View
1
Download
0
Category
Preview:
DESCRIPTION
espinosa
Citation preview
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 00-00
11
Os conflitos no seio da multitudo. Conflicts within the crowd (multitudo).
Marilena Chaui
*
Fecha de Recepcin: 1 de diciembre de 2013
Fecha de Aceptacin: 1 de diciembre de 2013
Resumen: El texto, pensado como una intervencin en el Brasil contemporneo,
analiza los conflictos que pueden darse al interior del concepto de
multitud en el abordaje de Baruj de Spinoza y cmo el trmino es
transformado, desde la escritura del Tratado Teolgico-Poltico al
Tratado Poltico.
Palabras
clave:
Multitud; Spinoza; Copnflictos; Brasil.
Abstract: The text, thought as an intervention in contemporary Brazil, aims to
analyze the conflicts that may arise within the notion of crowd
(multitudo) in the work of Baruj de Spinoza and how the concept
changed from the writing of the Theological-Political Treatise to the
Political Treatise.
Keywords: Crowd; Spinoza; Conflicts; Brazil.
* Nota de los editores: Este texto fue ledo como ponencia en el Coloquio Internacional Spinoza
realizado en Rio de Janeiro en noviembre de 2013 y cedido gentilmente por la autora para su
publicacin en Anacronismo e Irrupcin.
Marilena de Souza Chaui es profesora de Filosofa de la Universidad de San Pablo, miembro fundadora
del Partido de los Trabajadores de Brasil, ex secretaria de Cultura de San Pablo y autora de
innumerables textos sobre todo sobre Spinoza y Merleau-Ponty, entre ellos Nervura do Real. Imanncia
e Liberdade Em Espinosa, publicado por Companhia das Letras en 1999. Correo electrnico:
mchaui@ajato.com.br.
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
12
Observaes de traduo (porque haver divergncia com algumas tradues de
Pires Aurlio, que sero citadas):
Multitudo: multido
Imperium=summa potestas: soberania; poder soberano
Potestas: governo, poder governamental
Ingenium: ndole
Res ordinandae: as instituies
Civitas: a Cidade como entidade poltica
1.
Sabemos que h uma diferena no tratamento da multitudo no TTP e no TP.
De fato, no TTP, Espinosa no distingue entre a plebe, o vulgar e a multitudo,
distino que ser feita no TP.
No TTP, a multitudo vem antecedida de um adjetivo, saeva -feroz, furiosa-,
a turba, descrita como inconstante, varivel, perpassada por afetos contrrios,
sempre conduzida segundo sua prpria ndole (ex suo ingenio) e para mant-la
nos limites necessrios estabilidade e conservao do poder soberano (imperium)
preciso homens prudentes e vigilantes, capazes de conformar as leis ndole da
gente a ser governada (ingenium gentis) exatamente como fez Moiss com os
hebreus. Entretanto, no TP, apesar de sua ndole varivel e de suas paixes
contrrias, a multitudo concebida como sujeito poltico e seu direito ou potncia
natural se torna a prpria definio do poder soberano (imperium). As diferenas
entre os dois tratados decorrem dos novos elementos conceituais estabelecidos pela
tica, graas fsica da coerncia e convenincia entre os corpos, deduo do
modo humano como unio de corpo e mente, definio da essncia singular pelo
conatus, distino entre afetos tristes e alegres e teoria das noes comuns que
permite, na Parte IV, demonstrar que o homem racional s livre na Cidade e no
na solido.
Examinemos brevemente as duas figuras da multido segundo o TTP e o
TP.
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
13
No captulo III do TTP, Espinosa afirma que a razo tanto quanto a
experincia ensinam que o meio mais seguro para viver em paz e em segurana
formar uma sociedade com leis determinadas, ocupar uma certa regio do mundo,
trabalhar em conjunto e trocar os produtos do trabalho e concentrar as foras de
todos como num corpo nico. Ora, desde o incio do TTP, quando interpreta as
diferenas entre as profecias e entre os profetas, Espinosa apresenta como causa
dessas diferenas a variao da imaginao de cada profeta e, portanto, de seu
corpo e de sua ndole. Tomada como conjunto de corpos individuais, exatamente a
mesma variabilidade atribuda ndole da multido, tornando-se claro porque
preciso que a multiplicidade dos corpos individuais que a compem deva
estabilizar-se tornando-se um s corpo, isto , o corpo da sociedade. Eis porque
Espinosa introduzir a noo de pacto, porm no maneira da tradio como
fundador do poltico e sim como uma imagem ou uma representao de que a
multido precisa para dar sentido unidade de seu corpo como corpo social e
poltico.
Ao contrrio, no captulo III,2, do TP, Espinosa demonstra que o direito
do poder soberano (imperium) ou o direito soberano (summa potestas)
simplesmente o direito natural coletivo, determinado no pela potncia de cada
indivduo, mas pela da multitudo quando esta conduzida como que por uma
nica mente (una veluti mente). E explica: da mesma forma que cada um no
estado natural, o corpo e a mente do poder soberano (imperium) tm tanto direito
quanto vale sua potncia. Podemos observar que estamos diante de uma nova
figura do coletivo, elaborada graas ontologia, fsica e a psicologia dos afetos.
E justamente porque agora a multitudo una veluti mente, que ela no mais
precisar da imagem do pacto para formular sua prpria unidade.
Tambm podemos assinalar uma diferena entre os dois tratados do ponto
de vista de suas argumentaes. Em ambos, Espinosa se refere aos ensinamentos
simultneos e concordantes da experincia e da razo, isto , o ponto no qual
ambas se cruzam, ponto de intercesso que Espinosa denomina com a expresso lei
natural para marcar sua universalidade e necessidade: em conformidade com a lei
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
14
natural, experincia a razo ensinam que entre dois males, sempre se prefere o
menor, entre dois bens, sempre se prefere o maior, e que evitamos fazer um mal a
algum por medo de receber um dano maior. Tambm em ambos os tratados,
Espinosa sublinha o papel fundamental das paixes e da mobilidade incessante das
circunstncias. Entretanto, o TTP enfatiza a dimenso racional da fundao
poltica, ainda que Espinosa fale na necessidade de uma arte poltica e se refira s
estratgias que o poder soberano deve empregar para se servir da imaginao e das
paixes dos cidados a fim de conservar-se. Esse apelo a uma arte poltica voltada
para a imaginao dos cidados perfeitamente compreensvel, uma vez que se
trata do corpo da sociedade e do corpo da soberania e, portanto, como todo corpo,
submetidos variao das circunstncias e aos caprichos da fortuna, pondo
continuamente em risco a instituio social e poltica. Diversamente, o TP enfatiza
a dimenso passional da fundao poltica, que decorre da condio natural dos
humanos, e elogia a habilidade emprica dos homens polticos contra as abstraes
inteis dos filsofos; entretanto, Espinosa tambm enfatiza a racionalidade das
instituies cuja qualidade o nico meio para conservar o poder poltico
soberano. Em suma, no TTP, no carter racional da fundao poltica no impede e
sim solicita a exigncia de uma arte poltica, isto , a qualidade das instituies e
das leis depende da prudncia e vigilncia dos dirigentes polticos, enquanto que,
no TP, apesar do carter passional da instituio do campo poltico, a qualidade
racional das instituies e das leis que determina a prudncia e a vigilncia dos
dirigentes polticos. Consideramos que essa mudana da argumentao nos dois
tratados corresponde passagem da referncia ao corpo nico da multido, que
orienta o TTP, unidade da mente nica da multido, que orienta o TP.
Embora tenhamos at aqui salientado as diferenas entre os dois tratados,
gostaramos agora de assinalar suas semelhanas, tomando como critrio o lugar e
o papel do conceito de multido segundo a distino entre o que chamaremos de
sujeito social e sujeito poltico. Essa distino nos permitir compreender as causas
da instituio scio-poltica, as das mudanas de um regime poltico e tambm as
de sua desapario.
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
15
2.
Em suas cartas e nos Pensamentos Metafsicos, Espinosa toma a palavra
multitudo no sentido aritmtico de multiplicidade numrica ou pluralidade
extrnseca oposta unidade. No TTP, embora a multitudo ainda esteja referida
multiplicidade numrica, entretanto ela j pertence ao lxico da poltica, pois
Espinosa no a distingue de duas outras figuras polticas, quais sejam, a plebe (a
massa submetida ao poder de um s ou de um pequeno grupo) e o vulgar (o
supersticioso, ignorante, intemperante, movido pelo medo e submetido ao poder
teolgico-poltico). Um outro aspecto que comprova o pertencimento da multitudo
ao campo poltico a distino espinosana entre a multiplicidade da ndole varivel
e inconstante da multido (varium multidunis ingenium) e a unidade da ndole das
gentes (ingenium gentis) ou da ndole do povo (ingenium populi), isto , a distino
poltica entre trs figuras que pertencem ao campo poltico: a multido como
multiplicidade varivel, as gentes e o povo como unidades estveis. Alm disso, no
captulo XVIII, Espinosa identifica a saeva mulitudinis ira a clera da multitudo
furiosa e a manifestao poltica da ndole do povo, quando os cidados se
voltam contra a violncia dos dirigentes polticos.
O trabalho terico do TTP e do TP descreve uma prtica por meio da qual
uma multiplicidade extrnseca consegue tornar-se uma unidade intrnseca, ou seja,
a passagem da multitudo ao imperium e civitas. Essa prtica de passagem da
multiplicidade numrica unidade scio-poltica se realiza em dois nveis que
podem ser simultneos ou sucessivos, conforme as circunstncias. O primeiro nvel
o da instituio material da sociedade quando um grupo de indivduos concorda
para ocupar em conjunto um territrio, estabelece relaes de cooperao na
diviso do trabalho e na distribuio dos produtos, inventa uma linguagem comum
e meios para se proteger contra os perigos que o ameaam do exterior.
No captulo III do TTP, lemos:
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
16
tanto a razo como a experincia ensinam que no h processo mais
seguro para atingir tais fins do que fundar uma sociedade com leis fixas,
ocupar uma determinada regio do mundo e congregar as foras de todos
para formar como que um s corpo, o corpo da sociedade (et omnium vire
ad unum quasi corpus, nempe societas redigere). [Pires Aurlio, 2004, p.
168]
E no captulo II13 do TP:
Se dois se pem de acordo e juntam foras, juntos podem mais, e
conseqentemente tm mais direito sobre a natureza do que cada um
deles sozinho; e quantos mais assim estreitarem relaes, mais direitos
tero todos juntos. [Pires Aurlio, 2008, p. 281]
Disso decorre a concluso trazida pelo15:
E, assim, conclumos que o direito de natureza, que prprio do gnero
humano, dificilmente pode conceber-se a no ser onde os homens tm
direitos comuns e podem, juntos, reivindicar para si terras que possam
habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a fora e viver segundo o
parecer comum de todos eles. [Pires Aurlio, p. 282]
O segundo nvel o da fundao ou instituio da poltica como passagem
do direito natural comum da sociedade ao direito civil ou ao poder soberano, ou
seja como passagem da potncia individual e grupal para a potncia nica da
multido como sujeito da potncia soberana. Assim, a civitas ou a poltica
instituda com o objetivo de proteger a societas ou a vida social, isto , como lemos
nos dois tratados, seu objetivo impor limites ao direito natural de cada indivduo
que compe a multido, imposio feita por meio do direito natural da multido
constituda pela unidade dos cidados sob a lei. Em outras palavras, a sociedade
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
17
uma composio unificada de indivduos e a poltica uma constituio unitria de
cidados a passagem da composio constituio a obra da instituio da
poltica.
A noo de passagem fundamental, uma vez que do direito natural ao
direito civil no h ruptura, visto que todo direito se define pela potncia para ter
ou fazer alguma coisa. Por isso, no captulo III 2 do TP, Espinosa escreve:
O direito do Estado ou dos poderes soberanos, no seno o prprio
direito de natureza, o qual se determina pela potncia, no j de cada um,
mas da multido, que conduzida como que por um s mente (una veluti
mente ducitur); ou seja, da mesma da mesma forma que cada um no
estado natural, o corpo e a mente de todo o Estado tm tanto direito
quanto vale sua potncia.
Podemos observar que a instituio da sociedade apresentada como
reunio ou concentrao de foras individuais para formar como que um corpo nico
enquanto que a instituio da poltica apresentada como unio de potncias
individuais para constituir a potncia da multido conduzida como uma s mente.
Dessa maneira, podemos afirmar, em consonncia com a tica, que a poltica, uma
mente, a idia da sociedade, um s corpo. Disso podemos concluir: 1. assim como
tica demonstra que todos os corpo so animados em graus diversos, assim tambm o
corpo social animado por uma mente; 2. assim como tica demonstra que todo
indivduo humano constitudo pela coerncia e concordncia de inmeros corpos
que o constituem e dos quais uma mente a idia, assim tambm o corpo social e
poltico possui uma mente que sua idia, e, neste caso, essa idia o direito civil
como direito natural coletivo ou potncia do sujeito coletivo; e 3. mas entre o
indivduo humano e o corpo scio-poltico h uma diferena, marcada pelo emprego
de veluti, isto , como se fosse. O como se fosse indica que, embora a vida social
e poltica devam ser deduzidas da condio natural dos humanos, entretanto, elas no
so imediatamente dadas, mas so institudas pela ao humana quando se passa da
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
18
multiplicidade extrnseca ou numrica de composio pluralidade intrnseca de um
novo corpo e uma nova mente. Que se trata de instituio, trs afirmaes de
Espinosa no deixam dvidas: 1. o TTP declara que a Natureza no cria povos e
naes, mas que estes so institudos pelos humanos e o TP declara que os homens
no nascem cidados e sim se tornam cidados; 2. no captulo IV do TTP, Espinosa
define a lei como deciso dos homens por meio da qual prescrevem a si mesmos e aos
outros as regras da vida em comum; e 3. na abertura do TIE, ao se referir deciso de
mudana na maneira de viver, Espinosa fala em novum institutum.
Enquanto como se fosse um s corpo, a sociedade a materialidade da
concentrao e reunio de foras individuais. Enquanto como se fosse uma s
mente, a poltica a unio das potncias individuais sob a forma da lei ou do direito
civil. Essa unio de potncias institui o sujeito poltico como soberania. Esta,
portanto, um conatus coletivo.
Enquanto corpo, a sociedade se define pela ndole da multido (ingenium
multitudinis). Por conseguinte, ela se define, ao mesmo tempo, pelo esforo de auto-
perserverao na existncia e pela variao e mudana das relaes sociais porque
abertas s circunstncias, contingncia e ao jogo incessante de foras individuais
conflitantes ou concordantes. Isso explica tanto o que se passa no TTP como no TP.
De fato, se no TTP, no momento em que fala da fundao poltica, Espinosa sublinha
a importncia de homens prudentes e vigilantes e se, no TP, ele afirma que preciso
que a poltica seja uma arte para manter a concrdia e a fidelidade dos cidados,
porque ele concebe a multido no s como origem do social e do poltico, mas
sobretudo porque a concebe dilacerada internamente por afetos contrrios que podem
colocar em perigo as duas instituies das quais ela a causa eficiente. Em outras
palavras, a presena da multido como sujeito no a presena da razo no espao
pblico e sim das paixes. Lembremos que, no TTP, Espinosa declara que se os
homens nascessem com o pleno uso da razo jamais fariam dano uns aos outros e no
precisariam da poltica e que no captulo I do TP escreve:
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
19
Mostramos que a razo pode certamente muito a reprimir e a moderar os
afetos, mas vimos tambm [na tica] que o caminho que a mesma razo
ensina extremamente rduo; de tal modo que aqueles que se persuadem
de poder induzir, quer a multido, quer os que se confrontam com os
assuntos pblicos, a viver unicamente segundo o que a razo prescreve
sonham com o sculo dourado dos poetas, ou seja, com uma fbula. [Pires
Aurlio, 2008, p.76]
Eis porque, embora a multido tenha a potncia para passar da disperso
numrica unidade plural da sociedade e da poltica, entretanto, pela mobilidade e
variao de sua ndole passional, ela pode fazer com essa unidade plural recaia na
disperso numrica, desfazendo o social e o poltico.
Julgamos que essa duplicidade caracterstica da multido nos permite
compreender a maneira como Espinosa trabalha com a dualidade inescapvel entre o
social e o poltico. o que examinaremos mais frente.
3.
Graas tica, sabemos que um coisa singular (res singularis) aquela
cujos componentes operam juntos e em simultneo como uma causa nica para
produzir uma ao ou um efeito. Sabemos tambm que uma essncia singular
(essentia singularis) uma potncia de existir e agir que opera em vista de sua auto-
conservao e se define como desejo. Assim, a unidade causal, que define a coisa, e a
potncia de existir e agir, que define a essncia, significam que, da coisa essncia,
h uma passagem dos componentes aos constituintes de uma singularidade, isto , sua
natureza (visto que uma natura uma maneira determinada de agir). Enfim, tambm
graas tica, sabemos que um indivduo a integrao e a diferenciao internas
das partes que o constituem e que essas partes se distinguem em fracas e fortes de
acordo com suas afeces ou suas relaes com as causas externas. So fracas as
partes afetadas que se submetem potncia das causas externas; fortes aquelas que
so capazes no s de resistir potncia das causas externas, mas tambm capazes ou
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
20
de vence-la ou de afeta-la de maneira a faze-la concordar com a sua prpria potncia e
assimila-la sua, tornando-se ainda mais fortes. Dessa maneira, um mesmo indivduo
pode ser fraco em certas afeces e forte noutras, e a potncia de seu conatus
depender de sua capacidade para afastar ou minimizar as partes fracas e fortalecer as
partes fortes.
Dessa maneira, Espinosa pode conceber a concordncia ou convenincia
entre um indivduo e as potncias externas ( exatamente isso que lhe permite
conceber o acordo que leva os humanos sociabilidade) assim como pode conceber o
conflito como forma de relao do indivduo com essas potncias externas, conforme
o afetem de fraqueza ou de fora. Alm disso, Espinosa pode tambm conceber o
conflito no interior de um mesmo indivduo entre suas partes fracas e fortes. Em
outras palavras, o conflito no se limita relao com o exterior, mas tambm se d
interiormente entre as partes constituintes do indivduo e a intensidade desses dois
tipos de conflito depende da fraqueza ou da fora da potncia dos objetos que afetam
de tristeza, alegria e desejo os constituintes do indivduo. A dinmica das afeces e a
lgica dos afetos esto, portanto, abertas concordncia e ao conflito do indivduo
com os outros e consigo mesmo. Isso significa que todo ser singular um campo de
foras internamente concordantes e contrrias e em relao com outros campos de
foras que concordam ou conflitam com ele.
Enquanto como se fosse um s corpo e como se fosse uma s mente, a
multido deve ser concebida como uma singularidade complexa cujos componentes
formam uma causa nica (como toda coisa singular) e constituem uma nica potncia
(como toda essncia singular), mas, ao mesmo tempo, como todo indivduo, ela deve
ser concebida como um campo de foras, portanto, segundo as diferenas de
intensidade de sua potncia, isto , segundo as diferenas de foras que a constituem
e, portanto, habitada tanto pela concrdia quanto pelo conflito entre suas partes ou
entre suas foras. Em suma, Espinosa elabora um pensamento poltico que no ignora
a violncia, mas procura trabalha-la. Em outras palavras, se verdade que a
sociabilidade e a poltica so institudas para garantir a segurana contra a violncia
nua do direito natural, tambm verdade, como afirma o TP, que a poltica no muda
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
21
a natureza dos seres humanos nem elimina a violncia, mas simplesmente busca
caminhos para conte-la, modera-la e limita-la, criando condies para o exerccio da
liberdade, pois, como demonstrado na Parte IV da tica, somente na Cidade e no
convvio com os outros somos livres.
Com isso podemos apanhar o sentido de trs teses que sustentam o
pensamento poltico espinosano:
1. a instituio da poltica visa estabelecer um equilbrio entre trs tipos de
potncias: as potncias individuais, a potncia da multido e a potncia do poder
soberano. Esse equilbrio pode ser conseguido por meio do estabelecimento de uma
proporcionalidade geomtrica entre as trs potncias no momento da fundao
poltica, quando decidido quem ter o direito de exercer o governo ou a direo dos
assuntos pblicos;
2. visto que o direito natural dos indivduos mantido na multido como
direito natural coletivo e que este, politicamente, o direito civil, segue que o inimigo
principal do corpo poltico no externo e sim interno a ele, pois se encontra num
indivduo privado ou num grupo de indivduos privados que pretendam se apossar do
direito civil para servir aos seus prprios interesses;
3. o equilbrio entre as trs potncias incessantemente rompido em
decorrncia da dinmica das foras sociais que por isso a chave para a compreenso
da durao de um corpo poltico, isto , das causas e meios para sua conservao, bem
como para a compreenso de sua mudana ou de se desapario. Em outras palavras,
a histria de um corpo poltico determinada pelo que se passa no campo das relaes
sociais como um campo de foras ora concordantes ora em conflito.
Essas trs teses sustentam dois princpios universais da racionalidade
poltica, entendendo por racionalidade a ratio, isto , a relao proporcional
geomtrica entre as trs potncias:
1. preciso que a potncia soberana seja inversamente proporcional
potncia dos indivduos tomados um a um ou em seu conjunto; ou seja, a potncia do
direito natural coletivo ou direito civil incomensurvel potncia do direito natural
de cada cidado tomados um a um ou em conjunto. Em outras palavras, o direito civil
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
22
assegura o direito natural de cada cidado e de todos eles e por isso mesmo no a
soma desses direitos.
2. preciso, em sentido contrrio ao do primeiro princpio, que a potncia
dos dirigentes seja inversamente proporcional potncia coletiva dos cidados, que
deve ser maior do que a dos dirigentes. Em outras palavras, a potncia dos
governantes no idntica ao imperium ou ao poder soberano, pois este pertence
sempre multido como corpo e mente polticos. Eis porque os trs regimes polticos
conhecidos, justamente porque sua origem sempre a multido e uma deciso da
multido, so designados por Espinosa como res publica.
Esses dois princpios evidenciam que a soberania no pode ser distribuda
porque pertence multido como um todo (integra multitudo) e por isso os regimes
polticos no se distinguem nem pela origem do poder soberano a origem sempre a
multido nem pelo nmero de dirigentes uma vez que a soberania no idntica
aos dirigentes. Portanto, o que distribudo o direito de exercer o governo e
determinao de quem possui esse direito que distingue os regimes polticos. Isso
significa que a potestas o poder de governo distribuvel enquanto que a potentia
a soberania indivisvel. Eis porque, na monarquia, um rei sempre escolhido no
seio da multido e que, na aristocracia, os patrcios fazem parte da multido. Eis
tambm porque ao propor as instituies adequadas a cada regime poltico, Espinosa
se preocupa sempre em propor instrumentos que possam compensar a parte da
multido que est excluda da potestas ou do governo por exemplo, na monarquia,
os grandes conselhos e a assemblia geral do povo, que impedem que o rei fique s e
governe segundo seu arbtrio, assim como a instituio do povo armado ou da milcia
popular, que assegura aos excludos aquilo que classicamente o privilgio da
nobreza, isto , o exerccio do poder das armas; ou, na aristocracia, as instituies que
permitiro plebe, na qualidade de funcionria pblica participar da administrao,
alm de sempre aparecer na cena pblica como uma ameaa ao poder dos patrcios. O
nico regime poltico em que a potentia da multido e a potestas do governo so
idnticos a democracia, por isso designada por Espinosa como omnino absolutum
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
23
imperium, pois nela a soberania e o direito de exercer o governo pertencem integra
multitudo, multido toda.
O campo poltico se organiza, portanto, a partir da diferena entre a
potentia e a potestas: h a multido, cuja potentia define o imperium; h o governante,
cuja potestas se exerce na direo dos assuntos pblicos segundo a lei; h o cidado,
que participa da potestas segundo a distribuio do direito ao governo, feita no
momento da instituio da res publica; e h o sdito, que obrigado a obedecer s
instituies pblicas e lei civil. A sociedade, explica Espinosa, o corpo inteiro
(corpus integrum) do imperium cuja mente (mens) sua potncia (potentia) pela qual
todos devem ser conduzidos e qual cabe a soberania (summa potestas) ou o direito
de instituir a lei.
Os dois princpios da proporcionalidade entre as potncias permitem
apanhar a trplice significao do direito natural como direito de cada indivduo a tudo
quanto tenha potncia para ter e fazer. Com efeito, o direito natural a medida e o
guardio do direito civil, mas tambm a maior ameaa que pesa sobre o direito civil.
Medida: o direito natural que determina a proporcionalidade entre a potncia dos
cidados e a da soberania. Guardio: o direito natural que impede a realizao do
desejo dos governantes de se identificar com a soberania, pois o direito natural que
conserva a potncia dos cidados. Ameaa: por direito natural todos os homens
desejam governar e no ser governados e, portanto, ningum se despoja desse desejo,
que se traduz no desejo de identificar-se com o poder soberano. , assim, que o direito
natural conduz um indivduo privado ou um grupo de indivduos privados tanto a se
erigir em defensores da lei quanto a decidir que do interesse de todos violar a lei; em
outras palavras, o direito natural pe os cidados como inimigos posveis do imperium
e, portanto, como ameaa potncia dos cidados enquanto multido. A esse respeito
vale a pena lembrar o que escreve Espinosa no 6 do captulo IV do TP, quando
emprega a palavra privatus: nenhum indivduo ou grupo privado enquanto privado
tem o direito de se erigir em defensor do direito pblico nem de viola-lo em nome do
bem comum; aquele que o faz um usurpador, um inimigo do imperium. Dessa
maneira, Espinosa o primeiro pensador poltico que desenvolve a idia de que a
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
24
apropriao privada do poder pblico introduz a dominao e a tirania e com elas o
medo contra o qual se institura a vida poltica. A novidade de seu pensamento
encontra-se, em primeiro lugar, em no atribuir a dominao vontade arbitrria de
algum ou de alguns (definio clssica da tirania), e, em segundo lugar e sobretudo,
no fato de que a possibilidade da dominao est inscrita no prprio direito natural
individual e, portanto, a causa da dominao no se encontra em algum vcio em que
incorreriam alguns cidados, ou seja, a causa da dominao no moral, mas natural,
pois os humanos so naturalmente ambiciosos, soberbos, orgulhosos e invejosos. Isso
significa que a tarefa da poltica consiste em determinar recursos pelos quais o desejo
natural de dominao possa ser contido ou bloqueado. Esses recursos se encontram na
qualidade das instituies pblicas e no nas virtudes morais dos governantes ou na
clssica figura do Bom Governo. Exatamente por isso, na abertura do TP, no
pargrafo 6 do captulo I, Espinosa escreve:
Por conseguinte, (...) para que ele [o poder soberano] possa durar, as
coisas pblicas devem estar ordenadas de tal maneira que aqueles que as
administram, quer conduzidos pela razo, quer pelo afeto, no possam ser
induzidos a estar de m-f ou a agir desonestamente. Nem importa
segurana do estado, com que nimo os homens so induzidos a
administrar corretamente as coisas, contanto que as coisas sejam
corretamente administradas.
At aqui, havamos falado em trs grandes teses que sustentam o
pensamento poltico de Espinosa. A trplice significao do direito natural e a
distino entre potentia e potestas nos conduzem ao que chamaremos de sua quarta
tese, apresentada no TTP sob a forma da sabedoria e da prudncia dos fundadores
polticos, atentos ndole (ingenium) da multido e do povo, e no TP com a afirmao
de que a instituio do imperium no pressupe apenas a potncia do agente -- a
multido enquanto sujeito poltico --, mas tambm a aptido do paciente a multido
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
25
enquanto sujeito social. Assim, por exemplo, a guerra engendra uma multido
dilacerada pelo medo da morte e dela no se pode esperar que tenha aptido para a
democracia e sim, ao contrrio, que imagine salvar-se do pavor dando o poder quele
que possui armas e sabe maneja-las, elegendo-o rei, sem perceber, escreve Espinosa,
que para livrar-se de um mal momentneo renuncia liberdade e institui males futuros
duradouros. A distino entre potncia e aptido permite encaminhar essa quarta tese
ao seu fundamento ontolgico, isto , ao que declara o TP quando afirma que por
natureza cada um deseja governar e no ser governado e que por isso preciso
conduzir os humanos de tal maneira que no creiam ser dirigidos, mas que vivem
segundo seu livre decreto e segundo sua prpria ndole. Para isso preciso que, graas
qualidade das instituies e das leis, a soberania e o governante no sejam idnticos,
pois somente assim se ergue uma barreira contra o desejo de apropriao privada do
poder soberano e, portanto, contra o desejo natural de dominao.
curioso, entretanto, que Espinosa considere essencial para a conservao
do poder soberano ser preciso conduzir os humanos de tal maneira que no creiam ser
dirigidos, mas que vivem segundo seu livre decreto e segundo sua prpria ndole. Por
que essa clasula? Seu sentido s se torna claro quando levamos em conta o lugar
ocupado pela democracia.
De fato, diversamente da monarquia e da aristocracia, na democracia no h
diviso ou distino entre a potncia da multido e o governo, isto , entre a potentia
multitudinis e a potestas reipublicae. Por esse motivo ela considerada o mais natural
dos regimes polticos, pois alm de manter a igualdade que todos fruam no estado de
natureza, tambm efetua o acordo entre a potncia poltica e a aptido social ao
realizar o desejo natural de comandar e no ser comandado, uma vez que nela todos
so governantes, cidados e sditos e obedecem s leis que eles prprios instituram.
Governam e no so governados por outros homens. Graas democracia, Espinosa
mostra, por meio de vrios exemplos histricos, que a distino entre a potentia e a
potestas, de um lado, e, de outro, a divisibilidade da prpria potestas, ou seja, a
excluso de uma parte da multido do exerccio do governo, efeito de divises
sociais produzidas pela desigualdade que a prpria sociedade engendra. Somos, ento,
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
26
levados a compreender que a indivisibilidade da soberania ou da potncia da multido
e a indivisibilidade do poder de governar, que caracterizam a democracia como
conservao da igualdade natural, desaparecem sob os efeitos da desigualdade social,
isto , nos demais regimes polticos estamos diante da indivisibilidade da soberania
(ou da potncia da multido como sujeito poltico) e divisibilidade do poder de
governo, portanto, da distribuio desigual desse e, por conseguinte, perante a
excluso poltica de uma parte da multido.
A indivisibilidade da soberania, a divisibilidade do poder de governo, a
excluso poltica, as divises sociais e a conservao do direito natural dos indivduos
sob o direito civil operam em conjunto como causa eficiente necessria dos conflitos
polticos e sociais e dos conflitos entre a poltica e a sociedade. Esses conflitos,
portanto, se do no seio social da multido cindida pelas desigualdades.
Examinemos brevemente alguns aspectos do conflito entre poltica e
sociedade.
O direito civil o direito natural da civitas, portanto, seu conatus ou
potncia de auto-perseverao na existncia. Por conseguinte, escreve Espinosa no
TP, a civitas no pode ser inimiga de si mesma, pois se assim fosse ela se auto-
destruiria. Isso significa que os limites de seu poder so limitaes que ela prpria
impe ao seu direito natural para impedir que este se exera de maneira arbitrria,
assim como para garantir a manuteno da concrdia, determinar quais os conflitos
que ela pode suportar no apenas sem perda de poder, mas tambm como aumento de
seu poder e, finalmente, determinar a obedincia da multido ou dos cidados. A
fixao dos limites da potestas se faz, primeiro, negativamente e, a seguir,
positivamente.
Negativamente: a civitas no pode legislar sobre aquilo que no se submete
s leis como o caso do pensamento e da palavra, das relaes afetivas de cunho
privado --, pois, neste caso, a legislao ser intil. Ela tambm no pode impor o que
contrrio natureza humana e ao direito natural individual parricdio, matricdio,
fratricdio, amar o que se odeia, odiar o que ama -, pois, neste caso, ela produzir o
furor e a indignao da multido, que se rebelar contra ela e a destruir. Em suma, a
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
27
potestas deve levar em conta a ndole e a aptido dos cidados, a fim de inspirar-lhes
respeito e temor e no ser odiada pela potncia da multido.
Positivamente: a civitas deve ser obedecida. O que a obedincia poltica?
Visto que o direito soberano foi institudo pela multido no momento da instituio da
soberania e que, como lemos no pargrafo 1 do captulo IV do TP, o direito de
estabelecer as leis pertence exclusivamente soberania, pois a lei simplesmente a
multido conduzida como que por uma nica mente, conclui-se que a obedincia no
seno a multido obedecendo a si mesma ou sui juris. Em outras palavras, a
obedincia poltica simplesmente a reiterao no imaginrio coletivo da instituio
da civitas e da respublica, pois no momento dessa instituio a multido institui a
incomensurabilidade entre a potncia do imperium e as potncias individuais dos
cidados (o primeiro princpio da proporcionalidade) e a distino entre o que diz
respeito aos assuntos pblicos e o que concerne apenas aos assuntos privados (o
segundo princpio da proporcionalidade). Em suma, a obedincia um ato segundo ou
derivado, que manifesta a virtude da civitas porque capaz de manter os cidados sui
juris.
As determinaes negativa e positiva das limitaes da potestas dos
governantes so possveis simplesmente porque decorrem de sua conformidade
potentia da multido, sua ndole e sua aptido. Essas limitaes nos permitem
apreender a diferena entre obedincia consentida ou liberdade poltica do cidado sui
juris e tirania, isto , ausncia de limitaes e obedincia forada ou servido do
sdito alterius juris. Mas essas limitaes tambm nos permitem alcanar a origem
dos conflitos e das sedies.
No pargrafo 2 do captulo V do TP, Espinosa escreve:
Qual seja a melhor situao para cada Estado, conhece-se facilmente a
partir da finalidade do Estado civil, que no nenhuma outra seno a paz
e a segurana de vida, pelo que o melhor Estado aquele onde os homens
passam a vida em concrdia e onde os direitos se conservam inviolados.
certo, com efeito, que as sedies, as guerras e o desprezo ou violao
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
28
das leis no so de imputar tanto malcia dos sditos quanto m
situao do Estado. Porque os homens no nascem cidados, mas se
fazem-se cidados. Alm disso, ao afetos humanos naturais so em toda
parte os mesmos. Assim, se numa cidade reina mais a malcia e se
cometem mais faltas do que noutra, certo que isso nasce de essa cidade
no providenciar o bastante pela concrdia nem instituir os direitos com
suficiente prudncia e, conseqentemente, no manter absoluto o direito
da cidade. Por que um Estado civil que no elimine as causas das
sedies, onde h continuamente que recear a guerra e onde, finalmente,
as leis so com freqncia violadas, no difere muito do prprio estado
natural, onde cada um vive consoante sua ndole, com grande perigo de
vida. [Pires Aurlio, p.112].
Encontramos aqui o mesmo argumento desenvolvido no TTP, isto , a
origem dos conflitos, das sedies e das revoltas no deve ser procurada na ndole do
povo, pois os humanos no nascem cidados, mas se tornam cidados. e as afeces e
as paixes naturais so as mesmas em toda parte. A origem, portanto, deve ser
buscada no fato de que a prpria cidade no opera para assegurar a concrdia, visto
no instituir os direitos com prudncia e no ser capaz de manter seu prprio direito
como absoluto, isto , no devendo ser julgado nem violado pelos cidados. Em
outras palavras, a origem das revoltas e guerras deve procurada na prpria poltica e
em sua relao com a sociedade.
Se a civitas promulga leis inteis ou que causem indignao e furor dos
cidados, que julgam legtimo e necessrio erguer-se contra elas, se as instituies
polticas so feitas de molde a gerar privilgios e excluses (ou o que Espinosa chama
de julgar os cidados segundo as riquezas em jogo), ento ela prpria que suscita
sedies e revoltas.
De fato, o que a sedio ou a revolta? Esta aparece como um conflito
entre os cidados, determinado pelas divises sociais. Esse aparecer oferece a imagem
da sedio ou da revolta e oculta o essencial, aquilo que ela efetivamente : o conflito
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
29
entre uma parte dos cidados e a lei, entendida no s como um conjunto de
permisses e interdies, mas tambm como o conjunto das instituies polticas em
relao com as instituies sociais. A sedio ou revolta repe a sociedade como
composio, portanto como unificao de partes fracas e fortes que pode ser desfeita
pelas prprias condies sociais em que se opere o conflito entre as partes, e essa
composio precria inviabiliza a realizao da poltica como constituio ou unidade
do corpo e da mente da multido, como lgica e dinmica de potncias e no de
foras. A revolta ou a sedio , portanto, o ressurgimento da diviso entre partes
fracas e fortes ou a diviso poltica no seio da multido, acarretada pelas divises
sociais. Em outras palavras, as divises dos sujeitos sociais (as relaes desiguais de
foras) tornam visveis as divises de potncias no seio do sujeito poltico (que
deveria ser uma nica potncia, um s corpo e uma s mente). Na revolta, o sujeito
poltico cindido se relaciona com o poder poltico como se este fosse uma fora ou
uma potncia externa que o afeta, a revolta sendo o esforo para no sucumbir ao
poderio dessa exterioridade. A revolta evidencia que a distino entre a potncia
soberana e o poder dos dirigentes foi desfeita, que este pretende identificar-se com
aquela, de maneira que a potestas dos governantes se abate como exterioridade sobre
a potentia do sujeito poltico.
Se a civitas impotente para impedir sedies ou revoltas, se ela surge
como fora externa que se abate sobre os cidados, porque ela no est
verdadeiramente instituda como realidade poltica, no realizou a passagem da
unificao social unidade poltica ou, como escreve Espinosa, no instituiu seu
direito absoluto como Cidade. Ora, isso significa que lhe falta aquilo que a define
como Cidade, isto , o reconhecimento de sua soberania como potncia da multido
falta-lhe a interioridade do poder ou a imanncia do poder aos cidados ou ao
sujeito poltico. Alm disso, uma sedio ou uma revolta significam que a identidade
entre potncia e direito (o jus sive potentia) ainda no foi instituda e reconhecida, isto
, que a potncia/direito da multido no foi instituda como direito civil e, portanto,
falta ao corpo poltico sua mente e que ele se deixa arrastar por uma mente
imaginria. Se falta ao corpo poltico sua mente, ento a Civitas no foi
Os conflitos no seio da multitudo.
El problema de la Igualdad en la Teora Poltica Clsica y Moderna ISSN 2250-4982 - Vol. 4 N 6 - Mayo 2014 a Noviembre 2014 pp 11-30
30
verdadeiramente instituda, no Cidade, mas uma sociabilidade violenta que as
instituies e as leis so impotentes para moderar, pois essa violncia foi engendrada
pelas prprias instituies e pelas prprias leis. Eis porque Espinosa mostra que a
ausncia de verdadeira instituio poltica se manifesta nas formas polticas fundadas
na excluso de uma parte da multido nas decises pblicas, quando se produz a
distncia entre a imagem do regime poltico e sua forma efetiva, isto , a tirania como
se fosse monarquia e a oligarquia como se fosse aristocracia. Em outras palavras, a
ausncia de verdadeira instituio poltica o que permite a usurpao da forma
poltica pelo poder social de indivduos e grupos privados. Ao contrrio, sob a
aparncia de uma subverso da instituio poltica, na realidade a revolta ou a sedio
indicam a falta de uma verdadeira instituio poltica e o desejo de busca-la.
assim que interpreto a exigncia democrtica de uma reforma poltica no
Brasil.
Recommended