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4Modelos em Conexão: Administração Reguladora eArgumentação Jurídica.
(...) o debate sobre um novo tipo de relações em desenvolvimento entre o políticoe o administrativo situa a regulação e suas agências como um prenúncio de novosrumos para o governo e para a democracia.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
Este capítulo representa o cerne do problema desta dissertação: trata-se de
discutir as relações dialéticas entre a teoria da argumentação e o modelo regulador
implantado.
Na busca de “novos referenciais democráticos na gestão dos interesses
públicos”, o Estado regulador, propagado sob a constelação pós-positivista, toma
como pilares de sua atuação valores que outrora assumiam papéis apenas
secundários, tais como a legitimidade e a eficiência.1 Estes valores traduzem uma
democracia material, a qual deve ser efetivamente implementada e fiscalizada
mediante a justificação de todas as decisões do Poder Público. Deve-se notar que
a justificação das decisões abre espaço para considerações não apenas
restropectivas, mas também prospectivas, atentando-se para as conseqüências que
delas podem advir, as quais devem ser ponderadas mediante a valoração dos
princípios em jogo. Cumpre frisar que a atividade de justificação das decisões é
tanto mais importante quando se trata de atividades administrativas que envolvam
um juízo discricionário, introduzindo a Administração Pública na “era da
motivação”, conforme salientou Diogo de Figueiredo Moreira Neto.2
Todas essas preocupações convergem para o reconhecimento, no campo da
metodologia e teoria jurídicas, da importância do paradigma retórico-
argumentativo, inserido nas mais variadas vertentes de teorias da argumentação
jurídica. As perspectivas de Perelman, Habermas e Alexy, só para citar os
principais representantes da nova tendência, acenam para a necessidade de
justificação das decisões públicas, fruto de uma racionalidade argumentativa. De
1 Moreira Neto chega a afirmar que reside “ na experiência da regulação um dos mais nítidosprenúncios da passagem juspolítica de uma democracia da representação para uma democracia daeficiência”. Direito Regulatório, p. 158.2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 100.
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fato, afastado o antigo dogma do raciocínio geométrico como modelo para
qualquer tipo de ciência que se pretendesse racional, assumiu-se, nos domínios
práticos, uma racionalidade especificamente argumentativa, pois que lida com
valores e não com dados ou experimentos.
Conforme já assinalado, nos campos eminentemente deliberativos, o
modelo subsuntivo é insuficiente para dar conta de todos os tipos de raciocínio
utilizados, e jogar isso para escanteio da razão é uma atividade extremamente
perigosa. Para este perigo, atentou Perelman, que, com o seu Tratado da
Argumentação, reconheceu, pioneiramente, um modelo de racionalidade
argumentativa estribada numa lógica jurídica. Este modelo foi tomado como
ponto de partida por outros autores, como Habermas e Alexy, que assumiram uma
nova perspectiva argumentativa, centrada fundamentalmente na justificação dos
raciocínios práticos através de procedimentos.
A preocupação com resultados práticos ocupa lugar central no paradigma
regulatório, postulando aliar “a maior satisfação do interesse público substantivo
com o menor sacrifício possível de outros interesses constitucionalmente
protegidos”.3 Por outro lado, as decisões reguladoras, por lidarem com interesses
públicos, devem, para serem justas, revestir-se de um referencial de juridicidade.
Por decisão justa, ressalta Moreira Neto, entende-se aquela que ostente não só o
caráter de regular, como expressão da igualdade de tratamento para idênticas
circunstâncias, e a tal corresponde a noção de justiça formal que Perelman tanto
trabalhou, como também aquela que esteja em condições de obter a concordância
de todos os concernidos, ou seja, referente à sua aceitabilidade. Este último
elemento é de especial valia para as decisões regulatórias, eis que, diante da rápida
e freqüente mutabilidade das circunstâncias econômicas, assim como diante das
pautas principiológicas abertas que operam, pouco se espera delas no sentido de
regularidade, porém, e como contrapartida, a consensualidade é essencial à sua
legitimação.
Por outro lado, como as normas reguladoras, absolutamente distintas das
normas produzidas tanto pelo Poder Legislativo, quanto pelo Chefe do Executivo
no exercício de seu poder regulamentar, não definem um interesse público
específico a priori, devendo o mesmo ser ponderado junto com os outros
interesses protegidos pela ordem jurídica, há de ser ressaltada a importância de se
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garantir uma abertura processual à sociedade. Esta é alimentada por uma
motivação suficiente das decisões administrativas, que permite analisar a sua
razoabilidade na definição do interesse público específico, mediante o uso de
técnicas de ponderação de interesses4. Através destas é que se estabelcerá uma
decisão pragmática calcada na motivação de todos os interesses em pauta: o
interesse geral representado pela agência reguladora, os interesses individuais,
coletivos e difusos dos usuários e consumidores, e os interesses privados dos
agentes econômicos produtores.5
Daí porque, as decisões reguladoras setoriais devem estrita obediência ao
devido processo legal, no qual serão motivadamente considerados todos os
aspectos conflitivos, de preferência com ampla participação social. Na esteira de
Moreira Neto, pode-se dizer que o grau de democraticidade conferido às agências
dependerá essencialmente do nível de abertura do processo decisório à
participação social.6
4.1Atuação das Agências Reguladoras Independentes : Riscos daAtividade
Quando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aderiu a
um modelo econômico descentralizado, cujo mote encontra-se nos princípios da
propriedade privada e da livre iniciativa, abriu o caminho para uma Reforma do
Estado que consolidaria, tempos depois, os postulados do Estado regulador. A
esse respeito, Francisco Mauro Dias estabelece que “(...) no regime constitucional
vigente, a livre iniciativa não é apenas fundamento da Ordem Econômica, mas do
próprio Estado de Direito Democrático por ele instituído(...)”.7
O papel subsidiário conferido ao Estado é sublinhado no artigo 173 da
Constituição, que assim dispõe: “Ressalvados os casos previstos nesta
Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante
3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 93.4 Sobre o tema, ver SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal.5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 132.6 Idem, p. 95.7 DIAS, Francisco Mauro. “Intervenção Regulatória e competitividade internacional”, p. 152.
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interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Ou seja, a Constituição pretendeu
que o agente econômico no Estado brasileiro fosse, por excelência, o particular,
ou melhor, o agente privado. Por outro lado, com relação à prestação de serviços
públicos, o artigo 175 estabelece que: “incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos”. Aqui, embora a Constituição pretenda
que a titularidade do serviço permaneça com o Poder Público, entende que a sua
execução poderá ser delegada ao particular. Em ambos os casos, tanto no caso de
atividade econômica stricto sensu, como no caso de serviços públicos, vislumbra-
se uma retirada do Estado, o que implica uma atuação menos concentrada dessas
atividades.
O novo desenho constitucional indica uma postura estatal menos
centralizadora e menos imperativa: ao princípio da subsidiariedade soma-se o
princípio da participação, como essenciais ao atingimento eficiente dos fins
colimados pela administração pública. Decerto, além desses, outros vários
aspectos advindos da adoção do Estado regulador podem ser assinalados, nas
palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
(...) a administração pública especializada em setores críticos de interesses, adeslegalização de matérias, a separação entre a formulação de políticas públicas ea administração pública, a abertura de espaços de negociação para o PoderPúblico e a intensa processualização administrativa, inclusive com a introduçãode conceitos (...) de participação dos agentes dos setores interessados, deresponsividade e de visibilidade.8
O Estado regulador pode agir fundamentalmente de duas formas:
restringindo a liberdade de iniciativa econômica ou trazendo “(...) em seu bojo
medidas que contêm indicações, incentivos, apoios ou auxílios aos agentes
econômicos(...)”.9 Sobressaem, portanto, as funções de fiscalização, de incentivo e
de planejamento, tal como dispõe expressamente o artigo 174 da Constituição. O
Estado vê assim deslocada a sua atuação empresarial em prol de uma ampliação
de sua função na regulação, conservando, com isso, um importante papel
econômico na condução da sociedade.
Para Habermas, o Estado regulador apresenta as seguintes características
principais, sublinhadas nas palavras de Alice Leal Wolf Geremberg: 8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 76.9 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 165.
135
a) o Estado procura interferir nos sistemas funcionais da sociedade através
de sistemas de negociação não hierarquizados, procurando exercer uma
política de opções que vá além do estímulo e refreamento de posturas e
passe por um planejamento. Isso é dificultado pelas barreiras impostas
pelos sistemas funcionais a uma intervenção direta;
b) O direito passa a funcionar como um catalisador das transformações
internas, a política o coloca como uma forma a partir do qual cada
sistema organizará suas preferências. Com isso, o direito se torna uma
linguagem comum para os problemas relevantes para toda a
sociedade(...);
c) o conteúdo da democracia deve ser mantido na passagem do plano de
formação democrática da vontade para o das relações intersistêmicas. Os
processos que regulam as relações entre os sistemas são os democráticos
que se valem de um discurso racional capaz de permitir uma base de
consenso mínima para a existência do dissenso. 10
Deve-se notar que a função reguladora do Estado abrange uma grande
variedade de atribuições, tais como informativas, planejadoras, fiscalizadoras e
negociadoras, bem como normativas, ordinatórias, gerenciais, arbitradoras e
sancionadoras.11 Tal complexo de atribuições será cometido a um único órgão
regulador para cada setor específico da atividade econômica ou social.12
O caminho para a concretização desses postulados foi aberto, inicialmente,
pelas modificações introduzidas por Emendas à Constituição de 1988, que passou
a prever expressamente a existência dos órgãos reguladores para os setores de
telecomunicações (Emenda Constitucional n. 8/95) e de petróleo (Emenda
Constitucional n. 9/95). Contudo, apenas com a criação das agências reguladoras,
a partir fundamentalmente do Programa Nacional de Desestatização, hoje
regulado pela Lei n. 9491/97, é que efetivamente se começou a pôr em prática os
postulados do Estado Regulador.
Por outro lado, a intervenção do Estado na ordem econômica via lei é
admitida como forma de equilibrar os diversos interesses. O Cödigo de Defesa do 10 GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 106-10711 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 107.
136
Consumidor (Lei n. 8078/90), a Lei de Defesa da Concorrência (Lei n. 8884/94),
bem como a Lei de Concessões (Lei n. 8987/95, alterada pela Lei n. 9074/95),
incluem-se no escopo mais geral de garantir segurança jurídica à sociedade.
Deve-se ressaltar ainda, junto com Alexandre Santos de Aragão, que se
encontra entre os seus interesses primários o relativo à proteção e ampliação da
concorrência, o que é problemático quando se trata de regulação de serviços
públicos, uma vez que, nestes, “(...) a instalação generalizada da concorrência no
setor pode prejudicar a arrecadação das tarifas necessárias à universalização dos
serviços a cargo da concessionária(...), pois a exclusividade ou o domínio do
mercado pode ser um importante fator da receita necessária à universalização do
serviço. Daí porque, quando a transição do monopólio à competição envolve
utilidades públicas de fruição essencial para a sociedade, surgem outros objetivos
regulatórios que sobrepujam a importância da proteção da concorrência.13
José Maria Machado Gomes sublinha a importância que a regulação pode
assumir no tocante à diminuição das falhas do mercado, a saber, as externalidades,
o poder de mercado e a informação assimétrica.14 Para os estreitos limites deste
trabalho, cumpre notar a última falha, que diz respeito à questão das informações
assimétricas. O que ocorre é que, “(...)na prática, o concessionário é mais bem
informado sobre as condições da indústria do que os reguladores, e seu
comportamento apenas pode ser monitorado de modo imperfeito”.15 O risco que
se contém nessa assimetria de informações consiste sobretudo no fenômeno da
captura16 do órgão regulador.
Decerto, a especial dinâmica que se estabelece no processo regulatório
entre reguladores e regulados engendra a possibilidade de ocorrência de tal
12 Em âmbito federal, pois no âmbito dos estados federados, tivemos o exemplo do Rio de Janeirocom a criação da agência reguladora dos serviços públicos, referentes a diversos setoresconcernidos nessa categoria.13 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 294.14 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 156. As externalidades, segundo o autor, “(...)ocorrem quando o bem-estar de um agente econômico é diretamente afetado pelas ações deterceiros”. Através de controles diretos ou de incentivos financeiros, os governos induzem asempresas a reduzirem as externalidades e aumentarem as atividades benéficas. A segunda falhaapontada pelo autor, o poder de mercado das empresas, existe quando empresas com posiçãodominante “(...) sentem-se incentivadas a cobrar preços superiores aos custos marginais associadosà oferta”. Op. Cit., p. 160.15 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 160.16 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o risco de captura traduz-se também na falsaindependência, que consiste em subordinar politicamente a agência reguladora ou pela criação detutelas políticas indevidas sobre os dirigentes colegiados ou pela supressão das garantias de seusmandatos, ou ainda através de pressões indiretas.
137
fenômeno, que se verifica “(...) quando as exigências regulamentares passam a se
amoldar às necessidades e interesses das unidades reguladas ou de algumas delas.
(...) A captura do regulador ocorre quando o órgão regulador passa a identificar o
bem comum com os interesses da indústria que é por ele regulamentada”.17 Além
do problema da informação assimétrica, outro fator contribui para agravar o
problema da captura: trata-se da setorização do ordenamento, pois gozando de
formação técnico-profissional especializada no setor, os seus dirigentes tendem a
terem um contato mais estreito e freqüente com os agentes econômicos regulados.
Nesse sentido dispõe Aragão que:
(...) pela necessidade constante de obtenção de informação dos setores reguladose pelo fato destes, com o passar do tempo, possuírem maior interesse na agênciaque os consumidores ou o Poder Público (...) leva a uma certa identificação entrereguladores e regulados e possível atenuação dos vínculos de fiscalização econtrole originariamente previstos. 18
Como forma de evitar a “captura” dos órgãos reguladores, entende Aragão
que devem “ser prescritas normas e garantias para que os seus titulares não atuem
no interesse dos grupos para os quais tenham trabalhado ou para os quais (...)
pretendam trabalhar depois de deixarem a direção da agência reguladora”.19
Nesse sentido, ressalta a importância da “quarentena”, prevista na maioria das leis
criadoras das agências, ainda que tal medida não seja capaz de conter, por si só, os
riscos de uma captura.
Paralelamente à diluição dos papéis entre o regulador e o regulado, pode
haver uma confusão entre o agente regulador e o próprio governo, caso em que,
segundo Gomes, “a sistemática da regulação pode ser rompida porque o governo
pode impor condições, exigindo do regulador um tipo de conduta que viole seu
papel original de instrumento de indução da eficiência na indústria”.20 Este tipo de
captura do regulador pelo Poder Público pode assumir diversos aspectos: pode
retirar a competência do órgão regulador, ou ainda retirar a característica de
independência ou os elementos de autonomia que lhe são inerentes. Vale lembrar,
a este respeito, o exemplo da Medida Provisória n. 2.189-3, de 28 de junho de
2001, “que atribuiu à Câmara de Gestão da Crise de Energia uma função que, por
17 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 163.18 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 366.19 Idem, p. 365.20 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 163.
138
ser técnica, poderia ser solucionada pelo órgão regulador mediante ponderação de
interesses”.21
Souto admite ainda a possibilidade, muito menos freqüente, do fenômeno
da captura ser realizada pelo consumidor, mediante a organização de greves e
manifestações, desautorizando as ações do regulador através do uso de grupos de
pressão e de instituições oficiais. 22
Outrossim, vale frisar a possibilidade da captura do regulador levar ao
colapso regulatório, que ocorre quando a regulação implementada pela agência
não consegue dar conta das falhas do mercado, ou quando produz efeitos adversos
sobre a eficiência. O risco do colapso regulatório pode se originar ainda de
políticas regulatórias mal formuladas e da falta de capacitação e de recursos para
implementação apropriada das regulações.23
Como forma de solucionar os problemas gerados por um defeituoso
funcionamento da política regulatória, destaca Aragão que
Como sói acontecer em problemas que envolvem a ética no trato da coisapública, a sua solução se dá, mais do que por meios jurídicos instrumentais, pelamobilização e fiscalização cidadã, sobretudo dos grupos de consumidores eusuários interessados, para o que, certamente, as consultas e audiências públicas,cogentes para as agências reguladoras, muito poderão contribuir.24
Além dos riscos da captura, outros problemas podem ser notados no
horizonte regulatório, como o faz Moreira Neto, ao assinalar a deficiente
deslegalização e a fraca participação. A primeira consiste na instituição de um
conjunto normativo sem coerência e sem clara atribuição de competências e de
responsabilidades. Por sua vez, a fraca participação resulta num deficit de
legitimação da atuação das agências, “alimentando a inércia cívica”.25
Diante desse quadro, avulta a importância de as agências reguladoras
serem portadoras de independência, qualificação técnica e recursos materiais.
Também a existência de agentes públicos qualificados poderá contribuir para
evitar os riscos inerentes à atividade. A eficiência da regulação, que implica em
ausência dos riscos da captura do regulador, bem como ausência dos riscos de
colapso, dentre outros, pressupõe o exercício, por parte das agências, de uma
21 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 293.22 Idem, p. 293.23 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 164.24 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 367.25 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 214.
139
autonomia reforçada, à qual se dá o nome de independência. Como forma de
balancear essa independência, ou mesmo como forma de legitimá-la, as leis que as
instituem prevêem mecanismos de participação social, os quais merecem ser
concretizados.
No Brasil, há ainda de ser ressaltado o fato de não existir um estatuto
jurídico das agências reguladoras, com a ressalva da Lei n. 9986/00, que prevê
normas para o regime de contratação de pessoal, o que dificulta enormemente o
trabalho de uniformização dessas entidades, gerando um clima de incerteza e
intranqüilidade que não favorece as suas atividades.
4.2Da Participação
A atuação das agências reguladoras, como já assinalado, possui um caráter
técnico, denotado não só na formação técnica que a lei impõe aos seus dirigentes,
mas principalmente pelo fato de seus atos e normas demandarem conhecimento
técnico e científico especializado para que possam ser emanados, aplicados e
fiscalizados. Contudo, mesmo em se tratando, em princípio, de decisões
eminentemente não políticas, a técnica não é capaz de proporcionar, conforme
ressaltou Bachelet, soluções unívocas a determinados problemas, sempre
existindo uma margem de discricionariedade “dentro da qual a Administração tem
que escolher entre as diferentes soluções proporcionadas pela técnica, o que
deverá ser feito segundo critérios que não são técnicos(...), havendo um momento
claramente político nessas escolhas”.26 Pelagatti destaca que “esta concepção da
ciência e da técnica como conhecimentos neutros tem a finalidade de esconder a
incindível relação entre saber técnico e decisão política.27 Nesse sentido, é
fundamental uma política participativa que equilibre esse pretenso tecnicismo,
que, como não apaga a margem de discricionariedade por completo, e por gozar,
consoante afirma Aragão, de um deficit democrático que lhe é co-original, deve
contar com aparatos de legitimidade distintos do usual. Assim, tanto a eficiência
como a participação são critérios aferidores dessa legitimidade material. 26 Cf. DAROCA, Eva Desdentado. Los Problemas Del Control Judicial de la Discrecionalidad.Apud. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 324.
140
Decerto, inseridas num modelo mais fluido e consensualista do Direito, as
agências reguladoras buscam pautar suas decisões em critérios de eficiência e de
legitimidade para o exercício da discricionariedade técnica, de muito maior
complexidade que a conhecida supremacia do interesse público. A eficiência,
traduzida no binômio maximização de benefícios – minimização de custos, e a
harmonia participativa são as funções básicas desses entes, que buscam legitimar
suas decisões através de procedimentos participativos. Cumprem, assim, os
requisitos de uma democracia material, e não apenas formal. Segundo Aragão,
(…)as agências reguladoras são a sede por excelência da manifestação doprocesso de consensualização e flexibilidade pelos quais vem passando o DireitoAdministrativo contemporâneo.28
O princípio da participação, introduzido como legitimador necessário dos
processos de tomada de decisão e de feitura de normas pelas agências, traz como
principal efeito uma conexão administrativa imediata e despolitizada entre a
agência e o administrado interessado. Ou seja, uma conexão que passa pela
autonomização dos sujeitos, que se vêem partícipes concretos da implementação
das políticas públicas estabelecidas pelo legislador democraticamente eleito.
De fato, através da participação, a nova perspectiva da administração
pressupõe uma “autonomização dos sujeitos”, o que possibilita um alargamento
do espaço público estatal ou não estatal. Para Aragão, a autonomização importa
em uma participação em processos formais de tomada de decisão, com o que se
alcança a sua legitimidade democrática. Redimensiona-se, assim, a relação
Estado-sociedade, para fazer com que o Estado se transforme num “espaço de
mediação ético-política”.29
Nesse sentido, Moreira Neto assinala como o surgimento das agências
reguladoras independentes no Brasil engendrou a necessária separação entre o
governo e a administração, de modo que se pode falar agora em dois tipos de
legitimação: a política, calcada no modelo de democracia formal, representativa; e
27 Cf. DAROCA, Eva Desdentado. Los Problemas Del Control Judicial de la Discrecionalidad.Apud. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 325.28 Idem, p. 320.29 Idem, p. 81.
141
a legitimação social, que se assenta numa democracia substancial, e deve contar,
para isso, com a participação cidadã.30 Nesse sentido, afirma ser
(...)fundamental que essa nova e especial legitimidade administrativa dosdirigentes das agências reguladoras deva se fundamentar nas premissas dademocracia substancial, ou seja: não mais pela legitimidade originária dainvestidura, mas pela legitimidade corrente, permanentemente aferida naeficiência de seu desempenho, inclusive através de mecanismos da participaçãodemocrática.31
A análise da participação e dos instrumentos encarregados da sua
concretização impõe-se assim como necessária para que da inserção das agências
reguladoras no cenário brasileiro se possa tirar o melhor proveito para a
consolidação de uma democracia substantiva. Para tanto, é fundamental o
fortalecimento de uma cidadania ativa, fundada no reconhecimento dos sujeitos
como autores e destinatários das normas e de todas as decisões do Poder Público,
fato que Habermas já havia atentado como necessário para o plano da validade das
normas jurídicas. A crise de legitimidade que atingiu as esferas de poder, exigiu
uma atenção maior a questões não equacionadas em termos de coerção e de
imperatividade estatal, colocando em relevo a necessidade de justificar o discurso
público, visando conferir-lhe maior eficiência, resultado inevitável de um grau
mais elevado de legitimidade.
À legitimidade segue-se o cumprimento das normas e decisões de forma
menos custosa, pois que mais consentida, exigindo do Poder Público não uma
postura de coação e de constrangimentos, mas de incentivos e fiscalização. Daí
porque ao Estado é benéfica uma política de participação que conduza a
resultados mais concertados .
4.2.1Na Esteira de um Modelo mais participativo : A Representaçãodo usuário
Enquanto a percepção do administrado como assujetti não se fizesse
ultrapassar por outra menos passiva, seria inconcebível cogitar-se de uma atitude
social mais participativa. Assim é que a representação do administrado como
30 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório.31 Idem, p. 162-163.
142
usuário, surgida no início do século XX, representou um avanço nesse sentido,
sedimentando os percalços de uma Estado servidor, que, nesta condição, deveria
satisfazer às expectativas da sociedade. Uma administração menos cerrada deveria
ser capaz de possibilitar uma maior integração da sociedade às decisões e atos do
Poder Público, o que malogrou diante de uma postura excessivamente paternalista
do Estado. Contudo, abriu o caminho para o reconhecimento da necessidade da
participação dos administrados na implementação de políticas públicas, o que
inegavelmente, por si só, representou um avanço.
Antes de adentrar o assunto, cabe ressaltar uma associação corriqueira
estabelecida entre os termos usuário e consumidor, que, no entanto, não deve ser
tida como necessária. De fato, a Constituição de 1988 deu sede distinta aos
conceitos, eis que reservou aos usuários lei específica, conforme previsto no artigo
37, §3o, sendo certo, por outro lado, que o Código de Defesa do Consumidor é
norma geral sobre produção e consumo, comportanto disciplina também
específica.32
O específico tratamento conferido aos usuário ocorre por força de uma
situação de todo peculiar, e isso desde o seu nascimento. Jacques Chevallier
assinala como a introdução, em inícios do século XX, dos termos usuários e
serviços públicos, traduziu uma nova relação da administração pública com os
administrados, firmada na necessária diminuição da imperatividade de seu poder.
Colocado como beneficiário das prestações estatais, o usuário assume o principal
papel destinado aos administrados, ao lado de outros como o de parceria e de
sujeição. E a importância do vocábulo atinge tal monta que chega a esgotar o
sentido do termo administrado, tentando, com isso, transformar-se no modelo e
matriz das relações entre administração e público. Esse esforço insere-se na
tentativa de superar as conotações negativas de dependência, de passividade e de
sujeição que o termo administrado ressuscita.
Concebido doravante como sujeito de direitos, essa nova representação do
administrado desenvolveu-se junto à nova perspectiva adotada pela administração
pública. Ambos caminham para uma relação dialogal, centrada no pressuposto de
atendimento dos serviços públicos, cujo núcleo cristaliza-se em três princípios
básicos: continuidade, igualdade e possibilidade de a Administração alterá-los, ou
seja, mutabilidade.
143
Contudo, Chevallier nota que o espectro do administrado faz-se sentir na
figura de um usuário cativo, submisso aos serviços públicos: “pouco sensíveis e
fracamente receptivos às solicitações do público, os serviços públicos tendem à
orientar sua ação em função de variáveis que lhes são próprias e a ditar sua lei aos
usuários”.33 Decerto, através de uma construção ideológica que faz da
administração o garante e defensor do interesse geral, ela assegura a sua
supremacia: como cabe à administração, em última instância, conceituar o
interesse geral a ser satisfeito no caso concreto, pode inclusive, nessa
conceituação, ir de encontro aos interesses dos próprios usuários. Legitima-se,
assim, o primado da oferta administrativa sobre a demanda social, escoando o
interesse geral em prol da própria administração. Assim, ressalta o autor, as
situações concretas de dependência dos usuários não desaparecem, apenas tomam
formas mais sutis, e, por isso mesmo, mais eficazes.
Alain Plantey destaca que, a partir da compreensão, por parte dos poderes
públicos, de que a adesão e a cooperação dos usuários podem contribuir
decisivamente para o sucesso de suas empreitadas, passou a administração a
dispensar esforços para uma maior informação dos usuários. Informar implica em
sair do contexto de desigualdade: de um lado, trata-se de dar ao administrado um
melhor conhecimento de seus direitos e de suas possibilidades e uma mais justa
percepção das motivações da administração; por outro lado, trata-se do cuidado da
administração de saber as opiniões e os desejos de seus parceiros. Esta
constatação faz com que o Estado exija cada vez mais do administrado uma
postura ativa, seja através do preenchimento de declarações, pelas quais ele se faz
conhecer pela administração, seja através das pesquisas e verificações que o
levam a participar ativamente de seu próprio controle.
Essa participação é essencial à nova representação pretendida pela
administração pública, pois, nas palavras de Chevallier, contribui à socialização
do administrado, diminuindo as reações de rejeição em face da administração, e
favorecendo a aceitação das suas disciplinas.34 Opera, assim, um efeito de
normalização que assegura certos tipos de comportamento, cujo controle se faz
pela via da auto-disciplina dos usuários.
32 SOUTO, Marcos Juruena Villela Souto. Op. Cit, p. 351.33 CHEVALLIER, Jacques. “Figures de L’usager”, In: Psychologie et Science Administrative, p.44.34 Idem, p. 46.
144
As reações da opinião passaram a acompanhar os projetos mais
importantes da administração, que deve, para tanto, conhecer melhor os fatores
sociológicos e psicológicos da ação. Nesse sentido, a participação, como um meio
de coletar informação, tende a reforçar a eficácia do poder.
A emancipação do usuário passa, portanto, por uma modificação profunda
da lógica da ação administrativa, que oscila entre diversas concepções possíveis.
Contudo, como ator, parceiro ou cliente, o usuário não consegue se desprender do
tradicional contexto de submissão à administração. O tradicional distanciamento
entre a administração e os usuários, que se dava pela utilização de formulários ou
de guichets de atendimento, é substituído por um distanciamento que se calça na
diferenciação dos papéis de cada um: os agentes, que detêm o monopólio do saber
e o privilégio da competência, estabelecem as diretrizes de comportamentos dos
usuários. O novo distancialmento funda-se, portanto, na separação entre
normalizadores e normalizados.
Em suma, Chevallier e Plantey sugerem que as novas representações dos
usuários não trazem uma real emancipação do administrado. As dependências
com a administração não são rompidas de fato, o que pode ser atribuído não só às
fracas instâncias representativas dos usuários, como também à falta de uma noção
acentuada de participação, que conduzam efetivamente a uma influência nas
decisões da administração.
Tal dependência, se é que se pode dizer que no Brasil a Administração
algum dia cumpriu esse papel integralmente, foi golpeada com a crise dos serviços
públicos e das estatais, quando se fizeram sentir os efeitos de uma passividade
cívica profunda. A falta de organização e de institutos fiscalizatórios facilitou,
paradoxalmente, o rápido desgaste do modelo paternalista e a sua decadência
parecia um processo incontornável. Tal foi o processo descrito anteriormente, que
levou ao surgimento avassalador do Estado regulador. Neste modelo, existe uma
expectativa muito grande de participação efetiva da sociedade, refletida na
previsão de mecanismos participativos nas leis insituidoras das agências.
145
4.2.2O Instituto da Participação nas Agências Reguladoras
Com o intuito de aumentar o grau de legitimidade não apenas das decisões
e normas das agências, mas também do próprio modelo regulatório, as leis
criadoras das agências reguladoras prevêem mecanismos diversos de participação,
que vão desde a simples obrigação de realização de consultas públicas, passando
pelas audiências públicas, até a institucionalização de um Conselho Consultivo,
órgão permanente integrado na agência. Tais institutos inserem-se na tentativa de
obter uma participação social mais dinâmica. No entanto, essa participação não é
delineada por uma lei geral, restando insuficiente para a sua efetiva
implementação a simples menção nos textos legais criadores das agências. Sem
dúvida, a falta de uma lei geral das agências reguladoras, e, conseqüentemente, a
falta de normatização clara sobre o assunto enfraquecem o instituto, tornando-o
mesmo ineficaz.
No entanto, não se pode negar que o surgimento das agências reguladoras
dá origem a uma forma mais interativa de atuação da Administração Pública,
contando com a participação de importantes setores da sociedade, bem como com
a parceria necessária de órgãos de defesa do consumidor. Moreira Neto assinala
algumas vantagens oriundas dessa política interativa, vantagens de índole tanto
política, como também técnica e fiscal. A vantagem política reside na abertura da
participação ao administrado, fortalecendo a legitimidade das decisões das
agências; a técnica, por sua vez, está na despolitização de decisões, evitando
pressões políticas de grupos de interesse; finalmente, a vantagem fiscal, na medida
em que esses entes podem ser criados sem novos ônus para o Estado,
prescindindo de novos tributos para custeá-los, cobrados diretamente dos
beneficiados dos serviços prestados.
Cabe frisar que a consensualização diz respeito sobretudo à concertação,
na qual a Administração não deixa de atuar unilateralmente, mas procura, antes de
emitir o seu ato, obter o assentimento dos sujeitos envolvidos. Ou seja, a
Administração continua com a palavra final sobre os assuntos, daí porque, para
obter uma base para a sua decisão, deve fazer uso de técnicas de convencimento e
de persuasão, que possam levar a decisões mais eficazes. É que, de acordo com
Marcos Juruena Villela Souto, a participação não deve apenas ser facultada, mas
146
perseguida, sendo inclusive desejáveis, para tal desiderato, “consultas específicas
para a obtenção de contribuição efetiva”.35 Decerto, para agir legitimamente, a
Administração Pública deve propiciar o espaço público de discussão para tentar
alcançar o acordo: “a magnitude da regulação é, em princípio, diretamente
proporcional ao seu nível de consensualização, seja ela concertada ou
contratada”.36
A administração concertada, há muito em voga na França, conta com o
apoio de fortes mecanismos de participação dos administrados: os comitês de
usuários trazem a possibilidade de um diálogo direto entre a administração e os
atores sociais, diminuindo-lhes a distância. Como forma de consultação coletiva,
leva à uma resposta comum, que é necessariamente mais motivada e flexível.
Ainda que o seu resultado seja apenas facultativo, sempre apresenta o interesse de
melhor informar o responsável e associar à preparação da decisão quem
contribuirá à sua execução. Antes da elaboração dos textos, esses procedimentos
se generalizam pois eles têm igualmente a vantagem de facilitar a aceitação das
assembléias parlamentares.
O princípio da consulta não se limita às decisões individuais, mas estende-
se à organização do serviço. A composição paritária das comissões e comitês
consultativos, que se multiplicaram em centenas na França, teve por efeito
reforçar o caráter corporativo da função pública, limitando o poder hierárquico,
trazendo como efeito uma tendência de a autoridade seguir os pareceres que lhes
são dados. Aliás, Plantey assinala que numerosas sao as comissões que tem um
poder de decisão ou cujo parecer é de determinado grau que sempre é seguido.
Nesse sentido, reconhece que, em geral, os conselhos consultativos realizam uma
forma muito completa de participação, notadamente sobre o plano das
deliberações preparatórias, da coordenação de estudos, da síntese de pesquisas, da
difusão de informação, da ligação entre os serviços, da explicação das motivações.
A concertação, como a etapa mais elaborada desse processo, diz ele, faz com que
as partes coincidam suas atitudes e suas intervenções ulteriores a fim de dar efeito
às decisões que lhes são convenientes. Assim é que ela pode realizar uma
verdadeira associação entre os particulares e o Estado, a quem ela permite regular
importantes dificuldades sem ter de recorrer à coerção.
35 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 82.36 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 114-115.
147
Moreira Neto denota o caráter procedimental da concertação da
administração estatal. Em nossa ordem constitucional, o caráter participativo do
processo é uma garantia implícita, decorrente de diversos dispositivos
consagrados como direitos fundamentais, assegurada pela redação do artigo 5o, §
2o, da Constituição, que assevera que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados (...)”. Especificamente em relação ao usuário dos serviços públicos, o
princípio da participação encontra-se expresso, desde a modificação introduzida
pela Emenda Constitucional n. 19/98, no artigo 37, §3o, da Constituição da
República de 1988, nos seguintes termos:
Art. 37 A administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes daUnião, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aosprincípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e,também, ao seguinte:§ 3- A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administraçãopública, direta e indireta, regulando especialmente:I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliaçãoperiódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atosde governo, observado o disposto no art. 5o, X e XXXIII;III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo decargo, emprego ou função na administração pública.
Oriundo do princípio democrático, a participação possibilita uma maior
contribuição da sociedade na feitura de normas e tomadas de decisões das
agências, sendo imprescindível à sua legitimidade e eficiência. Nas leis
instituidoras das agências, o princípio é instrumentalizado principalmente através
de audiências públicas e de coletas de opinião. Nesse sentido, ressalta Moreira
Neto que:
(...)o instituto da audiência pública é um processo administrativo de participaçãoaberto a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamentoda legitimidade das decisões da Administração Pública, criado por lei, que lhepreceitua a forma e a eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem odireito de expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o PoderPúblico a decisões de maior aceitação consensual, esclarecendo que a eficáciavinculatória, na fase instrutória implica que os subsídios recebidos só podem sercontrariados pelo órgão público competente para decidir sob motivação realista e
148
razoável, ao passo que as diretrizes recebidas em fase decisória, ao revés, nãopodem ser afastadas pela Administração, salvo por vício de forma.37
O direito de participação envolve desde o conhecimento da tramitação
reguladora, que atinja aspectos extroversos, até a audiência, a participação e a
negociação ponderada de interesses, sendo esse o traço distintivo de uma nova
postura da Administração Pública, inserida na era da motivação, conforme
destacou Moreira Neto. Como qualquer decisão de conteúdo jurídico, hoje
também para as decisões administrativas reguladoras exige-se um processo
argumentativo, o qual é possibilitado pela motivação de suas atividades, que
exponha “todas as considerações de valor pertinentes para o deslinde da questão a
ser decidida”, incluindo-se aí não somente os valores levantados no caso, como
também, os valores decorrentes do chamado “argumento sobre as conseqüências”,
evitando que “de suas decisões decorram imprevistos e incontroláveis resultados
nocivos para os interesses a serem por ele juridicamente acautelados”.38
As decisões exigem uma ponderação de interesses, envolvendo o Poder
Público, o consumidor e o fornecedor de bens ou serviços, “(...)razão pela qual
deve ser exarada com base em critérios técnicos que assegurem o atingimento do
ponto ótimo, para o que deve ser assegurada a independência do regulador em
relação aos interessados (impedindo-se a chamada captura do regulador)”39. A
consensualidade abre mais espaço de parceria e de complementaridade entre a
sociedade e seus instrumentos políticos, demandando ordenamentos apropriados.
As políticas tornam-se mais efetivas, já que decorrentes do acordo de vontades e
do compromisso livremente assumido e não imposto. 40
Sobre a participação, cabe sublinhar as palavras de Alain Plantey:
Ainsi se développe le contenu juridique et pratique de la notion de participation:en réalité, celle-ci n’est pas tant le partage de l’autorité que celui despréoccupations et des responsabilités. Elle oblige le citoyen à sortir de sapassivité ou de sa crainte, à s’interesser aux finalités et à contribuer aux moyens.Elle contraint l’Etat à lutter contre l’ignorance ou la méfiance et à réduire lespesanteurs, les privilèges et les distances qu’accroît l’institucionnalisation du
37 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas. Apud SOUTO, Marcos JuruenaVillela. Op. Cit., p. 84-85.38 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 187.39 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 85.40 Idem. Introdução.
149
pouvoir. Elle rappelle à l’homme politique que la “langue est le levier dupouvoir.41
Como forma de ampliar a consensualidade e a participação na formação de
normas pelas agências, Souto entende que se deve possibilitar a “provocação
específica da manifestação das corporações envolvidas no segmento regulado
(sindicatos, associações, câmaras de comércio, conselhos profissionais, por
exemplo)”42. Isso ampliaria o debate e ajudaria na consolidação do novo modelo
regulatório de Estado. Outrossim, Moreira Neto assinala que o processo legal deve
ser inteiramente cumprido com base no princípio da participação:
(...) tanto produção como imposição de uma norma reguladora devem iniciar-secom a devida publicidade da intenção da agência, manifestada com a divulgaçãode memória explicativa da oportunidade e da necessidade da norma, com aexplicitação dos trâmites que se seguirão; devem prosseguir com consultas aosinteressados que manifestarem seu interesse na participação convocada, inclusivecom a negociação do conteúdo das pretendidas medidas, e devem terminar com aexplicitação das motivação, em que sejam considerados, positiva ounegativamente que seja, os aportes trazidos pelos interessados.43
O autor assinala ainda que a participação regulatória, como característica
legitimatória, realiza-se pela ampla publicidade, ou seja, pela visibilidade dos atos
e dos processos de regulação, bem como pela garantia de abertura processual aos
administrados, e, finalmente, pela obrigatoriedade ou possibilidade de tomar
decisões com a participação dos interessados.44 Para ele, o princípio da
legitimação pelo processo informa todas as funções extroversas do Estado, dentre
as quais deve ser assinalada a atividade administrativa abstrata reguladora que, do
mesmo modo que a atividade administrativa concreta, poderá alcançar em abstrato
a liberdade e a propriedade das pessoas. Sendo assim, só se legitimará mediante a
observância do devido processo legal, que deve garantir a participação de todos os
interessados através da publicidade, pela intervenção, pelo contraditório e pela
ampla defesa. Isso porque, em sendo o devido processo legal o instrumento de 41 PLANTEY, Alain. Prospective de l’État, p. 233. Desenvolve-se assim o conteúdo jurídico eprático da noção de participação: na verdade, esta não é tanto a partilha da autoridade do que a depreocupações e de responsabilidades. Ela obriga o cidadão a sair de sua passividade ou de seureceio, a se interessar às finalidades e a contribuir para os meios. Ela leva o Estado à lutar contra aignorância ou a desconfiança e a reduzir os ônus, os priviégios e as distâncias que ainstitucionalização do poder faz crescerem. Ela lembra ao homem político que “a linguagem é aalavanca do poder”.42 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 409.43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 188.44 Idem , p. 170.
150
legitimação das normas reguladoras, devem nele encontrar guarida todos os
interesses, tanto o público como o dos agentes privados setorialmente envolvidos,
devendo ser devidamente equacionados e formalizados nos processos decisórios.
Por outro lado, conforme já se fez menção, a devida motivação é requisito
essencial de qualquer decisão processualizada.45
O aporte do entendimento do processo como legitimador advém da
constatação, no plano jusfilosófico, de uma perspectiva argumentativa que se
assenta, sobretudo, nos processos jurídicos. Para Alexy,
(...) não é possível a elaboração de uma teoria moral material que conduza paracada caso prático uma única resposta correta, mas já o é, uma teoria moralprocedimental que formule regras ou condições para a argumentação práticageral. Uma versão promissora de teoria procedimental moral é a teoria dodiscurso e sua racionalidade é uma racionalidade procedimental universal. Oprocedimento utilizado é o argumentativo e o núcleo da teoria do discurso é oacesso racional à discussão acerca de valores. 46
Em um hard case, não subsumido às normas legais de forma lógica, pois
que confronta princípios garantidos pelo ordenamento jurídico, deve-se proceder à
uma ponderação de interesses que permita decidir sobre o peso específico dos
princípios naquele caso. Assim é que, a par do peso geral de que goza o princípio
no ordenamento jurídico, é preciso, diante do caso concreto, decidir de seu peso
relativo específico ao caso. Por isso é que, segundo Alexy, nenhum princípio pode
arrogar-se o estatuto de absoluto, pois seu peso só pode ser aferido concretamente
e, inevitavelmente, apenas de forma relativa se poderá cogitar de um valor. Isso
explica porque, em sua perspectiva, os topoi sejam deficientes, uma vez que não
permitem estabelecer relações entre os princípios, o que só é conseguido através
de uma argumentação jurídica, que insere definitivamente a moral no plano do
direito. Então, ressalta Alexy, existem três planos que devem se complementar no
ordenamento jurídico: o plano das regras, o plano dos princípios e o plano da
argumentação jurídica, que diz como, sobre a base de ambos, é possível uma
decisão racional.
Assim também se deve entender quanto às decisões regulatórias, inseridas
no âmbito geral dos discursos públicos. Tendo em vista a dificuldade de se
alcançar, por meio da participação, um consenso em matérias substantivas
concernentes à regulação, o que deve ser garantido, como fundamental para a 45 Idem, p. 178-180.
151
legitimidade de suas normas e de suas decisões, é a efetiva participação, exigência
de um devido processo legal democrático. Conquanto a agência permaneça com a
última palavra em seus processos, deve possibilitar a mais ampla participação
possível, o que leva à necessidade de motivação dos atos regulatórios, mormente
quando desconformes à opinião obtida pelos instrumentos participativos. Com
efeito, decidir com respaldo social é mais eficiente que decidir contrariamente à
opinião pública, e, por isso, notadamente nestes casos, o cuidado na motivação é
essencial à legitimidade de suas decisões. A possibilidade de colidirem as
opiniões pública e administrativa torna premente que a motivação seja exercida na
maior amplitude possível, pois é através dela que se poderá vislumbrar se a
decisão tomada em descompasso com a opinião social foi efetivamente a mais
razoável, pois que mais eficiente.
Entendida a motivação como tentativa de justificar o discurso como
público, ela deve ser tida como instrumento inseparável da participação social,
pois tanto na feitura das normas quanto na fiscalização das decisões do Poder
Público, é imprescindível a análise das suas razões argumentativas.
Contudo, apenas mediante uma melhor organização dos usuários é que se
poderá vislumbrar uma efetiva penetração no processo decisório das agências, o
que poderá ocorrer, segundo Souto, tanto informalmente, com a organização
espontânea da coletividade, ou institucionalmente, mediante a outorga de poderes
a representantes comunitários para que possam interferir oficialmente no processo
decisório. Nesse sentido, assinala Moreira Neto que a ascensão da sociedade civil
advém como “resultado da densificação da consciência de seus interesses e de ser
ela própria origem e destinatária do poder político”.47
Esse assunto liga-se essencialmente à questão do fortalecimento do espaço
público, como forma de efetivar o princípio da participação no plano político
mediante o uso dos poderes institucionais do Estado, principalmente do Poder
Executivo, que é o que detém, grosso modo, os mecanismos de elaboração e
implementação das políticas públicas. Nesse sentido, o surgimento das agências
reguladoras engendra uma relação muito mais íntima entre a Administração, de
um lado, e os cidadãos, mobilizados em torno de espaços públicos destinados a
servir de ponte entre a sociedade e os poderes públicos do Estado. Essa relação é 46 GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 34.47 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 110.
152
tanto mais forte quanto mais bem organizados estiverem os cidadãos, seja em
grupos específicos de interesses, seja em organizações da sociedade civil
destinadas a fazerem valer tais premissas. O poder administrativo associa-se ao
poder social para a obtenção de eficiência e de legitimidade, o que tem um valor
demasiado em um Estado marcado por uma administração burocrática e
ineficiente, que sofria sucessivas crises de legitimidade.
No marco de uma administração concertada, vale novamente lembrar o
recente exemplo da criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, órgão de consulta da Presidência à sociedade civil, que estabelece um
canal paralelo de ligação entre a administração pública e os interessados, que não
se subsume à relação destes com o Legislativo. A relação que se estabelece no
plano desse Conselho é mais íntima, ultrapassando a democracia representativa
em prol de uma democracia participativa, garantindo aquilo que Sônia Fleury
denominou de “governabilidade democrática”: “(...)pactos sociais sustentáveis
que viabilizem, para além das reformas necessárias, a reconstituição do esgarçado
tecido social e a conformação de uma comunidade política nacional”48.
As exigências de audiências públicas e coletas de opinião, previstas nas
leis instituidoras das agências reguladoras, exprimem uma preocupação de se
assegurar esferas públicas de discussão no âmbito administrativo. São
mecanismos, que, assim como a presença nos colegiados dirigentes de
representantes da sociedade civil, a exemplo do que se dá no Conselho Nacional
do Meio Ambiente – CONAMA (Decreto 99274/90, artigo 5º), e na Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio (Decreto 1752/95, artigo 1º),
buscam suprir eventual deficit democrático.
De fato, essa previsão de participação busca suprir eventual deficit
democrático co-natural a todas as agências reguladoras que, além de vastos
poderes normativos, têm seus dirigentes resguardados da livre exoneração pelos
poderes democraticamente eleitos. Assim é que a realização dessas participações
é condição de validade dos atos e normas a serem editados pelas agências,
cabendo a estas, no caso de recusa das opiniões ofertadas por estes instrumentos
de participação, motivar a decisão. Isso porque, ainda que existam mecanismos
prevendo a participação pública no processo regulatório, a Administração Pública
48 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a Democracia”. O Globo, 06/03/03.
153
continua com a última palavra na matéria, desde que o faça motivadamente e
dentro dos quadros estabelecidos pela lei. 49
O princípio da participação e do consenso requerem que, pela via da
negociação, o interesse geral possa ser definido, ressaltando-se, neste ponto, a
atuação do agente regulador como ponderador dos interesses em pauta. Isso
porque, como já assinalado, as normas reguladoras, por força da abertura que lhes
é inerente, não pré-define o interesse público especificamente visado, o que
somente pode ser conseguido no caso concreto mediante o uso da
discricionariedade técnica. É por meio desta, portanto, que se legitima a tutela de
interesses setoriais, uma vez que, não obstante desprovidos da legitimidade
política exercida via eleição, atende a valores relevantes, como a eficiência,
visando o desenvolvimento de cada um dos segmentos da sociedade.50
Moreira Neto, aprofundando o tema, destaca que a participação
administrativa espraia-se em três institutos afins: a coleta de opinião, o debate
público e a audiência pública. Segundo o autor,
A coleta de opinião é um processo de participação administrativa aberto a grupossociais determinados, identificados por certos interesses coletivos ou difusos,visando à legitimidade da ação administrativa pertinente a esses interesses,formalmente disciplinado, pelo qual o administrado exerce o direito de manifestarsua opção, orientadora ou vinculativa, com vistas à melhor decisão do PoderPúblico. O debate público, por sua vez, é um processo de participaçãoadministrativa, aberto a indivíduos e grupos sociais determinados, visando àlegitimidade da ação administrativa, formalmente disciplinado, pelo qual oadministrado tem o direito de confrontar seus pontos de vista, tendências,opiniões, razões e opções com os de outros administrados e com os do próprioPoder Público, com o objetivo de contribuir para a melhor decisão administrativa.A audiência pública (...) acresce às características dos dois institutos anterioresum maior rigor formal de seu procedimento, tendo em vista a produção de umaespecífica eficácia vinculatória, seja ela absoluta, obrigando a Administração aatuar de acordo com o resultado do proceso, seja relativa, obrigando aAdministração a motivar suficientemente uma decisão que contrarie aqueleresultado.51
Deve-se ressaltar ainda a figura do ouvidor, nomeado pelo Chefe do Poder
Executivo, para receber pedidos de informações, esclarecimentos e reclamações,
bem como responder a tais pedidos. Também insere-se em sua incumbência a de
representar a Agência junto aos órgãos de defesa do consumidor. Contudo, vale
49 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 441.50 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 216.51 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas. Apud SOUTO, Marcos JuruenaVillela. Op. Cit., p. 204-205.
154
notar que a figura de um Ouvidor Geral (artigo 37, § 3, CR), pode chocar-se com
as atribuição de substituição processual cometida ao Ministério Público, nos
termos do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor e artigo 129, III, da
Constituição. Souto entende que a vantagem do ouvidor, além da especialização
técnica e de menor volume de assuntos pendentes, consiste na facilidade do
acesso, o que, no entanto, é neutralizado face à ausência de legitimidade
processual ativa, bem como ausência de sede constitucional. Decerto, a existência
de um órgão como o Ministério Público torna desnecessária a criação da figura do
Ouvidor para os fins que já se incluem em suas atribuições.
Segundo Souto, a elaboração de atos normativos das agências tem exigido
a prévia consulta pública52 sobre a minuta, conforme disposto em lei. Assim, por
exemplo, o artigo 42 da Lei n. 9472/97, relativa à ANATEL – Agência Nacional
de Telecomunicações. Essa participação não se limita a indivíduos isolados, mas
estende-se a coletividades ou a grupos de interesses, que “passam a exercer
influência no modo de vida da sociedade e na formação do próprio
Direito(...)”.Tais grupos, por sua vez, podem ser organizados – manifestados
principalmente por estruturas específicas de lobby, acionando grupos de pressão –
ou episódicos, constituídos para uma ação limitada no tempo.53
Para o autor supra-mencionado, além das implicações processuais que traz
a participação social, não se deve descurar das contribuições substanciais, “pois
que o resultado material respectivo(...), ao ser obrigatoriamente levado em conta,
limita a margem de liberdade administrativa”.54 Foi o sentido do disposto acima,
já que, ainda que não tenha prevalecido a opinião pública na tomada de decisão
pela agência, o só fato desta ter de levá-la em conta, traduz uma responsabilidade
muito maior no resultado advindo de suas decisões, o que requer, por certo, uma
motivação mais profunda.
52 Para Alexandre Santos de Aragão, a consulta pública consiste na confirmação da opiniãopública mediante a manifestação firmada através de peças formais, a serem juntadas no processoadministrativo. A audiência pública é modalidade de consulta, mas consubstanciadafundamentalmente através de debates orais em sessão previamente designada para esse fim.53 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 80.
155
4.2.3Os Instrumentos participativos nas Leis Instituidoras das Agências
A primeira agência reguladora surgida no cenário brasileiro foi a Agência
Nacional de Energia Elétrica, criada pela Lei n. 9427 de 26 de dezembro de 1996.
Já nesta lei, há a previsão da figura do Ouvidor, cuja função encontra-se expressa
no artigo 4º, § 1o: “(...)zelar pela qualidade do serviço público de energia elétrica,
receber, apurar e solucionar as reclamações dos usuários”. O Ouvidor serve como
uma espécie de intermediário entre a agência, a empresa e os usuários, devendo
equilibrar os seus interesses da forma mais ponderada possível, centralizando
“(...)as sugestões, pedidos de informação e reclamações dos usuários, provendo as
informações, ou diligenciando para que estas cheguem ao destinatário, além de
iniciar o procedimento cabível para apuração das denúncias”. 55
A previsão de uma decisão reguladora participativa encontra-se expressa
nos incisos VI e VII do artigo 3º, bem como no §3o deste dispositivo, onde se
prevê a realização de audiência pública no processo decisório que implicar em
afetação dos direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos
consumidores, ou mediante iniciativa de projeto de lei nos mesmos casos. O
processo decisório que admite a figura da audiência pública é de cunho
administrativo, cabendo à sociedade emitir seu parecer, por meio de
representantes, sobre o assunto em pauta. O instituto da audiência pública atua
“(...) como forma de recolhimento de subsídios aos processos de fiscalização e
regulação da Agência”. Diogo de Figueiredo Moreira Neto assinala ser esse
instituto:
(...)um processo administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupossociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisõesda Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficáciavinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências,preferências e opções que possam conduzir o Poder Público a decisões de maioraceitação consensual.56
Por outro lado, o artigo 7o, § 2o, da Lei estabelece aquilo que Moreira Neto
chamou de processualidade aberta, prevendo que “além de estabelecer parâmetros
54 Idem, p. 82.55 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 300.56 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas, p. 7. Apud SOUTO, MarcosJuruena Villela. Op. Cit., p. 84.
156
para a administração interna da autarquia, os procedimentos administrativos,
inclusive para efeito do disposto no inciso V do artigo 3o, o contrato de gestão
deve estabelecer(...), indicadores que permitam quantificar, de forma objetiva, a
avaliação do seu desempenho”.
Uma forma de parceria é ainda prevista no artigo 14, III, ao dispor sobre:
“a participação do consumidor no capital da concessionária, mediante
contribuição financeira para execução de obras de interesse mútuo, conforme
definido em regulamento”.
Segundo Moreira Neto, a Lei instituidora da ANEEL peca pela ausência de
dispositivo que garanta uma processualidade satisfatoriamente aberta, bem como
pela ausência de dispositivo que garanta a ampla publicidade de seus atos, o que,
no entanto, é suprido pela Lei n. 8987/95.
Atenta a tais questões, a Lei n 9472 de 16 de julho de 1997, criadora da
Agência Nacional de Telecomunicações, a ANATEL, prevê, já em seu artigo 5o,
diversos princípios regedores das relações econômicas no setor das
telecomunicações, dentre eles o da defesa do consumidor, o da repressão ao abuso
do poder econômico e da continuidade dos serviços prestados no regime público,
princípios que, em que pese assegurados explícita ou implicitamente pela
Constituição, não pecam pela redundância em sua previsão.
A ampla publicidade de seus atos é garantida pelo disposto no artigo 3o,
IV, o qual prevê ao usuário de serviços de telecomunicações o direito “à
informação adequada sobre as condições de prestação dos serviços, suas tarifas e
preços”. Por outro lado, a previsão de processualidade aberta encontra previsão no
mesmo dispositivo, desta feita no inciso X, quando assegura ao usuário o direito
“de resposta às suas reclamações pela prestadora de serviços”. Finalmente, a
decisão participativa encontra eco no inciso XI, ainda do mesmo dispositivo,
assegurando ao usuário “o direito de peticionar contra a prestadora do serviço
perante o órgão regulador e os organismos de defesa do consumidor”.
O artigo 8º, §1º, da mesma lei, prevê ainda a existência de dois órgãos que
se inserem num contexto mais participativo: o Conselho Consultivo e a Ouvidoria.
O Conselho Consultivo é o “(...)órgão de participação institucionalizada da
sociedade na Agência”, sendo formado por “(...) representantes indicados pelo
Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas
entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por
157
entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da
sociedade, nos termos do regulamento”.57 Por sua vez, o Ouvidor, previsto no
artigo 45, será nomeado pelo Presidente da República para mandato de dois anos e
terá acesso a todos os assuntos, sendo certo que a ele compete produzir
apreciações críticas sobre a atuação da agência semestralmente, bem como
encaminhá-las ao Conselho Diretor, ao Conselho Consultivo, ao Ministério das
Comunicações, a outros órgãos do Poder Executivo e ao Congresso Nacional,
fazendo publicá-las para conhecimento geral.
Preocupado com a questão da captura das agências, o legislador instituiu,
no artigo 30 da Lei 9472/97, a proibição de o ex-conselheiro representar qualquer
pessoa ou interesse perante a Agência até um ano após deixar o cargo. Também
lhe é vedado, nos termos do parágrafo único deste dispositivo, utilizar-se de
informações privilegiadas obtidas em decorrência do cargo exercido.
O artigo 42 da Lei dispõe ainda sobre a necessidade de consulta pública
para as minutas de atos normativos.
No artigo 21 há a previsão de as sessões do Conselho Diretor serem
registradas em ata para arquivamento em Biblioteca disponível para o público em
geral. Por outro lado, as sessões deliberativas que se destinarem à resolução de
pendências entre agentes econômicos e entre estes e consumidores e usuários de
bens e serviços de telecomunicações serão públicas.
Pode-se perceber que a lei que instituiu a ANATEL é a mais completa,
prevendo mecanismos participativos muito mais sólidos que as demais agências.
No entanto, seu modelo não foi seguido pelas outras agências que se lhe
sucederam. Basta observar as leis que as criaram.
Na Lei n. 9478 de 06 de agosto de 1997, criadora da Agência Nacional do
Petróleo, o artigo 17 estabelece que “o processo decisório da ANP obedecerá aos
princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade”, asseverando
no artigo 18 que as sessões deliberativas da Diretoria da ANP relativas à resolução
de pendências entre agentes econômicos e entre estes e os consumidores serão
públicas.
Por outro lado, a decisão participativa fica a cargo do artigo 19, que prevê
a realização de audiências públicas prévias às iniciativas de projetos de lei ou de
57 Artigos 33 e 34 da Lei n. 9472/97.
158
alteração de normas administrativas que afetem direito dos agentes econômicos ou
de consumidores e usuários de bens e serviços.
Lamentavelmente, sem seguir os rumos da Lei instituidora da ANATEL, a
Lei criadora da ANP não previu expressamente a processualidade aberta, o que
gera debilidade na participação em seus atos, eis que, como assinalado, a
legitimação pelo processo é algo que se vem consolidando cada vez mais. Por
outro lado, a ausência de legitimidade ou a fraca legitimidade do ente regulador
coloca em risco a própria eficiência das suas atividades, e, com isso, a própria
razão de ser do ente regulador pode cair por terra.
Por sua vez, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA,
criada pela Lei n. 9782, de 26 de janeiro de 1999, não prevê qualquer instrumento
de participação regulatória, o que resulta na deficiência de suas atividades e na
duvidosa legitimidade de suas decisões.
A Lei n. 9961, de 28 de janeiro de 2000, instituidora da Agência Nacional
de Saúde Suplementar, a ANS, não tem dispositivo assegurando a ampla
publicidade. Porém, a processualidade aberta é prevista no artigo 10, VI, dispondo
que compete à Diretoria “julgar, em grau de recurso, as decisões dos Diretores,
mediante provocação dos interessados”. Por outro lado, a decisão participativa
encontra-se prevista no artigo 13 da Lei.
Finalmente, a Agência Nacional de Águas, ANA, instituída pela Lei n.
9984, de 17 de julho de 2000, tem a ampla publicidade assegurada no artigo 8o,
cuja redação dispõe que “a ANA dará publicidade aos pedidos de outorga do
direito de uso dos recursos hídricos de domínio da União, bem como atos
administrativos que dele resultarem, por meio da publicação na imprensa oficial e
em pelo menos um jornal de grande circulação na respectiva região”. Por sua vez,
a decisão participativa tem previsão no artigo 4o, quando prevê que “a atuação da
ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política
Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e
entidades públicas e privadas, integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento
de Recursos Hídricos(...)”. Apenas a processualidade aberta não encontra previsão
expressa, cabendo aqui as mesmas observações feitas para a Lei que instituiu a
ANP.
Cumpre frisar, por último, que a Agência Nacional do Cinema – a
ANCINE, criada pela Medida Provisória n. 2228-1, de 06 de setembro de 2001,
159
não apresenta características suficientes que permitem apontá-la como uma
autêntica agência reguladora. Ademais, é de duvidosa idoneidade constitucional a
criação de uma agência reguladora via Medida Provisória.58
De toda essa exposição, o que se nota é a absoluta falta de coesão entre as
leis criadoras das agências. Sem dúvida, a Lei da ANATEL é a mais completa,
dispondo de forma mais ampla e aprofundada sobre todos os importantes aspectos
da agência, dentre eles os referentes à competência regulatória, à independência
regulatória, bem como à participação regulatória. Contudo, as leis posteriores não
a tomaram como exemplo, do que resultou a criação de agências extremamente
débeis, notadamente na questão da participação regulatória. E isso gera reflexos
na legitimidade de suas decisões, bem como na eficiência das medidas adotadas.
Toda a vantagem que poderia advir com a adoção do modelo regulador parece
esvaziar-se pela ausência de requisitos mínimos de participação, seja na questão
da publicidade de suas decisões, seja na questão da participação na decisão, bem
como na abertura processual que deve garantir aos interessados.
Deve-se atentar que, uma das formas de evitar tal esvaziamento está no
controle de tais entes, seja o controle social, seja o judicial, apenas para citar
alguns exemplos, pois que o Poder Judiciário pode anular uma decisão reguladora
para a qual não tenha concorrido efetivamente a participação dos interessados.
4.4Formas de Controle da Participação
Não obstante possuírem uma autonomia reforçada, as agências reguladoras
têm seus atos sujeitos tanto a um controle externo, que pode ser político, judicial,
financeiro-orçamentário, bem como administrativo intersetorial e social, como a
um controle interno, de natureza administrativa.59
O controle político, exercido pelo Legislativo e Executivo, tem início na
própria inspiração do projeto de lei que dá origem à agência, pois que estabelece a
que estrutura da administração direta ficará vinculada, o valor da taxa de
regulação e do critério de nomeação e exoneração, organização e remuneração
58 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 192.59 Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
160
dos seus agentes, passando, em seguida, à definição e aprovação dos seus
dirigentes.60
O controle judicial, por sua vez, não pode ser afastado em virtude de
aplicação expressa de preceito constitucional consagrado no artigo 5o, inciso
XXXV, da Constituição, que garante a inafastabilidade do acesso ao Poder
Judiciário, estendendo-se, por conseguinte, tal controle sobre todo o espectro
regulatório. Deve-se notar que as decisões das agências são elaboradas com base
numa discricionariedade técnica, que não se confunde, conforme já anotado, com
a discricionariedade política, eis que aquela envolve “a valoração de fatos
opináveis segundo pautas técnico-administrativas”.61 Daí porque os atos que dela
derivem podem ser amplamente revistos pelo Judiciário, que deve, contudo,
observar a conduta do agente público quando se encontre dentre as variáveis da
razoabilidade. Apenas se admitirá a substituição da conduta do agente público
quando ilegal ou manifestamente irrazoável. A esse respeito, vale transcrever as
palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem
haverá indevida intromissão judicial na discricionariedade administrativa se ojuiz se propuser a sobrepor seu critério pessoal a outro critério, igualmenteadmissível e razoável, adotado pelo administrador. Não haverá indevidaintromissão judicial na correção do ato administrativo se o critério ou opção doadministrador houverem sido logicamente insustentáveis, desarrazoados,manifestamente impróprios ante o plexo de circunstâncias reais envolvidas,resultando por isso na eleição de providência encontrada com a finalidade legal aque o ato deveria seguir.62
Para Marino Pazzaglini Filho, trata-se de um poder-dever que tem o Poder
Judiciário “(...) de examinar e anular todas as ações, atos e contratos
administrativos imorais, ineficientes, irrazoáveis e desproporcionais em relação ao
resultado prático ou fim público que a Administração Pública pretendeu
alcançar”.63
60 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 381. Alexandre Santos de Aragão ressalta que oproblema do deficit democrático das agências reguladoras é suprido pela ingerência do PoderLegislativo sobre a sua criação, manutenção e extinção; pela fixação das políticas públicas setoriaspela Administração central; pela ponderação necessariamente razoável dos diversos interesses emseus processos decisórios individuais e normativos; e pela necessidade da existência no Estadopluralista contemporâneo de entidades técnicas tendencialmente neutras do ponto de vista político-eleitoral61 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 399.62 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Controle Judicial dos Atos Administrativos. RDP- 65, p.37.63 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios Constitucionais Reguladores da AdministraçãoPública, p. 117.
161
Cumpre frisar que muitas vezes, esse controle do Judiciário centra-se em
verificar a ocorrência da participação efetiva dos cidadãos na elaboração de
normas e na tomada de decisões. Nesse sentido, Marcos Juruena Villela Souto
assevera que
as cortes passaram a controlar a razoabilidade das decisões regulatórias sob asleis do processo administrativo, exigindo que as agências demonstrassem não sóo critério adotado como a escolha entre diversas opções, o que exige que tenhaouvido muitos grupos – o que representa aplicação do controle social.(...). Oobjetivo dominante do controle deixou de ser a prevenção das intromissões nãoautorizadas na autonomia privada para se destinar a assegurar justarepresentatividade para todos os interesses envolvidos no exercício do podernormativo atribuído às agências; isso não inclui apenas os grupos econômicosinteressados mas as novas formas de organização política que não receberiamatenção não fosse o controle judicial64
A instituição dessa forma de controle, inserida no modelo regulatório,
permite o fortalecimento de um espaço público determinado a garantir a
discussão de interesses pertinentes à atividade pública desenvolvida, através de
uma ponderação eficaz entre os custos e os benefícios de qualquer medida a ser
implementada pela agência. Ou seja, publiciza-se o debate, ajudando na
construção e consolidação de uma sociedade civil consciente de seu papel de
autora, destinatária e fiscalizadora das políticas públicas projetadas pelo
legislador, democraticamente eleito como seu legítimo representante.
Cumpre frisar que, no comando constitucional de guardião da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesse sociais e individuais indisponíveis,
o Ministério Público deve exercer uma atuação fiscalizadora sobre toda a gestão
administrativa. Ainda que sujeitas a um prévio juízo discricionário65, as atividades
da administração pública sujeitam-se ao seu controle, exercido notadamente
através de ações judiciais, como as ações civis públicas, destinadas a assegurar a
plena eficácia dos princípios constitucionais expressos e implícitos. Para Marino
Pazzaglini Filho, o Ministério Público deve “(...) zelar pelo dever de eficiência
razoável ou adequada da gestão administrativa (...)”.66
Por outro lado, há a possibilidade ainda de um controle financeiro-
orçamentário, que deve ser feito pelo Pode Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de
64 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 40865 Marino Pazzaglino Filho entende não haver ato discricionário ou vinculado, mas sim um préviojuízo discricionário em alguns casos, a que se chama erradamente de ato administrativodiscricionário.66 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit., p. 108.
162
Contas, nos termos do artigo 70, caput e parágrafo único, da Constituição ,
vedando-se-lhes, todavia, a ingerência no ‘mérito’67 dos atos regulatórios
praticados.
O controle intersetorial origina-se da necessidade de coordenar as
atividades regulatórias das diversas agências “quando atuem em setores tão
próximos que possam suscitar conflitos de competência”. Segundo Moreira Neto,
para a questão, cabe a instituição, pelas agências, de instrumentos de deliberação
ou negociação, bem como a criação de órgão intersetoriais, ou ainda, a criação,
mediante lei, de uma agência intersetorial que tenha competência para dirimir tais
conflitos.68
Nesse sentido, deve-se ressaltar a importância do CADE – Conselho
Administrativo de Defesa Econômica –, atuar junto às agências reguladoras,
tornando imperiosa, nesse modelo, uma articulação inter-institucional efetivada
através de convênios de cooperação. O desejável, postula Gomes, “é que se
estabeleça um mecanismo de cooperação entre os diversos agentes reguladores,
permitindo a troca de informações e buscando a serenidade da atuação das
agências de regulação envolvidas e dos órgãos de defesa da concorrência (...)”.69
O controle social liga-se à idéia de a sociedade, em conjunto ou
isoladamente, ter participação nas ações de controle. Segundo Souto, tal
participação “(...)pode se dar tanto pelo estímulo à formação de associações de
usuários e consumidores(...), como pela participação de representantes dessas
entidades nos conselhos definidores da política pública, nas comissões
parlamentares e/ou das agências reguladoras(...)”.Ressalte-se, contudo, que os
conselhos têm função meramente consultiva, o que não lhes retira a importância, 67 Como foi anotado acima, na discricionariedade técnica, por não envolver juízo de conveniênciae oportunidade, não há própriamente mérito, daí a colocação do termo entre parênteses, mais paraindicar o conteúdo do ato praticado.68 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 202. Alexandre Santos deAragão ressalta a importante questão, que diz respeito à submissão de setores específicosregulados por agências reguladoras ao sistema de proteção de concorrência (SDE, SAE e CADE),gerando o que se pode chamar de conflitos intersetoriais. Para o autor, a questão se resolve nosseguintes termos: se a própria lei não compuser a maneira como deve ser solucionado o conflito,em se tratando de agência reguladora de atividade econômica, prevalecerá, em princípio, acompetência do CADE, facultada a celebração de convênio ou a edição de ato normativo conjuntopara dissipar o conflito. Em se tratando, por sua vez, de agência reguladora de serviços públicos,em razão de outros interesses em jogo, que amenizam a importância da concorrência no setor,entende-se que a última palavra deve ser a da agência reguladora, assegurada a existência dedispositivo legal em contrário.
163
já que a participação nas deliberações, bem como a atribuição de legitimidade
para questionamento judicial, permitem moralizar a atuação dos administradores,
no sentido de que, ao elaborarem as normas, terão maior cuidado em fazê-las de
boa fé. Ademais, a participação da sociedade engendra uma “expectativa de
motivação” quando as decisões forem de encontro às deliberações, o que
proporciona também maior possibilidade de controle externo via judiciário.70
Introduzida inicialmente sobre o plano da decisão judicial, a motivação das
decisões, imperativo das sociedades democráticas que clamam pela transparência
dos atos dos agentes públicos, estende-se para o campo do direito administrativo,
cujo paradigma regulatório vai assumindo suas feições, e cujas imperfeições estão
nascendo com a própria prática.
Esta modalidade de controle, por encontrar-se difundida na Constituição,
não precisa vir expressa na lei instituidora da agência, dirigindo-se ao controle da
legalidade e da legitimidade dos atos das agências reguladoras. Porém, ressalta
Moreira Neto, “tanto a lei instituidora como o regime de cada uma dessas
entidades deverá prever o acesso dos interessados e definir os processos
participativos, para que se realize o mais amplamente possível esta saudável
modalidade difusa de controle”.71
Finalmente, o controle interno72 tem natureza administrativa e decorre do
exercício do poder de autotutela da administração. Como órgãos integrantes da
administração indireta, os entes regulatórios independentes sujeitam-se ao
controle ministerial, embora não caiba o chamado recurso hierárquico impróprio.
Sua autonomia deve ser entendida face ao chefe do Poder Executivo e não face ao
Poder Executivo em si, o qual integra.73 Por outro lado, a fim de que sejam
observadas as diretrizes estabelecidas pelo governo para o setor, prevê-se “a
celebração de contrato de gestão contendo diretrizes de atuação administrativa do
ente regulado de acordo com as políticas do Poder Público, servindo de
69 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 312.70 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 384.71 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Administrativo Regulatório, p. 203.72 Segundo Alexandre Santos de Aragão “existe, de fato, um controle, não-hierárquico, exercidosobre as agências reguladoras, controle este que poderá ser de legalidade, gerenciais e finalísticos,implementados através da verificação do atendimento de metas e diretrizes preestabelecidas. Issoporque as agências reguladoras inserem-se num modelo misto de Estado: se de um lado, nãosubordinam-se ao controle hieráquico, pois não seriam autônomos, por outro lado, se nãoestivessem sujeitos a nenhuma subordinação, ainda que de direção, sequer integrariam aAdministração Pública Indireta”. Agências Reguladoras, p.73 Também nesse sentido, ver José Maria Machado Gomes. Op. Cit.
164
instrumento de controle da atuação administrativa da autarquia e da avaliação do
seu desempenho”.74 Em suma, pode-se dizer que a Administração Pública exerce
o controle sobre tais entidades, seja diretamente, através do Ministério do setor
concernido, seja indiretamente, através Chefe do Poder Executivo, pois é quem,
em última instância, traça as políticas públicas a serem implementadas, cabendo
aqui lembrar as palavras de Luís Roberto Barroso, no sentido de que:
(...)se couber às agências a determinação integral das políticas públicas do setorregulado, pouco restará ao chefe do Executivo em termos de competênciadecisória, valendo lembrar que é ele quem detém a legitimidade democrática,recebida nas eleições, para exercer a função administrativa.75
O acima exposto deixa claro que as agências reguladoras não se encontram
livres para implementarem as políticas públicas da forma que melhor lhes
aprouver. Pelo contrário, encontram-se, como entidades integrantes da
administração indireta, adstritas aos princípios administrativos, sobretudo os da
legalidade, legitimidade, participação e razoabilidade. Por outro lado, por
representarem um espaço de mediação social, requerem não apenas o
consentimento do governo, representado pelos órgãos integrantes da
administração direta, como também da sociedade, incluindo aqui os interesses dos
usuários e dos empresários. Em suma, os entes reguladores encontram-se
amarrados aos princípios administrativos e muito particularmente à participação
social, cuja concretização garantirá a probabilidade de resultados legítimos de sua
atuação.
4.5Efeitos da Implantação do Modelo Regulador: Via Aberta àArgumentação
Moreira Neto ressalta que um dos pontos de convergência entre os autores
que trabalham a matéria é o otimismo em relação a essa nova forma de atuação do
Estado.76 Contudo, embora a implementação desse modelo possa trazer sementes
para uma administração pública mais legítima e ética, alguns problemas vem
74 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 304.75 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, DireitoRegulatório, p. 49.76 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 211.
165
sendo encontrados neste percalço. Gomes relata as dificuldades para a
implementação do modelo regulatório no Brasil, que têm sido basicamente a falta
de uma cultura de agências regulatórias, ingerências políticas por parte do próprio
governo e a falta de quadros funcionais tecnicamente competentes. 77
Ao lado da ausência de uma cultura de agências reguladoras independentes,
que restam assim “(...)infensas a pressões do próprio governo e a falta de
excelência técnica do corpo funcional”, Gomes assinala ainda a falta de uma
cultura de participação social, pois, o Brasil não goza de “(...) uma cultura
democrática de conquista pela cidadania, bem como não há qualquer
compromisso por parte da população com formas associativistas. (...) O que se
espera de um órgão regulador, quais são as suas funções e de que forma os
usuários podem participar do processo são alguns aspectos que devem ser
mencionados”.78
José Baraf79 atenta para um “risco de desmoralização das concessões pela
criação de desvios e canais paralelos de pressão”. O que se assiste, segundo o
economista, é a uma “esculhambação” dos mecanismos institucionais e formas de
utilização mais racional dos fatores de produção escassos na sociedade. O papel
das agências reguladoras consiste em preservar, em benefício dos usuários, os
objetivos da regulação, a saber: a promoção do funcionamento eficiente dos
serviços com tarifas e qualidade adequadas, e o alcance das metas estipuladas em
contrato quanto à chamada universalização dos serviços, dentre outros. Quando o
que se nota é que esses objetivos estão sendo desvirtuados sob o manto protetor
do Poder Executivo, então há uma evidente tentativa de desmoralizar o instituto
das concessões e, por via de conseqüência, o próprio paradigma regulador.
O perigo de que fala Baraf insere-se nos riscos de captura das agências
reguladoras não apenas pelas empresas, como também pelo próprio Governo, o
que esvazia sobremaneira os motivos que levaram à implantação do modelo
regulatório no Brasil, retornando à velha e duradoura confusão entre governo e
administração, já apontada, desde meados do século XIX, pelo Visconde do
Uruguai.
77 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit.78 Idem, p. 336-337.79 Em artigo publicado no Jornal O Globo, intitulado “Concessões e regulação: maus presságios?
166
Contudo, a compreensão da matéria não deve ficar apartada de uma análise
da conjuntura política em que surgiram os entes reguladores, e, com eles, a
administração pública reguladora. O fato é que, apesar de prevista desde a
promulgação da Constituição da República de 1988, a administração pública
regulatória apenas foi implementada e concretizada nos últimos anos de gestão do
Governo Fernando Henrique Cardoso, que teve oito anos de duração, somados os
dois mandatos. O momento político acenava para uma mudança sem precedentes
na história do país: a “esquerda” aproximava-se do poder com uma força
crescente, e a intensa insatisfação social com o Governo FHC parecia não oferecer
alternativas. Esse quadro foi decisivo para a aceleração dos processos de reforma
do Estado brasileiro, fazendo crescer vultosamente o número de agências
reguladoras, que teriam como dirigentes pessoas nomeadas pelo então Presidente
da Repúiblica, Fernando Henrique Cardoso.
O processo que se prenunciava concretizou-se: eleito Luís Inácio de Lula
Presidente da República, encontrou-se este amarrado ao modelo implantado
precariamente pelo seu antecessor, principalmente pelo fato de os dirigentes das
agências reguladoras não poderem ser exonerados ad nutum pelo chefe do Poder
Executivo, devendo-se lembrar aqui a alternativa oferecida por Celso Antônio
Bandeira de Mello no sentido de que a vedação para a exoneração deveria ficar
adstrita ao presidente que o tivesse nomeado. Os dirigentes nomeados, com
mandatos por vezes superiores ao do próprio Presidente da República, sentem-se
intocáveis e acima de qualquer prerrogativa presidencial. Inobstante, deve-se
lembrar que as agências reguladoras tem por função implementar as políticas
públicas, cujas diretrizes mais gerais são ou devem ser fixadas pelo Poder
Executivo. Contudo, a velha confusão entre Governo e Administração não se
apagou, pelo contrário, parece aprofundar-se quando o que se discute é o poder
normativo atribuído às agências reguladoras a título de discricionariedade técnica.
Nesse sentido, a confusão é generalizada: não apenas aqueles que dela se
beneficiam – os dirigentes comprometidos com interesses escusos de empresários
ou de grupos de pressão -, como também os que criticam o “excessivo” poder
conferido às agências. O que ocorre é que a prática tem distorcido bastante o papel
das agências e do próprio governo, pois em algum momento este falhou: ou na
falta de diretrizes públicas ou na falta da necessária supervisão ministerial.
167
Toda essa celeuma vem engendrando uma ampla discussão sobre o papel
das agências reguladoras e a possibilidade de exoneração ad nutum de seus
dirigentes. Conforme ressaltado, tais questões não suscitariam tantos problemas se
de fato não houvesse no país uma forte confusão entre as esferas política e
administrativa. A tentativa de separar-se a administração pública de pressões
políticas parece que não surtiu o efeito esperado desde a implantação do regime
regulatório. Equivocadamente discute-se o poder normativo das agências, quando
na verdade o que distorce o processo é o seu não uso ou o seu uso equivocado. A
falta de normatização das agências em prol de interesses de grupos econômicos ou
de pressões políticas é que vêm deslegitimando o Estado pretensamente regulador
– “que o diga o vexame do apagão, produzido menos por falta de chuvas e mais
por falta de regras”80.
Assim, a captura do órgão regulador assume formas sutis de dominação
política, baseada na ausência de regulamentação do setor, facilitando a ação de
grupos de interesses, que se beneficiam da falta de normalização e,
principalmente, de clareza sobre a função desses órgãos. Por outro lado, as
diretrizes gerais que deveriam ficar a cargo do poder público não são definidas
satisfatoriamente, deixando em aberto questões políticas da maior relevância. Foi
assim também no caso paradigmático da crise energética:
O problema que está ocorrendo no Brasil (...) é que a lei que criou as agênciasdetermina que elas seriam aplicadoras da política energética. Só que quandoforam criadas, em fins da década de 90, o governo deixou de formular as políticaspara o setor(...) Elas foram aos poucos tomando decisões políticas, porque ogoverno não fazia. O grande problema delas é que começaram a operar sem teruma orientação de política(...)81
A discussão em relação ao controle do governo sobre as agências gerou
um projeto de lei da deputada Telma Souza (PT-SP)82, da base parlamentar do
governo, que visa conferir ao governo a prerrogativa de fixar os preços de tarifas
públicas e acabar com a estabilidade de seus diretores, através da possibilidade de
exoneração pelo Presidente da República. Contudo, esta solução, por demais
radical, não parece ser a mais adequada para uma gestão pública mais ética,
devendo adotar-se, por mais consentânea com a realidade, a solução apontada por
Bandeira de Mello. 80 BASTIDE, Juliano. “Neo-intervencionismo?”. O Globo, 02/03/03.81 ORDOÑEZ, Ramona. “Agências não são independentes”. O Globo, 02/03/03.
168
Por outro lado, um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
publicado no Diário Oficial da União no dia 24 de março de 2003, determina em
seu artigo 11, que caberá à Secretaria de Telecomunicações fiscalizar a ANATEL.
Segundo artigo publicado no jornal O Globo83, de 25 de março de 2003, a
assessoria do Ministério das Comunicações alertou que não há intenção de
subordinar a agência, tirando sua condição de autarquia especial. Ocorre que a
possibilidade de controle das agências por parte do governo já existe inclusive em
âmbito constitucional, prevendo o artigo 87, parágrafo único, inciso I, dentre as
atribuições de Ministro de Estado, a de supervisionar órgãos e entidades da
administração federal na área de sua competência. Ou seja, a previsão de controle
das agências já existe de há muito, antes mesmo de seu surgimento no cenário
político brasileiro, basta colocá-la em prática.
O que se nota pelo que ficou acima exposto é que existe uma grande
confusão em torno dos postulados regulatórios do Estado brasileiro, que muito se
deve à falta de uma normatização clara sobre a matéria, que seja capaz de garantir
suas características mais gerais. A edição da Lei n. 9986/00 não atendeu aos
anseios de padronização das agências, eis que se restringiu a regular basicamente
a gestão de recursos humanos, o que, aliás, fez de forma precária, tanto é que vem
sendo objeto de uma ação declaratória de inconstitucionalidade, conforme já
exposto.
O fato é que todas essas questões envolvem um aspecto maior do que o
universo das agências reguladoras: a tomada de posições governamentais de
forma transparente. Uma postura política bem definida e delineada com clareza é
essencial para o bom andamento dos postulados regulatórios do Estado, colocados
em prática recentemente. O diálogo entre o governo e os agentes reguladores é
fundamental para a consolidação do modelo e para a consagração de uma
democracia substancial. Insere-se nesse intento a mais recente criação do Governo
de Luís Inácio Lula da Silva: o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, que põe em prática os anseios de participação no desenvolvimento de
políticas públicas. No entanto, o órgão consultivo da Presidência vem recebendo
duras críticas, como um potencial fragilizador das instituições democráticas,
“solapando a autoridade do Executivo e/ou concorrendo com as atribuições do
82 Informação publicada no Jornal O Globo de 20 de março de 2003, de Evandro Éboli.83 Artigo publicado no jornal O Globo de Mônica Tavares em 25/03/03.
169
Legislativo”84. O caráter antidemocrático da instituição tem sido levantado
também por aqueles que entendem ser esta uma “tentativa do governo de cooptar
a sociedade civil organizada, escolhendo atores-chaves para participar de um
processo de discussão (sedução), cuja intenção seria nada mais que reduzir suas
resistências às reformas”85.
Não obstante, o instituto, importado por Tarso Genro do modelo
constitucional francês, representa uma tentativa de reabilitar o espaço público,
estabelecendo um palco para a relação entre governo e sociedade. Representa,
pela inclusão do outro, uma saída da esfera de indiferença, uma tentativa de
aproximação que informa necessariamente o processo de participação social,
conforme ressaltou Alain Plantey, comentando a experiência francesa. Ao
possibilitar não só ao governo, como também à agência reguladora, tomarem
conhecimento de expectativas da sociedade e da opinião pública, o instituto recém
criado permite um amplo diálogo entre os atores sociais, garantindo ao modelo
regulatório a sua mais ampla legitimidade.
Com isso, equilibra-se os postulados técnicos dos princípios da eficiência
e da especialização através de uma participação fomentada pelo poder público.
Contudo, Plantey assinala que a participação começa pela formação, pois exige do
interlocutor uma certa preparação, que não se esgota no ensinamento
administrativo, cívico e político: publicações, visitas, exposições etc farão melhor
conhecer as leis e regulamentos, os serviços públicos, sua organização, sua
missão, seus meios e sua motivação. Trata-se, em suma, de fazer evoluir a
mentalidade tanto dos agentes públicos como dos cidadãos.
Deve-se notar que o poder de decisão permanece com o Estado. Contudo,
a consulta à sociedade civil permite-lhe partilhar de sua autoridade, ou melhor,
transferir a sua responsabilidade. Este o sentido de participação a que Plantey
atenta. Decerto, conforme ressaltou o autor, se a consolidação desse modelo
favorece a tomada de posições do administrador nos moldes do parecer emitido
coletivamente, quando tal não for conveniente, cabe ao administrador explicitar-
lhe as razões. E isso passa por uma motivação minuciosa, que conduza à
persuasão de todos os interessados e principalmente daqueles que hajam
manifestado opinião discordante em processo de consulta. A assunção de
84 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a democracia”. O Globo, 02/03/03.85 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a democracia”. O Globo, 02/03/03.
170
importância do paradigma argumentativo se fará sentir com toda a sua força: não
se trata de expor conclusões intangíveis, a que todos se dobrariam, mas de indicar,
por argumentos racionais, que a conclusão a que chegou é a melhor para aquela
situação, ainda que incialmente equivocada a opinião pública a respeito. A
revalorização da argumentação como metodologia da razão prática insere-se no
âmbito administrativo, para tanto valendo-se do exemplo fornecido pelos
tribunais, cuja motivação já está mais assente.
Assim é que o alarde inicial com as caracterísitcas mais inovadoras das
agências aos poucos cede espaço para uma conscientização do espaço aberto para
o diálogo nesse modelo. Também a dificuldade dos ministérios em implementar
políticas de forma técnica contribui para uma maior conformação ao modelo em
vias de implantação. Em recente matéria no Jornal O Globo, “Ministérios de
mãos atadas”, Mônica Tavares descreve a discussão:
O governo constatou que não basta apenas criticar as agências reguladoras,argumentando que essas instituições devem se limitar a fiscalizar e regular ossetores aos quais estão vinculadas. Embora já esteja acertado que cabe aoExecutivo estabelecer as diretrizes gerais dos setores, além de ditar políticas depreços, os novos ministros perceberam que seus ministérios estão completamentedesaparelhados e que, por isso, desempenhar essas funções pode ser mais difícildo que se pensou inicialmente. Desde que assumiu, o novo governo colocou asagências reguladoras na berlinda. (...) No entanto, já existe agora nos ministériosligados a esses setores a percepção de que as decisões políticas devem ter aparticipação das agências, devido principalmente à falta de técnicosespecializados. Ao mesmo tempo, a falta de políticas delineadas pelo Executivoatrapalha as agências reguladoras.86
O administrador, cujo discurso deve ser reconhecido como público na
medida em que se afigurar legítimo, tem interesse em motivar suas decisões e em
decidir, na medida do possível, de acordo com a opinião pública. O livre
convencimento dos agentes públicos deve ser motivado, como se dá com o juiz no
exercício de sua função jurisdicional: não se nega a existência de um grau de
subjetivismo aos atos dos agentes públicos, inerente a qualquer atividade humana,
apenas se lhes exige o amparo do interesse público, a que se subordinam. Este o
sentido de moralidade administrativa, que deve permitir aos cidadãos a anulação
de atos e decisões quando desconformes com o interesse público que deveria tê-
los motivado.
86 TAVARES, Mônica. “Ministérios de Mãos Atadas”. O Globo, 02/03/03.
171
A consolidação de uma cultura regulatória afigura-se, portanto, essencial
para a concretização do Estado regulador nos moldes desejados pela democracia
substantiva: com independência funcional, evidentemente ponderada com o
exercício do poder político exercido pelo Presidente da República, e poderes
normativos, incluídos na sua mais ampla função de conferir eficiência às pautas
programáticas traçadas pelo Poder Público, para a qual a participação é
imprescindível. Outros objetivos, assegurados pelo uso de tais prerrogativas,
inserem-se nas suas atribuições, como zelar pelos interesses dos usuários de
serviços públicos, assegurar a concorrência e evitar a oligopolização dos
mercados, resolver conflitos administrativamente entre os usuários e as empresas
reguladas, ou entre estas e o Poder Público, especificar o interesse público a ser
perquirido no caso concreto, o que deve ser feito com base em técnicas de
ponderação de interesses que leve em conta os critérios técnicos e a sua eficiência
atual e futura. Para o cumprimento de todos esses objetivos, é fundamental
analisar as contribuições que podem advir de uma teoria do discurso baseada no
uso da racionalidade argumentativa, visando decidir, na prática, os valores que
devem ser levados em conta na operação.
Cumpre frisar ainda que a complexificação das sociedades modernas, que,
segundo Habermas, gerou uma multiplicação de subsistemas que tendem à
autonomia, leva inevitavelmente ao processo de especialização e a uma cultura de
experts distante do grande público, conduzindo ao empobrecimento cultural da
prática cotidiana. A adoção do modelo regulador calcada no princípio da
profissionalização e da especialização tende a se separar da sociedade, juntando-se
às empresas operantes no setor. Decerto, o Estado regulador é o Estado da
especialização, mas também da interdisciplinariedade, pois pretende regular
setores econômicos e sociais através do uso do direito como instituidor de regras
mínimas procedimentais que permitem levar a uma decisão legítima e eficiente.
Assim, a participação, garantida procedimentalmente, deve permitir a formação de
espaços públicos fortes e independentes o suficiente para que possam fazer frente
aos interesses dos experts, evitando os riscos permanentes da captura. Aqui, será
de fundamental importância a função a ser desempenhada pelo Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social, como verdadeira ponte de ligação entre o
governo – entendido no sentido amplo, englobando a administração direta e a
indireta, na qual se inserem as agências, já que visam a cumprir pautas públicas –
172
e os atores sociais, representados ou não por comitês representativos de
categorias. Esta exigência decorre do corte no conceito de legitimidade tradicional
relatado por Moreira Neto: ao lado da legitimidade política, a legitimidade social
deve ser alcançada, tendo em vista o potencial deficit democrático que assombra
os entes reguladores independentes.
Assim é que, utilizados de acordo com a sua melhor orientação, os
institutos criados pelas leis das agências reguladoras, que fomentam uma
participação social na formação de normas e tomadas de decisões, permitem uma
ampliação do debate aos mais diversos setores sociais, gerando normas mais
legítimas e decisões mais cuidadosas. Contudo, e isso é extremamente relevante,
quanto mais fundamentadas tiverem de ser as decisões administrativas, mais estas
levarão em conta a opinião pública abarcada: é um mecanismo de fluxo e
contrafluxo, pois, na medida em que ao fundamentarem – e isso é essencial nas
decisões não concertadas da Administração Pública -, os agentes públicos
expõem-se mais ao controle e fiscalização da sociedade e do Judiciário. E tomar
uma decisão reverenciada pela opinião pública é sempre mais facil de sustentar do
que o oposto.
E é disso que cuida o paradigma argumentativo, preocupado em tornar as
decisões racionalmente motivadas, mediante o uso público da razão, calcada num
procedimento discursivo centrado em valores compartilhados por determinada
comunidade histórica. O espaço público, categoria central da obra habermasiana,
arena dos debates, local de ressonância dos problemas sociais, reforçado por uma
sociedade civil consciente e atuante, abrirá mais vias de ação social, colocando na
pauta de debates do legislativo questões cruciais discutidas no bojo da sociedade.
A organização da sociedade civil e o fortalecimento da cidadania ativa,
implementados por processos de tomada de consciência da população, são
fundamentais para que o paradigma argumentativo contribua efetivamente para o
fortalecimento da participação nas agências regulatórias. As técnicas de
convencimento e de persuasão possibilitam aos atores sociais a inserção de suas
idéias e expectativas nas pautas dos poderes públicos, uma vez que, mostrando a
importância de suas contribuições para a implementação de políticas eficientes,
bem como mostrando que suas opiniões são as mais razoáveis, através de
mecanismos argumentativos, asseguram um maior grau de influência nas decisões
e na elaboração de normas. Se, do contrário, vigorar uma fraca organização cívica,
173
que, ainda não devidamente consciente de sua condição, não seja capaz de fazer
uso de instrumentos argumentativos eficientes no convencimento da
essencialidade de sua participação, continuará vigendo uma política de vantagens
e privilégios, tal qual ocorria no regime do Estado Patrimonialista, cujo espectro
ainda se faz sentir, uma vez que não se encontram consolidados, como resulta
evidente, os postulados de uma participação efetiva.
Por outro lado, a importância do paradigma argumentativo também se fará
sentir por parte dos administradores, principalmente quando tiverem de decidir
sem o respaldo da opinião pública consultada, quando se fará premente uma
motivação minuciosa que conduza ao convencimento geral da sociedade. Disto
dependerá a legitimidade de sua atuação e a eficiência em seu cumprimento.
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