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2012 Marco Antonio M Da Cruz
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
CURSO DE MESTRADO
MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ
USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO
NAS PRAAS DE SO LUS DO MARANHO
So Lus
2011
MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ
USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO
NAS PRAAS DE SO LUS DO MARANHO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Cincias Sociais da Universidade Federal do
Maranho, para a obteno do Ttulo de Mestre em
Cincias Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller
.
So Lus
2011
CRUZ, Marco Antnio Martins da.
Usos e apropriaes sociais do espao pblico nas praas de So Lus do
Maranho/Marco Antnio Martins da Cruz. So Lus, 2011
140f.
Impresso por computador (fotocpia).
Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Maranho, Programa
de Ps-Graduao em Cincias Sociais, 2011.
1. 1. Praas pblicas So LusMA Interao social 2. Espao pblico
Uso I. Ttulo
CDU 316.4.063.3:711.61 (812.1)
MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ
USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS PRAAS DE SO
LUS DO MARANHO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Cincias Sociais da Universidade Federal do
Maranho, para a obteno do Ttulo de Mestre em
Cincias Sociais.
Aprovada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller (Orientador)
Doutor em Cincias Humanas (Sociologia)
Universidade Federal do Maranho
______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Frederico Lago Burnett
Doutor em Arquitetura e Urbanismo
Universidade Estadual do Maranho
______________________________________________
Prof. Dr. Jos Odval Alcntara Jr
Doutor em Cincias Sociais
Universidade Federal do Maranho
A Maria Lcia, sempre companheira, pelo
firme apoio e compreenso, sobretudo nos
momentos de afastamento de seu convvio.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela enigmtica ddiva da vida.
Aos meus pais in memoriam Gilberto Martins da Cruz e Dria do Carmo Mendes
Guimares da Cruz, pelo eterno carinho, base na criao e perseverana no ensino da
responsabilidade para com os afazeres dirios.
minha esposa Maria Lcia Soares da Cruz, pelo seguro apoio e compreenso
nos momentos de afastamento para a redao deste estudo.
Aos meus filhos Allan Kssio Beckman Soares da Cruz, Ricardo Bruno Beckman
Soares da Cruz, Deborah Duane Beckman Soares da Cruz e Jean Renan Beckman Soares da
Cruz, pela colaborao na pesquisa com a tabulao dos resultados.
Aos meus irmos Paulo Marcelo Martins da Cruz, Antnio Carlos Martins da Cruz
e Mrcia Valria Martins da Cruz, pela torcida.
instituio de fomento Fundao de Amparo Pesquisa e ao Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico do Maranho (FAPEMA), pelo incentivo com a concesso de apoio
financeiro, na forma de Auxilio Taxa de Bancada, como forma de apoiar a execuo desse
projeto de mestrado.
Ao meu orientador, Professor Doutor Paulo Fernandes Keller, pela pronta ateno
e orientao segura no percurso de pesquisa.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFMA,
em especial a Igor Gastal Grill, Marcelo Domingos Sampaio Carneiro, Elizabeth Maria
Beserra Coelho, Eliana Tavares dos Reis, Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, Sergio
Figueiredo Ferretti, que lecionaram as disciplinas cursadas, contribuindo em parte para a
elaborao desta dissertao.
A Mary Lourdes Gonzaga Costa, secretria do PPGCS, pela permanente ateno.
A Rosana Santos Pinheiro, auxiliar da Secretaria do PPGCS, pelo bom
atendimento.A Soraya Cristina Barbosa Carvalho, secretria da Revista Ps-Cincias Sociais,
pela garantia na comunicao das informaes do Programa.
A todos os amigos e colegas de turma do Mestrado pelos momentos de
convivncia nesses dois anos de muitas aprendizagens.
A todos, muito obrigado.
O espao no uma dimenso vazia ao longo
da qual agrupamentos sociais vo sendo
estruturados, mas deve ser considerado em
funo do seu envolvimento na constituio de
sistemas de interao.
(Anthony Giddens)
RESUMO
Usos e apropriaes sociais do espao pblico nas praas de So Lus do Maranho compe-se
de um estudo sobre as prticas sociais de usos atribudos pelos citadinos ao espao social
pblico contemporneo da cidade. Compara-se o transcurso das condies sociais de usos,
apropriaes e interaes nas praas pblicas e o processo de construo de sociabilidades no
cotidiano por indivduos e grupos, enquanto habitantes de diferentes territrios, regies e
bairros da cidade. So discutidos em uma perspectiva interacionista os conceitos de espao e
lugar onde indivduos e grupos estabelecem aes, relaes e interaes sociais. Descreve-se o
processo histrico de transformaes urbanas de So Lus, com seus reflexos nas mudanas e
permanncias na estrutura da cidade e configuraes sociais nas praas. Estudam-se as
articulaes individuais e coletivas na composio do espao social. Observa-se como a
proximidade e o distanciamento possibilitam a construo de fronteiras sociosimblicas entre
indivduos e grupos. Para compreender os usos, as apropriaes e as interaes sociais no
espao pblico so estudados os casos de trs praas da cidade: Praa Gonalves Dias, Praa
da Ressurreio e Praa do Conjunto dos Ips. Por meio de observao direta e entrevistas so
identificados e examinados os procedimentos interacionais que permitem a indivduos e
grupos estabelecer arranjos sociais direcionados aos usos e apropriaes sociais do espao
pblico nas praas. Evidenciam-se, assim, as dinmicas sociais dos rituais decorrentes das
sociabilidades cotidianas, que caracterizam modalidades e estratgias de convvio na cidade.
Palavras-chave: Uso. Apropriao. Espao. Pblico. Praa. Interao.
ABSTRACT
Uses and social appropriation of public space in the squares of So Lus do Maranho is
composed of a study on the social practices of uses attributed by city dwellers to the
contemporary social space of the city. It compares the course of the social uses, appropriations
and interactions in public places and the construction of sociability in everyday life by
individuals and groups, as inhabitants of different territories, regions and neighborhoods. The
concepts of space and place where individuals and groups establish actions, relationships and
social interactions are discussed in an interactionist perspective. It is described the historical
process of urban transformation of So Lus, with its reflections on the changes and
continuities in the structure of the city and social settings in the squares. It is studied the
collective and individual joints in the composition of social space. It notes how the proximity
and distance allow the construction of socio symbolic boundaries between individuals and
groups. In order to understand the uses, appropriations and social interactions in public space
are studied the cases of three squares of the city: Gonalves Dias Square, Ressurreio Square,
and Conjunto dos Ips Square. Through direct observation and interviews are identified and
examined the interactional procedures that allow individuals and groups establish social
arrangements directed to the social uses and appropriations of public space in squares. Became
evident, therefore, the social dynamics of everyday rituals derived from sociability, featuring
arrangements and strategies of living in the city.
Keywords: Use. Appropriation. Space. Public. Square. Interaction.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Mapa de So Lus com a localizao das praas pesquisadas ............................. 94
Figura 2 Mapa do Centro de So Lus com a localizao da Praa Gonalves Dias ......... 95
Figura 3 Vista parcial da Praa Gonalves Dias................................................................. 98
Figura 4 Fotografia de satlite da Praa Gonalves Dias ................................................... 99
Figura 5 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa Gonalves Dias ................................ 105
Figura 6 Mapa com a localizao Praa da Ressurreio ................................................... 109
Figura 7 Fotografia de satlite da Praa da Ressurreio ................................................... 110
Figura 8 Vista parcial da Praa da Ressurreio ................................................................ 112
Figura 9 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa da Ressurreio................................ 115
Figura 10 Mapa com a localizao da Praa do Conjunto dos Ips ................................... 117
Figura 11 Fotografia de satlite da Praa do Conjunto dos Ips ........................................ 119
Figura 12 Vista parcial da Praa do Conjunto dos Ips ...................................................... 121
Figura 13 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa do Conjunto dos Ips ..................... 124
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Evoluo Demogrfica de So Lus (1612 1820) ............................................... 65
Tabela 2 Evoluo Demogrfica de So Lus (1872 2010) ............................................... 69
Tabela 3 Evoluo Demogrfica de So Lus e Maranho (1991 2010) ........................... 70
Tabela 4 Populao Residente em So Lus (2010) ............................................................. 71
SUMRIO
1 INTRODUO ....................................................................................................... 12
2 REVISO DE LITERATURA .............................................................................. 22
2.1 Espao e lugar: atores e relaes sociais ................................................................. 22
2.2 Espao social pblico: condies objetivas para as interaes................................ 37
2.3 As praas enquanto espao pblico: conceituao e configuraes ...................... 49
3 HISTRICO DO DESENVOLVIMENTO URBANO DE SO LUS .............. 55
3.1 Histrico das transformaes urbanas de So Lus ............................................. 55
3.2 Mudanas e permanncias na composio urbana e os usos das praas: do
tradicional ao supermoderno ................................................................................................... 72
4 USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS PRAAS
DE SO LUS ........................................................................................................................ 79
4.1 Usos e apropriaes sociais do espao pblico: introduo .................................. 79
4.2 Usos e apropriaes sociais do espao pblico: o caso das praas de So Lus .... 90
4.2.1 Introduo ao estudo de caso..................................................................................... 90
4.2.2 A Praa Gonalves Dias ............................................................................................ 95
4.2.3 A Praa da Ressurreio ............................................................................................ 107
4.2.4 A Praa do Conjunto dos Ips ................................................................................... 117
5 CONCLUSO ......................................................................................................... 126
REFERNCIAS ........................................................................................................ 137
ANEXO ..................................................................................................................... 141
12
1 INTRODUO
Neste estudo so analisados os usos, as apropriaes e as interaes sociais
estabelecidas e mantidas no espao pblico de praas localizadas na cidade de So LusMA.
Estas so compreendidas como lugares pblicos de interao social, para refletir sobre como
construdo e cultivado o processo de sociabilidades, as mltiplas formas em que transcorre a
ordem da interao e como so exercitadas e sustentadas na cidade as relaes intersubjetivas
nas diversas dimenses sociais: cultural e simblica, econmica e poltica. So pensados de
modo articulado os conceitos fundamentais de espao pblico e privado, praa, atores sociais,
interao, sociabilidade, relao social, identidades, proximidade, distanciamento,
individualidade, coletividade, usos e apropriaes sociais. Reflete-se, portanto, sobre os atores
sociais copresentes1 e suas prticas interacionais, no contexto scio-histrico contemporneo,
no qual prevalecem novas dinmicas que requalificam os espaos pblicos urbanos.
O objeto de investigao refere-se aos usos, s apropriaes e s interaes sociais
nos lugares constitudos em espaos pblicos especficos da cidade de So Lus do Maranho,
a saber: Praa Gonalves Dias, Praa da Ressurreio e Praa do Conjunto dos Ips. Justifica-
se a escolha das trs praas pela possibilidade de admitir uma anlise que comportasse
identificar e confrontar prticas interacionais em bairros e contextos sociais diversificados.
Discutir usos, apropriaes e interaes sociais no espao pblico remeter s
dinmicas sociais bsicas, concebendo a cidade como espao de convivncia e as praas
pblicas como lugares onde ocorrem ritos sociais de interao. Como pontua Goffman (2011),
objetiva-se evidenciar a ordem comportamental encontrada nas praas de So Lus, quando as
pessoas entram na presena imediata de outras. Considera-se teoricamente o espao dos
ajuntamentos sociais, no contexto do que Goffman (2011) chama de sociologia das ocasies,
observando as aes das pessoas em atividades interacionais temporrias. Afirma Goffman
(2011, p. 9) que, nessas aes entre atores, esto envolvidos um breve perodo de tempo, uma
extenso limitada no espao, e os eventos so restritos queles que devem ser completados
depois de iniciados. H um emaranhado complexo com as propriedades rituais das pessoas e
com as formas egocntricas da territorialidade.
1 Copresentes, neste contexto, refere-se copresena que, para Goffman (2009, p. 11), pode ser entendida como
o perodo em que o indivduo est na presena imediata dos outros. Ainda segundo este autor, a copresena deixa as pessoas singularmente acessveis, disponveis e sujeitas umas s outras (GOFFMAN, 2010, p. 33).
13
Assim, o que se visa pensar sobre os citadinos, indivduos e grupos que vivem o
cotidiano contemporneo da cidade de So Lus. Como diz Frgoli Jr (2007, p. 48), interessa
estudar os processos que efetivamente emerge[m] de um encontro pblico, [...] Tendo em
vista, portanto, que o citadino circula por mundos diferentes, contguos porm distintos.
parte dessa realidade citadina que se investigou.
Na introduo a este estudo oportuno considerar o que levou o pesquisador a
indagar, querer estudar e refletir sobre os usos e apropriaes sociais de praas, entre tantos
provveis fenmenos passveis de investigao no universo social. O interesse pelo estudo das
interaes e sociabilidades nas praas foi despertado no curso de Graduao em Cincias
Sociais (1983-1986) e aprofundado em uma Especializao em Sociologia Urbana (1994),
concludos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No exerccio da docncia, desde
1991, deve-se mencionar a continuidade dos estudos relacionados temtica da cidade.
As praas pblicas esto localizadas em determinados espaos fsicos e sociais,
nos quais so estabelecidas interaes entre indivduos e grupos que ali se encontram; lugares
esses que se fazem presentes tambm no imaginrio social coletivo, nas ideias e nas
representaes de mundo das pessoas. Foi no espao pblico em que se fundaram
historicamente as noes de poltica e cidadania. No se pode conceber o espao urbano sem
incluir igualmente esses locais por onde se deslocam e nos quais interagem ou convivem as
pessoas que habitam determinada regio. So ambientes propcios convivncia, onde se
desenvolve a construo de interaes e envolvimentos na cidade.
A vida urbana pressupe encontros, confrontos das diferenas, conhecimentos e
reconhecimentos recprocos dos modos de viver, dos padres que coexistem na cidade
(LEFEBVRE, 2009, p. 22). Seja qual for o tamanho da cidade, seus habitantes percebem as
praas como lugares peculiares, nos quais ocorrem encontros, interaes, sociabilidades,
jogos, manifestaes culturais, feiras, trocas mercantis e no mercantis. Fatos ocorridos em
espaos como esses so eventualmente rememorados e relatados em reminiscncias pelas
geraes mais velhas, recordando episdios vividos na frequncia s praas em outros tempos.
Entendem-se as praas como ambientes de interaes heterogneas. Conforme sua
localizao possvel identificar em seu entorno residncias, edifcios pblicos, igrejas,
vendedores estabelecidos ou ambulantes e outras atividades como mendicncia e prostituio.
14
Configuraes estas que permitem compor e renovar cotidianamente as modalidades de usos,
apropriaes e interaes sociais no espao pblico.
As praas, em uma concepo tradicional, costumam ser pensadas como ncleos
irradiadores a partir dos quais a urbe se desenvolve. Essa ideia, contudo, pode ser questionada
na vida social contempornea, quando a praa deixa de ter o sentido poltico que tivera no
passado. pertinente perguntar, ento, se outros espaos tm ocupado o lugar social reservado
outrora praa pblica. A propsito, representam as praas de alimentao nos shopping
centers novos espaos de interao social e de sociabilidades na atual sociedade capitalista.
Assim sendo, visa a pesquisa, por meio de um percurso investigativo a praas da
cidade, compreender o espao pblico considerando suas destinaes, a concorrncia relativa
s suas apropriaes sociais, seja pelos moradores da vizinhana, pelos que ali permanecem
algumas horas dos dias, pelos que circundam aquele espao, pelos que por l transitam e pelo
Estado, o qual deveria, em tese, zelar por esse locus privilegiado de interaes e
sociabilidades.
A questo de pesquisa se coloca a partir de quais costumes e sob quais condies
estruturais e interacionais os citadinos estabelecem, mantm e tornam possveis os usos e
apropriaes sociais em praas (pblicas) na cidade de So Lus-MA no transcurso das
situaes sociais. Inicialmente, foram verificadas no cotidiano as diferentes maneiras pelas
quais indivduos e grupos conduzem espcies e padres de usos nesses espaos urbanos. Do
mesmo modo, constataram-se interaes sociais marcadas por diversos tipos de trocas, sejam
gratuitas, onerosas ou ainda marcadas por intercmbios simblicos de variados bens.
Investiga-se, portanto, como os atores em suas interaes so condicionados pelo
contexto social da copresena nas praas de So Lus. O que os atores sociais costumam fazer
para organizar e estabelecer espaos que so usados e apropriados nas praas? Quais so os
padres de conduta caractersticos das formas de revezamento para uso? Ocorrem conflitos
interativos motivados por cdigos de condutas, tradies, regras e normas divergentes entre os
frequentadores desses espaos? So estabelecidos consensos para a distribuio e seletividade
desses usos sociais? Quais os recursos2 que indivduos e grupos lanam mo nas interaes
2 Recursos empregados pelos agentes visam manter um senso coerente dos eventos centrais das trocas
(HERITAGE, 1999, p. 341). So construtos do senso comum com os quais os agentes interpretam e organizam
15
para cultivar as relaes e sustentar as situaes sociais? Como so articuladas no processo de
interao as condies sociais para o uso e a apropriao de determinados territrios? Podem
ser verificadas diferenas ao serem confrontados os usos sociais em bairros diversos? Quais
so e como transcorrem os usos, as apropriaes e as interaes sociais no processo de
construo de sociabilidades no cotidiano por indivduos e grupos, enquanto habitantes de
uma regio da cidade? Como ocorrem as interaes entre indivduos conhecidos que
conservam relaes de proximidade com estranhos?
A dissertao pretende contribuir com as discusses e debates sobre as formas de
interaes estabelecidas no espao urbano, oferecendo meios para a elaborao de um
diagnstico acerca das sociabilidades nesse ambiente. A investigao a respeito das relaes
entre os diversos atores que circulam, transitam, ocupam, usam e vivem esses lugares deve
proporcionar subsdios para reflexo a respeito das interaes entre indivduos, grupos e
instituies nas praas da cidade de So Lus contempornea.
A pesquisa tem seu objeto associado Antropologia e Sociologia Urbana. As
produes tericas do urbanismo, disciplina conexa, merecem igualmente destaque. Os
referenciais tericos que orientam a metodologia deste estudo esto baseados, sobretudo, em
autores como Max Weber, Georg Simmel, Norbert Elias, Erving Goffman, Anthony Giddens,
Harold Garfinkel, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Jos Alcntara Jr., entre outros.
Discutem eles as interaes e sociabilidades em determinados espaos sociais.
Weber (2009) formulou conceitos adequados ao tema da pesquisa, como ao
social e relao social, a qual pode ser comunitria ou associativa. Diferenciou ainda uso e
costume, que permitem pensar os usos sociais das praas. O conceito e categorias da cidade
(WEBER, 1987) possibilitam tambm relevantes aportes tericos para analisar as praas no
contexto urbano.
Do mesmo modo, pensa-se a noo de sociabilidade. Para Simmel, este conceito
expressa a aproximao com outras pessoas (SIMMEL, 2006). A ausncia de sociabilidade
pode ser desenvolvida em razo de atitudes opostas aproximao, causando dificuldade de
dilogo e convivncia. Com isso, podem ser analisados os grupos e redes sociais de interaes
que se formam no cotidiano. Para caracterizar os espaos de sociabilidade utilizam-se tambm
suas situaes de ao, envolvem a contextualidade das aes comuns, a observao de convenes normativas e
o uso da linguagem (HERITAGE, 1999).
16
as concepes de Elias. Considera este autor as redes de interdependncia que os indivduos
estabelecem nas configuraes que lhes so prprias (ELIAS, 1994). O conceito de
configurao aplicado anlise das formas de interao que tornam efetivos os usos sociais
das praas.
Esto, ainda, includas na pesquisa as concepes tericas de Goffman. Trata ele
da representao, que seria a totalidade da atividade de determinado indivduo, em dada
ocasio, realizada com o objetivo de influenciar de certa maneira um dos participantes
(GOFFMAN, 2009). Alude este autor a diferentes estratgias e tcnicas de atuao, analisando
a dinmica social como se acontecesse em palcos as praas , com os atores desempenhando
papis de diferentes personagens.
Da mesma forma, Giddens (2005b) considera a vida social a partir da interao
que ocorre entre indivduo e sociedade. Na condio de agente de suas aes, o indivduo usa
sua conscincia discursiva e prtica. Com base no conceito de conscincia prtica so
estabelecidas relaes com os atores sociais, que seriam no apenas aqueles que praticam a
ao, mas os que possuem a capacidade para realizar determinada ao que deve produzir um
efeito. A teoria da estruturao de Giddens (2003) permite tambm a anlise de encontros
sociais localizados segundo tempo, espao e regionalizao.
Outra perspectiva nesta pesquisa a da etnometodologia de Harold Garfinkel. O
ponto de vista da etnometodologia apresentado por Uwe Flick. De acordo ele,
[...] a interao produzida de uma maneira bem ordenada, sendo que o contexto
constitui a estrutura da interao que , ao mesmo tempo, produzida na interao e
por meio dela. As decises acerca do que seja relevante para os membros da
interao social apenas podem ser tomadas por meio de uma anlise da interao, e
no pressupostas a priori. O foco no o significado subjetivo para os participantes
de uma interao ou de seus contedos, mas a forma como essa interao
organizada. O tema de pesquisa passa a ser o estudo das rotinas da vida cotidiana, em
vez dos eventos extraordinrios conscientemente percebidos e revestidos de
significado. (FLICK, 2009, p.71).
A etnometodologia estuda o raciocnio prtico, considerando os fundamentos
lgicos da ao nos contextos em que so usados. Neste sentido, pontua Heritage (1999, p.
382) que cada ao social um comentrio reconhecvel sobre o cenrio de atividade no qual
ela ocorre e uma interveno nesse mesmo cenrio. Os estudos de Garfinkel esto voltados
17
para fenmenos empricos da atividade social e de organizao das condutas sociais, o que
admite pensar as diversificadas interaes no contexto do espao social das praas pblicas.
Ao buscar formulaes conceituais que ampliem a capacidade de estudo,
compreenso e crtica, serviram ainda como referncias as orientaes tericas de Alex
(2008), Gomes (2010) e Harvey (2007), que permitem discutir as formas de uso, apropriao e
populao usuria das praas pblicas na cidade contempornea.
A metodologia adotada para realizao da dissertao orientou-se pela perspectiva
do interacionismo e da etnometodologia. Entre as tcnicas empregadas nesta pesquisa
qualitativa esto estudos bibliogrficos, estudo de caso, observao direta e entrevista
estruturada. A primeira etapa, que se desenvolveu simultaneamente investigao de campo,
foi marcada pelos estudos bibliogrficos. A literatura com que se subsidia a anlise buscou
esboar o conhecimento das produes tericas de vrios autores nas reas da antropologia, da
sociologia e das cincias sociais em geral acerca da questo do fenmeno das interaes e
sociabilidades relacionadas com o uso e a apropriao do espao pblico das praas.
Para o estudo propriamente das rotinas da vida cotidiana nas praas, o pesquisador
iniciou como frequentador em observao direta. Enquanto usurio das praas foi possvel
anotar em Dirio de Campo os ritmos conferidos pelos citadinos a esses espaos, permitindo
reunir informaes sobre a identificao de usurios individuais e coletivos, ocasionais e
frequentes.
Foram, tambm, delimitados horrios nas manhs, tardes e noites nos quais se
manteve o critrio de rodzio para examinar como ocorrem determinadas formas de
apropriao dos espaos. O incio da manh ou o fim da tarde so momentos de maior
frequncia praa. A fluncia praa nos dias teis diferente em relao quela verificada
nos fins de semana. Nestas ocasies, a copresena maior e encontra-se na praa um nmero
mais expressivo de pessoas.
Para efetivar a observao sistemtica direta esses espaos foram frequentados,
com presena verificada em seriao ao longo dos dias da semana, em um perodo que
abrange do dia 5 (cinco) de junho a 26 (vinte e seis) de agosto de 2011. Nesta fase coletou-se
material fotogrfico por meio de fotos tiradas nas praas, cujo acervo est exposto em parte
para ilustrar com imagens o que se pde compilar. A observao foi associada s entrevistas
realizadas com frequentadores e transeuntes desses espaos. As entrevistas foram do tipo
18
estruturado, contendo uma relao invarivel e padronizada de perguntas em forma de
questionrio, cujo modelo de formulrio est anexo ao final deste volume. Foram dirigidas,
aproximadamente, a uma centena de entrevistados, classificados, conforme as observaes
prvias, em categorias para atender s finalidades da pesquisa em: skatistas, jovens, casais,
estudantes uniformizados, estudantes universitrios, religiosos, vizinhos, servidores pblicos
que trabalham no entorno das praas, turistas, vendedores ambulantes, flanelas guardadores de
veculos e passantes.
Com a aplicao das entrevistas buscavam-se informaes sobre os citadinos
usurios das praas, seus perfis socioeconmicos, hbitos e percepes a respeito do espao e
como so estabelecidos os limites que tornam possvel a presena simultnea ou copresena
para os usos e apropriaes desses espaos sociais. Foi utilizada a anlise de padres e
interdependncia de comportamentos ao observar e entrevistar os diversos atores investigados,
visando apreender similitudes e diferenas nas interaes e sociabilidades. Os resultados da
tabulao das entrevistas so apresentados a partir da exposio do que se apurou no estudo de
caso das praas.
As praas pesquisadas no estudo de caso esto localizadas em trs regies
diferentes da cidade de So LusMA. A Praa da Ressurreio e a Praa do Conjunto dos
Ips so praas de bairros, com as sociabilidades prprias aos que habitam aquelas zonas
residenciais. A Praa Gonalves Dias est situada em um espao central, tradicional e
histrico da cidade e tem sido retratada como carto-postal. Apesar de fazerem parte de um
conjunto de praas na mesma cidade, h ritmos e comportamentos diferenciados de usos e
apropriaes conforme os dias e horrios da semana e a interveno de diferentes e
diversificados atores.
O processo de seleo dos trs casos estudados visou, antes de tudo, constituir um
conjunto representativo do universo das praas da cidade, contemplando bairros tradicionais
com ocupao anterior primeira metade do sculo XX e regies incorporadas recentemente
estrutura urbana da cidade. A primeira selecionada foi a Praa Gonalves Dias. Em razo de
sua posio central, os frequentadores e usurios procedem de vrios bairros da cidade e nela
pode ser percebido um amplo conjunto de interaes sociais. Para a escolha foi observada a
presena reiterada da representao dessa Praa em propagandas alusivas cidade. Essa
imagem veiculada exerce atrao a muitos que ao espao acedem. No foram consideradas,
19
nos limites deste estudo, relevncias comerciais e polticas do passado, as quais certamente
permitiriam escolher outros lugares, como o Largo do Carmo ou demais reas do Centro, que
outrora foram proeminentes na vida social de So Lus.
No bastava, para compor uma amostra significativa, conforme os propsitos da
pesquisa, considerar apenas uma praa. Precisava-se incluir outra mais para fins de
comparaes e confrontos. Por isso, como segunda destacada est a Praa da Ressurreio, por
representar uma regio da cidade de ocupao contempornea, com populao composta
majoritariamente por membros da classe trabalhadora. Localizada ao sudoeste da cidade tem,
instalados em seu territrio, grandes grupos econmicos como Vale, Alumar e Eletronorte.
Essa praa foi construda na dcada de 1970, quando a habitao do bairro era ainda recente.
Fazia parte de um conjunto de espaos urbanos destinados ao exerccio de lazeres naquela
regio. Nos anos 1990, quando o governo do Estado do Maranho implantou a poltica dos
Vivas foi urbanizada e dotada do atual traado arquitetnico, que, em sua remodelagem,
atendeu propsitos muito diferentes dos existentes ao tempo da inaugurao da Praa
Gonalves Dias. Por sua localizao, as interaes e os usos sociais conferidos pelos
frequentadores so mais restritos aos moradores do Anjo da Guarda e adjacncias.
Uma terceira praa foi adicionada para compor uma mostra mais expressiva.
Representa um termo mediano entre as outras duas; no a praa do carto-postal, como o a
Gonalves Dias, nem to pouco de grandes dimenses como a Praa da Ressurreio. A
Praa do Conjunto dos Ips, situada no Recanto dos Vinhais, est em um bairro habitado por
uma populao de classe mdia e foi construda na dcada de 1980. Como decorrncia de sua
localizao, com frequentadores que provm de mais de uma comunidade o ncleo do
Conjunto dos Ips e as reas prximas de posse irregular os usos e apropriaes sociais
dessa praa apresentam interaes diferenciadas ao se comparar com as demais listadas.
A estrutura da dissertao conta com uma INTRODUO, na qual se delimitou o
tema do trabalho, com indicao de questo de pesquisa. Apontam-se autores e conceitos que
so operacionalizados ao longo do texto, bem como explicitada a metodologia utilizada.
No captulo intitulado REVISO DE LITERATURA so caracterizados os
espaos nos quais transcorrem as interaes. Inicialmente, estudam-se os conceitos fundantes
de espao e lugar nos quais indivduos e grupos estabelecem aes, relaes, usos e interaes
sociais, costumes, lutas e redes de interdependncia. So examinados termos como
20
ajuntamento, situao e ocasio social, interao focada e desfocada, fachada e pedao. Em
seguida, analisou-se o espao enquanto pblico e privado e como se articulam as condies
objetivas para as interaes. Delimitou-se, igualmente, a noo de praa pblica, enquanto
lugar diferenciado no conjunto da cidade e equipamento urbano ou local onde ocorrem as
interaes entre indivduos e grupos.
Em HISTRICO DO DESENVOLVIMENTO URBANO DE SO LUS so
examinadas, em perspectiva histrica, as transformaes urbanas e os movimentos
populacionais de migrao que afetaram a composio socioespacial da cidade com reflexos
nas condies de uso e apropriao de suas praas. Com a apreciao dessas mudanas e
permanncias na composio da populao residente na cidade, percebidas de um ponto de
vista diacrnico, intentou-se evidenciar a criao das condies sociais para os usos das praas
a partir do processo de urbanizao de So Lus. Com o tempo, a estrutura da cidade e de seus
edifcios passou do precrio e artesanal s edificaes aformoseadas com pretenses em
observar estilos de construo caracteristicamente europeus. Esta transio reflete um
processo incessante de transformaes incorporadas composio edificada e vida citadina.
No captulo USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS
PRAAS DE SO LUS so situadas territorialmente as relaes sociais, que perpassam
determinados espaos. So analisadas as noes de proximidade e distanciamento que podem
ser verificadas nas interaes sociais que ocorrem nas praas. Implicada nesta discusso est a
reflexo sobre o individual e o coletivo. As noes de reconhecimento e estranhamento so
ainda pensadas ao se indagar como o local e o estranho so habitualmente vividos, percebidos
e concebidos nas praas. Nesse momento, cogitam-se as circunstncias em que a situao
social mantida por indivduos e grupos por meio de controles mtuos de aparncias,
linguagem corporal e atividades.
Por fim, considera-se o caso das praas, onde so examinados os usos, as
apropriaes e as interaes sociais no espao pblico. a etapa de anlise dos dados colhidos
na pesquisa de campo luz da bibliografia selecionada e dos conceitos operacionalizados no
estudo. So identificados e examinados os procedimentos interacionais que permitem aos
atores estabelecer arranjos sociais direcionados aos usos e apropriaes sociais do espao
pblico nas praas de So Lus do Maranho. Nesse percurso investigativo, so evidenciadas
21
as dinmicas sociais dos rituais citadinos decorrentes das sociabilidades cotidianas, que
tornam possveis produzir e reconhecer modalidades e estratgias de convvio na cidade.
22
2 REVISO DE LITERATURA
2.1 Espao e lugar: atores e relaes sociais
estudando o espao de uma sociedade que se pode lanar luz sobre questes to importantes como o seu
sistema ritual e o modo pelo qual ela faz sua dinmica.
(Roberto DaMatta)
Ao analisar o espao em que os atores estabelecem relaes sociais, pertinente
tratar preliminarmente do conceito e categorias da cidade, no sentido que Weber quis imprimir
ao tema. Esse o lugar mais amplo no qual ocorrem as relaes sociais. Entende Weber
(1987) que a cidade um local de mercado. A cidade pode ser industrial, de consumidores e
mercantil, mas destaca esse autor que as cidades representam, quase sempre, tipos mistos e
que, portanto, no podem ser classificadas em cada caso seno tendo-se em conta seus
componentes predominantes (WEBER, 1987, p. 73).
Mas o conceito de cidade no deve estar restrito ao contedo econmico. Precisa
ser encaixado em conceitos polticos. Nas palavras de Weber (1987, p. 76), a cidade tem que
se apresentar como uma associao autnoma em algum nvel, como um aglomerado com
instituies polticas e administrativas especiais. O conceito de cidade est implicado, ento,
a cidadania e comunidade urbana (WEBER, 1987). Essa orientao essencial para situar
relaes sociais estabelecidas por atores nas praas da cidade.
em determinado espao e lugar que indivduos e grupos transitam e estabelecem
vivncias diariamente. Nas praas pblicas transcorrem aes, interaes e relaes sociais,
que caracterizam a ordem legtima. Ao situar a atuao dos atores no espao pretende-se
instrumentalizar a pesquisa com referenciais tericos que possibilitem a anlise, a discusso, a
reflexo e a compreenso acerca das situaes sociais de usos e apropriaes das praas
pblicas, entendidas como formas de ao. Pois, como destaca Alcntara Jr.(2011, p. 141),
compreenso a possibilidade de se fazer entender a si mesmo e ao outro tambm; nesse
caso, os atores que interagem nas praas.
Fundamental, portanto, o conceito de ao social, formulado por Max Weber. Na
perspectiva deste autor, a ao refere-se a um comportamento humano no qual o agente o
23
relacione a um sentido subjetivo. O aspecto social define a ao no sentido visado pelo agente
(WEBER, 2009). Esclarece Weber (2009) que a ao social pode ser racional, visando aos fins
(determinada pelas expectativas no comportamento dos outros); racional, referente aos valores
(orientada pela crena consciente em um valor); afetiva (norteada por afetos, emoes) e
tradicional (pautada em um costume arraigado).
Desta forma, os atores sociais conduzem os usos sociais de acordo com padres
sociais em diferenciados contextos. Na Praa Gonalves Dias, que tem frequentadores de
procedncia mais diversificada, as aes podem ser classificadas de acordo com a tipologia
voltada a aes afetivas e racionais. grande o nmero de ajuntamentos3 cuja ida
compartilhada praa explicada por orientaes emocionais e afetivas. Segundo Weber
(2009, p. 15), age de maneira afetiva quem satisfaz sua necessidade atual de [...] gozo, de
entrega, de felicidade contemplativa ou de descarga de afetos. No entorno da praa no h
muitas residncias, que se encontram situadas um pouco mais distantes, o que, certamente, no
constitui obstculo aos moradores. possvel visualizar continuamente indivduos
acompanhados casais, esportistas, amigos, estudantes, turistas contemplando as belezas do
lugar.
Ao se comparar com a Praa da Ressurreio, percebe-se, desde logo, uma
presena maior de comrcio de bares, regulares e irregulares em sua organizao e
constituio fsica. Mostra-se nesta regio uma participao com maior destaque para aes
racionais voltadas para fins econmicos. H muitos locais para lanches e socializaes e flui
uma clientela direcionada a esses servios. Dentre as praas observadas a que concentra o
mais intenso comrcio de servios de bares e restaurantes.
Em depoimentos colhidos nas entrevistas, os atores sociais que frequentam a Praa
lembram a atrao exercida pelos eventos extraordinrios organizados ao longo do ano, como
as festas juninas. Deve-se tambm mencionar o fato de que o nome que identificava a praa,
aps sua reurbanizao nos anos 1990, era Viva Anjo da Guarda, a qual foi renomeada pela
comunidade e rebatizada como Praa da Ressurreio, pois montado em sua rea anualmente
o espetculo religioso da Paixo de Cristo. Na Praa encenado o momento da ressurreio e
3 O termo ajuntamento utilizado para fazer referncia a qualquer conjunto de dois ou mais indivduos, cujos
membros incluem todos e apenas aqueles que esto na presena imediata uns dos outros num dado momento (GOFFMAN, 2010, p. 28).
24
da subida aos cus. Isso pode sugerir motivos referentes a crena religiosa; um momento
extraordinrio do ano que conferiu ao espao uma destinao que foi assinalada pelos usurios
frequentadores.
Na Praa do Conjunto dos Ips os motivos para acessar o local so de ordem
racional, voltados a fins econmicos, tais como idas ao supermercado ou ao quiosque de
lanche que ficam em frente Praa; ou ainda orientados a partir de valores comunitrios que
refletem as aes da associao de moradores. destacada a presena dos residentes, o que
demonstra apropriaes que se desenvolvem por indivduos e grupos que mantm uma
constante de aes afetivas e racionais determinadas por valores de vizinhana. Deve-se
observar inicialmente tambm que esta Praa no possui designao oficial; foi nomeada na
pesquisa como Praa do Conjunto dos Ips para fins de identificao.
Esclarece Max Weber (2009, p. 16) que
[...] s muito raramente a ao, e particularmente a ao social, orienta-se
exclusivamente de uma ou de outra destas maneiras. E, naturalmente, esses modos de
orientao de modo algum representam uma classificao completa de todos os tipos
de orientao possveis, seno tipos conceitualmente puros, criados para fins
sociolgicos, dos quais a ao real se aproxima mais ou menos ou dos quais ainda mais frequentemente ela se compe. Somente os resultados podem provar sua utilidade para nossos fins.
A par da ao social, desenvolve-se a relao social. Conforme ainda a concepo
de Weber, a relao social refere-se ao contedo de sentido do comportamento partilhado
pelos agentes que se orientam por ele. Essa relao social pode ser comunitria ou associativa,
aberta para fora ou fechada para fora, quanto ao comportamento e participao de
determinadas pessoas (WEBER, 2009). Segundo este autor, a relao social deve ser
entendida como
[...] o comportamento reciprocamente referido quanto a seu contedo de sentido por
uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referncia. A relao social
consiste, portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja
socialmente numa forma indicvel (pelo sentido). (WEBER, 2009, p. 16).
No significa que, no caso emprico, os participantes da ao reciprocamente
referida ponham o mesmo sentido na relao social [...] que exista, portanto, reciprocidade
25
neste sentido da palavra (WEBER, 2009, p. 16). Os sentidos nos lados da relao podem
referir-se a atividades diferentes. Nesta hiptese, mesmo em relao objetivamente
unilateral existe reciprocidade para Weber, pois, explica ele (WEBER, 2009, p. 17),
o agente pressupe determinada atitude do parceiro perante a prpria pessoa [...] e orienta por
essa expectativa sua ao, o que pode ter, e na maioria das vezes ter, consequncias para o
curso da ao e a forma da relao.
Neste sentido, ao indagar os usurios sobre os critrios para escolher ir queles
espaos especficos, o contedo das respostas variado; esto includos diverso, encontro
com outras pessoas, paquera, proximidade da residncia, lanches (comprar ou vender). Os
frequentadores consideram as praas como bons locais para conversas ou sociabilidades, mas,
por vezes, perigosos e inseguros, no apenas em razo de violaes propriedade, mas em
decorrncia de brigas entre os frequentadores motivadas por disputas entre integrantes de
certos grupos.
Quando so observadas regularidades de fato no curso das aes com o mesmo ou
vrios agentes, com sentido homogneo, verifica-se o que Weber chama de uso e costume.
Diferencia Weber uso de costume. Para ele, o uso expressa regularidades na orientao da
ao social, dentro de determinado crculo de pessoas, dada pelo exerccio efetivo; , portanto,
norma de conduta no obrigatria. O costume representa o uso exercitado em hbito
inveterado (WEBER, 2009). Os que no se orientam em suas aes pelos costumes que
prevalecem em determinado espao social, agem de maneira indevida; tendem a provocar
resistncia dos demais, e, provavelmente, prejudicam seus prprios interesses. Os momentos
de briga parecem estar relacionados no avaliao precisa dessas convenes ou da
equivocada noo de que possvel ignorar, desconhecer ou comportar-se de modo
discordante a esses arranjos normativos.
O conceito de luta formulado por Weber permite compreender esses episdios.
Anota ele (WEBER, 2009, p. 23) que uma relao social denomina-se luta quando as aes
se orientam pelo propsito de impor a prpria vontade contra a resistncia do ou dos
parceiros. A luta que seria latente torna-se manifesta nas ocasies de disputa no pacfica
pelos espaos sociais nas praas. A concorrncia pelo espao transcorre de modo continuado
nas relaes sociais. Como ressalta Weber (2009, p. 24), toda luta ou concorrncia tpica [...]
leva, a longo prazo, finalmente seleo daqueles que possuem em maior grau as qualidades
26
pessoais mais importantes, em mdia, para triunfar na luta; pode-se cogitar que contribui a
eventualidade dessas disputas com a seleo daqueles que usam e se apropriam dos espaos
das praas.
Ao considerar o espao social, pode-se ainda apreciar a relao social como
comunitria ou associativa. A relao social denominada comunitria quando e na medida
em que a atitude na ao social [...] repousa no sentimento subjetivo dos participantes de
pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo (WEBER, 2009, p.25). associativa
quando e na medida em que a atitude na ao social repousa num ajuste ou numa unio de
interesses racionalmente motivados (com referncia a valores ou fins) (WEBER, 2009, p.25).
Adverte, todavia, o autor que a maioria das relaes sociais tem em parte carter comunitrio e
associativo (WEBER, 2009).
Predominam relaes sociais de carter comunitrio na Praa da Ressurreio e
associativo na Praa do Conjunto dos Ips; a proximidade e o reconhecimento entre vizinhos
tende a ser maior. O que no significa, entretanto, que em todas as relaes nestas praas
sobressaia o sentimento comunitrio ou associativo. Os atores que compem os ajuntamentos
tendem ao reconhecimento de contrastes em relao a terceiros no residentes na redondeza.
Na Praa Gonalves Dias parecem sobressair as relaes sociais associativas, haja vista a
procedncia diversificada de seus usurios. O que no significa, todavia, que s transcorrem
relaes desse tipo.
As reflexes de Simmel proporcionam tambm importante subsdio para
compreender as aes individuais e coletivas, que exercem influncia sobre a produo social
de espaos. De acordo com a proposta de anlise de Simmel, a sociedade possui configuraes
e agrupamentos que se confundem com a vida de cada indivduo envolvido. No se deve,
todavia, pensar que s se pode conhecer a realidade da vida social nas praas por meio do
conhecimento de aes individuais. Os propsitos da pesquisa podem direcionar o
investigador para a realidade vivida pelo sujeito individual ou coletivo (SIMMEL, 2006). De
uma perspectiva ou de outra, a existncia humana s se realiza nos indivduos, sem com isso
reduzir a validade do conceito de sociedade. Sendo assim, ao pensar o espao e o lugar,
levam-se em conta as noes de individual e social.
Entende Simmel que a sociedade, cuja vida se realiza num fluxo incessante,
significa sempre que os indivduos esto ligados uns aos outros pela influncia mtua que
27
exercem entre si e pela determinao recproca que exercem uns sobre os outros (SIMMEL,
2006, p. 17). Em razo disso, no se deveria falar de sociedade, mas de sociao. Conforme
Simmel (2006, p. 18), a sociedade um acontecer que tem uma funo pela qual cada um
recebe de outrem ou comunica a outrem um destino e uma forma. Logo, sociedade o nome
para um crculo de indivduos que esto, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros
por efeito das relaes mtuas, e que por isso podem ser caracterizados como uma unidade
(SIMMEL, 2006, p. 18). Grupos e indivduos recebem e partilham impulsos recprocos.
Quando confronta o nvel social e o nvel individual, Simmel (2006, p. 40) explica
que as aes das sociedades teriam um propsito e uma objetividade muito mais definidos
que os individuais. As aes dos grupos sociais seriam determinadas como que por uma lei
natural, enquanto os indivduos se mostrariam livres. De tal modo, elucida o autor que
[...] o indivduo pressionado, de todos os lados, por sentimentos, impulsos e
pensamentos contraditrios, e de modo algum ele saberia decidir com segurana
interna entre suas diversas possibilidades de comportamento que dir com certeza objetiva. Os grupos sociais, em contrapartida, mesmo que mudassem com frequncia
suas orientaes de ao, estariam convencidos, a cada instante e sem hesitaes, de
uma determinada orientao, progredindo assim continuamente; sobretudo saberiam
sempre quem deveriam tomar por inimigo e quem deveriam considerar amigo. Entre
o querer e o fazer, os meios e os fins de uma universalidade, h uma discrepncia
menor do que entre os indivduos. (SIMMEL, 2006, p. 40).
Ao refletir sobre as interaes nas praas, considerando o que Simmel chama de
nvel social e nvel individual, possvel avaliar a extenso da determinao dos grupos sobre
as aes dos indivduos. Esses espaos sociais so usados para muitos propsitos,
frequentados por indivduos e grupos. A maior presena, contudo, est relacionada a aes que
se desenvolvem com a participao de grupos, transcorrendo socialmente. Muitas vezes as
negociaes para uso do espao das praas se do com base em premissas coletivas, com
padres de comportamentos grupais interferindo nas aes individuais. Ao apreciar, por
exemplo, a prtica de skate na Praa Gonalves Dias, deve-se notar que existem ajuntamentos
diferentes de skatistas. Em uma primeira observao, pode-se pensar que todos os que ali esto
com seus skates praticam esse esporte. Mas, o pertencimento a alguns desses grupos requer
tambm a posse e a observao de determinadas regras ou cdigos, como condio essencial a
ser observada para manter a interao. H expectativas de condutas a serem satisfeitas para
fazer parte e integrar-se aos grupos.
28
A interao entre indivduos surge sempre a partir de determinados impulsos ou
da busca de certas finalidades (SIMMEL, 2006, p. 59). Segundo Simmel (2006, p. 60), essas
motivaes so fatores da sociao apenas quando transformam a mera agregao isolada dos
indivduos em determinadas formas de estar com o outro e de ser para o outro que pertencem
ao conceito geral de interao. Assim, sociao a forma na qual os indivduos, em razo de
seus interesses, desenvolvem-se conjuntamente em direo a uma unidade no seio da qual
esses interesses se realizam e formam a base da sociedade humana (SIMMEL, 2006). Quando
indivduos estabelecem laos sociais e interaes nas praas, so constitudas sociaes,
fundamentos da vida social.
Especifica ainda Simmel (2006, p. 65) a importante definio de sociabilidade
como forma ldica de sociao. Na perspectiva terica de Simmel (2006, p. 69), pela
sociabilidade ningum pode em princpio encontrar sua satisfao custa de sentimentos
alheios totalmente opostos aos seus. preciso cada indivduo assegurar ao outro os valores
sociais compatveis com a sociabilidade. Deste modo, a sociabilidade decorre da satisfao de
sentimentos similares e no antagnicos ou adversos. Os comportamentos de indivduos e
grupos devem convergir com determinada intencionalidade correspondida, para possibilitar o
comeo e a sustentao desse processo de trocas sociais. Os padres de prticas interativas que
se reproduzem nas praas asseguram a continuidade das aes de sociabilidade: respostas
oportunas, revides aceitveis, rplicas adequadas, deixas amoldadas situao implicam na
aprovao social pelo respeito demonstrado aos demais indivduos envolvidos na interao.
Elias tambm formulou instrumentos conceituais que permitem pensar e observar
pessoas (ELIAS, 1994). Trabalha ele com a noo de redes de interdependncia. Afirma esse
autor que conceitos como famlia ou escola referem-se essencialmente a grupos de seres
humanos interdependentes, a configuraes especficas que as pessoas formam umas com as
outras (ELIAS, 2008, p. 13). Estas teias de interdependncia ou configuraes dos mais
diversos tipos possibilitam refletir sobre as relaes estabelecidas por indivduos e grupos no
ambiente das praas. As redes de interdependncia podem ser percebidas nos grupos e
ocasies de interao. Dades, como casais de namorados, grupos menores ou maiores, como
os skatistas que frequentam a Praa Gonalves Dias, formam conjuntos de indivduos cujas
aes esto implicadas umas s outras.
Explica do mesmo modo Elias o conceito de configurao. Segundo ele, este seria
29
[...] o padro mutvel criado pelo conjunto dos jogadores - no s pelos seus
intelectos, mas pelo que eles so no seu todo, a totalidade das suas aes nas relaes
que sustentam uns com os outros. Podemos ver que esta configurao forma um
entranado flexvel de tenses. A interdependncia dos jogadores, que uma
condio prvia para que formem uma configurao, pode ser uma interdependncia
de aliados ou de adversrios. (ELIAS, 2008, p. 142).
O conceito de configurao pode ser aplicado a grupos pequenos ou grandes.
Todavia, para Elias, as configuraes formadas pelos membros de grandes grupos como os
habitantes da cidade, no podem ser percebidas diretamente, porque as cadeias de
interdependncia que os ligam so maiores e mais diferenciadas (ELIAS, 2008, p. 143).
Assim, conforme este ponto de vista, a configurao evidencia a interdependncia das pessoas,
cujos comportamentos so enredados, formando estruturas entrelaadas (ELIAS, 2008).
Podem ser notados esses elos de interdependncia em grupos que usam as praas. Alm de
grupos destacados como casais e skatistas, os jovens que se apropriam dos espaos das praas
o fazem cultivando perspectivas de reconhecimento e relacionamento com seus pares.
De modo assertivo, confirma Elias que a procura pelos outros ocorre para a
realizao de toda uma gama de necessidades emocionais (ELIAS, 2008, p. 148). Esses
imperativos afetivos devem ser considerados para investigar indivduos e grupos que afluem
s praas. Acrescenta Elias que novas formas de ligao emocional so verificadas em
unidades sociais maiores. Diz ele que, juntamente com ligaes interpessoais, so encontradas
ligaes unindo as pessoas a smbolos de unidades maiores, [...] a bandeiras e a conceitos
carregados de aspectos emotivos (ELIAS, 2008, p. 150). Garante ainda Elias que a afeio
das pessoas por estas grandes unidades sociais muitas vezes to intensa como a sua afeio
por uma pessoa amada (ELIAS, 2008, p. 151). Essas ligaes emocionais e afetivas orientam
envolvimentos nos grupos que so encontrados nas praas.
Decerto, as demonstraes pblicas de afetos, constatadas nas diferentes praas,
envolvem o decoro, que a referncia por meio da qual as relaes sociais so construdas de
um modo e no de outro e por meio da qual ganham sentido na vida cotidiana (MARTINS,
1999, p. 10). Refere-se o decoro a pautas de condutas que definem as formas apropriadas de
comportamento em diferentes situaes (MARTINS, 1999). De acordo com este autor,
o decoro mais do que um conjunto de regras ele essencialmente um conjunto de
30
procedimentos pelos quais cada um se sente responsvel no s pela sua prpria conduta, mas
tambm pela conduta dos circunstantes que com ele contracenam (MARTINS, 1999, p. 12).
Como observa Martins (1999, p. 14), quando o poder da vergonha e do decoro que
regula a vida cotidiana se atenua onde no deveria atenuar-se, estamos em face de mudanas
sociais que se expressam na perda de autoridade das regras interiorizadas e que indicam a
perda de substncia da autoridade externa que nos coage a agir de um modo e no de outro.
Determinados gestos, sinais, expresses ou palavras antes impregnados de sentido pejorativo
so agora aceitos, apreciados e necessariamente includos nas conversaes. Conforme o
contexto social, atitude, como alto volume da voz na fala, no quer dizer exasperar-se, mas
conversar com a animao e o entusiasmo que as trocas devem ter; no significa conflito, mas
de fato interao.
Neste sentido, observa Giddens (2003, p. 331) que todos os atores sociais
possuem um considervel conhecimento das condies e consequncias do que fazem em suas
vidas cotidianas. Com a teoria da estruturao, Giddens afirma que os seres humanos so
agentes cognoscitivos. As rotinas dos agentes pensadas, dessa forma, permitem analisar a
reproduo de prticas institucionalizadas, como os usos nas praas.
Na teoria da estruturao, ao analisar o que chama de conduta estratgica, Giddens
orienta que o foco deve incidir sobre os modos como os atores sociais se apoiam nas
propriedades estruturais para a constituio de relaes sociais (GIDDENS, 2003, p. 339). Ao
empreender essa anlise, preciso priorizar o que ele chama de conscincias discursiva e
prtica (GIDDENS 2003). Ape o autor (GIDDENS, 2003, p. 351) que esse conceito de
dualidade da estrutura, fundamental para a teoria da estruturao, est subentendido nos
sentidos ramificados que os termos condies e consequncias da ao tm. De tal modo,
as coeres estruturais operam por meio dos motivos e razes dos agentes, estabelecendo
condies e consequncias que afetam opes abertas a outros, e o que eles querem das opes
que tm (GIDDENS, 2003, p. 366). As condies e condicionamentos das aes, interaes e
relaes sociais nas praas devem ser pensados enquanto vivncias que se sucedem em espao
pblico.
A propsito, Giddens articula orientao importante, segundo a qual o espao no
uma dimenso vazia ao longo da qual os agrupamentos sociais vo sendo estruturados, mas
deve ser considerado em funo do seu envolvimento na constituio de sistemas de
31
interao (GIDDENS, 2003, p. 433). Esse direcionamento deve ser mantido ao se investigar
as interaes que favorecem as apropriaes sociais das praas. Os conceitos de espao e lugar
permitem, consequentemente, refletir e pensar os usos sociais pesquisados.
H outros aportes tericos que consideram o espao e o lugar no contexto das
interaes, aes e relaes sociais. Nesse sentido, Bourdieu, ao tratar do poder simblico,
discorre sobre o espao social, avaliando que a sociologia se mostra como uma topologia
social. De acordo com este autor, o mundo social pode ser representado em forma de um
espao construdo baseado em princpios de diferenciao ou de distribuio formados pelo
conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a
conferir, ao detentor delas, fora ou poder neste universo (BOURDIEU, 2009, p. 133). O
mundo social das praas composto pelos agentes e suas posies no campo de foras.
Frequentadores, skatistas, vendedores ambulantes, guardadores autnomos de veculos
(flanelinhas), autoridades ocupam posies que se alteram de acordo com as propriedades
relacionais.
Dessa forma, agentes e grupos so definidos pelas posies ocupadas nesse
espao. O agente ocupa uma posio em uma regio determinada do espao. Explica, ento,
Bourdieu (2009, p. 134) que,
[...] na medida em que as propriedades tidas em considerao para se construir este
espao so propriedades atuantes, ele pode ser descrito tambm como campo de
foras, quer dizer, como um conjunto de relaes de fora objetivas impostas a todos
os que entrem nesse campo e irredutveis s intenes dos agentes individuais ou
mesmo s interaes diretas entre os agentes.
Conforme este autor, as diversas espcies de poder ou de capital que ocorrem nos
diferentes campos atuam como princpios de construo do espao social, isto , da sociedade
(BOURDIEU, 2009). Desse modo, Bourdieu (2009) considera que a posio do agente no
espao social definida pela posio por ele ocupada nos diferentes campos, pela distribuio
dos poderes que neles atuam, consistindo o capital em econmico, cultural, social e simblico.
Esta perspectiva torna possvel a construo de um modelo do campo social para pensar a
posio do agente em todos os espaos de jogo possveis (BOURDIEU, 2009, p. 135). O
conhecimento da posio ocupada no espao social informa as propriedades intrnsecas
(condio) e relacionais (posio) dos agentes (BOURDIEU, 2009, p. 136).
32
Ao apropriar-se dos espaos sociais, os agentes lutam, buscando estratgias para
alcanar seus interesses. Suas aes no so necessariamente calculadas de maneira
consciente, resultam de improvisaes em um sentido prtico. Assim, as aes ocorrem em
condies de incerteza e situadas no espao. Indivduos e grupos, quando visam usar
determinados espaos nas praas, criam disputas com os recursos de que dispem para
prevalecer sobre os demais frequentadores. Pode-se indagar o que torna controversas as
interaes para os usos dos espaos. Rixas costumam surgir quando grupos ultrapassam os
limites simbolicamente estabelecidos para conteno de aes. Na Praa Gonalves Dias,
mesmo sem ter a inteno declarada, os skatistas ao circularem por toda a extenso da rea
provocam sentimentos difusos de antagonismo e repulsa. Essas condutas podem afastar
usurios, que se poupam da eventualidade de disputas abertas.
O espao deve, ento, ser concebido como territrio delimitado no apenas
geograficamente, mas, sobretudo, socialmente. Esse espao precisa ser tambm respeitado,
com a expresso de atitudes de desateno civil, como chamou Goffman (2010, p. 172).
Muitas vezes indivduos para impedir discusses e bate-bocas simulam no perceber nem
identificar comportamentos indesejados ou no aprovados. Nas praas pblicas prevalece a
presena mtua em que pessoas em pontos diferentes podem observar outras pessoas e por
elas tambm serem observadas. Para explicar esses acontecimentos, Goffman emprega alguns
conceitos bsicos que orientam seu programa de pesquisa. Entre estes est o ajuntamento, que
ele utiliza para se referir a qualquer conjunto de dois ou mais indivduos cujos membros
incluem todos e apenas aqueles que esto na presena imediata uns dos outros num dado
momento (GOFFMAN, 2010, p. 28). Explica ele ainda que o termo situao faz referncia ao
ambiente espacial completo em que ao o adentrar uma pessoa se torna um membro do
ajuntamento que est presente, ou que ento se constitui. As situaes comeam quando o
monitoramento mtuo ocorre, e prescrevem quando a penltima pessoa sai (GOFFMAN,
2010, p. 28).
Outro conceito fundamental ocasio social. Segundo Goffman (2010, p. 28) ela
um acontecimento, realizao ou evento social mais amplo, limitado no espao e no tempo e
tipicamente facilitado por equipamentos fixos. Uma ocasio social fornece o contexto social
estruturante em que as situaes e ajuntamentos transcorrem, e um padro de conduta tende a
ser reconhecido como apropriado (GOFFMAN, 2010). Podem ser citados como exemplos de
33
ocasies sociais uma festa social, um dia de trabalho num escritrio, um piquenique, ou uma
noite no teatro (GOFFMAN, 2010, p. 28). Um dia ou momentos nas praas podem ser
concebidos e explicados, ento, como ocasies sociais.
Noo importante a de ordem pblica, que Goffman (2010, p. 34) entende
quando pessoas esto conscientes da presena de outras, elas podem funcionar no
meramente como instrumentos fsicos, mas tambm comunicativos. Ao interpretar o
conceito, esclarece Joseph (2000, p. 93) que ordem pblica aquela fundada no direito de
olhar, isto , num princpio de acessibilidade e disponibilidade das pessoas presentes. Estas
tendem, quando se expem, a dominar as impresses que causam em outrem e a de se
observar enquanto agem.
Alm disso, explica Goffman que o comportamento comunicativo dos
imediatamente presentes pode ser considerado como em interao focada e desfocada (no
focada). A interao focada ocorre quando pessoas se juntam e cooperam abertamente para
manter um nico foco de ateno, tipicamente se revezando na fala (GOFFMAN, 2010, p.
35). A interao por ele nomeada como desfocada ou no focada o tipo de comunicao que
ocorre quando se recolhe informaes sobre outra pessoa ao se olhar de relance para ela,
ainda que apenas momentaneamente, quando ela entra e sai do campo de viso (GOFFMAN,
2010, p. 34). Esta interao refere-se ao gerenciamento da mera copresena.
Na anlise dos elementos rituais na interao social, Goffman considera ainda o
termo fachada, figurao ou face-work [expresses sinnimas nas tradues em lngua
portuguesa da obra de Goffman]. Fachada pode ser definida como o valor social positivo que
uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma atravs da linha que os outros pressupem
que ela assumiu durante um contato particular (GOFFMAN, 2011, p. 13). Para Goffman
(2011, p. 14), a fachada uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais
aprovados. Igualmente, o conceito de equipe de representao ou equipe possibilita analisar
os usos e apropriaes sociais nas praas, designando qualquer grupo de indivduos que
cooperem na encenao de uma rotina particular (GOFFMAN, 2009, p. 78).
Magnani (2003, p. 12) quando analisa relaes sociais utiliza o termo pedao para
fazer meno a um tipo particular de sociabilidade e apropriao do espao urbano. Na
interpretao deste autor, as interaes sociais esto situadas no pedao. De acordo com
Magnani (2003, p. 115), so dois os elementos bsicos constitutivos do pedao: um
34
componente de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relaes sociais.
Assim, espao e rede de relaes sociais so elementos essenciais na composio do pedao.
Discute ele ainda a existncia de um ncleo e bordas em seu entorno, quando considera que
alguns pontos de referncia delimitam seu ncleo. [...] No ncleo do pedao, enfim, esto
localizados alguns servios bsicos locomoo, abastecimento, informao, culto,
entretenimento que fazem dele ponto de encontro e passagem obrigatrios (MAGNANI,
2003, p. 115). Ao estabelecer essas confrontaes a respeito do pedao, explica que,
[...] enquanto o ncleo do pedao apresenta um contorno ntido, suas bordas so fluidas e no possuem uma delimitao territorial precisa. O termo na realidade
designa aquele espao intermedirio entre o privado (a casa) e o pblico, onde se
desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares,
porm mais densa, significativa e estvel que as relaes formais e individualizadas
impostas pela sociedade. (MAGNANI, 2003, p. 116).
Afirma, desde logo, que no basta, contudo, morar perto ou frequentar com certa
assiduidade esses lugares: para ser do pedao preciso estar situado numa particular rede de
relaes que combina laos de parentesco, vizinhana, procedncia (MAGNANI, 2003, p.
115). Essa seria a zona do espao em que seus habitantes teriam mais familiaridade. Segundo
ele,
[...] pertencer ao pedao significa poder ser reconhecido em qualquer circunstncia; o que implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade [...]. Pessoas de
pedaos diferentes, ou algum em trnsito por um pedao que no o seu, so muito cautelosas: o conflito, a hostilidade esto sempre latentes, pois todo lugar fora
do pedao aquela parte desconhecida do mapa e, portanto, do perigo. (MAGNANI, 2003, p. 116).
Problemtico traar os limites do pedao com seus contornos claramente
perceptveis para usos e apropriaes, quando indivduos e grupos no estabelecem ou
preservam demarcaes fsicas evidentes para todos. O pedao caracterizado tambm por
uma rede de relaes sociais, onde os vnculos estabelecidos so de tipo familiar ou vicinal.
Roberto DaMatta (1997, p.32), interpretando o sentido geral de espao, considera
que este demarcado quando algum estabelece fronteiras, separando um pedao de cho do
outro. Mas, acrescenta ele que essa constatao no satisfaz, pois prossegue o antroplogo
35
fluminense preciso explicar de que modo as separaes so feitas e como so legitimadas
e aceitas pela comunidade da propriedade privada (DAMATTA, 1997, p.32).
Ao analisar as diferenas entre espao e lugar, explica Aug que o termo espao
mais abstrato que lugar. usual fazer referncia a um acontecimento (que ocorreu), a um
mito (lugar-dito) ou a uma histria (lugar histrico) (AUG, 2010, p. 77). Faz este autor
aluso ao que chama de lugar antropolgico. Explica ele que o lugar antropolgico refere-se
[...] quela construo concreta e simblica do espao que no poderia dar conta,
somente por ela, das vicissitudes e contradies da vida social, mas qual se referem
todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja.
[...] o lugar antropolgico simultaneamente princpio de sentido para aqueles que o
habitam e princpio de inteligibilidade para quem os observa. (AUG, 2010, p. 51).
O lugar antropolgico se completa pela fala, a troca alusiva de algumas senhas,
na conivncia e na intimidade cmplice dos locutores (AUG, 2010, p. 73). Pode
compreender esse lugar,
[...] por um lado, itinerrios, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro e
foram traados pelos homens e, por outro lado, em cruzamentos e praas onde os
homens se cruzam, se encontram e se renem, que desenharam, conferindo-lhes, s
vezes, vastas propores para satisfazer principalmente, nos mercados, necessidades
do intercmbio econmico, e, enfim, centros mais ou menos monumentais, sejam
eles religiosos ou polticos, construdos por certos homens e que definem, em troca,
um espao e fronteiras alm das quais outros homens se definem como outros, em
relao a outros centros e outros espaos. (AUG, 2010, p. 55).
As praas pensadas como lugares de interaes podem ser objeto de investigao
da antropologia e da sociologia. Determinado espao social no qual se renem indivduos e
grupos que se identificam por sentimentos de pertencimento, caracteriza um lugar
antropolgico. Pontua Aug (2010, p. 52) que, esses lugares [antropolgicos] tm pelo menos
trs caractersticas comuns. Eles se pretendem identitrios, relacionais e histricos. O lugar
que no se pode associar a essas peculiaridades corresponderia ao que ele chama de no lugar.
Esclarece, ento, Aug que
[...] se um lugar pode se definir como identitrio, relacional e histrico, um espao
que no se pode definir nem como identitrio, nem como relacional, nem como
histrico definir um no lugar. A hiptese aqui defendida a de que a
supermodernidade produtora de no lugares, isto , de espaos que no so em si
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lugares antropolgicos e que, contrariamente modernidade baudelairiana, no
integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a
lugares de memria, ocupam a um lugar circunscrito e especfico. (AUG, 2010, p. 73).
O no lugar citado como contraponto ao conceito de lugar. Exemplifica e ilustra
que esses no lugares seriam as vias areas, ferrovirias, rodovirias e os domiclios mveis
considerados meios de transporte (avies, trens, nibus) [...] redes a cabo ou sem fio
(AUG, 2010, p. 74). Esclarece ainda o autor que
[...] por no lugar designamos duas realidades complementares, porm, distintas: espaos constitudos em relao a certos fins (transporte, trnsito, comrcio, lazer) e
a relao que os indivduos mantm com esses espaos. Se as duas relaes se
correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os
indivduos viajam, compram, repousam), no se confundem, no entanto, pois os no
lugares medeiam todo um conjunto de relaes consigo e com os outros que s
dizem respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropolgicos
criam um social orgnico, os no lugares criam tenso solitria. (AUG, 2010, p.
87).
Acrescenta Aug (2010) que, quem faz uso do no lugar, est com este em relao
contratual, na qual o contrato est sempre associado identidade individual de quem o
subscreve. Pontua ele que,
[...] para ter acesso s salas de embarque de um aeroporto, preciso, antes, apresentar
a passagem ao check-in (o nome do passageiro est inscrito nela); a apresentao
simultnea, ao controle de polcia, do visto de embarque e de algum documento de
identificao fornece a prova de que o contrato foi respeitado. [...] O passageiro s
conquista, ento, seu anonimato aps ter fornecido a prova de sua identidade, de
certo modo, assinado o contrato. [...] o usurio do no lugar sempre obrigado a
provar sua inocncia. O controle a priori ou a posteriori da identidade e do contrato
coloca o espao do consumo contemporneo sob o signo do no lugar: s se tem
acesso a ele se inocente. (AUG, 2010, p. 94).
Explica Aug (2010, p. 95) que, enquanto o passageiro aguarda para embarcar
obedece ao mesmo cdigo que os outros, registra as mesmas mensagens, responde s mesmas
solicitaes. O espao do no lugar no cria nem identidade singular nem relao, mas sim
solido e similitude, conclui.
Para Aug (2010, p. 98), os lugares e os espaos, os lugares e os no lugares
misturam-se, interpenetram-se. Acrescenta ainda que no h mais anlise social que possa
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fazer economia dos indivduos, nem anlise dos indivduos que possa ignorar por onde eles
transitam (AUG, 2010, p. 110). O chamado no lugar um conceito com o qual se pode
refletir sobre a presena e a permanncia no espao pblico das praas contemporneas. As
interaes sociais nesses espaos sofrem os impactos dos novos processos tecnolgicos
informatizados, empregados como recursos na produo e que foram estendidos para a vida
cotidiana.
no espao social que os agentes, de modo individual ou em grupos, estabelecem
dinmicas de trocas. Nesse lugar, aes, interaes e relaes sociais so localizadas. Para
manter situaes sociais que favoream os usos verificados do espao pblico, determinadas
atitudes so acionadas pelos envolvidos. Ressalte-se que os usos e apropriaes sociais das
praas transcorrem basicamente em espaos que se reputam como pblicos; nesta perspectiva
devem ser investigadas as condies objetivas para as interaes sociais ali entabuladas.
2.2 Espao social pblico: condies objetivas para as interaes
Ao realizar o percurso deste estudo, entre as intenes est compreender como o
espao chamado pblico usado e apropriado pelos citadinos. oportuno, portanto, delimitar
esse conceito relevante para aprofundar a anlise. Determinar essa noo permite a
aproximao da dimenso terica e conceitual que interessa investigao. Os referenciais
tericos percorrem esquemas interpretativos, que buscam explicar as variveis que se
articulam entre o espao pblico e tambm o espao privado de interaes, onde os atores se
encontram presentes.
Apesar de o espao social das praas ser pblico, esta noo comporta uma
classificao dicotmica em pares opostos, pois, ao debater o pblico, a contrario sensu est o
indicativo do conceito de privado, ainda que implicitamente. Desse modo, visando um melhor
entendimento acerca dos usos e apropriaes sociais das praas, caracteriza-se inicialmente o
conceito de espao pblico, sem, entretanto, perder de vista o espao privado. Considera-se,
ento, a construo histrica das noes sociais de espao pblico e de espao privado, no
mundo ocidental e no Brasil. Admitem esses espaos diversidades histricas de usos no que se
refere s destinaes sociais conferidas por indivduos e grupos.
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Em obra notria sobre o espao pblico, O jardim e a praa, Saldanha,
jusfilsofo pernambucano, empreende uma anlise de cunho antropolgico sobre a praa.
Focaliza Saldanha um conceito preliminar de espao; considera ele que
[...] o organizar-se, desde as primeiras experincias grupais do ser humano, foi sempre, em parte ao menos, um problema de distinguir lugares, valorizando uns e
abandonando ou evitando outros, e de construir espaos, demarcando pores do
territrio e amontoando pedras com fim simblico ou utilitrio. (SALDANHA, 2005,
p.20).
A meno ao que aponta o autor traz ao debate a apropriao de um determinado
espao para fins de uso. A demarcao a que se refere na citao no constitui ainda um
domnio no sentido de propriedade. Observe-se que, ao tratar de uso e apropriao social do
espao da praa, no se cogita do estabelecimento de uma forma de domnio senhorial
(propriedade), mesmo porque a praa considerada um bem pblico e propriedade dos entes
estatais. Como dispe o Cdigo Civil (BRASIL, 2002) Lei n 10.406, de 10 de janeiro de
2002 no artigo 99, I, [so bens pblicos:] os de uso comum do povo, tais como rios, mares,
estradas, ruas e praas.
A propsito, leciona Pereira (2010, p. 76), aps cogitar de uma sociologia da
propriedade, que a propriedade como expresso da senhoria sobre a coisa, excludente de
outra senhoria sobre a mesma coisa, exclusiva: plures eamdem rem in solidum possidere non
possunt. Entre os caracteres da propriedade est, portanto, a sua exclusividade.
Deste modo, quando se considera, atualmente, o espao da praa no se questiona
a existncia de uma propriedade, que pblica. Sem, assim, remeter, necessariamente, ideia
de propriedade, considera Saldanha as demarcaes feitas no territrio para fins de distino
de lugares. As pores assinaladas de territrio sinalizam na direo de certas apropriaes
necessrias do espao para fins da convivncia social (SALDANHA, 2005).
Com as demarcaes simblicas feitas nas praas, os agentes visam poder usar
parcelas do espao para suas interaes sociais. Esses limites definidos so ajustados e
revisados por meio de regras e padres que se repetem em determinados cenrios de negcios
cotidianos organizados4 (GARFINKEL, 2008, p.1). Indivduos e grupos reservam certos
locais para permanncia nas praas. Como ilustrao, os alunos dos cursos da rea da sade da
4 Garfinkel escreve no original em ingls a expresso: settings of organized everyday affairs.
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Universidade Federal do Maranho, cujo prdio est localizado na lateral da Praa Gonalves
Dias, nos momentos que ficam na Praa, permanecem em frente ao edifcio da Universidade.
Outros ajuntamentos podem estar nas proximidades, mas observam e mantm esses limites.
Afirma Saldanha que os planos pblico e privado complementam-se. Explica ele
(SALDANHA, 2005, p. 31) que
[...] o viver social consiste e subsiste em vrias dimenses, e uma delas ocorre nas
casas [...]. E como as ruas da mesma forma que as praas so j outra dimenso, a pblica, eis que o plano pblico e o privado tocam-se, completam-se,
complementam-se.
O espao, seja ele pblico ou privado, enquanto construo social e histrica,
apresenta trajetrias no tempo que permitem visualizar sua caracterizao ou configurao.
Nesse percurso de anlise diacrnica da constituio dos conceitos, pode-se inicialmente
buscar explicao a partir do estudo dos processos de apropriao do espao social na Idade
Antiga. Nesse sentido, Saldanha, com o objetivo de realar o espao pblico, acredita que
neste esto situados os elementos da vida pblica. Esse local, na chamada Antiguidade
Clssica, era a gora, a praa do mercado, o smbolo na cidade da presena do povo na
atividade poltica. Nota ele (SALDANHA, 2005, p. 57) que
[...] naquele espao central, situavam-se os elementos da vida pblica: cenrio,
atores, ao. Nele estavam os debates e as faces, as queixas e as decises, e
sobretudo a palavra como componente da dimenso pblica: ao fazer-se pblica a
palavra, publicizava-se a condio do homem. A polis, quase literalmente, teria tido
na gora a sua pulsao.
Habermas contribui igualmente para o debate de ideias e estabelecimento desses
conceitos. Em obra editada pela primeira vez em 1962, informa que as categorias do pblico e
do privado foram legadas dos gregos, transmitidas adiante em uma verso romana. Conforme
Habermas, a esfera pblica representa o debate livre entre iguais. De acordo com ele,
[...] tratam-se [o pblico e o privado] de categorias de origem grega que nos foram
transmitidas em sua verso romana. Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da
plis que comum aos cidados livres (koin) rigorosamente separada da esfera do
oikos, que particular a cada indivduo (idia). A vida pblica, bios politikos, no ,
no entanto, restrita a um local: o carter pblico constitui-se na conversao (lexis),
que tambm pode assumir a forma de conselho e de tribunal, bem como a de prxis
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comunitria (prxis), seja na guerra, seja nos jogos guerreiros. (HABERMAS, 2003,
p. 15).
O expoente da Escola de Frankfurt, ao confrontar o tema dos espaos de
sociabilidades e interaes, procura explicitar a importncia social da esfera pblica. Assegura
ele que nesta esfera que as coisas aparecem e se tornam visveis. na disputa entre pares por
meio da conversao que os melhores cidados se destacariam e conquistariam, por
conseguinte, a imortalidade da fama. Dessa maneira,
[...] como nos limites do oikos a necessidade de subsistncia e a manuteno do
exigido vida so escondidos com pudor, a plis oferece campo livre para a
distino honorfica: ainda que os cidados transitem como iguais entre iguais
(homoioi), cada um procura, no entanto, destacar-se (aristoiein). As virtudes, cujo
catlogo Aristteles codifica, mantm apenas na esfera pblica: l que elas
encontram o seu reconhecimento. (HABERMAS, 2003, p. 16).
O prestgio social pode ser associado s interaes contemporneas nas praas de
So Lus. Um reconhecimento pblico pode ser alcanado em decorrncia de presena e de
interaes no espao social. Muitos intercmbios so, todavia, de carter efmero. Indivduos
ocasionalmente interagem, mas existe a probabilidade de nunca mais se olharem outra vez. As
praas podem ser pensadas como palcos em que indivduos e grupos mostram-se para quem
por l estiver para v-los. Nessas exposies pblicas, os grupos podem atribuir capital
simblico, como considera Bourdieu (2009), queles que conseguem por meio de sua conduta,
nesse espao social de interaes, obter prestgio, reputao, fama.
A apresentao pblica nas praas pode no proporcionar o prestgio que se supe
a princpio, mas granjear m reputao. Indivduos e grupos que evidenciem determinado
desempenho, mesmo em feitos que exijam habilidades raras, podem no conseguir a glria e a
importncia social que almejam. De acordo com a configurao dos grupos como formais ou
informais e o contexto socioespacial, esses predicados desejados tendem a variar. Na Praa
Gonalves Dias, por exemplo, os grupos de skatistas que circulam pela praa ou o pblico de
fiis que aflui igreja para assistir missa tm expectativas acentuadamente diferenciadas
para conferir celebridade a alguns de seus integrantes.
Para situar as investigaes sobre o pblico e o privado no Brasil, em Sobrados e
mucambos, Freyre (2004) faz referncia pouca importncia atribuda no Brasil colonial aos
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espaos pblicos. Nesse livro, o socilogo e antroplogo pernambucano inicia o captulo II
O engenho e a praa; a casa e a rua afirmando que a praa venceu o engenho, mas aos
poucos (FREYRE, 2004, p. 135). Com relao aos usos e costumes, os espaos da rua e da
praa no eram francamente acessveis a todas as mulheres e mesmo a homens no tempo da
colnia. Relara Freyre (2004, p. 145) que
[...] nas ruas s se encontravam as escravas negras e as mulatas com quem s vezes,
de noite, os velhotes do Recife namoravam, na ponte da Boa Vista. La Salle diz que
tambm os homens pouco saam de casa. No Rio de Janeiro dessa poca talvez
sassem pouco: no Recife como em So Lus do Maranho tradio que viviam
quase a tarde inteira na rua.
Continua Freyre a confirmar esse entendimento ao dizer que os burgueses de
sobrado foram naquelas cidades do norte do Brasil homens de praa ou de rua como, outrora,
os gregos, da gora, ao contrrio dos do Rio de Janeiro e da Bahia que raramente deixavam o
interior dos sobrados (FREYRE, 2004, p. 145). O motivo para isso residia no fato de que um
dos sinais de distino era ser menos visto possvel para no ser confundido com o povo, que a
fidalguia abominava. Assim, reitera-se que estar ou no nas praas pode ser sinal de distino
ou de reputao (boa ou m), conforme o momento histrico. Desse modo, a exposio
pblica pode no acarretar necessariamente o reconhecimento social desejado por alguns
indivduos.
Observe-se tambm que no so sempre nitidamente demarcados os limites entre
as esferas do pblico e do privado. Saldanha refere-se a essa dificuldade do estabelecimento
de fronteiras entre elas. Lembra ele, ento, que historicamente
[...] o termo latino forum, que designa algo historicamente correlato gora grega, e
que se associa para ns ideia de um espao pblico, designou primeiro o terreno
fechado em torno de uma casa, e somente depois passou a denominar a rea de fora
das casas, nomeadamente a praa do mercado. (SALDANHA, 2005, p. 73).
No perodo que abr
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