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A EXPERIÊNCIA URBANA E APROPRIAÇÃO ESPACIAL A PARTIR DOJOGO DE REALIDADE AUMENTADA (ARG) INGRESS
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Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p.360-378, ago./dez. 2014
A EXPERINCIA URBANA E APROPRIAO ESPACIAL A PARTIR DO
JOGO DE REALIDADE AUMENTADA (ARG) INGRESS
Breno Maciel Souza Reis1
Introduo
Os sujeitos sempre estabeleceram uma relao com o jogo como um modo de estar
no mundo e de contato com as coisas, ou seja, uma mediao (Buytendijk, 1977; Caillois,
1990; Gadamer, 1997; Huizinga, 2008), diretamente relacionada ao prprio sentido de
temporalidade que a coletividade humana possui em determinado momento histrico e
indicando como se estrutura o pensamento e como entendemos a realidade. Longe de ser
um processo exterior, ele possui imbricaes que se enrazam na concepo que temos
sobre ns mesmos e sobre o que nos cercam, constituindo assim mais do que uma
atividade de mera diverso ou ausente de seriedade, mas um elemento de apropriao e
construo da realidade; ou seja, o jogo parte fundamental da vida humana e da
construo cultural advinda da nossa experincia de mundo (Teixeira, 2005: 467).
Assim, as relaes que estabelecemos com o jogo hoje e o seu lugar na sociedade
contempornea refletem o modo como vivemos e interpretamos o mundo, uma vez que
os mesmos se desenvolvem em uma dada configurao momentnea, social, tecnolgica
e cultural. Especialmente no caso deste trabalho, observamos a ubiquidade de tecnologias
computacionais mveis constantemente conectados, assumindo tambm formas ldicas e
vinculadas ao espao fsico das cidades alterando no apenas prticas espaciais
individuais e coletivas, mas tambm sobrepondo distintas camadas informacionais e
tambm simblicas, a partir da caminhada dos sujeitos e da ressignificao desses
mesmos espaos. Se em outros perodos histricos a ocorrncia do jogo era
potencialmente distinguvel das demais atividades cotidianas, hoje o seu carter pervasivo
parece-nos ainda mais evidente, porm no claramente reconhecvel, haja vista que ele
passa a abranger as mais diversas atividades da vida ordinria.
Isso dito, percebemos na atualidade um deslocamento no tocante prpria
experincia urbana, sabendo da existncia de aparatos tecnolgicos digitais de conexo
contnua rede e que se relacionam com o ambiente de maneira locativa (ou seja,
contextualmente geolocalizada), se configurando como mediadores entre as experincias
1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
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subjetivas que so desenvolvidas no contexto espacial, social e informacional das cidades.
Tomando como horizonte a prpria complexidade inerente matria, apontaremos
algumas questes relacionadas apropriao de sistemas ldicos com vistas sua
utilizao por sujeitos portando aparatos portteis, como possvel modificador da
experincia urbana mediada tecnologicamente.
Nos ancoraremos na abordagem antropolgica etnogrfica na cidade, em
consonncia com o que defendem Rocha e Eckert (2013a;2013b;2013c), que consideram
que a investigao sobre os modos de vida nas cidades deve levar em conta no s o
aspecto urbano formal e planejado; mas tambm a multiplicidade de usos e apropriaes
imprevistas e, por muitas vezes, subversivas do espao urbano. Ou seja, considerar
que a rua , desde sempre, um espao de interao social, locus por excelncia de disputas
territoriais, simblicas, materiais e no qual se manifestam e se formam trajetrias de
sujeitos e grupos.
Para tanto, sero expostas reflexes que advm primordialmente da nossa utilizao
do jogo, as impresses e experincias provenientes dessa insero. Assim, esse artigo
tambm empreende um exerccio de afastamento em relao nossa prpria experincia
no contexto da cidade de Porto Alegre, onde residimos, mas da qual no somos naturais.
A esse respeito, destacam Rocha e Eckert (2013b, p. 22) que a etnografia de rua
um exerccio de (...) deslocamento em sua prpria cidade, o que significa dizer [...] que
ela afirma uma preocupao com a pesquisa antropolgica a partir do paradigma esttico
na interpretao das formas de vida social na cidade. Dessa forma, procuramos nos
inserir na cosmologia prpria do jogo em questo, buscando, por meio das nossas
caminhadas (tanto nos trajetos cotidianos, quanto naqueles realizados com propsitos
especficos e voltados explorao citadina ldica que o jogo exige), capturar e
questionar essa ambincia, e perceber alteraes na forma como nos apropriamos da
mesma ou como entende Certeau (1998), como se do as nossas estratgias e tticas de
(des)construo narrativa a partir dos passos e deslocamentos dirios.
Delimitando a questo: o jogo e seu carter pervasivo como possibilidade de
apropriao da cidade e ressignificao do espao
Se tomarmos como verdadeira a premissa que diversos autores dedicados ao estudo
do jogo corroboram, de que o fenmeno foi, e ainda , de fundamental importncia para
a nossa evoluo e para a constituio de sociedades humanas independente do grau de
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complexidade e organizao normativa que possuem podemos facilmente perceber que,
desde os primrdios, o homem se utilizou do jogo como instrumento de
compartilhamento e construo simblica sobre o mundo. Para Buytendijk (1977), uma
caracterstica intrnseca ao que aqui chamamos jogo o fato de ele ser um mediador entre
o homem e as coisas; ou seja, sob tal perspectiva, o jogo consiste em um modo de insero
no mundo. Assim, devido ao carter simblico inerente ao jogo, o pensador entende que
ele um dos elementos que nos permitem diferenciar-nos dos animais assim, o
fenmeno do qual falamos, mais do que mera diverso ou recreao, se configura como
uma experincia emancipatria humana, uma vez que ele se presta como transformador
das relaes que os sujeitos estabelecem consigo mesmos, com os outros e com o mundo.
Huizinga (2008), um dos principais tericos e considerado o fundador do campo
hoje conhecido como game studies, entende que a existncia do jogo entre ns e o seu
carter simblico representou, desde sempre, um papel fundamental na organizao e
construo cultural humana. Assim, ele entende essa relao a partir de uma trade
ontolgica, propondo assim que o homem ldico (Homo ludens) foi to importante quanto
a nossa capacidade de raciocinar e pensar a realidade (Homo sapiens) e de criar,
manipular e interagir com a natureza, modificando-a (Homo faber). Para o autor,
inclusive, a linguagem uma tecnologia humana essencialmente ldica, considerando
tambm a sua ocorrncia como um jogo o que corroborado por filsofos da linguagem,
como Wittgenstein (1989).
Destarte, pelo vis que consideramos aqui, o jogo se presta como um reflexo da
sociedade na qual se desenvolve, conforme assinala McLuhan (2007); entretanto,
poderamos acrescentar que, muito mais do que apenas prover indcios do modus vivendi
particular ou funcionar como extenses de uma sociedade, como afirma o autor, o jogo
tambm atua diretamente na definio de conceitos, regras, do que vlido ou no na
vida social. Nesse sentido, ele se articula com as contingncias subjetivas, sociais,
espaciais e culturais nas quais se desenvolve, inaugurando uma esfera prpria de
existncia que possui um carter simblico que circunscreve e delimita a prpria
experincia ldica, por ser reconhecidamente distinto da vida ordinria dos seus
praticantes.
Alm disso, interessante observar tambm como, para Simmel (1983), os
processos dialgicos inerentes a toda interao social carregam em sua essncia um
aspecto ldico. Ao dissertar a respeito, o autor conclui que o jogo est, desde sempre e de
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forma ntima, relacionado prpria noo de sociedade e especificamente no que nos
interessa nesse trabalho, as dinmicas de conflito e competio que se articulam na
narrativa cosmolgica do Ingress, conforme ser exposto. Para o socilogo, a conexo
entre jogo e sociabilidade explica porque esta deve abranger todos os fenmenos que j
por si mesmos podem ser considerados formas sociolgicas ldicas. Isto se refere acima
de tudo a jogos propriamente ditos que, na sociabilidade de todos os tempos,
desempenhou um papel notvel (1983: 174). Ainda acrescenta que o sentido mais
profundo, o duplo sentido de jogo social que o jogo no s praticado em uma
sociedade (como seu meio exterior), mas que, com ele, as pessoas jogam realmente
sociedade (1983: 174).
Isso nos permite problematizar tal ideia clssica da separao bem definida entre o
jogo e a vida cotidiana, a partir da ubiquidade das tecnologias digitais mveis de
Comunicao e Informao na contemporaneidade, entendendo que passamos a
experimentar o fenmeno do jogo em momentos nos quais no reconhecemos sua
ocorrncia de maneira clara ou imediata. Se antes o jogo pressupunha um certo ritual para
que ocorresse (por exemplo, para utilizar um console de videogame, necessrio que o
jogador decida realizar naquele momento a atividade em questo; que ligue o aparelho e
tambm a televiso qual o videogame est conectado, que pegue os controles ou ative
outros dispositivos, como sensores de leitura de movimentos corporais), hoje, dado o
cenrio ubquo e o horizonte de permanncia cada vez mais invisvel das tecnologias
infocomunicacionais na vida humana, estamos envolvidos em atividades ldicas das
quais frequentemente no damos conta de sua ocorrncia.
Com efeito, um tipo de jogo especfico emerge desse contexto, que designado por
Lemos (2010) pela expresso jogos mveis locativos (JML), ou seja, (...) jogos urbanos
que utilizam tecnologias e servios baseados em localizao nos quais o lugar parte
integrante das regras e das aes do jogo. Podemos, analogamente, dizer que eles
transformam a configurao fsica das cidades em um tabuleiro de jogo, no qual os
usurios se movimentam, tanto com o objetivo ldico explcito, quanto na realizao de
suas tarefas cotidianas; essa , alis, uma diferena fundamental que admite a
pervasividade do jogo, nesse caso. Myr (2008) entende, assim, que os jogos desse tipo
ultrapassam o ambiente tradicional caracterstico dos consoles de videogame e,
deliberadamente, misturam a esfera do jogo com a vida ordinria, criando intersees
entre essas instncias. O fenmeno passa, cada vez mais, a abarcar aspectos que at ento
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no eram considerados como jogo e, inclusive, aqueles que socialmente so
considerados sua anttese, como o trabalho e a educao escolar os quais confirmam
sua presena difusa e seu carter medial.
Em relao aos JML podemos ainda acrescentar as consideraes de Hjorth (2011),
que entende como fundamentais as intersees entre o espao e a mobilidade
informacional proporcionada por artefatos tecnolgicos digitais, afirmando que,
justamente por colocar em sinergia espaos on-line e off-line, eles podem oferecer novas
formas de experienciar a realidade, ou simplesmente o lugar no qual o sujeito se encontra.
Para a autora, a possibilidade de interao em rede e do uso do espao citadino como
elemento ldico oferecem uma oportunidade de transformar os modos como os sujeitos
se apropriam e atribuem sentido aos mesmos. Assim, ela acredita que a mobilidade e
tecnologias em rede no apenas alteram como ns entendemos o espao na vida cotidiana,
mas tambm nos lembram que o lugar mais que somente a sua localizao fsica e/ou
geogrfica. Com mais importncia, ele construdo atravs do acmulo constante de
histrias, memrias e prticas sociais.
Nesse sentido, essas formas de habitao do espao admitem a sua transformao
em ambientes essencialmente ldicos, ou seja, as cidades contemporneas como espaos
de fluxos que assumem caractersticas de jogo pela sua transmutao, a partir da qual os
prprios sujeitos so os jogadores se movimentando pelos locais mas no mais apenas
em momentos especficos nos quais o crculo mgico do jogo, conforme sugere Huizinga
(2008) encontra-se em evidente existncia. A caracterstica pervasiva do jogo e que,
reafirmamos, lhe prpria , encontra nas tecnologias mveis de comunicao ubquas
potencializadores que fazem com que sua existncia se d de forma cada vez mais
permanente e invisvel, imbricada em meio prpria vida cotidiana.
Assim como a prpria rede e a tecnologia se infiltra no corpo social e por ele
incorporada, derivando apropriaes na forma de prticas sociais e culturais, o jogo
tambm encontra um vetor que potencializa a diluio das fronteiras entre o jogo e no
jogo, o trabalho e o ldico. A cidade, que passou a representar durante um longo perodo,
o enraizamento do sujeito em detrimento da pulso da errncia ou do nomadismo, como
defende Maffesoli (2001); na qual era permitido ao sujeito se apropriar apenas
parcialmente de suas camadas de sentido que sempre existiram, porm, eram restritas a
locais ou grupos especficos, encontra, na sua transformao em ambiente ldico em rede,
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possibilidades de ampliao de suas capacidades de comportar e dar visibilidade
multiplicidade de sentidos que sempre lhe foi caracterstica.
Neste sentido, especificamente no caso dessas manifestaes culturais
contemporneas, o crculo mgico do qual falam Huizinga (2008) e Caillois (1990)
expandido de vrias formas: o jogo no ocorre mais em tempos e espaos bem definidos,
e os seus participantes no so determinados. Nesse sentido, como diagnosticam Montola,
Stenros e Waern (2009), os jogos nesse contexto permeiam, se desdobram e embaam os
seus limites tradicionais, por expandir o ambiente do jogo a partir de trs perspectivas: a
temporal, ou seja, seja o fato de estarmos cada vez mais imersos em atividades ldicas; a
espacial, que, conforme dissemos, remete possibilidade de jogar em variados lugares,
em condies de deslocamento ou a dispensabilidade de consoles fixos ou limitados a
ambientes especficos; e a social, que, enquanto fator resultante das anteriores, trata-se da
ampliao do nmero de possveis jogadores em todos os lugares e a todo instante, em
seus trajetos dirios, inclusive utilizando o espao citadino como o ambiente no qual a
histria do jogo se desenrola.
As cibercidades e mdias locativas como pressuposto para a existncia dos JML
A condio de mobilidade da informao proporcionada pelas tecnologias de
conexo contnua (Santaella, 2007) e a estrutura que foi instalada no espao urbano para
dar conta das mesmas, provocaram um novo paradigma ao j recente campo de estudo da
cibercultura, inserindo novas configuraes tanto comunicacionais e informacionais,
quanto arquitetnicas, urbansticas, sociais, bem como tambm artsticas e estticas, uma
vez que foi possvel portar para as ruas das cidades tecnologias antes fixas e limitadas a
ambientes fechados, como empresas e residncias. O ciberespao, assim, passou a estar
em todos os lugares, alterando tambm as paisagens e como vivenciamos o mundo fsico,
agora mediados por dispositivos digitais conectados em rede de maneira ubqua.
A esse entrecruzamento composto pelo espao urbano em sua materialidade
(praas, avenidas, monumentos histricos, edifcios, etc.), a infraestrutura tecnolgica
necessria como antenas, cabos, redes sem fio de telefonia e de dados, alm dos prprios
dispositivos em sua fisicalidade somados aos sujeitos que transitam e portam consigo
esses aparatos, Lemos (2004) denomina como cibercidade ou cidade-ciborgue.
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Importante lembrar que, para o autor, a prpria cidade uma construo cultural e
artificial humana repleta de sentido ou seja, um artefato, desenvolvido e em relao
direta com as configuraes tecnosociais vigentes em um dado perodo histrico.
As cibercidades seriam assim a medida de nossa poca, palimpsestos nos quais se
inscrevem discursos e se proferem enunciados, tanto atravs da interferncia dos sujeitos
fisicamente, quanto atravs da esfera informacional e mvel que se sobrepe a ela,
modificando nossa vivncia do espao urbano basta pensarmos em tecnologias de
geolocalizao via satlite, ou GPS, as quais conseguem rastrear a localizao exata de
algum em coordenadas geogrficas e fornecer uma experincia ampliada do espao
fsico circundante. Dessa forma, funcionam tambm como navegadores urbanos,
conectando dispositivos, satlites e redes sem fio com as ruas das cidades, tomando agora
novas formas e moldando a polis contempornea por meio da juno da mesma com o
ambiente virtual das redes telemticas (Lemos, 2004) concretizando a existncia das
mdias locativas, ligadas diretamente ao contexto espacial, informacional e social na qual
esto sendo utilizadas.
O termo mdia locativa foi cunhado por Karlis Kalnins para designar o uso de
servios em rede baseados em geolocalizao (location-based services, ou LBS);
entretanto, as mdias locativas j existiam analogicamente, na forma de cartazes, mapas,
placas de trnsito e anncios expostos no espao urbano. Em relao s mdias locativas
digitais, parece-nos que o fator fundamental de diferenciao das mesmas o fato de que
elas esto, eletronicamente e de maneira ubqua, organizadas no ciberespao na forma de
metadados e contextualmente relacionadas, pois se constituem como tecnologias
sensveis ao ambiente, permitindo acesso e armazenamento de informaes em bases de
dados de servios que se prope a agrupar e exibir nas telas de variados dispositivos essas
informaes.
Sem dvida, se locomover pela cidade carregando consigo um dispositivo
conectado e exibindo constantemente informaes sobre ela impacta no modo como
direcionamos nosso olhar para a mesma. Ao mesmo tempo em que proporcionam uma
ampliao das nossas capacidades cognitivas e perceptivas, representam tambm uma
transposio das mesmas para a exterioridade de nossos corpos, as quais retornam na
forma de pacotes de informao e que so interpretados no por ns, mas pelo dispositivo
receptor e exibidas nas telas dos mesmos.
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A esse respeito, sabemos que os instrumentos e tecnologias que utilizamos
modificam nossa viso sobre o mundo e nosso entendimento sobre o ambiente que nos
cercam, promovendo novas dinmicas de interao com o mesmo e nos modos como o
habitamos. Armazenadas em grandes repositrios de informao e transformadas em
prticas sociais, elas penetram de forma profunda no cotidiano at quase se tornarem
invisveis, dada sua caracterstica pervasiva, integrando de forma definitiva a camada
virtual, e o mundo fsico, em processos nos quais no se reconhece de imediato o incio
de um e o fim do outro (Weiser, 1991).
Podemos aqui retomar as consideraes de Meyrowitz, que em No Sense of Place
(1985), entende os novos contextos miditicos como potencializadores de transformaes
nas interaes sociais desde os j bastante estudados meios massivos, como a televiso,
rdio e impressos, at mais recentemente os digitais e globalmente conectados.
Considerando que o espao tambm exerce grande influncia na sociabilidade entre os
indivduos, entendemos que o paradigma se encontra justamente do momento em que
percebemos a informatizao do territrio e a potencializao da construo simblica do
mesmo em rede, ou seja, o que Certeau (1998) chama de retricas ambulatrias, agora na
forma de rastros informacionais que compe as histrias e o registro dos lugares,
transformando a cidade em (...) redes comunicativas, florestas de cabos, e na
transformao do sujeito, atrado e estendido nas esferas eletrnicas e nas formas de
relaes metageogrficas em desbravador desse novo territrio flutuante (Di Felice,
2009: 160). Lemos, inclusive, sugere que agora, temos um novo sentido do lugar (new
sense of place), um territrio informacional, (...) onde relaes comunicacionais se do
diretamente com lugares e objetos do espao urbano, potencializando apropriao e
ressignificao (2010: 2).
A etnografia de rua como exerccio de deslocamento em relao ao Ingress
Isso dito, um dos questionamentos que norteiam esse trabalho so os possveis
desdobramentos que tais expanses do jogo acarretam no tocante apropriao e
experincia citadina em um contexto de conexes locativas a partir de um cenrio ldico.
Especificamente no caso deste trabalho, observamos a cidade, espao em certa medida
organizado e normatizado segundo regras de planejamento mais ou menos estruturadas e
com usos tambm previstos, mas que assume outros sentidos e ressignificada a partir
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das caminhadas dos sujeitos, da forma como ela vivenciada - ou, como sugere Certeau
(1998), os sujeitos, em seus trajetos e a partir das narrativas cotidianas escritas pelos seus
passos, transformam em outras coisas cada elemento disponvel no espao urbano.
Narrar a cidade nesse contexto significa essencialmente desvendar os seus usos, os
enredos que nela so inscritos, entendendo-a como locus primordial onde se do relaes
sociais, ou seja, (...) um arranjo espao-temporal onde a vida social se desenrola nas suas
mais diversas formas (Rocha; Eckert, 2013c: 13). nas ruas, e atravs das sutis falas
dos passos, que apreendemos os modos de vida em um espao contraditrio por
excelncia, por comportar os mais diversos e inusitados usos; possuidora de diversas
cosmologias, a cidade coexiste com diversas faces de si mesma, construdas em tempos-
espaos distintos e sobrepostos, nos quais vo sendo tecidas camadas de sentido. Ela ,
assim, o (...) lugar imaginado e vivido, a rua em que moramos ou a rua que frequentamos
assiduamente em nossas tarefas dirias, as ruas que falam da cidade, as ruas onde
depositamos nossos sonhos e involuntariamente recordamos e desejamos (Rocha;
Eckert, 2013c: 13).
Um aspecto a ser destacado na fala das autoras e que nos leva ao prprio objeto que
aqui tomamos para anlise caracterstica do Ingress de estimular o jogador a praticar a
cidade a partir de uma narrativa cosmolgica que prpria do jogo: a descoberta de uma
forma de energia denominada Exotic Matter (Matria Extica, ou XM) que emana de
alguns pontos da cidade e que pode tanto ser manipulada para levar a Humanidade a um
novo estgio de conscincia, quanto ameaar a nossa prpria existncia, a liberdade e
o pensamento. A partir dessa premissa, duas faces se formam e disputam o controle
sobre esses locais nos quais a XM se concentra (chamados portais): os Iluminados
(Enlightened) e a Resistncia (Resistance).
Assim, para que fosse possvel adentrar no universo do Ingress, procedemos na
instalao do aplicativo em um smartphone com sistema operacional Android e
realizamos o cadastro, seguido da escolha de um pseudnimo que identifica os jogadores
no sistema no necessrio fornecer o nome real nem uma fotografia, embora seja
possvel customizar um emblema com formas e cores fornecidas pelo aplicativo. Como
parte da narrativa do jogo consiste em transformar o jogador em um agente de uma das
faces (inclusive os jogadores se chamam assim), o anonimato assegurado, sendo
possvel apenas, ao visualizar o perfil de um jogador, ter acesso a dados relativos sua
participao, como nvel, medalhas obtidas (badges), pontuao e demais informaes.
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Ao jogar na e com a cidade, os jogadores se apropriam do espao fsico
distintamente do que fariam em outra situao: uma praa no somente uma praa, mas
significa para os mesmos outra coisa: um portal, um ponto de encontro de jogadores de
uma faco, um territrio de disputa simblica, cujo sentido estritamente singular ou
seja, experincias so produzidas e contextos articulados, os quais so tecidos narrativa
ldica, enriquecendo o universo prprio do jogo, criando usos imprevistos ou, como ainda
defende Certeau (1998), proporcionando prticas inventivas, criativas, costumes e
estratgias particulares. Ou ainda, como acreditam Rocha e Eckert (2013b: 14), so essas
aes, ou prticas cotidianas, que conferem as feies particulares das ruas, dos territrios
urbanos, dos espaos vividos coletivamente na cidade.
Tendo isso exposto, uma vez instalado o aplicativo e escolhida a faco qual nos
vincularamos, nos tornamos um agente do Ingress em Porto Alegre. Esse processo,
que Kozinets (2010) chama de entre cultural, consiste em adentrar o universo a ser
estudado atravs da imerso do pesquisador no objeto, que ocorreu, no caso em questo,
com a utilizao do Ingress nas situaes mais variadas: tanto em trajetos cotidianos, nos
percursos habituais, quanto tambm com sadas a campo especificamente com o propsito
do jogo. Hine (2000) entende essa imerso como fundamental na pesquisa etnogrfica,
pois requer do investigador uma postura de comprometimento e de engajamento em
relao ao objeto e com os sujeitos que o constituem. Ou seja, necessrio que o
pesquisador adentre no ambiente estudado e que atente s redes de relaes que emergem
tanto entre os sujeitos a partir das interaes que estabelecem entre si, quanto com o
prprio ambiente, os artefatos tecnolgicos e com o contexto espacial, social e cultural
no qual se inserem.
Esse trabalho constitui tambm um exerccio de deslocamento no tocante prpria
experincia urbana que possumos de Porto Alegre, cidade onde se desenvolve a pesquisa
em questo. Para isso, tomamos as consideraes de Simmel (1983) em seu texto sobre o
estrangeiro, buscando nos tornar estranhos no espao ao qual estamos habituados e que
percorremos diariamente. Dizemos isso porque sabemos que com o dia a dia certas
particularidades da cidade, seus usos e habitantes, se tornam transparentes ao filtro
invisvel que o cotidiano impe e, muitas vezes, nos desafia a olhar a cidade sob outra
perspectiva: a de sua constante construo e destruio criativa por meio das prticas que
nela se do. Assim, aponta Simmel (1983: 184) que
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O estrangeiro no est submetido a componentes nem a tendncias peculiares do
grupo e, em consequncia disso, aproxima-se com a atitude especfica de
objetividade. Mas a objetividade no envolve simplesmente passividade e afastamento; uma estrutura particular composta de distncia e proximidade,
indiferena e envolvimento. [...] Objetividade no significa de maneira alguma no-
participao (que geralmente exclui tanto a interao subjetiva quanto a objetiva), mas
um tipo especfico e positiva de participao (...).
Na busca pela delimitao de um campo para a pesquisa em questo, nos apoiamos
em Fragoso, Recuero e Amaral (2011: 182) que, com base em Hine (2009), defendem a
inseparabilidade do mesmo da vida cotidiana, tanto do pesquisador, quanto do grupo
social e do objeto de pesquisa que se pretende investigar o que parece pertinente,
considerando que aqui tratamos especificamente de um jogo que se desenrola na esfera
do ordinrio na vida dos seus jogadores, e no constitui necessariamente um evento
especfico ao qual devem se dedicar de forma separada do seu cotidiano (Huizinga, 2008).
Dito isso, podemos agora apresentar o objeto em questo e, em seguida, sob uma
perspectiva autorreflexiva, comentar nossos apontamentos realizados durante a insero
no jogo em questo. Ressaltamos, no pretendemos aqui apresentar anlises definitivas
sobre a matria, nem consideramos que as reflexes expostas correspondam totalidade
das apropriaes possveis do Ingress por parte dos jogadores - dada inclusive a conciso
desse trabalho. Para que fosse possvel registrar os acontecimentos e aspectos que nos
chamaram a ateno durante a participao no jogo, utilizamos como registro anotaes
(tanto em papel quanto em aplicativos com essa funo no prprio dispositivo mvel
utilizado); tambm realizamos capturas de tela que foram anexadas s notas, sendo que
algumas delas esto expostas adiante.
O Ingress
O Ingress um jogo mvel locativo2 (Lemos, 2010) de realidade aumentada3, ou
ainda um augmented reality game (ARG) que, uma vez instalado em dispositivos mveis
digitais que possuem conexes Internet via redes sem fio, permite que o jogador
visualize em seu dispositivo um mapa das imediaes onde ele se encontra, a partir da
2 Lemos (2010) define jogos mveis locativos como aqueles jogos urbanos que utilizam tecnologias e servios baseados em localizao nos quais o lugar parte integrante das regras e aes do jogo. 3 Realidade Aumentada um conjunto de tecnologias e protocolos que permitem adicionar e visualizar
imageticamente camadas de informao vinculadas ao espao fsico, atravs de equipamentos (telefones
celulares, culos especiais, capacetes) e da imbricao entre redes informacionais globais e a cidade.
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base de dados georrefenciada do Google Maps4, e sinais de geoposicionamento via
satlite emitidos e recebidos pelo aparelho. Entretanto, diferentemente de outros sistemas
de navegao espacial, o objetivo especificamente a camada ldica e informacional que
lhe adicionada: possvel identificar e capturar os pontos da energia Exotic Matter
(Matria Extica, ou XM) espalhados pelo espao e se movimentando medida em que
o jogador transita pelas ruas da cidade, bem como verificar itens disponveis para
aquisio alm de visualizar graficamente os portais, inclusive com a indicao de
distncia e rotas de deslocamento at eles (figura 1).
Figura 1: Tela inicial do jogo Ingress. Fonte: o autor (2014)
O sentido do jogo em sua essncia mvel, e convida os que dele participam a
explorarem o espao urbano das cidades em busca de portais, ou seja, locais nos quais a
XM emana os quais so, em sua maioria, monumentos, praas, edifcios, pontos
histricos e tursticos e outros pontos de grande circulao de pessoas, capturando em
seus percursos fragmentos dessa energia espalhados aleatoriamente e adquirindo armas e
outros elementos simblicos do jogo. Cada um desses portais de domnio de uma ou de
outra faco, e o papel dos jogadores percorrer esses locais e atac-los, buscando a sua
posse. Inclusive, atravs de uma funcionalidade onde possvel se comunicar
4 http://maps.google.com.br/. Acesso em 26 jul. 2014
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secretamente com outros membros da mesma equipe, coordenar ataques coletivos
simultneos a um portal, exigindo assim um regime de copresena de vrios jogadores.
Alm disso, uma evidncia de que o sentido do jogo se encontra justamente na
explorao do espao fsico que, para a progresso em nveis que variam de 1 a 8,
necessrio um nmero cada vez maior de pontos de experincia, adquiridos
principalmente com o registro e a descoberta de portais novos visitar e realizar hacking
repetidamente nos mesmos portais torna um tanto demorada a progresso no jogo. Seja
atravs de situaes deliberadas o jogador visitar um local unicamente objetivando uma
ao de jogo ou mesmo ocorrendo em ocasies casuais de trajetos de ida e volta de
locais nos quais o jogo no o principal propsito (trabalho, estudo, situaes de
consumo, entre outras), parece-nos que nessas caminhadas pela cidade podem ser
fornecidas novas experincias sensoriais e perceptivas atravs da sobreposio de uma
camada informacional que, mesmo fictcia, altera as experincias do sujeito em relao
ao espao urbano. Ainda, importante acrescentar que sine qua non a presena do jogador
nas imediaes dos portais: impossvel hackear, atacar, defender ou realizar qualquer
ao remotamente nos mesmos, ou seja, distncia.
Uma pesquisa divulgada em 20135, feita com 1.572 jogadores do Ingress revelou
alguns dados interessantes que parecem confirmar a tendncia do jogo em questo a
estimular novas relaes com o espao e a cidade: 88% declararam que visitaram locais
que nunca tinham ido nas suas prprias cidades a partir do uso no jogo. 93% deles
afirmaram ter passado a caminhar mais depois do incio das atividades no jogo, e 24%
passaram a andar mais de bibicleta. Um outro aspecto que merece destaque o seu carter
social: 74% dos entrevistados afirmaram que conheceram pessoas por meio do jogo e
29% afirmaram ter feito novos amigos. Isso parece expor que, alm de desempenhar um
papel como mediadores das relaes espaciais entre os jogadores e a cidade, o jogo
funciona tambm como catalizador de interaes sociais com propsitos muito
especficos e que, talvez, no ocorrerriam entre os jogadores seno a partir do Ingress.
O mote principal do jogo se encontra se encontra na interseo entre redes digitais
mveis e o espao fsico da cidade, conforme demonstrado em vdeo promocional
divulgado pelo laboratrio responsvel por prover de informaes atualizadas e
complexificar a cada dia a narrativa do jogo6. O mundo real no como parece,
5 http://simulacrum.cc/2013/01/23/the-demographics-of-ingress/. Acesso em 21 jan. 2014. 6 https://www.youtube.com/watch?v=92rYjlxqypM. Acesso em 13 jul. 2014.
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afirmam categoricamente; obviamente, deve-se aceitar tal premissa para que o jogador
adentre o enredo e participe efetivamente na construo narrativa ldica. No se joga
como se, recuperando Caillois (1990) ou o jogador cr na veracidade do que est
vivenciando naquele momento especfico (o que no impede que ele saiba se tratar de
fico), ou nenhuma estratgia tcnica, narrativa ou grfica funcionar, por mais
sofisticada ou elaborada que seja. Ao transformar cidados comuns em agentes secretos
por meio do download e instalao do aplicativo Ingress em seu smartphone ou tablet,
necessrio convenc-los a comprar a histria do jogo, ou seja, absorv-los na cosmologia
ldica que instaurada.
Como dissemos, o jogo se fundamenta na dinmica de competio entre duas
equipes a partir da simulao de um conflito pico que ocorre pelas ruas da cidade
dominadas pelas faces. Mas, para que uma equipe siga como dominante em uma regio,
necessrio que seus membros cooperem entre si, em processos de ajuda mtua visando
atingir um determinado objetivo comum seja ele destruir um ponto rival, manter um
portal estratgico para a sua faco, ou ainda trocar informaes, novidades, descobertas
e outros contedos a respeito do andamento do jogo.
Durante a pesquisa para a elaborao desse trabalho, constatamos a existncia de
comunidades em sites de rede social (principalmente o Google +7) e em servios de trocas
de mensagens instantneas, como o Hangouts8, e no aplicativo para dispositivos mveis
WhatsApp9. Utilizados como ferramentas alternativas ao jogo, nesses espaos so
discutidas estratgias de domnio de regies dentro das cidades, de ataques simultneos a
portais inimigos, bem como de troca de informaes sobre o andamento do jogo e das
aes feitas. Ainda no tocante s dinmicas de cooperao e conflito, percebemos tambm
a existncia de um hbito entre os jogadores e que ficou evidente quando
acompanhamos as conversas por meio dessas ferramentas de articulao e interao
social entre eles , que a reunio planejada e coletiva em algum ponto da cidade com
vistas ao ataque coletivo a um portal de nvel elevado, visando destru-lo ao difcil de
7 http://plus.google.com. Acesso em 15 jul. 2014. 8 Hangouts um servio de troca de mensagens instantneas multiplataforma do Google Inc., proprietria
tambm do Google + e do Ingress, que pode ser utilizado tanto em sua verso web para computadores
tradicionais quanto atravs de um aplicativo instalado em dispositivos mveis. Ele permite que pessoas
conversem, inclusive com a formao de grupos nos quais vrios usurios podem trocar mensagens
instantaneamente. Disponvel em https://www.google.com.br/hangouts/. Acesso em 15 jul. 2014. 9 WhatsApp um aplicativo gratuito de troca de mensagens multiplataforma para dispositivos mveis de
propriedade do Facebook Inc.
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ser realizada de forma solitria. Capturamos tambm, durante a pesquisa, imagens
relacionadas a esses eventos disponibilizadas em boletins oficiais, o Ingress Report,
enviado via e-mail pela desenvolvedora do jogo para os seus participantes (fig. 2):
Fig. 2: grupo de jogadores reunidos em local pblico para encontro. Fonte: Decode Ingress (2014)
H dentro do aplicativo do Ingress um campo no qual possvel se comunicar com
outros jogadores: em um deles, todos os participantes tm acesso s mensagens, no
importando a qual equipe pertenam; em outro, permitida a conversa apenas entre os
membros de uma mesma faco. interessante observar tambm a existncia de agentes
duplos, que participam das duas equipes com usurios diferentes, mas que se engajam
primordialmente em uma, utilizando a outra exclusivamente para obter informaes
privilegiadas. Durante a pesquisa para a elaborao deste trabalho, tomamos
conhecimento de um grupo coletivo de jogadores no WhatsApp pertencente aos
Iluminados na cidade de Porto Alegre - RS, visando especificamente tornar mais segura
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a troca de informaes entre os membros da faco citada e articular aes coletivas em
portais inimigos (fig. 3):
Fig. 3: grupo no WhatsApp de jogadores pertencentes aos Iluminados em Porto Alegre RS.Fonte: o autor (2014)
Interessante observar como em diversos momentos da teoria de Simmel (1983), o
termo jogo surge como vocbulo para designar as dinmicas nas relaes sociais entre os
indivduos, dada a prpria imprevisibilidade que emana do conceito na perspectiva do
socilogo, e que parece convergir tal como o trabalhamos aqui. Convm recuperar que
Caillois (1990) sugere a questo do desconhecimento do resultado final do jogo como um
fator principal do fascnio que ele exerce entre os jogadores. Alm disso, ao utilizar o
conceito de jogo como designador das possibilidades interativas e das relaes entre
indivduos em Simmel (1983), parece confirmada a ideia exposta previamente do carter
social do mesmo, lanando mo de tal termo para denotar sempre um encontro, estar
junto com o outro.
Cabe ainda ressaltar a noo de competio para Simmel como uma forma pura de
conduta humana. J dissemos que a questo intrnseca ao jogo em suas diversas
manifestaes, mesmo que no possua tal caracterstica explcita ou que ela no seja o
produto final do ato de jogar. Entendemos que existem modalidades de jogos que
possuem a competio como fora-motriz do funcionamento dos mesmos; entretanto,
cremos que, ao considerarmos os mesmos sob a perspectiva de Simmel como forma
bsica de sociao entre os indivduos, podemos entender a competio como elemento
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bsico das relaes humanas em sociedade. A partir de tal constatao, nos parece
pertinente entender a competio como interao, ou seja, como uma
(...) forma de relao dos homens entre si; forma que pode envolver toda sorte de
contedo, mas que, a despeito da grande variedade desses contedos, a forma mantm
sua prpria identidade e prova que pertence a um campo regulado segundo leis
prprias e suscetveis de abstrao (1983: 66).
Sabemos que a cidade , desde sempre, espao de conflito, negociao, criao e
destruio inventiva a partir das suas apropriaes e usos previstos ou inesperados, a
partir de uma pulso da vida metropolitana, dando origem a modos de vida que Jacobs
(2009: 13) descreve como sendo fantasticamente dinmicos. Nesse sentido, podemos
inclusive pensar na transmutao do espao sob um prisma ldico como sendo a busca
por um reencantamento do mundo weberiano, propiciado pelo jogo; a energia que, dentro
da cosmologia do Ingress, emana do espao pblico de carter fantstico, misterioso,
mgico. Ela est e no est nos lugares de forma simultnea: ao mesmo tempo em que
presente e objeto de disputa por parte de jogadores, os cidados desavisados que transitam
por aquele mesmo espao sequer se do conta de que, paralelamente, travada uma
batalha simblica e fsica sobre aquele ponto.
As relaes de conflito e cooperao, assim, servem como engatilhadores de
transformaes sociais, espaciais e simblicas, atravs da habitao de um distinto
contexto espacial e temporal que existe como possibilidade, imaginao e criao
coletiva. O ordinrio, assim, passa a ser extraordinrio a partir de inesperadas formas de
interveno no espao fsico. Ou seja, como defende Certeau (1998: 178) uma rua no
a mesma para duas pessoas, ou mesmo para uma mesma pessoa em situaes diferentes;
ou seja, o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial.
Consideraes Finais
Reapropriar a cidade como fbula. Essa a premissa do Ingress, jogo que tomamos
como objeto de incurso nesse trabalho. Ao transitarem pela cidade em seus trajetos
cotidianos e aparentemente de forma casual, os jogadores se apropriam do espao fsico,
constroem relaes que ultrapassam os vnculos formais ou esperados sobre aqueles
lugares. Da mesma forma como a arte de rua, estilos de msica e demais manifestaes
artsticas, os jogos que misturam o espao fsico com o imaterial, o on-line e o off-line, o
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comum e o fantstico, tambm expressam uma cultura urbana pulsante, cheia de vida, em
cidades que so incessantemente desconstrudas, reconstrudas e ressimbolizadas atravs
de seus usos criativos. Ou seja, (...) uma cultura urbana [que] se expressa no s por suas
convenes gestuais, de linguagens recorrentes, especializaes profissionais de seus
portadores, mas [que] se apresenta igualmente atravs de suas prticas ordinrias, saberes
e tradies (Rocha; ECkert, 2013c: 25).
Longe de esgotar as possibilidades de anlise em relao a um objeto ainda to
recente e, ao mesmo tempo, to fundamental para o homem o jogo , temos cincia que
aqui buscamos apontar algumas questes que podem servir de embasamento para que
possamos pensar o objeto em mais profundidade em momento posterior, haja vista a
prpria conciso desse trabalho. Tomando como horizonte tambm a compreenso da
cidade como tessituras discursivas surgidas das prticas individuais e sociais em relao
mesma; ou seja, como sugere Magnani (1992), a paisagem urbana, composta pelas suas
composies arquitetnicas, urbansticas e sociais o resultado das prticas, intervenes
e modificaes que a sua ocupao causa o que tambm corroborado por Certeau
(1998). Nesse sentido e visando uma investigao mais profunda do nosso objeto,
acreditamos que a antropologia urbana e a etnografia de rua se apresentam como
poderosas fontes de dilogo com o campo da Comunicao.
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Recebido em: 30/09/2014
Aprovado em: 22/11/2014
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