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Ana Godino - Proust ou a Teoria Das Essências
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Ana Godinho
Linhas do Estilo
Esttica e Ontologia em Gilles Deleuze
RELGIO D GUA
2
S pela arte podemos sair de ns mesmos, saber o que outra pessoa
v deste universo que no o mesmo que o nosso, e cujas paisagens teriam
permanecido para ns to desconhecidas como as que podero existir na
Lua. Graas arte, em lugar de vermos um s mundo, o nosso, vemo-lo
multiplicar-se e, quanto mais artistas originais houver, mais mundos
teremos nossa disposio, mais diferentes uns dos outros que os que
rolam no infinito...
PROUST, Em Busca do Tempo Perdido
3
Sumrio
INTRODUO. 8
PRIMEIRA PARTE 24
Proust ou a teoria da essncia 24
1. Signos. 25
2. Verdade e aprendizagem. 29
3. Estilo 35
a. Estilo hierglifo 35
b. Estilo Anti-logos... 40
c. Ressonncia e movimento forado.. 51
4. Essncia. 55
5. Concluso: a imagem do pensamento Uma nova ordem
para o pensamento 59
SEGUNDA PARTE 72
Exposio do pensamento ontolgico deleuziano... 72
4
A. Crtica dos pressupostos da ontologia tradicional... 72
1. Categorias.. 72
2. Representao.. 74
a. Recognio... 77
b. Juzo.. 84
c. Crtica/Novas categorias. 88
3. Concluso: nota sobre o empirismo ou o uso
minoritrio da ontologia. 92
B. Princpios da ontologia deleuziana.. 105
C. Gnese do sensvel e programa de ontologia... 124
1. O virtual e o actual: dinamismos espcio-temporais. 124
a. Intensidades. A gnese do negativo.. 141
b. Profundidade.. 152
2. Soluo de Deleuze: como colmatar a ciso?... 160
a. O eterno retorno ou o ser do devir.. 164
b. O jogo ideal. 177
5
3. Arte, eterno retorno e jogo ideal: para no termos rvores na
cabea .. 186
TERCEIRA PARTE 189
Esttica.. 189
1. A gnese do estilo.. 189
a. Que artista pode ento ter tais caractersticas?.. 213
b. O que um ritornelo?.. 215
2. Estilo e heterognese da obra de arte Descrio do processo
criativo: do bloco de sensaes ao plano do cosmos... 220
3. O que o estilo?. 234
4. Da negao da fenomenologia da arte necessidade
do Corpo sem rgos. 257
5. Diagrama e Corpo sem rgos 274
a. O que um diagrama? 274
b. A importncia do Corpo sem rgos
na esttica de Deleuze. 297
6
CONCLUSO: Esttica e Ontologia - A Imagem-Cristal. 321
BIBLIOGRAFIA 356
1. Obras do autor.. 356
2. Estudos sobre o autor. 359
3. Bibliografia geral 363
7
ABREVIATURAS
CC- Critique et clinique
D- Dialogues
DR- Diffrence et rptition
FB- Francis Bacon: Logique de la sensation
IM- LImage - mouvement
IT- LImage - temps
IUV- LImmanence: Une Vie...
LS- Logique du sens
MP- Mille Plateaux
N- Nietzsche et la philosophie
P- Pourparlers
PS- Proust et les signes
QF- Quest-ce que la Philosophie?
8
INTRODUO
O nosso estudo tem, como ponto de partida, duas questes:
como compreender o projecto ontolgico de Deleuze no quadro do
seu sistema filosfico? Que lugar ocupa a esttica neste
Pensamento?
Pode afirmar-se que s h, na filosofia deleuziana, um projecto
de ontologia, por muitas razes que adiante procuraremos elucidar,
mas tambm pode defender-se a ideia de que Deleuze elabora j uma
ontologia nas suas duas primeiras obras-matrizes (Diffrence et
Rptition e Logique du Sens).
Adianta-se, desde j, como hiptese, que, se o projecto de
elaborao de uma ontologia no pode restringir-se esfera
exclusiva dos conceitos filosficos, haver domnios que oferecem
tipos privilegiados de experincia decisivos para essa tarefa. Deleuze
encontrou um desses domnios na esttica, num plano nico da
esttica, da verdadeira esttica, na obra de arte moderna que
abandonou o domnio da representao para se tornar experincia,
[...] ou cincia do sensvel.1
Falamos de uma verdadeira esttica para reforar
precisamente este plano nico que resolveria o problema da ciso
entre duas estticas: cognitiva/sensvel e artstica. Neste plano
confundir-se-iam os dois sentidos a ponto de o ser do sensvel se
revelar na obra de arte ao mesmo tempo que a obra de arte aparece
como experimentao2.
A proposta deleuziana que est em discusso em Diffrence et
rptition afasta irremediavelmente a possibilidade da velha
ontologia cumprir de facto essas condies. Condies que o
renascimento da ontologia, que Deleuze evoca, apesar do ar dos
1 Gilles Deleuze, Diffrence et rptition, Paris, PUF, 1968. (Doravante utilizamos a abreviatura DR, e usaremos a edio portuguesa ). DR, p. 123. 2 DR, p. 139.
9
tempos lhe ser favorvel, tambm no satisfaz3. Mas as referncias
esttica e obra de arte moderna so aqui j suficientemente claras
para se compreender que teremos por a uma porta de entrada e
instrumentos para a fundamentao da nossa hiptese. Embora
devamos examinar o que levou ciso das duas estticas, to
infelizmente dissociadas, a teoria das formas da experincia e a da
obra de arte como experimentao4, temos j o pressentimento de
poder encontrar noes que testemunham esse novo plano da
esttica.
verdade que a esttica sofre de uma dualidade gritante. Ela
designa por um lado, a teoria da sensibilidade como forma da
experincia possvel; por outro, a teoria da arte como reflexo da
experincia real. Para que os dois sentidos se reencontrem, preciso
que as condies da experincia em geral se tornem, elas mesmas,
condies da experincia real; a obra de arte, por seu lado, aparece
ento, realmente, como experimentao.5
E de que esttica (como teoria do sensvel) estamos a falar?6
Na perspectiva deleuziana, no se trata de uma esttica
unificadora ou que trate a diferena a partir de uma mesma unidade
convergente, mas, pelo contrrio, a partir de uma divergncia
primeira. com ela que tudo muda, e com ela teremos a
determinao das condies da experincia real e no j da
experincia possvel. Condies em que o ser se revela. J no h
significao, nem relao, nem ligao, interpretao, finalmente,
representao, quer dizer, as coordenadas habituais com que se
pensam os elementos do sensvel. A esttica aparecer como a nica
oportunidade da ontologia.
3 DR, p. 322. 4 DR, p. 450. 5 Gilles Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969, p. 300. (Doravante utilizaremos a abreviatura LS). 6 Veremos mais adiante como Deleuze tratar esta questo, por exemplo em DR, pp. 138-139.
10
Teremos de esclarecer: que fios ataro a ontologia esttica?
Elas confundem-se? Como se confundem os dois sentidos da
esttica, num s?
Deleuze dir que a obra de arte moderna parece mesmo
indicar filosofia um caminho que conduz ao abandono da
representao7. Uma filosofia que nasce ou produzida de fora
como o pintor, o msico ou o escritor fazem nascer os seus blocos de
sensaes. Ou ainda: A pesquisa de novos meios de expresso
filosfica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje,
relacionada com a renovao de outras artes, como, por exemplo, o
teatro ou o cinema.8
A obra de arte, pela experimentao cria uma rede mais
estreita, onde s cabe um sentido da esttica - o que recolhe a
realidade do real. Pela arte e pela ontologia, chegar-se- a uma
gnese, ou melhor, heterognese do mundo, ao caosmos de onde o
cosmos sai.
O que diz e o que faz ento o filsofo? Derruba a velha
ontologia. Procura chegar o mais rapidamente possvel
experincia real e ser atravessado por, ou construir, um plano de
imanncia. Talvez possa fazer como faz a criana pequena que no
pra de dizer aquilo que faz ou que tenta fazer, que est em todos os
momentos mergulhada num meio. Nesse lugar, meio, plano, entre
as coisas e onde elas tomam a sua velocidade e vitalidade mximas.
Em Quest-ce que la Philosophie?9 Deleuze fala de uma fadiga da
filosofia. Fadiga porque, incapaz de se manter no plano de
imanncia, o pensamento fatigado no pode j suportar as
velocidades infinitas ento remetido para as velocidades relativas
que s dizem respeito sucesso do movimento de um ponto a outro,
de uma componente extensiva a outra, de uma ideia a outra, e que 7 DR, p. 139. 8 DR, p. 39. 9 Gilles Deleuze, e Felix Guattari, Quest-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991. (Doravante utilizamos a abreviatura QF, e usaremos a edio portuguesa).
11
medem simples associaes sem poderem reconstituir qualquer
conceito. Fadiga porque incapaz do fora. Derrubar a ontologia
trazer-lhe um fora que pode ser a esttica da Diferena.
O projecto ontolgico seria j em 1964, em Proust et les signes,
um projecto sobre a origem, a gnese do mundo, a gnese de tudo
quanto h, projecto que ter continuidade, parece-nos, em 68 e 69.
Mas como sempre afirmar, uma origem/gnese que no tem
comeo, nem acaba. Uma gnese do meio10.
Na obra de 64, dir-se- da diferena/essncia: ela que
constitui o ser, que nos faz conceber o serMas o que uma
diferena ltima e absoluta? No uma diferena emprica entre duas
coisas ou dois objectos, sempre extrnseca. Proust faz uma primeira
aproximao quando diz da essncia que ela qualquer coisa num
sujeito - como a presena de uma qualidade ltima no corao de um
sujeito: diferena interna, diferena qualitativa que existe na maneira
como o mundo nos aparece, diferena que, se no houvesse arte,
permaneceria o eterno segredo de cada um. [] O que uma
essncia, tal como revelada na obra de arte? uma diferena, a
Diferena ltima e absoluta. ela que constitui o ser, que nos faz
conceber o ser. por isso que a arte, enquanto manifesta as
essncias, a nica capaz de nos dar o que ns procuramos em vo
na vida11.
Na obra de 68, Diffrence et rptition, Deleuze dar corpo ao
projecto e no sair de l sem um corpo a corpo com uma mesma
voz para todo o mltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as
gotas, um s clamor do Ser para todos os entes. Por outras palavras:
no fim da obra, as condies parecem reunidas para a construo da
nova ontologia que se esboa no estudo sobre Proust. Tal como o
terceiro captulo daquela mesma obra A imagem do pensamento -
10 Meio, no metade ou mediano ao contrrio o lugar onde as coisas ganham velocidade. Desenvolveremos a noo mais adiante. 11 Gilles Deleuze, Proust et les signes, ed. Presses Universitaires de France, 1996 (1 edio:1964), p.53. (Doravante, PS).
12
bem podia ser uma nova concluso da primeira parte de Proust et les
signes (tambm intitulada A imagem do pensamento).
Neste contexto, Logique du sens retomar tambm com a obra
de arte o caminho da ontologia, nem que seja numa fulgurao.
Problemtica que continuar a atravessar as obras ulteriores,
nomeadamente Mille Plateaux12, Francis Bacon: Logique de la
sensation13, LImage-temps,14 Critique et clinique15.
A nossa investigao no implica uma ordem cronolgica mas
procura as obras fundamentais para compreender o desenvolvimento
e as transformaes do pensamento de Deleuze; pretende, pois:
1. Mostrar que no existem duas estticas, a da sensao no
conhecimento e a da sensibilidade na arte, mas um plano nico da
esttica, uma nica esttica.
2. Que a ontologia e a esttica tm necessariamente de
conectar-se. Articulando-se, permitem um alcance que vai at ao
nascimento do Tempo.
A primeira parte deste trabalho inicia-se com uma anlise de
Proust et les signes. A escolha desta obra prende-se com o facto de
julgarmos poder encontrar nela esboado um pensamento que s
encontraremos em definitivo nas ltimas obras de Deleuze.
Neste ensaio, a problemtica centra-se em torno dos signos
que, enquanto matrias, na sua emisso, produo e multiplicao,
so expresso do ser e do mundo, meios de conhecimento, mas
tambm chaves que abrem para mltiplos mundos. O problema situa-
se, pois, em torno do pensamento e de uma teoria dos signos, nos
seus diferentes regimes, tipologias, sries, etc.
12 Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, (Doravante, MP). 13 Gilles Deleuze, Francis Bacon Logique de la sensation, Paris, La Diffrence, 1981. (Doravante, FB). 14 Gilles Deleuze, LImage-Temps, Paris, Minuit, 1985. (Doravante, IT). 15 Gilles Deleuze, Critique et clinique, Minuit, 1993. (Doravante, CC e usaremos a edio portuguesa).
13
A classificao que Deleuze faz dos signos, em Proust et les
signes, permitir-nos- chegar a uma tipologia especfica que orientar
todo o nosso trabalho. Os signos artsticos (so especialmente estes
ltimos que nos interessam) tm um poder sobre todos os outros.
Poder esse que lhes vem da possibilidade de introduzirem um Tempo
que no existe nos outros signos, que opera transformaes das
matrias e dos materiais. Trata-se de um tempo de criao que d
arte, ao plano artstico, uma unidade de compreenso que vai muito
para alm do seu campo de aco.
A criao artstica (mesmo a criao em geral), aponta j nesta
obra, para o que h de mais fundamental, quer dizer, a gnese do
acto de pensar, a necessidade mesma do que dado a pensar no
pensamento. Ambas, tm uma consistncia (na experimentao, na
aprendizagem) que pode at ser somente uma pr-compreenso
das essncias.
O segredo da essncia, do qual se tem um pressentimento,
desvendar-se- na obra de arte, manifestando-se na literatura, na
pintura, na msica, no cinema, etc. Trata-se neste momento de uma
primeira hiptese de trabalho.
O nosso problema anuncia-se em primeiro lugar por um trajecto
esttico que no se desliga de um trajecto ontolgico. H um
momento em que o pensamento se confronta com a sua prpria
impossibilidade para pensar. Teremos de chegar a, o que nem
sequer tarefa fcil, se pensarmos que a doxa invade e contamina o
pensamento inteiro. Paradoxalmente, para atingir o ponto desrtico, o
Saara, de onde se poder voltar a pensar, preciso j que a
impotncia se transforme numa potncia capaz de produzir e criar.
O estilo aparece, neste sentido, como o operador do
movimento de criao que pode ligar os dois trajectos o esttico e o
ontolgico -, e que faz nascer o mundo. Analisaremos, em primeiro
lugar, o estilo e da tiraremos consequncias.
14
1. O estilo ser entendido como essncia, mas tem para
Deleuze, como veremos, o sentido de diferena. No se pode
aprender por assimilao, identificao, semelhana. O estilo devir.
Devir e diferena, sem relaes de semelhana, num tempo
reencontrado que se encarna numa matria adequada. O devir-estilo
anuncia-se como a possibilidade que faz nascer o Tempo e portanto o
cosmos.
2. Esta noo de estilo no fcil de compreender porque no
tem regras, nem metodologias ou estratgias. Veremos, contudo,
procedimentos vrios para se chegar a um estilo (na pintura, na
literatura, na filosofia, na msica, no cinema).
3. Da complexidade inicial desta noo iro nascer
modificaes que a clarificaro, quer dizer, que a faro tornar-se num
estilo que no-estilo. Atravessado por uma dissoluo, por um caos,
um estilhaamento, acabar definitivamente com uma certa ordem do
cosmos. J no ser estilo-essncia. As relaes com o pensamento
e a sua gnese alterar-se-o. Veremos desenvolvidamente tambm
as relaes que vai estabelecer com a arte. Neste processo
inevitvel que uma certa noo de finalidade do mundo desaparea,
emergindo no seu lugar um caos que amplificar os seus efeitos.
O estilo no-estilo dever aparecer como a unidade das partes
que no unifica (e aparecer num corpo) num plano criador do acto de
pensar no pensamento, num corpo sem rgos.
4. O estilo, afirmmos no ponto anterior, provoca efeitos,
ressonncias que induzem movimentos forados, melhor dizendo, o
estilo produz ele prprio movimentos que abrem domnios e nveis de
intensidades antes impensveis. Efeitos tanto no corpo como no
pensamento.
O nascimento do mundo e a sua expresso, numa palavra a
essncia deleuziana, tm um sentido ontolgico que se articula com o
sentido esttico. Pensar acontece directamente nas coisas.
15
Este primeiro desenvolvimento e anlise a partir dos textos
deleuzianos permitir-nos- comear a pensar na possibilidade de uma
segunda articulao (ou unificao das duas estticas). Esta ser
essencial e determinante para a primeira. Numa palavra, para conceber
o ser enquanto realidade ontolgica necessrio que ele se revele ou
expresse na e pela arte.
A nossa tese constitui-se, ento, partindo de uma problemtica
que se pode traduzir da seguinte maneira: a arte a expresso
ontolgica. As relaes de articulao, confronto, encadeamento, e a
sua possibilidade real, eis o que preciso deslindar.
O nosso trabalho consistir em mostrar como pode a arte ter
esse privilgio de se articular com a ontologia fundando-a, de certa
maneira. Como podem ambas constituir-se num plano nico? Em que
medida a esttica artstica pode integrar uma teoria do ser? So muitos
os problemas, de tal modo que podemos ainda perguntar: o que faz a
diferenciao ou a separao entre o espao artstico-ontolgico e o
espao emprico?
O plano em que se insere a nossa investigao determinar-se-
a partir de uma anlise crtica da representao, do figurativo, do
sistema tradicional de categorizao. Anlise que nos coloca diante de
um outro problema. Como devemos entender neste contexto o
pensamento deleuziano?
Est em causa para Deleuze, parece evidente, uma imagem do
pensamento. portanto a sua crtica que necessrio fazer.
Em Proust et les signes, uma nova imagem do pensamento
implica que ele para pensar precisa de ser forado. Veremos pois, o
que, segundo Deleuze, o fora a pensar, que espcie de violncia se
exerce para que o pensamento deixe de ser dogmtico, para se tornar
num pensamento da diferena. Veremos, em primeiro lugar, em
Nietzsche et la philosophie16, depois em Proust et les signes, em
16 Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962. (Doravante, N).
16
Diffrence et rptition, e finalmente em Quest-ce que la Philosophie?
que imagem esta.
Na primeira parte pretende-se introduzir a problemtica geral.
Apresentar a sintomatologia que se vai desenvolver ao longo de
todo o trabalho.
Ver-se- na segunda parte que a verdadeira gnese do
pensamento est no signo. Primeiro, atravs da exposio do
pensamento ontolgico deleuziano, j que ele aparece como o
primeiro elemento de articulao que pretendemos discutir. A obra a
que deveremos dar mais nfase ser Diffrence et rptition. Ser a
ela mesma que recorreremos vezes sem conta.
Num primeiro ponto (A), faremos a anlise da crtica que
Deleuze faz dos pressupostos da ontologia tradicional: as categorias,
a representao, a recognio, o juzo.
A crtica levar-nos- mais longe, para um domnio que no se
deixa representar a ontologia da diferena torna-se empirismo
transcendental. No depende de um sistema de categorias e, para
Deleuze, no se trata de substituir um modelo (ou categorias) por
outro. A nossa dificuldade das maiores. Averiguaremos o que
poder fazer-se depois da crtica, pretendemos saber como se forma
esta nova filosofia deleuziana que pretende encontrar o movimento
real do pensamento.
Parece-nos desde j que um certo caminho far com que seja
inevitvel passar pela obra de arte moderna. A nova ontologia
deleuziana dir do ser que ele unvoco na diferena. A univocidade
do ser, no sentido deleuziano, um tema difcil que exige ser
esclarecido. Deleuze querer elaborar uma tbua de categorias no
maneira de Kant, mas sim de Whitehead. Categorias que no so
bem categorias, so noes fantsticas, abertas, aproximando-se
de noes emprico-ideais.
17
O empirismo transcendental, a experimentao, surgiro no
pensamento deleuziano como surge um abalo ssmico. No sero j
o sujeito e o objecto que estaro em causa, sero outros domnios,
um verdadeiro campo ou plano (transcendental), um rizoma. Deleuze
diz partir sempre do emprico e da coisa dada, do concreto. Mas
precisa resolver o problema do emprico, j que ele aparece sempre
desvalorizado, ou desnaturado relativamente a um actual no
recoberto pela qualidade e pela extenso.
A elaborao ontolgica torna-se uma exigncia da natureza
do ser e ter de dar conta dessa exigncia. A expressividade do ser
materializa-se realmente.
Num segundo ponto (B) trataremos dos cinco princpios da
ontologia deleuziana. Um terceiro (C) dir respeito gnese do
sensvel e ao programa ontolgico. O projecto de constituio da
ontologia deleuziana constri-se sob a ciso fundamental, ciso que
est mesmo no mago do sensvel. Mais uma vez se pergunta: como
unificar as duas estticas (cognitiva e artstica) sem recorrer a uma
transcendncia?
Deleuze ter de construir com a imanncia e a univocidade um
pensamento de uma esttica nica. Se isto possvel, ento, parece-
nos fundamental para a sua realizao o Estilo, que julgamos ser
pensvel no quadro da ontologia. O estilo abre domnios, provoca
efeitos. Neste caso sero efeitos no prprio ser que se exprime numa
multiplicidade de vozes. Na investigao da gnese do sensvel
encontramos uma outra gnese a origem e formao do mundo. Do
virtual ao actual; a actualizao como criao. Destacaremos o papel
dos dinamismos espcio-temporais, procuraremos respostas a partir
do modelo da embriologia, tal como Deleuze a formao do ovo ou
a formao do mundo tambm a formao de um estilo.
Ainda no ponto C, em 2., procurar-se- responder
concretamente questo da ciso das duas estticas. A soluo
deleuziana, j o referimos, passa pela obra de arte moderna. Para
18
Deleuze, s ela consegue reunir as condies de composio e
consistncia que do ao objecto a sua realidade. Estas condies
passam por uma nova concepo do crebro-rizoma, pela
constituio de blocos de sensaes, corpos sem rgos. Numa
palavra, as condies passam pela imanncia.
A noo de eterno retorno aparece neste momento,
exclusivamente circunscrita exposio deleuziana, para quem o
eterno retorno no o retorno do idntico (como tradicionalmente se
expe), mas um pensamento que subverte completamente o mundo
da representao e afirma o ser do devir. Esta noo vai aparecer
ligada ao poder de seleco, vai ser concebida como um pensamento
selectivo que pode, portanto, eliminar o que no lhe interessa. A vida
no pode mais ser negativa e deve afirmar-se na sua mais elevada
potncia. O eterno retorno criador, capaz de afirmar a diferena pela
repetio. Esta ltima ser tambm objecto de anlise, dado que
podemos distinguir: entre a repetio nua, vestida e ontolgica. A
pertinncia desta repetio ontolgica tem a ver, como no podia
deixar de ser, com a arte.
O jogo ideal (alnea seguinte) articula-se com o pensamento do
eterno retorno, no sentido mesmo de nos ajudar a responder s
nossas questes. S jogando este jogo de um s lance fazemos voltar
o eterno retorno, na afirmao de todo o acaso que a afirmao na
arte e pela obra de arte. Num s lance o artista faz irromper uma
poderosa produo (de vida) que se sustm por si, quer dizer, que se
conserva. A arte aparece como uma terceira repetio, ontolgica,
capaz de operar uma verdadeira transmutao da matria, uma
verdadeira criao.
A terceira e ltima parte consistir na exposio mais
desenvolvida e aprofundada do estilo. Nesta parte, a esttica, a
orientao determinante.
19
At aqui julgamos ter destacado alguns dos aspectos mais
essenciais do nosso problema, a saber, a articulao do pensamento
ontolgico com a esttica. Em seguida, atravs do exame de algumas
das obras, do filsofo, mais significativas neste domnio, estudaremos
as linhas centrais que entretecem esta articulao que pretendemos
consistente.
As obras de Deleuze sobre a esttica e onde se desenvolve
mesmo a sua teoria atravessam todas as artes: a pintura, a literatura,
msica, cinema, etc. No sendo possvel um estudo exaustivo,
optmos pelas que nos parecem mais decisivas e importantes:
Francis Bacon: Logique de la sensation, Mille Plateaux, Quest-ce
que la Philosophie?, LImage-temps, Critique et clinique. No
esquecendo que na primeira parte deste trabalho Proust et les signes
ser a obra de referncia.
A pergunta que orientar esta ltima parte aquela que
pergunta pelo comeo da arte, do estilo. Pergunta pelo comeo ou
gnese do mundo. Ou ainda, de que feito o Universo?
Inevitavelmente a ontologia e a esttica confundem-se. Quem
o artista capaz de fazer tais perguntas? Quais os procedimentos, o
mtodo que utiliza? Quando comea o seu estilo ou o seu no-
estilo?
Saber o que o caos para poder sair dele. Entrar e sair vezes
sem conta. Sair do caos, da dissoluo das formas e das matrias ou
produzir o prprio caos, que sempre uma ameaa, produzindo
variedades de mundo. o trajecto de um movimento de criao
poderoso. Movimento incessante que, com intensidades e
velocidades variveis, est nas prprias coisas, em cada uma, em
cada ente, no ser.
O ritornelo, segundo Deleuze e Guattari, surge precisamente
na formao e gnese do cosmos, nele concorrendo foras diferentes.
uma fbrica do tempo com potncia para extrair, seleccionar e
eliminar. Cria territrios, agencia o espao e tempo no lugar prprio
20
onde as foras germinativas podem fazer eclodir a obra, o ser, o ente,
a pedra, a cor, o som, a palavra, o cosmos
Parte-se do caos, dos meios e dos ritmos, agencia-se. Com o
territrio, a desterritorializao, a reterritorializao chega-se a um
corpo-a-corpo de energias.
Mais do que a filosofia e a ontologia, que se confundem, ou a
ontologia e a esttica, tambm a Terra se confunde com os e nos
seus movimentos territoriais ou desterritorializantes. A confuso a que
Deleuze se refere compreender-se- com a clarificao destas
noes. A noo de zona de indiscernibilidade, mas tambm a
noo de transduo, ritmo, expressividade, autonomia.
A arte de que aqui se fala, na perspectiva deleuziana,
anterior, ou melhor, no espera pelo ser humano para comear. Tem
um solo, um alicerce na Terra. Comea com a marca, formao
ainda aleatria (desenha, traa marcas, que correspondero em
Bacon s marcas livres ao acaso), a que Deleuze chamar arte
bruta, enquanto libertao especfica de certos materiais de
expresso e transformar-se- tornando-se estilo.
Ser necessrio ver que no possvel deixar de passar pela
arte bruta at se poder afirmar a arte ou o estilo. At se definir
claramente a linha de variao contnua (= Estilo) que nos conecta
ao Cosmos. Chega-se arte pelo estilo e ao estilo pelo estilo. A arte
passar por lugares improvveis, a ontologia tambm, at se tornar
consistente, at entrar no plano csmico, at chegar ao estado
celeste. Daqui decorrero outros problemas. Para esta arte teremos
um artista com caractersticas prprias, materiais e matrias de
expresso? Quais?
Na descrio da gnese ou da heterognese, sem comeo,
encontramos lugares de passagem (o ritornelo um deles), planos
(consistncia, composio), devires, cristais de espao-tempo,
finalmente um caosmos. Lugares que ajudam a aproximarmo-nos
disso que o processo criativo. De acordo com a linha deleuziana o
21
processo criativo que aqui pertinente o da obra de arte moderna.
A exposio deste processo permite-nos, mais uma vez, reencontrar o
estilo. Ele j l est, sempre esteve, mesmo quando ainda no
estava. Aparente contradio que ser necessrio explicitar.
Este trajecto leva-nos ao processo de criao, de produo.
Chegados a, ao que parece decisivo, como obter isso mesmo que a
arte e que est na obra de arte?
As coisas existem ou conservam-se, tm vida enquanto se
mantm de p. Fixam-se em devires, blocos (de afectos e
perceptos). So o vivido de um corpo, mas no o corpo vivido da
fenomenologia. Vida e vivido mudam de sentido na filosofia
deleuziana. O artista faz com sensaes, com blocos de devir e
expresso, seres autnomos. Neste sentido, o artista, no plano da
esttica est necessariamente no plano ontolgico. Produz o que e
no pode deixar de o produzir. As consequncias sero inevitveis:
h no mundo seres que se conservam e conservam, tm um Tempo,
esto num Tempo.
Sensaes e corpo so condies para devir outra coisa.
Processos complexos anunciam-se, mudanas de percepo,
excessos, mtodos (na pintura, na literatura, na msica, etc.)
Como se chega ao plano ontolgico-esttico o que se
pergunta por outras palavras, quando se pergunta: o que o estilo?
Tanto na arte em geral como na filosofia, o estilo considerado
por Deleuze como uma questo de sintaxe (ou seu equivalente). a
coisa mais natural do mundo17. Criao sintctica, estilo, este o
devir da lngua. Arranca, abre, fende, extrai, escava, gagueja, at
saturao, para depois inventar, compor, dar consistncia, devir corpo
sem rgos. No falhar o estilo, eis o que necessrio (com
procedimentos, frmulas, tratamentos que minoram, fragmentam,
etc.). De todo este processo sair um corpo sem rgos, e dele, uma
17 MP, p. 123.
22
linha de indiscernibilidade que se confunde com uma linha de
variao contnua.
Bacon pinta sensaes com cores. Estas tornaram-se visveis
pela sua mo e pelo seu desejo. Tarefa comum ao pintor, ao escritor,
ao filsofo ser a tarefa de tornar o Tempo sensvel, cristal de espao-
tempo.
Veremos que tambm se aplica ao cinema. A imagem
deleuziana aproximar-se- sempre do signo, enquanto exprime um
sentido ou uma Ideia. Em Proust et les signes, em Mille Plateaux, por
exemplo. Poderemos v-lo ainda na imagem do cinema. O cinema
produz signos especficos, mas a literatura e a pintura tambm.
Deleuze procur-los- nos grandes autores de cinema mas estes
so como os grandes pintores ou os grandes msicos: so eles que
falam melhor do que fazem. Mas falando, tornam-se outra coisa18.
Portanto mais do que falar sobre o cinema, um filsofo pode
falar de um certo pensamento do mundo e do ser que lhe corresponde.
Os conceitos de cinema no so dados no cinema. O cinema ele
prprio uma nova prtica de imagens e de signos19.
Algumas breves observaes sobre a escolha das principais
obras comentadas: deixmos praticamente de lado uma obra
importante, Le Pli, que muito nos diz sobre a esttica deleuziana (que
alguns mesmo classificam como barroca). Mas dada a especificidade
controversa da questo a esttica de Deleuze antes de mais
barroca? E o barroco para Deleuze no fundamentalmente o barroco
musical? e porque no centro da tese que defendamos a
importncia de uma esttica geral na formao da ontologia optmos
por no recorrer a Le Pli, adiando talvez a discusso daquelas
questes para outros trabalhos.
Pelas mesmas razes, quer dizer, pelo carcter de
generalidade que revestia a nossa problemtica, no tocmos em 18 IT, p. 366. 19 Idem.
23
pequenos textos, de que uma anlise minuciosa extrairia sem dvida
concluses importantes. Refiro-me a Superpositions sobre Carmelo
Bene, a LEpuis sobre Beckett, e mesmo ao primeiro volume de
Cinema: LImage-Mouvement de que um brevssimo resumo da
questo da imagem no cinema clssico introduz a questo que nos
interessa essencialmente: a estrutura cristalina da imagem-tempo.
Como o subttulo indica, o fio condutor que nos fez atravessar
as leituras e anlises que fizemos das obras de Deleuze foi a noo
de estilo. No seguimos uma linha cronolgica, se bem que a primeira
obra analisada seja Proust et les signes. Este fio levou-nos a uma
espcie de espiral de tal maneira que no fim (que nunca um fim
numa espiral aberta), ou mesmo a cada etapa da anlise, todo o
pensamento anterior de Deleuze que se repensa, alarga e inventa
novos conceitos que entram em conexo com os anteriores. Foi
tambm para mostrar essa forma espiralar (ou ondeante como a linha
gtica de Wrringer) na obra deleuziana, quer dizer para pr em
evidncia o seu estilo filosfico que, de modo muito geral, o trajecto
percorrido pode parecer seguir uma ordem cronolgica.
Quanto ao mtodo de anlise e comentrio, procurmos tratar
o problema que nos interessava talvez de maneira heterogentica,
seguindo o prprio conselho de Deleuze. Temos conscincia de que
este trabalho no representa, dessa imensa tarefa (que implica a
busca das fontes, das influncias, do surgimento de tal conceito
diferente que parte de mltiplos autores, etc.), seno uma nfima
tentativa quando, sobretudo, se trata de um pensamento como o de
Deleuze que se alimentou de tantos autores dos modos mais
diversos.
Resta-nos a consolao de ter porventura isolado, o mais
sistematicamente que nos foi possvel, um problema o das relaes
do estilo e da ontologia muito pouco tratado pelos comentadores,
mas que, estamos certos, o vir a ser, como tem acontecido a
mltiplos outros temas deleuzianos.
24
PRIMEIRA PARTE
Proust ou a teoria da essncia
No comentrio que a seguir propomos de Proust et les signes,
surge sempre uma dificuldade que geral para muitas obras de
Deleuze, sobretudo as de comentador de histria da filosofia, que
escreveu sobre Hume, Bergson, Leibniz que no tem talvez uma
soluo absolutamente adequada: o que pertence a Proust e o que
vem de Deleuze? E, muitas vezes, o que parece obra do pensamento
de Proust (sobre os signos ou sobre o estilo, por exemplo), no
resultar de uma projeco de preocupaes, seno j, de conceitos
deleuzianos?
Esta dificuldade levanta certamente obstculos metodolgicos. A
nossa leitura de Proust tenta contorn-los, adoptando certos critrios
pragmticos: onde o comentrio de Proust por Deleuze revela
problemticas propriamente deleuzianas como no caso da
aprendizagem - que reaparecem noutras obras e noutros contextos,
podemos estar certos de que a marca do filsofo impe uma
interpretao prpria do pensamento de Proust.
Assim: sobre a aprendizagem (de que Diffrence et rptition
retoma longamente a anlise); sobre as essncias (que Deleuze
abandona definitivamente nas obras subsequentes, mas a que d j
em Proust et les signes um sentido no-platnico, como Diferena);
sobre o estilo, tema que preocupou Deleuze at ao fim da vida,
apresentando longos desenvolvimentos sobre a questo em Mille
Plateaux, Quest-ce que la Philosophie?, Dialogues20, Critique et
Clinique, - sobre todos estes temas pode adiantar-se que Proust et les
20 Deleuze, Gilles, Dialogues (com Claire Parnet), Paris, Flammarion, 1996. (Doravante, D e usaremos a edio portuguesa).
25
signes contm em germe (e s vezes mais do que em germe) o
pensamento ulterior de Deleuze.
O nosso comentrio de Proust et les signes mistura pois
necessariamente o que no facilmente destrinvel: o pensamento
de Proust e o de Deleuze. Mas aqueles critrios pragmticos permitem-
nos detectar nesta obra qualquer coisa como esboos da matriz do
pensamento definitivo de Deleuze sobre, por exemplo, o estilo. No
atribumos a Deleuze o que de Proust, se bem que s vezes seja o
prprio Deleuze a estabelecer a confuso, apropriando-se de ideias
dos outros para as reformular sua maneira. Insistimos no que se
pode mais facilmente isolar como pertencente filosofia deleuziana j
em Proust et les signes - o que se confirmar, esperamos, com a
anlise dos mesmos temas em obras ulteriores.
Eis o esforo metodolgico a que nos obrigamos, com a
conscincia da grande complexidade dos problemas assim levantados.
1. Signos
O tema principal deste ensaio diz respeito aos signos. Todas as
espcies de signos esto em causa. necessrio descobrir-lhes a
natureza, os meios, o modo de emisso, interpretao, produo e
multiplicao e tambm as matrias de que so feitos, os regimes, a
classificao.
A anlise deleuziana de certa forma inaugural e anunciadora,
trata-se, como atrs se disse, em nosso entender de um livro matricial
no contexto do pensamento deleuziano.
Numa primeira definio os signos reenviam a modos de vida, a
possibilidades de existncia, so especficos, heterogneos e no
homogneos. Constituem a matria dos mundos, exprimem-nos, so
eles mesmos feitos de mltiplas matrias. Diferenciam-se em gneros,
26
classes, famlias, regimes. So emisses de partculas que formam a
unidade dos mundos, emitidas por pessoas, objectos, matrias e
materiais. No tm a mesma maneira de aparecer, nem se deixam
decifrar do mesmo modo, exigem uma aprendizagem (sempre a fazer-
se). Traduzir um signo pensar e implica necessariamente o
pensamento. Os signos ligam-se entre si e ligam-se vida, s vezes
em excesso, so potncias no orgnicas, acontecimentos,
agenciamentos.
Na sua multiplicidade (de sistemas, organizaes,
funcionamentos e tipologias) destacam-se em primeiro lugar os signos
da mundanidade estes esto num meio que mais do que qualquer
outro emite e concentra signos num espao reduzido e a uma
velocidade enorme. No sendo homogneos a sua unidade consiste
em no pensar nem agir, no reenviar a nada, antecipando a aco
como o pensamento, anulam o pensamento como a aco21, so
vazios porque no se pensa nem se age, mas enquanto signos
aparecem e produzem efeitos (provocam, por exemplo, uma exaltao
nervosa). No podem ser ignorados, a aprendizagem faz-se tambm
com eles.
Em seguida os signos amorosos individualizam, exprimem
mundos desconhecidos, implicam, envolvem e aprisionam os mundos.
Amar, procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos
que permanecem ocultos no amado.22 No so como os primeiros,
vazios de pensamento e aco, mas so enganadores, contraditrios e
escondem o que exprimem, no provocam uma exaltao nervosa
superficial, mas sofrimento. O amado aparece como signo, um signo
desconhecido.
Os terceiros, signos sensveis so impresses ou qualidades
sensveis, signos materiais, verdicos que nos do imediatamente uma
alegria extraordinria. Aparecem no como uma propriedade do
objecto (), mas como o signo de um qualquer outro objecto, que
21 PS, p.13. 22 PS, p.14.
27
devemos tentar decifrar23. Parece que aprisionam a alma de um outro,
diferente daquele que designam. E quando os deciframos, no ainda
suficiente, no so suficientes. So signos de alterao e
desaparecimento. Representam um esforo da vida para nos preparar
para a arte e para a sua revelao final.
No so vazios nem enganadores, so afirmativos, materiais,
alegram-nos imediatamente. No so nada, se no reenviam para uma
essncia ideal que incarna no seu sentido, mas ns no estamos
ainda em estado de compreender o que esta essncia ideal, nem
porque que sentimos tanta alegria.24 Visa-se uma ltima etapa.
Procura-se o sentido do signo.
Finalmente os signos artsticos o ltimo dos mundos, a etapa
que faltava. Estes signos do mundo da arte so antecipaes (neles
existe um tempo original absoluto que compreende todos os outros e
os domina), desmaterializados, imateriais, essenciais, transformam
todos os outros, os que so materiais e todos os que convergem para
eles. Desde logo, o mundo revelado da Arte reage a todos os outros,
especialmente aos signos sensveis; integra-os, d-lhes um sentido
esttico e penetra no que eles tinham ainda de opaco.25 S estes
ltimos permitem a revelao das essncias. So primordiais, alegria
pura, os nicos capazes de nos fazer encontrar o que procurmos em
vo na vida o sentido. Com eles podemos ter esse encontro
revelador e essencial. H neles uma unidade, uma superioridade
imaterial, que uma diferena, ltima ou primeira, radical e absoluta.
Revelados na obra de arte operam uma verdadeira transmutao da
matria - em essncia. Todas as aprendizagens a fazer so
aprendizagens inconscientes e passaro pela arte.
De que matrias so feitos todos estes signos? Qual a sua
natureza e o seu sentido? As matrias so heterogneas, mais
23 PS, p.18. 24 PS, p. 21. 25 PS, p. 21.
28
espaciais ou temporais, mais ou menos materiais, quer dizer, umas
mais desmaterializadas do que outras, espirituais. Cada tipo de signos
tem uma linha particular de tempo e cruza-se combinando-se com
mltiplas outras (como numa mesma linha se podem misturar e
implicar vrias espcies de signos).
Um trao mnimo de um rosto, efeito da passagem do tempo, da
precariedade, pode cruzar-se com um odor, uma preocupao, um
cime, uma simpatia, um sorriso ou um silncio (qualquer coisa se
desanuvia e altera e o rosto fica transparente ou aparece um rubor, ou
um rosto fechado ou pesado). H ainda um resto material.
Mas, em matrias mais maleveis e soltas, como por exemplo:
a cor para o pintor, como o amarelo de Ver Meer, o som para o
msico, a palavra para o escritor26, tudo imaterial, ao mesmo tempo
que o seu sentido se torna espiritual.
O signo relaciona-se com o seu sentido, mas no sabemos bem
de que natureza esta relao. Sabemos que os signos mundanos so
vazios, pretendendo ser o seu sentido, que os signos amorosos so
falsos, havendo uma contradio entre o que revelam e o que
pretendem esconder. E os terceiros, os signos sensveis, so verdicos,
sendo o seu sentido ainda material. E quando nos aproximamos dos
ltimos a relao do signo e do sentido cada vez mais prxima e
ntima. A arte a bela unidade final de um signo imaterial e de um
sentido espiritual.27
Na verdade, sem a arte no poderamos compreender essa
essncia ideal de que falmos antes. Deleuze afirma mesmo que
nela que est o essencial, a revelao final. A esttica confundir-se-
com a criao de mundos. Espaos e tempos que a obra de arte unir,
pois nela unem-se todas as outras dimenses e encontra-se a
verdade.
26 PS, p. 60 27 PS, p. 105.
29
2. Verdade e aprendizagem
Procurar a verdade, eis o que num certo momento est em
causa. Procurar ser a mesma coisa que interpretar, decifrar, explicar,
traduzir. Apreender ou aprender a partir de qualquer emisso de signos
liga-se procura da verdade por uma espcie de determinao.
Estamos determinados porque numa situao concreta somos
forados, exerce-se sobre ns uma violncia que nos incita a procurar.
Dos signos vem uma violncia (mundana, amorosa, sensvel) que nos
fora a pensar. Uma espcie de encontro forado com a verdade.
Porque aprendemos que cada tipo de signos se relaciona com o
objecto ou coisa que emite e com o sujeito que apreende.
Depois, ou melhor, simultaneamente, interpretamos. No
descobrimos nenhuma verdade, no aprendemos nada, seno por
decifrao e interpretao28. A verdade no se encontra por afinidade
ou amizade, nem sequer por boa vontade, alcana-se num encontro
inevitvel, contingente, fortuito e involuntrio. H, portanto, signos que
nesses encontros nos foram e garantem a necessidade do que dado
a pensar. Sofremos, pois, uma espcie de violncia no pensamento
para podermos pensar.
O acto de pensar no decorre de uma simples possibilidade
natural. O que lhe essencial, diz respeito ao aprender,
interpretao, diz respeito nica criao verdadeira. Criao que a
gnese do acto de pensar no prprio pensamento. Quando se quer a
verdade, quer-se necessariamente esse encontro com a criao, que
ento a mesma coisa que interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o
sentido do signo, a unidade do signo e do sentido.
No incio da procura, fundamental ver e escutar, reconhecer.
No caso dos signos sensveis preciso, especificamente, observar e
descrever. Podemos, mesmo assim, trabalhando e com esforo para
28 PS, p. 11.
30
compreender as significaes e os valores objectivos, no alcanar o
que desejvamos. Decepcionados, lanamo-nos no jogo das
associaes subjectivas. Mas para cada espcie de signos, estes dois
momentos da aprendizagem tm um ritmo e relaes especficas.29
Os signos no se desenvolvem, no se explicam se no se
compreendem as combinaes complexas que constituem o sistema
de verdade e mesmo assim preciso algo mais do que a
compreenso. Os signos so foras, no so representaes. Foras
que implicam e envolvem sentidos. So eles que so o objecto da
aprendizagem.
A noo de aprendizagem, presente ao longo de todo o ensaio,
aparece como um movimento fundamental que permite compreender e
decifrar a complexidade da constituio do sistema da verdade.
Deleuze no se cansar de dizer que o que essencial
aprender, como no se cansar depois de dizer que
aprender=experimentar, percorrer relaes heterogneas (as que
atravessam a experincia pura), segui-las e coloc-las em srie. A
condio para aprender que uma matria, um objecto, um ser,
emitam signos, porque sero eles que, mesmo obscuros, se podem
decifrar, interpretar, traduzir, pensar. preciso ser sensvel aos signos,
estar atento, e isso sem dvida um dom. A aprendizagem, como a
procura da verdade, so tarefas infinitas (que dizem sempre respeito
aos signos), so uma vocao ou predestinao. No sabemos
claramente o que so. Provavelmente, toda a problemtica da arte
como experimentao comea a esboar-se desta maneira, o acaso
dos encontros, a presso dos constrangimentos, o fortuito.
Vimos que os signos so objecto de uma aprendizagem e no
de um saber abstracto, ser sempre por meio deles que algum
aprende, embora no saibamos como. Mas, sabemos que sua
maneira no h aprendiz que no seja egiptlogo de qualquer coisa.
Um objecto, uma matria, um ser, emitem signos/hierglifos que
29 PS, p. 105.
31
preciso ter sempre em considerao, a que preciso ser sensvel, quer
dizer, interpretar/decifrar. No fim, mesmo que no se saiba nada, h
qualquer coisa que se revela, porque h qualquer coisa que se
pressente (as essncias), para l dos objectos, uma certa
aprendizagem dos signos.
Os signos no so, assim, somente veculos do conhecimento,
no so s objectivos ou subjectivos, mas como Deleuze bem viu, so
uma espcie de chaves que uma vez decifradas abrem para mltiplos
mundos.
Prosseguimos a nossa aprendizagem at chegar revelao
final. Apesar do mundo vacilar (e o mundo vacila na corrente da
aprendizagem), apesar das decepes, mesmo no sabendo como
que se aprende, h um progressivamente pressentido nas vrias
etapas. Aprender ter um pressentimento. No descobrir, estudar,
ordenar, associar, classificar e organizar ideias. Em Logique du sens,
Deleuze designar o pressentimento como uma pr-compreenso
dessa revelao final.
Mesmo que no se saiba como que aprendemos, sabemos
que no aprendemos nunca fazendo como qualquer um, mas fazendo
com qualquer um, que no tenha relao de semelhana com o que
aprendemos.30 Inevitavelmente, a decepo aparece como um
momento fundamental da aprendizagem.
De facto, num determinado momento decepcionamo-nos porque
tentamos interpretar objectivamente e o objecto no nos d o que
espervamos, tentamos ento, numa espcie de compensao,
remediar a decepo interpretando subjectivamente. Nem uma nem
outra so, contudo, suficientes. Estamos ainda, segundo Deleuze,
numa falsa aprendizagem. Saltamos de uma para outra, remediamos,
compensamos, mas no chega. E num momento qualquer
pressentimos, pressentimos a insuficincia, a impossibilidade de
chegar a uma revelao definitiva.
30 PS, p. 32.
32
Para l destes dualismos, dos objectos designados, para alm
das verdades formuladas, das associaes subjectivas, existe uma
terceira possibilidade, uma outra possibilidade de mundo, um terceiro
termo: a essncia que constitui a verdadeira unidade do signo e do
sentido (). ela a ltima palavra da aprendizagem ou a revelao
final.31 Quer dizer, a revelao (que a aprendizagem, o
pressentimento), enquanto procedimento de traduo pode revelar o
que h de mais profundo, mais do que o objecto e mais do que o
sujeito um meio povoado de essncias. Se ela [a revelao] se deve
fazer, l [na arte] que se far. O segredo da essncia pressente-se,
capta-se e manifesta-se pela obra de arte. A aprendizagem tem ento
a, plenamente, o seu campo de aco.
Revelados na obra de arte os signos reagem a todos os outros
domnios, reagem a todos os outros signos (os que so incapazes de
captar o segredo da essncia). So signos, essncias, algicos ou
supra-lgicos. Ultrapassam tanto os estados de subjectividade como
as propriedades do objecto.32
No existem leis mecnicas entre as coisas, nem comunicaes
voluntrias entre os espritos, dir Deleuze. A verdadeira
aprendizagem, pressentida (a aprendizagem da arte, portanto,
esttica), sempre um encontro involuntrio. Se atravs das etapas
progressivas da aprendizagem no chegarmos a uma revelao final
(da arte), no compreenderemos nada da essncia. preciso, pois,
progressivamente, por etapas, pressentindo, chegar arte. Aquele que
aprende, percorre um trajecto esttico, far necessariamente uma
iniciao, etapa a etapa, signo a signo at ao ltimo.
o caso do egiptlogo que, pela aprendizagem, ultrapassa
etapas e progressivamente atinge os ltimos signos; pelo estilo
transforma-os e atinge a finalidade do mundo. A memria involuntria
31 PS, p. 50. 32 Idem.
33
no seu papel secundrio, na incarnao das essncias, prepara-o para
o segredo, quer dizer, prepara-o para a revelao.
Sobre esta questo, retenhamos o que de essencial Deleuze
dir em Diffrence et rptition: o aprendiz aquele que pode reunir
todos os elementos e inventar problemas prticos ou especulativos,
mas ser forado que o faz, porque no est de modo nenhum
tranquilo. Aprender distinguir-se- e ser diferente de saber. O
primeiro designa o que convm aos actos subjectivos operados em
face da objectividade do problema (Ideia) e evolui progressivamente
na compreenso dos problemas; o segundo diz respeito
generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das
solues, quer dizer, que nada se fora e a calma posse traz
tranquilidade.
Ora, a soluo de um problema no vem de uma calma posse,
mas de uma conjugao ou correlao, de um ajustamento, ideal e
intranquilo, das nossas percepes com os elementos.
O aprendiz o que faz ento , explorar a Ideia/hierglifo
(elemento do aprender), elevar as faculdades ao seu uso paradoxal,
fazendo do seu aprender uma verdadeira estrutura transcendental que
une, sem as mediatizar, a diferena diferena, a dissemelhana
dissemelhana33.
Em sntese: aprender pode ser definido de duas maneiras
complementares que se opem igualmente representao no saber:
ou aprender penetrar na Ideia, nas suas variedades e nos seus
pontos notveis; ou aprender elevar uma faculdade ao seu exerccio
transcendental disjunto, elev-la a este encontro e a esta violncia que
se comunica s outras.34
Em qualquer dos casos, aprender pressentir,
progressivamente num salto. qualquer coisa da ordem de um outro
tempo e espao, onde se joga de uma s vez todo o hierglifo, tudo o
que est por vir e por acontecer, qualquer coisa mais mnima que o
33 DR, p. 280. 34 DR, p. 320.
34
mnimo, como uma imperceptvel mudana atmosfrica. Pressentimos
sem compreender e tendo j decidido o que quer que seja, que no
sabemos ainda, o futuro. Vai-se at uma extremidade (do cordo da
violncia) mxima, fica-se numa espcie de estado segundo, numa
suspenso de um intervalo, de um qualquer tempo ou espao. Deste
modo, aprender passa sempre pelo inconsciente, passa-se sempre
no inconsciente, estabelecendo, entre natureza e o esprito, o liame de
uma cumplicidade profunda.35
Neste ponto extremo em que estamos num momento qualquer,
na aprendizagem, pode estar a origem radical das Ideias36, o
pensamento puro no seu mximo impoder. Est o Eu fendido de um
cogito dissolvido, neste impreciso momento e lugar, nesta zona jamais
recoberta, est um corpo aberto, rasgado e estilhaado, um corpo
tambm ele fendido e afundado de pressentimentos, uma matria que
emite signos a decifrar.
Quando se sai e se pergunta de onde se vem e no se sabe,
da mesmo que se vem. Desse ponto extremo. Deleuze chama-lhe,
citando Nietzsche: algo irredutvel no fundo do esprito: um bloco
monoltico de Fatum, de deciso j tomada sobre todos os problemas
na sua medida e na sua relao connosco; e, ao mesmo tempo, um
direito que temos de aceder a certos problemas, como a sua marca
feita com ferro em brasa sobre os nossos nomes.37 Ou ainda,
chegados ao ponto desrtico, aleatrio, original, cego, acfalo, afsico,
que designa a impossibilidade de pensar o que o pensamento e que
se desenvolve na obra como problema e onde o impoder se
transmuta em potncia, chegados a, nesse pressentimento,
afundados, capturamos antecipadamente a correspondncia entre o
signo e o sentido (numa antecipao preferencial decisiva). Esta
espcie de afundamento faz ressonncia, produz efeitos, produzindo
uma outra natureza a essncia. Uma nova forma de unidade.
35 DR, pp. 277-278. 36 DR, p. 321. 37 DR, p. 329.
35
3. Estilo
a. Estilo hierglifo
A concepo de estilo na primeira parte (1964) de Proust et les
signes no a mesma que se desenvolve na segunda parte (1970).
No se pode afirmar que a segunda surja por oposio primeira. Esta
ltima, certo, no define ainda com clareza a noo de estilo. O que
acontecer depois. Podemos assim falar primeiro de um estilo-
hierglifo, que aparece como um esboo imperfeito (com
determinaes porventura mesmo opostas) da segunda concepo a
que Deleuze chamar estilo Anti-logos.
Como antes vimos a aprendizagem (o aprendiz) ultrapassa
etapas e progressivamente atinge os ltimos signos, que se revelam na
arte. O estilo transforma-os e atinge a finalidade do mundo a
revelao final. Esta finalidade ressoa pelo estilo, produzindo uma
outra natureza que ser a essncia, como a essncia ser ela mesma
a diferena. Ainda no um estilo Anti-logos mas tambm no ser um
estilo logos porque este se recusa (quebra-se o logos). S h
hierglifos, interpretao de hierglifos. O egiptlogo trabalha
decifrando o que est cifrado. ele o aprendiz.
Mas, o seu trabalho no qualquer coisa que se aprenda por
imitao ou assimilao, fazendo como se. Se h aprendizagem, se h
estilo, por uma evoluo no paralela. A definio geral de evoluo
diz que a aprendizagem se produz por uma sequncia de movimentos,
de transformaes orientadas numa certa direco, num
desenvolvimento processual. Mas, evoluo a-paralela quer dizer outra
coisa - devir. No , portanto, uma s coisa que se produz. So duas
diferentes que se ligam mudando ambas as suas determinaes.
Muda o aprendiz e o hierglifo. uma evoluo entre dois seres que
36
no tm nada a ver um com o outro38. O meio revelador, etapa ltima
para alcanar a essncia, o estilo.
Pode dizer-se dele que uma fora genial, liberdade da
natureza ou a coisa mais natural do mundo, etc. Mas uma das
caractersticas que melhor o definem , precisamente, o privilgio
desse pressentir. Privilgio que se exprime como qualidade comum39
e se manifesta de mltiplas maneiras: na arte em geral, na filosofia, na
cincia, nas vidas, etc. Aprendemos pressentindo numa antecipao
preferencial decisiva, enquanto devir (Os devires so o que h de mais
imperceptvel. So actos que s podem estar contidos numa vida e
expressos num estilo. Os estilos, tal como os modos de vida, no so
construes.40). Mudamos como numa metamorfose. Um devir toma
forma, encarna-se nas matrias, faz-se corpo. isso que faz o estilo,
uma metamorfose.
O estilo comea quando dois objectos diferentes, mesmo
vizinhos mas distantes, se misturam de alguma maneira, se ligam,
trocam ou associam, embora no formem uma unidade. Precisamente
porque a unidade que est posta em causa. Movimento de dupla
captura (evoluo a-paralela), fazendo com algum que no tem
relao de semelhana com o que aprendemos uma espcie de
sistema de passagem (se aprendo a nadar, diz Deleuze, preciso que
os meus movimentos e os meus repousos, as minhas velocidades e as
minhas lentides apanhem ou capturem um ritmo comum com os do
mar, de acordo com um ajustamento mais ou menos durvel e com o
qual no tenho relao de semelhana. Perdendo e ganhando tempo
nesse ajustamento indeterminado. Qualquer tipo de aprendizagem pe
em correspondncia pontos notveis, atravs de ritmos e do resultado,
e quando a aprendizagem est feita, nasce o estilo. Outro exemplo: a
criana que aprende a andar de bicicleta faz progressivamente
38 D, p. 13. 39 PS, p. 61. 40 D, p. 13.
37
corresponder o peso do tronco, a sua inclinao com o peso e a
velocidade da bicicleta, a posio dos braos, da cabea, das pernas
com a posio do volante, das rodas, etc. do veculo, de maneira a
obter um equilbrio nico, uma unidade de equilbrio entre o equilbrio
da bicicleta e o equilbrio do seu corpo e isto em todos os graus de
velocidade, lentido, acelerao, etc., do movimento. O corpo e a
bicicleta formam um nico equilbrio, s tornado possvel pela maneira
prpria como o corpo entrou em conexo consistente com o veculo e
essa maneira define o estilo, o estilo daquela criana a andar de
bicicleta). Fazendo com, sem formar uma unidade.
Qual ento a natureza especial desta no unidade, que no
resulta de uma unificao prvia? Esta no unidade sem relao de
semelhana que num instante qualquer surge evolui e assegura a troca
dos pontos de vista, a comunicao das essncias, a coerncia das
qualidades, surgir ela segundo a lei da essncia ou do tempo, como
uma parte ao lado das outras, signo ou pedao localizado, fragmento
sem unidade anterior? Nesta primeira etapa, a formao do estilo ainda
s uma espcie paradoxal de tratamento ou transmutao,
movimento de incarnao de uma matria numa outra matria
luminosa. E, Incarnar, modular, desmaterializar adequar essncia,
diferenciar.
Ser sem lei, comear num momento qualquer porque o
tempo tem o estranho poder ( a sua lei) de afirmar simultaneamente
pedaos que no fazem um todo no espao, como no formam um por
sucesso no tempo. E ser sempre necessrio tempo para interpretar
um signo, todo o tempo o de uma interpretao, quer dizer de um
desenvolvimento.41 Seja o tempo que perdemos (signos mundanos), e
o tempo perdido (signos amorosos), seja uma nova estrutura do tempo,
o tempo que reencontramos (signos sensveis), e finalmente o tempo
reencontrado (signos artsticos). No tempo existiro quatro linhas.
41 PS, p. 106.
38
No contexto da obra que analisamos, ainda que s na primeira
parte, o estilo define-se como uma certa interpretao/traduo dos
signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, como um
movimento que cruza diferenas de potencial, entre as quais qualquer
coisa se pode passar ou produzir, que j uma necessidade paradoxal
do pensamento fortuita e inevitvel.
Movimento de criao que vai at ao ponto em que a cadeia
associativa quebrada e as matrias se rompem, saltam, transmutam,
desmaterializam, espiritualizando-se, refractando-se e exprimindo-se
em palavras, conceitos, cores, sons.
H aqui um tratamento da matria para que ela sofra uma
metamorfose, que a torna qualidade de um mundo e determinao que
diferena. Tal a imagem, o produto do estilo. matria-movimento
na qual o signo talhado em diferena.
Sendo qualidade de um mundo, a essncia no se confunde
jamais com um objecto, mas ao contrrio re-aproxima dois objectos
completamente diferentes, que no tm absolutamente nada a ver um
com o outro, apercebendo-nos ns ou pressentindo que eles tm esta
qualidade num meio revelador. Ao mesmo tempo que a essncia se
incarna numa matria, a qualidade ltima que a constitui exprime-se
ento como a qualidade comum a dois objectos diferentes, modulados
nesta matria luminosa, mergulhados neste meio refractante42.
Contida numa vida, a essncia, exprime-se por um estilo. Uma espcie
de nascimento continuado do mundo. Reencontrado nas matrias
adequadas s essncias, nascimento que pe os objectos em devir.
O estilo no uma criao psicolgica individual, particular, uma
construo, mas sim uma potncia de vida que se afirma com uma
fora individualizante, uma obstinao da prpria essncia, um dom.
O nascimento/criao do mundo o nascimento extraordinrio
do Tempo. Para espiritualizar a matria e torn-la adequada
42 PS, p. 61.
39
essncia, o estilo reproduz a instvel oposio, a complicao original,
a luta e a troca dos elementos primordiais43.
Contudo, pode dizer-se que no h nada na definio que o
defina, tratando-se mesmo de um conceito dos mais difceis de
analisar. No h metodologias, regras, nada seno uma longa
preparao. Digamos que um procedimento ou tratamento da
matria, adequao que d identidade a um signo; indicando, j
vimos, como dois objectos completamente diferentes mudaram,
determinando-se, mudando mesmo de nome.44 Simultaneamente a
diferena ltima absoluta (matria e essncia no sero duas mas uma
s) que indica e reproduz. Indica uma possibilidade de devir e ao
mesmo tempo reproduz (interpreta, como se pode interpretar uma
grande msica) de forma continuada o comeo do mundo. Numa
palavra, o estilo a prpria essncia.
A obra de um grande artista no envelhece seno quando, por
usura do seu crebro, ele julga mais simples encontrar directamente
na vida, como j construdo, o que ele no podia seno exprimir na sua
obra (). O artista envelhecido confia na vida, na beleza da vida;
mas, do que constitui a arte, ele no tem mais do que sucedneos,
repeties que se tornaram mecnicas, porque exteriores, diferenas
congeladas que recaem numa matria no sabendo j como a tornar
leve e espiritual.45 No sabendo j como encontrar essa qualidade
comum, no pode compreender a vida, no pode decifrar nem fazer
esse tratamento da matria.
Quem sabe como se tornar num grande escritor?46 H
qualquer coisa que no podemos saber no comeo, podemos no
entanto comeamos por isso, pelo meio e fazemos uma
aprendizagem que parece tempo que perdemos, tempo perdido, mas
tambm tempo que reencontramos, tempo reencontrado47.
43 PS, P. 62. 44 Idem. 45 PS, p. 63. 46 PS, p. 32. 47 PS, p. 34.
40
b. Estilo Anti-logos
Na segunda parte de Proust et les signes, que Deleuze
acrescentou j depois de ter escrito Diffrence et rptition e Logique
du sens, aparece um captulo expressamente dedicado ao estilo. Ser
o ltimo antes da concluso48.
Enquanto na primeira parte o estilo essncia/diferena,
tratamento da matria na segunda ser: estrutura formal significante
da obra49. Retoma-se, do incio, a problemtica da unidade, no j
maneira de Plato, Deleuze considera que ela se encontra deslocada
de uma maneira que preciso dizer moderna, essencial literatura
moderna50.
Antes, tinha-se um pressentimento do que era o estilo. Ele
reproduzia a instvel oposio, a complicao original, a luta, etc.,
reencontrava o mundo fazendo-o continuadamente nascer. O
estilhaamento da ptria desconhecida51 (da unidade primeira) ainda
no tinha acontecido, existia uma espcie de garantia que no se tinha
dissolvido, mas havia j, tambm, um outro pressentimento o estilo
no-estilo.
Agora sabe-se que o estilo vale para todas as imagens. ele
que substitui a experincia ou a maneira como falamos dela ou a
frmula que a exprime, o indivduo no mundo pelo ponto de vista sobre
o mundo52, ele a expresso do caos, de um mundo que se torna
catico, violento. A violncia a violncia do caos que estilhaa
definitivamente a ordem do cosmos e para o qual no existem mais
garantias nem essncias estveis. A arte no encarna j as 48 Deleuze esclarece no prefcio da terceira edio de PS que a segunda parte tinha sido acrescentada segunda edio em 1970 e a concluso desta nova edio uma verso de um texto de 1973. 49 PS, p. 134. 50 Idem. 51 PS, p. 57. 52 Idem, p. 134.
41
essncias ideais. Talvez por isso, o problema da unidade se encontre
deslocado. A relao entre essncias, pensamento e criao artstica
inverteu-se. J no se trata mais de dizer: criar pensar mas,
pensar criar, e em primeiro lugar criar o acto de pensar no
pensamento.53 O que foi, ento que mudou?
O que est agora em causa, numa concepo no dialctica da
obra de arte moderna, um mundo em fragmentos, pedaos que j
no pertencem a uma totalidade orgnica preestabelecida nem a uma
unidade (logos) mesmo que perdida. As partes j no se deixam
ajustar, no se desenvolvem ao mesmo ritmo nem com a mesma
velocidade, so tantos os meandros que necessrio recolher cada
pequeno fragmento e ajust-lo sua velocidade (diferente de todas as
outras), cada um derivando/reenviando a uma srie diferente ou
mesmo a nada.
As partes e os fragmentos, na sua existncia ltima, falam e
valem por si, no se apoiam mais num logos subsistente: s a
estrutura formal da obra de arte ser capaz de decifrar o material
fragmentrio que ela utiliza, sem referncia exterior, sem grelha
alegrica ou analgica.54 S-lo-, porque entre todas as partes existir
uma espcie de sistema de passagem que traar transversais
entre os signos (que sero sempre fragmentos sem totalizao nem
unificao).
No primeiro captulo Deleuze tinha feito uma classificao
proustiana dos signos que vai alterar no quarto captulo da segunda
parte: numa primeira ordenao juntar signos naturais e artsticos;
numa segunda, agrupar-se-o os prazeres e as dores, signos
mundanos e amorosos; finalmente, a terceira, dizendo sempre
respeito arte, mas definindo-se pela alterao universal, a morte e a
ideia de morte, a produo de catstrofe55.
53 PS, p.134. 54 PS, p.137. 55 PS, p. 179.
42
A primeira ordenao caracteriza-se por uma produo de
objectos parciais, tal como foram definidos anteriormente, fragmentos
sem totalidade (). O segundo tipo de mquina produz ressonncias,
efeitos de ressonncia56 que j no repousam sobre os pedaos
fornecidos pelos objectos parciais.
O que mudou, o que novo, a forma como a obra de arte
moderna no relaciona experincias extra-literrias mas produz uma
experimentao artstica57. A obra de arte moderna uma mquina,
produz simultaneamente em si e sobre si mesma ressonncias,
preenche-se e alimenta-se delas. A ressonncia (a essncia) j no
finalidade do mundo, produtora de um certo efeito mas em
condies naturais dadas, objectivas e subjectivas58. Quer dizer, ela
produz e extrai de si prpria os pedaos.
A noo de finalidade do mundo desaparece. O estilo , nestas
condies, o que faz ressoar dois objectos quaisquer e destaca uma
imagem preciosa das condies naturais que a determinam.
Enquanto as duas primeiras ordens eram produtivas (tornando a
conciliao possvel), a terceira parece completamente improdutiva,
absolutamente catastrfica, porque dominada pela ideia de caos e de
morte. Mas, se nesta ltima ordenao considerarmos que esta ideia
consiste num certo efeito do tempo, (um movimento que do passado ao
presente se duplica e atravs de um segundo movimento forado de
amplitude maior varre tanto o passado como o presente, dilatando
infinitamente o tempo, enquanto a ressonncia o contrai ao mximo)
ento, ela torna-se menos confusa e deixa de ser uma obstculo
improdutividade referida. Podemos conect-la com uma ordem de
produo, dando-lhe ento o seu lugar na obra de arte. O movimento
forado de grande amplitude uma mquina que produz o efeito de
recuo ou a ideia de morte.59
56 PS, pp. 180-181. 57 PS, p. 184. 58 PS, p. 186. 59 PS, p. 192.
43
A amplitude portadora da ideia de morte embraia numa
ressonncia e conecta o que no produtivo com a ordem de
produo. O que se perde na amplitude do movimento forado ganha-
se, como condio da forma, na obra.
Talvez seja isso o tempo, escreve Deleuze: a existncia ltima
das partes de tamanhos e de formas diferentes, que no se deixam
adaptar, que no se desenvolvem ao mesmo ritmo, e que o rio do estilo
no arrasta mesma velocidade.60
Se no h totalizao nem unidade, se o mundo no tem mais
contedos significantes, se as cadeias associativas se rasgaram,
estilhaaram, a essncia j no pode ser a mesma. Ento, o que faz a
unidade de uma obra? O que que nos faz comunicar com uma
obra? O que que faz a unidade da arte, se que h uma unidade?
Recusmos a ideia de procurar uma unidade que unificasse as partes,
um todo que totalizasse os fragmentos. Parece natural que as partes
ou os fragmentos excluam o logos assim como a unidade lgica e a
totalidade orgnica. Mas h, deve haver uma unidade que a unidade
deste mltiplo, desta multiplicidade, como um todo destes fragmentos:
um Uno e um Todo que no sejam princpio, mas que sejam ao
contrrio efeito do mltiplo e das suas partes desconexas. Uno e
Todo que funcionem como efeito, efeito de mquinas, em vez de
agirem como princpios.61
Sendo assim, o problema da obra de arte moderna o de uma
unidade/totalidade no lgicas, no orgnicas (unidade e totalidade
no pressupostas nem formadas por um desenvolvimento), definindo-
se melhor como uma questo de consistncia. O exemplo dado, por
Deleuze, para este novo tipo de obra de arte, a nova literatura de
Balzac, que soube produzir esse efeito. Embora no tenha estilo
poder tambm dizer-se o mesmo de Proust. Este no estilo ter
efeitos na literatura. Em Balzac, ele explica, e explica com imagens.
Em Proust tambm. Ele [o estilo] no-estilo, porque se confunde
60 PS, p. 137. 61 PS, p.195.
44
com o interpretar puro e sem sujeito (). O estilo explicao dos
signos, a velocidades de desenvolvimento diferentes, seguindo cadeias
associativas prprias a cada um deles, () comea com dois objectos
diferentes, distantes, mesmo se so contguos: pode acontecer que
estes dois objectos se paream objectivamente, sejam do mesmo
gnero; pode acontecer que eles estejam ligados subjectivamente por
uma cadeia de associao. O estilo ter arrastado tudo isso, como um
rio arrasta os materiais do seu leito; mas o essencial no est l.62
O estilo comea a, mas o essencial no est l, diz Deleuze.
Estar, ento, nos efeitos produzidos (ressonncia, movimentos
forados), na multiplicidade, na coexistncia numa nica frase de
infinitos pontos que se deslocam, ressoam e amplificam. No seu interior
(da frase, do som, do trao, da cor, etc.), no silncio e nas palavras, no
que diz e no diz, na sintaxe, no vocabulrio particular, a onde se
multiplicam os efeitos, produz-se o estilo. Esta produo em estado
puro encontra-se na arte, pintura, literatura ou msica, sobretudo na
msica63. Quer dizer, esta produo encontra-se nos ltimos signos,
tal como foram definidos na primeira parte, o estilo explica-os, envolve-
os e desenvolve-os. Mas quanto mais descemos nos graus da
essncia, que correspondem aqui aos quatro tipos de signos (dos
signos artsticos aos da natureza, sensveis; dos do amor aos do
mundo), mais necessidade temos de introduzir um mnimo de
descrio objectiva e de sugesto associativa. Estaremos ento,
verdadeiramente, cada vez mais longe deste sentido de estilo, mais
longe ainda de resolver o problema da unidade. Ainda assim, o estilo
traz qualquer coisa, explica e confunde-se com o interpretar puro e
sem sujeito, pode no ser ele a trazer a unidade, como no o ser
certamente tambm a essncia. Para Deleuze, ela vem de outra fonte.
Contudo nos meandros e nos anis de um estilo Anti-logos que ela
[a obra] faz tantos desvios quantos achar necessrios para juntar os
pedaos ltimos, conduzindo-os a velocidades diferentes e onde cada
62 PS, p.199. 63 PS, p. 200.
45
um reenvia a um conjunto diferente, ou no reenvia a nenhum conjunto
de todo, ou ento, no reenvia a nenhum outro conjunto seno ao
estilo.64
Finalmente, pergunta pela unidade, essa unidade que surge
como efeito e assegura a criao e o pensamento, Deleuze responde
no final da segunda parte: num mundo reduzido a uma multiplicidade
de caos, somente a estrutura formal da obra de arte, enquanto no
reenvie a outra coisa que pode servir de unidade (). Mas todo o
problema saber sobre qu repousa esta estrutura formal, e como
que d s partes e ao estilo uma unidade que eles no tero sem ela.
() a estrutura formal da obra ento a transversalidade65.
A noo de transversalidade parece, num breve momento do
pensamento de Deleuze, extremamente promissora. Em particular, no
que respeita questo da ontologia. ela que permite, no unificando
nem totalizando, um discurso, a possibilidade de uma ontologia, j que
tem a potncia de ser o todo destas partes sem as totalizar, a unidade
de todas estas partes sem as unificar66.
Como soluo, no entanto, a noo de transversalidade revela-
se ainda insuficiente. O pressentimento/aprendizagem, o estilo Anti-
logos, a emisso e interpretao de signos, a sua no
unidade/totalizao, a sua produo e multiplicao sero
atravessados por, e correspondero a uma linha de tempo privilegiado
(uma linha transversal de todos os espaos possveis espaos e
tempos). Linha primordial que vai at ao ponto em que a cadeia
associativa se rompe, salta para fora do indivduo constitudo67.
Deleuze dir ainda mais tarde, na concluso deste ensaio, (texto
acrescentado em 1973) que ser no j a transversalidade mas, o
64 PS, p. 139. 65 PS, p. 202. Deleuze vai buscar o conceito de transversalidade a Felix Guattari. Ele mesmo, o refere em nota na pgina 201. 66 PS, p. 203. 67 PS, p. 134.
46
corpo sem rgos68 o corpo ideal para poder criar esse acto de
pensar no pensamento.
Esta questo atravessar, como veremos a seguir, toda a obra
de Deleuze, talvez porque se trate sempre de uma questo de
intensidade, sintaxe (um estado de tenso para qualquer coisa que
no sintctico ) ou encanto69, porque os que no tm encanto no
tm vida, so como mortos.70
Diante deste mundo continuamente acabado de nascer, que
vale a banalidade da vida? No valer nada se a prpria vida no for
contaminada por esta incarnao, transmutao, por este corpo
intenso, em tenso, sentido que contra-sentido, fonte de vida, xtase,
beatitude, diferena ltima e absoluta; e, como veremos mais adiante,
nada vale se ela no atravessar os meios mais opacos, mais materiais,
num lance de dados necessariamente vencedor71.
O estilo ser ento uma heterogeneidade que faz a diferena.
No uma organizao reflectida, nem uma estrutura significante
qualquer, nem ainda, uma inspirao espontnea. No somente
particular, individual, mas sim individualizante, determina a posio,
ajusta e marca, incarna e faz devir as matrias.
Dirige-se ao novo, o novo no pensamento, no modo de ver e
entender ou experimentar. Trata-se ento, de um poder que rasga a
homogeneidade, criando as suas prprias impossibilidades e
simultaneamente saindo delas.
Duas coisas se lhe opem: uma linguagem homognea, j
sabemos, ou ao contrrio uma heterogeneidade muito grande.
Heterogeneidade e homogeneidade so ao mesmo tempo duas fortes
possibilidades de oposio: a primeira quando to grande que se
transforma em indiferena, a segunda porque reduz totalmente o novo,
68 Noo retomada, a Antonin Artaud e depois desenvolvida por Deleuze, para marcar o grau zero das intensidades. (Doravante usaremos tambm a abreviatura que o prprio Deleuze utilizava: CsO) 69 Em francs charme. 70 D, p. 15. 71 Idem.
47
o diferente ao indistinto. Entre uma e outra deve haver uma tenso uma
espcie de zigzag. o movimento que Deleuze desenha com a mo no
Abecedrio72. E talvez seja o movimento elementar, o movimento que
presidiu criao do mundo.
Estilo - zigzag sempre necessrio, com ele elevam-se as
percepes vividas ao percepto, as afeces vividas ao afecto73. a
sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um msico, os traos e
cores de um pintor (). O escritor serve-se de palavras, mas criando
uma sintaxe que as faz passar para a sensao, e que faz balbuciar a
lngua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: o estilo, o
tom, a linguagem das sensaes, ou a lngua desconhecida em toda a
lngua, aquela que solicita um povo por vir, oh gente do velho Catawba,
oh gente de Yoknapatawpha. O escritor retorce a linguagem, f-la
vibrar, constrange-a, fende-a para arrancar o percepto s percepes,
o afecto s afeces, a sensao s opinies tendo em vista,
esperamo-lo, esse povo que no existe ainda. () precisamente a
tarefa de toda a arte, e a pintura, a msica no fazem mais do que
arrancar s cores e aos sons os novos acordes, as paisagens plsticas
ou meldicas, as personagens rtmicas que as elevam at ao canto da
terra e ao grito dos homens: o que constitui o tom, a sade, o devir, um
bloco visual e sonoro.74
O filsofo far o mesmo com os conceitos, eles so
exactamente como os sons, as cores, ou as imagens, so
intensidades75 que nos convm ou no. So criaes e entre elas h
ressonncias e movimentos forados. Quer dizer, tambm para o
filsofo uma questo de sintaxe76.
72 Cf. L Abcdaire de Gilles Deleuze, Vido Editions Montparnasse, 1996. 73 Como veremos, o afecto e o percepto diferenciam-se respectivamente das afeces e das percepes, sobretudo pela intensidade e por no se referirem j a um vivido da conscincia. 74 QF, p.150 e 155. 75 D, p. 14. 76 Cf. Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990. (Doravante, P), p. 223. Mais la syntaxe est un tat de tension vers quelque chose qui nest pas syntaxique ni mme langagier (un dehors du langage). En philosophie, la syntaxe est tendue vers le mouvement du concept.
48
O estilo cria sensaes, e sensao, agenciamento de
enunciao. Mas que agenciamento? Em Critique et clinique, Deleuze
relaciona o estilo com a gaguez, detectando nesta uma forma especial
de enunciado performativo: quando dizer, fazer operao potica,
qualidade atmosfrica que faz balbuciar, gaguejar a lngua. Quando
a gaguez que introduz as palavras que afecta; estas j no existem
independentemente da gaguez que por si prpria selecciona e as
liga.77 Ora o escritor e sobretudo o grande escritor introduz
variaes inditas na lngua, abala-a, desestrutura-a, f-la gaguejar.
essa a condio da criao de uma nova linguagem literria. O escritor
toma as suas foras numa menoridade muda, desconhecida, que s
lhe pertence a ele. um estrangeiro na sua prpria lngua: no mistura
uma outra lngua sua prpria lngua, talha na sua lngua uma lngua
estrangeira que no preexiste. Quando isto acontece a lngua vibra
(como a teia de aranha recolhe a mais pequena vibrao que se
propaga em ondas intensivas, sem olhos, sem nariz, sem boca, ela
[aranha] responde unicamente aos signos78), balbucia, porque tudo
est em perptuo desequilbrio, luta ou combate, corpo a corpo, tudo
bifurca de acordo com o modo prprio com que cada um percorre esta
zona de variao contnua.
No h nada a compreender nem a interpretar, o estilo no-
estilo, definir Deleuze. , a propriedade daqueles de quem dizemos
habitualmente no tm estilo.79 Mesmo e tambm dos filsofos. O
problema comum s artes, cincias e filosofia. Todas elas so
criadoras. pergunta: como v hoje esta questo do estilo da
filosofia?80, Deleuze responde:
- Os grandes filsofos so tambm grandes estilistas. O estilo
em filosofia o movimento do conceito. Com certeza, este no existe
fora das frases, mas as frases no tm outro objecto seno o de lhe
dar vida, uma vida independente. Construir uma variao contnua da
77 CC, p. 146. 78 PS, p. 218. 79 D, p. 14. 80 Magazine Littraire, p. 19, 1988.
49
lngua e mant-la, modular e criar uma tenso de toda a linguagem
para um fora eis o que fabricar o estilo. Em filosofia, como num
romance: devemos perguntar-nos o que que vai acontecer?, o
que que se passou?, somente os personagens so os conceitos e
os meios, as paisagens so os espaos-tempos. Escrevemos sempre
para dar a vida, para libertar a vida l onde ela est prisioneira, para
traar linhas de fuga. Para isso, preciso que a linguagem no seja um
sistema homogneo, mas um desequilbrio, sempre heterogneo: o
estilo cruza a diferenas de potencial entre as quais qualquer coisa
pode suceder81.
Na verdade, estilo no uma boa palavra ( o prprio Deleuze
que o diz), trata-se de qualquer coisa que est entre dois, que tem a
sua prpria direco e orientao, a que se chama, como j vimos,
uma evoluo a-paralela ou no-estilo.
Como se chega ao no-estilo? Como se obtm este privilgio?
Espinosa, Proust, Balzac, no tm estilo. Mas h um estilo em
Espinosa que faz vibrar, em Balzac e Proust que explica. So
variedades que vibram ou explicam. Trata-se de uma linguagem
afectiva, intensiva, e no de uma afeco daquele que fala. O estilo
no uma criao psicolgica, particular, no de natureza subjectiva.
sim um estilo, que a velocidades diferentes ressoa e reenvia para um
duplo processo: boom e krach (expanso e queda ou falncia
ressonncia e movimento forado). O boom e o krach esto
precisamente, longe do equilbrio. Fazer vibrar a lngua, faz-la
gaguejar, desconect-la da lngua materna, inventar um uso menor da
lngua maior, faz-la fugir, ir por uma linha de feiticeira82 mesmo
esse processo duplo que nos faz progredir e responde pergunta.
Arruinar, destruir, espalhar, desconstruir, desmaterializar, deformar,
expandir, esticar, transformar o breve em longo, deslocar, ressoar,
forar, decepcionar e remediar a decepo, contraco, distole,
sstole
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