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Seminário Nacional de Ciência Política: Democracia em DebateUniversidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Porto Alegre, 3 a 5 de setembro de 2008
GT Cultura Política e Opinião Pública
A luta pela implementação do Estatuto da Cidade
Thiago Aparecido Trindade1
Resumo
O objetivo deste trabalho é resgatar alguns aspectos da luta pela reforma urbana na
sociedade brasileira, discutindo a importância política do Estatuto da Cidade para as classes
trabalhadoras urbanas do país. Apresentamos ainda uma breve discussão sobre a atuação
dos principais conselhos gestores de política urbana em Campinas, tema de nossa pesquisa
de mestrado, com o objetivo de relacionar elementos da realidade que vem sendo estudada
com a discussão que será desenvolvida ao longo do texto. O foco mais geral da discussão
direciona-se na luta pela implementação do Estatuto da Cidade e o processo de
consolidação da democracia no Brasil, levando-se em conta a emergência de espaços
públicos onde se dão os encontros entre Estado e sociedade civil.
Palavras-chave: Reforma urbana; Estatuto da Cidade; Participação popular; Democracia;
Conselhos gestores
Introdução
Este trabalho tem como tema principal a luta de setores da sociedade brasileira,
que poderíamos denominar de democráticos e progressistas, por um país mais justo e
realmente democrático. Tomamos como ponto específico a luta pela reforma urbana, cujo
episódio histórico de maior importância certamente é a aprovação do Estatuto da Cidade,
em 2001, lei que regulamenta os Artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.
1 Formado em Geografia (licenciatura e bacharelado) pela UNESP de Presidente Prudente; mestrando em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP
Procuramos fazer um esforço de compreender essa luta em um contexto mais amplo, a
saber, a luta da sociedade civil contra o regime autoritário, cujo ápice se deu no final da
década de 1970 e ao longo da década seguinte.
No primeiro tópico, resgatamos os principais pontos da luta pela reforma urbana
na sociedade brasileira, mostrando como o regime militar atrasou o avanço desta agenda
que ganhou força novamente às vésperas da democratização, no contexto de elaboração da
Constituinte. Ressaltamos ainda a importância e o significado político da aprovação do
Estatuto da Cidade, destacando as possibilidades de construção de uma cidade mais
democrática. No tópico 2, apresentamos uma discussão sobre a consolidação histórica das
relações de poder e a conformação de poderosos interesses no decorrer da urbanização no
Brasil, mostrando com isso os principais obstáculos à implementação do Estatuto. No
tópico seguinte, focamos a discussão nos conselhos gestores de políticas públicas e no
potencial democratizante dessas instâncias na sociedade brasileira. No tópico 4, a partir de
alguns elementos iniciais de nossa pesquisa de mestrado, apresentamos um breve esboço a
respeito da atuação dos conselhos gestores de política urbana em Campinas. Por fim,
apresentamos nossas considerações finais sobre este trabalho, levantando alguns
questionamentos que consideramos relevantes para o tema em questão.
1. A luta pela reforma urbana no Brasil
É importante destacar que a idéia da reforma urbana segundo uma concepção
progressista emerge no contexto das reformas de base, que marcaram fortemente o
Governo João Goulart (1961-64) e evidenciaram a polarização entre os setores
progressistas e conservadores da sociedade brasileira na época (SOUZA, 2002; BASSUL,
s/data). Um marco histórico de grande importância para o aumento da visibilidade pública
na discussão acerca da reforma urbana foi a realização do Seminário de Habitação e
Reforma Urbana no Hotel Quitandinha, em 1963, na cidade de Petrópolis (RJ). Este evento,
de acordo com BASSUL, “(...) resultou num documento que, embora marcado pela ênfase
na luta pela moradia, já defendia preceitos de maior justiça social no território das cidades”
(s/data, p. 5).
Há que se ressaltar, entretanto, dois pontos: primeiro, por mais que a luta pela
moradia fosse algo de grande importância naquele momento, o referido evento não
conseguiu conferir à questão urbana tamanha visibilidade e repercussão nos segmentos
populares como a luta pela reforma agrária vinha fazendo. Na época, o campo vivia um
momento de forte agitação social e política sobretudo em função da mobilização das ligas
camponesas (SOUZA, 2002, p. 157). Em segundo lugar, o caráter da discussão foi, além de
muito centrada na questão da moradia, eminentemente técnico, focalizando-se na questão
do planejamento eficiente e prestando pouca atenção à participação popular nesse processo
(BASSUL, s/ data, p. 5).
De qualquer forma, o golpe militar de 1964, que depôs o presidente João
Goulart, acabou suprimindo toda a discussão em torno das reformas de base, que vinha
avançando de maneira significativa até então. É por isso que, no Brasil a discussão sobre a
reforma urbana está muito atrelada ao regime autoritário (1964-85) originado pelo golpe na
primeira metade da década de 1960. Como SOUZA destaca, o grande problema foi o
caráter repressivo do regime, sobretudo após a decretação do AI-5, em 1968. Isso fez com
que a margem de manobra para a emergência de movimentos contestatórios se reduzisse
significativamente, “(...) levando o nascente movimento em torno da reforma urbana a
‘hibernar’ por cerca de duas décadas” (2002, p.157).
Sob a égide do regime autoritário, as cidades brasileiras cresceram e se
modernizaram sem a participação política dos setores sociais mais afetados por esse
processo: as classes trabalhadoras urbanas. Na realidade, o golpe militar veio apenas
acentuar esta exclusão política dos referidos setores, uma vez que ainda não havia se
consolidado nenhuma experiência de participação popular autêntica na era do chamado
populismo. CALDEIRA e HOLSTON (2004), discutindo o processo de “modernização
sem cidadania substantiva” (p. 229) da sociedade brasileira, lembram que o processo de
urbanização no Brasil ocorreu ou sem participação popular (no regime autoritário) ou com
a participação controlada pelo governo (nos regimes populistas), já que nenhum desses
regimes tinha como objetivo transformar as massas em cidadãos com voz ativa no processo
político, conferindo-lhes uma cidadania efetiva ( Op. Cit., p. 233).
Mas o grande impacto do golpe militar foi, sem dúvida, esse brusco refreamento
na articulação e mobilização política dos segmentos sociais alinhados a ideários
democráticos e progressistas, como a reforma agrária e a reforma urbana. No entanto, a
partir do final da década 1970, com o enfraquecimento gradual do regime, ganha evidência
no cenário político uma série de movimentos sociais engajados na luta pela
redemocratização do país, dentre os quais merecem destaque movimentos urbanos
questionadores do modelo de urbanização brasileiro. De acordo com CALDEIRA e
HOLSTON (2004): “Os movimentos sociais urbanos foram cruciais na ampla oposição que
contribuiu para dissolver a ditadura militar” (p. 235). A partir da segunda metade da década
de 1980, as perspectivas de elaboração de uma nova Constituição contribuíram para que o
campo da reforma urbana se rearticulasse. SOUZA afirma que esta recomposição do
referido campo deu-se de forma qualitativamente superior no tocante ao conteúdo das
demandas:
(...) novas questões e perspectivas haviam sido acrescentadas e a questão da moradia, embora permanecesse fundamental, já não monopolizava tanto as atenções. (...) entre os meados e o fim da década de 80, amadureceu a concepção progressista de reforma urbana. Essa concepção pode ser caracterizada como um conjunto articulado de políticas públicas, de caráter redistibutivista e universalista, voltado para o atendimento do seguinte objetivo primário: reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano e promover uma maior democratização do planejamento e da gestão das cidades2 (2002, p. 158).
Se no período anterior ao golpe militar a discussão sobre a reforma urbana era
muito mais restrita à moradia e praticamente não se preocupava com a participação política
dos segmentos populares nos processos decisórios, no final da década de 1980 o debate
ganha novos moldes, sendo nitidamente enriquecido. Como SOUZA registra, a reforma
urbana passou a ser pensada como um conjunto articulado de políticas públicas de caráter
universalista, descolando-se daquela visão excessivamente centrada na moradia.
Ademais, a demanda por participação no processo político mostrava claramente
que os setores populares não estavam mais dispostos a se comportarem como meros
coadjuvantes no debate em relação à política urbana. Isto é, não reivindicavam apenas
questões materiais (asfalto, saneamento básico, moradia, transporte, etc.), mas também o
direito de participarem diretamente das decisões referentes à organização e à produção do
espaço das cidades, com o objetivo de democratizar o aparelho de Estado e exercer um
maior controle sobre o mesmo. É necessário frisar que essa leitura mais ampla da
problemática urbana emergiu, na verdade, a partir de um processo de maiores dimensões,
que se configurou no interior da sociedade brasileira na luta contra o regime militar. De
2 Grifo do autor
certa forma, o amadurecimento da concepção de reforma urbana acompanhou
paralelamente o amadurecimento da própria sociedade civil no Brasil. A análise de
AVRITZER pode contribuir para uma leitura que correlacione ambos os processos:
A partir de meados dos anos 70, começa a ocorrer no Brasil o que se convencionou chamar de uma sociedade civil autônoma e democrática. Tal fato esteve relacionado com diferentes fenômenos: um crescimento exponencial das associações civis, em especial das associações comunitárias (Boschi, 1987; Santos, 1983; AVRITZER, 2000); uma reavaliação da idéia de direitos (DAGNINO, 1994); a defesa da idéia de autonomia organizacional em relação ao Estado (Sader, 1988); e a defesa de formas públicas de apresentação de demandas e de negociação com o Estado (Costa, 1994; 1997). Especialmente nas grandes cidades, essas novas práticas redefinem a forma de fazer política, levando a um aumento significativo do número de associações comunitárias e à intensificação da sua forma de relação com o Estado (2002, p. 18).
É possível, portanto, compreender que o entendimento dos problemas urbanos
pelos movimentos ligados a essa temática ampliou-se sensivelmente na medida em que as
reivindicações políticas da sociedade civil em seu conjunto tornaram-se mais propositivas e
inovadoras no que se refere às formas de relação com o Estado, conferindo um novo
significado às práticas políticas desses atores. Voltando à questão dos movimentos urbanos
especificamente, na elaboração da Constituição de 1988, o tema da reforma urbana é
retomado como resultado das pressões desses movimentos, que se articularam em torno do
Movimento Nacional pela Reforma Urbana3 (MNRU). Em decorrência da mobilização das
forças políticas conservadoras, a proposta desse movimento não foi incorporada na sua
totalidade, ficando na realidade muito aquém disso. Entretanto,
(...) pela primeira vez na história brasileira, estava presente na Constituição um capítulo específico destinado a tratar da política urbana que trazia como novidade a orientação para que as cidades cumprissem a sua função social e promovessem o bem-estar de seus habitantes (...) (SILVA, 2002, p. 147).
Portanto, mesmo que a proposta do MNRU tenha sido “podada” e perdido
grande parte de seu conteúdo original, o primeiro passo rumo a uma legislação mais
3 Como explica Silva, “O Movimento Nacional pela Reforma Urbana foi formado por movimentos de moradia, ONGS, intelectuais vinculado à temática urbana e algumas entidades classistas (...). O Movimento pela Reforma Urbana foi o responsável pela apresentação de uma proposta de emenda à Constituição, denominada Emenda Popular de Reforma Urbana, subscrita por 150 mil pessoas em todo o Brasil. A característica fundamental que trazia era a afirmação do ‘direito à cidade’ a todos aqueles que nela vivem” (2002, 145-146).
específica visando uma maior regulação do solo urbano havia sido dado. As entidades da
sociedade civil passaram a lutar, dessa forma, pela regulamentação dos artigos 182 e 183 da
Constituinte, o que significou um enfrentamento direto com os empresários do setor
imobiliário e seus respectivos lobbies no Congresso Nacional. Cabe ressaltar ainda, que, de
acordo com a avaliação dos próprios atores envolvidos diretamente nessa luta, a “(...)
incorporação de um capítulo de Política Urbana na Constituição, mesmo ficando longe do
conteúdo geral proposto pela Emenda Popular, representou a abertura de um campo
importante para a luta política a favor do direito à cidade (...)” (SILVA, 2002, p. 147).
É neste contexto que surge o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU),
aglutinando diferentes entidades e movimentos sociais que possuíam em comum a luta pela
reforma urbana no Brasil. Essa mobilização contínua dos setores progressistas na tentativa
de construir um outro modelo de urbanização no Brasil possibilitou a criação de espaços
públicos alternativos para se discutir os problemas urbanos, sendo que esses espaços
cumpriram uma função essencial nesse processo, como atesta a análise de SILVA:
(...) o Movimento Nacional pela Reforma Urbana e depois a constituição do Fórum Nacional da Reforma Urbana produziram espaços públicos que possibilitaram a interlocução e a articulação de sujeitos heterogêneos que possuíam objetivos comuns, e isso foi capaz de dar corpo a um ator coletivo. Como ator coletivo, interpela a sociedade e o poder público expõe temas/questões/problemas que dizem respeito às formas de exclusões e injustiças presentes na sociedade (2002, p. 151).
A tarefa assumida pelo FNRU, todavia, foi bastante árdua. As articulações junto
ao Congresso Nacional se estenderam ao longo da década de 1990, tornando-se muitas
vezes exaustivas e desgastantes para esse ator coletivo envolvido na luta pela reforma
urbana (BASSUL, 2002; Silva, 2002; GRAZIA de GRAZIA, 2003). Em 1989, foi
apresentado pelo Senador Pompeu de SOUZA (PMDB) o Projeto de Lei nº. 181,
autodenominado “Estatuto da Cidade” (BASSUL, 2002). O referido projeto só começou a
tramitar na Câmara dos Deputados em dezembro do ano seguinte, transformando-se em
Projeto de Lei nº. 5.788/90. GRAZIA de GRAZIA (2003) assinala que as forças
conservadoras, representadas especialmente pelos empresários do mercado imobiliário,
proprietários de terra e setores conservadores ligados à igreja católica, apresentaram forte
resistência ao projeto (p. 58).
Após um longo e intenso processo de articulações políticas - que, se por um lado
dificultou a tramitação do projeto, por outro, contribuiu para aprimorar o mesmo
(BASSUL, 2002) – o Estatuto da Cidade foi finalmente aprovado em 2001, sendo
sancionado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 10 de julho do mesmo
ano. Foi, sem dúvida, uma vitória expressiva do FNRU e de todos os segmentos ligados
direta ou indiretamente à reforma urbana, uma vez que o Estatuto representa um
considerável avanço na legislação brasileira em função do seu caráter progressista e
democrático. Comentando o conteúdo e as possibilidades do Estatuto, BASSUL ressalta o
seguinte:
No Estatuto da Cidade, o objetivo da política urbana (ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade) pode ser traduzido em quatro grupos de propósitos: promover a gestão democrática das cidades; oferecer mecanismos para a regularização fundiária; combater a especulação imobiliária; e assegurar a sustentabilidade ambiental, social e econômica dos núcleos urbanos (2002, s/ página).
Logo em seu início, no Parágrafo único do Art. 1º, e no caput do Art. 2º, o
Estatuto estabelece normas destinadas a regular o uso da propriedade urbana, visando o
bem-estar coletivo, a segurança e o bem-estar dos cidadãos e o equilíbrio ambiental. Além
disso, ressalta que a política urbana tem como objetivo direcionar o desenvolvimento da
cidade, fazendo com a que a cidade e a propriedade urbana cumpram com suas respectivas
funções sociais. Em relação à participação popular, Moura (2002) lembra que os meios
propostos pelo Estatuto da Cidade para que este processo ocorra de forma efetiva, como os
conselhos de política urbana e as conferências de desenvolvimento urbano, servem,
fundamentalmente, “(...) para aumentar a pouca interlocução existente entre poder público e
sociedade civil em geral (...)” (s/página).
Dessa forma, a participação popular no processo de planejamento urbano não
depende mais da decisão ou da vontade do poder público; ela é uma condição obrigatória.
Deve-se ressaltar que, no Brasil, em função de nossa história política e social, qualquer
legislação que estimule e coloque a participação popular como condição de formulação de
políticas deve ser vista como um avanço e, sobretudo, como uma conquista da sociedade
civil. Inegavelmente, o Estatuto é um grande símbolo dessa conquista, uma vez que “(...)
representa o resultado da cidadania insurgente dos movimentos sociais das décadas
anteriores” (CALDEIRA e HOLSTON, 2004, p. 240). Justamente por esse caráter inovador
do ponto de vista histórico-político, o Estatuto da Cidade deverá enfrentar sérias
resistências ao seu processo de implementação, uma vez que esbarra em poderosos
interesses historicamente consolidados no seio da sociedade brasileira.
2. Obstáculos e desafios à implementação do Estatuto da Cidade
Como já foi mencionado no tópico anterior, a sociedade brasileira possui uma
história caracterizada por grande instabilidade política, onde regimes ditatoriais
frequentemente interromperam regimes (formalmente) democráticos. Outro traço bastante
peculiar de nossa sociedade é o grau de autoritarismo que caracteriza não só as relações
entre Estado e sociedade, como também as relações entre os diferentes segmentos da
sociedade civil (DAGNINO, 2002). Para as classes trabalhadoras pertencentes às camadas
mais empobrecidas da população, quase sempre o Estado colocou-se como algo inatingível,
totalmente impermeável aos interesses desses setores.
Sendo assim, ao longo de nossa história, as relações políticas entre os agentes
governamentais e os setores privilegiados da sociedade (que dispunham de grande
influência em razão de seu poder econômico) deram-se de forma obscura e não
transparente, muitas vezes ultrapassando os limites da legalidade. No que concerne à
política urbana propriamente dita, podemos afirmar que o processo de urbanização no
Brasil, que ganhou impulso definitivo a partir da segunda metade do século XX, foi
marcado por promíscuas relações entre poder público e setores economicamente
dominantes da sociedade (QUINTO JR., 2003; RIBEIRO, 2003).
A exclusão política das classes trabalhadoras nos processos decisórios sempre
foi conveniente para os setores beneficiários dessas relações. O Estatuto da Cidade
representa uma grande ameaça aos interesses privatistas e corporativos que consolidaram-se
ao longo de nossa história nas relações entre poder público e os segmentos dominantes da
sociedade. É viável discutirmos, ainda que brevemente, as razões pelas quais o Estatuto
pode enfrentar (e certamente enfrentará) sérias resistências no seu processo de
implementação. Partindo da questão da distinção entre o público e o privado, analisemos,
em primeiro lugar, uma questão apresentada e discutida pelo GRUPO de ESTUDOS
SOBRE a CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA (2000): a construção da noção de interesse
público no Brasil. Os autores iniciam o debate destacando o fato de que nossa sociedade
possui um conjunto de características no seu ordenamento que representam grandes
entraves para a consolidação da democracia na sociedade brasileira:
A indistinção entre público e privado4, subjacente a uma concepção oligárquica da política, onde os interesses privados assumem precedência sobre o interesse público, está no centro de uma matriz básica que continua presidindo a configuração da sociedade brasileira, e em relação à qual as instituições políticas da democracia representativa liberal se acomodaram sem rupturas significativas (2000, p. 46).
Cabe destacar que, de acordo com o trecho acima, a adoção de um regime
democrático-representativo não representou a ruptura com a noção oligárquica e
personalista da política, o que chega a representar um verdadeiro paradoxo: formalmente,
nosso regime político atual está pautado por noções republicanas, impessoais e
universalistas; porém, a tradição cultural historicamente construída em nossa sociedade,
que preza pelas relações personalistas e clientelistas no âmbito da esfera pública (e da
prática política) parece ter perseverado, o que certamente coloca em xeque a própria
legitimidade de nossas instituições democráticas.
Na tentativa de fazer uma reflexão a respeito da indistinção entre o público e o
privado, os autores do GRUPO de ESTUDOS lembram a contribuição de Sérgio Buarque
de Holanda, na obra Raízes do Brasil, onde este autor sugere que a conformação das
relações no meio rural entre dominantes e dominados, caracterizadas sobretudo pela
subserviência e pela não contestação da autoridade do pai e do senhor de terras, foram
simplesmente transferidas para o âmbito da esfera pública pelos donos do poder. Isso teria
causado uma espécie de amálgama entre interesse público e interesse privado preservando a
continuidade da ordem patriarcal, moldando as práticas de nossas instituições políticas e as
relações entre Estado e sociedade em um âmbito mais geral (2000, p. 46).
Além desses problemas e obstáculos para o avanço democrático no Brasil, que
referem-se mais à dimensão política e cultural de nossa sociedade, convém abrirmos um
outro “flanco” na discussão mais geral, concernente às dificuldades que o Estatuto da
Cidade deverá encontrar para sua implementação. Associada à questão político-cultural,
devemos levar em conta os interesses econômicos que consolidaram-se ao longo do
4 Grifo dos autores
processo de urbanização no Brasil, especialmente dos setores ligados ao mercado
imobiliário nos grandes centros urbanos. Com relação ao processo de desenvolvimento
econômico ocorrido no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, CAIADO lembra que
(...) o modelo é extremamente concentrador, de renda e população, e bastante excludente, gerando um contingente de trabalhadores subempregados, extremamente mal remunerados, inseridos em formas de organização de produção intensiva e em trabalhos de baixa capacidade de acumulação e produtividade (1997, p. 458).
Como conseqüência disso, “(...) a expansão urbana apóia-se numa sociedade
com uma distribuição de renda bastante desigual (...)”, tendo como expressão espacial mais
imediata a “(...) a generalização das periferias urbanas, principalmente, mas não só, nos
grandes centros urbanos” (CAIADO, 1997, p. 458). As cidades, dessa forma, cresceram e
expandiram seus tecidos para as regiões periféricas, sendo que estas abrigaram o grande
contingente de trabalhadores que não possuíam condições financeiras para participar do
chamado mercado formal da habitação. O solo urbano constituía-se, assim, em uma
mercadoria escassa, relegando milhões de trabalhadores a condições precárias de moradia
em áreas distantes do centro da cidade. A prioridade do poder público não foi democratizar
o solo urbano, mas sim legitimar um modelo de expansão urbana ditado pelos interesses do
mercado, com base na retenção especulativa da terra, privilegiando a apropriação da renda
urbana e a concentração fundiária em benefício dos grandes empresários do setor, em
detrimento do direito a condições habitacionais dignas para a maioria da população
(BASSUL, 2002; SOUZA, 2002; Quinto Jr., 2003; RIBEIRO, 2003).
É necessário frisar que, no nosso entender, a consolidação desses interesses só
foi possível graças ao formato cultural e político das relações historicamente determinadas
entre Estado e sociedade: os agentes econômicos ligados ao circuito imobiliário foram
francamente favorecidos por este modelo de Estado, impermeável às demandas populares,
autoritário e frágil do ponto de vista institucional, que desvaloriza o espaço público de
negociação voltando-se quase que totalmente para as relações de cunho privatistas com as
elites econômicas. Os princípios democratizantes contidos no Estatuto da Cidade inserem-
se dentro de um contexto de lutas sociais mais amplo, que têm como objetivo a ruptura
gradual dessas relações autoritárias e clientelistas que se estabeleceram nas mais diversas
instâncias de nossa sociedade. Nesses termos, os espaços públicos criados a partir da
Constituinte de 1988, como os conselhos gestores, por exemplo, representam um grande
avanço no que se refere consolidação da democracia no Brasil.
3. Os conselhos gestores enquanto instrumento de democratização da sociedade
Em seu capítulo IV, no Artigo 43, o Estatuto da Cidade esclarece quais são os
instrumentos de democratização da política urbana: órgãos colegiados de política urbana,
nos três níveis de governo; debates e audiências públicas; conferências sobre os assuntos
urbanos, também nos três níveis de governo; iniciativa popular de projeto de lei e de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Interessa-nos, em particular,
discutir de maneira mais aprofundada os órgãos colegiados, que seriam na verdade os
chamados conselhos gestores.
Nossa pesquisa de mestrado, que vêm sendo realizada no âmbito do programa
de pós-graduação (mestrado) em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP, tem como
objetivo principal analisar o papel desempenhado por três conselhos vinculados à Secretaria
de Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (SEPLAMA) da Prefeitura
de Campinas no processo de formulação da política urbana. Os conselhos objetos de análise
são: o Conselho Municipal de Desenvolvimento do Meio Ambiente (COMDEMA), o
Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (CMDU) e o Conselho da Cidade
(CONCIDADE). Em tese, estes são os três conselhos mais importantes na elaboração da
política urbana. Procuramos também verificar de que forma os segmentos populares vêm se
organizando na luta pela implementação do Estatuto da Cidade, seja no âmbito dos
conselhos ou mesmo fora deles.
É necessário ressaltar que, assim como as questões referentes à reforma urbana e
ao próprio Estatuto da Cidade, a origem dos conselhos gestores de políticas públicas está
intimamente relacionada à luta da sociedade civil contra o regime autoritário. Os conselhos,
que foram regulamentados pela Constituinte de 1988, constituem-se como fruto das lutas
populares que marcaram profundamente a sociedade brasileira no final da década de 1970 e
no decorrer da década seguinte (TATAGIBA, 2002). Para uma definição mais precisa a
respeito dessas instâncias, podemos recorrer à proposta de TATAGIBA e TEIXEIRA
(2007):
(...) os conselhos gestores são instituições participativas permanentes, definidas legalmente como parte da estrutura do Estado, cuja função é incidir sobre as políticas públicas em áreas específicas, produzindo decisões (que algumas vezes pode assumir a forma de norma estatal), e que contam em sua composição com participação de representantes do Estado e da sociedade na condição de membros com igual direito a voz e voto (2007, p. 2).
Os conselhos, portanto, são órgãos constituídos com base no princípio da
paridade entre Estado e sociedade civil, previstos em lei, e possuem funções deliberativas
ou consultivas na formulação, execução, e fiscalização de políticas públicas setoriais, nas
três esferas de poder: federal, estadual e municipal. Em um estudo sobre os conselhos de
gestão urbana, GOHN (2000) ressalta que os conselhos constituem-se em novas formas de
expressão e representação política, sendo pelo menos em tese capazes de redefinir o
formato das políticas sociais, incidindo diretamente em seu processo de formulação (p.
178). Esse potencial inovador dos conselhos, entretanto, depende de uma série de fatores
para se concretizar. TATAGIBA (2002) afirma que um dos principais obstáculos ao
funcionamento dos conselhos está ligado à falta de qualificação dos conselheiros, tanto dos
representantes do governo como dos representantes da sociedade, porém com ênfase nestes
últimos. Outra questão mencionada pela autora refere-se ao controle da agenda temática
dos conselhos pelo Estado:
Os encontros entre Estado/sociedade nos conselhos têm sido afetados negativamente por uma grande recusa do Estado em partilhar o poder de decisão. Os governos têm resistido – de forma mais ou menos acentuada dependendo da natureza do governo e do seu projeto político – às novas formas de fiscalização, controle e participação da sociedade civil no processo de produção das políticas públicas (2002, p. 79).
O sucesso de experiências democratizantes e participativas depende de inúmeros
fatores, sendo que cada caso deve ser objeto de uma análise específica em função da
complexidade do jogo político. Mas algumas pesquisas recentes vêm apontando que um
dos fatores mais importantes para a consolidação desses espaços é o “grau de
compartilhamento de projetos políticos” (DAGNINO, 2002; DAGNINO, OLVERA e
PANFICHI, 2006) existente entre agentes governamentais e representantes da sociedade
civil. Em um estudo sobre o Conselho Municipal de Habitação de São Paulo, TATAGIBA
e TEIXEIRA (2007) concluem que a capacidade deliberativa do conselho caiu
sensivelmente após as eleições municipais de 2004, que implicaram em uma mudança
significativa na correlação de forças no âmbito do executivo municipal. Os indícios
sugerem que nos governos historicamente mais comprometidos com as forças progressistas
da sociedade civil, os conselhos gestores tendem a ter um papel mais ativo no processo de
formulação das políticas públicas.
Independente disso, para que não façamos análises simplistas, deve-se ter muita
cautela e parcimônia no que se refere ao olhar sobre os conselhos e seu verdadeiro
potencial. Em primeiro lugar, é necessário frisar que os conselhos constituem-se em mais
um dentre uma diversidade de atores e instituições que interferem no processo político.
Portanto, deve-se pensá-los em um contexto de relações de poder mais amplo, onde existe
uma variedade de forças e interesses contraditórios envolvidos. Com isso, “(...) poderemos
fugir das armadilhas simplificadoras, que ora conduzem a uma aposta cega na participação
institucional, ora sugerem o abandono de qualquer tipo de envolvimento com dinâmicas
participativas institucionalizadas” (TATAGIBA e TEIXEIRA, 2007, p. 2).
Em segundo lugar, como SOUZA (2006) nos alerta, deve-se ter clareza das
limitações estruturais impostas a espaços pretensamente democráticos e participativos pelo
próprio ordenamento político, econômico e ideológico (em outras palavras, a ordem social
dominante) da sociedade atual. TELLES (1994), referindo-se especificamente ao caso
brasileiro, destaca a importância e o papel crucial que os espaços públicos podem exercer
no processo de democratização de nossa sociedade, uma vez que representam a
possibilidade de ruptura com relações políticas pautadas em princípios autoritários e
clientelistas. Porém, a autora ressalta que:
Tudo isso é muito fragmentário e descontínuo, as conquistas são incertas, processam-se em um terreno minado por práticas autoritárias e excludentes e não atingem muitos (na verdade as maiorias) dos que se encontram fora das arenas organizadas da vida social e política (TELLES, 1994, p. 49).
Para finalizar este tópico, é importante assinalar que os empecilhos e
dificuldades existentes à consolidação dos espaços públicos não significam que essas
experiências estejam fadadas ao fracasso. Justamente porque “(...) o processo de construção
democrática não é linear, mas contraditório e fragmentado” (DAGNINO, 2002, p. 279),
devemos analisar as diferentes situações em seus contextos particulares, entendendo que as
lutas políticas implicam em avanços e retrocessos que moldam gradual e paulatinamente
(mesmo que, às vezes, de maneira imperceptível) as relações entre os diferentes setores de
nossa sociedade.
4. O caso dos conselhos de gestão urbana em Campinas
De início, é necessário frisar que nossa pesquisa se encontra ainda em um
estágio embrionário. Não dispomos ainda de elementos suficientes para análises mais
detalhadas sobre o tema em questão: o papel desempenhado pelos conselhos de política
urbana na construção dessa política e a luta dos segmentos populares na implementação do
Estatuto da Cidade em Campinas. Podemos, contudo, apontar algumas questões que vêm
sendo percebidas e relacioná-las com alguns aspectos discutidos no presente texto.
É necessário, antes, detalhar um pouco melhor as funções e composição de cada
conselho. O COMDEMA é um conselho deliberativo, composto por 40 membros, metade
de órgãos públicos e universidades e metade da sociedade civil. Sua principal finalidade é
definir a política ambiental do município, sobretudo em questões de preservação,
recuperação, conservação e melhoria do meio ambiente natural e construído de Campinas.
O CMDU, por sua vez, é um conselho de caráter consultivo, sendo que a maioria dos
representantes são da sociedade civil. A este conselho cabe a análise e a proposta de
políticas de uso e ocupação do solo urbano. Por fim, o CONCIDADE, também de caráter
consultivo, é composto por 45 membros (15 do poder executivo e 30 representantes de
entidades da sociedade civil). Sua função específica é estudar e propor diretrizes para a
implementação da política de desenvolvimento urbano sustentável5.
É necessário frisar que, de acordo com o Plano Diretor (PD) do município, esses
três conselhos (não exclusivamente, mas em especial) têm como função acompanhar o
andamento e a implementação do mesmo, auxiliando o poder público no que couber. Até o
presente momento, participamos de algumas reuniões desses conselhos, além de uma
reunião do Conselho do Orçamento Participativo (COP), que muito provavelmente será
incorporado ao nosso leque de análise. Nestas reuniões, foi possível verificar e perceber
questões bastante relevantes no que se refere ao nosso objeto de estudo, além de conversar
5 Disponível em < http://www.campinas.sp.gov.br/seplama/conselhos/portconselhos.htm >
informalmente6 com representantes desses conselhos e coletar pistas importantes que
nortearão o processo de investigação.
As reuniões em que estivemos presentes foram as seguintes: CONCIDADE,
28/05 e 30/07; COMDEMA, 25/06; CMDU, 25/06; COP, 27/06. Um primeiro aspecto
relevante que vale destacar refere-se ao perfil dos conselhos na gestão passada (PT) e na
gestão atual (PDT). Em conversas com diferentes conselheiros7, estes nos afirmaram que a
gestão atual se caracteriza por um grau muito maior de centralismo autoritário em relação
aos conselhos. Na gestão passada (2001-2004), dos petistas Antônio da Costa Santos (até
setembro de 2001)8 e Izalene Tiene, os conselheiros alegam que essas instâncias eram mais
valorizados pelo executivo no que se refere ao processo de elaboração da política
municipal.
É evidente que esses discursos precisam ser analisados com a devida cautela e
olhar científico, mas não deixam de ser um caminho importante pelo qual podemos
construir uma análise. O máximo que podemos fazer nesse momento é tomar isso com uma
hipótese, uma linha de investigação. Vale lembrar que, caso isso seja confirmado, será
possível estabelecer uma relação com o que ocorreu no Conselho de Habitação em São
Paulo, relatado no estudo de TATAGIBA e TEIXEIRA (2007) (discussão apresentada no
tópico anterior do presente texto).
Contudo, podemos destacar outros dois elementos que reforçam a hipótese do
autoritarismo da atual gestão. Na reunião do COMDEMA, foi discutido pelos conselheiros
algumas questões referentes ao Parque II da Companhia de Desenvolvimento do Pólo de
Alta Tecnologia de Campinas (CIATEC), um pólo tecnológico implantado em Barão
Geraldo, distrito localizado ao norte do município. O executivo está tentando aprovar
alterações no zoneamento da área, para permitir a instalação de empreendimentos
comerciais e imobiliários de grande porte. O COMDEMA havia convidado oficialmente o
secretário de urbanismo da prefeitura, Hélio Jarreta, para comparecer à reunião e prestar
esclarecimentos sobre algumas dúvidas que os membros do conselho possuem em relação a
prováveis impactos ambientais na área. O secretário não compareceu à reunião, alegando 6 Obviamente, as conversas com representantes dos conselhos não serão apenas de caráter informal. Este foi apenas um contato inicial. A partir do segundo semestre, realizaremos entrevistas gravadas e bastante aprofundadas com vários conselheiros sobre questões relevantes para o desenvolvimento do trabalho.7 Como não temos essas conversas gravadas, uma vez que não foram entrevistas formais, consideramos inadequado expor o nome dos referidos conselheiros.8 Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, foi assassinado no dia 10 de setembro de 2001.
que ainda não existem elementos concretos para se fazer essa discussão, sendo que ela
poderia ser feita apenas em um momento posterior.
Isso gerou indignação nos conselheiros: vários reclamaram que o executivo
sempre ignora o COMDEMA em questões urbanísticas que envolvem grandes interesses
econômicos, uma vez que este conselho, historicamente, tem se posicionado de maneira
bastante firme e incisiva na questão urbano-ambiental, tornando-se um obstáculo
importante para grupos empresariais que realizam lobbies juntos ao poder público. A
presidente do COMDEMA, Mayla Porto, ressaltou que este projeto de lei, de autoria do
executivo, não passou nem mesmo pela apreciação técnica da SEPLAMA, indo direto para
a câmara. Além disso, o referido projeto não atende às exigências do PD do município para
aquela área específica, sendo portanto irregular, e o governo municipal tem se esquivado
desse debate com a sociedade. Isso mostra a tendência autoritária e centralizadora dessa
gestão. Um dos conselheiros sugeriu que o COMDEMA se articulasse ao CMDU e ao
CONCIDADE para fazer uma ampla discussão sobre este projeto de lei, buscando
mobilizar a sociedade civil no sentido de frear essa truculência do executivo. Vale lembrar
que um dos objetivos de nossa pesquisa é justamente verificar até que ponto existe uma
articulação entre esses conselhos no processo de produção da política urbana municipal.
Um outro ponto a ser destacado é a fala do professor Ari Fernandes , na reunião
co COP. Fernandes é ex-secretário de habitação (na gestão do PT), professor de Arquitetura
e Urbanismo da PUC/CAMPINAS e funcionário comissionado da SEPLAMA. Apenas a
título de contextualização: esta reunião foi promovida por este conselho na sede da
Administração Regional (AR) 12 da prefeitura, localizada no Jardim Ouro Verde. O
objetivo da reunião era discutir com líderes comunitários o Plano Local de Gestão (PLG) da
Macrozona (MZ) 5, que está em trâmite no legislativo. O PD de Campinas divide o
município em nove macrozonas para fins de planejamento. O Jardim Ouro Verde, em
conjunto com o Campo Grande, integra a Mazrozona 5. A referida MZ, de acordo com o
PD, caracteriza-se por “(...) intensa degradação ambiental, concentração de população de
baixa renda, carência de infra–estrutura, de equipamentos urbanos e de atividades
terciárias” (Cap. IV, Seção I). É considerada um das áreas mais carentes do ponto de vista
sócio-econômico do município.
No processo de elaboração do PD, ficou decidido que cada MZ elaboraria seu
PLG, e que esse processo deveria ser feito pelo executivo em conjunto com a população
local, como ressalta o Parágrafo único do Art. 17 do PD. Posteriormente, o plano é enviado
ao legislativo, onde poderá ainda receber emendas. O fato é que, no caso da MZ 5, a
maioria dos líderes comunitários sentiu-se pouco contemplada com o PLG elaborado em
conjunto com a prefeitura, e por esse motivo estavam se reunindo em conjunto com o COP
para apresentar emendas ao projeto na câmara, cuja votação está prevista para este mês de
agosto (2008).
O professor Ari Fernandes foi convidado a expor algumas questões históricas e
geográficas sobre a MZ 5 para embasar o debate dos participantes. Logo no início de sua
fala, Fernandes lembra que a questão da concentração fundiária é um dos elementos mais
constrangedores no processo de planejamento urbano, uma vez que os interesses envolvidos
dificultam muito a ação do poder público. A questão que mais merece realce, porém,
concerne aos comentários que Fernandes teceu em seguida, sobre a participação popular no
processo de elaboração do PD de Campinas.
De acordo com o professor, há um processo contra a prefeitura de Campinas
acusando a mesma de não ter cumprido o Estatuto da Cidade, pois o PD municipal teria
sido feito sem a participação da sociedade. De acordo com o que foi exposto, entidades
representantes da sociedade civil articularam-se e ingressaram com uma ação civil pública
na Promotoria de Urbanismo de Campinas. A prefeitura, para se defender, vem
argumentando que o processo de participação popular se dará posteriormente à elaboração
do PD, na elaboração dos PLG’s de cada MZ9.
Contudo, como já foi escrito em linhas anteriores, os líderes comunitários da
MZ 5 não concordaram com a forma com que o executivo encaminhou os trabalhos de
elaboração do PLG. Alguns deles afirmaram que o processo foi atropelado, e que os
agentes governamentais sempre manobravam para que as reuniões se alongassem
demasiadamente, dificultando assim um debate mais profundo com a população. Sem
mencionar o fato, também ressaltado na fala de Fernandes, das dificuldades que a
população teve para compreender o debate em função do caráter eminentemente técnico
deste. Fernandes afirmou que a forma com que a prefeitura vem pensando a participação da
9 De acordo com Art. 19 do PD, o cronograma para elaboração dos PLG’s é o seguinte: MZ 5; MZ 7; MZ 9; MZ 6; MZ 8; MZ 2; MZ 4; MZ 1; MZ 3.
comunidade é completamente equivocada, uma vez que o caráter tecnocrático do debate
acaba inibindo a população e transformando a participação popular em mera formalidade10.
SOUZA (2002, p. 388-389), discutindo alguns obstáculos e desafios à
participação popular, ressalta que a desigualdade social é um problema de grande
magnitude a ser enfrentado na tentativa de se construir uma participação popular autêntica.
O autor destaca que os agentes governamentais podem criar alguns mecanismos para
minorar os efeitos dessa desigualdade, como por exemplo, a utilização de uma linguagem e
métodos de comunicação que procurem facilitar o entendimento das pessoas mais pobres
sobre o planejamento urbano, e não dificultá-lo. Pelo que foi exposto por Fernandes, a
prefeitura de Campinas está seguindo o caminho do tecnocratismo, criando ainda mais
empecilhos para a real participação da sociedade na formulação da política urbana.
Fernandes lembrou ainda que a correlação de forças no âmbito do
CONCIDADE não é favorável ao fortalecimento da participação popular. Este conselho,
que em tese é o principal responsável por acompanhar a implementação do PD, não possui
capacidade de canalizar os interesses e as demandas dos setores populares em Campinas no
que se refere ao processo de planejamento urbano. Tomando como base as duas reuniões do
CONCIDADE em que estivemos presentes, a tendência é concordarmos com essa avaliação
do professor Fernandes, pelo menos em termos mais gerais. Aparentemente, não há uma
presença efetiva e articulada dos representantes dos segmentos populares nesse conselho.
Não estamos dizendo que não existe debate e questionamentos a respeito dos
temas referentes à política urbana. Na reunião do dia 28/05, alguns conselheiros reforçaram
a questão de que a prefeitura precisa investir em meios para incentivar a participação
popular, e que os parâmetros para se avaliar a eficácia da mesma não devem se pautar por
uma visão imediatista, pois esse processo é longo e só rende resultados em longo prazo. Foi
a partir dessa discussão que surgiu a proposta de que o CONCIDADE elaborasse cursos de
capacitação para lideranças comunitárias e para os próprios conselheiros sobre Estatuto da
Cidade, Plano Diretor de Campinas e Planos Locais de Gestão. Isso significa que existe um
esforço de determinados conselheiros para aprimorar o processo de participação popular, e
isso não pode ser ignorado em nossa análise. 10 Este tipo de situação torna-se ainda mais grave por se tratar da MZ 5, onde a maioria da população é carente do ponto de vista sócio-econômico e possui um baixo grau de escolaridade. Este fato a impede de acompanhar de forma satisfatória um debate pautado em termos técnicos e acadêmicos, como o que a prefeitura realizou na ocasião da elaboração do PLG.
Mas em um âmbito mais geral, a atuação do conselho parece ser mais
burocrática do que política propriamente dita. A agenda do CONCIDADE parece ser quase
que totalmente subordinada à agenda do executivo. Esse curso de capacitação proposto
pelos conselheiros é uma exceção (e, por isso mesmo, digna de nota e reconhecimento).
Um caso interessante: na última reunião, o único item de pauta que consistia em um debate
relevante do ponto de vista da participação popular foi esse curso de capacitação, que havia
sido proposto no encontro anterior. Os outros três itens consistiam em homenagens para
algumas figuras políticas do município e informes da diretoria. Quando a discussão sobre o
formato do curso foi concluída, o presidente deu por encerrada a reunião, que no total,
durou 50 minutos.
É relevante citarmos o estudo de TATAGIBA e TEIXEIRA (2007) mais uma
vez no intuito de estabelecer uma comparação com o Conselho de Habitação de São Paulo.
As autoras comparam a dinâmica normativa e deliberativa do conselho nas gestões Marta
(PT) e Serra/Kassab (PSDB/DEM), mostrando que o conteúdo do debate nas reuniões foi
sensivelmente alterado da primeira para a segunda gestão, adquirindo um caráter muito
mais formal e burocrático nesta última (Op. Cit. p. 11-12). E, nessa mudança de perfil, as
reuniões, que na primeira gestão chegavam a durar seis horas, passaram a durar cerca de
duas horas (Op. Cit, p. 12-13).
No que se refere ao CONCIDADE, parece não haver uma correlação de forças
favorável que possibilite uma valorização do debate político no âmbito do conselho. Para
exemplificar essa forma burocrática de atuação do CONCIDADE, cabe expor a pauta da 7 ª
reunião ordinária, do dia 28/05: 1. Aprovação da ata da 6ª reunião ordinária; 2.
Macrozonas; 3. Comunicados da Diretoria e Conselheiros11. Uma reunião de uma instância
participativa responsável por analisar a implementação do PD de um município do porte de
Campinas deveria ter debates políticos mais profundos, uma vez que os problemas que a
cidade enfrenta são imensos. Por exemplo, na reunião do COMDEMA, um dos
conselheiros lembrou que o CONCIDADE não estava discutindo a questão do CIATEC II,
que está diretamente relacionada ao PD municipal.
Um dado curioso é que o próprio regimento interno do CONCIDADE limita o
tempo de duração das reuniões, no máximo duas horas. Vale lembrar que este conselho foi
11 Diário Oficial do Município (DOM), dia 2 de agosto de 2008.
criado em julho de 2005, na gestão de Hélio de Oliveira Santos, e muito provavelmente
essa rigidez burocrática no desenho institucional do conselho, que reflete diretamente na
sua forma de atuação, seja uma conseqüência da visão que o atual governo de Campinas
possui em relação à participação da sociedade.
5. Considerações finais
É certo que as instituições democrático-representativas no Brasil não
conseguiram romper de forma significativa com determinadas tradições que se
conformaram ao longo de nossa história social e política. Acreditamos que, no que
depender dos interesses das classes dominantes, a democratização de nossas estruturas
sociais não se colocará como uma prioridade na agenda pública; muito pelo contrário, uma
vez que democratizar efetivamente a sociedade (especialmente) no âmbito econômico e
político pode implicar em uma perda significativa dos privilégios desses setores.
As dificuldades que o Estatuto da Cidade enfrentou para ser aprovado e as
dificuldades que vêm encontrando para sua implementação, como mostramos na discussão
sobre os conselhos gestores de Campinas, refletem o quanto esses interesses dominantes
são poderosos e estão profundamente arraigados na sociedade brasileira, além de mostrar os
riscos envolvidos no estabelecimento de relações com o Estado na aposta de uma parceria
entre este e os setores progressistas da sociedade. Não queremos, com isso, reproduzir uma
visão simplista do Estado, que reduz este a um mero conjunto de aparelhos que exercem a
ditadura de uma classe sobre a outra. A complexidade da luta política na sociedade
contemporânea nos impede de realizar tal leitura.
O Brasil possui exemplos interessantes de administrações municipais
progressistas que conseguiram realizar avanços bastante significativos no que se refere à
consolidação do processo democrático. O exemplo mais emblemático, sem dúvida, é Porto
Alegre, município onde a experiência do Orçamento Participativo se enraizou de forma
mais notável, tornando-se, inclusive, referência mundial. Ainda assim, as limitações
impostas pela nossa estrutura social dominante continuam representando um extraordinário
fator de retrocesso, tendo um rebatimento direto na ação do poder público.
O conteúdo do Estatuto da Cidade representa um avanço extraordinário no
sistema político brasileiro, mas os movimentos sociais urbanos só conseguirão uma
implementação mais efetiva desta lei conciliando a participação nos espaços institucionais
com uma mobilização popular mais intensa, que pressione o Estado de forma mais direta.
Conciliar a ação institucional com mobilização popular contínua talvez seja hoje o maior
desafio dos setores democráticos da sociedade civil no Brasil, e as limitações de ordem
estrutural e conjuntural afetam diretamente as opções de lutas dos segmentos sociais. A
participação no jogo institucional absorve grande quantidade de tempo e recursos,
dificultando assim o entrelaçamento das duas táticas.
Acreditamos, contudo, que os avanços obtidos até aqui não devem ser
desprezados. Embora as dificuldades para a consolidação da democracia no Brasil sejam
enormes, e os obstáculos ao Estatuto da Cidade comprovam isso, deve-se ressaltar o papel
de primazia que os segmentos populares e democráticos assumiram nos últimos anos no
processo político, forçando o Estado a ser mais transparente e a dar respostas mais
satisfatórias às demandas da sociedade civil. É fato que a mobilização desses segmentos
contribuiu decisivamente para o fim do regime autoritário, e com mais tranqüilidade ainda
afirmamos que, não fosse a ação articulada desses atores, nosso país estaria convivendo
com índices de miséria e desigualdade social muito mais profundos.
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