Constata‐se, com clareza, que o
modelo econômico que orienta o escalonamento de interesses no cenário nacional,
sobrepuja, de maneira maciça, valores sociais, desencadeando um sucedâneo de
formas de violência social, degradação ambiental e aviltamento ao indivíduo, na
condição de ser dotado de dignidade e inúmeras potencialidades a serem
desenvolvidas. Todavia, não é mais possível examinar as propostas de
desenvolvimento econômico desprovida de cautela, dispensando ao assunto um
olhar crítico e alinhado com elementos sólidos de convicção, notadamente no que
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se refere às consequências geradas para as populações tradicionais
corriqueiramente atingidas e sacrificadas em nome do desenvolvimento
econômico.
Não é mais possível corroborar com a ideia de desenvolvimento sem
submetê‐la a uma crítica efetiva, tanto no que concerne aos seus
modos objetivos de realização, isto é, a relação entre aqueles
residentes nos locais onde são implantados os projetos e os
implementadores das redes do campo do desenvolvimento; quanto
no que concerne às representações sociais que conformam o
desenvolvimento como um tipo de ideologia e utopia em constante
expansão, neste sentido um ideal incontestável [...] O
desenvolvimento – ou essa crença da qual não se consegue fugir ‐
carrega também o seu oposto, as formas de organização sociais que,
muitas vezes vulneráveis ao processo, são impactadas durante a sua
expansão. É justamente pensando nos atores sociais (KNOX;
TRIGUERO, 2011, p. 02).
É imperioso conferir, a partir de uma ótica alicerçada nos conceitos e
aportes proporcionados pela justiça ambiental, uma ressignificação do conceito de
desenvolvimento, alinhando‐o diretamente à questão ambiental, de maneira a
superar o aspecto eminentemente econômico do tema, mas também dispensando
uma abordagem socioambiental ao assunto. A reestruturação da questão “resulta
de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas
sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social”
(ACSELRAD, 2010, p. 108). Salta aos olhos que o processo de reconstrução de
significado está intimamente atrelado a uma reconstituição dos espaços em que os
embates sociais florescem em prol da construção de futuros possíveis. Justamente,
neste espaço a temática ambiental passa a ganhar maior visibilidade, encontrado
arrimo em assuntos sociais do emprego e da renda.
Tal fato deriva da premissa que o acentuado grau de desigualdades e
de injustiças socioeconômicas, tal como a substancializada política de omissão e
negligencia no atendimento geral às necessidades das classes populares, a questão
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envolvendo discussões acerca da (in)justiça ambiental deve compreender múltiplos
aspectos, dentre os quais as carências de saneamento ambiental no meio urbano,
a degradação das terras usadas para a promoção assentamentos provenientes da
reforma agrária, no meio rural. De igual modo, é imperioso incluir na pauta de
discussão o tema, que tem se tornado recorrente, das populações de pequenos e
médios centros urbanos diretamente afetados pelo recente fenômeno de
industrialização, sendo, por vezes, objeto da política de remoção e reurbanização.
Ora, é crucial reconhecer que os moradores dos subúrbios e periferias urbanas, nas
quais os passivos socioambientais tendem a ser agravados, em razão do prévio
planejamento para dialogar o desenvolvimento econômico e o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
É mister que haja uma ponderações de interesses, a fim de promover o
desenvolvimento sustentável, conversando os interesses econômicos e a
necessidades das populações afetadas de terem acesso ao meio ambiente
preservado ou, ainda, minimamente degradado, de modo a desenvolverem‐se,
alcançando, em fim último, o utópico, porém sempre recorrido, conceito
constitucional de dignidade humana. O sedimento que estrutura o ideário de
desenvolvimento sustentável, como Paulo Bessa Antunes (2012, p. 17) anota, busca
estabelecer uma conciliação a conservação dos recursos ambientais e o
desenvolvimento econômico, assegurando‐se atingir patamares mais dignos e
humanos para a população diretamente afetada pelos passivos socioambientais.
Paulo Affonso Leme Machado destaca, ao esquadrinhar o conceito de
desenvolvimento sustentável, que:
O antagonismo dos termos – desenvolvimento e sustentabilidade –
aparece muitas vezes, e não pode ser escondido e nem objeto de
silêncio por parte dos especialistas que atuem no exame de
programas, planos e projetos de empreendimentos. De longa data,
os aspectos ambientais foram desatendidos nos processos de
decisões, dando‐se um peso muito maior aos aspectos econômicos.
A harmonização dos interesses em jogo não pode ser feita são preço
da desvalorização do meio ambiente ou da desconsideração de
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fatores que possibilitam o equilíbrio ambiental (MACHADO, 2013, p.
74).
De outro modo, denota‐se que o fenômeno de industrialização, em
especial atividades mineradoras e petrolíferas, nos pequenos e médios centros
urbanos tem apresentado um discurso pautado no desenvolvimento. Trata‐se, com
efeito, de uma panaceia, na qual a possibilidade de injeção de capital na realidade
local, proveniente da ampliação do aumento de arrecadação de tributos, tal como
a disfarçada promessa de geração de postos de emprego e dinamização da
economia, tem afigurado como importante pilar para o apoio de tais processos. “É
assim que a força econômica das grandes corporações transformou‐se em força
política – posto que eles praticamente habilitaram‐se a ditar a configuração das
políticas urbanas, ambientais e sociais” (ACSELRAD, 2006, p. 31), obtendo o
elastecimento das normas com o argumento de sua suposta capacidade de gerar
emprego e receitas públicas.
Neste aspecto, ao suprimir variáveis socioambientais, em especial a
remoção de populações para comportar a instalação de empreendimentos
industriais, tende a agravar, ainda mais, o quadro delicado de antagonismos sociais,
nos quais a vulnerabilidade das populações diretamente afetadas agrava o cenário
de injustiça ambiental. A população, sobretudo aquela colocada à margem da
sociedade, constituinte das comunidades carentes e favelas que materializam os
bolsões de pobreza dos centros urbanos, é desconsiderada pela política econômica,
alicerçada na atração do capital que, utilizando sua capacidade de escolher os locais
preferenciais para a instalação de seus investimentos, forçando as populações
diretamente afetadas a conformar‐se com os riscos socioambientais produzidos
pelo empreendimento instalado na proximidade de suas residências, alterando, de
maneira maciça, o cenário existente. Tal fato decorre, corriqueiramente, da
ausência das mencionadas populações de se retirarem do local ou “são levadas a
um deslocamento forçado, quando se encontram instaladas em ambientes
favoráveis aos investimentos” (FRAGA, 2007, p.08).
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A atuação das empresas é subsidiada pela ação do governo, no sentido
de apresentar ações e conjugação esforços para o denominado desenvolvimento
sustentável, agindo sob o argumento do mercado, objetivando promover ganhos
de eficiência e ativar mercados, ambicionando evitar o desperdício de matéria e
energia. Concretamente, a lógica em destaque não prospera, mas sim padece
diante de um cenário no qual, devido à industrialização e instalação de
empreendimentos, sem o prévio planejamento, há o agravamento da injustiça
ambiental, em especial em locais nos quais a vulnerabilidade da população afetada
é patente, havendo o claro sacrifício daquela em prol do desenvolvimento local. “A
injustiça e a discriminação, portanto, aparecem na apropriação elitista do território
e dos recursos naturais, na concentração dos benefícios usufruídos do meio
ambiente e exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do
desenvolvimento” (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 10).
4 Injustiça Hídrica: A escassez de água e a estruturação de uma nova
faceta da Injustiça Ambiental
Diante dos conceitos e aporte apresentados, é forçoso reconhecer que,
em um cenário de forte globalização, industrialização pungente e interferência
robusta no meio ambiente, sobretudo em decorrência das alterações climáticas
experimentadas na última década, a água doce tornou‐se bem precioso para a
manutenção da vida humana. Trata‐se de elemento essencial para a satisfação das
necessidades humanas básicas, a saúde, a produção de alimentos, a energia e a
manutenção dos ecossistemas regionais e mundiais. Ora, neste aspecto há que se
sublinhar que é cogente a necessidade de uma mudança de ótica acerca da
temática, porquanto o futuro da espécie humana e de muitas outras espécies fica
comprometido, exceto se houver uma melhora significativa na administração dos
recursos hídricos terrestres. Nesta toada, a situação vivenciada no que atina à
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escassez de água potável inaugura uma nova faceta da injustiça ambiental, a saber:
injustiça hídrica, influenciando diretamente para a limitação de fatores para o
desenvolvimento socioeconômico de muitas regiões.
Neste aspecto, cuida apontar que a ausência ou contaminação da água
influencia para a redução dos espaços de vida e ocasiona, além de imensos custos
humanos, uma perda, em âmbito global, de produtividade social. “A competição de
usos pela agricultura, geração de energia, indústria e o abastecimento humano tem
gerado conflitos geopolíticos e socioambientais e afetado diretamente grande
parte da população da Terra” (CASTRO; SCARIOT, 2008, p. 01). Mais de 2,6 bilhões
de pessoas não dispõem de saneamento básico e mais de um bilhão permanece a
utilizar fontes de água improprias para o consumo. Ao lado disso, há que
reconhecer que a injustiça hídrica passa a se manifestar na disponibilidade em
qualidade e quantidade de água que impacta os meios de vida das populações mais
pobres, produzindo efeitos em suas saúdes e vulnerabilidades. Igualmente, as
consequências são percebidas no meio ambiente, na capacidade dos ecossistemas
de fornecer serviços ambientais e a probabilidade de desastres ambientais.
Em todo o mundo, a falta de medidas sanitárias e de tratamento de
esgotos polui rios e lagos; lençóis freáticos são rapidamente
exauridos e contaminados por métodos de exploração inadequados;
águas superficiais são superexploradas pela irrigação e poluídas por
agrotóxicos; populações de peixes são sobre‐exploradas, áreas
úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores de águas são
drenados, canalizados, represados e desviados sem planejamento.
Os estoques de água doce estão sendo intensamente diminuídos
pelo despejo diário de 2 milhões de toneladas de poluentes (dejetos
humanos, lixo, venenos e muitos outros efluentes agrícolas e
industriais) nos rios e lagos. A salinidade, assim como a
contaminação por arsênico, fluoretos e outras toxinas, ameaçam o
fornecimento de água potável em muitas regiões do mundo
(CASTRO; SCARIOT, 2008, p. 02).
Salta aos olhos, diante desse cenário, que uma das consequências mais
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perversas deste mau uso é a exclusão hídrica. Atualmente, apenas metade da
população das nações em desenvolvimento tem acesso seguro à água potável. Mais
que isso, diante do desenvolvimento industrial, da degradação ambiental e das
alterações climáticas advindas da ação antrópica, conjugado com a ausência de
conscientização dos países acerca da temática, a escassez de água aumentará
significativamente nos próximos anos, impulsionado, sobremodo, pela elevação do
uso per capita daquela. Com efeito, o mapa 01 ilustra, com pertinência, as
ponderações aventadas até o momento, porquanto, em uma simples análise,
denota‐se que a escassez hídrica, quer seja econômica, quer seja física, tende a
estar concentrada nos países em desenvolvimento. Isto é, as populações
vulneráveis dos países em desenvolvimento suportarão os encargos e passivos
advindos da industrialização, da degradação ambiental e do comprometimento das
reservas hídricas para atendimento do mercado global.
Mapa 1. Mapa da Injustiça Hídrica (acesso à água potável). Disponível em:
<http://olharecologico.blogspot.com.br>. Acesso em 13 dez. 2015.
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Diante das ponderações apresentadas, prima sublinhar que o cenário
de escassez provocado pela degradação e pela distribuição irregular tem o condão
de desencadear conflitos, seja dentro dos próprios países ou entre nações.
Historicamente, controlar o uso da água dos rios fez com que algumas civilizações
se utilizassem disso como forma de exercer poder sobre outros povos e regiões
geográficas. Contemporaneamente, percebe‐se que o estoque de água é
grandemente desigual, vez que a Ásia, concentrando cerca de 60% da população
mundial, conta apenas com 36% da água doce mundial; além disso, as disparidades
continuarão a crescer, sobretudo fomentado pela degradação ambiental e
alterações climáticas advindas da interferência e poluição causadas pelo ser
humano. Com efeito, há que se reconhecer que a injustiça hídrica traz à tona, mais
uma vez, o sacrifício da população mais vulnerável em prol do desenvolvimento
econômico.
5 Comentários Finais
Ainda incipiente, a discussão consciente dos processos de
industrialização e instalação de empreendimentos econômicos com potencial
poluidor elevado, à luz de uma moldura caracterizada pela justiça ambiental, faz‐se
necessária. Em realidades nas quais as desigualdades alcançam maior destaque, a
exemplo do Brasil e seu cenário social multifacetado, dotado de contradições e
antagonismos bem caracterizadores, a universalização da temática de movimentos
sustentados pela busca da justiça ambiental alcança vulto ainda maior, assumindo
outras finalidades além das relacionadas essencialmente ao meio ambiente,
sobretudo com o agravamento e acentuação do racismo ambiental, estratificando
aspectos históricos e mazelas sociais que são polarizadas e fomentadas pela busca
do desenvolvimento econômico.
Ao lado disso, em um território dotado de uma intrincada e complexa
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realidade social, na qual a segregação advinda da constituição de populações
carentes, renegadas à margem da sociedade, formando bolsões de pobreza, é algo
cada vez mais corriqueiro, salta aos olhos que o agravamento da injustiça social é
uma realidade tangível, fruto da concentração histórica de renda e a suplantação
de um contingente populacional robusto, atraído por promessas de
desenvolvimento econômico, por meio da geração de postos de emprego e o
aumento na arrecadação de tributos. Sobretudo nas áreas urbanas mais frágeis,
despidas de planejamento urbano, as quais passam a ser ocupadas
desordenadamente por aqueles atraídos pela esperança de melhoria nas condições
sociais vivenciadas.
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