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A ESCRITA DE TEXTOS POR CRIANÇAS EM PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO: APRENDENDO CIÊNCIAS
Cecília M. A. Goulart/UFF
O presente estudo se desenvolve em perspectiva discursiva, com fundamentação
bakhtiniana, expandindo pesquisas anteriores do grupo voltadas para o aprofundamento da
compreensão sobre o processo de alfabetizar-se de crianças. O objetivo geral é investigar
aspectos da aprendizagem inicial da elaboração do discurso escrito de crianças em processo de
alfabetização, especialmente envolvendo Ciências como uma área de conhecimento, observando
(a) fatores que intervêm no desenvolvimento desse conhecimento; e (b) modos de construção
deste discurso. Neste sentido, destacamos as formas de estruturação do dizer, os recursos
expressivos de que se valem as crianças para escrever determinado gênero do discurso, e
aspectos estilísticos que contribuam para a organização dos saberes relativos à linguagem social
implicada na produção do discurso em questão. A ênfase do estudo se localiza nos modos como
os sujeitos se esforçam para organizar e dar sentido a seus textos, aprendendo como se
organizam diferentes discursos escritos, como novas linguagens sociais, novas formas de
apreensão da realidade e novas formas de ação social e política. Os textos escritos analisados
foram produzidos por crianças de sete anos no segundo ano do Ensino Fundamental (EF). São
crianças de uma mesma turma cuja professora as acompanhou ao longo dos dois primeiros anos
do EF, em escola pública na cidade do Rio de Janeiro, pertencente a UERJ – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Diferentes dificuldades sobressaem no esforço das crianças para dar
conta das construções composicionais que seriam adequadas ao que desejam expressar. As
soluções dadas apontam processos em organização em que a palavra de autoridade está aberta
como espaço de aprendizagem criadora das crianças.
Palavras-chave: alfabetização; produção de textos; Bakhtin.
O presente estudo se desenvolve em perspectiva discursiva, com fundamentação
bakhtiniana, expandindo pesquisas anteriores do grupo voltadas para o aprofundamento da
compreensão sobre o processo de alfabetizar-se das crianças (GOULART, 1997, 2001, 2003;
GOULART et alii, 2005, 2010). O objetivo geral é investigar aspectos da aprendizagem inicial
da elaboração do discurso escrito de crianças em processo de alfabetização, especialmente
envolvendo Ciências como uma área de conhecimento, observando (a) fatores que intervêm no
desenvolvimento desse conhecimento; e (b) modos de construção deste discurso. Neste sentido,
destacamos as formas de estruturação do dizer, os recursos expressivos de que se valem as
crianças para escrever determinado gênero do discurso, e aspectos estilísticos que contribuam
para a organização dos saberes relativos à linguagem social implicada na produção do discurso
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em questão. A ênfase do estudo se localiza nos modos como os sujeitos se esforçam para
organizar e dar sentido a seus textos, aprendendo como se organizam diferentes discursos
escritos, como novas linguagens sociais, novas formas de apreensão da realidade e novas formas
de ação social e política.
Contextualização teórico-metodológica
Os textos escritos analisados foram produzidos por crianças de sete anos no segundo
ano do Ensino Fundamental (EF). São crianças de uma mesma turma cuja professora as
acompanhou ao longo dos dois primeiros anos do EF, em escola pública na cidade do Rio de
Janeiro, pertencente a UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O trabalho
pedagógico desenvolvido pelo corpo docente da escola é reconhecido pelos pares e por outras
instituições como um trabalho de qualidade. Os textos investigados fazem parte do banco de
dados do grupo de pesquisa.
O trabalho pedagógico da professora da turma envolve a circulação de textos orais e
escritos de variados gêneros e objetivos, que são discutidos focalizando-se aspectos de seus
sentidos globais e de suas partes. A professora estimula que as crianças conversem e leiam e
escrevam do modo como podem e sabem. Aos poucos, os alunos vão se apropriando de
conhecimentos tanto ligados à escrita da linguagem escrita quanto a diferentes áreas do
conhecimento, incorporando-os aos seus textos. O trabalho se mostra interessante porque a
criança, desde o início, é apresentada à língua escrita como um sistema vivo, social e complexo,
altamente convencional; aspectos formais se subordinam ao sentido dos textos, mas também são
distinguidos em suas especificidades, destacadas pelas crianças ou pela própria professora.
A perspectiva do ensinar-aprender linguagens sociais como modo de alfabetizar
Com o fim de ampliar o conhecimento e a compreensão que os alunos têm do mundo,
visando a sua maior inserção social, na escola a interorientação social é deliberadamente
buscada e provocada. De que modo formas diferentes das compreensões cotidianas de entender
o mundo são incorporadas ao discurso escrito das crianças, ampliando seus universos de saberes
e seus modos de agir? Os discursos que são referência na escola, científicos e outros, se
distanciam dos discursos orais produzidos no cotidiano, especialmente para falantes de
linguagens sociais mais distantes das linguagens sociais formais escritas. Interessadas em
contribuir para a compreensão da natureza dos problemas que alunos têm para aprender na
escola, pressupomos que isto se deva, entre outros fatores, a dificuldades ligadas à apropriação
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
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dos modos como as linguagens sociais priorizadas pela escola se organizam. Estas linguagens,
da Ciência, da Matemática, da História, entre outras, são organizadas como disciplinas
escolares, a partir das linguagens sociais formais de esferas da vida social (GOULART, 2005).
Outros valores e outras vozes passam a integrar o diálogo no interior destas linguagens,
interferindo em seus modos de argumentar, no movimento de passar a fazer parte da cultura
escolar.
As práticas de alfabetização são práticas culturais e se situam em estruturas
compartilhadas de sentido e em cadeias historicamente geradas de transmissão e apropriação
(BAKHTIN, 1986). Segundo Rockwell (2011), práticas específicas são reconhecidas,
interpretadas e reproduzidas, ainda que com modificação constante, em situações sociais
apropriadas. Um exemplo de uma aula como prática cultural que envolve o texto é a recitação
coral ou a sequência de lições de livros didáticos, uma prática generalizada e reconhecível
dentro de culturas escolares passadas e presentes.
Em relação a modos de produção de sentidos nos enunciados, Bakhtin diz que quando
escolhemos as palavras no processo de construção de um enunciado, costumamos tirá-las de
outros enunciados e principalmente de enunciados congêneres com o nosso. Assim, o ato de
reconhecimento do nosso aluno implica o exercício contínuo de captar em suas palavras seu
ponto de observação valorativo dos conteúdos trabalhados, da sociedade, do mundo.
O conceito de linguagem social tem sido importante para refletirmos sobre a
aprendizagem-ensino de áreas de conhecimento trabalhadas na escola. Entendemos que a
escrita do conhecimento de cada área se organize como uma linguagem social própria, com
distinções metodológicas, umas em relação a outras, orientadas por princípios básicos de
seleção e constituição de enunciados específicos, cumprindo funções também específicas, que
conformam as esferas de conhecimentos escolares. Não se trata, entretanto, de linguagens fixas,
prontas, pelo contrário, as linguagens sociais, exprimindo valores, vivem, lutam e evoluem no
plurilinguismo social (cf. BAKHTIN, 1998, p. 96-101, especialmente). São discursos peculiares
a estratos específicos da sociedade, profissionais, etários, num determinado sistema social e
num determinado tempo.
As linguagens sociais do cotidiano dos alunos da sala de aula focalizada, fortes âncoras
de suas vidas, inclusive para novas experiências sociais, são cotejadas durante toda a aula com a
linguagem social de áreas de conhecimento em estudo, que a professora deseja que os alunos
aos poucos aprendam e consolidem como novas formas de compreender os homens e a
sociedade. As linguagens sociais escolares vão-se banhando na linguagem social do cotidiano.
A expectativa é que esta linguagem seja utilizada nas situações sociais em que haja tal demanda,
tanto para ouvir e falar como para ler e escrever.
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EdUECE- Livro 100291
Conhecendo aspectos dos processos de produção escrita das crianças
No conjunto de textos da área de Ciências selecionado para este artigo, o primeiro
destaque é para o esforço da maioria das crianças para elaborar textos de cunho científico, em
que a objetividade chama atenção. A produção de cinco textos sobre os polvos, cuja proposta
era de que escrevessem o que haviam aprendido durante o período de desenvolvimento do tema
em sala de aula, foi cotejada e chegamos às seguintes partes, que se repetem de modos variados:
título; características dos animais; modo de reprodução; alimentação; adaptação ao
meio/mecanismos de defesa; predadores; outras (estas em geral ligadas a destaques de aspectos
do polvo, animizando-os). As cinco crianças colocaram títulos no texto, objetivamente, como
“O polvo” e “O polvo gigante”. Quatro crianças citam a mesma característica “tem nove
metros”, além de outras características associadas a números: 2000 ventosas, oito pernas, 1
cabesa, “O filhote nasce de 6 milimetros”, entre outras. No aspecto da reprodução, encontramos
os trechos abaixo, evidenciando palavras e expressões características da linguagem social da
Ciência. Podemos entendê-las também como estratégias de legitimação de seus discursos, por
meio de expressões típicas do discurso de autoridade da área. Esse recurso parece refletir
aspectos da apropriação do gênero pela criança.
A fêmea dá 30.000 até os 100. Ela fica até 5 meses chocando os ovos. Quando os
filhos nascem, a mamãe morre porque ela não sai de perto dos ovos. (Camila)
No início da parte destacada do texto de Camila, observamos a dificuldade da menina
para registrar que a fêmea pode colocar de 30 a 100 mil ovos. O verbo “dar” acaba funcionando
como um coringa para tentar gerar o sentido desejado. Na continuidade, Camila volta a
apresentar dificuldade de outro tipo quando procura articular dois planos temporais (“Quando os
filhos nascem, a mamãe morre porque ela não sai de perto dos ovos”).
No acasalamento ele abraça a namorada 1ª cemana e depois ela choca os ovos de
30 mil até 100 mil. A fêmea não pode sair de lá nem para comer ela não pode sair e fica
lá cinco meses chocando quando os ovos estam se quebrando ela morre (Giulia)
É ovíparo e fica botando ovo de 30,000 a 100,000 e depois morre. (Marcus
Vinícius)
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Nos fragmentos de textos de Giulia e Marcus, dificuldades semelhantes às de Camila
aparecem. Em relação ao registro da quantidade de ovos que a fêmea do polvo pode produzir
(em negrito nos fragmentos acima) e em relação ao fato de que, depois de chocar os ovos
durante um longo tempo, a fêmea morre (em itálico acima). A dificuldade de articular
proposições em enunciados que expressem suas compreensões de aspectos da vida dos polvos é
observada, então, gerando problemas composicionais a resolver no processo de aprendizagem.
Observamos também que as crianças dão soluções aos problemas que emergem tanto em nível
de escrita quanto de linguagem escrita.
Ele muda de cor, que são: vermelho, marrom e laranja.
Quando um inimigo ele solta uma tinta preta. (Camila)
Muda de cor que são vermelho, marrom e laranja. (Giulia)
... muda de cor.
(...) Mas sua cor não é só para isso, é pra sesconder de seus inimigos (Priscila)
Eles para cesconder eles cesconder na pedra
Eles tanbem muda de cores de acordo com o lugar. (Marcus Vinicius)
Nos destaques acima, a dificuldade se apresenta ligada à expressão pelas crianças do
fenômeno de que os polvos têm a mudança de cor como mecanismo de defesa. Esse recurso à
mudança de cor se concretiza para que o polvo se defenda de inimigos, expelindo uma tinta
preta e variando a própria cor para se esconder nas pedras, metamorfoseando-se de pedra.
Duas crianças se referem ao polvo como tímido, inteligente e brincalhão, humanizando-
os. Camila é a única criança que explicitamente se comunica com o leitor: E você sabe quem
come ele: o bacalhau, a foca, cação. Na interanimação de vozes, observamos indícios da
linguagem social do cotidiano familiar, imiscuída em adequada construção sintático-semântica,
com a palavra mamãe, no texto de Camila: Quando os filhos nascem, a mamãe morre porque
ela não sai de perto dos ovos. E no texto de Giulia, um fragmento do discurso cotidiano resvala
para o interior de sua construção científica: No acasalamento ele abraça a namorada 1ª cemana
e depois ela choca os ovos de 30 mil até 100 mil. Ambas as ocorrências carregam de afeto os
textos produzidos. O vocabulário da linguagem social da Ciência comparece nos textos, ora
mais ora menos argamassado nas construções composicionais: fêmea, superfície, ventosas,
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ovíparo, filhotes, acasalamento, entre outras. Linguagens sociais diferentes, expressando
diferentes vozes, tornam o texto polifônico. A objetividade e a autoridade da Ciência não
tornam o texto acabado; a criança no seu processo de construção concebe o texto aberto,
deixando-o em permanente transformação, à espera de novas atitudes responsivas, há sempre
algo mais a dizer (ver BEZERRA, 2005). É importante que os professores não sujeitem as
crianças ao estrito conteúdo dos textos das áreas de conhecimento trabalhadas, para que as
crianças não se sujeitem à violência de não criar espaços internos para refletir e entrelaçar o que
já sabem com o novo que chega por meio da escola, produzindo novas formas de expressão de
uma multiplicidade de planos, o texto dialogizado. Pode-se aqui também estabelecer relação
com o artigo de Bezerra (2005), citando Bakhtin (1997), entendendo que no caso da criança
autora do texto dialogizado: “Trata-se de uma mudança radical da posição do autor em relação
às pessoas (grifo do autor) representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em
individualidades.”
Abaixo, a título de ilustração, está o texto O polvo gigante, de Marcus Vinicius. Cabe
destacar que o menino está aprendendo a escrita, a linguagem escrita e, sobretudo, uma
linguagem social valorizada socialmente: um modo de organização de conhecimentos que,
embora implique a aprendizagem de novo vocabulário, não se resume a ele. Como reflete
Zandwais (2011), fundamentada em Bakhtin, as palavras, “enquanto meras propriedades do
repertório lexical, iludem, porquanto não são condição suficiente para ‘corporificar’ os sentidos.
Exclusivamente por meio delas, podemos deixar escapar os acontecimentos a que remetem, a
memória histórica a que fazem referência”. As palavras existem no interior de construções
composicionais, “é preciso que a sintaxe mantenha relações de interdependência com as
condições histórico-sociais que permeiam o modo de produção das diferentes práticas
discursivas”, ainda citando a autora, fundamentada em Bakhtin (1986, p.139). E sobretudo
aquelas produzidas na infraestrutura: os diálogos do cotidiano nas ruas, nas praças, nos teatros,
na escola, as conversas entre trabalhadores, as opiniões do povo sobre a sociedade, sobre as
políticas superestruturais, sobre o sindicato, o lazer, etc.
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O texto de Marcus se inicia com a humanização do polvo, quando o menino diz que ele
é muito brincalhão e inteligente. O menino parece ter se aproximado de um tema menos comum
no cotidiano, humanizando-o. Talvez esse recurso tenha facilitado a sua escrita. Na sequência,
Marcus deixa clara a sua atenção às quantidades: 8 pernas; 30.000 a 100.000 ovos; 1 cabesa; 9
metros (o polvo maior); 6 milimitro (o filhote quando nasce); 2000 ventosas. O contraste entre
oito pernas e somente uma cabeça parece também afetar o menino, a informação sobre o
número de pernas é dada duplamente. Esses, entre outros, são aspectos individuais da produção
que se hibridizam com aspectos coletivos e sociais.
Observamos nos textos ao mesmo tempo as duas orientações principais que organizam a
dinâmica na interorientação social, segundo Bakhtin (1988): a que visa à conservação da
integridade da palavra de autoridade e a que permite ao autor do texto infiltrar as suas réplicas e
seus comentários no discurso alheio.
Bakhtin esclarece no artigo Gêneros do discurso que “(...), o direcionamento, o
endereçamento do enunciado é sua peculiaridade constitutiva sem a qual não há nem pode haver
enunciado.” (2003, p. 305). Desse modo, observamos que na escola, espaço direcionado para a
formação de pessoas e para a transmissão e produção do saber, o discurso da professora se
organiza de modo multifuncional. Gonçalves (2012), investigando as concepções que crianças
de 6 anos elaboram sobre o processo de alfabetização, antes e depois de serem alfabetizadas,
percebe nas respostas das crianças que ao lado da necessidade de conhecimentos específicos a
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essa aprendizagem está a necessidade de comportamentos adequados para que a aprendizagem
se efetive. E traz a definição de cultura escolar elaborada por Julia (2001, p.10):
Um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e
um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas e finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente
de socialização).
Segundo Bakhtin (2004), nos anos iniciais da escola, não há nítida distinção entre a
linguagem escrita e oral dos alunos. A linguagem, em seu trabalho escrito, embora um pouco
desajeitada, está viva, concreta e emocional, diferentemente daquela que critica, dos estudantes
de classes mais avançadas, que escrevem em estilo conscientemente literário e livresco. Buscam
atender a um padrão que consideram valorizado. Escreve Bakhtin,
(...) sob suas canetas inexperientes a linguagem dos livros torna-se ainda mais clichê e
despersonalizada. Os alunos começam a temer qualquer expressão original, qualquer
torneio de frase que não se assemelhe aos clichês de seus livros. Eles escrevem para os
olhos e não revisam o que escrevem, lendo em voz alta com entonação e gestos. Sua
linguagem, é verdade, torna-se mais formalmente correta, porém, é despersonalizada,
incolor e sem brilho. O tom livresco dessa linguagem, sua falta de semelhança com a
sua animada e irrestrita linguagem oral, é vista pelos alunos como uma coisa positiva.
Temos observado na análise dos textos de crianças de 6 e 7 anos, em processo de
alfabetização, que as crianças estão lidando com modos novos de expressão linguística, ligados
a áreas de conhecimento e gêneros não cotidianos, o que lhes traz desafios de diferentes ordens.
Bakhtin (2004) afirma que “toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio de
representação da realidade: representação e expressão - sua estilística deve ser esclarecida e
avaliada”. Acrescenta que “A escolha das formas sintáticas não é determinada gramaticalmente,
mas por considerações estilísticas, isto é, a representativa e expressiva eficácia dessas formas".
Compreendemos que a dialética interna do signo garante àquele que escreve possibilidades de
explorar modos de se expressar, que estão ligados a conotações estilísticas no âmbito do sentido
dos textos produzidos, saber que a utilização de formas composicionais diferentes leva a ênfases
diferentes no discurso. Essa clareza deve ser conteúdo das salas de aula.
Discussão dos resultados
Tomar o processo de alfabetização como objeto de reflexão requer lidar com um
complexo e abrangente universo de conhecimentos, colocando-o na berlinda sob a perspectiva
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de diferentes áreas, conteúdos de variadas origens. No período escolar da alfabetização,
defrontamo-nos com particularidades que singularizam este processo em relação aos demais, já
que se aprende a linguagem escrita, conhecimento fundamental para o acesso a outros
conhecimentos na escola. Aprende-se e ensina-se a ler e a escrever para ampliar a inserção
social e o acesso ao mundo letrado. Implicado nesse acesso há algo que se relaciona ao que se
escreve e se lê socialmente e na escola, e aos modos como se escreve e se lê socialmente, e na
escola também. Na origem das atividades de leitura e de escrita estão sistemas de
conhecimentos que não são escritos e lidos de uma mesma forma. Queremos dizer que a
linguagem escrita não se constitui em veículo ou instrumento para representar tais sistemas de
conhecimentos; ela mesma se institui e sistematiza como um tipo de conhecimento,
inerentemente constituído de outros conhecimentos. Este é um aspecto relevante para a
discussão sobre a pesquisa e a prática pedagógica e tem-se mostrado crucial, ainda que nem
sempre fique claro no debate. Pode-se levantar o argumento de que qualquer conhecimento é
inerentemente constituído de outros conhecimentos. A questão que se estabelece, entretanto, diz
respeito a uma forma de apresentação e representação do conhecimento, culturalmente
constituída, que detém um valor altamente expressivo em sociedades letradas como a nossa. O
processo de alfabetização envolve conhecimento fundamental para o processo de escolarização,
reforçando o valor social da leitura e da escrita, pela abertura para a inserção dos sujeitos no
vasto mundo da escrita, envolvendo novos modos de existência e participação política.
Considerando a fundamentação teórico-metodológica apresentada e o material
analisado, sinteticamente apresentado aqui, vamos destacar o que resulta em relação aos
objetivos traçados para esta pesquisa: caracterizar aspectos composicionais dos textos das
crianças que indiciem formas de estruturação do dizer; e aspectos estilísticos que indiciem a
organização dos saberes relativos à linguagem social da Ciência, na escola.
Como os sujeitos em processo de alfabetização organizam e dão sentido a seus textos,
no movimento de aprender como se organizam diferentes discursos escritos, como novas
linguagens sociais, novas formas de apreensão da realidade e novas formas de ação social e
política? Como realizam tal atividade juntamente com a atividade de apropriação do princípio
alfabético da escrita e das especificidades do sistema?
Os textos escritos das crianças de sete anos foram produzidos em sala de aula a partir
das mesmas propostas da professora da classe, é importante destacar. Observamos que as
crianças expressam conhecimentos científicos sobre polvos, em gêneros do tipo verbete,
evidenciando marcas do processo de elaboração da argumentação da linguagem social da
Ciência. Palavras alheias anunciam-se na produção de textos de todas as crianças em que a
organização discursiva apresenta composições sintático-semânticas comuns tanto no nível da
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arquitetura e encadeamento do gênero verbete quanto no nível macroestrutural da conformação
do saber científico escolar, da argumentação de uma determinada linguagem social, que se
explicita pela temática e por modos de estruturação do conhecimento envolvido. Arrisco, por
uma necessidade metodológica, separar as duas dimensões, no intuito de compreendê-las
melhor.
Nos textos sobre polvos, verbetes utilizando vocabulário adequado, observamos a
objetividade como marca, caracterizada por informações advindas de leituras ouvidas e
conversadas em sala de aula, portanto, palavras alheias nas construções. Os textos apresentam
informações complexas sobre os animais, que, de um modo geral, estão distantes do universo de
conhecimentos das crianças, o que as leva a uma relação mais conceitual com eles nos textos.
Focalizamos o movimento discursivo que as crianças fazem para ir ao encontro da
proposta da professora, por meio de respostas às leituras e conversas sobre os animais
estudados, deixando indícios de seus conhecimentos formados na ideologia do cotidiano.
Diferentes dificuldades sobressaem no esforço das crianças para dar conta das construções
composicionais que seriam adequadas ao que desejam expressar. As soluções dadas apontam
processos em organização em que a palavra de autoridade está aberta como espaço de
aprendizagem criadora das crianças.
Bakhtin salienta em Marxismo e filosofia da linguagem que “nos níveis inferiores da
ideologia do cotidiano, o fator biográfico e biológico tem um papel importante”, e ressalta que,
à medida que a enunciação se integra no sistema ideológico, a importância desse fator decresce.
“Se as explicações de caráter biológico e biográfico têm algum valor nos níveis superiores, o
seu papel é extremamente modesto. Aqui o método sociológico objetivo tem total primazia”
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988, p. 123). Nessa perspectiva, o papel da escola de contribuir
para a integração dos sujeitos ao sistema ideológico é grande, porque a sucessiva integração e
aprofundamento dos sujeitos na vida social os tornam mais livres e criativos para reformular
gêneros padronizados, ainda de acordo com Goulart (2010). O conhecimento de aspectos das
áreas de conhecimento trabalhadas na escola faz parte da chamada cultura geral, sendo um
conhecimento selecionado para expandir os conhecimentos biográficos e biológicos dos
sujeitos. Para determinadas classes sociais, tal conhecimento já faz parte do sistema de
referências culturais que as caracteriza; para outras, entretanto, esse é um conhecimento escolar,
é transmitido pela escola.
Para finalizar, entendemos que o modo como os textos analisados se engendram e
progridem discursivamente continua nos encaminhando à ideia de que enunciar é argumentar, é
agir intencionalmente na direção dos interlocutores. Em relação à prática pedagógica, também
continuamos a observar que modos de aprender estão intimamente ligados a modos de ensinar
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(GOULART et alii, 2005) e a concepções de criança, conhecimento e aprendizagem. Se
desejarmos que os alunos leiam criticamente e elaborem textos socialmente válidos, de variados
tipos, precisamos trabalhar com textos variados, complexos e com valor social, realizando
atividades orais e escritas que os levem a perceber o modo como se constroem diferentes
sentidos.
No trabalho de ler e escrever – e de ensinar e aprender a ler e a escrever – não basta
recomendar que o aluno leia atentamente o texto muitas vezes ou o refaça repetidas vezes. Para
nós, aprender a escrita é aprender com a escrita (GOULART&WILSON, 2013). Como nos
alerta Fiorin (2005, p. 9), não é suficiente apelar para a sensibilidade do aluno: é preciso mostrar
o que se deve observar nos textos, fazendo destaques de variadas naturezas, provocando
reflexões, e considerando os modos culturais e históricos como os textos significam,
relacionados às práticas sociais em que têm valor, à construção sintática, à seleção de palavras
utilizadas, à relação com outros textos, entre outros aspectos. A escola é o lugar de
transformação de conhecimentos pelos novos significados que passam a recobrir o que já se
sabia e pelas novas modalidades de saber, logo a escola deve ser um importante lugar de
renovação das pessoas que ali estão para aprender.
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
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