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Alvaro
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Álvaro Vieira Pinto
CIÊNCIA E
EXISTÊNCIAProblemas filosóficos da pesquisa científica
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CAPÍTULO VI
Teoria da Cultura
SUMÁRIO
A ciência, aspecto particular da realidade geral da cultura. A cultura,
criação humana resultante da resolução da contradição principal do homem,
aquela existente entre ele e a natureza. Cultura e hominização. As noções de
“instrumento" e de “técnica”. A cultura como produto do processo produtivo. A
cultura de bens de consumo e de bens de produção. O homem como bem de
produção. O problema histórico da evolução da cultura. Acumulação e
apropriação da cultura. A cisão da cultura nas sociedades divididas em grupos
antagônicos. A divisão social do trabalho. A cultura, mediação de toda
realização humana. Caráter inédito do existir do homem em razão de ter de ser
o criador da cultura, o animal culto. Mediação recíproca entre coisas e ideias. A
ideia como criação.
NENHUM CONCEPÇÃO da gênese da ciência e da metodologia da
pesquisa científica será autêntica se não procurar o princípio da ciência no
exame do seu desenvolvimento partindo de um terreno imensamente mais
vasto, o da cultura em geral. Antes de indagar do que é a ciência, e como se
constitui, precisa-se ter entendido o significado da cultura em geral, do qual a
criação científica representa um caso particular. Transferida, assim, para uma
pergunta de âmbito mais geral a questão da origem do saber científico, não
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podemos esperar que outro método nos valha senão aquele mesmo que até
aqui temos empregado, e que explica toda manifestação existencial do homem
pelo processo de sua origem, de sua formação histórica, a partir das condições
objetivas do ser que a produz, das necessidades e funções que possui e das
relações com a natureza circunstante. A cultura é uma criação do homem,
resultante da complexidade crescente das operações de que esse animal se
mostra capaz no trato com a natureza material, e da luta a que se vê animais,
mesmo os de complexidade orgânica relativamente alta, não produzem a
própria existência, mas apenas a conservam com, o uso dos instrumentos
naturais de que seu corpo é dotado e que lhes permitem um conhecimento da
realidade suficiente para a procura e identificação do alimento, o encontro de
condições de abrigo e a tomada de atitudes defensivas, que lhes asseguram,
com caráter constante, as condições de vida.
No homem esta situação se alterou; a capacidade de resposta à
realidade cresceu de intensidade e qualidade, porque, ao longo do processo de
sua formação como ser biológico, as transformações do organismo lhe foram
permitindo, em virtude do desenvolvimento da ideação reflexiva, inovar as
operações que exerce sobre a natureza, e com isso praticar atos inéditos,
desconhecidos no passado da espécie. Tais atos vão-se acumulando na
consciência comunitária, graças à hereditariedade social dos conhecimentos
adquiridos, porque, em virtude dos favoráveis resultados que propiciam, são
recolhidos, conservados e transmitidos de uma geração a outra.
A cultura é, por conseguinte, coetânea do processo de hominização,
não tem data de nascimento definida nem forma distintiva inicial. A criação da
cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo
processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a
principalmente social na segunda, sem contudo em qualquer momento
deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem
reciprocamente. A realização biológica do ser em curso de hominização
determina as possibilidades de criação cultural que lhe são dadas em tal fase,
mas estas, ao se realizarem, contribuem para o desenvolvimento e
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aperfeiçoamento das qualidades orgânicas, até o momento em que impelem o
animal a transformar o modo de existência, tornando-o um ser produtor, a
princípio inconsciente e depois consciente, de si mesmo. A complicação do
modo de vida do homem em surgimento impõe-lhe a necessidade da ação
coletiva na realização do seu ser, o que significa a passagem à etapa social da
produção da cultura e sua diversificação por efeito da aquisição cada vez mais
vultosa de conhecimentos, que florescerão em obras de arte e nos mais
variados produtos culturais. À medida que o homem, em curso de se auto-
realizar, domina a natureza, colhendo experiências novas e atuando com
respostas originais aos desafios do ambiente, vai criando instrumentos
inexistentes anteriormente, desenvolve técnicas sem precedentes, a partir da
instrumentalização dos objetos jacentes ao seu redor, porém só transformados
em instrumentos quando a ideação em surgimento os utiliza pondo-os ao
serviço de finalidades, que começam então a ser percebidas da ideia da ação
intentada. A cultura é, pois, o processo pelo qual o homem acumula as
experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de
efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em ideias as
imagens e lembranças, a princípio coladas às realidades sensíveis, e depois
generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural.
O mundo da cultura destaca-se, assim, aos poucos do mundo
material e começa a tomar contornos definidos no pensamento humano. Desde
o alvorecer está composto de duas ordens de realidades, oriundas da mesma
operação, a conquista do meio circunstante, o incremento da dominação do
mundo pelo homem em ato de autoproduzir se: os instrumentos, utilizados de
começo em estado natural, e logo a seguir intencionalmente fabricados; e as
ideias, que surgem no pensamento em correspondência com os resultados da
atividade sobre a natureza, da percepção mais aguda e concentrada de
aspectos cada vez mais particulares das coisas e fenômenos, da descoberta
de propriedades dos seres. Desde os primórdios a cultura tem esses dois
componentes: os instrumentos artificiais, fabricados para prolongar e reforçar a
ação dos instrumentos orgânicos de que o corpo é dotado a fim de opor-se à
hostilidade do meio; e as ideias, que correspondem à preparação intencional,
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sempre social, e à antevisão dos resultados de tal ação. Aparece igualmente,
como expressão da ligação entre os dois componentes, a técnica, enquanto
correta preparação intencional do instrumento e codificação do seu uso
eficiente. O importante está em compreender-se que a cultura é uma
manifestação histórica do processo de hominização e por isso se desenvolve
coetâneamente com este último, até os graus superiores, em que o caráter de
“humano” se apresenta como um conteúdo de valor ético. A cultura constitui-se
por efeito da relação produtiva que o homem em surgimento exerce sobre a
realidade ambiente. Com este conceito apreendemos a noção culminante da
teoria da cultura: a que nos mostra a cultura indissociável do processo de
produção, entendido este, em sentido supremo, como produção da existência
em geral. E em dois sentidos: produção do homem por si mesmo, mediante a
ação exercida sobre a natureza para se perpetuar como espécie que evolui e
adquire progressivamente a capacidade ideativa; e produção dos meios de
sustentação da vida para o indivíduo e a prole. Estes últimos sendo meios para
a produção de bens de consumo indispensável, a cultura os incorpora e, por
força da crescente capacidade reflexiva, conduz ao seu incessante
desenvolvimento.
Interpretada a cultura como produto do processo produtivo, a noção
decisiva é a sua dupla natureza de bem de consumo, enquanto resultado,
simultaneamente materializado em coisas e artefatos e subjetivado em ideias
gerais, da ação produtiva eficaz do homem na natureza; e de bem de
produção, no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de
subjugação da realidade pelas ideias que a representam, constitui a origem de
nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos
de atos a realizar conceber novos instrumentos e novas técnicas do exploração
do mundo, e criar ideias que significam finalidades para as ações a
empreender. Por um lado, a cultura existente em cada momento histórico sob a
forma de ideias gerais, de teorias sobre a realidade e de objetos fabricados de
acordo com a técnica então conhecida, é absorvida pela geração presente,
que, munida dela, estará melhor equipada para enfrentar a necessidade de
aproveitamento dos recursos naturais e descoberta de outros; e neste sentido a
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cultura é um bem de consumo, que a sociedade obrigatoriamente, mediante a
educação, distribui a seus membros. Mas, por outro lado, a cultura, sendo o
acervo de conhecimentos e de instrumentos que vão permitir a exploração
coletiva do mundo pelo homem, revela-se claramente um bem de produção,
um meio de operar sobre a natureza, uma força social a serviço da
sobrevivência do indivíduo e da espécie. Observemos que os dois aspectos da
cultura coexistem sempre em toda sociedade, pois são inerentes ao ato da
existência humana.
Em certos tipos de sociedade, porém, aqueles em que há classes
distintas e com oposição de interesses, os dois aspectos não se encontram
igualmente distribuídos. Daí resulta a situação em que apenas uma parte, um
grupo minoritário, por ser o detentor da cultura enquanto bem de produção,
forma a classe daqueles que têm o privilégio de conceber as finalidades
sociais, e por isso aparece como “culto”, enquanto o restante, as massas, que
somente manejam os bens de produção sem os possuir e só escassamente
absorvem os bens de consumo, adquirem a enganosa aparência de parte
“inculta” da sociedade. O operário que maneja uma perfuratriz para romper
uma rocha está se valendo de um instrumento no qual se resume todo um
processo cultural, que explica a sua descoberta e produção industrial: de um
lado, é um bem de consumo para aqueles que dele precisam em função das
finalidades a que se destina, e de outro, é um bem de produção não apenas
em relação ao fabricante, que o confeccionou, mas ainda com relação ao
próprio consumidor, pois este também o emprega para dele tirar resultados
úteis.
A dupla-realidade da cultura, de ser por uma de suas faces
materializada em instrumentos, objetos manufaturados e produtos de uso
corrente, e por outra de estar constituída por ideias abstratas, concepções da
realidade, conhecimentos dos fenômenos e criações da imaginação artística,
correlacionadas uma e outra face pelas respectivas técnicas, leva o pensador
ingênuo a desorientar-se ao conceituá-la, pois tem dificuldade em utilizar o
método necessário para chegar à formulação racional do plano cultural em
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totalidade. A multiplicidade dos produtos culturais desnorteia a visão do
pesquisador e frequentemente os conduz a explicações ingênua metafísicas,
formalistas, porque lhe falta o ponto de vista genético. Revela-se incapaz de
fazer o objetivismo histórico da cultura, único procedimento que conduz à
compreensão da sua natureza. Perde- se num universo de especulações. A
cultura aparece-lhe, no estado atual, como um infinito complexo de
conhecimentos científicos, de criações artísticas, de operações técnicas, de
fabricação de objetos, máquinas, artefatos e mil outros produtos da inteligência
humana, e não sabe como unificar todo esse mundo de entidades, subjetivas
umas e objetivas outras, de modo a dar a explicação coerente que una num
ponto de vista esclarecedor toda esta extrema e diversificada multiplicidade.
Não dispondo senão de uma concepção formalista da realidade, estará fadado
a transviar-se, pois pretenderá unir o mundo de conceitos que colhe das
multiformes manifestações culturais correlacionando mecanicamente cada
conceito a uma delas, mediante a análise sempre mais sutil e aprofundada do
seu conteúdo, com o que dificulta a operação da síntese explicativa, que é uma
das finalidades do conhecimento, e que tem em vista, mas julga consistir na
aglomeração dos dados, na comparação deles extração das regularidades
significativas, ou seja, reduz à atividade meramente indutiva. Este caminho é
impraticável para conduzir à explicação racional do fenômeno da cultura, o que
bem se documenta pela variedade e divergência das concepções que a
propósito dela têm sido formuladas.
Faz-se mister assumir o ponto de vista genético, ligado a uma
filosofia existencial e servido pela lógica dialética, para que se descubra a
verdadeira realidade da cultura e seu fundamento no processo da produção.
Este processo, porém, não pode ser entendido apenas por uma das faces, a
produção dos bens de consumo, de que o homem necessita; tem de ser
entendido igualmente pela outra face, a produção do próprio homem, em
função da cultura que em cada época adquiriu.
Neste sentido, o homem é ele próprio um bem de produção.
Deparamo-nos aqui com a raiz inicial do problema social da relação dos
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homens uns com os outros. Este conceito é da máxima gravidade, pois daqui
deveremos partir para o entendimento da essência do fenômeno da alienação,
em toda a sua generalidade, e particularmente no aspecto que respeita à
cultura. O homem produz a cultura por uma necessidade existencial, para se
apropriar dela, pois é por meio dela que chega a postular as finalidades da sua
ação. O que se passa em tempos como os atuais, porém, e em sociedades
como a nossa é que, por motivo do rumo tomado pela estruturação social, o
homem em vez de se apropriar da cultura, de dominá-la, faz o inverso, aliena-
se a ela, transforma-a numa realidade entificada, superior a ele. Daí decorrem
duas consequências: o homem se aliena à cultura, só sendo reconhecido
“culto” aquele indivíduo que cultiva os valores culturais alheios; e por outro
lado, a cultura se corrompe na essência deixando de ser concreta, como
deveria ser por natureza, para se tornar abstrata. Quando dizemos que o
homem é um bem de produção queremos entender com isso que deve ser um
bem de produção de si mesmo para si mesmo, ou seja, que sua ação sobre a
realidade deve ser utilizada apenas em benefício de cada homem, para tomá-lo
mais humanizado na sua compreensão do mundo e nas relações com os
semelhantes; Se, porém, como de fato acontecerá, por motivos que no
momento não cabe elucidar com detalhes, o homem se toma um bem de
produção não para si exclusivamente, mas para outro, e portanto se converte
em instrumento de utilização alheia, desaparece a dignidade que o
caracterizava como produtor de si mesmo pela mediação da cultura que fora
criando e acumulando, e se estabelece um regime de convivência injusto e
desumano. Aparecem então nas comunidades sociais as desigualdades de
função dos homens no processo da hominização comum, ou, materialmente
falando, no processo da produção social dos bens de que todos necessitam e
que deveriam estar ao dispor de todos. Surgem então as classes sociais,
expressão da diferenciação no papel existencial desempenhado pelos homens
no processo produtivo de si mesmos e dos bens de que precisam para
subsistir. Estamos vendo que a cultura não pode ser explicada idealísticamente
identificando-a a um mundo abstrato de ideias e produtos de arte, nascidas da
pura reflexão do espírito. Esta concepção é ela própria um artefato cultural
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resultante de certo condicionamento social do pensamento, que esqueceu sua
origem no processo de formação do homem ao longo da evolução das
espécies animais. A cultura é uma realização do homem coetânea à realização
de si mesmo pela ação produtiva. Deveria ser apanágio da espécie, como tal,
ou seja, não existir diferenciada entre classes de indivíduos. Se esta
diferenciação constitui um fato patente e historicamente milenar, tem de ser
explicada. O problema consiste em indagar se a explicação que se possa dar
desta diferenciação é compatível com a explicação teórica geral aqui
apresentada, a qual mostra o desenvolvimento da cultura sempre apoiado na
base material da produção dos bens, sobre a qual o homem se vai constituindo
em espécie distinta, organizando a sociedade como condição de sobrevivência.
Parece-nos que a teoria exposta é compatível com a situação
observada no decurso histórico, onde se nota em certa fase a cultura bifurcar-
se e deixar de ser um bem geral consumível e produtivo ao alcance de todos
os homens, em igualdade, para se tornar privilégio de uso de alguns. A raiz da
separação de classes, como consequência da posição do indivíduo no
processo social da produção dos bens, está na natureza dual da cultura, que,
em suas manifestações, materiais e objetivas, é simultaneamente bem de
consumo e bem de produção. Com o evoluir da exploração da natureza e o
predomínio crescente do homem sobre as forças naturais, e em relação com a
multiplicação numérica dos componentes dos grupos comunitários, verifica-se
a ampliação dos conhecimentos culturais e dos bens deles resultantes, que se
vão juntando na sociedade e conduzem a diferenciações na apropriação desse
acervo cultural. O saber aumenta a produção de manufaturas e objetos de
consumo, e começa a ter lugar então um processo de especialização na
criação e apropriação da cultura, concomitante à divisão social do trabalho.
Este fenômeno é normal, pois a partir de certa fase, o volume da cultura impõe
a distribuição, com a consequente apropriação por grupos dentro da sociedade
e, no caso extremo, pelos indivíduos. Mas este processo, que, por ser de
distribuição da cultura, não deveria significar sua discriminação, se vê
corrompido pela introdução da desigualdade na apropriação do conhecimento e
dos bens materiais dele resultantes entre grupos sociais, que se destacam,
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divergem e a seguir se contrapõem uns aos outros. Em si mesma a
diferenciação na distribuição da cultura não significaria uma injustiça social,
pois apenas acompanha o curso da divisão natural do trabalho, mas ao
contrário seria o prosseguimento do processo do avanço do conhecimento, se
a cultura, depois de distribuída, continuasse sendo propriedade comum do
grupo e, portanto apenas acidentalmente dispersada nos indivíduos que a
possuem, porém permanecendo bem coletivo, produzindo para todos os
membros da sociedade os resultados benéficos de sua conservação. Não é
isto, entretanto o que historicamente ocorrerá. Por circunstâncias complexas, a
que não são alheias as diferenciações nos fatores naturais do meio, na
capacidade física e intelectual dos indivíduos e os conflitos de finalidades
estabelecidos entre eles, mas que têm como razão principal o modo de
participação de cada homem no trabalho da produção social, chega-se à
situação em que os bens culturais sofrem uma divisão. Aquele que
representam o aspecto de produção da cultura ficam em poder de grupos
minoritários da coletividade, resultando para estes uma acumulação de
riquezas que os faz, numa segunda fase, tomarem-se igualmente os
açambarcadores do consumo dos bens culturais, especialmente os de valor
suntuário, lúdico ou de pura fruição do espírito. Os bens que corporificam as
forças produtivas põem a seu serviço outros grupos sociais, que formarão a
grande maioria das comunidades humanas. Quando tal divisão se dá, a cultura
deixa de ser um bem igualitário nos dois aspectos, e o conhecimento,
particularmente as técnicas de fabricação, assim como os instrumentos de
operação sobre a realidade, entre os quais se contém particularmente as
próprias mãos humanas, ficam vinculados ao ato de produzir bens de consumo
que não serão consumidos pelos que os produzem diretamente, mas
apropriados pelo outro grupo, minoritário, que por possuir a propriedade da
cultura no aspecto produtivo enriquece-se espiritualmente ainda mais ao
acumulá-la no aspecto consumidor.
Dois fenômenos têm então lugar:
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a) de um lado, se no acervo cultural se contam tanto os instrumentos
materiais de transformação da realidade, as máquinas, as ferramentas, as
técnicas, as operações manuais de alteração das propriedades dos corpos,
quanto as ideias e as criações artísticas e ideológicas que tais operações
propiciam, e que depois servem para dirigi-las, tem-se em resultado que o
grupo social minoritário valoriza mais a apropriação desta segunda ordem de
bens culturais, que é exclusiva dele, porque a primeira lhe parece firmemente
assegurada em suas mãos. Por isso enaltece a posse das ideias e de produtos
ideais da cultura, e se julga “culto” apenas por este aspecto, enquanto os bens
culturais materiais, que exigem a operação direta sobre o mundo físico e
portanto o emprego da força muscular, são impostos pelas classes dominantes
às grandes massas que, por não ter a propriedade deles e só escassamente
consumir o que produzem, são consideradas “incultas”, porque apenas lhes
toca o trabalho produtivo nas modalidades mais duras e grosseiras. A falta de
propriedade jurídica, social, dos bens de produção termina por se converter
numa “propriedade” existencial do trabalhador, que, por isso, aparece “inculto”
aos olhos dos que detêm o usufruto da cultura, é evidente que o grupo dos que
trabalham e quase nada consomem da cultura que produzem especializando-
se no manejo dos instrumentos materiais, das técnicas produtivas, perde
contato com o outro lado da cultura, as ideias, o saber, a ciência, que ficam na
cabeça dos privilegiados, enquanto as ferramentas ficam nas mãos dos
trabalhadores. Os que detêm a exclusividade dos bens ideais da cultura,
porque já possuem a propriedade, também exclusiva, dos instrumentos
materiais da produção, apropriam-se do poder de ditar a destinação do
concebido, de definir a finalidade das ideias. Chega-se assim à cisão da
sociedade entre dois grupos desiguais, que, ambos, manejam produtos da
cultura, com a diferença apenas de que um, o minoritário e dominante, se
reserva a parte ideal da criação cultural, enquanto a imensa maioria se vê
forçada a apenas operar com os produtos materiais da cultura.
b) O segundo resultado desta diferenciação consiste em que os
bens materiais produzidos pelos que manejam os instrumentos materiais da
cultura são-lhes arrebatados e vão ser propriedade dos que detêm os valores
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ideais da cultura. Porém, com o prosseguimento da diferenciação a que
estamos aludindo, a divisão no processo cultural atinge o extremo da
desigualdade humana e da injustiça social. A classe que se apropriou com
exclusividade da parte ideal e subjetiva da cultura consegue, então, absorver
não apenas os produtos da fabricação dos que só manipulam os instrumentos
materiais, mas chega ao ponto de adquirir o homem enquanto tal, em sua
qualidade de instrumento produtivo, o que representa a forma suprema de
distorção na apropriação da cultura. É a era que, historicamente, teig
expressão mais crua no estatuto da “escravidão” a qual não desaparece, e sim
apenas se atenua, quando esta formação histórica evolui para outras formas,
por alguns aspectos mais humanizadas, por outros, porém, ainda mais brutais,
o feudalismo e o capitalismo. O fundamento ontológico da possibilidade desta
apropriação está em que o homem é naturalmente um bem de produção.
Deveria permanecer bem de produção de si para si, em comunidade igualitária
de ação cultural sobre a natureza. Mas será esta própria qualidade que irá
levá-lo ao cativeiro, que o tornará objeto de posse total por parte de outro
homem. Como bem de consumo para aquele que o possui, de um consumo
que consiste em ser produtor de bens de consumo, a realidade do escravo é
pois dual: de um lado, é consumido pelo senhor na qualidade de produtor do
que este necessita; e de outro lado, é efetivamente um produtor, porque age
diretamente na realidade natural, transformando-a, criando artefatos e objetos
de uso, apenas não em seu proveito e sim para gozo dos que o possuem na
condição de máquina viva..
Esta diferenciação tem considerável significação histórica e
existencial. Representa a cisão da cultura e a irreconciliabilidade entre seus
dois aspectos, nas sociedades em que persistem lado a lado classes
divergentes e antagônicas. O resultado deste fato histórico para a possibilidade
de surgimento e desenvolvimento da ciência, adquire profunda repercussão. A
cultura deixa de ser bem unitário da espécie, como vinha acontecendo no
processo em que esta começava a se gerar, e se divide em duas metades,
agora contraditórias. Por um longo período inicial da formação da ciência, uma
classe, nas pessoas do selecionado grupo letrado que a representam, apropria-
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se do aspecto subjetivo da cultura, torna-se dona das ideias e das finalidades a
lhes dar. Por isso, com predileção se ocupará delas, fazendo deste ofício a
justificação do seu papel histórico. Terá por função o conhecimento “puro”, a
descoberta e a combinação das ideias, o estudo dos processos de sua criação,
dos modos em que são pensadas, concatenadas, delas resultando outras,
novas. As teorias científicas são um dos produtos específicos de tal classe.
Essas teorias têm inevitavelmente de trazer a marca social de
origem numa classe que se desvinculou do trabalho direto na natureza, do
contato imediato com os corpos, para se dedicar à especulação sobre eles, à
explicação imaginativa dos fenômenos em que figuram e das abstrações,
especialmente as de caráter matemático e filosófico, a que dão lugar. A outra
classe, afastada da esfera ideal da cultura, tem por espólio os instrumentos de
operação no mundo físico, pelo trabalho que desempenha, mas em
contrapartida estará privada da possibilidade de investigar com fins científicos
os corpos e fenômenos que manipula, está impedida de voltar-se para eles
numa atitude indagativa, com o fim de descobrir propriedades ignoradas,
formar ideias a respeito das coisas e dos processos naturais, pois a obrigação
de utilizá-los na maneira habitual e estabelecida a conduz à rotina da produção
uniforme, ao embotamento do espírito indagador e crítico, o qual permanece
honraria da classe ociosa, que o emprega preferentemente para fins de
especulação abstrata. Com isso aqueles que conhecem as propriedades dos
corpos porque os manuseiam, tomam-se incapazes de chegar à conceituação
daquilo com que objetivamente estão em contato. A classe trabalhadora
permanece incapacitada para engendrar ideias porque se acha privada de
definir a finalidade, de dar a destinação das coisas que produz. Encontramos,
aqui a raiz da divisão histórica do trabalho nas formas intelectual e manual, que
se projeta objetivamente numa divisão entre camadas sociais. Uma delas, por
direito de posição, reserva para si o trabalho intelectual, caracteriza-se a si
mesma como culta, a única culta, e naturalmente forja os valores que
entronizam este privilégio, e o defende cercando-o do máximo prestígio. O
trabalho manual, pelo qual a imensa maioria dos homens toma contato com a
natureza, fica votado a um plano inferior em dignidade. Se os produtos que a
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classe trabalhadora elabora são consumidos pela outra, torna-se
compreensível que esta valorize soberanamente sua qualidade de
consumidora, depreciando as massas, que permanecem estigmatizadas pela
obrigação de produzir. A classe superior em sua consciência essencialmente
ingênua, não se julga ociosa; muito ao contrário, acredita que se entrega à
mais elevada e valiosa de todas as formas de produção, a mental, a das ideias.
Este seria seu papel distintivo e por isso a produção ideológica assume, de seu
ponto de vista o valor de qualidade mais nobre do homem, ficando os
trabalhadores manuais na condição de absorventes dos artefatos ideais que
lhes são distribuídos pela parte alta. Esta não lhes reconhece o direito de criar
por si mesmos as ideias que consideram adequadas para exprimir sua
percepção de si, da natureza e de sua situação social. Com isso, as classes
efetivamente trabalhadoras ficam privadas, não do direito de pensar, que, esse,
o exercem constantemente e em natural sentido reivindicatório, mas do direito
de ver reconhecidas como expressão da cultura as ideias que elaboram. Seus
produtos artísticos são classificados apenas como pitorescos, artesanato,
folclore, e somente despertam transitória e divertida curiosidade, enquanto os
dos grupos dirigentes revestem suas obras da qualidade de sérias e eruditas.
Quanto à capacidade de criação filosófica, verifica-se que as classes
dominantes ou se recusam a tomar a sério as produções ideológicas partidas
dos grupos que julgam “incultos” ou recorrem à repressão de tais ideias para
garantirem seus privilégios.
A compreensão da divisão social do trabalho é de máxima
importância para a inteligibilidade da teoria da ciência. Explica porque desde
eras remotas se introduziu o divórcio entre a origem material do conhecimento
e sua formulação teórica, divórcio que condicionará toda a história da ciência
até nossos dias. A mais nefasta das consequências desta bipartição será o
desacordo entre os grupos sociais no contato com a realidade natural. Os que
a tomam nas mãos, a manipulam, e portanto estariam em condições de pensá-
la na concretitude de seus objetos, fenômenos e propriedades, esses estão
subordinados a uma finalidade produtiva de que não são autores e pela qual
não são responsáveis, que consiste em extrair da natureza os bens de
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consumo que não irão utilizar para si, como classe, mas ceder a outros, que os
arrebatarão e os consumirão, prontos. Assim sendo, estes últimos não
necessitarão indagar das condições em que foram produzidos, não sentirão a
atenção despertada pelas propriedades do mundo de que provêm as coisas
que consomem, perdem interesse pelo conhecimento das propriedades físicas,
químicas e biológicas dos corpos, não será estimulada à investigação científica
do mundo material. Refugiar-se-ão na esfera das abstrações. Só reconhecerão
por cultura os produtos que elaborarão nesse lugar excelso. Conforme se
depreende do curso da filosofia antiga, medieval e grande parte do
pensamento moderno e contemporâneo, os representantes da classe pensante
entregara-se à pura especulação, procurando por intuição e por esforço
imaginativo descobrir a essência das coisas, a matéria primeira de que o
universo é composto, as entidades divinas que o governam, as substâncias
imateriais que explicam o comportamento dos seres animados, as forças
ocultas que operam os fenômenos extraordinários, as qualidades formais pelas
quais os objetos manifestarão sua natureza íntima e mil outros problemas
metafísicos, ilusórios, resultantes da exclusiva exploração das ideias enquanto
tais, desvinculadas da materialidade. Esta inevitavelmente aparece, como no
caso do pensamento platônico, plotiniano, e no das escolas místicas medievais
e modernas por eles influenciadas, sob o aspecto negativo, sendo igualada ao
nada, às trevas, ao não- ser, em face da realidade luminosa da ideia.
Este conflito que marca a história da ciência e da filosofia na cultura
ocidental, desde as origens até os alvores da época contemporânea, explica a
longa demora no surgimento e implantação da ciência experimental embora a
cultura nos períodos gregos e medieval, tivesse avançado largamente em
importantes setores. Entre estes deve contar-se a matemática e as teorias
astronômicas, porque tais regiões do pensamento científico, representando o
plano natural das investigações abstratas, porquanto apenas jogam com
números, figuras e movimentos celestes, exigindo pequena base de
observação e praticamente nenhuma de experimentação, cabiam de direito no
interesse das elites “cultas” da época, e estavam evidentemente fora do
alcance do trabalhador, que apenas percebia o lado operatório e elementar dos
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conhecimentos aritméticos e geométricos. Tais conhecimentos na alta
Antiguidade oriental eram privilégio de castas sacerdotais que por meio deles
reforçavam o poder dos grupos dirigentes, sendo portadoras de certos dados
do saber, como a contagem do tempo e o estabelecimento do calendário e do
ritmo dos fenômenos naturais periódicos, que interessavam ao trabalho das
massas na agricultura, na metalurgia e na construção civil, mas que estas, não
podendo adquirir por si, tinham de receber das camadas letradas.
Foi preciso que, a partir do Renascimento europeu, se instalassem
condições históricas inéditas, determinadas pela forma assumida em tal fase
pelas lutas sociais, que começaram então a se travar com o emprego de forças
militares utilizando engenhos mecânicos mais complexos, e forças físicas antes
ignoradas, como a explosão da pólvora, e a seguir, com a Revolução industrial,
o uso do vapor como agente motor, para que a fração culta da sociedade se
visse obrigada a se interessar pela pesquisa das forças físicas cujo
conhecimento lhe era agora necessário para a criação de armamentos o para a
conquista de meios que lhe permitissem prosseguir no exercício da dominação
social e lhe garantissem a possibilidade de uma política de expansão mundial.
Entre este meios contavam-se a melhoria das técnicas da navegação, a maior
e mais barata produtividade dos bens de consumo, a criação de condições de
conforto pessoal, etc. O trabalho manual, embora continuasse sujeito ao
mesmo signo de desvalia na produção de bens rotineiros, começou contudo a
receber uma qualificação nova, pois se percebia que não havia outra forma de
arrancar da natureza o segredo de suas forças, para serem postas a serviço
dos grupos sociais poderosos, senão manipulando-a diretamente, tal como
milenarmente o faziam os escravos e artesãos.
Deste modo surge uma diferente atitude da classe culta em face do
mundo. Desperta o interesse em conhecê-lo pela ação exercida nele. Teremos
então os primórdios da pesquisa científica da natureza, devida à mudança de
atitude, à passagem do comportamento contemplativo para a decidida e
metódica intervenção nos processos materiais pela via experimental.
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PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Existência: problemas filosóficos da
pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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