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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE HISTRIA SOCIAL
A FORMAO DO PROFESSOR E O ENSINO DE HISTRIA Espaos e Dimenses de Prticas Educativas
(Belo Horizonte, 1980/2003)
Cludia Sapag Ricci
So Paulo 2003
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE HISTRIA SOCIAL
A FORMAO DO PROFESSOR E O ENSINO DE HISTRIA Espaos e Dimenses de Prticas Educativas
(Belo Horizonte, 1980/2003)
Cludia Sapag Ricci
Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Histria do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP), sob orientao do Prof. Doutor Marcos Silva.
Banca examinadora Prof. Dr. Marcos A. Silva Orientador (USP)
Prof. Dr Da Ribeiro Fenelon (PUC/SP)
Prof. Dr Lana Mara Castro Siman (FAE/UFMG)
Prof.a Dr.a Ceclia Hanna Mate (FE / USP)
Prof.a Dr.a Ceclia Helena Salles de Oliveira (Museu Paulista / USP).
SO PAULO 2003
3
RESUMO
FORMAO DO PROFESSOR E O ENSINO DE HISTRIA: Espaos e Dimensoes
de Prticas Educativas tem como objetivo central acompanhar a trajetria formativa
do profissional do ensino de Histria.
Entendendo que a formao do profissional ocorre em diversos espaos e
dimenses da vida do sujeito em questo, a pesquisa buscou acompanhar esses
diferentes aspectos. Dessa forma, debruou um olhar sobre cursos universitrios de
Histria (FAFICH/UFMG; PUC Minas; UNICENTRO Newton Paiva e UNI-BH) e
alguns espaos de formao continuada tais como cursos de ps-graduao em
Educao (especializao, mestrado, doutorado) e atividades oferecidas pelos
Centros de Formao das Secretarias Municipal e Estadual de Educao (CAPE e
CERP, respectivamente). Alm de levantamento bibliogrfico e documentao
institucional (histrico, projetos curriculares; publicaes; regime de trabalho e
titulao do corpo docente; programaes; sistema de avaliao) foram fontes as
entrevistas com coordenadores, professores e ex-alunos dos cursos, assim como a
anlise de questionrios aplicados a alunos no incio e trmino dos cursos de
Histria.
O recorte espacial para tal pesquisa foi a cidade de Belo Horizonte e o recorte
temporal privilegiado o perodo compreendido desde os anos 80 do sculo passado
at os dias de hoje.
PALAVRAS-CHAVE Formao de professores Professor de Histria Ensino de Histria Formao continuada Cursos de Graduao
4
ABSTRACT
The main purpose of Teachers education and the teaching of history: spaces and
dimensions of educational practices is to investigate the educational experience of
student teachers of history.
Assuming that professional education accurs in many diferent spaces and dimensions
of a persons life, this research attempted to understand these different aspects.
Thus, it focused on graduation courses of history (FAFICH/UFMG; PUC Minas;
UNICENTRO Newton Paiva e UNI-BH) and some spaces of continuing professional
education such as post-graduation courses in education (specialization, masters
degree and doctors degree) and activities offered by Professional Development
Centers of local and state Departments of Education (CAPE and CERP, respectively).
Besides bibliographical and institutional documentation survey (historical, curricular
projects, publications, work regulation, teachers titles, programs, evaluation system),
interviews with coordinators, professors and former pupils have been used as
sources of data, as well as analysis of questionnaires applied to students who are
beginning and ending their history courses.
This research took place in Belo Horizonte and the period of time considered extends
from the 80s up to the present.
Key-words
Professional development for teachers
Teaching of history
History teacher
Continuing professional education
Graduation Courses
5
Para voc Rud.
6
AGRADECIMENTOS
A elaborao do texto de agradecimentos traz sentimentos conflituosos: apesar da
alegria proporcionada por compartilhar o trabalho realizado, o receio de que, nesse
momento em que a presso do tempo se acentua, possa deixar de mencionar a
contribuio de uma das tantas pessoas que participaram, direta ou indiretamente,
dessa empreitada. No novidade para quem j desenvolveu um trabalho de
pesquisa como ele envolve uma srie de profissionais que podem, como num passe
de mgica, agilizar ou criar obstculos impeditivos para o seu desenvolvimento. Ao
longo desse meu trabalho pude contar com a colaborao de vrias pessoas, a
quem gostaria de registrar o meu agradecimento:
Ao prof. Dr. Marcos Silva pela sua orientao atenta, seu incentivo e tranquilidade
nos momentos mais aflitos;
Aos colegas do Ncleo de Geografia e Histria da Escola Fundamental do Centro
Pedaggico da UFMG - professores Adair Carvalhais, Araci Coelho, Paula
Mascarenhas, Rita Durso e Soraia Dutra -, por me propiciarem condies para a
finalizao da pesquisa e elaborao da tese;
Aos que, gentilmente, cederam seu tempo para compartilhar comigo sua trajetria no
ensino de Histria: ngela Cristina Sampaio (CAPE/SMED); ngela Maria Cyrino de
Andrade (CERP); Carla Maria Junho Anastasia (FAFICH / UFMG); Carla Ferretti
Santiago (PUC Minas); Ciro Flvio C. Bandeira de Mello (ex-FAFICH/UFMG, atual
UNI-BH); Eduardo Frana Paiva (ex- UNICENTRO Newton Paiva, atual FAFICH /
UFMG); Elosa Patrus (CERP); Geraldo Mrcio Alves dos Santos (ex-aluno UNI-BH);
Joo Carlos Ribeiro de Andrade (GERED-Barreiro/SMED); Joo Manuel Ferreira
Gomes (CAPE/SMED); Joo Pinto Furtado (FAFICH / UFMG); Juliana Vieira da
Silva (CAPE); Lana Mara de Castro Siman (FAE / UFMG); Laura Nogueira Oliveira
(UNI-BH); Luiz Felipe Arreguy Soares (ex-aluno UNI-BH); Luiz Carlos Villalta
(FAFICH / UFMG); Mrcia Santos Fonseca (CERP); Marco ntonio de Souza
(UNICENTRO Newton de Paiva); Maria das Mercs Vieira da Cunha (CAPE/SMED);
Maria Eliza Linhares Borges (FAFICH / UFMG); Maria Paula Dias Couto Paes
(UFMG / PUC Minas); Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva (atual secretria de
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educao do municpio de Belo Horizonte); Natrcia Micheletti Viana (ex-aluna
UFMG); Paulo Roberto (SMED); Regina Helena Alves da Silva (FAFICH / UFMG);
Rogrio Manata (ex-aluno PUC); Roseli Correia da Silva (ex-aluna UFMG) e
Wellington de Oliveira (UNI-BH); Rogrio Batista de Souza (CERP);
Aos coordenadores de curso das instituies pesquisadas que possibilitaram o
acesso documentao e autorizao para aplicar os questionrios com alunos, em
especial, Carla Ferretti Santiado (PUC Minas). Da mesma forma, preciso registrar
e agradecer a disponibilidde e gentileza de Kelly, da secretaria da FAFICH;
Mnica Rahme que, mesmo antes de defender sua dissertao, me disponibilizou
suas descobertas sobre o CAPE;
Aos alunos que colaboraram respondendo aos questionrios, assim como aos(s)
professores(as) que cederam um tempo em suas aulas para a aplicao dos
mesmos;
Ao professor Orlando Pilati, Coordenador Geral de Articulao Institucional, Diretoria
de Estatsticas e Avaliao da Educao Superior do INEP, pelo atendimento de
meus questionamentos e envio de informaes e textos sobre os projetos
pedaggicos dos cursos de Histria no Brasil.
Muitos foram os que trabalharam, em suas respectivas reas, dando um suporte
tcnico para essa pesquisa, a quem gostaria de registrar meus agradecimentos:
Marina Amorim, competente assistente de pesquisa, foi, muitas vezes, meus olhos e
ouvidos no levantamento da documentao; Mrcio Aurlio, pela pacincia na
transcrio das fitas; Leonardo Rocha pela constante disponibilidade e gentileza
desde a colaborao na definio de amostragem e aplicao dos questionrios,
como na coordenao no trabalho de tabulao dos dados. Devido a presso do
tempo, contou com a contribuio de Frederico Aurichio (tratamento e criao do
banco de dados), Lliam Raposo Amorim (digitao dos dados) e Arthur de Oliveira
Gil (reviso/codificao). Ao Roney Goulart pela gentileza em scanear as charges.
Cludia Caldeira, pelas conversas que davam alento e compartilhavam as
angstias do processo de pesquisa.
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E, por fim, mais do que agradecer a pacincia em aturar a aflio e ansiedade
materna, devo me desculpar com meus filhos, Thiago e Fernanda, pelo tempo que
no tive para eles.
9
Nota de Apresentao_______________________________________________________ 11
Captulo 1 O discurso institucionalizado sobre a formao do professor _____________ 26
Um perodo de mudana ________________________________________________________ 26
A formao de professores na legislao brasileira __________________________________ 43 A Lei de Diretrizes e Bases______________________________________________________________ 43
Teoria e prtica na formao_____________________________________________________________ 53
O Ensino Superior na formao do professor de Educao Bsica _____________________ 62 O acesso ao Ensino Superior_____________________________________________________________ 69
A orientao para as diretrizes curriculares dos cursos de graduao___________________ 77
Captulo 2 A formao de professores nos cursos de graduao de histria __________ 81
Diretrizes Curriculares dos Cursos de Histria _____________________________________ 81
Diagnstico dos cursos de Histria no Brasil_______________________________________ 102
Os cursos de graduao pesquisados _____________________________________________ 123 O Curso de Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG____________________ 124
O Curso de Histria do Unicentro Newton Paiva____________________________________________ 145
O Curso de Histria da PUC Minas ______________________________________________________ 165
O curso de Histria da UNI - BH ________________________________________________________ 182
Captulo 3 - Fragmentos da formao continuada do professor de Histria___________ 207
A universidade e seus ex-alunos _________________________________________________ 207
Centro de Aperfeioamento dos Profissionais da Educao CAPE ___________________ 217 A oficina de Histria__________________________________________________________________ 238
Centro de Referncia do Professor CERP _______________________________________ 247 O laboratrio de Histria ______________________________________________________________ 258
Consideraes Finais: Permanncias e mudanas na formao do professor _________ 270
Fontes e Bibliografia ______________________________________________________ 280
Sites: _______________________________________________________________________ 290
Entrevistas __________________________________________________________________ 290
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Anexo 1_________________________________________________________________ 291
Listagem dos Cursos de Histria que enviaram seus projetos ao INEP _________________ 291
Anexo 2_________________________________________________________________ 295
Ementrio e Bibliografia das disciplinas com alta incidncia nas matrizes curriculares
enviadas ao INEP _____________________________________________________________ 295
Anexo 3_________________________________________________________________ 321
Questionrio aplicado a alunos do incio e final do curso de Histria __________________ 321
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Nota de Apresentao
No incio da dcada de 80, tive o privilgio de participar de um grupo de estudos
coordenado por Paulo Freire. Ele havia acabado de chegar de seu exlio e retomava
suas atividades docentes na PUC/SP. Um pequeno e diversificado grupo - alunos de
graduao, mestrado, doutorado, da prpria PUC ou de fora (como no meu caso)
reunia-se mensalmente, s 18:00 hs., numa sala da universidade, sob a regncia
dele, para refletir sobre a educao em nosso pas. Paulo Freire indicou como
material norteador para essas reflexes e discusses o prefcio e o posfcio do livro
A questo poltica da educao popular, organizado por Carlos Rodrigues Brando.1
Ciente das mudanas ocorridas ao longo desses vinte anos, arrisco-me mesmo
assim a expressar, seno o contexto, pelo menos o esprito que me faz posicionar-
me frente a educao de forma geral, em relao a minha profisso de professora e,
em especial, meu olhar para as diversas dimenses da formao do professor,
objeto central dessa pesquisa. Dessa forma, peo/dou a palavra ao Cio,
reproduzindo a seguir o prefcio e posfcio citados:
1 BRANDO, Carlos Rodrigues (org.). A questo poltica da educao popular. So Paulo: Brasiliense, 1982.
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... Agora, o senhor chega e pergunta: Cio, o que que educao? T certo. T bom. O que que eu penso, eu digo. Ento veja, o senhor fala: Educao; da eu falo: educao. A palavra a mesma, no ? A pronncia, eu quero dizer. uma s: Educao. Mas ento eu pergunto pro senhor: a mesma coisa? do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra? A eu digo: No. Eu digo pro senhor desse jeito: No , no . Eu penso que no. Educao... quando o senhor chega e diz educao, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparao, no seu essa palavra vem junto com qu? Com escola, no vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho s de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. fato? Penso que , mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui. Ento, quando o senhor vem e fala a pronncia educao, na sua educao tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme eu sei pronunciar tambm, ela vem misturada no pensamento com isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? Dos evangelhos: Semente que caiu na terra boa e deu fruto bom. (...) Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode at ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas no o mesmo. A escolinha cai-no-cai ali num canto da roa, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como o resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois nem trs. Comigo no foi nem trs. Ento eu digo educao e penso enxada, o que foi pra mim. Porque assim desse jeito que eu queria explicar pro senhor. Tem uma educao que vira o destino do homem, no vira? Ele entra ali com um destino e sai com outro. Quem fez? Estudo, foi estudo regular: um saber completo. Ele entra dum tamanho e sai do outro. Parece que essa educao que foi a sua tem uma fora que t nela e no t. Como que um menino como eu fui mud num doutor, num professor, num sujeito de muita valia?
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Agora, se eu quero lembrar da minha: enxada. Se eu quero lembrar: trabalho. E eu hoje s dou conta de um lembrarzinho: a escolinha, um ano, dois, um caderninho, um livro, cartilha? Eu nem sei, eu no lembro. Aquilo de um b-a-b, de uma alfabetozinho. Deu pra aprender? No deu. Deu pra saber escrever um nome, pra ler uma letrinha, outra. Foi s. O senhor sabe? Muito companheiro meu na roa, na cidade mesmo, no teve nem isso. A gente v velho a pra esses fundos que no sabe separar um A dum B. Gente que pega dum lpis e desenha o nome dele l naquela dificuldade, naquele sofrimento. Mo que foi feita pro cabo da enxada acha a caneta muito pesada e quem no teve prazo dum estudozinho regular quando era menino, de velho que no aprende mais, aprende? Pra qu? Porque eu vou dizer uma coisa pro senhor: pra quem como esse povo de roa o estudo de escola de pouca valia, porque o estudo pouco e no serve pra fazer da gente um melhor. Serve s pra gente seguir sendo como era, com um pouquinho de leitura. (...) O senhor faz pergunta com um jeito de quem sabe j a resposta. Mas eu explico assim. A educao que chega pro senhor a sua, da sua gente, pros usos do seu mundo. Agora, a minha educao a sua. Ela tem o saber de sua gente e ela serve pra que mundo? No assim mesmo? A professora da escola dos seus meninos pode at ser uma vizinha sua, uma parente, at uma irm, no pode? Agora, e a dos meus meninos? Porque mesmo nessas escolinhas de roa, de beira de caminho, conforme a deles, mesmo quando a professorinha uma gente daqui, o saber dela, o saberzinho dos meninos, no . Os livros, eu digo, as idias que tem ali. Menino aqui aprende na iluso dos pais; aquele iluso de mudar com estudo, um dia. Mas acaba saindo como eu, como tantos, com umas continhas, uma leitura. Isso ningum no vai dizer que no bom, vai? Mas pra ns uma coisa que ajuda e no desenvolve. Ento, educao. por isso que eu lhe digo que a sua a sua e a minha a sua. S que a sua lhe fez. E a minha? Que a gente aprende mesmo, pros usos da roa, na roa. ali mesmo: um filho com o pai, uma filha com a me, com uma av. Os meninos vendo os mais velhos trabalhando. Inda ontem o senhor me perguntava da Folia de Santos Reis que a gente vimos em Caldas: Cio, como que um menino aprende o cantorio? As respostas? Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensinar? Menino to ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio.
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Olha, aprende. Tem inclinao prum cantorio? Prum instrumento? Canta, t aprendendo; pega, toca, t aprendendo. Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), t aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), t aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido. Agora, nisso tudo tem uma educao dentro, no tem? Pode no ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que no tenha. Mas se ele no sabia e ficou sabendo porque no acontecido tinha uma lio escondida. No uma escola; no tem um professor assim na frente, com o nome professor. No tem... Voc vai juntando, vai juntando e no fim d o saber do roceiro, que um tudo que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus servido. Quem que vai chamar isso a de uma educao? Um tipo dum ensino esparramado, coisa de serto. Mas tem, no tem? No sei. Podia ser que tivesse mais, por exemplo, na hora que um mais velho chama um menino, um filho. Chama num canto, fala, d um conselho, fala srio um assunto: assim, assim. A pode. Ele um pai, um padrinho, um mais velho. Na hora ele representa como de um professor, at como um padre. Tem um saber que falado ali naquela hora. No tem um estudo, mas tem um saber. O menino baixa a cabea, da ele escuta; aprendeu, s vezes no esquece mais nunca. Ento vem um e pergunta assim: O Cio, o Antnio Cio, seus meninos to recebendo educao? Que seja um padre, que seja o senhor. Eu respondo: Homem, uma eles to. Em casa eles to, que a gente nunca deixa de educar um filho conforme os costumes. Mas educao de estudo, fora os dois menorzinhos, eles to tambm, que eles to na escola. Ento quer dizer que assim: tem uma educao que eu nem sei como mesmo o nome que ela tem que existe dentro do mundo da roa, entre ns. Agora, tem uma essa que se chama mesmo educao- que tem na escola. Essa que eu digo que sua. a educao que eu digo: de estudo, de escola; professora, professorinha, coisa e tal. Daqui, mas de l. A gente manda os meninos pra escola. Quem que no manda? S mesmo um sujeito muito atrasado. Um que muda daqui pra l a toda hora. Um outro que mora a, pros fundos de um serto, longe de tudo. A gente manda, todo mundo por aqui manda menino pro estudo. longe, o senhor
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viu, mas manda. Podiam t na roa com o pai, mas to na escola. Mas quem pobre e vive nessa descrena de trabalhar dum tanto, a gente cr e descr. Menino desses pode crescer a sem um estudozinho que seja, da escola? No pode. Eu digo pro senhor, no pode. O meu saberzinho que j muito pouco, veio de aprender com os antigos, mais que da escola; veio a poder de assunto, mais do que de estudo regular. Finado meu pai j dizia assim. Mas pra esses meninos, quem sabe o que espera? Vai ter vida na roa pra eles todo o tempo? T parecendo que no. E, me diga, quem quem na cidade sem um saberzinho de estudo? Se bem que a gente fica pensando: O que que a escola ensina, meu Deus?. Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele no . (...) Agora, o senhor chega e diz: Cio, e uma educao dum outro jeito? Um saber pro povo do mundo como ele ? Esse eu queria ver explicado. O senhor fala: Eu t falando duma educao pro povo mesmo, um tipo duma educao dele, assim, assim.. Essa eu queria saber como . Tem? A o senhor diz que isso bem podia ser feito; tudo junto: gente daqui, de l, professor, peo, tudo. Da eu pergunto: Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra qu? Pra quem? (...)
Antnio Ccero de Sousa. Lavrador de stio na estrada entre Andradas e Caldas, no sul de Minas Gerais.
Tambm dito Antnio Cio, Tonho Cio e, ainda, Cio.
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... se um tipo desse duma educao assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, com adultos, os velhos, at mulheres, conforme foi dito, assim num acordo, num outro tipo de unio, com o povo todo da desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que nossa tambm, que ento juntasse idia de todos, professor, ns, num assunto assim, assim, ento o senhor havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa do que a gente pensa. Mas que dessa maneira que o senhor fala difcil de compreender. No que difcil, veja, a gente at imagina. Se eu contar prum cumpadre meu: olha, podia ser assim, podia ser de um jeito assim, ele imagina. Um outro, um vizinho, um companheiro, sabe como ? Porque l na cidade gente d conta de uns estudos assim, de alfabeto pra gente grada, pra velho at. Se conta, mas parece que no funcionou no. Agora, o senhor chega e diz que at podia ser diferente, no assim? Que no s pra ensinar aquele ensininho apressado, pra ver se velho aprende o que menino no aprendeu. Ento que podia ser um tipo duma educao at fora da escola, sala. Que fosse assim dum jeito misturado com o-de-todo-dia da vida da gente daqui. Que podia ser um modo desses de juntar saber com saber e clarear os assuntos que a gente sente, mas no sabe. Isso? (...) Quer dizer, eu entendo assim: fazer dum jeito que ajuda o peo pensar como anda a vida por aqui, porque que assim, assim. Dum jeito que o povo se une numa espcie de mutiro o senhor sabe como ? pra um outro uso. Pra lutar pelo direito deles trabalhador. Digo, de um tipo de reunir, pensar juntos, defender o que seu, pelo que devia ser. Exemplo assim, como a gente falava, de comear pelas coisas que o povo j sabe, j faz de seu: as idias, os assuntos. Eu entendo pouco de tudo isso, no aprendi, mas ponho f e vou lhe dizer mais, professor como que eu devo chamar o senhor? eu penso que muita gente vinha ajudar, desde que a gente tivesse como acreditar que era uma coisa que tivesse valia mesmo. Uma que a gente junto pudesse fazer e tirar todo o proveito. Pra toda gente saber de novo o que j sabe, mas pensa que no. Parece que nisso tem se segredo que a escola no conhece. Como o senhor mesmo disse o nome: educao popular, quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que pouco, mas
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no , eu lhe garanto, e ensinar o nome das coisas que preciso pronunciar pra mudar os poderes. Ento era bom. Ento era. O povo vinha. Vinha mesmo e havia de aprender. E esse, quem sabe? o saber que t faltando pro povo saber?
Tambm Antnio Ccero de Sousa, no final da mesma entrevista, que
comeou com a pergunta: Cio, como que o povo daqui aprende?
Cio se pergunta se possvel articular a vivncia com o aprendizado, se fosse
assim dum jeito misturado com o-de-todo-dia da vida da gente daqui. Que podia ser
um modo desses de juntar saber com saber e clarear os assuntos que a gente sente,
mas no sabe.
Essa perspectiva, em que a experincia concreta dos sujeitos da educao
fundamenta a compreenso sobre a vida e, ento, tomada como base do processo
de aprendizado do ser humano, de se incorporar humanidade, tem sido
pressuposto em meus estudos sobre a formao do professor. A formao do
professor no seria algo que ocorre externamente sua percepo. Pelo contrrio, o
professor fruto de um posicionamento e de uma reflexo nem sempre consciente
que o sujeito-professor faz ao longo de seu julgamento a respeito de sua prpria
trajetria profissional. Em outras palavras, no h como garantir que situaes
institucionais de formao (cursos programados, seminrios) conquistem os
resultados prticos previamente concebidos. Assim como se dissemina nas reformas
educacionais que o currculo prescritivo desconsidera a cultura original do educando
e suas buscas pessoais, o mesmo ocorre na formao do professor. Em sntese, a
tese que permeia esta pesquisa que a formao uma experincia refletida.
O tema central desta tese, a formao do professor, vem sendo objeto de reflexo
pessoal desde minha graduao, ao longo do curso de histria, na UNESP/Assis
(1980/1984). Assim, coerente com meu entendimento da formao enquanto
experincia refletida, esta tese foi-se esboando ao longo de minha trajetria
profissional. Enquanto cursava a disciplina "Prtica de Ensino de Histria", o discurso
18
acadmico, marcado pelas duras crticas performance do professor de ensino
fundamental, parecia incoerente com a realidade que presenciava atravs do estgio
que compunha o programa dessa disciplina. No estgio, paradoxalmente, o professor
que lecionava havia sido aluno de graduao do curso de Histria da UNESP. Algo
de estranho parecia ocorrer entre a academia e a prtica docente no ensino
fundamental. As crticas disseminadas ao longo do curso de graduao
sedimentavam uma certa cumplicidade acadmica, que no transformava a realidade
de sala de aula, como se o mesmo aluno, que em seguida tornava-se professor de
ensino fundamental, correspondesse a papis muito distantes entre si. O mais
intrigante que a universidade recusava a "paternidade" das prticas de ensino que
ela, afinal, havia procurado forjar. A crtica reforava a noo de que a prtica
docente, na universidade, constitua-se num locus superior da carreira, porque o
espao consagrado como o da produo do conhecimento. Assim, o conhecimento
construdo em sala de aula do ensino fundamental era desconsiderado, dado que era
concebido como espao da mera reproduo.
Em So Paulo, quando cursei meu mestrado no Programa de Histria da Pontifcia
Universidade Catlica, desenvolvi este mote como tema de pesquisa. Em minha
dissertao2, procurei acompanhar as percepes dos professores da Rede
Estadual de Ensino de So Paulo a respeito do seu trabalho, seu papel, sua
formao acadmica, seus alunos, os rgos governamentais, e mesmo suas
concepes sobre a Histria e a produo do conhecimento.
A anlise de relatrios desses professores que tinham sido enviados
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedaggicas, rgo tcnico da Secretaria de
Educao do Estado de So Paulo, acerca da discusso da Proposta Curricular para
o Ensino de Histria, ocorrida no ano de 1987, possibilitou um olhar privilegiado
sobre a questo, j que o discurso do professor sobre sua prtica e sua trajetria
profissional articulava, por vezes, sua formao acadmica prtica de ensino, ou
2 Da inteno ao gesto - Quem quem no ensino de Histria em So Paulo. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica, 1992. (dissertao de mestrado)
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seja, construa um elo entre o discurso acadmico e sua realizao prtica, enquanto
docente.
Essa discusso foi o momento culminante da expresso pblica das concepes dos
professores de Histria, seja dos 1 e 2 como do 3 graus, assim como dos mais
diversos setores da sociedade, por intermdio da imprensa e de acirrados debates,
de questionamentos e reflexes sobre o ensino de Histria.
Acompanhar o debate pblico que se seguiu reforma educacional promovida pelo
governo estadual paulista revelou diferenas, divergncias e at mesmo
confrontaes entre esses agentes, sinalizando, ainda, uma ntima e conflituosa
relao entre os trs nveis de ensino de Histria.
A relao da formao do professor, especialmente no ensino superior, e a sua
prtica pedaggica foi-se firmando como uma questo instigante, que tinha como
uma de suas facetas a solido do professor de ensino fundamental e, de outra, um
iderio educacional que segmentava os nveis de ensino, fragmentando a prpria
identidade do professor de histria. Como se o professor universitrio trabalhasse
com a construo do olhar historiogrfico, enquanto o professor de ensino
fundamental fosse um tcnico de repasse de informaes, no sendo capaz de
desenvolver habilidades e capacidades de pesquisa e percepo historiogrfica.
Assim, um percurso de pesquisa a ser desenvolvido seria entender quais so as
dimenses que formam o professor. Num primeiro momento, a formao universitria
perpetua um discurso ideolgico que cristaliza excelncias, lugares e saberes
definidos e qualificados socialmente. Mas me parece necessrio ampliar o olhar para
alm dos muros universitrios. Um processo de reformulao curricular, um
concurso, um curso so alguns momentos ou mesmo dimenses que formam um
professor.
20
Em 1993, em Belo Horizonte, ministrei um curso para professores de Histria no
CAPE - Centro de Aperfeioamento dos Profissionais da Educao da Secretaria
Municipal de Educao - e coordenei o Projeto de Ao Educativa do Museu
Histrico Ablio Barreto. Nos dois casos, o objetivo era a formao do professor, j
que, no Museu, organizam-se visitaes de professores que pudessem lanar mo
dos recursos e informaes existentes na sua programao de ensino.
Dessa forma, minha trajetria profissional consolidava paulatinamente a percepo
de que a formao do professor ocorria em muitos momentos no valorizados como
espaos de construo de um saber profissional. O desprezo acadmico sobre as
experincias familiares, a subjetividade do professor, as experincias que ele vai
acumulando ao longo de sua vida, a reafirmao de tradies no seu cotidiano e a
participao em rituais e vivncias culturais reduzia o escopo de interpretao do
processo pelo qual seu ex-aluno torna-se um professor. Assim, a universidade
parece no conseguir se apropriar do elo articulador da sala de aula do ensino
fundamental com a sala de aula da academia. O discurso do ensino universitrio fala
de um professor de ensino fundamental abstrato, idealizado e a-histrico.
Mais tarde, ao tomar contato com os estudos e pesquisas desenvolvidas pelo
professor Antnio Nvoa, da Universidade de Lisboa, minha percepo sobre o
processo de formao dos professores como multifacetado, processual e cotidiano,
ganhou maior suporte terico.
Em 1994, aps concurso pblico, assumi aulas na Escola Municipal Marlene
Rancante, em Belo Horizonte. O meu olhar de pesquisadora sobre o tema da
formao ganhava as cores da prtica do historiador em sala de aula do ensino
fundamental. Trabalhei com 5 sries e participava, alm do encontro semanal dos
professores da rea de Histria, de reunies entre os professores das vrias reas
do conhecimento que atuavam nas 5 sries. De forma bastante incipiente, esse
grupo procurava delinear, pela primeira vez, os objetivos do trabalho com alunos
dessa faixa de idade e as possibilidades de projetos a serem desenvolvidos. Era uma
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grande novidade, mesmo para professores no to novos assim, saber ou conhecer
o que um outro professor fazia ou propunha para os seus alunos - os mesmos
alunos. A perspectiva interdisciplinar, to propalada nas reformas educacionais
daquela dcada, atingia o ambiente escolar. Os encontros coletivos eram claramente
espaos formadores por permitirem a explicitao das diferentes lgicas e vises de
mundo de cada rea de conhecimento, e de cada professor, sobre a mesma
questo. Esse espao de formao inusitado no sistema educacional brasileiro na
medida em que, fora algumas experincias pontuais, ainda no est incorporado nos
programas de formao de professores.
A minha percepo sobre as diferentes dimenses da formao do professor ganha
contornos mais ntidos, contudo, a partir do trabalho que realizei no CAPE - Centro
de Aperfeioamento dos Profissionais da Educao da Secretaria Municipal de
Educao. O trabalho no CAPE, especialmente nesse perodo, foi um grande desafio
- era o momento do levantamento e diagnstico das experincias significativas da
Rede Municipal de Ensino e de inmeras discusses entre CAPE, Secretaria e
Departamentos de Educao das Administraes Regionais para a elaborao da
proposta de reforma educacional municipal, denominada Escola Plural3.
Uma experincia importante no CAPE foi participar da coordenao do CAPP -
Curso de Aperfeioamento da Prtica Pedaggica. Oferecido no CAPE, esse curso,
de 360 horas, atendeu a cerca de 400 professores, eleitos em suas escolas, e foi
freqentado no horrio de trabalho. Ao se inscrever, o professor apresentava um
memorial, que, publicado posteriormente, foi objeto de discusses e anlises entre
os prprios autores e seus colegas de turmas. Buscava-se, dessa forma, propiciar ao
professor uma apropriao e sistematizao crtica sobre sua prpria trajetria
profissional.
3 Tal projeto, implementado na dcada de 90, se inspirava em algumas das experincias da rede municipal inventariadas at ento (projetos coletivos de trabalho, reenturmaes de alunos, reestruturao do tempo escolar e formas participativas de gesto); pesquisas e reflexes de educadores e algumas reformas educacionais, especialmente, a realizada na Espanha.
22
Simultaneamente, iniciei a produo de material didtico, utilizando como referncia a minha prpria experincia em sala de aula, visto que continuava exercendo o magistrio em uma escola experimental da rede particular de ensino. Essa experincia completava um circuito de minha trajetria profissional e do meu olhar sobre a formao do professor de histria. Uma trajetria que teve incio com meus estudos na UNESP e na prtica de estgio; que passou pela organizao de uma pesquisa sobre o iderio de professores de histria de ensino fundamental num momento de reforma da rede estadual de ensino paulista; prosseguiu com a coordenao de ncleos de centros de formao de professores de ensino fundamental; e que, naquele momento, se completava com a volta sala de aula, adotando recursos pedaggicos que elaborei. O que procuro destacar que a produo dos livros didticos foi um esforo de interpretao da trajetria profissional de professores de histria de ensino fundamental, compreendendo, inclusive, a solido j destacada anteriormente. As experincias profissionais por que passei at ento possibilitavam um olhar multifacetado da prtica educacional, em certa medida, uma pesquisa sobre a ao da trajetria profissional docente. preciso destacar que a questo central desta tese a formao do professor de histria a partir da apropriao crtica de sua prpria experincia - nasceu da reflexo sobre minha prpria formao, ou seja, trata-se de uma questo intrnseca minha experincia, que, inclusive, contribuiu na definio de fontes e metodologia da pesquisa. Uma trajetria pessoal que formatou a proposta de investigao quando da minha participao como professora em cursos de graduao de histria, entre elas, nas disciplinas de Prtica de Ensino de Histria e Fundamentos e Mtodos de Histria oferecidas pela Faculdade de Educao (FAE/ UFMG). A primeira auxiliou-me na percepo sobre a representao que alunos do curso de Histria da FAFICH/UFMG tinham da Faculdade de Educao e o total desconhecimento sobre o ensino. Alunos, muitos j ingressos no mercado de trabalho, ou seja, j professores, mas sem uma discusso acumulada sobre ensino. O curso de Histria estava se encerrando e os futuros professores desconheciam as inmeras reflexes acerca do ensino de Histria. Passados doze anos de minha formatura, os velhos vcios da formao universitria e da relao entre os graus de ensino pareciam persistir. No caso de Fundamentos e Mtodos de Histria, ministrada para uma
23
turma de Pedagogia, ocorria uma inverso em relao ao caso anterior. Alunos que j haviam freqentado disciplinas similares, como Fundamentos e Mtodos de Geografia, acumularam reflexes sobre educao e mtodos de ensino, mas no apresentavam qualquer acmulo sobre os pressupostos da historiografia ou do ensino de Histria. Sentia, cotidianamente, o quanto a dicotomia entre ensino e pesquisa, entre pedagogos e historiadores, poderia refletir negativamente no desempenho dos futuros professores. Penso, no momento em que redijo esta apresentao, que uma possibilidade de anlise crtica do percurso de minha trajetria profissional converge para o significado do conceito de autonomia na vida de um professor de histria. O professor, enquanto profissional e cidado, capaz de se apropriar da sua profisso quando reflete sobre sua trajetria e prtica pedaggica, construindo conhecimentos que dem prosseguimento ao seu percurso profissional. Essa a essncia do conceito de autonomia para o educador. Quando ele impossibilitado dessa experincia reflexiva, impelido a uma prtica automatizada, destituda de sentido, ou permanece extremamente solitrio. Por esse motivo, minha histria profissional foi aqui utilizada como uma justificativa
no s do tema e do problema perseguido nesta tese, mas, principalmente, no que
tange a opo metodolgica. Ao estudar as diretrizes curriculares e normas do
Ministrio de Educao, ao pesquisar os programas dos cursos de graduao de
Histria, ao levantar a programao de cursos e de oficinas, nos centros de formao
continuada, eu procurei ir alm do discurso institucional, buscando encontrar o lugar
do processo de formao de um professor de histria, os dilogos e espaos que
as normas abrem ou fecham para que cada professor, em sua peculiaridade, consiga
exercer a reflexo de sua prtica, na apropriao de sua carreira.
O foco desta pesquisa o processo de formao de professores de Histria em Belo
Horizonte, compreendido como sua trajetria e as possibilidades de apropriao do
professor de Histria sobre sua funo. Todos os captulos adotam, ento, como
referncia as histrias, os pensamentos e as intenes de professores concretos,
no uma categoria em abstrato.
24
A tese est organizada em trs captulos. O primeiro tem como foco as discusses
sobre a formao do professor de Histria, suscitadas pelas inovaes e reformas
educacionais brasileiras dos ltimos vinte e trs anos. No mbito nacional, foram objeto de anlise, entre outros documentos, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educao, as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduao em Histria e
para Licenciatura, os documentos sobre o Provo e os Parmetros Curriculares
Nacionais, na medida em que estabelecem normas para a formao do professor,
indicam um perfil do profissional de Histria, suas habilidades e competncias. Alm
desses documentos oficiais do Ministrio da Educao, foram analisados
documentos de associaes, tais como a ANFOPE (Associao Nacional pela
Formao dos Profissionais da Educao), o FORUMDIR (Frum dos Diretores das
Faculdades de Educao das Universidades Pblicas Brasileiras), a ANPED
(Associao Nacional de Pesquisadores em Educao) e a ANPUH (Associao
Nacional de Professores de Histria). Todos esses documentos foram analisados
luz dos discursos de professores entrevistados nesta pesquisa, procurando cotejar o
discurso institucional com a sua concretizao percebida pelo professor de Histria.
O segundo captulo apresenta uma anlise dos cursos universitrios de Histria
oferecidos em Belo Horizonte pelas seguintes instituies: FAFICH-FAE/UFMG; PUC
Minas; UNI-BH e Unicentro Newton Paiva. A documentao pesquisada incluiu
grades e projetos curriculares; histrico do curso; perfil do corpo docente; sistema de
avaliao; publicaes; dados sobre a modalidade de funcionamento (bacharelado
e/ou licenciatura); informaes sobre a demanda de candidatos e formas de
ingresso; entrevistas a coordenadores, professores e ex-alunos do curso;
questionrios aplicados a alunos de incio e trmino do curso. A inteno foi
acompanhar, institucionalmente e atravs de relatos de quem a vivencia, os
pressupostos e concepes norteadoras da formao do professor de Histria.
Acompanhar a participao de professores de Histria em algumas atividades de
formao continuada como cursos de ps-graduao (especializao, mestrado e
25
doutorado) na rea educacional e as desenvolvidas pelo Centro de Aperfeioamento
dos Profissionais da Educao da Rede Municipal de Belo Horizonte (CAPE) e
Centro de Referncia do Professor (CERP) - Centros de Formao das Secretarias
Municipal e Estadual de Educao -, foi a inteno central do terceiro captulo. Para
tanto, foi realizado um levantamento e anlise na documentao do Programa de
Ps-Graduao em Educao da PUC Minas e do Programa de Ps-Graduao da
Faculdade de Educao da UFMG catlogos de teses e fichas de cada aluno do
curso de mestrado e doutorado (no perodo de 1980 a 2002); dos pressupostos
tericos e programao do Programa Regional de Especializao de Professores de
Ensino Superior PREPES, desenvolvido pela Pr-reitoria de Pesquisa e de Ps-
graduao da PUC Minas; de entrevistas a coordenadores e tcnicos; da
programao de cursos, de fichas de avaliao de professores cursistas, dos
relatrios e outros registros do CAPE e CERP, buscando, especialmente, delinear a
concepo de formao norteadora das aes desenvolvidas.
Outras dimenses formadoras o cotidiano em sala de aula; as experincias e
referncias familiares e culturais; as relaes sociais vivenciadas; as prticas
sindicais e associativas no foram objeto de anlise nesta pesquisa. Nas pginas,
a seguir, essas dimenses aparecem, indiretamente, quando os professores
explicitam tais referncias para justificar suas ponderaes crticas respeito das
propostas institucionalizadas de formao universitria e continuada.
Os recortes temporal e espacial da pesquisa se restringiram ao perodo dos anos 80
do sculo passado aos dois primeiros anos do sculo XXI e cidade de Belo
Horizonte, respectivamente.
Para finalizar, gostaria de justificar, e me desculpar, dos possveis erros grficos a
serem encontrados ao longo desta tese, atravs das palavras de Murilo Mendes:
Os erros grficos so como sacis que se escondem durante a
reviso e depois saltam aos olhos do escritor
26
Captulo 1 O discurso institucionalizado sobre a formao do
professor
Um perodo de mudana
Nos ltimos vinte anos, o tema da formao do professor do ensino fundamental e
mdio destacou-se no discurso oficial. O espao da sala de aula passou a ser
considerado como lugar de formulao de conhecimentos especficos, que alguns
denominaram de "saberes escolares"4.
Tal transmutao dos espaos de formulao de saberes fruto de uma nova
compreenso do desenvolvimento do saber humano, alimentada pelas pesquisas
desenvolvidas nos campos da psicologia e neurologia. A formao humana, que
antes era vinculada capacidade de adaptao do ser humano ao meio e que
sustentava a estratgia de condicionamento reflexivo da Escola Comportamental, foi
sendo compreendida como fruto de experincias e prticas sociais interpretadas por
cada sujeito singular. A formao em massa, uma busca determinada das aes
pedaggicas do incio do sculo XX, vai sendo duramente questionada em virtude
das peculiaridades individuais do desenvolvimento cognitivo. As experincias
concretas, em suma, forjariam hbitos e crenas subjetivas, estmulos cognitivos
difusos, o que faz de cada indivduo um sujeito mpar, que absorve novas situaes
de maneira singular. Em outras palavras, o olhar e a percepo de cada indivduo
possui uma relao direta com o passado de cada pessoa, com sua trajetria de
4 Este o caso de Forquini (1992), para quem toda prtica de ensino de um objeto pressupe a transformao prvia deste objeto em objeto de ensino. Chervel (1990), por sua vez, define os saberes escolares como entidades culturais prprias, criaes didticas originais, onde a escola produtora e criadora de configuraes cognitivas e "habitus" originais. Assim, o estatuto do saber escolar compreendido num patamar de conhecimento similar ao estatuto do saber acadmico. Ver Pereira (2000).
27
vida, seus traumas, os significados que construiu ao longo de sua vida sobre cada
objeto e situao.
Tal novidade na interpretao do processo de formao humana revaloriza, como
possvel perceber, o cotidiano e a vivncia concreta dos alunos. Moto contnuo, a
sala de aula reveste-se, a partir de ento, de um novo significado e estatuto
pedaggico. De lugar de reproduo de conhecimento, alada condio de lugar
de construo de significados e experimentaes singulares. O professor o autor,
portanto, das estratgias de aprendizagem, construtor dos dilemas a serem
explorados em sala de aula. O mundo acadmico, enfim, de definidor e lugar de
produo do saber reconhecido socialmente, redefinido como parceiro de jornada
das prticas de ensino.
A ruptura postulada por esta nova proposio extremamente significativa.
At pouco tempo, na dcada de 70, um ambicioso programa de treinamento de
professores procurava implantar novos elementos tcnico-pedaggicos no ensino
pblico, introduzindo tcnicas de estudo dirigido, massificao de contedos atravs
de livros didticos, novos contornos curriculares e contedos tcnico-
profissionalizantes. O objetivo explcito era massificar habilidades bsicas, que
consolidariam um contingente de profissionais minimamente capacitados para o
ingresso no mercado de trabalho formal, notadamente, industrial, em franco
crescimento naquele perodo em que o pas captava com facilidade poupana
externa para realizar investimentos produtivos.
Na dcada de 80, por seu turno, programas estaduais de capacitao do
professorado de ensino fundamental procuravam consolidar algumas das reformas
educacionais em curso, que eram frutos do processo recente de redemocratizao
do pas. Era o incio da mudana, em virtude da alteraao de paradigma: da
preparao para o mercado de massas para a formao de cidados ativos.
28
Mais recentemente, na dcada de 90, surgiram centros de formao de professores,
tanto em mbito estadual, quanto municipal, no caso das metrpoles, em especial,
na regio centro-sul do pas.
Em cada momento, os contedos, as propostas poltico-pedaggicas e as
concepes formadoras foram distintas, nem sempre to claramente expostas como
no caso da dcada de 70. Mas o tema recorrente nestes ltimos anos. No final da
dcada de 90, o ento presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso
destacou:
A questo ter professor bem treinado e que tenha um salrio digno.5
Essa afirmao do presidente da Repblica, que em cadeia nacional de televiso se
disse professor, marido de professora e pai de professora, foi feita ao anunciar a
implantao do Plano de Valorizao dos Professores, a partir de 1 de janeiro de
1998.
O discurso presidencial, neste caso, revela mais do que seu autor poderia querer.
Revela uma concepo pedaggica - no caso, a formao do professor do ensino
fundamental, que no se assenta na vivncia do professor, nos conflitos e desejos
nascidos da sua experincia profissional. Da, citar a necessidade de treinamento,
uma concepo que, na acepo inglesa (training), tem o sentido de aprendizagem,
ou instruo ao aprendiz, o que demonstra a permanncia de traos do paradigma
vigente em dcadas anteriores.
A formao de professores, enfim, ganha projeo pblica, mas sofre orientaes
mltiplas em sua aplicao. Enfim, o que poderia significar um descuido de
expresso pode ser um sintoma de uma cultura de formao de profissionais da
educao que se cristalizou ao longo dos anos em nosso pas. Seno, como
5 - Presidente aposta em ACM contra privilgios. FH confia na promessa de senador de acabar com instituto de congressistas. IN: Jornal do Brasil. 29 / 09 / 97, p.02
29
entender que esta terminologia se faa presente no prprio discurso dos
professores? O discurso presidencial coincide com muitas das falas dos docentes da
rede estadual paulista, quando discutiam uma nova proposta curricular, em 1987.
Para ilustrar, cito trecho de um relatrio de professores da capital paulista:
essa proposta muito boa e vivel, s que ns professores no estamos
preparados para coloc-la em prtica nas condies que existem. Precisamos
de treinamentos.
Alguns professores foram alm. Mais do que o pedido de treinamento, pediam para
ser adestrados:
cursos prticos a par do Programa do contedo programtico, sejam
realizados cursos de reciclagem e adestramento freqentes.6
verdade que essa fala datada. Hoje, ao analisarmos relatos de professores da
rede pblica, em especial de Minas Gerais - que experimenta propostas distintas de
reforma educacional -, esboa-se uma repulsa concepo de treinamento. Muitos
dizem que no so lixo para ser reciclado, e, numa postura completamente
diferente daquela expressa antes, reivindicam formao continuada, em servio ou
mesmo cursos que articulem questes tericas com a sua prtica. Esse discurso
crtico cada vez mais freqente em cursos e seminrios - em especial da rede
municipal de Belo Horizonte -, que tm por objeto a reflexo sobre a prtica
pedaggica e propostas curriculares.
Candau (1997), corroborando a anlise apresentada inicialmente neste texto, chega
a fazer uma distino entre uma perspectiva clssica da formao continuada de
6 Trechos de relatrios elaborados por professores da 2 e 7 Delegacias de Ensino, respectivamente, acerca da Proposta Curricular para o Ensino de Histria, da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedaggicas da Secretaria Estadual de Educao de So Paulo. Esses relatrios foram objeto de estudo e anlise em minha dissertao de mestrado da Inteno ao Gesto - Quem Quem no Ensino de Histria em So Paulo. SP, PUC, 1992.
30
professores com uma concepo nova, onde o locus da formao a prpria escola.
Em sua anlise, a autora contrape o conceito de reciclagem
reciclar significa refazer o ciclo, voltar e atualizar a formao recebida (...)
Trata-se, portanto, de uma perspectiva onde se enfatiza a presena nos
espaos considerados tradicionalmente como o locus da produo do
conhecimento (...) . Nesta perspectiva o locus privilegiado a universidade.
A autora questiona se tal concepo de reciclagem - sugiro a incluso do conceito de
treinamento - no estaria filiada tradicional separao entre teoria e prtica, entre
produo e transmisso de conhecimento.
Feita esta primeira abordagem sobre a emergncia do tema da formao de
professores nas ltimas dcadas, interessa, neste momento, compreender o
percurso terico da mudana na concepo de formao profissional do educador de
ensino fundamental.
Na primeira metade da dcada de 70, o predomnio da Escola Comportamental
induziu a uma compreenso do papel da escola como instrumento funcional de
formao de uma ordem social. Skinner, autor de referncia dessa escola de
pensamento, reafirmava a inteligncia como capacidade de adaptao ao meio. Para
Feldens (1984) a experimentao, racionalizao, exatido e planejamento tornaram-
se as questes principais na educao de professores.
Os mtodos de treinamento, objetivando a induo de hbitos e o reflexo
condicionado, eram valorizados, assim como estudos experimentais que procuravam
descrever reaes a estmulos programados. Desenvolvia-se, portanto, uma
tecnologia educacional.
No Brasil, a reforma desencadeada em 1971, pela Lei 5692, deu contornos
organizacionais aos pressupostos de natureza behaviorista, articulando-os ao
31
modelo de desenvolvimento econmico e tecnolgico expressos nos planos
plurianuais de desenvolvimento, esboados pelo governo federal. No por outro
motivo, os currculos adotados no ensino fundamental e mdio foram padronizados
nacionalmente e a formao profissionalizante foi includa como objetivo da
educao brasileira. Tambm foi significativa a excluso das disciplinas
denominadas reflexivas (como Sociologia e Filosofia) do currculo oficial. Em relao
ao professor, Cury (1982) fala sobre a expropriao de seu papel formulador:
o professor foi sendo paulatinamente esvaziado dos seus instrumentos de
trabalho: do contedo (saber), do mtodo (saber fazer), restando-lhe agora,
quando muito, uma tcnica sem competncia.
O fim da dcada de 70 marca um duplo processo de alterao do padro societrio
brasileiro. Em primeiro lugar, o perodo de profunda crise econmica que abalaria
as bases de legitimao do regime militar, apoiado, at ento, na capacidade de
fomentar o desenvolvimento industrial do pas. Movimentos sociais ampliam as
demandas sociais e inflam a agenda estatal. Por outro lado, a forte recesso
mundial, derivada da crise energtica e do aumento de taxas de juros internacionais,
impelem alteraes no padro de produo, introduzindo tecnologias baseadas na
microeletrnica (robtica e automao industrial), reverberando no perfil de
contrataes da indstria de ponta. O mercado de trabalho sofreu grande alterao a
partir de ento e o mundo poltico liberalizou-se paulatinamente.
O enfoque tcnico e funcionalista em relao educao passa a ser duramente
criticado. Olhares vindos da Filosofia e da Sociologia ajudam a compreender a
educao como espao transformador, articulado s questes poltico-sociais do
pas7. A partir de outro referencial, a escola passa a ser concebida como reprodutora
das relaes sociais. Segundo Pereira (2000),
7 Deve-se levar em considerao que o discurso crtico, sugerindo a educao como instrumento de transformao social destacara-se em dcadas anteriores. Paulo Freire foi um expoente, nos anos 50 e 60, dessa proposio. No entanto, o que procuro retratar a absoro dessa concepo pelas polticas pblicas oficiais ao longo dos anos de redemocratizao do pas. E nem mesmo havia
32
apesar de serem um elemento importante para a compreenso dos problemas
do ensino e da formao de professores, essas teorias apresentavam tambm
seus limites. A prpria escola passa a ser vista como um espao de
contradies, em que novas idias e mudanas podem ser iniciadas.
Comea a tomar corpo a discusso sobre a funo social da escola e a sua
articulao com uma prtica social global. No bojo dessa discusso, duas questes
ganham destaque nas crticas feitas ao modelo predominante at ento, em especial,
nos discursos de lderes sindicais da categoria de professores e em alguns fruns
educacionais: o carter poltico da prtica pedaggica e o compromisso do educador
com as classes populares.
Esta ltima questo, vale registrar, mantinha coerncia com o momento poltico de
democratizao do pas, quando as foras de resistncia ao regime militar ganhavam
expresso pblica. As anlises crticas a respeito das proposies governamentais e
estruturas institucionais - incluindo todo o sistema educacional brasileiro -
fundamentavam-se, quase que invariavelmente, numa correspondente identificao
dos sistemas de dominao e estrutura de classe na conduo das polticas
pblicas.
Com efeito, para os profissionais preocupados com a formao docente, as questes
educacionais passaram a ser abordadas de forma articulada aos acontecimentos
polticos pelos quais passava a sociedade brasileira. A importncia, ou mesmo o
reconhecimento da necessidade do posicionamento no presente, o assumir a
responsabilidade social e poltica com o momento vivido, so dimenses apontadas
por Fenelon (1982), ao refletir, especificamente, sobre o profissional do ensino de
Histria ao longo da dcada de 80. O discurso dessa autora tem um significado
unidade em relao a essa utilizao: foi mais ou menos engajada socialmente, mais ou menos envolvida com as demandas do mercado de trabalho industrial, mais ou menos instrumentalizada politicamente, dependendo do bloco poltico que sustentava as instncias de governo municipais, estaduais ou federal.
33
especial para esta pesquisa, na medida em que teve uma participao poltica e
acadmica relevante, desde ento, a respeito da profisso de historiador e da
articulao entre ensino e pesquisa em Histria. Segundo Fenelon:
Ao aceitarmos a dissociao entre a cincia e o social assumimos determinada concepo de Histria, de ensino e pesquisa, onde o conhecimento aparece como algo passivo, despolitizado e sempre intelectualizado.
Os significados presentes nas experincias dos professores, vivenciadas nesse
momento de mobilizao poltica, remeteram a questionamentos no s de seu
papel, do seu trabalho, mas tambm de concepes que embasavam a sua prtica
pedaggica. desse perodo o surgimento de inmeras experincias de ensino de
Histria, que buscavam romper com os programas oficiais de ensino, introduzindo
novas temticas e metodologias, como a realizao de entrevistas, trabalho de
campo e com diversas fontes e linguagens, tais como fotografias, filmes e objetos da
cultura material. E, inseridas nesse contexto, desencadearam-se discusses acerca
da melhoria do ensino, das reformulaes curriculares e da prpria formao
profissional. O espao da sala de aula retomado como definidor de uma identidade
profissional, muitas vezes compreendido como espao de resistncia aos modelos e
programas de ensino institucionalizados.
Num outro campo de formulao das diretrizes educacionais, a formao docente
passa a ser alvo de inmeros questionamentos, especialmente devido ao processo
de reformulao dos cursos de Pedagogia e Licenciatura. Questes sobre
competncia tcnica e compromisso poltico8 geram polmicas entre os
especialistas, assim como a distino entre professor e educador9.
8 O ttulo do livro Magistrio de 1 grau: da competncia tcnica ao compromisso poltico de Mello (1982) esteve no bojo dessa polmica. Para alguns pesquisadores, como Nosella (1983), a tese defendida poderia significar um retrocesso a um "novo e disfarado tecnicismo pedaggico", Esse autor chega a sugerir a alterao do ttulo para do compromisso poltico a uma nova competncia tcnica. Saviani (1983), orientador tanto de Mello como de Paulo, media: "a funo poltica da educao (escolar) se cumpre, tambm, embora no somente, pela mediao da competncia tcnica." Cf : Pereira (2000).
34
O debate sobre a formao dos profissionais de ensino vai, a partir do cenrio de
disputa ideolgica que se esboa no perodo, ganhando contornos de disputa aberta.
No artigo "Quem de-forma o profissional de ensino? Arroyo (1985) muda o foco dos
questionamentos voltados aos cursos de formao de professores, ao afirmar que se
estuda o que formador, mas no o que deformador na insero no mercado de
trabalho. Questiona a relao direta: fim de problemas educacionais quando
educadores estiverem mais qualificados. Segundo o autor,
a desqualificao do mestre apenas um dos aspectos da desqualificao da
prpria escola. (...) O peso desmotivador no apenas da falta de condies de
trabalho, da instabilidade no emprego, das relaes hierrquicas, do universo
burocrtico, da condio de simples assalariado a que vem sendo submetido o
profissional do ensino, nada de tudo isso levado em conta quando se
identifica as determinantes do fracasso escolar. (...) Se importante, pois
insistir na falta de preparos dos profissionais de ensino e na desfigurao
sofrida pelos centros de formao, no de menor importncia insistir nessas
transformaes ocorridas na organizao do trabalho a que so submetidos
esses profissionais. Nossa hiptese que essas transformaes esto na raiz
do despreparo profissional e na desfigurao dos cursos que deveriam form-
lo.
Citando Arroyo, Pereira (2000: 22/23) comenta que a discusso sobre formao de
professores amplia-se quando o contexto da escola, a falta de condies materiais
do trabalho docente, a condio de assalariado do professor passam a ser
considerados temas importantes do debate.
9 "J vem causando um pouco de irritao o uso indiscriminado da palavra educador, porque neste pas nem se forma o professor direito e j se julga que se deve, em lugar de professor, formar o educador. Outra palavra mgica esta, que j faz parte da linguagem comum, sem que se saiba bem o que educador. Nagle (1986)
35
Num esforo de sntese, a dcada de 80 fortemente marcada pela politizao do
debate sobre estratgias educacionais, tendo na proletarizao do professor o
elemento de articulao da crtica educacional com o movimento poltico sindical
geral que emergia no perodo de democratizao brasileira.
A universidade, contudo, permanecia desprestigiando o espao escolar de ensino
fundamental, identificando-o como lugar menor do saber. Alguns posicionamentos de
estudiosos do tema revelam conflitos agudos entre os nveis de ensino. Este o
caso das observaes de Alvarenga (1991):
A relutncia com que as tarefas docentes so aceitas em alguns setores da
Universidade (quase todo mundo detesta dar aulas), ou frases repetidas em
tom de brincadeira, mas reveladoras de preconceitos arraigados ("ainda h
candidatos para Licenciatura?", "A Universidade seria tima se no tivesse
alunos", "fulano vai ser castigado por sua baixa produtividade, vamos lhe
impingir a coordenao de uma disciplina bsica neste semestre", e outras)
refletem o pensamento de boa parte da comunidade acadmica e mostram
que o menosprezo pelas atividades educacionais no fica restrito apenas
formao de professores.
A dcada de 90 aprofunda a politizao e centralidade do espao de sala de aula.
Vale destacar a correspondncia desse movimento com a emergncia da valorizao
dos espaos privados e marcados pelas relaes intersubjetivas no debate
acadmico que, muitas vezes, emergiu nos escritos ps-modernos de valorizao
das mltiplas manifestaes culturais no cotidiano e na fragmentao das intenes
dos sujeitos. A anlise das prticas polticas como fundadas na microfsica do poder
valorizou o cotidiano e o espao de trabalho concreto, assim como as relaes
microsociais. Alguns autores destacam uma mudana de curso com a redefinio do
papel do Estado na educao. Krawczyk (1999) prope que
36
a redefinio do papel do Estado na educao, sem suas funes dirigistas e
centralizadoras, tem buscado, segundo o discurso poltico-educacional mais
visvel, a criao de condies para que as prticas inovadoras no sejam
impedidas ou condenadas ao fracasso pela burocratizao nem pela
tendncia rotina do aparelho estatal, ao favorecimento da regulao
distncia e ao incentivo autonomia e avaliao dos resultados. Uma vez
redefinido o papel do Estado, as polticas educativas devem voltar-se para a
gesto institucional responsvel - a descentralizao -, a profissionalizao e o
desempenho dos educadores, o compromisso financeiro da sociedade com a
educao, a capacidade e o esforo cientfico-tecnolgico e a cooperao
regional e internacional.
Mas um movimento terico mais significativo sobre o processo de formao e
identidade profissional dos professores foi sendo construdo ao longo da dcada.
Nos anos 90, o movimento de valorizao do espao de sala de aula como espao
formativo e de construo de identidades profissionais ganha contornos tericos com
as colaboraes, em especial, de autores europeus10.
Para Nvoa (2000), um dos expoentes dessa nova vertente analtica, a projeo de
novos significados do espao escolar advm da transio de uma concepo
"tcnica" de trabalho docente para perspectivas do professor reflexivo; de uma
separao entre o lugar da prtica e o lugar da teoria para a articulao entre o
espao escolar e o espao universitrio e da descoberta do professor como pessoa
para a necessidade de conceber espaos de auto-conhecimento e de reflexo tica.
Assim, para esse autor, houve uma mudana do investimento da escola como
projeto organizacional, para um esforo de organizar ambientes favorveis
formao e inovao.
10 A mudana na concepo da gesto educacional baseada na descentralizao administrativa e valorizao do espao escolar e da sala de aula, acompanhando o processo de aprendizagem e desenvolvimento do educando convergiu com uma alterao no referencial terico que orientava as
37
A conseqncia imediata desse tipo de abordagem foi a busca terica do meso nvel
de anlise, que pudesse articular o espao escolar (dimenso micro) e o sistema
educacional (dimenso macro). O dado comum das experincias reformistas
advindas desse novo posicionamento a respeito da experincia formativa dos
profissionais da educao foi a tomada de conscincia de que fundamental que a
formao de professores acontea dentro das escolas, como movimento reflexivo
das tentativas, experimentaes, demandas do processo formativo, adequao de
projetos pedaggicos realidade social, cujo protagonista o professor11.
A mudana de foco da valorizao do saber experiencial levou ao reforo de anlise
coletiva das prticas da superviso dialgica (universidade) e do apoio profissional
inter-pares, adotando como movimento formador a reflexo sobre a experincia.
Nvoa adota a expresso critical friends (amigo crtico) para redefinir as novas bases
da necessria relao entre Universidade e ensino fundamental.
A mudana de paradigma em relao ao processo formativo gerou, em alguns casos,
a consolidao de "comunidades profissionais" e de "movimentos pedaggicos"
concebidos como lugares de formao. Nvoa apoia-se, obviamente, na experincia
portuguesa de reforma educacional que sustentou a criao de mais de duzentos
centros de formao ao longo do pas12. Contudo, tal movimento nunca foi um ponto
pacfico na experincia brasileira.
Se o reconhecimento do professor como protagonista das prticas educativas gera
certo consenso terico, as condies para sua realizao no chegaram a se
polticas educacionais: de autores anglo-saxes para autores latinos, em especial, espanhis e portugueses. 11 Novamente, vale destacar que este era um dos discursos no debate que ocorria no pas sobre polticas educacionais e de formao continuada de professores. Contudo, havia uma convivncia com referenciais distintos, como o caso da formao por competncias, nitidamente voltada para o atendimento de demandas do novo mercado de trabalho. Polticas oficiais, muitas vezes, amalgamaram duas ou mais concepes, mesmo que divergentes. 12 Em 1993, essas instituies formadoras foram criadas em Portugal por iniciativa e sob responsabilidade direta dos professores e das escolas,. Ver: AMIGUINHO, Ablio e CANRIO, Rui - Escolas e Mudanas: o Papel dos Centros de Formao. Lisboa, Educa, 1994.
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efetivar. Nvoa destaca a necessidade urgente de se ultrapassar o reconhecimento
do professor como investigador para a instalao de condies concretas que
reforcem as prticas de pesquisa e de produo escrita dos professores no interior
do sistema educacional. Em suma, ainda h pouca produo do prprio professor e
ainda mais restrito o reconhecimento cientfico e editorial de sua produo. O seu
trabalho acaba sendo apenas objeto de estudo e uma forma de universitrios
legitimarem seus livros, suas pesquisas.
A traduo dessas observaes nos encontros dedicados ao debate dos projetos
educacionais, realizados ao longo dos anos 90 e incio do sculo XXI, foi a
consagrao do espao escolar do ensino fundamental como locus privilegiado da
articulao entre a formao inicial (universidade)13 e a formao continuada, que,
nos programas de formao desenvolvidos por vrias reformas educacionais em
curso, foram denominadas como "formao em servio", valorizando o cotidiano e as
prticas educativas realizadas em sala de aula como formuladores da pauta dos
programas de formao profissional.
Em Nvoa, os dois primeiros anos da profisso so identificados como cruciais para
a consolidao da identidade profissional, o que exige um acompanhamento preciso
do trabalho dos novos professores, aproximando-se de uma poltica de proteo e
auxlio permanente em relao aos professores iniciantes.
13 SANTOS (1995), ao comentar o termo formao inicial, ressalta que necessrio levar-se em considerao que a formao do professor se inicia antes mesmo da academia. O imaginrio do futuro professor sobre a carreira comea a ser construdo at mesmo durante a sua trajetria escolar. Esta observao relevante para o caso brasileiro, dado que pesquisa recente, desenvolvida pela UNESCO, denominada "Teachers for Tomorrow World", apontou que nosso pas o que apresenta o maior ndice de professores com menos de 30 anos de idade (35% do total do corpo docente de ensino fundamental e mdio do Brasil), a partir de sondagem realizada em 41 pases. A carreira docente, como se percebe, valorizada pelos candidatos a ingresso no mercado de trabalho formal, o que sugere uma construo social da imagem do docente em nossa sociedade, antes mesmo do ingresso na Universidade. Quando inquiridos por esta pesquisa a respeito da razo de estarem cursando a Faculdade de Histria, 54% revelaram o interesse em lecionar (alunos de incio e final dos quatro cursos universitrios de Histria de Belo Horizonte).
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Todo o debate em que se insere o novo estatuto da formao docente sugere,
entretanto, um espao mais complexo da constituio do profissional em questo. Se
o espao da prtica concreta do docente passa a ser considerado como espao
formativo por excelncia, necessria a absoro da complexa relao entre
comunidade, aluno e professor como eixo do processo formativo.
Cada um desses vetores portador de intenes e demandas especficas: a
comunidade, sustentando seu direito de intervir, avaliar e recomendar aes
educativas; o aluno, em seu direito ao espao de crescimento individual; e o
professor como aquele que demanda tempos coletivos de aquisio de
competncias tcnicas e reflexo sobre suas dificuldades profissionais.
Obviamente, a demanda verbalizada pelos professores a respeito do espao
formativo alimenta-se de um iderio complexo. De um lado, procura responder, com
certo rancor, s demandas que as prprias reformas impem a sua performance,
como protagonista da elaborao de novos contornos curriculares, como profissional
que diagnostica o movimento formativo dos alunos. Por outro lado, seu discurso
carrega forte nostalgia em relao a uma espcie de "idade de ouro" da carreira
docente. comum, em encontros de professores, a denncia da "desvalorizao
social do professor", quase sempre articulada desvalorizao salarial. O sentimento
de desprestgio crescente objeto de inmeros estudos, como o realizado por
Esteve (1995), quando analisa o mal-estar docente oriundo de doze elementos
bsicos que resume as mudanas recentes na rea de educao, a saber:
a) aumento da exigncia em relao ao trabalho do professor, que passa a assumir
tarefas administrativas, psicopedaggicas, de atendimento aos alunos e pais de
alunos, entre outras;
b) inibio educativa de outros agentes de socializao, em especial, a famlia;
c) desenvolvimento de fontes de informao alternativas escola que obrigam o
professor a alterar o seu papel de transmissor de conhecimentos como fonte
nica de transmisso oral;
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d) ruptura do consenso social sobre a educao como meio de sucesso individual;
e) aumento das contradies no exerccio da docncia, construindo um "equilbrio
instvel" na relao com seus alunos, desempenhando papis diversos, como
amigo, companheiro, funes seletivas e avaliadoras;
f) mudanas de expectativas em relao ao sistema educativo;
g) modificao do apoio da sociedade ao sistema educativo, onde pais sentem-se
desamparados em relao ao futuro dos filhos;
h) menor valorizao social do professor, onde identificado por alguns pais como
aquele que foi incapaz de conseguir emprego melhor;
i) mudanas dos contedos curriculares;
j) escassez de recursos materiais e deficientes condies de trabalho;
k) mudanas nas relaes professor-aluno, onde este ltimo deslegitima a
autoridade do docente;
l) fragmentao do trabalho do professor.
Na contramo do quadro desalentador apresentado acima, Perrenoud (2000) indica
um novo quadro de competncias profissionais14, sugerindo possibilidades
promissoras para a carreira docente. No artigo "Dez novas competncias para uma
nova profisso", o autor afirma que competncia profissional para um professor
significa mais do que o domnio dos contedos. Como referencial, o autor agrupa 10
grandes "famlias" de novas competncias:
1. Organizar e estimular situaes de aprendizagens;
2. Gerar a progresso das aprendizagens;
3. Conceber e fazer com que os dispositivos de diferenciao evoluam;
4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e no trabalho;
14 O termo competncia profissional no aceito passivamente na literatura especializada. Autores de diversos matizes acadmicos, como o caso de Fernando Hernndez e William Doll Jr., ponderam sobre a dubiedade histrica do conceito, na medida em que ele valorizado como exigncia dos novos parmetros do mercado de trabalho. A competncia profissional estaria associada, para os crticos da utilizao do conceito, flexibilizao e precariedade que seriam caractersticas neoliberais do mundo do trabalho globalizado e ps-fordista. A competncia, portanto, no se refere s demandas internas da prtica educativa, mas aos fatores exgenos e a servio da economia, em detrimento da cultura. Cf. HERNNDEZ (1998a e 1998b) e DOLL Jr. ( ).
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5. Trabalhar em equipe;
6. Participar da gesto da escola;
7. Informar e envolver os pais;
8. Utilizar novas tecnologias;
9. Enfrentar os deveres e os dilemas ticos da profisso;
10. Gerar sua prpria formao contnua.
Perrenoud sustenta que, em se tratando de profisses diretamente ligadas s
tecnologias, a renovao das competncias evidente, mas no caso da profisso de
professor, diferente j que as novas competncias que surgem no so para
responder a demandas tcnicas, mas devido transformao da viso ou das
condies de exerccio da profisso. Questiona: que professor confessaria que no
sabe organizar e estimular situaes de aprendizagens?15 No se trata de
competncias novas e, de certa forma, os professores j tm familiaridade com elas,
pois esto presentes no discurso moderno, nos movimentos pedaggicos, nas
cincias da educao.
H diferena entre saber ministrar um curso e controlar uma ampla gama de
situaes e procedimentos de aprendizagem, levando em conta a diversidade dos
aprendizes, exigindo a articulao entre didtica e gesto de da sala de aula. O autor
insiste em que preciso reconhecer que os professores no possuem apenas
saberes, mas tambm competncias profissionais, que no se reduzem ao domnio
dos contedos a serem ensinados, e aceitar a idia de que a profisso muda e sua
evoluo exige atualmente que todos os professores possuam novas competncias,
antes reservadas aos inovadores ou aos professores que precisavam lidar com os
pblicos mais difceis.
Vrias das habilidades necessrias, tais como acalmar a classe, estabelecer uma
certa ordem, corrigir provas, dar uma orientao, ajudar um aluno em dificuldade,
fazer com que os alunos trabalhem em grupos, explicar de novo uma noo mal
15 PERRENOUD (2001).
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compreendida, planejar um curso, dialogar com os pais dos alunos, mobiliz-los em
torno de um projeto ou de um enigma, sancionar na medida adequada, conservar o
sangue frio so, muitas vezes, desdenhadas e objeto de vergonha por parte de
professores, por considerem-nas com menor prestgio do que as cincias ou os
saberes procedimentais. No seria exagero afirmar que o desprestgio subproduto,
muitas vezes, do discurso universitrio, como sugiro no incio deste texto.
O discurso oficial e das instituies voltadas para a reflexo de polticas de ensino,
no por acaso, adotaram muitas dessas formulaes como idias-fora. Duas se
destacam no discurso oficial: a relao entre teoria e prtica (a centralidade do
espao de sala de aula) e a constituio de um esboo do perfil profissional do
professor para o novo sculo.
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A formao de professores na legislao brasileira
A Lei de Diretrizes e Bases
Neste item, o objetivo acompanhar o percurso de elaborao da Lei de Diretrizes e
Bases da Educao Nacional, lei mxima norteadora das polticas educacionais do
pas, destacando sua estratgia geral e a concepo de formao e perfil profissional
do educador.
Embora a primeira verso de uma Lei de Diretrizes e Bases (LDB) seja datada de
1961, a Constituio de 1934 apresenta, pela primeira vez, a exigncia de fixao de
diretrizes para a educao nacional e a elaborao de um plano nacional de
educao. 16 At ento, a educao no aparecia como uma questo de poltica
nacional. No entanto, a efervescncia poltica, que resultou no golpe que instituiu o
Estado Novo, limitou a efetivao das determinaes constitucionais ao Plano
Nacional de Educao - que, apesar de formulado, nem chegou a ser executado ,
postergando a elaborao da LDB.
Esse padro de conduta dos rgos centrais da poltica nacional em relao
normatizao das diretrizes educacionais foi uma constante nos perodos de regimes
autoritrios: aes pontuais, ao invs da implantao de um sistema nacional, o que
no deixa de ser paradoxal, na medida em que, justamente nesses momentos, a
concepo em relao aos programas e guias curriculares caminha em sentido
inverso. Durante o Estado Novo, so implantados inmeros decretos-leis
promulgando as leis orgnicas do ensino secundrio, do ensino industrial, do ensino
16 Art. 5. Inciso XIV traar as diretrizes da educao nacional; Art.150 Alnea a fixar o plano nacional de educao, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execuo, em todo o territrio do pas. Art. 152 Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Educao, organizado na forma da lei, elaborar o plano nacional de educao para ser aprovado pelo Poder Legislativo e sugerir ao Governo as medidas que julgar necessrias para a melhor soluo dos problemas educativos, bem como a distribuio adequada dos fundos especiais.
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comercial, assim como a criao do SENAI (Servio Nacional de Aprendizagem
Industrial), entre outras medidas relacionadas educao.
Somente na Constituio de 1946, a expresso diretrizes e bases para a educao
nacional aparece pela primeira vez e se abre a possibilidade de organizao de um
Sistema Nacional de Educao.
Dessa forma, a elaborao do texto do que viria a ser a primeira Lei de Diretrizes e
Bases da Educao Nacional (LDB) iniciada em 1947, um ano aps a promulgao
da Constituio. Um ano depois, em 1948, o texto, na forma de um projeto de lei,
encaminhado pelo presidente da Repblica, Eurico Gaspar Dutra, Cmara Federal,
que somente iniciar a primeira discusso em 1957. Durante todo esse perodo de
tramitao, a mensagem do Presidente chegou a ser arquivada devido aos
pareceres do relator Gustavo Capanema, que considerou o projeto contrrio
Constituio, dado o seu carter descentralizador. Com modificaes buscando
conciliar os projetos substitutivos apresentados, o texto, aprovado na forma de lei em
1961, parece buscar conciliar os princpios das diferentes correntes envolvidas, tanto
no mbito poltico-partidrio como entre representantes da Igreja, Imprensa e outras
associaes.
Os comentrios de Ansio Teixeira (Meia vitria, mas vitria) e de Carlos Lacerda
(Foi a lei a que pudemos chegar)17 expressam a estratgia de conciliao na
verso final da lei entre concepes de educao e postura polticas to distintas.
Em sntese, a elaborao da LDB seguiu o embate entre o iderio liberal da UDN e
de planejamento central nacional do PSD. O conflito entre a elaborao de garantias
ao ensino particular de inspirao liberal e catlica e prioridade escola pblica
de inspirao nacionalizante, permeia todo processo de construo da nova lei.
O Ttulo VII Da educao de grau mdio apresenta a questo da formao de
professores no seu Captulo IV: Da formao do magistrio para o ensino primrio e
17 Cf. Saviani (1997).
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mdio. O Ensino Normal era responsvel pela formao de professores e
especialistas do ensino primrio (orientadores, supervisores e administradores
escolares). No caso da formao de professores para o Ensino Mdio, sua
habilitao ocorreria nas Faculdades de Filosofia, Cincias e Letras. Por fim, nos
Institutos de Educao, formavam-se os docentes dos cursos do Ensino Normal.
A primeira LDB entra em vigor anos antes do golpe militar de 1964. Durante o
governo militar, no h edio de uma nova Lei de Diretrizes e Bases. O que
ocorrem so reformas, que afetam diretamente a organizao do ensino18, tais como
a Lei 5.540/68 (conhecida como Reforma Universitria), que reestrutura o ensino
superior, e a Lei 5.692/71, que substitui os dispositivos da LDB relativos ao ensino
primrio e mdio, inclusive atribuindo-lhes outra denominao: ensino de primeiro e
segundo graus.
Em julho de 1968, o presidente da Repblica, marechal Arthur da Costa e Silva,
decreta a criao de um Grupo de Trabalho19 para, em 30 dias, apresentar uma
proposta de reforma universitria. Segundo Saviani (1997),
ao iniciar seus trabalhos, o Grupo da Reforma Universitria j dispunha
de um conjunto de subsdios que vinha desde os estudos produzidos no
mbito dos Acordos MEC-USAID entre os quais se destacavam os
Relatrios Atcon, Meira Matos e da Equipe de Assessoramento ao
Planejamento do Ensino Superior, assim como os estudos patrocinados
pelo IPES.
18 Como j destacado anteriormente, os regimes autoritrios no Brasil no se pautaram por instituir um sistema nacional para a educao. Pelo contrrio, procuraram sustentar uma inspirao normativa mais pragmtica, focando a estrutura organizacional da educao, sem alterar ou valorizar as diretrizes filosficas e polticas do sistema. No regime militar ps 64, so utilizados decretos-Lei para instituir mudanas pontuais e especficas em cada nvel ou instncia educacional. 19 Os componentes designados por decreto presidencial do Grupo de Trabalho da Reforma Universitria eram: Fernando Bastos de vila, Fernando Ribeiro do Val, Joo Lyra Filho, Joo Paulo dos Reis Velloso, Newton Sucupira, Roque Spencer Maciel de Barros e Valnir Chagas. Posteriormente o deputado Haroldo Leon Peres participou do Grupo de Trabalho. Os estudantes, tambm nomeados pelo decreto presidencial, Joo Carlos Moreira e Paulo Bouas, recusaram-se a participar de tal grupo.
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O texto, transformado em projeto de Lei, foi aprovado pelo Congresso20 e sancionado
pelo presidente da Repblica que lhe fez diversos vetos.
Reformas na estrutura universitria eram demandas de estudantes e professores
universitrios nesse momento, que reivindicavam a extino do sistema de ctedra, a
ampliao de vagas nas escolas superiores pblicas e a institucionalizao da
autonomia universitria21. No entanto, a reforma implementada pela Lei n 5.540/68
atende s demandas de setores ligados ao regime militar, que buscavam a
intensificao do vnculo das universidades com o mercado. Ao contrrio de
favorecer a construo de um espao autnomo e democrtico, ela reforou o
domnio burocrtico e a centralizao do poder na estrutura universitria brasileira,
atravs das seguintes iniciativas de ordem burocrtica:
Instituiu o vestibular classificatrio, eliminando a nota mnima. Dessa forma, s seriam aprovados tantos candidatos quantas fossem as vagas. Deixavam de
existir os excedentes.
Atravs da organizao em departamentos, procurou enquadrar a universidade dentro de um modelo empresarial, que lhe desse mais eficincia burocrtica; o
mesmo objetivo se tentou alcanar com a organizao em semestres.
A organizao da universidade em unidades, no mais centralizadas em torno da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, dificultou a integrao entre os
estudantes e a vida universitria propriamente dita; por outro lado, as matrias
filosficas, importantes para estimular a reflexo e a discusso, tornaram-se
optativas para a maior parte dos estudantes;
20 Nesse perodo, aps a reorganizao partidria decretada pelo Ato Institucional n 2 que extinguiu os partidos polticos, o Congresso esvaziado, contava com parlamentares da ARENA (partido
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