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A fobópole segundo Marcelo Lopes de Souza
Às segundas-feiras, o blog publica entrevistas
com escritores, editores, acadêmicos e outros personagens do universo literário.
Hoje, o professor da UFRJ Marcelo Lopes de Souza fala sobre seu recém lançado
livro "Fobópole - O medo generalizado e a militarização da questão urbana"
(Bertrand Brasil), em que discute a transformação das cidades em espaços
caracterizados pelo medo generalizado, e as conseqüências disso para as políticas
urbanas.
Quais são os elementos que contribuem para que a experiência urbana
hoje seja caracterizada pelo medo? E quais são as conseqüências disso?
Ao combinar dois elementos de composição para formar a palavra “fobópole” − a
palavra phobos, que quer dizer “medo” em grego, e outra palavra grega,polis, que
significa “cidade” −, tentei exprimir, sinteticamente, a imagem de uma cidade na
qual o medo e a percepção do crescente risco, no que se refere à segurança
pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas
cotidianas, nos noticiários da grande imprensa etc. Além do mais, a
“fobopolização”, isto é, a urbanização marcada pelo medo, se relaciona com vários
fenômenos, sejam de tipo defensivo, preventivo ou puramente repressor, levados a
efeito pelo Estado ou até mesmo pela sociedade civil.
A “fobopolização” pode ser particularmente bem observada em grandes cidades e
metrópoles da chamada semiperiferia, como na Cidade do México, no Rio de
Janeiro, em São Paulo e Joanesburgo; entretanto, ela é, no fundo, um fenômeno que
se inscreve em escala planetária. Muito embora cada país e cada cidade tenha suas
especificidades por razões econômicas, culturais e de trajetória histórica, não se
trata de algo restrito a somente alguns países. Note-se que, em Los Angeles e em
outras tantas cidades do EUA, violência e medo há muito tempo fazem parte do
cotidiano. E, como vários acontecimentos nos arredores de Paris e em outras
cidades européias mostraram nos últimos anos, nem mesmo a relativamente mais
tranqüila Europa Ocidental está completamente imune ao problema, ao menos em
parte.
Foto de André Teixeira
Busco, em meu livro, chamar a atenção
para o fato de que o modelo social capitalista produz maciça e crescentemente
“fatores de estímulo” a diversos tipos de violência (note-se que não me refiro
somente a desigualdades materiais, que se associam muitas vezes a sentimentos
de revolta e frustração por parte daqueles que não podem consumir, mas também
à desregulamentação do sistema financeiro e às facilidades para a “lavagem” de
“dinheiro sujo”, ao estresse e a psicopatologias diversas associadas aos ritmos e
modos de vida, entre outros fatores). Por outro lado, esse modelo social, ao mesmo
tempo que cria essas condições, se mostra extremamente incapaz de enfrentá-las
com eficácia, de uma maneira que, no longo prazo, consiga conciliar segurança
com justiça social e liberdade.
É possível constatar que a ciranda da violência tende, no geral e no longo prazo, a
se agravar, a despeito de avanços conjunturais aqui e ali – e a principal resposta
do Estado, das elites e da classe média, diante disso, tem sido uma mistura de
“contenção social” (por meio da repressão ou de medidas de “inclusão” puramente
paliativas) e escapismo (“condomínios exclusivos”, cercas eletrificadas, segurança
particular etc.).
Como isso tem alterado as políticas urbanas em diferentes regiões do
planeta?
É preciso que se diga, antes de responder diretamente a esta pergunta, que, diante
do quadro complexo que temos diante de nós, o mundo acadêmico tem,
infelizmente, oferecido uma contribuição qualitativamente insatisfatória. Ele precisa
superar alguns gargalos, caso queira oferecer uma contribuição que vá além de
diagnósticos muito parciais e de sugestões de “terapia” extremamente
incompletas.
Em meu livro, procuro articular preocupações e campos temáticos que, via de
regra, se acham desarticulados, ignorando-se mutuamente. Vou citar dois exemplos
de parcialismos condicionados pela divisão do trabalho acadêmico e por tradições
específicas dentro de cada disciplina, e às vezes também por preconceitos de
natureza ideológica:
1) Quem estuda segurança pública não se ocupa de planejamento urbano, de
economia urbana etc.; são, geralmente, sociólogos e juristas, que preferem
concentrar-se, no plano do diagnóstico e da terapia, em temas relativos às
instituições policiais e prisionais, à legislação penal etc.
2) Quem estuda segurança pública o faz quase sempre a partir da ótica do Estado,
negligenciando os problemas e o papel dos movimentos sociais.
Foto de Gabriel de Paiva
Ora, encarar o desafio da violência exclusivamente como uma tarefa para o
aparelho de Estado, e ainda por cima privilegiando um receituário de tipo
institucional, que vai do aprimoramento da polícia à reforma do sistema penal e
prisional, implica amesquinhar demasiadamente os termos do debate − e é claro
que isso também influencia as políticas públicas. Venho tentando mostrar que tanto
o diagnóstico quanto as propostas de solução precisam estar mais atentos para a
realidade, que é muito mais complexa do que a maior parte das contribuições
acadêmicas costuma sugerir.
As respostas do Estado são insuficientes e parciais. E pior ainda: não raro,
contribuem antes para agravar os problemas do que para superá-los. Estratégias
como a “tolerância zero” (zero tolerance), que se difundiu a partir da experiência de
Nova Iorque, podem até ser parcialmente eficazes durante um certo tempo, no que
se refere a baixar alguns índices de crimes violentos. Mas o fôlego desse tipo de
estratégia é curto. Pode-se até garantir, pela via da intimidação, da disciplina e do
controle, uma diminuição dos níveis de violência manifesta, mas sem eliminar os
fatores que fazem com que a violência latente permaneça e se amplie. Isso é, no
mínimo, perverso, porque, na realidade, caso a combinação de repressão e
“prevenção” tenha certa eficácia, pode-se até conseguir um certo “apaziguamento”
aparente, mas ao preço de reprimir demandas legítimas, de alienar ainda mais as
pessoas e de adiar a explosão da “bomba-relógio” com a qual temos de conviver.
É claro que as ações do Estado não se restringem apenas a medidas repressivas;
tem havido, mesmo no Brasil, aqui e ali, nos últimos anos, alguns pequenos
avanços, no sentido de dar prioridade a medidas de tipo “preventivo”, como o
chamado “policiamento comunitário”, que vem sendo implementado com um certo
sucesso em diversos países. Há, também, inclusive no Brasil, alguns programas que
integram medidas típicas de segurança pública (em sentido restrito) com outros
tipos de ações, como o programa “Fica Vivo”, de Belo Horizonte. No entanto, além
da falta de consistência com que coisas tais como “policiamento comunitário” são
muitas vezes implementadas no Brasil e em outros países da (semi)periferia, há o
fato de que, de qualquer maneira, a “prevenção” é, quase sempre, pensada antes
de mais nada em termos institucionais, sejam policiais ou penais (por exemplo,
melhorar o desempenho da polícia e do Judiciário). Ora, isso é o que eu denominei
“estratégia de contenção social”, a qual até pode colaborar para uma certa
“estabilidade sociopolítica”, para o bem de moradores aquinhoados e investidores,
mas não muito mais do que isso. Nesse sentido, o “policiamento comunitário”, tal
como é usualmente pensado, de fato representa uma estratégia menos
conservadora que programas no estilo “tolerância zero”, mas não chega a
representar alguma coisasubstancialmente diferente.
Há, também, “estratégias de contenção” de tipo ainda mais light que o próprio
“policiamento comunitário”... Penso em certas iniciativas como medidas
compensatórias chamadas de “inclusivas”, vale dizer, voltadas para a “inclusão”
por meio do esporte ou da música. Quero deixar claro que, em princípio, não tenho
nada contra políticas públicas que busquem oferecer oportunidades culturais e de
lazer aos pobres, especialmente as jovens pobres das favelas e periferias. No
entanto, restringir-se a ações no campo do esporte e da arte, sem que isso esteja
vinculado a debates e ações profundos e consistentes no que se refere à ampliação
da consciência de direitos e à geração de oportunidades de geração e melhoria
substanciais da renda, significa, a meu ver, cometer uma espécie de contrafação.
Não adianta propor “vamos tirar os meninos do tráfico” sem que sejam
inteligentemente discutidas as alternativas materiais que podem ser oferecidas.
Corremos o risco de produzir propostas simpáticas, porém inócuas; propostas
extremamente limitadas em seu alcance e que são, no frigir dos ovos, pouco mais
que “manobras diversionistas”.
Dentro desse contexto, existe alguma
particularidade na situação das regiões brasileiras?
O capitalismo contemporâneo, cada vez mais, gera em todas as pessoas
expectativas de consumo, sendo que, por outro lado, apenas uma pequena parcela,
em um país como o nosso, poderá satisfazer essas expectativas de consumo por
meios legais, no mercado. Se você tem um sistema que retroalimenta
incessantemente um imaginário segundo o qual “ser” é “ter”, e que para você “ser”
é necessário, acima de tudo, que você “tenha”, bombardeando os indivíduos com
necessidades reais ou pseudo-necessidades de ter tais e tais produtos, é inevitável
que muitos façam o que estiver ao seu alcance para satisfazer essas necessidades,
sejam elas menos ou mais “básicas”.
É claro que não há uma relação linear e simplista entre pobreza (ou privação, ou
assimetrias estruturais de renda e poder), de um lado, e criminalidade violenta, de
outro. O que não quer dizer, no entanto, que não exista nenhuma relação, como
muita gente hoje em dia apregoa sem a menor inibição... Isso nos remete à questão
de que as responsabilidades do capitalismo contemporâneo não se vinculam a ele,
estreitamente, na qualidade apenas de um “modo de produção”, mas sim na
qualidade de ummodelo social e de um imaginário, que produz e reproduz valores e
comportamentos.
No Brasil, estamos diante de um país que acumula historicamente desigualdades
profundas (diferentemente, por exemplo, da Europa Ocidental e do Japão, para citar
os casos mais óbvios) e, ao mesmo tempo, se apresenta como profundamente
atravessado e modelado pelo imaginário capitalista, em larga medida como uma
espécie de versão semiperiférica da matriz ocidental-moderna, em que certos
valores culturais ou religiosos tradicionais se apresentam enfraquecidos ou não
conseguem (mais) desempenhar um papel de “freios”. Vale a pena comparar, a
esse respeito, o Brasil com a Índia, por exemplo: a pobreza, em uma cidade como
Calcutá, é incomparavelmente maior que em uma cidade como Rio de Janeiro,
Vitória ou São Paulo, mas isso não significa que a violência vinculada de algum
modo a motivações socioeconômicas (sobretudo crimes como roubo, latrocínio etc.)
seja maior lá − muito pelo contrário. Esse exemplo é um dos muitos que nos
ajudam a perceber que o contexto econômico-social é muito importante, sim, ao
menos no que se refere a certos tipos de delito (não a todos, evidentemente), mas
que o “papel mediador e de filtro” exercido pela cultura não pode jamais ser
esquecido ou colocado em segundo plano. E também a esse respeito, como todos
sabemos, existem grandes diferenças entre os países, não apenas no que se refere
ao nível de bem-estar material das pessoas.
E, já que enfatizei o papel da cultura, vale a pena reconectá-la fortemente com a
vida material e cotidiana e observar que a agressividade das pessoas − a qual,
obviamente, está longe de se limitar aos pobres! − é estimulada pelos modos e
ritmos de vida estressantes, pelos entretenimentos estupidificantes, e também
pela sensação de que nem todos são, na prática, iguais perante a lei (refiro-me à
síndrome do “você sabe com quem está falando?” e ao tratamento desigual entre
ricos e pobres no que se refere à polícia e ao sistema penal)…
Nos últimos anos, políticos do Rio de Janeiro têm rebatido reclamações
contra a insegurança no estado dizendo que a percepção de insegurança é
exagerada, em parte por causa de distorções da imprensa, e não
corresponde à situação real. O que você acha disso?
Foto de Berg Silva
É preciso evitar o simplismo de achar que a mídia
simplesmente “fabrica” a violência. Esse tipo de acusação não pode servir de álibi
para administradores públicos incompetentes e desinteressados em resolver
adequadamente os problemas. É bem verdade que a mídia, muitas vezes, amplia,
distorce, filtra, seleciona e deforma, mas ela faz isso a partir de um material
fornecido pela própria realidade “objetiva”. O problema é que, como se discute há
muitos anos, existe uma diferença entre as taxas concretas de crimes violentos, de
um lado, e a percepção de insegurança, de outro. Muitas vezes há um certo
“descompasso”, pois o sentimento de insegurança pode crescer até bem mais
rapidamente que o aumento real de casos de criminalidade violenta, e aí o papel da
mídia, ampliando, simplificando e distorcendo, fica evidente.
Ocorre que o comportamento das pessoas é condicionado pela maneira como a
realidade é percebida por elas, e não por aquilo que a realidade “é”,
independentemente de sua percepção… (Lembremos que, para a sociedade, a
realidade é sempre uma realidade também construída intersubjetivamente, e não
somente “objetiva”.) A decisão de mudar-se para um “condomínio exclusivo” ou de
fugir para o interior é influenciada pelo “clima social”, o qual é modelado pelos
grandes meios de comunicação. O fato de haver uma hiperconcentração de meios
de comunicação no Rio de Janeiro e em São Paulo favorece uma exposição
desproporcional do que ocorre nessas cidades, em especial no Rio de Janeiro.
Quantos brasileiros sabem que as taxas de homicídios foram, em Recife, maiores do
que as taxas do Rio e de São Paulo, nas últimas décadas? Ou quantos sabem que
até mesmo Belo Horizonte e Vitória possuem taxas de homicídios que,
recentemente, já chegaram a ultrapassar aquelas das duas maiores cidades
brasileiras?
É claro que, no que se refere ao Rio de Janeiro, outro fator que colabora para a
hiperexposição da cidade é o próprio padrão de segregação residencial. No Rio, a
classe média que mora na Zona Sul escuta tiroteios e sofre constantemente com
balas perdidas, como recentemente aconteceu durante a “guerra” pelo controle dos
morros da Babilônia e do Chapéu Mangueira, no Leme. Em São Paulo, por exemplo,
há uma outra situação, porque a pobreza lá está muito mais concentrada na
periferia, de maneira que certas coisas só se tornam mais visíveis para a classe
média através de episódios como as ondas de ataques deflagradas pelo PCC
(Primeiro Comando da Capital), as quais afetaram inclusive o Centro, perto da
classe média.
É preciso compreender que a mídia não “amplia”, “simplifica” e “deforma” somente
por incompetência e ignorância, muito embora isso também seja um fator a ser
considerado. É preciso voltar à questão anterior, a respeito da responsabilidade do
modelo social capitalista, e entender que estamos falando de empresas de
comunicação que alimentam e são alimentadas por um poderoso “mercado da
informação”. Informações sensacionalistas e simplificadas “vendem bem”; análises
mais profundas e críticas, muitas vezes, “não vendem tão bem”, só atingem uma
parcela pequena dos leitores, ouvintes ou espectadores - uma parcela mais
exigente e ainda não embrutecida. Um crime que atinge uma pessoa ou família de
classe média tem uma repercussão muito maior que um crime contra uma pessoa
ou uma família pobre - e é nas áreas residenciais pobres, nas favelas e periferias,
que mais se mata e se morre, nas mãos de criminosos comuns, da polícia ou de
grupos de extermínio.
Temos, ao lado do “mercado da informação” e em estreita conexão com ele, o
“mercado da segurança” (que lucra produzindo armas, blindagem em carros,
“condomínios exclusivos”) e, finalmente, o sistema político-eleitoral, em que
candidatos cada vez mais exploram o medo com o objetivo de arregimentar
eleitores - seja o medo do terrorismo, como nos EUA, seja o medo da criminalidade
violenta ordinária, como no Brasil, no México etc. A sinergia produzida pela
interação do “mercado da informação” com o “mercado da segurança” e o sistema
político-eleitoral tem, cada vez mais, estimulado a insegurança e mesmo a violência
concreta, em vez de colaborar para superá-las.
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