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Mariana Moura Fontenele de Brito
A representação de identidades estadunidenses não-hegemônicas em contos de Susan Power
João Pessoa 2006
Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Letras
A representação de identidades estadunidenses não-hegemônicas em contos de Susan Power
Dissertação de mestrado apresentada à comissão julgadora do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal da Paraíba, como exigência para obtenção do título de Mestre em Literatura e Cultura, sob a orientação da Profa. Dra. Liane Schneider.
João Pessoa 2006
B862r Brito, Mariana Moura Fontenele de.
A representação de identidades estadunidenses não-hegemônicas em contos de Susan Power./Mariana Moura Fontenele de Brito. - João Pessoa, 2006. 85p. Orientadora: Liane Schneider. Dissertação (mestrado) - UFPB/CCHLA 1. Mulheres 2. Cultura indígena 3. Feminismo 4. Pós-colonialismo
UFPB/BC CDU: 396 (043)
A dissertação intitulada “A representação de identidades estadunidenses não-hegemônicas em contos de Susan Power”, defendida por Mariana Moura
Fontenele de Brito em 26/05/2006, foi analisada e aprovada pela seguinte banca
examinadora:
Profa. Dra. Liane Schneider – PPGL/UFPB (Orientadora)
Profa. Dra. Ana Cristina Marinho Lúcio – PPGL/UFPB (Examinadora)
Profa. Dra. Ana Maria Coutinho – PPGE/UFPB (Examinadora)
Profa. Dra. Valéria Andrade – PPGL/UFPB (Suplente)
SUMÁRIO Resumo
Abstract
Introdução 08
1. Capítulo I
Do olhar feminista hegemônico às questões de gênero na fronteira 14
1.1. Caminhos trilhados pela crítica e teoria feminista 14
1.2. Mulheres, gênero e minorias 24
2. Capítulo II
Teoria e crítica pós-colonial e literatura indígena 33 2.1. O pós-colonial: identidade e alteridade 33
2.2. A construção da tradição literária indígena 40
2.3. Susan Power: sua tribo e obra 47
3. Capítulo III
"Watermelon seeds" e "First fruits": representações de indígenas por Susan Power 52
3.1. Construindo contos: o ato de contar 52
3.2. "Watermelon seeds": a semente insistente 54
3.3. "First fruits": a origem dos frutos 60
3.4. Sementes e frutificações da literatura e cultura indígena 70
Conclusão 76
Referências Bibliográficas 80
Resumo
O presente trabalho discute dois contos, "Watermelon seeds" e "First fruits",
de Susan Power, escritora estadunidense de origem indígena, com o objetivo de
analisar a construção literária de sujeitos (femininos e indígenas) cuja herança
cultural diferenciada acaba determinando a forma de inserção (ou não-inserção)
dos mesmos na sociedade hegemônica dos Estados Unidos. Aprofundamos nossa
análise estabelecendo um paralelo entre as protagonistas dos dois contos, Lois e
Georgiana, que foram criadas em ambientes completamente díspares tanto em
relação à cultura indígena quanto à hegemônica. Para fundamentar nosso estudo,
utilizamos teorias e críticas pós-coloniais e feministas, de maneira a demonstrar
como tais sujeitos aparecem representados na literatura indígena, destacando sua
resistência cultural ao longo dos encontros culturais aos quais são expostas.
Palavras-chave: mulheres, indígena, cultura, feminismo, pós-colonialismo.
Abstract
This work discusses two short-stories, "Watermelon seeds" and "First fruits",
by Susan Power, a U.S. writer from native background, with the purpose of
analyzing the literary construction of subjects (women and natives) whose cultural
heritage determines the way they are (or are not) inserted in the dominant society
of the United States of America. Our analysis also establishes a parallel between
the protagonists of both short stories, Lois and Georgiana, who were raised in
completely different environments, relating differently to native and hegemonic
cultures in spite of the common experience of being defined as non-white. To give
a solid basis to our study, we use post-colonialist and feminist theory and criticism
as our tools to demonstrate how these alternative subjects are represented in
native literature, showing their cultural resistance despite the mixed cultural
atmosphere they are exposed to.
Key-words: women, native, culture, feminism, post-colonialism.
Introdução
Nosso trabalho de pesquisa parte do princípio de que, mesmo após as
várias publicações e antologias organizadas a partir dos anos setenta pela crítica
feminista, novas análises crítico-interpretativas de textos literários escritos por
mulheres que representam o mundo contemporâneo a partir de uma perspectiva
alternativa de gênero e etnia ainda se fazem necessárias no início desse novo
século. Ou seja, ainda há que se demonstrar literária e socialmente que o
significante mulher é composto por várias facetas, sendo que algumas dessas são
mais valorizadas dentro de certas culturas devido a antigas hierarquias e
distribuições de poder. Além disso, deve-se considerar que existe inegável
carência de estudos acadêmicos sobre a literatura indígena contemporânea,
resultado de um preconceito histórico em relação à produção escrita dos
indígenas, os quais são, segundo o olhar social hegemônico continuam sendo
apenas ligados à oralidade e raramente à criação de textos que possam ser de
interesse editorial.
Não há dúvida de que universos filosóficos alternativos persistiram dentro
da cultura hegemônica estadunidense ao longo dos séculos e recentemente essas
construções passaram a ser ouvidas e valorizadas por aqueles que um dia
ignoraram seu valor cultural e literário. Partindo-se dessa premissa, acreditamos
que tal universo deva ser analisado com a perspectiva de se destacar uma
variedade de novos valores desconhecidos ou marginalizados pelas culturas
dominantes das Américas, mais especificamente da América do Norte.
O fato de tais produções terem sido excluídas por muito tempo de análises
literárias com base em sua diferença cultural e de gênero (uma vez que tudo que é
caracterizado como fora da norma tende a ser marginalizado) abre mais um
patamar de análise para nossa pesquisa, ou seja, questionar as definições com
base no gênero e etnia, que privilegiam um setor apenas – o do homem branco e,
quando muito, da mulher ocidental de classe alta. Além disso, a interpretação do
feminino foi historicamente construída pelo olhar masculino e branco; assim,
construções literárias do feminino a partir da perspectiva de grupos minoritários,
como a que é objeto da presente pesquisa, buscam expandir tais fronteiras,
demonstrando a possibilidade de se construir outras representações além das já
historicamente consolidadas tanto do ‘indígena’ quanto da ‘mulher’.
Nosso corpus é composto por dois contos de Susan Power - "Watermelon
seeds" e "First fruits", publicados em seu livro Roofwalker, de 2002. Power, que
nasceu em Chicago em 1961, é membro da tribo Standing Rock Sioux. Seus
textos tendem a refletir sua dupla inscrição cultural – com origem anglo-americana
e americana-nativa - bem como os conflitos internos resultantes dessa dupla
origem.
Ao longo do nosso trabalho pretendemos destacar como Susan Power
representa tanto o conceito de mulher quanto o de indígena a partir de
perspectivas que diferem das representações construídas exclusivamente a partir
da cultura norte-americana hegemônica. Como sujeito híbrido, Power fala de uma
posição intermediária, de um entre-lugar que lhe permite ver novos ângulos tanto
no que se refere a questões que envolvem identidade, quanto aquelas que
envolvem a organização social dos grupos minoritários.
Nossa análise dialoga com as áreas de estudos culturais, pós-coloniais e de
gênero, apontando as tendências que as culturas dominantes demonstram no
sentido de manter a dependência ou objetificação das minorias através de
relações de poder desiguais baseadas tanto nas diferenças de classe social,
quanto de etnia e de sexo. Também destacamos a maneira como essa
diversidade (ou biculturalidade) marca os textos ficcionais da autora, procurando
desconstruir idéias estereotipadas tanto sobre os indígenas como sobre as
mulheres. Assim, através da análise desses dois contos de Susan Power, vários
conceitos atrelados ao indígena e a mulher são desnaturalizados e
desessencializados. Dessa forma, se pretende demonstrar que adjetivos como
‘preguiçoso(a)’, ‘selvagem’, ‘impulsivo(a)’, ‘desregrado(a)’, ‘excessivamente
sensual’ não se restringem, como que naturalmente, ao universo indígena, sendo
apenas uma das visões mais propagada pela(s) cultura(s) hegemônica(s) das
Américas sobre os povos nativos.
Susan Power está ciente de sua identidade como sujeito feminino e
indígena, ou seja, de seu pertencimento ambíguo e por vezes contraditório dentro
do país em que se insere. Muito freqüentemente suas personagens tratam dos
conflitos de identidade, gênero e etnia de forma metafórica, o que pode escapar a
um(a) leitor(a) desatento(a) ou apenas habituado às formas de representação em
acordo com o cânone literário e a crítica tradicional estabelecida e mantida pela
academia. Essa autora consegue unir e representar elementos como
espiritualidade e força mental ou emocional, sem enfatizar, em um primeiro
momento, que está construindo, na verdade, um discurso que questiona a
organização política e social dominante.
Dessa forma, o corpus citado é analisado a partir de uma perspectiva
feminista e pós-colonial, contextualizando as questões feministas e culturais de
forma a buscar uma interpretação mais competente de tais textos não-canônicos.
A teoria e crítica feminista embasam nossa leitura da obra dessa autora da
atualidade que invariavelmente questiona definições de gênero excessivamente
limitadas. Já a teoria pós-colonial é instrumento importante para o estudo de
textos de autoras indígenas, destacando de que forma esses recriam
literariamente os encontros, conflitos e experiências do período que sucedeu às
invasões européias.
Para tal, nosso estudo foi dividido em três capítulos, de forma que cada um
aborda um aspecto que permeia e dialoga com a literatura indígena
contemporânea. O primeiro, busca apresentar uma revisão dos estudos
feministas, fundamentando-se em teorias e críticas desenvolvidas por Elaine
Showalter, Darlene Sadlier, Heloisa Buarque de Holanda, entre outras. Nesse
primeiro capítulo o ponto principal está em apontar o cunho maniqueísta presente
nas teorias e críticas anteriores (ou pré-feministas) que desconsideravam o gênero
como categoria, sendo, em geral, organizadas em torno de binarismos como
forte/fraco, dominador/dominado, homem/mulher, pares que tendem a impor
barreiras ao desenvolvimento da perspectiva feminina ao vinculá-la ao lado mais
negativo de tais binômios. Além das feministas que se debruçaram
exclusivamente sobre aspectos relativos a gênero, também consideramos
importante essa discussão em seus encontros e desencontros com as questões
raciais. Paula Gunn Allen, principalmente em seu livro The sacred hoop, nos
apresenta sua visão diferenciada sobre o feminino, que, na cultura tribal, seria
muito mais valorizado do que passou a ser após os contatos com a cultura
ocidental. Outras autoras que são referências fundamentais para essa discussão
são Joy Harjo e Glória Anzaldúa.
Tomando por base textos de Thomas Bonnici, Ashcroft et al., Núbia
Hanciau, entre outros, buscamos, no segundo capítulo, fazer uma breve revisão
da teoria e crítica pós-colonial, já que essa nos parece essencial para a análise de
nosso corpus, proporcionando uma base sólida que contemple as várias facetas
que marcam os povos que sofreram invasões européias. Aí terão de ser também
analisados os preconceitos ligados ao fato desses serem diferentes ou deixarem
transparecer a existência de fronteiras culturais intransponíveis entre sujeitos da
mesma nação. Pretendemos, assim, promover uma discussão sobre a construção
do sujeito estadunidense contemporâneo de grupos minoritários, a opressão vivida
por ele e as formas que esse encontra para resistir.
Através da construção de personagens indígenas que não se enquadram
nem se limitam aos estereótipos negativos impostos a tais minorias desde a época
da colonização, a literatura indígena contemporânea valoriza as vozes de sujeitos
à margem, demonstrando que grande parte da atividade cultural norte-americana
é produzida fora dos centros hegemônicos, não deixando, por esse motivo, de ser
marcadamente estadunidense.
Acreditamos que o estudo e divulgação de vozes e representações que há
muito foram silenciadas, pelo menos no que se refere aos espaços públicos
institucionais, também requer tanto do leitor como do crítico, um desnudamento de
preconceitos, já que para se poder ouvir, ler e/ou compreender o diferente é
necessário resistir aos impulsos de transformá-lo na norma. Assim, buscaremos
mergulhar na literatura produzida por uma escritora indígena, respeitando suas
diferenças culturais e seus paradigmas, certamente alimentados pela cultura oral
de seu grupo de origem, ou seja, a tribo Standing Rock Sioux.
1 - Do olhar feminista hegemônico às questões de
gênero na fronteira
1. 1 - Caminhos trilhados pela crítica e teoria feminista
Em meados do século XIX, o impulso que fez com que o movimento
antiescravista crescesse e atingisse seus objetivos, ou seja, a abolição da
escravatura nas Américas, ocorreu de forma concomitante com o movimento
organizado pelas mulheres pelo sufrágio universal. Na virada do século passado
parecia claro que se todos os cidadãos deveriam ser iguais perante a lei, às
mulheres restava provar que também eram sujeitos com direito à cidadania. A
importância da luta feminina por espaço na sociedade tomou forma, adquirindo
força ao longo do século XX, com várias escritoras apontando seu foco contra a
lógica do patriarcado, questionando os valores dessa ordem hierárquica, na qual o
homem invariavelmente ocupava uma posição superior na escala de poder,
enquanto era esperado que a mulher aceitasse passivamente tal supremacia
masculina.
A partir dos anos 70, observa-se mundialmente um claro crescimento no
que se refere ao interesse tanto na leitura quanto na produção de textos literários
produzidos por mulheres, o que certamente está relacionado com o
desenvolvimento da teoria e crítica feminista nessas últimas décadas, que deu um
embasamento maior à interpretação de textos de mulheres (Cf. SHOWALTER,
1990, p.179). Os estudos feministas indicaram, primeiramente, um novo ponto de
vista para a análise literária, passando a questionar a hegemonia masculina no
campo social, político e econômico. No campo das artes, mais especificamente na
literatura, houve uma mudança de paradigma considerável, já que, até então, a
maioria dos textos comumente proclamados como ‘obras-primas’ eram aqueles
produzidos por homens. Assim, a sociedade era organizada de forma
androcêntrica sendo que, antes dos discursos contestadores da priorização do
masculino sobre o feminino isso parecia algo “natural”. Aos autores era dado o
poder e o direito de representarem o mundo em sua universalidade, partindo-se do
pressuposto que esses conheciam o mundo e seus espaços masculinos e
femininos.
Em um primeiro momento da produção crítica de cunho feminista houve
certa dificuldade de se transitar pelos territórios da literatura e cultura devido à
inexistência de fundamentos teóricos anteriores que facilitassem a análise de
textos produzidos por escritoras, que tendiam a usar gêneros literários e
desenvolver temáticas bastante diferenciadas se comparadas aqueles que
compunham os pilares do cânone literário ocidental. Nesse sentido, também foi
necessária a definição de novas categorias de análise, categorias essas que
extrapolaram os elementos estruturais do texto (narrador, personagem, entre
outras), buscando estabelecer um diálogo entre construção ficcional e política da
representação. É claro que a análise da estrutura, dos elementos que a
compunham, não foi abandonada, mas novas categorias, no caso, o gênero se
faziam necessárias.
Obviamente a busca por perspectivas literárias e culturais que buscassem
revisar o passado e a produção feminina, muitas vezes negligenciada ao longo da
história, inevitavelmente ocorria em território desconhecido, às vezes chamado de
‘selvagem’, já que esse era um espaço por onde as teorias anteriores nunca
haviam transitado. Esse território selvagem, para algumas críticas feministas, seria
(...) o lugar de uma crítica, uma teoria e uma arte genuinamente centradas na mulher, cujo projeto comum seja trazer o peso simbólico da consciência feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar. (SHOWALTER, 1994, p.48-49)
Desde o início, dentro e fora da academia, as feministas concentraram
seus esforços na condenação às discriminações que sofriam no campo social,
econômico e político. No campo literário, questionavam a forma como as
personagens femininas eram construídas e representadas pela literatura dita
universal, que reforçava estereótipos comuns da sociedade patriarcal, tendendo a
mantê-los inalterados. Conforme esclarece a crítica norte-americana Darlene
Sadlier, entre os muitos atributos vinculados às mulheres até então, os mais
representativos eram aqueles que as tratavam como seres inferiores e débeis,
identificando-as como sujeitos marcados por amorfia, passividade, instabilidade,
histerismo, irracionalidade e complacência (SADLIER, 1989, p 15). Portanto, a
representação e/ou veiculação de imagens mais positivas de sujeitos femininos
tornou-se, em um primeiro momento, uma das prioridades das autoras e da crítica
feminista.
(...) O estudo da mulher como escritora, e seus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos das mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres. Como não existe um termo em inglês para esse discurso crítico especializado, inventei o termo gynocritics. (SHOWALTER, 1994, p.29)
Segundo Showalter, as mulheres foram historicamente ensinadas a ler
textos literários, tanto os escritos por autores quanto, em raros casos, por autoras,
a partir de um olhar masculino previamente elaborado que tendia, mesmo que
indiretamente, a confirmar os valores e as hierarquias estabelecidas dentro da
sociedade patriarcal. Portanto, Showalter defende como fundamental a análise de
tais textos, principalmente daqueles produzidos por mulheres, através de um olhar
feminino, atividade essa que ela passou a definir como gynocritics, ou seja,
ginocrítica, conforme mencionado acima. A partir das discussões lideradas por
Showalter, passou a se entender por ginocrítica aquela análise que enfoca a
produção literária feminina, seus processos, suas dinâmicas e seus contornos.
Tomando-se por base tais observações, foi possível apontar diferenças e
considerar as mulheres como um grupo literário distinto e importante para a
construção ou representação literária, já que essas passaram a olhar o mundo a
partir de perspectivas inovadoras.
Obviamente, mais tarde as mulheres passaram a lutar não por
distinção, mas por inclusão no cânone literário. Assim, quando vários espaços já
haviam sido conquistados pelas mulheres fora e dentro do campo literário,
algumas autoras passaram a defender que queriam ser consideradas apenas
autoras, e não autoras femininas. Contudo, essa polêmica questão ainda não foi
totalmente resolvida, e diferentes escritoras defendem posições distintas.
A partir das mudanças conquistadas através das lutas do feminismo por
maior espaço social e político para as mulheres dentro das sociedades
contemporâneas, a crítica feminista encontrou uma base sólida para defender o
direito dessas de produzir e interpretar seus textos, livres dos limites impostos
pelas definições e caracterizações do cânone literário oficial, estabelecido muito
anteriormente e de acordo com valores e interesses que em pouco ou nada
favoreciam o sujeito feminino.
Vale lembrar que, no entanto, apesar de a crítica feminista já ter
percorrido um longo caminho no sentido de abrir ou ampliar o cânone literário,
trazendo à luz autoras e textos antes excluídos com base na diferença sexual
(podemos citar aqui importantes levantamentos e estudos revisionistas realizados
por críticas feministas sobre autoras como Júlia Lopes de Almeida, no contexto
brasileiro, Kate Chopin e Charlotte Perkins Gilman no contexto estadunidense,
entre outras), as teorias feministas não podem se perceber como finalizadas. Isso
se deve ao fato de que, em conseqüência das mudanças que vêm ocorrendo na
releitura das relações de gênero na atualidade, bem como das novas discussões
sobre o sujeito contemporâneo é necessário o estabelecimento de novos debates
e novas formas de abordar e interpretar não só os textos produzidos por mulheres,
mas sim a forma como a literatura vem representando tanto os sujeitos femininos
quanto os masculinos. Dessa maneira, discussões teóricas atualmente continuam
sendo fundamentais para o feminismo, devido ao fato de possibilitarem análises
críticas que abordem o espaço da representação feminina não como um espaço
fixo ou fechado, mas sim como algo sujeito a múltiplas formas, identidades e
posturas.
Pode-se considerar, no contexto anglo-saxão, um dos estudos
acadêmicos precursores sobre a representação feminina como sendo o livro
Sexual Politics, de Kate Millett, tese de doutorado publicada em 1969 nos Estados
Unidos e que veio a tornar-se um best-seller entre as feministas da época. De
acordo com Showalter,
o livro de Millett se preocupa especificamente com a relação entre obras literárias masculinas e o conceito de política sexual – quer dizer, a maneira pela qual a classe dominante procura manter controle do sexo subordinado. (SHOWALTER, 1994, p. 16)
Diferentemente das críticas feministas anglo-americanas dos anos 60, as
francesas se fundamentaram nas teorias psicanalíticas para estudar a literatura
feminina, porque, para elas, esse era “um método emancipador, capaz de
examinar a construção do sujeito humano em todos os seus aspectos” (ZOLIN,
2003, p. 174). Além disso, seu pressuposto básico era o de que o sujeito consiste
em uma entidade complexa, que abrange desejos, impulsos, fatores materiais,
sociais, políticos e ideológicos que são apenas parcialmente conscientes. “(...) Na
esteira de discussões dessa amplitude, são trazidos à tona questionamentos mais
específicos sobre a mulher e suas relações com a sociedade e a linguagem”
(ZOLIN, 2003, p. 174).
Entre os nomes da crítica literária de cunho feminista desenvolvida dentro
da academia, Elaine Showalter ocupa lugar de destaque desde as últimas
décadas do século XX. Seu método de análise, conhecido como pesquisa de
“mulheres sobre mulheres”, foi o mais praticado nos Estados Unidos. Showalter
classifica três fases principais da tradição literária feminista:
A fase feminina (1844 – 1880) – ou o período durante o qual escritoras imitaram os modos literários prevalescentes da tradição literária dominante e internalizaram estas normas de artes e opiniões sobre os papéis sociais; a fase feminista (1880 – 1920), também conhecida como o período de protesto, quando as mulheres rejeitaram estas normas e valores e advogaram direitos iguais e reformas sociais; e a fase mulher (1920 – meados dos anos 60), caracterizado por livros de uma natureza altamente introspectiva, às vezes designados como ‘a viagem por dentro’, na qual as mulheres escreveram sobre a sua autodescoberta. (SADLIER, 1989, p.20, grifo nosso)
Essa classificação, que se tornou um parâmetro para o estudo de várias
produções femininas, não será utilizada na nossa posterior análise de nosso
corpus, já que a autora que elegemos para nossa pesquisa parece extrapolar o
esquema de Showalter. Contudo, reconhecemos a importância dessa percepção
para os estudos literários contemporâneos.
A teoria e a crítica literária desenvolvidas a partir de um viés feminista
fizeram necessariamente parte da construção do questionamento de arranjos
sociais, que vinculavam desvalorização e negatividade ao feminino. Na verdade,
essa crítica literária voltou-se para a desconstrução dos conceitos pré-
estabelecidos sobre sujeitos sexualmente marcados, demonstrando que essa
organização das relações de poder entre os membros sociais com base na
diferença sexual poderia e deveria ser modificada a fim de atingir parâmetros mais
justos e igualitários.
Tais questionamentos sobre a diferença sexual e a conseqüente
distribuição desigual de poder frequentemente apoiaram-se nos estudos de
Jacques Derrida que, partindo de uma perspectiva lingüística, conseguiu apontar a
forma binária através da qual o pensamento ocidental estava organizado. Seus
estudos embasaram a teoria da desconstrução, que passou a ser utilizada por
lingüistas, psicanalistas, historiadores, e que se constituiu em uma ferramenta
teórica que organizou a crítica das oposições binárias e hierárquicas tais como:
dominador x dominado; forte x fraco; corpo x mente; homem x mulher. A teoria
feminista utilizou a desconstrução a fim de argumentar que essas oposições ou
binarismos não são naturais, mas sim, construções ideológicas e políticas que
podem ser desconstruídas, ou seja, submetidas à estrutura e funcionamento
diferentes.
Apesar do fato de os estudos feministas terem, desde seu início, sido
marcados pela interdisciplinaridade, vale destacar que, após a fase mais
identificada com o estudo da mulher e suas perspectivas, os estudos de gênero
ganharam força a partir dos anos 80, quando profissionais de diversas áreas
(história, antropologia, filosofia, biologia entre outras) passaram a colaborar de
forma fundamental com esse debate, trazendo discussões de seus campos
específicos para os estudos que já vinham se desenvolvendo no terreno da crítica
feminista.
Assim, a partir dos anos 80 o debate feminista realmente passou a
aprofundar a análise do panorama do gênero. De acordo com Elaine Showalter,
gênero não deve ser compreendido somente como envolvendo as características
biológicas que diferenciam homens de mulheres, mas sim como aquilo que
“representa o significado social, cultural e psicológico imposto à identidade
biológica e sexual” (SHOWALTER, 1989. p.1-2). Conforme o dicionário Teoria
Cultural de A a Z, “o gênero pode, portanto, ser tomado como referência para
padrões adquiridos de comportamento e ação, em oposição ao que é
biologicamente determinado” (EDGAR & SEDGWICK, 2003, p. 146).
O gênero é, portanto, a construção cultural que tem organizado a divisão
entre o masculino e o feminino. Desde os anos 50 é sabido que, como afirmou
Beauvoir no livro O segundo sexo, o sujeito não nasce, mas torna-se mulher, o
que já indica o caráter construído da identidade de gênero. Tal construção se dá a
partir da relação que o sujeito feminino estabelece com o mundo. O gênero pode
então ser definido como uma interpretação cultural do sexo (Cf. BUTLER, 1987,
p.139) Se sexo costuma estar vinculado ao corpo, o gênero estaria mais vinculado
às identificações, formas de pensamento, ou seja, mais ligado à cultura e
sociedade do que à biologia. Segundo Butler, a construção cultural de gênero é
um “projeto sutil, laborioso e estratégico, feito numa quase inconsciência. (...) é o
tipo de escolha que fazemos e só mais tarde entendemos que fizemos” (BUTLER,
1987, p.143). Nesse sentido, Butler relativiza a palavra “escolha” quando vinculada
a gênero:
Não é possível assumir um gênero de um momento para o outro. (...) Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade plena de tabus, sanções e prescrições. A escolha de assumir certo tipo de corpo, viver ou usar o corpo de certo modo, implica um mundo de estilos corporais já estabelecidos. Escolher um gênero é interpretar normas de gênero recebidas de um modo que as reproduzam e organizem de novo. (BUTLER, 1987, p. 143)
Exatamente aí reside o caráter revolucionário da desconstrução do sistema de
gênero. Através de tal desconstrução, é possível perceber-se que o gênero pode
ser diferentemente (re)construído, atrelando valores diferentes tanto ao feminino
quanto ao masculino.
Assim como a mulher, em geral, foi marginalizada e marcada como o
outro em relação aos princípios da “normalidade” e da “universalidade” definidos
pela cultura ocidental dominante, além da população afro-descendente, também
os povos indígenas, e principalmente as mulheres indígenas, sofreram com a
discriminação exercida pelos colonizadores europeus. A colonização e o discurso
colonialista certamente foram impregnados pelo patriarcalismo e pelo sexismo,
que favoreciam o masculino sobre o feminino, o branco sobre o não-branco, o
europeu sobre o nativo. Assim, a diferença cultural que se estabeleceu entre
colonizadores e colonizados no território americano não era apenas percebida, e
sim, julgada a partir do olhar masculino e ocidental. Portanto, a busca por análises
das representações dos sujeitos femininos após a colonização exige uma
abordagem de dupla face – voltada para o gênero e para a etnia.
1.2 – Mulheres, gênero e minorias
Historicamente tem-se observado que os membros de culturas
hegemônicas tendem a construir as identidades de suas minorias1 de forma única,
como se fossem homogêneas, uníssonas. Contudo, segundo uma visão
multiculturalista, quanto mais distinta e diferente essa construção identitária das
minorias for das identidades hegemônicas, maior será a tendência de que ela abra
espaço para um estudo das relações de poder entre os grupos culturais. (Cf.
YUVAL-DAVIS, 1997, p. 200). Assim, são as diferenças entre as culturas
hegemônicas e minoritárias que estimulam o estudo das relações de poder sendo
as ditas minorias as maiores interessadas em reverter os arranjos estabelecidos.
Com certeza, em vários aspectos que envolvem questões como acesso ao poder,
as mulheres formam um grupo minoritário dentro da sociedade ocidental,
independentemente das especificidades de cada grupo ou etnia. Como tem sido
apontado por várias estudiosas (Woolf, Beauvoir, Showalter, Butler, entre outras)
as regras que controlam o comportamento e atuação das mulheres, submetendo-
as ao domínio masculino, determinam que o papel feminino seria o de criar filhos e
cuidar da casa, ou seja, dentro dos limites domésticos, o que estaria de acordo
com os padrões culturais patriarcais cristalizados ao longo do tempo. Na verdade,
1 Usualmente entende-se por ‘minoria’ um grupo social numericamente em posição inferior aos outros dentro de uma sociedade e, conseqüentemente, suscetível a sofrer nas mãos da opinião da maioria. O termo “minoria” pode, destarte, significar amiúde uma posição social inferior ou interesses marginalizados em virtude da falta de poder no que tange a dar voz às visões ou interesses de uma pessoa. Da mesma forma, estar em minoria (especialmente, por exemplo, no contexto de uma minoria étnica) pode levar a estados de desigualdade e representação equivocada. (Cf. EDGAR & SEDGWICK, p. 213-214)
exatamente essa divisão entre mundos público e privado é que instigou os
primeiros questionamentos feministas, já que as mulheres perceberam que sua
dependência econômica estava diretamente ligada a esse isolamento no ambiente
doméstico.
Se a mulher branca sentiu-se discriminada com base na diferença sexual,
organizando reações ao longo do século XX, os sujeitos femininos marcados por
diferenças étnico-raciais sentiam-se excluídos inclusive dentro da arena feminista,
por questionarem as diferenças em termos de raça, classe social e opção sexual.
Judith Butler, em Gender Trouble argumenta que existe muito material não apenas
sobre questões de sujeito, como forma única de representação, mas também uma
preocupação em se saber o que constitui, ou o que deve constituir, a categoria
das mulheres.
Nos Estados Unidos os primeiros grupos de mulheres a apontarem tal
necessidade de se discutir diferenças entre mulheres foram as afro-descendentes.
Logo em seguida outros grupos raciais e/ou etnicamente marcados pela diferença
em relação à hegemonia branca também se organizaram, entre esses, as latinas,
chicanas, asiáticas e indígenas. O termo “hegemonia”, conforme definição no
dicionário Teoria cultural de A a Z, “deriva do grego hegemon, que significa líder,
guia ou quem dita as regras". A hegemonia é identificada como que atrelada ao
grupo que controla a sociedade, procurando garantir seus privilégios, observação
essa de acordo com Antonio Gramsci. Assim, as mulheres afro-descendentes
inicialmente passaram a discutir com maior interesse problemas raciais, culturais e
a exploração econômica que sofreram, não demonstrando interesse apenas em
enfocar a discriminação sexual.
Enfocamos, ao longo do nosso trabalho, a construção identitária
produzida por uma autora indígena norte-americana e as representações que essa
apresenta da sociedade em que está inserida. Assim, se fará necessária uma
revisão sobre como o gênero tende a ser organizado e representado pela(s)
cultura(s) indígena(s). Vale salientar que, diferentemente da cultura ocidental, a
tradição indígena, principalmente nas suas formas orais, tende a construir o
feminino intimamente vinculado à força e ao poder.
(...) Há um espírito que permeia tudo, que é capaz de executar cantos poderosos e movimentos radiantes, que se move por dentro e por fora do vento. (…) Velha Mulher-Aranha é um dos nomes dados a esse espírito perfeito, e Mulher-Serpente é outro desses nomes. Um de seus aspectos é a Mulher-Semente e ainda outro é a Mulher-Terra; aquilo que todos esses espíritos fizeram conjuntamente é a criação, a terra, as criaturas, as plantas e a luz2. (ALLEN, 1986, p.15)
Enquanto o deus ocidental é masculino e único, tendo a humanidade sido
criada à sua imagem e semelhança, o que colocaria o homem em posição mais
próxima ao poder, para os indígenas, o que pode ser percebido através das vozes
de vários estudiosos (Allen, Donovan, entre outras), é que o espírito criador é
geralmente feminino e multifacetado, sendo que as diferentes facetas participam
da organização de mundo, que tende a seguir a lógica de um (divino) feminino que
2 (...) There is a spirit that pervades everything, that is capable of powerful song and radiant movement, and that moves in and out of the wind. (…) Old Spider Woman is one name for this quintessential spirit, and Serpent Woman is another. Corn Woman is one aspect of her, and Earth Woman is another, and what they together have made is called creation, earth, creatures, plants and light. Todas as traduções de textos originalmente em inglês são de responsabilidade da autora da pesquisa, sendo que o texto original segue em nota de rodapé.
seria mais compreensivo do que punitivo, sem se tornar passivo. Como defende
Paula Gunn Allen, tal “energia é dinâmica e inimaginavelmente poderosa”.
(ALLEN, 1986, p.15)
Dessa forma, na tradição indígena, o sujeito feminino é percebido como
de grande importância para o universo tanto por ter o poder de gerar outra vida em
seu ventre, exercendo assim uma clara força criadora, mas também pelo vínculo
que estabelece com o mundo a sua volta. Essa relação do feminino é fundamental
para a permanência da vida, determinando as possibilidades de sobrevivência de
seus grupos. Obviamente a identidade feminina, construída a partir da
organização tribal, varia de grupo para grupo. Algumas tribos indígenas percebem
suas mulheres como sujeitos gregários e com forte papel na família; já em outras,
o sujeito feminino é tão autônomo quanto as circunstâncias o permitirem; contudo,
a centralidade e importância da força feminina jamais são questionadas; ao
contrário, são muito respeitadas e até temidas. Aliás, esse seria o motivo pelo qual
os homens deveriam se afastar das mulheres antes de batalhas ou outros eventos
importantes, já que essas teriam poder suficiente para desequilibrar o poder
daqueles. Allen reafirma que, freqüentemente, o sistema social indígena é
ginocrático, com as mulheres mais velhas tomando as principais decisões políticas
e econômicas da tribo. Segundo a autora, é praticamente desconhecida uma
organização completamente patriarcal entre tribos indígenas.
Contudo, com a colonização e o contato com culturas ocidentais esse
poder de liderança feminina foi sofrendo diminuição e as mulheres indígenas
tiveram que se adaptar aos novos moldes sociais trazidos pelos europeus. Mais
tarde, em sua migração para as cidades, elas tiveram que escolher entre três
caminhos: a igreja, onde poderiam tornar-se freiras e aceitar uma religiosidade
que lhes era estranha; as ruas, onde poderiam sobreviver como prostitutas,
esquecendo o papel chave que a mulher indígena exercia dentro de suas tribos; e
a casa, onde passariam a obedecer às ordens de maridos ou senhores. Vale
lembrar que Anzaldúa visualiza uma situação diferente na atualidade: “hoje,
algumas de nós tem uma quarta chance – entrar no mundo através da educação
ou da carreira, tornando-nos pessoas autônomas” (ANZALDÙA, 1987, p.17).
Como defende Glória Bird na introdução à antologia Reinventing the enemy’s
language, “enquanto as mulheres brancas lutam para ter voz no sistema patriarcal,
hierárquico, (...) as indígenas eram ouvidas e se confiava nelas (…) O contato
negou a voz das mulheres” (HARJO, 1997, p.30)3. Fica claro nas palavras da
organizadora da antologia citada que as mulheres indígenas sofreram perda de
poder e diminuição em seu papel social após o processo de colonização.
Portanto, mulheres indígenas que têm consciência da marginalização
sofrida por seus povos bem como da diminuição em termos de status social que
sofreram, hoje buscam representar de outra forma suas identidades, que foram
renegadas a um segundo plano após o contato colonial. Essa é, na verdade, uma
forma de resistência a todas as imposições culturais que sofreram quando foram
forçadas a viver segundo a lógica patriarcal e ocidental.
3 Where white women struggle to assert their voice in a patriarchal, hierarchical system (...) Indian women were heard, relied upon (…) Contact denied the voice of women” .
Segundo Gretchen Bataille e Kathleen Mullen Sands no livro American
Indian women, a noção da diferença entre mulheres tem se tornado mais e mais
presente entre as teóricas e críticas da atualidade:
O movimento feminino contemporâneo enfoca o papel da mulher na sociedade, e as mudanças, tanto individuais quanto no modo como as mulheres são agora percebidas pela sociedade são muito significativas. Família, casamento, relações entre pais e filhos, oportunidades profissionais – tudo foi cuidadosamente examinado. Da mesma forma foi analisado o papel das mulheres das minorias, a importância da etnia para o feminismo sendo também discutida. As mulheres indígenas repetidamente negam a suntuosidade dos objetivos feministas, já que as primeiras precisam direcionar suas energias para manter a família, garantir as oportunidades de emprego e entrar em batalhas políticas juntamente com seus povos. (BATAILLE, 1984, p. 129)4
Mesmo hoje, através do incentivo oficial dos Estados Unidos e de vários
outros países onde ocorreram processos de colonização à viabilização da
recuperação de valores da cultura nativa, das estórias orais e de modelos
indígenas de convivência social, provável conseqüência das ações afirmativas das
últimas décadas do século XX, sabe-se que não há como ocorrer um regresso ou
um revival exato dos valores do passado após todos os contatos e os anos de
convivência com a cultura européia, cujos objetivos nas Américas foram
explicitamente os de colonizar, catequizar e dominar (BONNICI, 2003, p.208).
Assim, segundo Homi K. Bhabha, o que é teoricamente inovador e politicamente
crucial para esses novos sujeitos, entre eles, romancistas, poetas, biógrafos de
4 The contemporary women’s movement has focused on the role of women in society, and change has been significant in individual lives as well as in society’s perception of women’s roles. Family, marriage, parent-child relationships, career opportunities – all have been carefully scrutinized. The role of minority women has also been examined, and the importance of ethnicity over feminism has been debated. Indian women repeatedly deny the luxury of feminist goals because they must devote their energies to keeping families intact, getting jobs, and fighting the political battles of their people.
grupos que sofreram com a colonização, é a necessidade de se passar “além das
narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos
ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”
(BHABHA, 1998, p.20). Portanto, apesar de se perceber grande influência das
antigas formas culturais orais nas produções literárias de autores(as) indígenas
contemporâneos, parece inevitável que hoje esses busquem representar mais as
adaptações, as misturas, as hibridizações que enfrentam no momento presente. A
vida na fronteira cultural, na margem que quase avança em outro território cultural,
é a experiência freqüente desses sujeitos, principalmente dos “desaldeados”, que
perderam suas terras e passaram a viver nos arredores das metrópoles.
É nesse campo de discussão que surge a noção de sujeito híbrido, que se
compreende como aquele que estaria na área de entre-fronteiras raciais, étnicas
ou culturais, situando-se em um entre-lugar – aquele muitas vezes ocupado por
indivíduos que cresceram com influências multiculturais, marcado por várias
condições históricas e culturais. É exatamente esse ‘entre-lugar’ que é ocupado
por muitos sujeitos femininos e indígenas da atualidade, que se caracterizam tanto
pela busca por espaço social e político quanto pela dificuldade de encontrar isso
dentro da sociedade contemporânea. Buscam, contudo, a partir desse lugar mal
delimitado, no que se refere a fronteiras, construir suas identidades plurais tanto
no campo social como literário. Enquanto alguns autores fazem referência ao
sujeito híbrido, ao se referir a essas "novas" identidades, Gloria Anzaldúa prefere
utilizar a denominação ‘mestiça’, percebendo tal categoria como muito promissora:
(...) o futuro pertencerá à mestiça, porque ele depende da quebra de paradigmas, do encontro de duas ou mais culturas. Através da criação de um novo mythos, a mestiça cria uma nova consciência. (ANZALDÚA, 1987, p.80)5
Roland Walter na introdução ao seu livro Narrative identities defende que as
análises que desenvolve sobre textos da literatura brasileira, caribenha e norte-
americana demonstram que há várias vozes subalternas que realmente foram
excluídas ou empurradas para as margens do discurso histórico e cultural oficial
daqueles países (Cf. WALTER, 2003, p. 17). Walter reforça a idéia de que “o
espaço do entre-lugar é um dos mais importantes terrenos nas Américas, sendo
exatamente por onde as forças constitutivas da formação da identidade individual
e nacional se movem” (WALTER, 2003, p. 17-18). Nesse sentido fica clara sua
proposta de analisar como a ficção contemporânea das Américas se movimenta
através e por entre “fronteiras geográficas, temporais, raciais, étnicas, de gênero,
espirituais e psicológicas” (WALTER, 2003, p.15). Para tanto, é necessário que se
ouça a voz daqueles que circulam por tais territórios. Segundo Gloria Anzaldúa em
seu prefácio a Bordelands: la frontera,
(...)Fronteiras estão presentes onde quer que duas ou mais culturas se aproximam, onde pessoas de raças diferentes ocupam o mesmo território, onde as classes baixa, média e alta se tocam, onde o espaço entre os indivíduos encolhe pela intimidade (ANZALDÚA, 1987, p. 76)6.
5 “(...) The future will belong to the mestiza. Because the future depends on the breaking down of paradigms, it depends on the straddling of two or more cultures. (…) By creating new mythos la mestiza creates a new consciouness”. 6 “[T]he borderlands are physically present wherever two or more cultures edge each other, where people of different races occupy the same territory, where under, middle and upper classes touch, where the space between two individuals shrinks with intimacy”.
Nosso estudo tem objetivos semelhantes aos propostos por Roland Walter,
já que também buscamos analisar as representações construídas por uma autora
americana de origem indígena, ou seja, Susan Power. Analisamos como essas
representações se relacionam com outras representações de tais identidades mais
afinadas com a cultura hegemônica do país em que a autora citada está inserida –
os Estados Unidos. No próximo capítulo revisaremos as produções da teoria e da
crítica sobre os estudos indígenas, bem como alguns conceitos básicos ligados às
culturais orais que tendem a fazer parte da literatura escrita produzida por sujeitos
indígenas contemporâneos.
2 - Teoria e crítica pós-colonial e a literatura indígena
2.1 – O pós-colonial: identidade e alteridade
A expansão européia nas Américas, que ocorreu mais sistematicamente
nos séculos XV e XVI, aproximou povos e culturas que até então viviam distantes,
praticamente sem consciência da existência uns dos outros. As relações
estabelecidas inauguraram uma convivência entre sujeitos de continentes
diferentes, sendo que os povos definidos como “novos” foram obrigatoriamente
submetidos ao prisma eurocêntrico de organização social, que oprimia o diferente.
Como defende Thomas Bonnici em Teoria Literária, “entre o colonizador e o
colonizado havia o fator raça, que construía um relacionamento injusto e desigual
entre sujeitos que passaram a ter uma convivência relativamente constante"
(BONNICI, 2003, p. 210). Na verdade, interpretações das diferenças raciais
bastaram para que fosse introduzido o regime escravocrata nas Américas. Para os
europeus, os povos colonizados eram inferiores, e, segundo a lógica dominante,
isso podia ser comprovado e sustentado pelas teorias da evolução e da
sobrevivência das espécies.
Freqüentemente os povos subjugados, por instinto de sobrevivência, se
submetiam à nova ideologia por “um processo de associação consciente e sob
uma máscara de filiação” (ASHCROFT et al., 1989, p.5), o que determinou que
eles imitassem os costumes do colonizador baseados no desejo de não serem
apenas aceitos, mas também absorvidos. Dessa forma, o centro colonizador
construía um sistema a partir da formação de uma identidade do colonizado como
um ser dependente, essa se tornando a única estrutura pela qual tal sujeito
compreendia o mundo, já que fatalmente acabava perdendo várias referências
culturais anteriores à colonização.
Logo no início do século XX, em conseqüência de movimentos que
defendiam a luta por independência de países ainda submetidos às forças
coloniais européias, principalmente na África, bem como a grupos hegemônicos
que ainda insistiam em discriminar descendentes de etnias que foram forçados a
vir para a América (africanos, por exemplo), um novo quadro mundial começaria a
se organizar. Paralelo a isso, as mulheres também construíram suas agendas de
reivindicação, principalmente aquelas inseridas em grupos minoritários, porque
continuavam sendo submetidas ao poder político e econômico dominante, que se
concentrava nas mãos dos brancos, cristãos e ricos dos países mais poderosos.
Como é defendido no livro The empire writes back, se “mais de dois terços
da população mundial teve suas vidas afetadas pela experiência da colonização”
(ASHCROFT et al., 1989, p.1) não é nada surpreendente que questões que se
inserem nesse contexto sejam ainda hoje do interesse de grande parte da
população do planeta. Pessoas de nacionalidades diferentes trazem de seu
passado histórico experiências muitas vezes bastante semelhantes, sem, contudo,
perceberem que o que une tais experiências é o fato de terem vivenciado
processos colonizadores e exploratórios.
Esse processo de colonização continua até hoje, mas se utiliza de outras
ferramentas que, muitas vezes, o mascaram e, certamente, em muito diferem dos
eventos atrelados à colonização do século XVI. Muitos teóricos chamam esse
novo processo de ‘neocolonialismo’. De acordo com Edward Said,
Não acho que o colonialismo realmente acabou. (...) O colonialismo no sentido formal acabou, mas estou muito interessado no neocolonialismo, me interesso pelos trabalhos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, e tenho escrito sobre eles. Preocupo-me com as estruturas de dependência e empobrecimento que existem, muito certamente nessa parte do mundo e todas aquelas que agora são referidas como o Sul Global. (SAID, 2002, p.2)7
Portanto, a crítica e teoria pós-colonial, alinhavadas a partir da articulação
entre os interesses e preocupações desses povos anteriormente colonizados e da
busca por uma reflexão e explicação quanto às conseqüências da influência do
colonizador sobre seus outros, pretende abrir um novo terreno de discussão e
análise de questões contemporâneas. O poder político-econômico mundial, que
ficou centrado por séculos nas mãos de dirigentes brancos, em sua grande
maioria, europeus (Cf. BONNICI, 2003, p.208), passou a ser, através do discurso
que se contrapôs à história oficial da colonização, requisitado e ou questionado
pelas populações antes silenciadas. Segundo Bonnici,
A crítica pós-colonialista é enfocada, no contexto atual, como uma abordagem alternativa para compreender o imperialismo e suas
7 I don’t think colonialism is over, really. (...) I mean colonialism in the formal sense is over, but I am very interested in neocolonialism, I am very interested in the workings of the International Monetary Fund and the World Bank and I have written about them. I care very much about the structures of dependency and impoverishment that exist, well certainly in this part of the world and my part of the world and in all parts in what is now referred to as the global South.
influências, como um fenômeno mundial e, em menor grau, como um fenômeno localizado. (BONNICI, 2000, p.10)
Nesse sentido, as relações entre cultura e imperialismo são fundamentais para
qualquer abordagem que se proponha a organizar um questionamento da História
das colonizações e de suas conseqüências e é exatamente através dessa
perspectiva que a crítica pós-colonial se aproxima da literatura produzida pelos
sujeitos que foram vítimas do imperialismo europeu. A literatura produzida por
sujeitos pós-coloniais estaria apta a retratar ou reconstruir fatos através de um
olhar identificado com aqueles que tiveram suas terras invadidas e suas culturas
abaladas.
Ainda de acordo com Bonnici, o desenvolvimento das literaturas pós-
coloniais segue três etapas principais:
A primeira etapa envolve textos literários produzidos por representantes do poder colonizador; (...) com detalhes sobre costumes, fauna, flora e língua, dão ênfase à metrópole em detrimento da colônia. (...) A segunda envolve textos literários escritos sob supervisão imperial por nativos que receberam sua educação na metrópole e que se sentiam gratificados em poder escrever na língua do europeu. (...) A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo grau de diferenciação, até uma total ruptura com os padrões emanados da metrópole. (BONNICI, 2000, p. 13-14)
Os escritores pós-coloniais mais contemporâneos, bem como os textos produzidos
pelos mesmos, alguns dos quais são objeto de estudo do presente trabalho,
pertencem, de acordo com essa divisão, à última etapa citada por Bonnici.
Questionando, entre outros fatores, a imposição da cultura invasora nos “novos”
territórios, a necessidade de adaptação dos povos nativos e outras modificações
culturais como formas de sobrevivência e possibilidade de ocupação de algum
espaço dentro da nova cultura que passou a ser percebida como dominante.
Em conseqüência de todos os fatores acima citados, a teoria e a crítica pós-
colonial, ao longo do século XX, buscaram analisar as relações históricas entre
discurso e poder, bem como as lutas das minorias por representatividade e
espaço. É possível observar que, após os anos 90, influenciada principalmente
pelas teorias e críticas feministas e pós-coloniais, a produção literária, em
particular a norte-americana, foi sofrendo mudanças. Os sujeitos e temas
representados passaram muito mais freqüentemente a ser aqueles que não se
identificavam com os paradigmas hegemônicos de subjetividade, fenômeno que
ficou bastante evidente na produção cultural dos Estados Unidos. Construídas
pelo olhar de sujeitos que diferiam do padrão dominante (branco e masculino),
obras literárias alternativas conseguiram trazer à tona outras visões e
interpretações sobre o que geralmente se entendia por ‘América’.
O crescente interesse pela área de estudos pós-coloniais, salientando ser
esta ainda bastante recente, demonstra a necessidade que existe de ser trazer à
tona novas faces das tradições culturais a serem interpretadas. A cada dia se
torna mais importante aprofundar conceitos propostos pela teoria pós-colonial,
exatamente para demonstrar que não há mais delimitação clara ou fixa de
identidade na sociedade contemporânea. É sabido que as pessoas se deslocam
com maior mobilidade, relacionando-se de forma menos previsível e, assim,
desestruturando os padrões anteriores marcados pela rigidez do lugar e da
origem, especialmente no que se refere à racionalidade, à raça e à etnia. Isso
torna o ato de se analisar as culturas não-hegemônicas uma tarefa bastante
árdua, já que essas seriam, hoje, ainda mais fluidas, devido ao fato de estarem
sempre em construção e movimento.
Além disso, a antiga idéia da pureza racial, no que se refere aos europeus,
também é hoje seriamente questionada. Aquele sujeito que aparentemente não
resultava de ‘misturas’ ou ‘encontros étnicos’, representando o ideal de pureza,
não existe mais, nem como imaginário já que revisões da história abalaram tais
paradigmas.
A mistura entre as raças começou a se tornar mais evidente após os
processos de colonização, quando grupos fisicamente distintos e separados por
fronteiras, antes percebidos como "isentos de qualquer contaminação”, se
fundiram e passaram a ser multiformes, tornando-se a realidade palpável de um
mundo heterogêneo. Essa “mestiçagem supõe a convergência de elementos
díspares de proveniência européia, ameríndia e africana, em sua origem,
estrangeiros uns aos outros, que se ajustam entre si, reorganizam-se, conferindo-
lhes um novo sentido” (HANCIAU, 2005, p. 131). Portanto, contaminação, nesse
contexto, não estaria no campo semântico ligado à saúde ou doença, e sim, ao
campo da sobrevivência.
Com a mistura dos corpos e das cores, as fronteiras, em conseqüência do
fato de que a crescente mobilidade exigiu um maior contato entre culturas, foram
gradativamente se tornando tênues linhas que marcam a territorialidade e o
espaço de autonomia política. “Neste sentido, a fronteira constitui-se em
encerramento de um espaço, limitação de algo, fixação de um conteúdo e de
sentidos específicos”. (HANCIAU, 2005, p. 133) Esse conceito ajuda a marcar a
identidade e fazer paralelos entre sujeitos e seus espaços. Contudo, com a
globalização esses limites estão tornando-se ainda menos visíveis, os
entrecruzamentos sociais compondo um novo sujeito, que muitas vezes se perde
à procura de um lugar com o qual esse se identifique.
Um outro conceito trazido pelos estudos culturais é o de hibridez.
Primeiramente tal definição foi construída a partir do conceito biológico, no qual o
dano à espécie humana, especialmente, resultaria na infertilidade e ou má
formação dos indivíduos. “Na visão que predominou no século XIX nos Estados
Unidos e em outras partes do continente americano, a mistura racial e étnica se
manteve como algo distante e perigoso, indicativo da degeneração da espécie”
(COSER, 2005, p.165-166,). Obviamente tal visão veio, mais recentemente,
sofrendo profundas modificações.
Ser híbrido para a crítica pós-colonial é estar na região de fronteiras devido
à mistura étnica, racial ou mesmo cultural, permitindo o “ir-e-vir” desse sujeito que,
muitas vezes, não tem nem encontra uma identidade fixa. Na verdade, a
mobilidade e as possibilidades de identificação com outras culturas são tão
visíveis e reais que uma idéia de fixação, de uma só identidade não faria sentido.
“Formas culturais híbridas, por sua vez, adaptam-se com mais rapidez a contextos
novos e podem apresentar uma infindável combinação de traços e
características”. (STROSS, 1999, p. 259)
Na verdade, atualmente a subjetividade tende a se construir no entre-lugar,
espaço em que vários indivíduos se sentem menos limitados e que, de acordo
com Núbia Jacques Hanciau, seria representado por
“(...)‘zonas’ criadas pelos descentramentos, quando da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, que vêm testemunhar a heterogeneidade das culturas nacionais no contexto das Américas e deslocar a única referência, atribuída à cultura européia”. (HANCIAU, 2005, p.127)
E é a partir desse entre-lugar que os sujeitos dessas culturas ditas “novas”
começaram a sair da invisibilidade, contando suas histórias a partir de pontos de
vista que diferem radicalmente daqueles apresentados pelo olhar oficial e
dominante. Segundo Hanciau, na contemporaneidade a potencialização de tal
conceito se fortalece com as turbulências ocorridas a partir dos anos oitenta, que
ajudaram a desmistificar o imperialismo e, assim, foram sendo reconfigurados os
limites entre centro e periferia, fazendo do mundo uma formação de entre-lugares
(Cf. HANCIAU, p.125, 2005).
2.2 – A construção da tradição literária indígena
Os grupos indígenas são, em sua maioria, organizados e construídos
através do princípio da complementação, não da oposição binária, e seus
sistemas sociais são, em grande parte, baseados em clãs. Aos homens é dada a
tarefa de proteger o grupo em momentos de guerras, sendo que também atuam
em alguns rituais e cerimônias que visam garantir saúde e força para toda a
comunidade. Os rituais de cura buscam trazer sabedoria para toda a tribo,
auxiliando seus membros em momentos de desafios, de lutas ou de desequilíbrio.
Em vários grupos indígenas pode-se perceber que o sistema é ginocrático,
com as mulheres mais velhas tomando as principais decisões políticas e
econômicas da tribo. Segundo pesquisas realizadas por Paula Gunn Allen, o
sistema das tribos estadunidenses nunca foi completamente patriarcal, tendendo
mais ao matrifocal e matriarcal.
As sociedades de origem européia que se instalaram em vários lugares das
Américas durante o período das “grandes invasões” ignoravam por completo tais
organizações sociais alternativas, tendo utilizado o extermínio e a escravização de
povos indígenas como forma de controlar a posse de terras; além disso, os
colonizadores também reforçavam a idéia de que os indígenas eram inferiores aos
europeus por terem outras ideologias e visões de mundo, definidas por estes
como primitivas.
Nesse sentido, a religião cristã foi um instrumento fundamental para a
colonização ser instaurada de fato. Mitos indígenas eram transformados ou
proibidos, sendo identificados pelos europeus como influências demoníacas. Além
disso, a crença em um só deus masculino e os preceitos do cristianismo foram
lentamente impostos, o que implicou, ao final, em um apagamento ou
enfraquecimento das divindades realmente significativas para as diversas nações
indígenas. O objetivo era o de que os nativos aceitassem que o correto, o mais
apropriado era serem controlados pelo homem branco, o que só pode ocorrer
parcialmente ao longo da história graças ao desempoderamento dos líderes e dos
rituais de várias tribos estadunidenses. Contudo, merece ser destacado que
sempre existiram focos de resistência, terrenos simbólicos nunca compreendidos
pelo colonizador.
De qualquer maneira, essas formas de pensamento ocidentalizado eram
ensinadas desde cedo às crianças indígenas ao longo do processo de
colonização. As mesmas eram encaminhadas a escolas geograficamente
distantes de suas tribos, sendo expostas a métodos educacionais que variavam de
tortura psicológica e física até o aprisionamento, medidas vistas pelos
catequizadores como formas de eliminar o mal, o lado selvagem das Américas.
Sendo assim, a colonização não afetou apenas política e economicamente
a vida dos nativos, mas, principalmente, abalou suas visões de mundo. A noção
de grupo, de comunidade, foi obrigatoriamente substituída de acordo com novos
valores e ações centradas no individual, a fim de preparar os índios para viverem
como membros de sociedades em que a cultura ocidental seria a dominante. Isso
abalou os princípios da identidade indígena, o que em muitos casos, causou
alienação e perda de auto-estima.
A tradição literária ocidental difere completamente da literatura nativa não
apenas porque a última se baseia em princípios que regem o universo, porque
isso está intimamente ligada à vida prática e espiritual dos indígenas, mas
também, em grande parte, porque o grupo celebra a emoção de todos, nunca de
um único indivíduo, como uma forma de auto-expressão. "Eles sempre buscam
redirecionar suas emoções íntimas e integrá-las com a energia do cosmos”.
(ALLEN, 1986, p. 54) Dessa forma, o próprio conceito de autoria, como produção
e talento individuais, fica abalada.
Fundamentados por tradições orais que sempre permaneceram como
fontes de sabedoria para as culturas indígenas, vários sujeitos nativos
contemporâneos passaram a questionar os valores da sociedade dominante, bem
como a discriminação e a desvalorização que lhes foram historicamente impostas.
É exatamente por essa razão que há um crescente número de escritores
indígenas a representar suas histórias na forma escrita, criando textos que
possibilitem a revalidação pública do significado da tradição de seus povos e seu
legado. Hoje, é sabido que os indígenas sobreviveram por fortalecerem seus laços
culturais, dando significado à vida através das suas histórias, mitos e cerimônias
(Cf. ALLEN, 2002, p. 101) e, na contemporaneidade, esses significados
ultrapassam os limites de suas culturas específicas, pretendendo recriar suas
tradições artísticas de forma mais ampla.
Segundo Louis Owens, crítico literário dos Estados Unidos que se debruçou
sobre as questões indígenas, através da literatura ficcional, os escritores
indígenas contemporâneos buscam traços da identidade pré-colonização, o que
envolve um processo de auto-descoberta e recuperação ou desvendamento
cultural. Críticos e escritores de origem indígena, como Owens, passaram a
discutir a idéia de identidade, indicando que os nativos na atualidade tendem a se
identificar como sujeitos híbridos, de origens diversas, mas com enormes
influências de suas culturas nativas de origem. Apesar de terem se adaptado, seu
passado e a história de seus povos continuam fundamentando suas ações de
forma atemporal em princípios não-ocidentais.
Vale destacar que as discussões teóricas sobre identidade e, mais
especificamente, sobre identidade indígena, podem ser tanto progressistas quanto
reacionárias. No início da colonização esse debate serviu para formalizar as
fronteiras étnicas e delimitar o espaço de cada povo dentro de uma hierarquia. A
questão de hibridez, ou seja, a noção segundo a qual um sujeito pode ser
igualmente influenciado e marcado por duas ou mais culturas, desestabiliza tais
definições segmentadas e ilusórias sobre pureza de origens. O encontro entre
sujeitos de pertencimento (cultural, étnico, racial) diferentes ainda é, contudo, para
muitas pessoas, percebido como de caráter extremamente negativo, como se isso
significasse a existência de um indivíduo que não se encaixa em nenhuma cultura,
sem lugar no mundo. Além disso, de acordo com Karen I. Blu, citada em Other
destinies, de Louis Owens,
“Para os Brancos, sangue é uma substância que pode ser tanto racialmente pura quanto poluída. O sangue negro polui o sangue branco de forma absoluta, de maneira tal que, de acordo com uma lógica extrema, apenas uma gota de sangue negro transforma um homem branco em negro. (...) As idéias dos Brancos sobre o ‘sangue indígena’ foram menos formalizadas e definidas. (...) Faz-se necessário apenas uma gota de sangue negro para tornar a pessoa negra, mas é preciso muito sangue indígena para tornar alguém um ‘verdadeiro’ indígena”. (OWENS, 1992, p. 3)8
8 “For Whites, blood is a substance that can be either racially pure or racially polluted. Black blood pollutes White blood absolutely, so that in the logical extreme, one drop of Black blood makes otherwise White man black. (…) White ideas about “Indian blood” are less formalized and clear-cut. (…) It may take only one drop of Black blood to make a person a Negro, but it takes a lot of Indian blood to make a person a “real” Indian”. (OWENS, 1992, p. 3)8
A idéia de ligar ‘sangue’ à ‘poluição’ já é, por si só, altamente sectária, abrindo
margens a toda espécie de discriminações. Na verdade, felizmente hoje em dia
visões tão biológicas para se definir o pertencimento ou identificação do indivíduo
já não são mais imediatamente encaradas como sérias ou válidas. Atualmente, ser
identificado, por exemplo, como indígena é mais do que simplesmente assumir ter
sangue indígena. Implica também e, principalmente, ser identificado por uma tribo
como seu membro, conhecer suas tradições e ter uma formação cultural e social
baseada nos costumes desse determinado grupo; ou seja, ser indígena é estar
integrado na cultura de uma tribo e estar afinado com as cosmovisões dessa. Jace
Weaver, crítico estadunidense, confirma essa percepção: para muitos grupos
indígenas não basta apenas uma pessoa declarar que possui sangue indígena;
ela precisa pelo menos poder ser identificada segundo os padrões sociais e
culturais dos nativos americanos (Cf. SCHNEIDER, 2001, p.44).
Assim como a identificação de um sujeito como indígena não é tão simples,
homogênea e direta, não se podendo ditar regras que normatizem tal vinculação,
também é impossível ditar regras sobre o que seria literatura indígena. Na
verdade, a diversidade do que é apresentado como literatura indígena é enorme,
assim como é vastíssima a compreensão que se tem atualmente sobre o que é
literatura em termos gerais. O que se pode perceber é que os autores indígenas
tendem a não abandonar por completo as tradições imemoriais de seus povos em
seus textos. O hábito de contar estórias, o que muitas vezes serviu como forma de
manter o grupo unido em momentos de dificuldades, ainda é tão forte que traços
orais ainda são facilmente percebidos em seus textos ficcionais. Para Liane
Schneider, “os nativos apostam na memória, suas estórias e mitos sendo
contados e recontados para auxiliar na formação dos princípios culturais da tribo,
bem como para garantir que esses não sejam esquecidos” (SCHNEIDER, 2001,
p.42).
Quando os indígenas estadunidenses passaram a escrever em língua
inglesa, obviamente passaram a alcançar um público maior. Portanto, foi essencial
aprender a língua do colonizador para utilizá-la também como ferramenta de
resistência e permitir a construção de um discurso que pudesse atingir um público
mais amplo e variado, trazendo as preocupações e visões de mundo indígenas
para outras comunidades norte-americanas e internacionais.
Além disso, segundo Owens, escrever estórias cria um dilema entre
identidade e autenticidade muito palpável entre os indígenas. O confronto entre a
figura do autor, que, enfim, assina o livro, e o conteúdo, geralmente baseado ou
no mínimo com traços da cultura oral, é inevitável, já que é preciso decidir sobre o
que pode, deve ou merece vir a público sem comprometer a manutenção da
resistência das culturas indígenas (Cf. OWENS, 1992, p. 21). A passagem de
estórias orais para a forma escrita causou, algumas vezes, conflitos entre o autor
e sua tradição cultural, já que tais estórias seriam cristalizadas, fechadas em um
código que não poderia ser modificado ou reinventado, o que sempre foi estranho
às culturas orais.
Os textos produzidos por escritores indígenas da atualidade são, em sua
maioria, de natureza intensamente política. Em grande parte dos textos pode ser
percebida a luta por um espaço dentro da sociedade dominante, por uma inclusão
que não signifique o desaparecimento das diferenças e das especificidades
culturais. Pode-se até suspeitar que a forte tendência verificada na literatura
indígena contemporânea, ou seja, o uso de vários gêneros por um mesmo autor,
ou mesmo de diferentes gêneros em um mesmo texto seja um indício dessa busca
por diversidade de forma, sentido e leitura. Como o propósito do presente estudo é
o de analisar dois textos da escritora estadunidense de origem indígena Susan
Power, será necessária uma revisão de sua produção ficcional, bem como uma
discussão sobre a tribo da qual a autora é membro, ou seja, a tribo Standing Rock
Sioux, da nação Sioux.
2.3 Susan Power: sua tribo e obra
Os nativos norte-americanos descendentes dos usuários da língua Siouan e
ligados às culturas dos Grandes Planaltos pertencem à tribo Sioux. Apesar de
comumente acreditar-se que os Sioux eram um único grande grupo, na verdade
esta sempre foi uma nação composta por três tribos: Lakota, Dakota e Nakota. O
termo Sioux vem da palavra nadewisou, da língua Chippewa, falada pela nação
indígena Chippewa (ou Ojibwa), que era inimiga dos Sioux, palavra essa que
significa serpentes traiçoeiras. Os primeiros colonizadores, bem como, mais tarde
o governo dos Estados Unidos, que tiveram contato inicialmente com os índios
Chippewa, passaram a chamar os nativos membros do grupo “inimigo” dos
Chippewa por Sioux, como uma abreviação da palavra nadewisou (serpentes
traiçoeiras). No entanto, antes do processo de colonização, os Sioux se
autodenominavam Aliança de amigos, o que no dialeto Santee é representado
como dakhota, no dialeto Yankton, nakhota e, no dialeto Teton, lakhota,
diferenciações lingüísticas essas que acabaram identificando os grupos Lakota,
Dakota e Nakota acima-citados, todos pertencentes à grande Nação Sioux.
No século XVII a nação Sioux era composta por grupos que viviam na área
que atualmente corresponde à região de Minnesota, Estados Unidos. Em conflitos
com sua grande nação inimiga, os Ojibwa (ou Chippewa), os Sioux foram forçados
a se deslocarem para o oeste, até os Grandes Planaltos e áreas próximas. A tribo
Dakota se estabeleceu ao longo do rio Minnesota, na região que hoje corresponde
ao sudoeste de Minnesota. A tribo Nakota se estabeleceu nas imediações de Iowa
e no sudoeste de Minnesota, próximo dos Dakota. A tribo Lakota se deslocou até
a região dos Black Hills, que agora corresponde ao leste de Wyoming e ao leste
de Montana. Espalhando-se pelas imediações de tais regiões, cada ramo da
nação conseguiu prosperar nos novos locais, devido, principalmente, à caça de
búfalos. Em 1750, a nação Sioux já contava com mais de 30.000 membros, os
quais continuaram dominando suas terras ao longo do século seguinte.
Os costumes da nação Sioux foram muitas vezes erroneamente utilizados
para caracterizar todos os nativos norte-americanos ou, pelo menos, grande parte
deles. Na verdade, os índios Sioux por muito tempo simbolizaram “o” indígena
norte-americano. Basta citar o nome de alguns de seus mais destacados líderes
do passado para confirmar a força dessa simbologia na memória daquela nação:
Red Cloud (Nuvem vermelha) e Sitting Bull (Touro sentado), entre outros., fazem
parte do imaginário do período colonial dos Estados Unidos. Algumas das
atividades dos Sioux, que acabaram sendo, por vezes, estereotipadas foram: a
caça aos búfalos, a enorme organização militar de seus grupos, os adereços feitos
com penas de águia, as previsões baseadas em poderes mediúnicos, a cerimônia
da Dança do Sol, envolvendo inclusive a autopunição, a purificação do corpo
através das tendas de transpiração, a utilização do cachimbo sagrado, mais
conhecido como o cachimbo da paz, e a linguagem dos sinais de fumaça. Vários
desses hábitos foram utilizados para construir uma imagem única dos indígenas
estadunidenses, como se cada cultura, tribo ou nação não possuísse traços
específicos que as identificassem.
No que se refere ao contexto religioso, as crenças dos membros Sioux
foram construídas e organizadas com base em um deus central, Wakan Tanka, o
Grande Espírito ou o Grande Mistério, O que não impedia a existência de outras
figuras poderosas que preenchiam o imaginário religioso da tribo. Contudo, para
os Sioux, Wakan Tanka é o coração de tudo e compartilha as responsabilidades
de criação com a verdadeira mãe, a Terra. Assim, teria sido Wakan Tanka quem,
por exemplo, havia distribuído as estrelas no céu de maneira tal que elas
poderiam ser vistas tanto do paraíso quanto de qualquer ponto do planeta, o que
com certeza lembraria a todos o fato de que todos os objetos e seres do mundo
estão relacionados, sendo interdependentes.
Os Sioux resistiram bravamente aos ataques às terras indígenas. Os relatos
sobre os embates entre a Sétima Cavalaria do Exército Estadunidense e os Sioux
são parte sangrenta e triste da história daquele país. O início dos confrontos mais
graves se deu devido ao fato de o exército ter encontrado ouro nas terras da
nação indígena, mais especificamente nos Black Hills (Montanhas negras). Na
verdade, a corrida pelo ouro foi a grande responsável pela severidade dos
confrontos. Se o ouro interessava aos novos americanos, os nativos não queriam
abrir mão de suas terras sagradas. Após essas sucessivas guerras travadas com
os colonizadores e, mais tarde, como governo dos Estados Unidos, em 1890 a
nação Sioux iniciou um movimento de revitalização dos valores indígenas,
conhecido como The Ghost Dance Movement (a Dança dos Espíritos). Eles
acreditavam que tal dança, carregada de poderes mágicos e de rituais, expulsaria
os brancos de suas terras, sendo que essas voltariam às mãos de seus
verdadeiros donos, os nativos. Para o governo oficial esse ritual representava uma
ameaça às conquistas já consagradas, principalmente devido à organização militar
dos Sioux, que era assutadora até aos olhos do bem aparelhado exército
estadunidense. Assim, o governo dos Estados Unidos, em uma tentativa de
suprimir completamente qualquer perigo ou risco futuro, enviou seu exército para
enfrentar os índios, tendo sido responsável pelo extermínio de pelo menos 370
membros da nação Sioux, incluindo aí mulheres e crianças. O massacre ficou
conhecido como Wounded Knee e até hoje é lembrado pelos indígenas da
América do Norte como o massacre mais cruel sofrido por eles.
Atualmente a nação Sioux participa ativamente dos movimentos civis pela
restauração de suas terras, bem como daquelas de outros grupos indígenas. Eles
estão particularmente envolvidos no American Indian Movement (AIM), ou
Movimento Indigenista Americano, organização criada em 1960 e que busca
garantir os direitos civis às populações indígenas.
Susan Power, nascida em 1964, é de origem indígena Sioux, sendo
membro da tribo Standing Rock Sioux, um ramo do grupo Dakota. Ela descende
do antigo chefe Sioux Mato Nupa. Power foi a primeira mulher Sioux a graduar-se
pela Harvard, onde estudou Direito. Também tem um mestrado pela universidade
de Iowa. Atualmente ela escreve textos ficcionais e atua na área de ensino em
diversas universidades estadunidenses. Em uma entrevista à Internet Public
Library, Power esclarece que seu interesse principal é pela cultura indígena,
apesar de também querer cobrir outros temas globais, evitando, assim, o ativismo
exagerado. Ela afirma: "estamos vivendo em um mundo enorme, que não é
exclusivamente indígena”. Também defende como importante a experiência de se
mover entre esses mundos, de alimentar seus dois espíritos, sendo cidadão
estadunidense e indígena em todos os setores de sua vida.
Até o momento, além de ter vários de seus textos em antologias, Susan
Power publicou individualmente um romance, The Grass Dancer, em 1994, e uma
coletânea de contos, Roofwalker, em 2002. O presente estudo analisará dois
contos desse último e mais recente livro, ou seja, os contos “First fruits” e
“Watermelon seeds”.
3. “Watermelon seeds” e “First fruits”: representações de
indígenas por Susan Power
3.1 - Construindo contos: o ato de contar
Qualquer narrativa implica contar alguma coisa, apresentando uma
sucessão de acontecimentos de interesse humano (Cf. GOTLIB, 1988, p. 11). Tais
acontecimentos podem tanto compor um relato de fatos ocorridos ou
simplesmente imaginados, formando aquilo que passa a ser denominado de
ficção. Via de regra, esses textos ficcionais apenas são considerados como tal se
propuserem específicos fins literários, ou seja, caso se enquadrem dentro de um
dos gêneros literários – conto, novela, romance, poesia e teatro, enquanto texto,
não representação (Cf. MOISÉS, 2002, p. 14) Obviamente, tais definições
extremamente fixas no que se refere ao gênero literário passaram a ser
apresentadas de forma menos estática mais recentemente, quando as fronteiras
entre diferentes tipos de produção tornaram-se mais tênues.
O conto, que é de fato o melhor equivalente em português para o termo
short story, adotado em língua inglesa a partir do século XIX, se caracteriza pela
descrição e limitação de um acontecimento que tenha significado (Cf.
CORTÁZAR, 1974, p. 151). Segundo Gotlib, o termo short story se afirmou desde
1880, principalmente nos Estados Unidos, designando não somente uma estória
curta, mas também um gênero independente, com características próprias.
Nos diversos períodos literários, ao longo dos séculos XIX e XX, o conto
sofreu modificações estruturais, principalmente no que se refere às técnicas
narrativas empregadas. Se em seu início essa narrativa era mais tradicional,
apresentando uma ação, um conflito e, em seu desfecho, a resolução da crise, o
conto moderno passou a não seguir padrões pré-determinados, reservando
surpresas e fragmentos não encaixados ao final da estória. De acordo com o
espírito dos tempos modernos, o conto contemporâneo não prevê resultados nem
fórmulas fixas, tendendo a deixar a estória em aberto. Contudo, vários autores
contemporâneos mesclam características do conto clássico e do moderno em
seus textos, o que contribui para a problematização da descrição definitiva do
gênero.
É amplamente conhecida a afirmação de Poe sobre a relação existente
entre efeito e extensão do conto. Segundo ele, a leitura de um conto deve ser “de
uma só assentada” (Cf. GOTLIB, 1988, p. 32) a fim de que não se perca a unidade
de efeito ou efeito único. Com o objetivo de atingir tal efeito único, o contista
precisa ter claros os seus objetivos, pois de outra forma não conseguirá alcançá-
los devido à limitação do tempo e espaço. De acordo com Cortázar,
O contista sabe que não pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo como aliado, seu único recurso é trabalhar em profundidade (...). O tempo e o espaço no conto têm que estar como que condensados (...) (CORTÁZAR, 1974, p. 152).
Vale observar que tais objetivos passaram mais recentemente a ser
propositadamente frustrados por alguns escritores, que, questionando as
definições clássicas, não buscam nem efeito único e tampouco condensação.
Julio Cortázar defende que um dos grandes instrumentos que auxiliam na
provocação do interesse no leitor de um conto é o acontecimento – no conto vai
ocorrer algo, e isso será intenso. O que ele entende por intensidade “consiste na
eliminação de todas as idéias ou situações intermediárias, de todos os recheios ou
fases de transição que o romance permite e exige” (CORTÁZAR, 1974, p. 157).
Os contos aqui analisados dialogam com tais características, e também
possibilitam múltiplas interpretações, dependendo da abordagem que o leitor ou
crítico utilizará para interpretar as representações construídas. A partir do caminho
teórico e crítico que estamos traçando desde as primeiras etapas deste trabalho,
iremos analisar os dois contos que compõe nosso corpus por perspectivas que
considerem os elementos raciais, étnicos, culturais, assim como as relações
familiares e a peculiar organização dessas que afeta a forma como as
personagens interagem no mundo.
Vale destacar que, para os escritores indígenas, a literatura escrita, hoje,
tornou-se mais uma forma de preservar antigas estórias orais, agora
reconstruídas, alimentando narrativas contemporâneas a partir de paradigmas
bastante diversos daqueles de origem anglo-saxônica.
3.2 – “Watermelon seeds”: a semente insistente
Em “Watermelon Seeds” (Sementes de Melancia), a estética diaspórica é
ilustrada pelas personagens, marcadas por diferenças que as marginalizam dentro
de seus grupos sociais. Lois, a protagonista, tem 16 anos, é mexicana pelo lado
da mãe e polonesa pelo lado do pai, e espera um filho de Donald, índio da tribo
Chippewa, que lutou no Vietnã e recebe uma pensão do exército por ter ficado
incapacitado para o serviço militar durante a guerra. Eles moram juntos em uma
cidade não citada dos Estados Unidos; tudo indica ser uma metrópole, onde eles
são vistos como marginais, sendo discriminados por serem pobres, não-brancos, e
ainda terem essa relação amorosa diferenciada – ela tem 16 anos e ele 30. A
outra personagem de relevância no texto é a mãe de Lois, que inicialmente
percebia a filha como um futuro potencialmente promissor, caso não tivesse
deixado de estudar para dar continuidade ao romance com Donald.
O conto é narrado em primeira pessoa, por Lois, marcada pelo gênero e
pela etnia de forma a ser identificada pelo grupo social como inferior. Essa marca
é construída através da estória pelos olhares da sociedade sobre ela, inclusive
pelo olhar da mãe e de Donald. Lois estudou por um certo tempo em uma escola
onde era marginalizada por não ser branca como a maioria das outras
adolescentes, e por não ter o mesmo nível social delas. Em uma das passagens
que retrata tal discriminação, ela é levada ao banheiro feminino por três meninas
brancas da escola que cortam e descolorem violentamente seu cabelo, exigindo
que ela, Lois, se encaixe e aceite ser chamada ironicamente de “white
mexican”(WS, p. 37)9.
No que se refere às relações de gênero no setor privado, Lois é subjugada
por Donald, seu companheiro, que é extremamente machista e usa o poder
construído pela sociedade patriarcal para mantê-la sempre em um estado de
submissão em relação a ele; mesmo não pertencendo ao grupo dominante devido
às suas características étnico-raciais, Donald se apropria dos valores da
sociedade hegemônica a fim de usufruir dos direitos masculinos, seu pequeno
“privilégio” dentro do mundo marginalizado em que está inserido. Ele também
parece culpar Lois por estar grávida, sempre usando palavrões quando se refere à
gravidez ou à criança, dizendo que o bebê está condenado a ser um fracasso por
causa da família e da criação que terá. Percebe-se aqui que Donald já internalizou
os valores da sociedade dominante, não conseguindo ver nenhum futuro nem para
seu relacionamento com Lois e, muito menos, para o fruto do amor entre os dois.
A mãe de Lois também expressa seu descontentamento e decepção com a filha
em várias partes do conto, principalmente quando compara sua vida a de Lois,
que, segundo ela, também perderá todas as oportunidades por causa da gravidez
prematura. “Prenha aos dezesseis, isso é muito triste.”10 (WS, p. 29) Ambos, mãe
e namorado, apenas reforçam a idéia de que todos eles não tem valor nem saída
dentro da engrenagem em que estão inseridos.
9 Todas as referências ao conto “Watermelon seeds” serão apresentadas daqui por diante como WS, seguidas do número de página. 10 Bagged at sixteen, that’s really sad.”
Vale observar que em “Watermelon Seeds” as três personagens
aparentemente ou superficialmente correspondem ao estereótipo imposto às
minorias, especialmente dos povos colonizados, tidos como preguiçosos, rudes ou
pouco lógicos segundo o discurso colonialista, aparentemente não se encaixando
na sociedade hegemônica por terem essas características intrínsecas e quase
irreversíveis. No conto isso é claramente colocado e, ironicamente, a autora
constrói sua estória de forma tal que a personagem principal, Lois, que seria a
mais marcada e prejudicada pela condição em que se encontra, é a mais
consciente, sensata e inteligente, o que se percebe através dos pensamentos que
chegam ao leitor através da própria voz da protagonista-narradora, em uma
espécie de monólogo interior. Mesmo em relação à gravidez ela consegue ter
considerações lógicas, pelo menos no início do texto:
Às vezes quero tirar esse bebê de dentro de mim antes que ele esteja vivo, respirando e querendo coisas demais. Arrancá-lo antes que deixe de ser semente. Nunca quis que Donald colocasse esse bebê dentro de mim. Já é muito difícil só nós dois.11 (WS, p. 28)
O modo de ver o que resultará de tal semente, aparentemente fadada ao fracasso,
parece ser aqui determinante, aspecto que será rediscutido no final do conto. Lois
não romantiza a maternidade, sabendo que tal estado não a arrancará das
dificuldades que enfrenta.
O meio cultural, marcado pela cultura norte-americana de massas, é
ilustrado através da função desempenhada pela televisão, com programas e filmes
11 “Sometimes I want to take this baby out of me before it’s alive and breathing and wanting too much. Catch it before it grows from being a seed. I never wanted Donald to put this baby in me. It’s hard enough just the two of us”.
que se repetem ao longo do conto. Tanto Lois quanto sua mãe foram tragadas
pela cultura de massas, assistindo e assimilando o conteúdo de programas
populares tais como os de Oprah Winfrey, com suas explicações psicológicas e de
auto-ajuda, como das novelas, entre as quais “Dinastia”. Através de referências ao
longo do texto percebe-se que as personagens mostram familiaridade com tais
programas e/ou séries – sempre os mais populares, demonstrando também um
desenraizamento de suas culturas de origem. Assim como as duas mulheres,
Donald também passa muito do seu tempo em frente à televisão, principalmente
assistindo jogos esportivos, enquanto bebe com dois amigos igualmente indígenas
- Glen e Edsel.
As revistas e jornais citados ao longo do conto, outra marca da cultura
estadunidense, preenchem o espaço entre as linhas do conto, aqui como forma ou
possibilidade de inserção. Em certa passagem, Lois compra uma revista para
adolescentes quando vai à praia e pensa “[...] Estou dividindo a areia com
centenas de pessoas da minha idade que nem suspeitam que sou uma intrusa.
Não sou o que aparento ser”12 (WS, p. 41). Isso demonstra que a revista, no caso,
Teen Magazine, exerce grande influência na construção do sujeito adolescente
ideal imaginado por Lois. Ela tenta atingir certo nível de inclusão através da
imitação de hábitos, utilização de marcas e lugares que freqüenta. Além de usar a
revista como um símbolo de pertencimento, Lois constrói sua aparência para se
encaixar nos moldes sociais hegemônicos e poder ir à praia como uma “garota
12 “I am sharing the sand with hundreds of people my age who don’t even suspect that I’m an intruder. I’m not what I seem”.
normal”. A Teen Magazine exerce o papel de passaporte, permitindo, aos olhos
da personagem, sua inclusão, ainda que restrita e temporária.
Ao final do conto, Lois está prestes a dar a luz, mas continua achando que
o bebê será condenado, quase amaldiçoado por nascer em tais condições sociais
e culturais. Todos, inclusive ela própria, acredita que o bebê não terá sorte muito
maior do que os que o geraram e provavelmente será a ruína da família.
“Watermelon seeds” (sementes de melancia) é a referência que Lois faz aos olhos
do bebê, ou seja, como ela os percebe em um sonho, olhos vazios e secos,
diferentes dos olhos do pai, que são “olhos quentes como o solo marrom.”13 (WS,
p. 51). Contudo, poderia se considerar que, contraditoriamente à crença racional
de Lois de que seu filho não terá melhor sorte do que qualquer membro de seu
grupo, ao vincular os olhos do filho a sementes de melancia, de acordo com o
título do conto, inconscientemente ela o imagina como algo fértil, que crescerá e
frutificará em qualquer solo, por mais árido que esse seja. Em seu íntimo, ela
prefere desejar que o filho vingue, e ele vingando, poderá mudar as expectativas
de todos os outros sujeitos a ele vinculados.
O conto escrito por Power, pessimista e triste em seu tom, retrata
problemas e dificuldades que índios e mulheres vêm enfrentando como grupos
historicamente discriminados pela cultura ocidental. Superficialmente o conto
apenas apresenta um retrato de tal situação; no entanto, cada leitor tem a
oportunidade de desvendar a crítica sutil construída pela autora. Na verdade,
extremante sagaz é o olhar que Power, via narradora, deposita sobre a sociedade 13 “Warm like brown soil.”
dominante. Essa sociedade hegemônica marginaliza pessoas que não se
encaixam em seus padrões étnicos, econômicos e sociais, tentando sustentar os
valores atrelados a uma minoria privilegiada (apesar de se considerar maioria),
visando sempre manter o poder e o controle sobre o “diferente”, o divergente,
aquele que não reflete sua própria imagem.
Assim, “Watermelon seeds” constrói esses “outros” da sociedade
estadunidense por novos ângulos, conseguindo retratá-los a partir de suas
próprias perspectivas. O objetivo parece não ser o de idealizar os sujeitos não-
hegemônicos, mas de dar a esses a oportunidade de se auto-definirem e
representarem, pelo menos literariamente.
3.3 - “First fruits”: a origem dos frutos
Ao contrário de “Watermelon seeds”, este conto, “First fruits” (Primeiros
frutos), não é tão profundamente pessimista no que se refere às possibilidades
oferecidas a sujeitos definidos como não-hegemônicos dentro da sociedade
estadunidense. A personagem principal, Georgiana, apesar de enfrentar conflitos
e choques culturais, dá início à estória a partir do dia de sua chegada a Harvard,
onde deverá permanecer por alguns anos estudando. Dessa forma, em “First
fruits”, a atmosfera descrita pela protagonista converge essencialmente para o
conflito de identidades, de histórias e estórias que a protagonista passa a perceber
após sua inclusão no mundo universitário. Graças a forma como o conto é
construído, inicialmente apresentando relatos oficiais sobre a origem de Harvard,
acaba aproximando o(a) leitor(a) lentamente do conflito experienciado por
Georgiana.
O conto inicia com um passeio de apresentação pelo campus da Harvard,
apresentação essa dedicada aos familiares e estudantes recém-chegados. Entre
os calouros está a personagem principal, Georgiana, uma estudante de cerca de
dezoito anos, de origem indígena, e seu pai, Melvin Shoestring, um músico que se
auto-define como “Sioux puro” (FF, p.113)14. Durante o passeio, o pai de
Georgiana indaga a guia sobre um prédio que fora construído em Harvard no
século XVII, destinado aos nativos norte-americanos que eram trazidos para
serem educados. Em suas mãos está o livro de Alden T. Vaughan’s, New England
frontier: puritans and indians 1620-1675, que faz referências ao tal prédio e a
alguns alunos que ali estudaram. A guia confessa nunca ter ouvido falar no prédio
nem no fato em si. Assim, parece claro que a apresentação oficial de Harvard
mantém apenas dados relevantes aos olhos da história oficial da instituição,
omitindo, dessa forma, outras versões sobre sua fundação.
Power aqui está jogando com os significados relativos ao que é factual,
histórico. O livro de Vaughan citado no conto realmente foi publicado. Contudo,
essa versão ou esses dados da história não permaneceram. Em outra passagem
a própria guia diz que muitos fatos que descrevem o momento de fundação da
Harvard foram inventados. Historicamente, Harvard foi realmente criada para a 14 O conto “First fruits” aparececerá citado com FF, seguido do número da página.
educação de filhos de colonizadores, em geral puritanos, mas também para
impulsionar a educação dos índios, geralmente filhos daqueles indígenas que
tinham ido morar em cidades e queriam se integrar ao meio social e cultural
dominante. Em 1650 foi terminada a construção de um prédio exclusivamente
para abrigar os estudantes nativos, sendo que inclusive foi feita uma campanha de
doações baseada na idéia de que os doadores estariam também colaborando com
a inserção dos nativos ao meio educacional dos puritanos. Henry Dunster,
também citado no conto, foi um religioso puritano que se tornou diretor da
instituição a partir de 1640. Como é sabido, os puritanos, e não apenas eles,
acreditavam que se os indígenas fossem educados, suas almas também seriam
convertidas. Assim, a educação era vista como possibilidade de homogeneizar os
sujeitos que viviam nas colônias e aldeias da época.
Trazer para o conto uma história com alguns elementos do mundo real ou
extra-literário, justapondo tais dados ao mundo imaginário, representativo, parece
ter indicar um objetivo por parte de Susan Power no sentido de questionar
qualquer “versão histórica” apresentada como definitiva ou única no que se refere
a construções do passado.
Georgiana é a narradora-personagem, sua voz sendo utilizada como forma
de inserir o(a) leitor(a) na ação, participando e reconhecendo os conflitos internos
pelos quais passa uma garota nas suas condições. Essa, para Cortazar, constitui
a melhor forma de contar histórias, pois “narração e ação são aí uma coisa só”.
(CORTÁZAR, 1974, p.230) O drama de Georgiana é o de como se adaptar à nova
vida, buscando a integração ao novo meio, mas sem apagar suas origens, sua
diferença cultural.
As primeiras informações que a protagonista teve sobre Harvard vieram
através das histórias que seu pai contava sobre a universidade, histórias que em
sua essência são mais espirituais, menos pragmáticas do que as contadas pela
guia durante o passeio de reconhecimento do campus. Harvard é apresentada aos
calouros de forma fria e formal. Paralelamente a esse passeio formal, Georgiana
completa um outro passeio com seu pai, seguindo a “outra” história que esse lhe
apresenta. São dois pólos que aqui já representam os dois mundos pelos quais
circulará nossa protagonista, que insistirá em encontrar seu espaço dentro desses
mundos, bem como sua própria identidade.
Esses dois mundos paralelos se destacam ao longo de todo o conto: de um
lado existe a formalidade, seriedade e individualismo inerentes a uma instituição
cujas tradições e sistema de ensino foram consolidados a partir do
conservadorismo puritano. Paradoxalmente, Georgiana traz a tradição de um povo
baseada em princípios diferentes, em outra cosmovisão. Para ela, bem como para
tantos outros americanos influenciados pela cultura indígena, tudo ao seu redor
está vivo e participa ativamente da vida de cada indivíduo, sendo o tempo
percebido como circular, interligando todos os seres. "Fui ensinada a acreditar que
o tempo não é uma linha, mas um círculo que gira sempre para frente, em que
tudo está conectado e é eterno". (FF, p.127)15
Após tomar conhecimento através de seu pai sobre o primeiro estudante
indígena a se graduar em Harvard, Caleb Cheeshateaumuck, Georgiana se sente
ligada a essa pessoa e influenciada por sua lembrança e posterior “presença” ao
final do conto, como se ele estivesse ao seu lado nessa nova etapa de sua vida.
Toda essa linha de pensamento dela se baseia nos preceitos indígenas, segundo
os quais o universo e todos seus aspectos se relacionam. "Nessa cosmovisão,
estou aqui porque Caleb veio antes de mim, e ele veio para me antecipar. Nós
estamos ligados através do tempo e eu o reconhecerei quando o encontrar"16. (FF,
p.127)
Apesar de a cultura indígena ser marcante na formação de Georgiana,
algumas passagens retratam um leve titubear a esse respeito, como se a
influência da cultura dominante a colocasse em dúvida sobre sua história e
origem. Contudo, ela não consegue eliminar o sobrenatural de suas práticas,
afirmando que não há como fugir de choques culturais inevitáveis:
"Com base em tudo que já li, sei que não devo acreditar nesses espectros, mas acredito. (...) Acredito e não acredito porque sou uma Dakota e para continuar sendo indígena nesse mundo temos que aprender a equilibrar as contradições"17. (FF, p.120)
15 “I was taught to believe that time is not a linear stream, but a hoop spinning forward like a wheel, where everything is connected and everything is eternal”. 16 “In this cosmology, I am here because Caleb came before me, and he was here in antecipation of me. We are bonded together across time, and I will recognize him when I see him”. 17 “From all my readings I know I am not supposed to believe in these specters, but I do. (...) I believe and disbelieve in them because I am a Dakota, and to remain iindian in this world one must learn to accomodate contradictions”.
Portanto, ao adentrar pela primeira vez no novo quarto que ocupará no dormitório
universitário da Harvard, Georgiana e o pai queimam tabaco, prática indígena que
prevê a eliminação de maus espíritos, conforme ela reconhece: "Nós já
incensamos o quarto com tabaco sagrado para expulsar qualquer mau espírito
que possa ter permanecido por aí"18. (FF, p.118) No entanto, ela percebe que "(...)
suas orações, feitas em forma de fumaça e que foram enviadas diretamente para
as águias, não conseguiram expulsar o mal, mas sim, conclamaram uma
variedade de espíritos"19. (FF, p.119) Ou seja, aparentemente o ritual despertou
espíritos indígenas adormecidos, trazendo outras presenças inesperadas para
perto dela. Esse acontecimento antecipa outras experiências espirituais que a
protagonista vivenciará ao longo do texto.
São apresentadas diferentes relações entre Georgiana e seus “outros”. A
primeira é a estabelecida entre a mesma e seu pai, que foi o responsável por ela
ter estudado, mesmo que de forma autodidata, culminando em seu ingresso em
uma das melhores universidades dos Estados Unidos. Contudo, além de ter
determinado sua formação escolar, seu pai também a introduziu nas tradições
nativas americanas, levando-a consigo em viagens que lhe permitiram conhecer o
vasto território estadunidense, várias culturas e diferentes reservas indígenas.
Dessa forma, aparentemente foi o pai quem a preparou para a vida no entre-lugar,
no espaço intermediário, de transição entre dois universos diversos.
18 “We have already smoked out my dormitory suíte with prayer tobacco to banish whatever evil may linger there”. 19 “(...) his prayers made of smoke sent directly to the eagles – has not expelled evil so much as invited a variety of spirits”.
O segundo relacionamento importante apresentado é o que se estabelece
entre Georgiana e Allegra. Allegra surge como sua colega de quarto,
representando para Georgiana uma típica jovem da camada mais privilegiada
norte-americana. Contudo, apesar das inúmeras diferenças entre as duas,
imediatamente reconhecidas por ambas, as duas jovens conseguem estabelecer
um sistema rico de trocas culturais. Obviamente nunca serão iguais, e,
exatamente por isso, uma consegue auxiliar e introduzir a outra em um novo
mundo.
Por vezes Georgiana tende a generalizar os brancos americanos pelo que
percebe em Allegra; contudo, em seguida cai em si e afirma: "Não posso pensar
em entender uma cultura baseada apenas no comportamento de um indivíduo"20
(FF, p.121). A amiga ajuda Georgiana na adaptação ao novo mundo, não só por
ser um mundo universitário, mas um mundo extremamente ocidentalizado e
privilegiado. Em determinados momentos Allegra parece até estar substituindo o
pai de Georgiana no que se refere às introduções a realidades diferentes,
preenchendo os espaços vazios deixados pela ausência paterna. "A presença dele
desapareceu, como a sábia fumaça esvaiu-se, e foi trocada pela do cigarro de
Allegra e seu cheiro de colônia"21.(FF, p.126) Além disso, Allegra a introduz a
hábitos tipicamente ocidentais, como a prática do jogging. Como Georgiana não
consegue entender seus propósitos (chegar a algum lugar?), Allegra lhe explica:
20 “I cannot presume to understand a culture on the basis of one person’s behavior”. 21 “His presence has faded, however, just as the smoke of burnt sage dissipated, was replaced by Allegra’s cigarette smoke and the fragrance of her cologne”.
"'Você pode chegar mais longe se for devagar'"22. (FF, p.125) Toda a passagem
ilustra uma situação de aprendizado, etapa que Georgiana gostaria de eliminar ou
superar rapidamente, o que simbolizaria sua ansiedade em encontrar seu lugar
naquela cultura um tanto desconhecida sua.
Ainda em outras passagens, Georgiana se refere à Allegra como uma
substituta da mãe já falecida. "Enquanto voltamos para o quarto, Allegra me
reprova como uma mãe"23. (FF, p.125) Na verdade, a figura da mãe é aqui
lembrada como alguém que prepara o ser em formação para a vida social mais
ampla; nesse sentido, a relação entre as duas moças é riquíssima, já que também
Georgiana introduz Allegra a experiências com as quais essa jamais havia
sonhado, como a dança indígena que realizam em conjunto.
Há momentos em que a voz narrativa expõe o livre pensamento de
Georgiana, trazendo seu conflito à tona, já que, ao tentar se integrar na cultura
hegemônica, a mesma não consegue fazer as ligações entre seu passado, o
mundo indígena, e o novo mundo que a cerca, as novas experiências a que é
exposta. "As coisas que mais significam para mim, que têm um peso enorme, são
aquelas que estão ausentes"24. (FF, p.130)
A partir dessa conscientização quanto a suas diferenças, sua forma
alternativa de ver o mundo é que Georgiana percebe que não pode esquecer o
que está, de alguma forma, dentro dela, fazendo parte de seu ser. A partir daí a
22 "’You can go farther if you go slowly’”. 23 "As we return to our room, Allegra scolds me like a mother”. 24 “The things that have significance for me, an extraordinary weight, are those that are missing”.
escrita, a produção literária, surge como alívio, como exercício de identidade. "Se
eu não consigo escrever sobre aquilo que vejo, irei registrar o que não vejo"25.
O ápice do conflito pessoal enfrentado por Georgiana é desencadeado em
conseqüência de uma tarefa escolar - o professor de produção textual pede que
descrevam suas experiências com o coração. "Onde está a chama? (...) Eu quero
que vocês olhem o mundo. Se observarem o comum perto o bastante, começarão
a ver o incomum. Digam-me o que vêem lá fora, não se preocupem com a
forma"26 (FF, p.129-130). É a partir da produção desse texto solicitado, trazendo à
tona a presença de Caleb, espírito de um índio que realmente teria estudado na
Harvard, é que Georgiana consegue trazer para o ambiente universitário outras
partes importantes do seu ser, de sua formação cultural, sentindo-se, a partir de
então, menos "ilegítima" ou "intrusa" no ambiente universitário.
Caleb e Georgiana representam a terceira relação interpessoal do conto,
cuja importância é essencial para o desenvolvimento da história. Essa relação só
pode ser costruída mais solidamente após o ingresso de Georgiana em Harvard.
Ela o procura pelos jardins da universidade e tenta estreitar os laços que os
conectam. "Estou a procura de Caleb Cheeshateaumuck"27 (FF, p.126). Aqui,
Caleb representa aquele que irá guiá-la pelo meio acadêmico, será capaz de
ensiná-la como se adaptar.
25 “If I cannot write with passion about the things I see, I will record what I don’t see”. 26 "Where is the fire? (...) I want you go forth and look at the world. If you observe the usual closely enough, it begins to look unusual. Tell me what you see out there, don't worry about form".( 27 "I am looking for Caleb Cheeshateaumuck".
Quando escreve sobre Caleb é que o momento de descobertas individuais
passa a tomar lugar. Sua presença é percebida por Georgiana em seu quarto,
fazendo com que ela não se sinta mais limitada a lugares ou espaços físicos.
Caleb aparece como alguém próximo, possivelmente para marcar o tipo de
relação cuja importância para o povo indígena é primordial, ou seja, os laços
familiares. Também marcante é o fato de Caleb apenas permanecer vinculado à
língua indígena nativa no contato com Georgiana, apesar dele ter estudado latim,
grego, hebraico e inglês, como que para enfatizar que as memórias de Georgiana
não serão apagadas devido ao convívio com a cultura ocidental. O encontro entre
os dois é marcado por simbologias culturais dos indígenas, de forma que
Georgiana tem a oportunidade de descobrir seu lugar em Harvard, bem como a
força de suas tradições de origem. É então que o processo de adaptação se inicia.
Ela encontrou as respostas que procurava e a partir de então saberá balancear as
duas culturas sem que crises identitárias a deixem alheia aos dois universos que
freqüenta.
Vale destacar que somente quando Georgiana lê o exercício de
composição devolvido, onde o professor anotou palavras repetidas nas margens
do texto, vários “sim”, terminando seu comentário com a frase – “sim, está vivo!” é
que ela consegue tocar novamente suas músicas de powows28, como uma forma
de autoafirmação. Após isso, ela se sente segura para celebrar uma pequena
cerimônia indígena em seu quarto, junto com suas amigas, sendo que a música
não só agrada às colegas, mas essas aceitam dançar com Georgiana. Georgiana
28 Festividades indígenas, com música, comida e danças típicas.
praticamente vivencia um momento de epifania, sentido uma integração perfeita
entre as colegas e ela mesma. Talvez aqui o sugerido é que, somente ao
exercitar sua própria identidade, ao vivenciar as coisas que lhe são valiosas é que
ela consegue estabelecer laços com quem difere. As diferenças aqui não são
apagadas ou escamoteadas, havendo possibilidades de coalizões.
"First fruits" são simbolicamente os primeiros indígenas a se graduar em
Harvard, como se fossem os primeiros frutos de tais povos que conseguiram
sobreviver em instituições hegemônicas, que aprenderam novos costumes,
construindo novas identidades que justapõem duas culturas fortes. O que é
percebido é uma adaptação, a construção da identidade baseada em diferenças,
que culmina na existência de sujeitos híbridos, vivendo entre as fronteiras culturais
do novo e velho.
3.4 - Sementes e frutificações da literatura e cultura indígena
As duas personagens principais dos contos analisados foram construídas
com a marca da hibridez, sujeitos inseridos em culturas em que o processo de
globalização teoricamente aproximaria povos diferentes, através da quebra das
fronteiras geográficas. No entanto, a marginalização é o fator principal que norteia
os contos, já que o diferente, não-hegemônico, permanece descentrado e
discriminado, implicando em sofrimento daqueles marcados como "minorias".
Obviamente as personagens representam esse papel através de grande
condensação devido à limitação de tempo e espaço da narrativa (conto). Assim, o
leitor percebe as personagens como foco central da estória. É perfeitamente
compreensível, portanto, que sejam colocadas em referência com a realidade
exterior à obra, “tomadas na sua função mimética” (CANDIDO, 2004, p.42).
Representam, desse modo, outras realidades que também compõem aquilo que
se chama comumente de “América”. Portanto, a literatura estadunidense deve
também representar e ser construída por essas outras identidades e visões de
mundo.
Lois, de "Watermelon seeds", apesar de ter companheiro e mãe ao seu
lado durante todo o desenrolar da estória, parece ser mais solitária do que
Georgiana, de “First Fruits”. Provavelmente por ser inquestionavelmente mestiça
(estadunidense, mexicana e polaca), rotulada como "Mexican", e viver em uma
situação em que a marca das fronteiras é mínima, uma vez que todos a sua volta
resultam de migrações e encontros étnicos: porto-riquenhos, mexicanos,
indígenas que buscam se inserir na sociedade norte-americana hegemônica,
sendo marginalizados também por sua condição econômica. Lois procura se
incluir em algum lugar: tenta estudar, mas é discriminada e sofre agressões; finge
ser uma adolescente da camada dominante, sendo incluída no primeiro contato,
apesar de interiormente ter consciência de que tudo é representação, e nesse
mundo representado se considerar "intrusa" (WS, p.41).
Ao roubar a bolsa de uma mulher, que aos seus olhos representa a
perfeição, Lois guarda para si apenas o dinheiro, devolvendo pelo correio o
restante dos pertences como um pedido de desculpas. Na verdade, o que ela mais
aprecia nas bolsas roubadas são as fotos pessoais que lhe parecem relatar
estórias idealizadas que nunca vivenciou. Contudo, maior do que o sentimento de
culpa pelo roubo é a sensação de poder que tal ato lhe confere. O ato de roubar,
possuir por um momento objetos íntimos de alguém e enviar depois o que não lhe
interessa financeiramente, dá a Lois um sentimento de controle sobre aquela
pessoa; como se pelo menos dessa forma ela tivesse algum poder decisório sobre
si mesma e os outros, já que em outras situações sente-se controlada pela mãe e
por Donald.
Também se percebe que esse não foi seu primeiro roubo, pela maneira
cautelosa como foi planejado: cuidadosamente escolheu a vítima, a forma de se
aproximar, tais fatores indicando ser essa a experiência de alguém que já praticou
tal ato outras vezes.
“... é importante encontrar a bolsa certa, da mulher certa. (...) Meus passos seguem sua sombra e então toco seu ombro. Ela acha que sou alguém querendo passar. (...) Estou há meio quarteirão de distância quando ela retoma sua voz, e não há mais como me alcançar”. (WS, p.34)29
Apesar de Lois sempre pensar sobre seu relacionamento amoroso, Donald
nunca demonstra amá-la. Na verdade, o que ele sente transita entre o amor e o
ódio, como as palavras tatuadas em seus dedos (hate, love). Em nenhum
momento ele diz que a ama ou odeia, sempre demonstrando sua indiferença,
brutalidade ou eventual carinho. Um dos únicos momentos em que Donald
29 “... it’s important to find th right purse belonging to the right lady. (…) I step on her shadow and touch her shoulder. She thinks I’m some guy making a pass. (…) I am half a block away before she gets her voice back, and there’s no catching me now”.
expressa seu afeto por Lois é quando balbucia “Você é tudo que tenho”30 (WS,
p.42), provavelmente outra faceta ambígua da relação entre eles, onde os
sentimentos e os compromissos estabelecidos não estão claros.
São essas construções dúbias que não existem em “First fruits”. A relação
entre o mundo e Georgiana é completamente oposta ao de Lois e seu mundo.
Marvin, seu pai, sempre a acompanhou, a manteve junto a si durante as viagens
pelas reservas indígenas, aproveitando o fato de ser músico para criar a filha em
contato com a cultura nativa, para que ela desenvolvesse traços sólidos dessa
tradição. E, mesmo perdendo a mãe drasticamente, essa falta não foi um
elemento catalisador que trouxesse resultados negativos. As personagens
relacionadas diretamente com ela (o pai, Allegra, Caleb) desempenham papel
positivo, como se fossem guias que auxiliassem seu caminho.
Enquanto para Georgiana as histórias contadas sobre Harvard e o incentivo
ao estudo que parte de seu pai a motivam, Lois reage de forma radicalmente
diferente no que se refere às investidas que a mãe faz no sentido de estimulá-la a
seguir uma carreira. Para ela, estudar não representa uma possibilidade de maior
inserção na sociedade, porque suas referências de estudo são mínimas, tendo
crescido em um gueto pobre de Chicago, onde a escola não era o centro da vida
social. Sua família, a mãe e Donald, não estudaram e, portanto, não servem como
modelos bem sucedidos nessa área, o que obviamente não resulta em motivação
para tentar seguir uma carreira. Mesmo quando a mãe tenta incentivá-la através
da análise de seus antigos boletins, Lois se mostra indiferente e demonstra buscar 30 "You're all I've got".
um meio de fugir do assunto, não argumentando, e sim, apenas desviando a
atenção e não demonstrando qualquer interesse no assunto. Quando, durante
uma conversa, em que a mãe tenta convencê-la a conseguir um diploma, fica
claro que Lois segue seu exemplo, “Você nunca terminou o seu”. 31(WS, p.47).
Georgiana, ao contrário, sempre teve contato com textos que
proporcionaram seu desenvolvimento intelectual, com estórias que o pai e outros
indígenas lhe contavam, bem como pelo fato de seu pai incentivá-la e procurar
mostrar à filha de forma adequada o caminho a ser seguido. Utiliza, para tanto, o
ato de contar que, pela tradição oral, levaria os ensinamentos dos mais velhos
para os mais novos.
Outro fator relevante para o paralelo entre as duas protagonistas é o
relacionamento entre elas e os personagens masculinos que estão a seu lado.
Georgiana, conforma mencionado acima, sempre acompanhou seu pai. Donald,
apesar de ser o namorado e pai do filho que Lois espera, não representa o ideal
romântico nem o homem verdadeiramente companheiro. Lois pouco o conhece,
não sabe sua história, a não ser poucos relatos que ele conta vez ou outra,
durante momentos de embriaguez. Tal atitude demonstra um distanciamento entre
os dois, que aumenta quando os meses passam e a barriga de Lois torna-se mais
evidente. “Donald me ignora quando minha barriga cresce. Ele passa mais tempo
com seus amigos”.32 (WS, p.43) E são esses amigos que parecem ter um
31 “You never got yours”. 32 “Donald ignores me when I finally start to show. He spends more time with his friends”.
significado maior para ele, já que as únicas pessoas que ele revela abertamente
amar são esses, enquanto bebem assistindo jogos na televisão.
Essas duas personagens de Power, portanto, apresentadas como jovens
mulheres enfrentando problemas relativos à identidade ou pertencimento, trazem
à tona um problema ainda sempre marcante para sujeitos pós-coloniais da
atualidade: como buscar inserção sem sofrer descaracterização. A literatura pode
certamente colaborar com a elaboração dessas questões, principalmente quando
construída pelo olhar daqueles sujeitos que mais sentiram as consequências da
aproximação de povos e culturas diferentes, no caso, os indígenas. Susan Power,
através da criação de personagens como Lois e Georgiana, colabora com essas
discussões literárias de fundo pós-colonial, nos mostrando uma nova face dos
Estados Unidos.
Conclusão
Nosso trabalho teve, entre outros objetivos, o de trazer à tona
representações diferenciadas (não-hegemônicas) tanto do feminino quanto do que
se compreende por sujeito indígena na contemporaneidade. Dessa forma, Susan
Power, autora que se encontra marcada por duas culturas, ou seja, a norte-
americana hegemônica, mais afinada com os modelos anglo-saxões, e a nativa,
que se embasa em estórias, mitos e tradições anteriores à invasão européia das
Américas, está perfeitamente capacitada para representar essa vivência entre
culturas, sendo um sujeito construído entre fronteiras culturais.
Roofwalker, livro onde estão publicados os dois contos analisados na nossa
pesquisa, é o segundo de Susan Power, impresso em 2002 e organizado em duas
seções. Na primeira, intitulada Stories, os contos ali inseridos foram categorizados
como estórias de ficção: na segunda, Histories, como histórias. Os dois contos
que enfocamos, "Watermelon seeds" e "First fruits" fazem parte da seção de
estórias. Ao rotulá-los dessa forma, Power parece indicar a não-correspondência
dos mesmos com o mundo extra-literário, já que as estórias, em geral, são tidas
como ficcionais.
No entanto, há certamente um jogo interessante que Power desenvolve, no
sentido de questionar a divisão entre o que se tomou ou foi aceito como história
oficial e o que foi interpretado como ficção ou invenção. Conforme já foi discutido
anteriormente, há inúmeros momentos em que as histórias e estórias se sobrepõe
e se influenciam ao longo do livro, problematizando os limites entre "verdade" e
"invenção". (Cf. SCHNEIDER, 2005, p. 189)
De acordo com Trinh T. Minh-há, depois que a história passou a se
preocupar apenas com os fatos como imutáveis, a qualidade mágica, intrínseca a
qualquer ato de revelar algo, se tornou exclusiva do fato de contar ficcional,
resultando em uma oposição entre ficção e fato, sendo a ficção sinônimo de algo
mentiroso (Minh-há, 1989, p. 119-21). Minh-há questiona essa divisão tão fixa
entre o que ocorre e o que se cria como estória, trazendo à tona a capacidade de
criação em qualquer contexto.
Quando se investiga os dados fornecidos pelos contos, percebe-se que
Power colocou elementos factuais em ambos. Em "Watermelon seeds" as
referências a programas de televisão, jornais, revistas, ao horóscopo diário, são
reais, assim como o bairro de Chicago e outros lugares por onde as personagens
transitam. Não é diferente em "First fruits": aqui Power tenta reconstruir, a partir do
olhar indígena, a vida em Harvard, com fatos que ligam o ficcional ao factual,
estabelecendo um jogo interessante entre realidade e ficção. Vários dados
fornecidos sobre a história de Harvard são verídicos e facilmente verificáveis em
fontes de confiança, como o site da instituição. Contudo, parte do que seria
"histórico" não aparece no conto, apenas em livros históricos e fontes específicas,
nunca no guia oficial da universidade. Portanto, a parte indígena da história de
Harvard foi suprimida e nem por isso deixou de existir, pelo menos aos olhos de
Georgiana e de seu pai. Sem dúvida há aqui uma clara intenção por parte da
autora em questionar a estabilidade da dita "história oficial". Dessa forma, a
inclusão de outras histórias na história oficial dos Estados Unidos certamente
modifica a imagem que se tem dessa nação.
Outra intenção nossa ao longo do trabalho foi questionar a formação
excessivamente fixa e limitada do cânone literário, sendo que, nesse sentido, nos
aliamos a tantos outros grupos não-hegemônicos inseridos em sociedades
patriarcais. Conforme Mary Louise Pratt, o conceito de cânone tem sido
questionado por historiadores literários a partir de bases empíricas:
Dois argumentos são particularmente fortes: primeiro, demonstraram que cânones, "eternos" como parecem ser em um determinado período histórico, não são de maneira alguma estáveis ao longo do tempo. (...) Segundo, críticos acadêmicos têm estudado como os cânones são socialmente determinados, pelas linhas que correspondem também a linhas hierárquicas. (Muitos concordam que os cânones são construídos pelos interesses e ideologias das classes dominantes, gêneros e raças, e simplesmente discutem que essas são as ideologias que eles próprios, como tradicionalistas, apoiam). (PRATT, 1998, p.86)33
Vários críticos acadêmicos acreditam que muitos textos são categorizados
como canônicos porque seguem o mesmo padrão de regras pre-estabelecidas,
enquanto outros, mesmo seguindo tal estrutura, são excluídos apenas por
questões de poder, como no caso de textos escritos por mulheres, que por muito
tempo não eram reconhecidos por sua qualidade (Cf. PRATT, 1998, p.87). Outros
críticos ainda consideram que textos literários produzidos por minorias não
seguem códigos estéticos típicos. Isso provavelmente acontece porque os textos
são sempre analisados sob o mesmo olhar, já contaminado por conceitos
sacralizados pela sociedade hegemônica, tornando difícil uma outra interpretação. 33 Two arguments have been particularly forceful: first, they have demonstrade that canons, "eternal" as they may seen in a given historical moment, are anything but stable over time. (...) Second, critical scholars have explored the ways canons and canonization processes are socially determined, along lines that correspond to lines of social hierarchy. (Many agree that canons are built around the interests and ideologies of ruling classes, genders, and races, and simply argue that these are ideologies which they, as tradiotionalists, subscribe to).
Portanto, além de extrapolar as representações do sujeito feminino indígena
mais frequentes na lteratura canônica, buscamos mostrar personagens fora dos
estereótipos influenciados negativamente por olhares da cultura dominante.
Assim, essas jovens mulheres criadas por Power nos permitem ver a mulher
indígena sob outras perspectivas, não idealizadas ou romantizadas, mas abertas
ao jogo de influências que recebem como membros que são de sociedades
multiculturais.
Para nós, pesquisadoras e críticas do dito "Sul" (anteriormente chamado de
"Terceiro Mundo"), torna-se importante desconstruir a visão hegemônica
geralmente vinculada às identidades estadunidenses. Sem dúvida, nos interessa
dialogar com visões de mundo alternativas construídas como parte da própria
produção literária daquele país, o que permite a criação de novos contatos e
alianças entre literatura e cultura brasileira e estadunidense.
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