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ANGELA NUCCI
FORMA E CONSCIÊNCIA: O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO
ARTÍSTICO-FILOSÓFICO NA OBRA DE KAZÍMIR MALIÉVITCH
CAMPINAS SP
2015
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ANGELA NUCCI
FORMA E CONSCIÊNCIA: O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO
ARTÍSTICO-FILOSÓFICO NA OBRA DE KAZÍMIR MALIÉVITCH
ORIENTADOR: PROF. DR. NELSON ALFREDO AGUILAR
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do Título de Doutora em História. Área de concentração: História da Arte.
Este exemplar corresponde à versão final da Tese de Doutorado defendida pela aluna Angela Nucci, orientada pelo Prof. Dr. Nelson Alfredo Aguilar e aprovada em 24/02/2015.
CAMPINAS SP
2015
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Nucci, Angela, 1980- N883f NucForma e consciência : o desenvolvimento do pensamento artístico-filosófico
na obra de Kazímir Maliévitch / Angela Nucci. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
NucOrientador: Nelson Alfredo Aguilar. NucTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas.
Nuc1. Malevich, Kazimir Severinovich, 1878-1935. 2. Vanguarda (Estética) -
Rússia . 3. Mística. 4. Filosofia russa. I. Aguilar, Nelson Alfredo,1945-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Form and conscience : the development of the artistic-philosophicalthought in Kazimir Malevich workPalavras-chave em inglês:Avant-garde - Russia MysticRussian philosophyÁrea de concentração: História da ArteTitulação: Doutora em HistóriaBanca examinadora:Nelson Alfredo Aguilar [Orientador]Elena Nikolaevna VássinaRicardo Nascimento FabbriniAntonio Alcir Bernárdez PécoraPaulo Mugayar KühlData de defesa: 24-02-2015Programa de Pós-Graduação: História
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
iv
v
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa da Tese de Doutorado em sessão
pública realizada em 24 de fevereiro de 2015 considerou a candidata Angela Nucci
aprovada.
Este exemplar corresponde à redação final da Tese defendida e aprovada pela
Comissão Julgadora.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Nelson Alfredo Aguilar
(orientador)
Profa. Dra. Elena Nikolaevna Vássina
Prof. Dr. Ricardo Nascimento Fabbrini
Prof. Dr. Antonio Alcir Bernárdez Pécora
Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl
vii
Resumo
A presente tese tem por objetivo discutir quais seriam as ligações entre
o pensamento artístico-filosófico de Kazímir Sievierínovitch Maliévitch (1879-1935)
ao longo dos anos de 1920 em relação aos debates da intelligentsia russa do
início do século XX, especialmente aqueles ligados à tradição filosófico-mística.
A preocupação de estudar Maliévitch frente a alguns de seus
período histórico e, embora as escolhas bibliográficas revelem interesse pela
Filosofia russa, não se trata de uma tese centrada no âmbito da Filosofia, mas sim
da História da Arte e suas ligações com a História Intelectual e a História Cultural.
Ao longo de sua trajetória, Maliévitch fez uso de conceitos relacionados
à tradição filosófica como intuição, mística, não-objetividade, infinito e
transfiguração. Houve, portanto, a intenção de apresentar e discutir estes termos
dentro de uma coerência interna que integrasse aspectos históricos e artísticos.
Desconfiando da razão iluminista e das abordagens cientificistas do
conhecimento, muitos pensadores russos viam na intuição, na individualidade
criativa e no espírito o caminho para um conhecimento transcendente;
pensamento perseguido pelo regime soviético, que no início de 1920 determinou a
prisão e a deportação para o Ocidente de uma série de intelectuais russos. Dentre
este grupo é possível citar alguns dos mais destacados pensadores russos do
início do século XX, como Nikolai A. Berdiáev, Nikolai O. Losski, Pável A.
Floriênski e Sierguéi N. Bulgákov. Estes filósofos retomavam alguns dos debates
eslavófilos do século XIX e buscavam gerar novas discussões no campo filosófico,
social e cultural, frente aos contextos pré e pós-revolucionários.
viii
A partir desse panorama, buscou-se pensar em um quadro mais amplo
sobre os significados de algumas das questões abordadas por Maliévitch em seus
tratados e em suas obras. Em um primeiro momento, buscou-se refletir sobre a
produção pictórica pós-suprematista de Maliévitch, tanto no que diz respeito a sua
ligação com a tradição popular e religiosa, quanto aos problemas e significados no
contexto ideológico e artístico do período soviético. Um segundo ponto discutido,
refere-se aos desdobramentos dos debates místicos no projeto artístico de
Maliévitch, especialmente no período em que o artista viveu na cidade de Vitebsk,
a qual acolheu pela mesma época figuras da importância de Mikhail M. Bakhtin e
Pável N. Miedvédiev; estudiosos que estavam ligados a discussões e associações
religiosas. Em um terceiro nível, a redação concentra-se no problema da
representação artística e da livre criação no quadro da reconstrução social e de
forte enfrentamento ideológico
entre as correntes produtivistas,
-
por defenderem valores espirituais. Por fim, buscou-se evidenciar como a questão
da representação artística na obra de Maliévitch, ligada ao reconhecimento de
uma verdade dissociada da concepção objetiva da realidade, estava inserida em
um conjunto de ideias que ganhou proporção suficiente para se tornar uma
ameaça e ser diretamente combatido pelo regime soviético.
Palavras-chave: Malevich, Kazimir Severinovich, 1879-1935. Vanguarda - Rússia.
Mística. Filosofia russa.
ix
Abstract
The present thesis aims to discuss what would be the connections
between the artistic and philosophical thought of Kazimir Severinovich Malevich
(1879-1935) along the 1920s compared to the debates of the Russian intelligentsia
of the early twentieth century, especially those related to philosophical and mystical
tradition.
The concern of studying Malevich before some of his contemporaries is
to understand the "meaning and the spirit" of a particular historical period, and
although the bibliographic choices show interest in the Russian philosophy, it is not
a thesis centered within the philosophy, but on Art History and its links to
Intellectual History and Cultural History.
Throughout his career, Malevich made use of concepts related to the
philosophical tradition, such as intuition, mysticism, non-objectivity, infinite and
transfiguration. Therefore, the intention was to present and discuss these terms
within an internal coherence that integrates historical and artistic aspects.
Distrusting enlightenment reason and scientistic approaches to
knowledge, many Russian thinkers saw on intuition, creative individuality and spirit,
the way to a transcendent knowledge; idea pursued by the Soviet regime, which in
the early 1920s led to the arrest and deportation to the West of a number of
Russian intellectuals. Among this group we can mention some of the most
prominent Russian thinkers of the early twentieth century, as Nicolai A. Berdyaev,
Nicolai O. Lossky, Pavel A. Florensky and Sergei N. Bulgakov. These philosophers
retook some of the Slavophiles debates of the nineteenth century and sought to
generate new discussions on philosophical, social and cultural fields, compared to
pre and post-revolutionary contexts.
x
From this background, we tried to think of a broader picture of the
meanings of some of the issues addressed by Malevich in his treatises and in his
works. At first, we tried to reflect on the pictorial production post-Suprematist of
Malevich, both with regard to their connection with the popular and religious
tradition, the problems and meanings in the ideological and artistic context of the
Soviet period. A second point discussed refers to the unfolding of the mystics
debates in the artistic design of Malevich, especially in the period in which the artist
lived in the city of Vitebsk, which hosted the same time figures of the importance of
Mikhail M. Bakhtin and Pavel N. Medvedev; scholars who were linked to
discussions and religious associations. On a third level, the essay focuses on the
problem of artistic representation and free creation in the context of social
reconstruction and a "new man" in the period in which there was a strong
ideological confrontation between the productivist currents, advocates the
development of a "material culture" and the current non-figurative, named
"mystical" or "subjective" for defending spiritual values. Finally, we sought to show
how the issue of artistic representation in the work of Malevich, linked to the
recognition of a dissociated truth of the objective conception of reality, was inserted
into a set of ideas that gained sufficient proportion to become a threat and be
directly fought by the Soviet regime.
Keywords: Malevich, Kazimir Severinovich, 1879-1935. Avant-garde - Russia.
Mystic. Russian philosophy.
xi
Sumário
Introdução.............................................................................................................01
Capítulo 1. Maliévitch místico?...........................................................................21
1.1. Além do 0-1: Suprematismo e transfiguração..................................................21
1.2. Mística: Éter ou objeto de estudo?..................................................................38
1.3. Teologia Mística...............................................................................................49
.................65
1.5. Além da figuração............................................................................................79
Capítulo 2. Silhuetas do absoluto: Teologia negativa e Sem-objeto (Bezpredmietnost)..............................................................................................107
2.1. Equação do impossível: Maliévitch, misticismo e União Soviética................109
2.2. Poética do irrepresentável: O Nada como via do conhecimento...................117
2.3. A cultura popular na obra de K. Maliévitch....................................................125
2.4. A imagem limite: Pintura de ícone e a obra de K. Maliévitch.........................140
Capítulo 3. Notas de verão sobre impressões de inverno: Olhares sobre a cultura russa.......................................................................................................151
xii
3.1. Notas sobre as notas.....................................................................................151
3.2. Notas sobre a literatura russa........................................................................153
3.3. Notas sobre a filosofia russa..........................................................................191
3.4. Notas sobre o colecionismo e os museus de arte na Rússia........................203
Capítulo 4. Cultura e civilização: A disputa entre a consciência russa e a ideologia soviética..............................................................................................215
4.1. A intelligentsia russa do século XIX...............................................................215
4.2. A instauração de uma controvérsia: Vekhi (1909).........................................222
4.3. Cultura em disputa.........................................................................................238
Capítulo 5. Maliévitch em Vitebsk.....................................................................247
5.1. Unovis e o voo de Dédalo..............................................................................247
5.2. Dualismo e conciliação entre matéria e espírito na cultura artística e filosófica
russa.....................................................................................................................284
Capítulo 6: A cosmogonia suprematista..........................................................315
6.1. Apresentação das traduções.........................................................................315
6.2. Traduções do russo para o português dos escritos de Kazímir
Maliévitch..............................................................................................................320
6.2.1. Correspondência Maliévitch Ettinger (Vitebsk - Moscou, 03 de abril
de 1920)................................................................................................................320
xiii
6.2.2. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk- Moscou, 11 de
abril de 1920)........................................................................................................323
6.2.3. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 15 de
outubro de 1921)...................................................................................................328
6.2.4. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de
fevereiro de 1922).................................................................................................330
6.2.5. Tratado: O espelho suprematista (1923)..........................................333
6.3. A utopia do sem-objeto..................................................................................334
Conclusão............................................................................................................347
Referências bibliográficas.................................................................................355
xv
Agradecimentos
Certa vez, em um livro célebre que não carece de citações, Giacometti
nitidamente as coisas que pegam m mas como
grande artista falava sempre daquilo que antecede a ação.
Estou aqui, então, para falar de dentro da penumbra, que é de onde se
tem mais consciência e amor pela luz. E esta luz ainda recobre meus pais, Luis e
Eliane, a matéria e o amor de que sou feita. Irmãos Karamázov, você já leu? Leia -
era a pergunta do pai à filha criança - e a mãe fechava a cara, achando
inadequado à idade da menina. E eu folheava as ilustrações dos tomos, lia as
frases soltas, como que para agradar aos dois, sem fugir do conselho de nenhum.
E os dedos folhearam cada vez mais atentos ao longo dos anos também por eles.
Priscila, a irmã historiadora lia obstinada na cama ao lado, todos os
livros, todos os dias e ajudava a engordar as estantes e meu interesse pelo
mundo. Rafael, o irmão também mais velho, que já nasceu engenheiro e pedia de
presente motores para desmontar, ensinava as coisas que eu não poderia
aprender, só admirar na figura dele. E ainda hoje é assim.
E a luz recobriu os amigos, doces e amorosos que, por generosidade
do destino e deles mesmos, resistiram ao meu gênio e me ensinaram muito do
que sei agora.
Meu orientador, Nelson Aguilar, um homem verdadeiramente brilhante,
os dedos que passavam pensativos pelo cabelo prateado e as falanges de
estudioso que me ensinaram tanto sobre a Arte ao longo dos anos.
xvi
Ao sempre gentil, professor e tradutor, Nivaldo dos Santos, por sua
paciente ajuda com os termos e longas passagens intrincadas da escrita de
Maliévitch.
Aos membros da banca de qualificação e defesa por todo o auxílio e a
atenção que dedicaram à leitura do trabalho e, especialmente, à Elena Vássina,
pela ajuda em toda a trajetória da pesquisa, desde o Mestrado.
Aos professores e funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas e do Instituto de Artes da Unicamp pela participação em minha
formação acadêmica.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) pelo financiamento da pesquisa.
E, em especial, ao meu amor, Frederico.
Obrigada.
xix
Tabela de transliteração russo-português
A transliteração do russo para o português foi realizada conforme
mostra a tabela abaixo. Nos casos da transcrição de alguns nomes próprios,
optou-se por manter a forma mais convencional adotada.
Alfabeto russo Transcrição para registro catalográfico ou linguístico
Adaptação fonética
A B V G D E Io J Z I I K L M N O P R S T U F Kh Ts Tch Ch Chtch
Y
È Iu Ia
A B V
G, Gu antes de e ou i D E, Ie Io J Z I I K L M N O P R
S, SS (intervocálico) T U F Kh Ts Tch Ch Chtch
Y
È Iu Ia
xxi
Lista de Imagens
Imagem 1: Última exposição futurista - 0.10, Petrogrado, 1915-16. Fotografia, p.
22.
Imagem 2: Andréi Rubliev. Transfiguração, c. 1405, Kremlin, Moscou, p. 25.
Imagem 3: Ícone da Transfiguração, atribuído a Theófanes, o Grego. Início do
século XV. Galeria Tretiakov, p. 25.
Imagem 4: Transfiguração, Escola de Novgorod, século XV início XVI, p. 26.
Imagem 5: Transfiguração, c. 1516. Monastério de Iaroslav, p. 26.
Imagem 6: K. Maliévitch. Cabeça de camponês, 1928-1932. Ost. 55 x 44.5 cm.
Museu Russo, p. 82.
Imagem 7: K. Maliévitch. Duas figuras em transformação suprematista. Ost, 60.5 x
72 cm. c. 1928-32. Museu Russo, p. 82.
Imagem 8: Velório de K. Maliévitch, Leningrado, 1935. Fotografia, p. 95.
Imagem 9: Chegada do cortejo fúnebre na Estação, Leningrado, 1935. Fotografia,
p. 95.
Imagem 10: Una e Natalia Andreievna no local onde as cinzas de Maliévitch foram
dispersas, Nemchinovka, 1935. Fotografia, p. 95.
Imagem 11: K. Maliévitch. Esportistas, 1930-31. Ost, 142 x 164 cm. Museu Russo,
p. 102.
xxii
Imagem 12: K. Maliévitch. O Homem forte, 1913. Aquarela e grafite sobre papel,
53,3 x 36.1 cm. Figurino da ópera futurista Vitória sobre o Sol. Museu Russo, p.
102.
Imagem 13: Exposição Arte na época do Imperialismo, Museu Russo, 1932.
Fotografia, p. 105.
Imagem 14: Exibição de Arte Burguesa, Galeria Tretiakov, Moscou, 1931.
Fotografia, p. 105.
Imagem 15: K. Maliévitch. Torso feminino. Óleo sobre madeira. 58 x 48 cm.
Museu Russo, p. 107.
Imagem 16: Prédio das Casernas Brancas onde estavam alojadas as oficinas do
Comitê de Vitebsk de Luta contra o Desemprego. Dezembro de 1919. Fotografia,
Vitebsk, 1920, p. 115.
Imagem 17: K. Maliévitch. Camponesa com baldes e criança, 1912. Ost, 73 x 73
cm. Stedelijk Museum. Amsterdã, p. 127.
Imagem 18: K. Maliévitch. Camponesa com baldes, 1912. Ost, 80,3 x 80,3 cm.
MoMA. Nova Iorque, p. 127.
Imagem 19: Tipos da Pequena Rússia. No. 3. Mulher com trajes ucranianos.
Fotografia. Séc. XIX, p. 127.
Imagem 20: Camponesa ucraniana carregando baldes. Fotografia. Séc. XIX, p.
127.
Imagem 21: K. Maliévitch em Kursk, cerca de 1900. Fotografia, p. 128.
Imagem 22: K. Maliévitch. Duas figuras masculinas. Início dos anos 1930. Ost, 99
x 79,5 cm. Museu Russo, p. 128.
Imagem 23: K. Maliévitch em Nemchinovka, 193. Fotografia, p. 128.
xxiii
Imagem 24: Vestido tradicional de noiva do leste da Ucrânia, início do século XX,
p. 131.
Imagem 25: K. Maliévitch. Coveiro - Figurino da ópera Vitória Sobre o Sol, 1913.
Museu do Teatro. São Petersburgo, p. 131.
Imagem 26: Traje feminino do leste da Ucrânia, início do século XX, p. 131.
Imagem 27: K. Maliévitch. Realismo pictórico de um moço com um saco nas costas, 1915. Ost, 71,1 x 44,4 cm. MoMA, Nova Iorque, p. 132.
Imagem 28: K. Maliévitch, Realismo Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões (Quadrado Vermelho), 1915. Ost, 53x53cm. Museu Russo, p. 132.
Imagem 29: K. Maliévitch. Suprematismo, 1915. Ost, 57.5 x 48.5 cm.
Stedelijk Museum, Amsterdã, p. 132.
Imagem 30: Pissanki (ovos de páscoa ucranianos) com motivos do sol, p. 132.
Imagem 31: Ruchniki (vestimenta cerimonial ucraniana tecida), nordeste
ucraniano, anos 1930. 261,6 x 38 cm (esquerda), 238,7 x 33 cm (direita), p. 132.
Imagem 32: Foto: Motanka e senhora ucraniana, séc. XX. Fotografia, p. 136.
Imagem 33: Boneca motanka contemporânea. Fotografia, p. 136.
Imagem 34: K. Maliévitch. Mulher com braços abertos, c. 1930, grafite sobre
papel, 22,5 x 15,7 cm, p. 136.
Imagem 35: K. Maliévitch. Místico, c. 1930, grafite sobre papel, 22,5 x 17,3 cm, p.
136.
Imagem 36: K. Maliévitch. Quadrado preto, c. 1923. Ost, 106 x 106 cm. Museu
Russo, p.136.
xxiv
Imagem 37: K. Maliévitch. Cruz preta, c. 1923. Ost, 106 x 106,5 cm. Museu
Russo, p.136.
Imagem 38: K. Maliévitch. Círculo preto, c. 1923. Ost, 105,5 x 106 cm. Museu
Russo, p.136.
Imagem 39: Figuras femininas. Cultura Tripiliana. Coleção de Aleksandr
Polichtchuk, Kiev, p. 139.
Imagem 40: Ícone de Cristo em Majestade. Catedral da Transfiguração de Cristo.
Monastério de Iaroslav. Primeira metade do século XVI. Museu de História e
Arquitetura, p. 142.
Imagem 41: K. Maliévitch. Suprematismo Místico, 1920-1922. Ost. 100,5 x 60
cm. Coleção particular dos herdeiros do artista, p. 142.
Imagem 42: Ícone de São Nicolau. Séc. XVI. Têmpera sobre madeira, 96 x 74 x
2,5 cm, p. 142.
Imagem 43: Lissitzki e Maliévitch, 1920. Fotografia. Centro Cultural Fundação
Khardjiev-Chaga, Museu Stedelijk, Amsterdã, p. 264.
Imagem 44: Grupo Unovis, Vitebsk, 1921. Fotografia. Coleção Particular, p. 264.
Imagem 45: Lissitzki em seu ateliê, Vitebsk, 1919. Fotografia, p. 265.
Imagem 46: El Lissitzki. Autorretrato, 1924. Fotografia, p. 265.
Imagem 48: Nikolai Suétin. Design para padrão têxtil, década de 20. Guache e
nanquim sobre papel, 15.3x27 cm. Museu Russo, p. 284.
1
Introdução
Contemplação. Revelação. Transfiguração.
Quais seriam as interpretações de uma obra vista ao longo de décadas
como incompreensível? O Quadrado negro - já diria
ironicamente Maliévitch; o Quadrado , formalista e
poder soviético; o Quadrado negro do qual tomei conhecimento
ainda nova, sem graduação no bolso e no Lattes; e há também o quadrado que
todos viram na televisão, sendo ridicularizado na propaganda da Coca-Cola,
virando Pop Art e fetiche.
Mas aqui no Brasil tivemos a chance de ver os originais suprematistas.
Eles vieram pegar o calor dos trópicos na Vigésima Segunda Bienal Internacional, de São Paulo. E lá dentro rodavam mundos, satélites, cada um em sua própria
rotação. Fui até lá por eles e não sabia ainda o que eram, mas as reportagens da
época diziam que não se poderia perder aquilo.
Outros satélites suprematistas vieram tempos depois, junto aos ícones,
lado a lado de seus pares - e também dos ímpares: de cartazes soviéticos à arte
dos Ambulantes. E a sinfonia ressou mais forte, criando uma força centrípeta
pelas paredes da oca brasileira.
Seria bom viver uma residência artística literal: dormir e acordar dentro
do museu. Tive que transformar a idéia em uma iniciação científica, depois em
mestrado e doutorado.
Dos quadrângulos - desse novo tempo - e dos etéreos e
infinitos brancos sobre branco saltaram por todo esse tempo questões: Quem é
2
o papel do artista (o que lhe é dado, o que lhe é emprestado, o que lhe é
usurpado) nesse cosmo, nesse caos russo e soviético do início do século XX? E a
arte, para quê e para quem serve, quem lhe serve, qual seu sentido ontológico,
humano, espiritual?
Maliévitch tem uma gravidade própria em torno de seu eixo de ação.
Satélites e planetas giram conjuntamente a ele: Tatlin, Lissitzki, Krutchônikh,
Khlébnikov, Maiakóvski, Rodtchenko, Rozanova, Iudin, Suétin, Kogan... Outras
constelações também interagem com sua órbita: Guerchenzon, Bakhtin,
Floriênski, Losski, Berdiáev e muitos outros. Ele orbita entre regiões polarizadas:
Kiev, Moscou, Vitebsk, Petrogrado, ou ainda, Svomas, Unovis, Ginkhuk, Museu
Russo. É a esta complexa astronomia artística e cultural que se dedica este
trabalho.
Para tanto, buscou-se considerar a produção de Maliévitch em uma
dimensão histórica, tentando definir a coerência do que chamarei de
suprematista e de suas contribuições, não apenas no cenário artístico.
Serão apresentados ao longo da redação os possíveis pontos comuns,
de origem e convergência entre o pensamento artístico-filosófico do artista, filósofo
e pedagogo Kazímir Sievierínovitch Maliévitch1 (Kiev, Ucrânia então parte do
Império Russo) ao longo dos anos de 1920, em relação aos debates filosóficos
ocorridos em meio ao grupo que se constituiu como a intelligentsia russa do final
do século XX2.
1 A pronúncia russa do nome do artista é a mais empregada pela historiografia, embora a transliteração polonesa Kazimierz Malewicz seja adotada por alguns autores, como A. Nakov, em consideração à própria escolha do artista que assinou parte de suas obras fazendo uso da grafia polonesa. 2 intelligentsia pode ser entendida como certa categoria de pensadores e letrados que se autoatribuiu a missão de defender os valores culturais, e que se
a uma comunidade, unida pela vocação de martírio, ao mesmo tempo em que produz uma
3
Esse grupo de filósofos, dentre os quais é possível citar alguns dos
mais destacados pensadores russos do início do século XX, como Nikolai O.
Losski (1870 1965), Sierguéi N. Bulgákov (1871 1944), Nikolai A. Berdiáev (1874-
1948), Semion L. Frank (1877-1950) e Pável A. Florênski (1882-1937) era
defensor da tradição espiritualista russa e retomava alguns dos debates
eslavófilos do século XIX3, mas buscava ao mesmo tempo gerar novas discussões
nos campos filosófico, social e cultural, frente aos contextos pré e pós-
revolucionários.
Ao longo do texto serão apresentados alguns aspectos da produção
pictórica pós-suprematista de Maliévitch, tanto no que diz respeito a sua ligação
com a tradição popular e religiosa quanto aos problemas e significados de sua
inserção no contexto ideológico e artístico no período soviético.
Um segundo ponto discutido, refere-se aos desdobramentos dos
debates místicos no projeto artístico e teórico de Kazímir Maliévitch durante os
anos vinte, especialmente pelo período em que o artista viveu em Vitebsk, cidade
que acolheu pela mesma época figuras da importância de Mikhail M. Bakhtin
(1895-1975) e Pável N. Miedvédiev (1891-1938), estudiosos que estavam ligados
a discussões e associações religiosas.
Em um terceiro nível, a redação concentra-se no problema da
representação artística e da livre-criação no quadro da reconstrução social e de
sensação de isolamento psicologicamente dolorosa. Sua origem pode ser datada, mais remotamente, nas reformas petrinas de começos do século XVIII, ou, de modo mais preciso, a partir de certas reformas administrativas de Catarina II, quando se suspende o serviço compulsório da nobreza ao Estado, vigente desde a época de Pedro, o Grande, e cria-se uma camada
(org.), Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)/organização, apresentação e notas de Bruno Barreto Gomide; tradução de Cecília Rosas e outros, São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 10,11. 3 Embora seja errôneo considerar o eslavofilismo como uma corrente homogênea, tendência
oxa- - tinha entre seus principais representantes A. Khomiakov (1804-1860), I. Kiriêievski (1806-1856), Samarin (1819-1876) e A. Aksákov (1817 1860). Em linhas gerais, o eslavofilismo reafirmava a atitude eclesiástica, defendendo um retorno à essência utópica do Cristianismo.
4
existia um forte enfrentamento ideológico
entre as correntes produtivistas, defen
-figurativas,
por defender valores não-objetivos e espirituais.
Dentre as fontes primárias, foram selecionados dois textos
autobiográficos de Maliévitch (1923 e 1933) que, embora não possam ser
considerados como documentos irrefutáveis à construção de sua trajetória ou
origem, estabelecem parâmetros valiosos para compreender a construção
simbólica que faz de sua figura enquanto artista.
Segundo Andréi Nakov, um dos mais destacados pesquisadores da
obra de Maliévitch, a redação da autobiografia escrita na década de 1930 teria
sido arquitetada como forma de encobrir a origem nobre polonesa do artista,
regime bolchevique, que naquele momento já fazia repressão aos artistas.
Como se confirmou em 2002, Maliévitch nasceu em Kiev, em 24 de
fevereiro de 1879. A correção da data de nascimento (antes considerada 1878
pelos historiadores) foi atestada pela descoberta da certidão de batismo do artista
na Igreja Católia Romana de São Alexandre. Conforme consta na documentação,
sua família era de origem polonesa e Maliévitch era
da família de seu pai.
O artista cresceu em uma colônia polonesa implantada na Volínia, na
região oeste da Ucrânia, embora tenha vivido os primeiros anos de sua juventude
em Kursk, entre 1890 e 1905, e partido para Moscou, por volta dos anos de 1906-
1907.
O ano da redação de seu maior texto autobiográfico (1933) foi crítico na
trajetória de Maliévitch, coincidindo com a descoberta de um câncer que o levaria
à morte em maio de 1935, além de ter sido escrito meses após o decreto que
5
liquidou as associações artísticas e mais adiante estabeleceu o dogma do
Realismo Socialista, na URSS. Contudo, os dois textos autobiográficos são
documentos importantes para uma obordagem da temática camponesa, tema que
esteve presente ao longo de toda a produção de Maliévitch.
O texto de 1933 é também um dos raros escritos do período,
estabelecendo um ponto de contato com a obra pictórica pós-suprematista,
diferentemente, por exemplo, da produção suprematista que foi acompanhada em
paralelo ou imediatamente seguida por grandes safras de produção teórica.
Tais escritos autobiográficos podem ser pensados como modelos da
construção simbólica da figura do artista e nos quais, opondo-se à cultura
soviética, Maliévitch resgata valores provenientes da tradição russa, seja esta da
cultura popular ou religiosa.
A partir desse enfrentamento entre as noções de cultura soviética e
russa também é possível perceber a inserção de Maliévitch nos debates
envolvendo o problema da cultura material e de valores espirituais, ou mesmo a
crítica que faz em relação aos modelos europeus de erudição e progresso
existentes na Rússia desde a época de Pedro, e que tomaram novas dimensões
durante o regime bolchevique.
Outra fonte primária abordada na pesquisa, ainda hoje praticamente
inexplorada e que recebe aqui a primeira tradução, não apenas para o português,
mas em língua ocidental, é parte da correspondência trocada durante os anos
vinte entre Maliévitch e o filósofo Mikhail Ossipóvitch Guerchenzon (1869-1925) e
também, o colecionador e crítico de arte Pável Davidovitch Ettinger (1866-1948).
Esta seleção de cartas foi escolhida, pois sua redação é paralela à concepção dos
tratados filosóficos de Maliévitch e, enquanto textos privados podem fornecer uma
dimensão mais indicial do pensamento do artista. Um dos tratados filosóficos de
Maliévitch; Suprematitcheskoe zerkalo (O Espelho Suprematista), de 1923, e um
poema do artista recebem também a primeira tradução para o português.
6
Como a redação dessas cartas ocorreu em um momento privilegiado,
de relativa liberdade e consolidação dos projetos suprematistas em Vitebsk, é
possível perceber que Maliévitch aborda de maneira mais direta temas como
Deus, a religião e s e
existenciais e enquanto sistema de pensamento. Além disto, Maliévitch cita e
problematiza alguns debates que teve com membros do círculo de Bakhtin, assim
como a respeito de textos de filósofos contemporâneos como N. Berdiáev e S.
Bulgákov.
Embora todo trabalho de tradução seja por essência complexo, a
tradução de escritos de Maliévitch sempre foi reconhecida como uma tarefa árdua.
Os trechos a seguir dão um exemplo das dificuldades em se lidar com a escrita do
artista:
A maneira de escrever de Maliévitch é tal que exige a todo o momento o recurso da exegese, e a exegese pode ser feita somente a partir da própria língua, ou seja, do russo e não de uma tradução [...], pois o texto traduzido sofreu forçosamente um desvio. 4
Seus numerosos escritos, que têm um tom quase patriarcal, testemunham, pela confusão do pensamento e a imperícia do estilo, sua educação desordenada. Suas origens simples cavaram sem dúvida a vala que o separava de um Kandinski, o qual havia recebido uma educação cosmopolita e mais sofisticada. 5
A querela iniciada no tempo de Maliévitch continua. Há os
escreveu, mas é confuso, para não dizer muitas vezes obscuro. 6
4 VALLIER, D., Historiographie critique de Malévitch. In: MARCADÉ, Jean-Claude, Malevitch 1878-1978: actes du Colloque international tenu au Centre Pompidou
5 GRAY, Camilla, - -19221986, p. 124. 6 NÉRET, Gilles, Malevitch, Alemanha: Taschen, 2003, p. 49.
7
O historiador e colecionador Nikolai Ivanovitch Khardjiev (1903-1996),
que havia tomado contato com Maliévitch por causa de suas pesquisas sobre o
trabalho de Maiakóvski e dos futuristas russos chegou a apontar algumas
imperfeições na autobiografia escrita em 1933 pelo artista; lacunas e trechos
repetir o que já escrevi [...]. É cansativo! Eu escrevo outra coisa. Mas eu escrevo 7
Essa passagem não apenas reforça a imagem de um artista pouco
preocupado com esquemas e com um rigor formal na construção de seu
pensamento, como também deixa transparecer uma sensibilidade muito particular,
presente em sua escrita ágil, mas mal interpretada pela crítica ao longo dos anos -
uma nte de fixar o processo do pensa
como afirmou certa vez Khardjiev.
Contudo, se mesmo um dos artistas mais próximos de Maliévitch, El
Lissitski, chegou a dizer que seu amigo
verdadeiramente em contra seria necessário evitar o senso comum de ver
em sua escrita uma simples falta de clareza ou polidez. Ao contrário, seria valioso
interpretar tal característica como dado relevante ao estudo do pensamento de
Maliévitch e deste, frente às pesquisas contemporâneas no campo da filosofia,
literatura e linguística.
O conjunto de procedimentos linguísticos desenvolvidos pelos poetas
do Futurismo russo durante as primeiras décadas do século XX, em especial por
Vielimir Vladimirovitch Khlébnikov (1885-1922) e Aleksiéi Elisseievitch Krutchônikh 7 MALÉVITCH, K., Enfance et Adolescence Chapitres d . In: MARCADÉ, Jean-Claude, Malevitch 1878-1978, op.cit., p. 151. Khardjiev publicou a primeira parte da autobiografia de Maliévitch acompanhada de sua introdução em K istorii russkogo avanguarda (Sobre a história da vanguarda russa), Estocolmo: Almqvist & Wiksell, 1976, pp. 85-127. A segunda parte foi publicada pelo historiador em Russian Literature, Amsterdã, 1996, n. 39, pp. 303-327. A tradução para o inglês aparece em T. Andersen, Malevich. Essays on Art, Copenhagen: Borgen, 1968, vol. 2, pp. 147-155, seguida de outras publicações.
8
(1886-1968), com os quais Maliévitch esteve familiarizado, mais que influentes nos
desvios de seus textos estabelecem analogias com os princípios suprematistas,
entre eles, a redução das formas em estruturas essenciais geométricas, a síntese
autônoma das leis da
natureza ou de sistemas externos e a afirmação das formas, linhas e cores como
entidades dinâmicas dentro do campo da criação artística.
Seria oportuno prevenir o leitor sobre a cautela no emprego de citações
de trechos redigidos por Maliévitch ao longo da redação. Foi deliberadamente por
prudência que se evitou utilizar frases isoladas de seu contexto original, porque é
bastante próprio à escrita do artista que o significado de determinadas passagens
seja elucidado apenas na leitura total do texto, ou ainda, com a leitura conjunta de
vários tratados, algumas vezes, separados por anos em suas publicações. Há,
portanto uma intertextualidade muito complexa, que abre espaço para que
determinados apontamentos pareçam ambíguos ou mesmo contraditórios quando
lidos isoladamente.
Também é provável que parte do estranhamento no uso de termos
considerados tortuosos seja o reflexo de uma percepção ocidental a respeito de
construções da língua russa ou, mais especificamente, do estilo futurista e alogista
adotados por Maliévitch. Contudo, toda tradução será sempre um desvio, uma
interpretação, e os textos de Maliévitch não fugirão deste problema.
Por fim, parece necessário reforçar que a produção teórica de
Maliévitch se deu a partir de uma visão de mundo revelada pela pintura e não pela
linguagem verbal, muito embora a escrita se constitua como outra forma de
expressão desta visão.
Apesar de nas últimas duas décadas a obra de K. Maliévitch ter sido
objeto de novos estudos especializados, a exemplo das pesquisas de Andréi
Nakov publicadas em francês e inglês (Kazimir Malewicz: Le peintre absolut, Paris:
Thalia, 2007; Malevich: painting the absolute, Farnham, U.K: Lund Humphries,
9
2010) e dos trabalhos financiados pela Malevich Society, de Nova Iorque, sob a
coordenação de Charlotte Douglas e Christina Lodder (Rethinking Malevich. Proceedings of a Conference in Celebration of the 125th Anniversary of Kazimir Malevi , London: The Pindar Press, 2007) a compreensão do papel do
artista, não apenas como um dos grandes inovadores e teóricos da arte moderna,
mas enquanto filósofo e pedagogo, ainda está por ser aprofundada. O Brasil, por
sua vez, conta com um número bastante reduzido de pesquisas e especialistas no
tema em relação ao cenário mundial.
Dentre esse conjunto de trabalhos é necessário citar a dissertação de
mestrado defendida no ano de 2005 por Cristina Antonioevna Dunaeva, intitulada
De sistemas novos na arte de Kazímir Maliévitch: da história da arte à análise da linguagem artística, sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Alfredo Aguilar
(Universidade Estadual de Campinas); a tese de doutorado defendida em 2005,
por Verônica Antonine Stigger: Arte, mito e rito na modernidade: a dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp, sob a orientação da Profa. Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves
(Universidade de São Paulo); a dissertação de mestrado discutida em 2007, pela
pesquisadora Patrícia D. Greco: Kazimir Malievitch: novos conceitos, outras revoluções, sob a orientação da Profa. Dra. Adriana Facina Gurgel do Amaral
(Universidade Federal Fluminense); a publicação, em 2007, do tratado de
Maliévitch: Dos novos sistemas na arte, com tradução para o português e prefácio
por Cristina A. Dunaeva; e a dissertação de mestrado intitulada: O trabalho pedagógico de Kazímir Maliévitch: uma abordagem a partir da Teoria do Elemento Adicional em Pintura, discutida por mim, em 2008, junto ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Aguilar.
É necessário ressaltar a dívida destas pesquisas que, muito
provavelmente, seriam impensáveis não fosse o contato do público brasileiro com
a significativa mostra de obras de Maliévitch em duas grandes exposições
organizadas sob a curadoria geral de Nelson A. Aguilar: a XXII Bienal
10
Internacional de São Paulo - Salas Especiais, realizada em 1994 e a exposição
500 Anos de Arte Russa - State Russian Museum, realizada em 2002, na OCA -
Ibirapuera. Entre abril e novembro de 2009, também foram apresentadas ao
público brasileiro no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, do Rio de Janeiro
e de São Paulo, obras da vanguarda russa na exposição Virada russa A vanguarda na coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, que contou
com uma sala especial dedicada a Maliévitch.
Também é fundamental ressaltar a importância das pesquisas no
campo da literatura russa realizadas por Boris Schnaiderman (ao qual devemos,
dentre tantas, traduções fundamentais de obras de Maiakóvski e Dostoiévski), e
também ao trabalho de Augusto e Haroldo de Campos, que juntamente a B.
Schnaiderman tornaram acessível, apenas para citar um exemplo, a inovadora
obra poética de Vielimir Khlébnikov e Aleksiéi Krutchônikh na antologia Poesia Russa Moderna, publicada originalmente em 1968, pela Editora Civilização
Brasileira.
Desde as primeiras citações, no Ocidente, em meados do século XX,
como em Dictionnaire de la peinture abstraite ( 1957), de Michel
Seuphor, Maliévitch se tornou um dos artistas mais estudados pelos críticos e
historiadores da arte. A complexidade e pluralidade de sua atuação e pensamento,
no entanto, fazem com que sua obra seja ainda hoje vista como uma das mais
enigmáticas produções da arte de vanguarda.
Em linhas bastante gerais, alguns historiadores costumam dividir a
produção teórica de Kazímir Maliévitch em três períodos. O período inicial
corresponde à época da Última exposição futurista 0.10, o segundo, inicia-se por
volta dos anos da Revolução de 1917, e o terceiro se refere aos textos publicados
no final dos anos 1920 até meados da década de 1930. Publicados durante este
último período estão os textos pedagógicos e Die Gegenstandslose Welt (O Mundo não-objetivo/sem-objeto), que embora tenha sido um grande tratado
11
concebido e reformulado ao longo de toda a década de 1920, foi publicado pela
Bauhaus apenas em 1927, por ocasião da mostra retrospectiva da obra de
Maliévitch, que ocorreu primeiro em Varsóvia e depois em Berlim.
Conforme Troels Andersen (Malevich: Catalogue raisonné of the Berlin exhibition 1927, 1970) e Donald Barthelme (Catálogo da Bienal Internacional de São Paulo, 1994) um manuscrito de trezentas páginas e cerca de trinta quadros,
desenhos e cadernos de notas foram deixados na Alemanha por Maliévitch quatro
meses antes do encerramento de sua exposição, em Berlim, devido a uma
convocação para regressar a Leningrado. Por esta razão, em 30 de maio o artista
confiou uma série de manuscritos e cadernos de notas ao engenheiro Gustav von
Riesen (estes escritos foram publicados no Ocidente em microficha no ano de
1980), ficando o arquiteto modernista Hugo Haring responsável pela guarda das
obras presentes nas exposições, além dos vinte e dois gráficos explicativos de sua
teoria e pelas pranchas sobre a teoria da cor desenvolvidas por Mikhail
Vassiliévitch Matiuchin (1861-1934). Os dois receberam ainda instruções para que
o material não fosse reenviado à Rússia.
Ao regressar de sua viagem, Maliévitch foi interrogado a respeito de
seus contatos na Alemanha e permaneceu preso por alguns dias. Em 1930, o
artista foi detido por mais de duas semanas, tendo de prestar novo depoimento
sobre a viagem realizada três anos antes. Na época do ocorrido, Maliévitch, sob a
suspeita de espionagem, teve seus bens confiscados e sua família com medo do
que poderia acontecer ao artista destruiu parte de seus arquivos, incluindo
algumas de suas telas.
Ainda que Maliévitch tenha sido alvo de perseguições ideológicas e
enfrentado críticas ferrenhas ao longo da década de vinte, estas duas prisões são
emblemáticas, pois abriram uma nova série de episódios, resultando em ações
muito mais pontuais e violentas por parte do regime.
12
Como aponta Dmitri Gorbatchev8, no início de 1930, uma exposição das
obras de Maliévitch, na Galeria de Arte de Kiev, foi fechada por órgãos
governamentais logo após sua abertura. Como resultado, o diretor da galeria,
Fedor Kumpan, foi preso pelo crime de exibição de trabalhos de um
. Após este ocorrido, as obras de Maliévitch apareceram em apenas mais
três exibições, entre os anos de 1933 e 1935 e ainda sim, acompanhadas de
daquelas obras.
A partir de 1936, as obras de Maliévitch e da vanguarda foram
confiscadas pelo governo e trancafiadas nos porões dos museus soviéticos onde
permaneceram inacessíveis ao público e a qualquer pesquisador russo ou
estrangeiro durante o período stalinista e mesmo depois deste. O nome de
Maliévitch caiu forçosamente no esquecimento, tanto que pesquisadores e
interessados eram desencorajados e não conseguiam obter praticamente
nenhuma informação sobre o artista, tanto em livros de história da arte ou no
interior dos museus russos.
Distante geograficamente, mas próxima à perseguição ideológica
imposta pelo regime soviético, a significativa mostra de trabalhos deixados por
Maliévitch na Alemanha foi corajosamente escondida do regime nazista, fato
fundamental para a redescoberta de Maliévitch e da não-figuração no Ocidente,
em 1957; período do qual datam os primeiros estudos sobre a vanguarda russa.
Na Rússia, as obras de Maliévitch seriam exibidas novamente no ano
de 1962, embora a situação só tenha se alterado efetivamente com as políticas
inauguradas por Mikhail Gorbachev entre meados dos anos de 1980 e em 1991,
8 GORBACHEV, Dmitri, We Reminisced About the Ukraine. We were Both Ukrainians. In Ukrajinska Avanguarda: 1910-1930 (Zagreb: Muzej suvremen umjetnosti, 1990), pp. 196-199 apud DOUGLAS, Charlotte; LODDER Christina, Rethinking Malevich. Proceedings of a Conference in
London: The Pindar Press, 2007, p. IX.
13
com o final da União Soviética e consequente abertura dos arquivos e a liberação
das publicações que eram controladas pelo governo.
Os estudos precursores, ainda que se possa apontar a imprecisão de
alguns dados historiográficos, constituem parte fundamental da bibliografia sobre o
tema até hoje. Dentre as primeiras publicações ocidentais detacam-se: The Russian Experiment in Art (1863-1922), de Camilla Gray (New York: Abrams,
1962) e (Paris: Le livre de poche, 1967) escrito entre 1964 e 1966,
por Dora Vallier. Já na década de 1970, entre a prolífera safra de estudos a
respeito da vanguarda russa, pode-se apontar a publicação de Le Renouveau de -1914 de Valentine Marcadé, que
revela em detalhes a movimentação do cenário russo desde meados do século
XIX, contexto cultural e artístico fundamentais à compreensão da formação da
vanguarda russa.
Como aponta Dora Vallier no posfácio da edição de 1980 de
abstrait, o estudo da obra de Maliévitch teria se ampliado consideravelmente no
espaço de quinze anos, em especial à luz das publicações em inglês e francês de
parte dos escritos do artista, já que até o início da década de 1960, praticamente o
único texto conhecido de Maliévitch era O Mundo não-objetivo/sem-objeto.
A descontinuidade desse período inicial é rompida no final dos anos
sessenta com os trabalhos de organização, tradução e pesquisa da produção de
Maliévitch, que possibilitaram a compreensão do Suprematismo frente à
diversidade cultural do período. No Ocidente, tais pesquisas foram realizadas por
Troels Andersen (quatro volumes contendo tratados, poemas e cartas do artista
que foram editados, primeiramente em dinamarquês, e em inglês, entre 1968 e
1978, além do Catalogue raisonné da exibição de 1927, em Berlim, publicado em
1970) e Valentine e Jean-Claude Marcadé (quatro volumes contendo manifestos,
tratados e documentos traduzidos e publicados em francês, entre 1974 e 1994).
14
Com a redescoberta da obra de Maliévitch nascem também as
primeiras polêmicas entre pesquisadores ocidentais e russos:
Foram necessários quarenta anos para que o nome de Maliévitch reaparecesse oficialmente. Na 2ª edição da Grande Enciclopédia Soviética (1954) Maliévitch nem mesmo é c
feita no Ocidente entorno de Maliévitch, se não é sempre genuína, nós admitimos facilmente, com C. Simonov, permitiu fazer sair da sombra em seu próprio país uma das personalidades mais fortes da arte de todos os tempos. A fim de que se escrevam menos absurdos sobre o Suprematismo, nós pedimos, como C. Simonov, que sejam publicados mais documentos possíveis. É necessário para isto não ter medo de encarar a verdade face a face... É muito cômodo, como o faz M. Khardjiev em sua apresentação da
Stocolmo, 1976, p.84-98) rejeitar todas as possibilidades por erros dos pesquisadores ocidentais sem os quais Maliévitch estaria ainda no esquecimento. O que impediu M. Khardjiev e seus colegas soviéticos que tiveram acesso aos documentos de primeira mão de publicá-los? M. Khardjiev sabe, melhor que qualquer um, que é responsável por este estado das coisas. Por que, então, ele teve a necessidade de fazer promessas de lealdade aos organismos soviéticos que mantem até os dias de hoje Maliévitch sob o poder, gritando que o Ocidente é culpado de todos os males?9
Dentre uma série de autores que publicaram livros e artigos a partir da
década de 1970, não é possível deixar de mencionar nomes como Emmanuel
Martineau, Frédéric Valabrègue, Charlotte Douglas, John E. Bowlt, Evgeniia
Petrova, Galina Demosfenova, Aleksandra Chatskikh, Larissa A. Zhadova e E. F.
Kovtun, em especial, porque alguns destes pesquisadores transpuseram
paradigmas de pesquisas ao estabelecer novos temas preferenciais, como por
exemplo, ao estudar a produção filosófica e a atuação pedagógica de Maliévitch. 9 MARCADÉ, Valentine e J-C., nota 178 gerada a partir do texto de Constantin Simonov, Em razão dos méritos diante da . In: Nauka e Jhizn (Ciência e Vida), Moscou, 1975, n. 12, pp. 126-127. In: MALÉVITCH, K., Le Miroir Suprematiste, 1977, p. 203. Na nota, os tradutores afirmam ainda que M. a literatura não russa que havia sido empreendida naqueles últimos vinte anos a respeito de Maliévitch.
15
Há também estudos ímpares, apenas para citar um deles, como os de Andrzej
Turowski, que se dedicou a investigar as origens e influências polonesas e
ucranianas do artista, elucidando antigas dúvidas sobre a biografia e a genealogia
familiar de Maliévitch.
Apesar dos avanços dessas pesquisas, foram necessários mais de
cinquenta anos após a morte de Maliévitch para que a Rússia acolhesse
novamente uma grande exibição individual das obras do artista (Kazimir Malevich. 1878-1935). A exposição foi inaugurada no Museu Russo, em Leningrado (10 de
novembro - 18 de dezembro, de 1988), seguindo para a Galeria Tretiakov, em
Moscou (29 de dezembro de 1988 - 10 de fevereiro de 1989) e, por fim, para o
Museu Stedelijk, em Amsterdã (05 de março 29 de maio de 1989). Essa
exposição foi seguida por importantes exibições durante a década de 1990, nos
Estados Unidos (1990-1991), Espanha (1993), Itália (1993-1994) e na Alemanha
(1995).
Essa nova série de exposições e pesquisas sobre Maliévitch foi
alimentada pela polêmica revelação de uma coleção de manuscritos, desenhos e
pinturas, que estava em poder de Nikolai Khardjiev. O historiador manteve
diversos documentos em segredo até o final de sua vida e somente com sua
morte e após escândalos e acordos que envolveram governo russo e holandês,
essa grande coleção passou a pertencer à Fundação Khardzhiev-Chaga, no
Museu Stedelijk, em Amsterdã.
No ano de 1993, Nikolai Khardjiev e sua esposa Lidia Vassilievna
Chaga (1912-1995) emigraram de Moscou para Amsterdã, tentando levar o
conjunto de documentos que estava em poder deles. Contudo, a coleção acabou
sendo despedaçada por uma série de acontecimentos tanto oficiais, quanto
extraoficiais. Segundo os órgãos russos, Khardjiev estava violando as leis de
proteção do patrimônio artístico e cultural do país. Na alfândega, parte do arquivo
foi levada para Amsterdã, parte foi extraviada e uma terceira parcela do arquivo foi
16
confiscada pelo governo russo e enviada para o RGALI (Arquivo Estatal Russo de
Literatura e Arte). Após acordos internacionais os documentos foram oficialmente
integrados ao Centro cultural da Fundação de Arte Khardjiev-Chaga, sob a tutela
do Museu Stedelijk. Os documentos roubados não foram restituídos até hoje e a
parcela do arquivo que foi encaminhada ao RGALI permanece fechada aos
pesquisadores desde 1994, com a promessa de abertura somente no ano de
2019.
Segundo A. Chatskikh (2012), o poeta e filólogo Sergei Sigei, alguém
que gozou da consideração de Khardjiev por algum tempo e estava bastante a par
do desdém que o colecionador nutria pelos pesquisadores (sobretudo, ocidentais)
Perestroika, afirmou de maneira controversa
que:
O desgosto de Khardjiev para com eles está ligado também ao fato de que não sabiam sobre os materiais em seu arquivo e coleção. Ele deliberadamente limitou o acesso aos seus tesouros acreditando que não havia muitos estudiosos.10
Ainda segundo Chatskikh, a profunda desconfiança de Kardjiev em
relação aos estudiosos ocidentais deve-se, em parte, a um controverso evento no
qual esteve envolvido o eslavista suíço e ex-pupilo de Roman Jakobson, Bengt
Jangfeldt (1948), o qual teria traído a confiança do historiador e se apropriado
indevidamente de documentos e materiais.
Atualmente, grande parte dos documentos que estavam em poder de
Khardjiev foi publicada em russo entre os anos de 1996 e 2004 e uma importante
edição em inglês (A Legacy Regained: Nikolai Khardzhiev and the Russian Avant-
10 KHARDZHIEV, N., Pisma v Sigeisk, ed. Sergei Sigei, Amsterdã: Uitgeverij Pegasus, 2006, p.287 apud SHATSKIKH, Aleksandra, Black Square: Malevich and the Origin of Suprematism, New Haven and London: Yale University Press, 2012, p. 188.
17
Garde, Palace Editions, 2002) possibilitaram uma transformação da visão sobre a
obra de Kazímir Maliévitch.
Nos últimos anos, algumas das pesquisas sobre Maliévitch, assim como
sobre outros artistas da vanguarda russa, têm considerado essa produção em sua
dimensão histórica, tentando definir a coerência de sua obra não apenas no
cenário artístico, mas também político e ideológico da época.
Em paralelo a essas fontes primárias também é preciso levar em conta
trabalhos fundamentais à compreensão mais ampla dos ideais e projetos artísticos
russos no início do século XX. Uma das pesquisas mais relevantes sobre este
panorama cultural é a obra de Anatole Kopp: Changer la vie, changer la ville
Conforme expõe o autor, nos anos subsequentes à Revolução tomou
forma na Rússia um ambicioso projeto que visava à reformulação das concepções
e modos de vida. A criação desta sociedade implicava em um complexo processo
de transformação do homem e na criação de um novo sistema de relações
políticas, econômicas, sociais e culturais.
Segundo Kopp, durante os anos vinte, a questão da reconstrução do
modo de vida byt (termo russo que não possui em língua portuguesa uma
tradução precisa, mas costuma ser traduzido pela maior parte dos estudiosos
-se a tudo o que concerne às regras e
condutas coletivas e individuais) foi ponto central de debates em diversas áreas.
Acreditando que as antigas formas e concepções sociais poderiam
ameaçar as conquistas da revolução, muitos intelectuais defendiam que a partir de
novas relações de trabalho e da cultura, seria possível criar mecanismos de
transformação social.
Com isso, configurou-se na União Soviética um projeto oficial que
deveria abarcar todos os domínios da atividade e da conduta humana, um projeto
18
que defendia a um só tempo a mudança do homem, das estruturas sociais e do
ambiente físico e que deveria fomentar a passagem de uma vida baseada em
interesses individuais, para modos de vida coletivos.
Como é possível imaginar, tal projeto defrontava-se com impasses
práticos e conceituais: uma realidade social totalmente nova só poderia ser
construída por um novo homem, mas este novo homem só poderia ser fruto de
uma realidade que até aquele momento existia somente em um plano teórico.
Esse projeto utópico que inspirou grande parcela dos intelectuais
russos foi no campo das artes visuais associado à constituição de novas formas e
concepções artísticas. Neste contexto, o ideal de renovação artística que já
ganhava força no início do século XX - a exemplo das pesquisas abstratas de
Vassíli Vassiliévitch Kandinski (1866 1944), o Raionismo de Mikhail Fiódorovitch
Larionov (1881-1964) e Natalia Siergueievna Gontcharova (1881-1962), a
produção dos futuristas russos e o Suprematismo de K. Maliévitch - encontrou
legitimação e inserção política.
Por volta de 1915, dentre tantos projetos, nasce de
Maliévitch, que não visava à cópia mimética da realidade, mas uma existência
autônoma e propunha uma nova e ampliada consciência, que concebia como um
o que o homem ocidental, marcado até hoje pelo pensamento iluminista, cinde em
hemisférios antagônicos: razão e intuição. Isto porque, para o artista, o projeto de
transformação total do homem implicava em uma compreensão de mundo no qual
a razão era somente um dos aspectos do conhecimento.
Assim, mais do que uma reação futurista o sentido atribuído
por Maliévitch às novas formas da arte pode ser compreendido como o reflexo de
um processo perene de transformação do homem e da cultura.
Contrário às abordagens contemporâneas desenvolvidas por
construtivistas e produtivistas, influenciadas em sua maioria pelas teorias
19
marxistas, Maliévitch nunca restringiu suas análises a uma visão objetiva ou
tecnicista da arte. Além disto, mais que uma abordagem restrita ao campo
estético, a concepção revolucionária de Maliévitch é aquela que vê na arte a
possibilidade de aproximação e compreensão da realidade, na medida em que as
transformações estéticas dos novos sistemas da arte refletiam também novas
concepções de mundo: pensamento que torna plausível no interior de seus
tratados não só as discussões filosóficas acerca da representação objetiva e não-
objetiva, como também a crítica ao sistema político e ideológico da época e o
papel imposto ou desempenhado pelo sujeito neste cenário.
Dentro do mesmo raciocínio, muitos de seus tratados dedicam-se a
uma profunda reflexão sobre a nova representação artística, não apenas do ponto
de vista plástico, mas em relação aos elementos externos (Estado, Igreja,
Trabalho) que dão forma à consciência humana.
Tanto para Maliévitch, como para toda uma geração de filósofos russos,
dentre os quais: N. Fiódorov, V. Soloviov, N. Berdiáev e P. Floriênski, o conceito
de verdade aparece dissociado da objetividade, da realidade visível, material ou
da construção de uma estética utilitária ou homogênea da consciência das
massas, como idealizada pelos produtivistas ou pelo regime soviético.
Em um nível mais profundo de compreensão, o conceito de não-
objetividade desenvolvido por Maliévitch dentro do Suprematismo não se resume
à simples ideia da rejeição da representação do
o homem. Para os pensadores russos do início do século XX, as discussões sobre
o binômio objetividade/não-objetividade estavam ligadas à defesa da
individualidade, sem a qual não seria possível alcançar a via criativa
.
Dentro desse raciocínio e desconfiando da razão e das abordagens
estritamente cientificistas do conhecimento, essa nova intelligentsia russa do início
20
do século XX via na intuição e na individualidade criativa o caminho para um
conhecimento transcendente e universal.
Embora o problema da transcendência pelas vias da arte não seja
privilégio nem invenção do pensamento artístico modernista, seria oportuno
retomar algumas das questões colocadas pela arte moderna como ponto de
partida. Pode a forma trazer em si mesma seu conteúdo? Em quais sentidos a arte
moderna desencadeou a crise (ou uma libertação do artista) da representação, da
imagem? Se a arte é por excelência o campo da criação e a criação é fruto da
mente e do espírito, poderia o artista pela via artística realizar a transcendência
espiritual proposta em essência pela religião?
Essas são algumas das questões para se pensar as relações entre o
pensamento filosófico-místico e as propostas artísticas russas do final do século
XIX e início do XX. Entretanto, mais pontualmente, a questão que se coloca na
tese é avaliar se seria possível determinar um discurso de fundo místico na
poética suprematista de Maliévitch, mesmo frente às coerções políticas e
ideológicas e à aversão bolchevique ao pensamento religioso e metafísico. Ou
seja, avaliar a formação de determinadas concepções de Maliévitch, buscando
uma compreensão histórica da filosofia e estética suprematistas.
Não se trata, entretanto, de traçar um perfil psicológico ou religioso do
artista, mas sim, de avaliar qual seria a importância de determinados discursos
filosóficos e teológicos na formação do pensamento maliévitchiano, buscando
determinar em quais debates da época o artista e suas obras estavam inseridas.
21
Capítulo 1. Maliévitch místico?
1.1. Além do 0-1: Suprematismo e Transfiguração
Mas eu me transfigurei no zero das formas e fui além do 0-1.11
K. S. Maliévitch, 1915
Não seria difícil afirmar que esta é uma das frases mais enigmáticas do
pintor, filósofo e pedagogo Kazímir Sievierínovitch Maliévitch (1879-1935)12,
sobretudo em um ambiente cultural que ainda não tinha se recuperado da estética
ou dos programados espetáculos e escândalos públicos, verdadeiros happenings avant la lettre promovidos pela vanguarda futurista russa do começo do século XX.
É com esta afirmação que o artista finaliza os textos Do cubismo na
arte ao novo realismo da pintura contanto que criação absoluta e Do cubismo e
do futurismo ao suprematismo. O novo realismo pictórico , publicados 11 No ia preobrazilsia v nul form i vychiol za 0 1
1). O termo preobrajenie ( : transfiguração, transformação) aparece erroneamente traduzido em relação ao vocabulário de Maliévitch suis métamorphosé en zero des formes, je suis arrivé au- -à-dire au suprematisme, nouveau réalisme pictural, création non- In: MALÉVITCH, K. S., Écrits, Paris: Édition Gerárd Lebovici, 1986, p. 198. 12 Segundo pesquisas de Andrzej Turowski (Malewicz w Warszawie: Rekonstrukcje i Symulacje. Cracóvia: Universitas, 2002) realizadas junto a arquivos ucranianos, sabe-se que Maliévitch nasceu no ano de 1879 e não em 1878 como constam nas biografias estabelecidas a partir de informações concedidas por seus parentes. Conforme afirma o historiador da arte Dmitri Gorbatchev no catálogo Malévitch (2003) a informação está indicada nos Registro dos atos de nascimento da igreja paroquial de Kiev (fundo 312, inv.1, dossiê 113, fNeste panorama, Andréi Nakov também não pode deixar de ser citado como um dos pesquisadores que se dedicou à investigação e revisão da biografia do artista.
22
respectivamente em 1915 e 1916, versões aprimoradas de seu primeiro manifesto
suprematista impresso no catálogo da exposição ocorrida entre dezembro de 1915
e janeiro de 191613, em Petrogrado, intitulada Última Exposição Futurista 0.10,
onde Maliévitch apresentou pela primeira vez ao público seus quadros
suprematistas.
Ao expor um de seus mais polêmicos trabalhos, a tela conhecida como
Quadrado preto sobre fundo branco ou Quadrângulo (1915) no canto superior da
sala de exposição, mesmo lugar onde tradicionalmente são colocados os ícones
dentro das casas
pintura mais uma vez em contato com um dos
problemas centrais da história da representação artística e da imagem: a
iconoclastia.
A ligação de sua obra com a tradição das imagens religiosas e
populares russas é bastante extensa e verificável, não apenas por meio da leitura
dos escritos do artista, onde abertamente assume sua admiração pelos ícones e
13 De acordo com o calendário antigo (juliano), a exposição foi inaugurada em 19 de dezembro de 1915. Entretanto, se for levado em conta o calendário moderno (gregoriano), a abertura da exposição data de 01 de janeiro de 1916.
Imagem 1: Última exposição futurista-‐0.10, Petrogrado, 1915-‐16. Fotografia. Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, p. 74.
23
pela arte popular, mas, sobretudo em suas telas.
Um dos primeiros estudiosos que aponta para essa questão da
reconstrução em uma nova imagem através de elementos presentes na pintura de
ícones, tais como a estrutura oval, o uso de cores simbólicas, o estrabismo
místico, hierático e meditativo, as imagens frontais com olhos amendoados, que
atravessam a realidade visível na obra de Maliévitch é o pesquisador Jean-Claude
Marcadé, no catálogo da exposição L'Avant-garde russe - Chefs-d'oeuvre des musées de Russie 1905 -1925 (1993).
Outro pesquisador que confirma em profundidade essa ligação entre a
arte de K. Maliévitch e os ícones russos,
ícones [enquanto] coisa corrente, banal, natural, cotidiana para alguém como
Maliévitch, nascido [...] em uma cultura saturada de longa data pela arte e pela 14 é o pesquisador Bruno Duborgel, em seu livro
Malevitch: (1997).
Do ponto de vista formal, essa ascendência é facilmente constatada
pela adoção de procedimentos de estilização de imagens, na transformação
simbólica dos corpos dos camponeses, que surgem em proporções alongadas e
hieráticas, na preferência pela representação frontal dos rostos com enormes
olhos amendoados, narizes afunilados e bocas estreitas, na ruptura com a
perspectiva renascentista e a retomada da bidimensionalidade.
No trabalho de Maliévitch, outros traços bastante típicos dessa
reinterpretação de valores presentes na representação bizantina podem ser
percebidos pela escolha de configurações quase esquemáticas das paisagens, no
uso simbólico da luz e da cor e na rejeição a qualquer expressão exteriorizada na
matéria das paixões humanas.
14 DUBORGEL, Bruno, Malévitch: , Saint-de Saint-Étienne, 1997, p. 19.
24
Além de todos esses aspectos formais é notável como Maliévitch fez
emergir da estética suprematista uma ruptura com as próprias noções da
representação e dos conceitos artísticos, em uma tentativa de atingir as
sensações em seu estado mais puro e primordial, antes mesmo de tomarem as
formas utilitárias do mundo e do pensamento objetivo. Neste sentido, encontramos
em Maliévitch e na arte dos ícones uma busca semelhante pela imagem limite,
ponto de contato entre dois mundos que têm por ambição tanger o irrepresentável.
Contudo, essa mobilização pela estética da arte popular e pelo ícone e
sua perspectiva inversa, tanto em Maliévitch como em outros artistas da
vanguarda russa, a exemplo de Mikhail Larionov, Natalia Gontcharova e Marc
Zakharovitch Chagall (1887-1985), não pode ser resumida a uma simples releitura
formal, a uma espécie de empreitada religiosa pessoal destes artistas ou ainda, a
tentativa de modernização da estética e de valores presentes na arte sacra russa.
Pelas palavras de Duborgel:
co tradicional, mas de realizar obras que tenham com ele consonância de altitude, equivalência de força e capacidade de oferecer a experiência de uma presença. As lições do ícone ajudam na pesquisa de uma arte liberta do modelo mimético e recolocada em uma questão fundamental. Eles nutrem a exigência
antípodas de qualquer remodelação passadista de sua 15
15 DUBORGEL, Bruno, op.cit., pp. 30, 31.
25
Imagem 2: Andréi Rubliev. Transfiguração, c. 1405, Kremlin, Moscou.
Imagem 3: Ícone da Transfiguração, atribuído a Theófanes, o Grego. Início do século XV. Galeria Tretiakov, Moscou. Fonte:http://revpatrickcomerford.blogspot.com/2010/04/transfiguration-‐finding-‐meaning-‐in.html. Acesso em 23/02/2011.
Embora absolutamente coerente com
a proposta não-figurativa do Suprematismo,
vale alertar que o termo em russo adotado por
Maliévitch: preobrazitsia ( :
transfigurar-se, transformar-se, converter-se)
não tem em russo o sentido que poderia ganhar
na tradução para o português: o significado de
contido no sufixo
além da figuração.
Contudo, parece haver algo de sagrado e
profético na afirmação de Maliévitch.
Esse caráter enigmático talvez se
deva ao fato do termo preobrajenie ( : transfiguração) parecer como
algo tomado de empréstimo do vocabulário
litúrgico, mais precisamente da ideia de
transmutação da forma, palavra que remete a
um dos mistérios da fé cristã, segundo a qual,
Deus se manifestou no visível e na matéria por
meio da imagem de Cristo.
Distinguindo-se do catolicismo e do
protestantismo ocidentais, o cristianismo russo
aponta como central a ideia apocalíptica e
mística da transfiguração da humanidade por
meio do retorno de Cristo e no consequente
advento do Reino de Deus.
A transfiguração do Cristo, tema
recorrente aos ícones russos, constitui uma
26
Imagem 5: Transfiguração, c. 1516. Monstério de Iaroslav. Fonte: http://revpatrickcomerford .blogspot.com/2010/04/transfi guration-‐finding-‐meaning-‐in.html. Acesso em 23/02/2011
Imagem 4: Transfiguração. Escola de Novgorod, final do século XV-‐ início do XVI.
passagem da Bíblia descrita nos Evangelhos
(Mateus 17:1-8, Marcos 9:2-8 e Lucas 9:28-36),
na qual Jesus em companhia de Pedro, Tiago e
João sobe ao monte Tabor para orar, quando sua
imagem parece perder a materialidade,
transfigurando-se no iconoclasta
-se em luz, suas
vestes tornam-se brancas e diante deles
aparecem os profetas Moisés e Elias com quem
Jesus conversava.
Citando tal passagem:
Seis dias depois [da predição de sua Paixão e morte], Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e os levou, em particular, a um alto monte. Ali ele foi transfigurado diante deles. Sua face brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como a luz. Naquele mesmo momento apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro disse
estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para
estava falando, uma nuvem resplandecente os envolveu, e dela saiu uma voz, que dizia:
quem me agrado. Ouçam- Ouvindo isso, os
discípulos prostraram-se com o rosto em terra e ficaram aterrorizados. Mas Jesus se aproximou, tocou neles e
-se! Não
27
a não ser Jesus.16
A partir dessa passagem bíblica sobre a transfiguração do Cristo, na
cega, pois busca revelar aquilo que
(segundo uma descrição cara aos poetas
místicos), que transfigura a matéria, obliterando o visível e dando acesso a um
novo campo de conhecimento, talvez seja possível iniciar a compreensão da
Nesse sentido, não é necessário grande esforço para estabelecer um
paralelo visual entre a passagem bíblica e as faces iluminadas dos camponeses
hieráticos nas pinturas Pós-suprematistas de Maliévitch. Da mesma maneira,
encontramos grande ressonância entre a descrição bíblica da transfiguração e a
concepção iconoclasta presente nas telas da série Branco sobre branco. Nestas
obras, em especial, o apagamento da realidade visível é acompanhado pela
desmaterialização das formas suprematistas, que se fundem aos infinitos brancos,
tanto no plano pictórico, quanto na parede branca da sala de exposição (o
emprego do branco no fundo das telas contra o branco aplicado nas paredes era,
inclusive, uma concepção expositiva fortemente defendida pelo artista). Porém,
não se trata de afirmar uma filiação simplista da filosofia suprematista ao discurso
teológico, mas sim, propor um argumento que defende uma ressonância entre o
problema da representação artística dentro da não-objetividade suprematista e a
concepção da existência de uma manifestação infigurável do ser. Tal ressonância
poderia ser pensada, não estritamente no sentido teológico, mas naquilo que se
refere à ideia de transformação da matéria por meio de um contato transcendente,
que ultrapassa a percepção humana, assim como da concepção de uma imagem
16 Mateus 17:1-8.
28
capaz de extrapolar os limites da representação, da forma e até mesmo da
materialidade.
No livro The Aesthetic Face of Being Art in the theology of Pavel Florensky (1993), o autor Victor Bychkov fornece uma síntese de uma das ideias
centrais do pensamento do padre Pável Floriênski (1882-1937), que se relaciona a
essa mesma questão:
A terceira hipóstase da Santíssima Trindade (segundo Floriênski, que repousa sobre a tradição da Igreja) é a fonte e a causa da beleza que é revelada para o crente e o transforma de acordo com a Sua semelhança. A forma básica na qual isto se expressa é a
ou seja, segundo a antiga tradição mística Bizantina, a luz incriada da essência divina, com a qual Cristo mostra aos Seus amados discípulos no Monte Tabor no
forma da verdade e o conteúdo da verdade são uencontramos em Floriênski a unidade virtual da estética e da mais alta gnoseologia [...] O principal fator unificador é a luz, na qual conteúdo e forma são idênticos e [...] percebidos enquanto beleza.
Afirmando a unidade da luz e beleza, Floriênski, deveras, completa muitos séculos da tradição Neoplatônica-Cristã. Para explicar este importante princípio da estética cristã para seus contemporâneos, que perderam grandemente a capacidade de visão espiritual, ele se volta à luz física. Visto que a luz é bela além de toda a fragmentação, além da forma, é bela em si mesma, e por si só torna belo tudo o que aparece 17
Essa mesma questão também é tocada pelo historiador B. Zenkovski:
Na base desse ascetismo há um elemento positivo e não negativo: que é o meio e a via da transfiguração. A visão da justiça e da beleza divinas que inspiram o homem a se engajar na via ascética.
o
origem desse caráter cósmico que liga o espírito religioso da
17 BYCHKOV, Victor, The Aesthetic Face of Being Art in the Theology of Pavel Florensky,
29
Rússia com a patrística: é a visão de um mundo desabrochando e tocado pela luz divina.18
Dentro da mística ortodoxa existe a crença de que Deus se manifesta
por meio da beleza. A arte, enquanto uma espécie de filosofia de vida, e por
consequência o artista assumiria a tarefa de revelar esta beleza ao resto do
mundo, transformando a realidade. Essa ideia está relacionada com o conceito de
filocalia (ou amigo da beleza), sendo este um dos termos fundamentais à
compreensão da arte e da pintura de ícones dentro do pensamento ortodoxo.
Quando um estudioso da ortodoxia russa, como Pável Evdokimov
(1901-1970)
[...] discute a questão da beleza na religião, e a do ícone em particular, critica com muita veemência os princípios da arte moderna ocidental, sobretudo o abstracionismo. Ele diz que, na realidade, o ícone não é uma arte, no sentido em que nós ocidentais entendemos o termo. Na teologia icônica, além do artista e da obra, considera-se, sobretudo a participação de Deus temos assim uma relação de três elementos: artista o monge místico que pinta, a matéria que é transformada e Deus, que ali se manifesta. Para Evdomikov, portanto, é muito claro que o ícone
espaço por onde Deus se manifesta com suas energias incriadas, onde se sente ou vê (com os olhos da alma) a Sua presença.19
Na obra Teologia da Beleza, Pavel Evdokimov aprofunda tal questão:
Para Pseudo- Dionísio Aeropagita, a Beleza é um dos nomes de Deus na sua relação com o ser humano e numa relação de
o homem é criado segundo um modelo . Neste plano das estruturas
arquetípicas, a criação do mundo contém em gérmen a sua última vocação e determina o destino d Deus concede-nos participar na sua própria Beleza
18 ZENKOVSKY, B,. Histoire de la philosophie russe, v. I, Paris: Gallimard, 1953, p. 34. 19 PONDÉ, L. F. op.cit., p. 95.
30
adotam esta perspectiva e estabelecem assim o fundamento de uma penetrante teologia da Beleza.20
No campo teológico, por sua vez, a leitura hesicasta desse tipo de
experiência mística descreve uma espécie de acúmulo sensorial
(entendido como um conhecimento contemplativo, que se distingue do
conhecimento teórico) por meio do qual o místico tem contato com o divino;
sublimação dos sentidos capaz de transfigurar a própria matéria.
Se tal analogia for permitida, o gênesis do Suprematismo encontra-se
em um mundo sem palavras, sem narrativas, momento que antecede toda a
criação. Um contato direto com as sensações que deram origem às formas do
mundo, mas que deixaram de ser vistas pelo acúmulo de coisas dentro da
pintura.
Segundo a formulação de Maliévitch:
Mas a [sensação] recompensadora da não-objetividade libertadora impeliu-me para o deserto, onde nada é concreto além [da sensação]... e então a sensação transformou-se na substância de minha vida.
sensação da não-objetividade.
retrato da [sensação]* e entendi a falsidade do mundo da vontade e dos conceitos. Seria a garrafa de leite o símbolo do leite? O Suprematismo é a arte pura redescoberta, que no decorrer do
A mim me parece que a arte de Rafael, Rubens, Rembrandt, e outros se transformou para a crítica e para a sociedade em nada mais do que uma obscurecem seu real valor: a sensação que lhes deu origem.21
20 EVDOKIMOV, Pavel, Teologia da Beleza. Ecclesia- Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e America do Sul. Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/teologia/paul_evdoki mov_a_teologia_da_beleza_nos_padres_da_igreja.html. Acesso em 27/06/2011. 21 MALEVICH, K., Suprematismo. In: CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 346.
31
Mesmo que ao longo dos anos de 1970, até o final dos anos de 1980,
os estudiosos da obra de Maliévitch tenham manifestado grande relutância em
confrontar possíveis identificações entre a pesquisa plástica de Maliévitch com
questões que tocam o contexto teológico, segundo um apontamento de Andréi
Nakov (1986), seria necessário, ao menos, considerar a existência de uma
conotação filosófico-religiosa em relação ao termo Suprematismo, devido a sua
inserção na vida litúrgica da Igreja Católica polonesa. Segundo o pesquisador, o
termo, que não existe em língua russa, parece tomado de empréstimo do
vocabulário polonês da palavra sverkhnaturalizm (supranaturalismo).
(adotado por Maliévitch a contragosto de seus interlocutores e companheiros, que
vocabulário russo) faz uso de um tipo de prefixo ( / ) amplamente
empregado por autores de escritos místicos, como em termos como:
Bruno Duborgel (1997) propôs uma associação bastante razoável para
entender a experiência suprematista do sem-objeto frente ao panorama filosófico-
religioso russo. O pesquisador discute essa transfiguração suprematista em
relação às categorias do ícone e da iconoclastia, tentando relacionar a poética
plástica de uma arte pura , de um mundo e de um conhecimento sem-objeto
(bezpredmietnost) com a experiência mística de contato com o infigurável e
invisível presentes na pintura de ícones. Uma poética artístico-filosófica que
através do conceito de intuição busca transcender os limites do conhecimento
*Na tradução para o português feita por João Azenha Jr. a partir do texto em alemão (publicado
realizou tanto a tradução dos textos de Kandinski quanto os de Maliévitch, houve uma transposição deste termo a partir do alemão. Maliévitch, no entanto, utiliza com maior frequência a palavra ochtchuchtchenie tchuvstvo : sentimento.
32
racional e da percepção sensorial e estabelece ressonância com a experiência
mística.
Como se sabe, nas origens da arte religiosa russa, encontra-se uma
forte influência da arte bizantina. Um ponto de contato pode ser constatado na
adoção das cúpulas bizantinas no interior das Igrejas ortodoxas. Entretanto, mais
que uma escolha meramente visual de um elemento arquitetônico, a cúpula
representa para os ortodoxos e pelas palavras do filósofo Sierguéi Nikolaiévitch
Bulgákov (1871 in
O templo gótico é impelido às alturas em direção ao transcendente, mas resta sempre a uma distancia intransitável. Ao contrário, sob a cúpula ortodoxa que se abaixa, que junta e que reúne, sente-se habitar a casa do Pai, após a junção realizada do divino e do humano.22
Esse desejo de ligação entre o humano e divino profetizado pela
ortodoxia russa encontra lugar privilegiado na pintura de ícone.
Segundo o misticismo religioso russo, o ícone não pode ser
considerado apenas como um quadro religioso ou mera imagem, ainda que sacra.
No estreito limiar que concede possibilidade à representação, o ícone é o local
onde o sagrado se apresenta diante do homem. Em outras palavras, o ícone não
pode recair no erro da profanação do sagrado por meio da figuração, mas torna-se
símbolo, ligação material entre céu e terra, anunciando uma santidade que pode
se estender às coisas e relembra ao fiel da possibilidade da existência do divino
entre nós.
Nesse sentido o ícone torna-se símbolo da possibilidade de
transfiguração do homem e dá continuidade ao conceito de comunhão do homem
22 BOULGAKOFF, S., , Paris, p. 181 apud PORRET, Eugène, La Philosophie Chrètienne em Russie - Nicolas Berdiaeff (Être et penser: Cahiers de Philosophie), Suisse: Éditions de la Baconnière, 1944, p. 28.
33
com Cristo que é, dentro da liturgia cristã, representada pela Eucaristia. Nela, o
divino converte-se na imagem de homem, afim de que a humanidade tenha
acesso ao divino e vislumbre o caminho para tal transformação.
O fato de a Páscoa ser a festa religiosa mais cultuada na Rússia é mais
um dado que reforça o forte apelo à ideia de redenção do homem e da
transfiguração da vida por meio da compreensão de seu significado místico;
doutrina da transfiguração da humanidade (e não da santificação ou do culto ao
super-homem de Nietzsche), que será ponto crucial no cristianismo russo, e por
extensão, à filosofia religiosa russa.
Como expõe M. Leon Zander a respeito da importância das simbologias
presentes no culto cristão:
Tudo isso nos é dito não somente pelas palavras, mas por todas as riquezas que o homem possui para exprimir a vida mística interior, a saber: os cantos, os gestos, as cerimônias, a beleza dos ícones, os incensos, as velas... Tudo isto forma um conjunto feito para nos transportar em outra realidade absoluta e eterna... O culto tem um aspecto móvel de eternidade. [...] Mas o divino não é estranho aos homens e nós podemos tocar essa eternidade nos símbolos, que fazem parte simultaneamente aos dois mundos que nos são revelados em todas as formas do culto. Seu conteúdo é sempre o mesmo: o grande drama da criação e da redenção do mundo.23
Aquém da mística, no entanto, é preciso pensar sobre a própria relação
do trabalho de Maliévitch com a filosofia. Em primeiro lugar, sabe-se que o artista
não fazia citações diretas e, portanto, não deixava claro nos escritos quais seriam
seus efetivos interlocutores teóricos e filosóficos, mas diversos foram os estudos,
quando não especulações, sobre seu diálogo com os postulados de
23 selon la conception orthodoxe. Rapport présenté à la conférence pastorale d'Alsace et de Lorraine à Strassbourg le 14 juin 1933, Strasbourg, 1934, p. 13.
34
Schopenhauer, Kant, Hegel, Heidegger, Schelling, Bergson, Nietzsche, entre
outros nomes da filosofia ocidental.
Troels Andersen, pesquisador dinamarquês pioneiro na investigação da
obra de Maliévitch, estabelece associações entre o tratado O mundo não-objetivo/sem-objeto (Bauhaus, 1927) ao célebre texto de Schopenhauer: O Mundo como Vontade e Representação, estendendo tal aproximação à divisão dos
dos parágrafos conforme o texto do filósofo alemão24.
Um olhar mais panorâmico sobre a cultura russa do século XIX não
poderia ignorar a reverência de muitos de seus intelectuais para com
Schopenhauer. Alain Besançon (1994) afirma que Tolstó isposto
a largar tudo a fim de traduzi- A Morte de Ivan Ilitch nçon
será um dos principais autores a investigar a atração que tais doutrinas exerceram
sobre esses artistas.
Segundo o historiador:
O ímpeto religioso do fim do século trabalha a imagem desde dentro e aos poucos vai destruindo-a. Esse ímpeto religioso é místico, de um tipo de misticismo não cristão. Os historiadores apontam suas fontes: Schuré, Blavatsky, Steiner, etc., mas não se dão ao trabalho de examinar seriamente essa literatura.25
B. Zenkovski, no primeiro volume de Histoire de la Philosophie russe
(1953) traça um panorama bastante amplo das convergências teóricas e históricas
entre a filosofia russa e a filosofia ocidental, alertando para o fato de que o
24 ANDERSEN, T., The World as Non-Objectivity. Unpublished writings- 1922-25, Copenhagen, Borgen, 1976, p. 7. 25 BESANÇON, Alain, A imagem proibida: uma historia intelectual da iconoclastia, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 505.
35
desenvolvimento da cultura russa a partir da segunda metade do século XVIII,
pensadores que se estendeu até o século XIX, foi potencializado pelo ensino da
filosofia nas escolas superiores.
As safras de traduções de Kant e o contato com a obra de outros
nomes da filosofia alemã, como Fichte e Schelling, compõem um dado relevante à
compreensão desse desenvolvimento, assim como os contatos diretos entre os
intelectuais russos com importantes filósofos (a exemplo de Ivan Kiriêievski, que
conheceu Hegel, em Berlim) não podem deixar de ser citados.
Porém, um dos fatores que mais potencializou o crescimento dos
debates filosóficos na Rússia, no início do século XIX, foi o de que importantes
filósofos alemães passaram a lecionar em universidades russas. Conforme
Zenkovski, entre tais filósofos estariam Johann Gottlieb, que lecionou em Moscou,
e Schad que trabalhou em Kharkov, entre 1811 e 1816, e que havia sido discípulo
de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814).
Evidentemente, mapear de maneira completa ou irretocável todas as
linhas de contato entre a filosofia ocidental e russa, assim como entre a arte do
século XX e os postulados filosóficos, religiosos e místicos seria mais que um
trabalho hercúleo. Apenas para citar um exemplo, dentre os três fundadores da
abstração e da não-figuração V. V. Kandinski, K. S. Maliévitch e Piet Mondrian
(1872 1944) apenas Mondrian deixa claro sua fidelidade monogâmica à
Teosofia, muito embora, tanto afirmações quanto negações confessas possam ser
questionadas ao longo de qualquer trajetória artística.
Nos escritos de Maliévitch é possível perceber certa recorrência no
, ainda que com significações
muito particulares adotadas pelo artista e que se distanciam de suas concepções
originais nas tradições patrística, clássica ou alemã.
36
Apesar disto, durante a década de 1960 e até meados dos anos de
1970, quando houve um grande florescimento de traduções e estudos do trabalho
do artista na Europa, responder afirmativamente à questão da validade filosófica
do Suprematismo não constituía tarefa fácil e que durante décadas ficou restrita a
comentários relutantes, esparsos e, por vezes, quase ilustrativos.
Foi o filósofo e filólogo Emmanuel Martineau, no livro Malévitch e la philosophie: la question de la peinture abstraite (1977) quem se dedicou a avaliar
com mais exatidão a inserção do trabalho do artista no campo da filosofia,
concluindo ao final de sua análise:
Por enquanto, esperamos, seja qual for o valor de nossa análise inicial, ter estabelecido indiscutivelmente a diginidade e seriedade do Suprematismo e, especialmente, a sua filiação à História do Pensamento e não apenas à História da Arte em sentido restrito. Maliévitch quer queira ou não, é um grande pensador. Coisa, que sabemos, desagrada a alguns. Mas não é nossa culpa se o século é mais proveitoso do que as reivindicações da cultura parisiense dos anos sessenta. 26
Como é possível perceber, Martineau reconhece as limitações da crítica
ocidental dos anos de 1960 ao afirmar
pensame em relação ao conhecimento das
ligações entre os cenários artístico, cultural e filosófico russos dos séculos XIX e
XX.
Mesmo que em seu livro o autor esboce algumas correlações entre o
Tertium Organum (1911), de Uspenski - texto que se refere aos estados de
conhecimento místicos conquistados a partir de um sistema hierárquico de quatro
26 MARTINEAU, Emmanuel, Malévitch et la philosophie: la question de la peinture abstraite,
77, p. 223.
37
dimensões [Sensação (1ª dimensão) = animais inferiores; Percepção (2ª
dimensão) = animais superiores; Concepção (3ª dimensão) = homem de idade;
Intuição (4ª dimensão) = novo homem ou o Super-homem], é recorrente a
interpretação de que tais relações seriam estabelecidas mais no plano linguístico
suposta ligação da poética Suprematista de Maliévitch com a Teologia negativa e
com o Hesicasmo, afirmando também que nada poderia indicar o conhecimento
do artista da noção patrística da economia.
Longe de qualquer tentativa de depreciação e reafirmando a coragem e
seriedade do autor ao enfrentar as armadilhas de um tema complexo e até então
inexplorado é preciso levar em consideração que o livro de Martineau constitui-se
como uma espécie de critica à coletânea Écrits (1975), que foi organizada e
apresentada por Andréi Nakov. Isto porque, até aquele momento, Nakov afirmava
restringindo- -
Nesse panorama, fica evidente o esforço precursor de Martineau em
situar sistematicamente a pesquisa de Maliévitch em um quadro filosófico habitado
por figuras da grande tradição filosófica, sobretudo a alemã. Porém, se Maliévitch
está em boa companhia e à altura de consagrados pensadores, como nos mostra
E. Martineau, também transparecem lacunas e perguntas em relação à produção
pictórica e às filiações ideológicas do artista, e que talvez só possam encontrar
respostas, não na cultura ocidental - como fez o autor, mas na aproximação
necessária da poética suprematista à própria tradição filosófico-mística russa do
começo do século XX.
Nas últimas duas décadas, vários pesquisadores têm alimentado
conexões bastante frutíferas ao aproximar os projetos de artistas da vanguarda
russa às vozes filosóficas conterrâneas e contemporâneas. Nunca ignorando as
38
ligações do cenário russo com o Ocidente, tendo em vista o prolífero momento de
trocas artísticas que teve florescimento no final do século XIX e início do XX em
círculos culturais como os balés de Sierguéi Diaguilev, as associações artísticas
como o Mundo da Arte, Velocino de Ouro, Valete de Ouros e Rabo do Asno: uma
seleta cultural que certamente realimentou o estreito contato que já existia entre
Rússia e Ocidente, sobretudo no que se refere à Alemanha e França, mas de
onde também se viu brotar projetos ligados ao resgates de valores particulares da
cultura russa.
1.2. Mística: Éter ou objeto de estudo?
O estudo de textos sobre o pensamento místico compõe um terreno
acidentado e incerto, produção com frequência atacada pelas Ciências Humanas
com base nos estudos de Marx, Nietzsche e Freud - apenas para citar alguns de
seus opositores - que colocaram em descrença conceitos ligados à religião, à
metafísica e à própria mística.
A primeira razão disso pode ser encontrada na falta de definição do
próprio termo mística em suas diferentes vertentes orientais e ocidentais. Em
seguida, o problema se estende aos impasses teóricos de objetivação do que
poderia ser a experiência mística.
Nesse sentido, o estudo de conhecimentos relacionados ao
pensamento ou à experiência mística parece estar, numa concepção positivista,
no campo do subjetivismo, do idealismo, do impossível, ou em suma, do irracional.
Não por acaso, mística e loucura foram em diferentes momentos da história
diretamente associadas, se não vistas como sinônimos por seus detratores,
resultando em um embate entre mística e cientificismo.
39
Seguindo esse tipo de crítica, alguns ramos da literatura ligados aos
segmentos do esoterismo, da autoajuda, determinadas seitas e até mesmo os
praticantes deliberados do puro charlatanismo acabam pondo em descrença e
ceticismo generalizado textos e relatos místicos que fazem parte do pensamento
filosófico e teológico e se distanciam destas produções. Por consequência, os
estudos que se debruçam sobre as questões ligadas ao misticismo, seja ele de
origem judaica, oriental ou ocidental acabam imersos no mesmo descrédito por
causa deste tipo de confusão em relação à definição específica do objeto de
estudo.
Por fim, o problema de um estudo sistemático dos escritos místicos se
coloca na falta de adequação entre uma análise objetiva e o conteúdo, muitas
vezes etéreo desses relatos ou teorias, ou seja, num evidente embate entre o
resultado material que costuma ser gerado pelo pensamento racional e aquele
resultante da experiência mística.
Não que a filosofia distancie-se do tema, pelo contrário, como afirma o
pesquisador Eduardo Guerreiro Brito Losso (2007), as ligações entre filosofia e
mística, assim como da teologia e mística, são amplamente verificáveis na
influência do orfismo em Platão e Aristóteles, no conceito de Uno em Plotino, na
corrente gnóstica e na própria Teologia negativa.
Como aponta o pesquisador, influente na formação tanto do
pensamento Ocidental quanto Oriental, a mística teve desenvolvimento na Grécia
(a exemplo do orfismo e do dionisismo), na Antiguidade tardia (através do
neoplatonismo, hermetismo e gnosticismo), na Idade Média e Renascimento,
alcançando extensão até boa parte do século XX.
Muitos especialistas afirmam com frequência não haver uma distinção
criteriosa entre teologia e mística, o que pode ser reforçado pelo fato de que a
maior parte dos escritores místicos está inserida em uma tradição de importantes
teólogos e filósofos, a exemplo de Pseudo-Dionísio Areopagita, Plotino, Gregório
40
de Nissa, Nicolau de Cusa, Meister Eckhart, São João da Cruz, entre outros. A
este conjunto principal de escritos místicos é possível somar ainda os textos de
figuras religiosas, a . Há também o
caso de poetas que teriam sido fortemente marcados pela mística, de Ângelus
Silesius até escritores ocidentais como William Blake, Rimbaud, Lautréamont,
Poe, Mallarmé e Baudelaire, e os russos, sobretudo entre os representantes do
Simbolismo, seja este poético ou filosófico, como A. Blok, A. Biélyi, D.
Merejkovskii, N. Berdiáev e V. Ivánov.
Mais uma vez, ao lado desses reconhecidos filósofos, teólogos e poetas
que produziram no campo da mística há que se reconhecer a existência de uma
plêiade de escritos produzidos por farsantes e gurus, que nos fazem retornar ao
problema inicial: como delimitar um objeto de estudo que parece etéreo e definir o
conceito de mística diante de produções tão díspares?
O Dicionário crítico de teologia (2004) reitera essa dificuldade de
-Jacques Rousseau e os românticos
[o] aplicaram a todo o 27
Segundo o dicionário, o termo passou a fazer parte do vocabulário cristão na
época de Clemente de Alexandria (160-220) entendido enquanto experiência,
percepção ou consciência da presença de Deus no interior do espírito ou da alma.
A partir daí, muitas definições se seguiram com base na ideia do conhecimento
dos mistérios e do oculto em Deus.
Como consequência disso, um dos problemas centrais da abordagem
dos textos místicos é reconhecidamente sua escolha por uma retórica do
impossível, do incompreensível,
27 LACOSTE, Jean-Yves (direção e coautoria), Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas: Loyola, 2004, p. 1161.
41
Sob esse aspecto, ou seja, no campo da linguagem, talvez seja
possível estabelecer a primeira aproximação de K. Maliévitch com a mística, pois
o artista emprega alguns termos que fazem parte do vocabulário filosófico e
infinito e economia , a criação de neologismos com a
utilização do ou mesmo sua filiação ao Alogismo, vertente artística
ligada à concepção de uma consciência superior à razão.
Entretanto, se por um lado os escritos místicos relatam uma suposta
tomada de consciência, uma lucidez na fé, por outro, colocam o leitor em contato
com um paradoxo linguístico e cognitivo: como nomear aquilo que se encontra
acima da palavra e conceber aquilo que está além de qualquer conceito?
Tal paradoxo tem início na dinâmica interna da experiência mística, por
meio da via
dos sentidos, do intelecto e acaba por se estender ao colapso da linguagem, na
medida em que, ao tentar chegar o mais próximo possível do inefável e do
indizível, o místico faz negações daquilo que não pode ser descrito ou afirmado
sobre Deus, mas afirma simultaneamente que ele está além de qualquer uma das
coisas que se poderia -lo [Deus] na medida em que ele é
um Não-Deus, um Não-Intelecto, um Não-Pessoa, um Não- 28. A partir
deste enunciado, Deus não é nada e nenhuma das coisas que conhecemos, mas
nem por isso tem sua existência posta em dúvida ou anulada, visto que sua
existência encontra-se além da concepção dos homens.
Pseudo-Dionísio parece restabelecer a lógica linguística do problema,
pois se a teologia negativa afirma que a Causa universal está além de todas as
coisas conhecidas, sensíveis e inteligíveis, está inclusive além da própria
linguagem:
28 ECKHART, Meister apud LACOSTE, Jean-Yves, op.cit., p. 1164.
42
Não devemos julgar que as negações se oponham às afirmações: [a Causa universal], estando acima de toda negação e afirmação, está igualmente acima das privações. Por isso, o divino Bartolomeu diz ser a teologia longa e breve e o Evangelho amplo e vasto e igualmente conciso. Ele, ao que presumo, viu com clareza: que a boa Causa universal é feita de muitas palavras, de poucas palavras e desprovida de palavras, porque não se Lhe aplica discurso ou pensamento algum. Ela transcende com efeito de modo superexistente a todas as coisas, e se revela aos que, após terem atravessado todas as coisas impuras e puras, após terem deixado para trás toda ascensão que conduz as sagradas sumidades, e após terem abandonado todas as luzes, todos os sons e todas as palavras celestes, penetram na treva onde verdadeiramente se encontra, segundo as escrituras, Aquele que esta acima de tudo.29
Tal discurso parece conduzir à assertiva de que os homens não podem
prescindir das palavras, ou seja, têm a necessidade primordial de nomear as
coisas que os cercam para delas tomar consciência. Distante disto, como aponta
Pseudo-Dionísio, a contemplação traz consigo um tipo de conhecimento que
transcende a palavra, encontrando-se no silêncio das trevas onde todas as
coisas e conceitos estão ausentes. Assim, o que Dionísio paradoxalmente afirma
por meio de incontáveis negações é a limitação do conhecimento pelas palavras
frente a um Deus infinito:
Mas ainda nesse ponto, não se está junto a Deus: o que contempla não é Ele (Ele é invisível), mas o lugar onde Ele está. Ao que penso, isto significa que as coisas mais divinas e mais altas dentre aquelas visíveis e pensáveis são apenas palavras que sugerem ao intelecto coisas subjacentes Àquele que a tudo transcende, e revelam sua presença, superior ao pensamento, situada além das sumidades inteligíveis de seus lugares mais sagrados.30
29 DIONÍSIO, o Areopagita, Santo, Teologia Mística, Rio de Janeiro: Fissus, 2005, p. 17. 30 AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio, op.cit., p. 18.
43
Pode-se perceber um desdobramento desse conjunto de ideias na
reflexões de
Maliévitch sobre a realidade visível:
[...] mas como toda representação não é a Realidade; toda a representação que se tenta distinguir não pode ser a Realidade; por consequência tudo o que se tentou distinguir é nada, quer dizer Deus entra em repouso, e disto resulta que o nada era Deus, passando pelas perfeições ele tornou-se o próprio nada [...]. Pode-se considerar como perfeição do movimento universal do mundo ou de Deus o fato de que o próprio homem descobriu a prova de que nada desaparece no Universo, mas somente toma um novo aspecto. Da mesma maneira, o desaparecimento do visível não indica que tudo desapareça. Assim, as coisas visíveis são destruídas, mas não o ser, e o ser, segundo a própria definição do homem, é Deus, e este não é aniquilado por nada; pois o ser não pode ser aniquilado, Deus não pode ser aniquilado. Assim, Deus não está destronado. * Como eu havia falado anteriormente sobre o fato de que não é possível provar, definir, estudar, saber nada, todas as definições restam ainda sem provas, pois o que quer que tenha sido provado será entendido pelo Universo e por si mesmo. Disto, segue-se que toda prova é a simples aparência daquilo que não é provável. O homem chama toda a aparência de objeto; assim o objeto não existe no provável e no improvável.31
Esse contato com as terminologias e descrições que os místicos
realizam de suas experiências - ainda que problemática, como já foi dito - mostra-
se útil na interpretação das obras e da poética suprematista na medida em que
oferece um conjunto de exemplos de como a mística se propõe enquanto
experiência limite, última.
Nesse sentido
de Saint- Ruysbroeck
31 MALÉVITCH, K. S., , Vitebsk, 1922 [trad. franc.]. In: MALEVITCH, K. S., De Cézanne au Suprematisme omme, 1974, pp. 179,180.
44
Segundo a experiência mística ascendente, B
32. Maliévitch, por sua vez, escreve: Destruí o anel do horizonte e saí do
círculo das coisas, a partir do anel do horizonte no qual estão incluídos o pintor e
as formas da natureza. 33
A grande dificuldade em delimitar o que é a mística também é
consequência da transformação que o termo adquiriu dentro do Cristianismo, de
um sentido objetivo (associado aos sacramentos e liturgias da Igreja) para um
sentido subjetivo (o da experiência mística, de percepção direta do divino relatada
pelo místico).
Outro problema é que, da maneira como se apresenta no discurso de
seus autores, a mística não representa o alcance ou o estudo de um
conhecimento em si, mas necessariamente, uma narrativa per se (poética,
possuidora de valor artístico) de uma experiência sensível junto ao divino.
Tal como propõe a via negativa, não é possível obter um conhecimento
de Deus, mas vivenciar uma experiência de aproximação com o divino. Embora
paradoxal, no Cristianismo, a mística também é muitas vezes definida como o
por meio de seus santos,
apóstolos e de Jesus Cristo (Coríntios 2: 6-16; Efésios 3; Colossenses
1: 26-29).
Essa definição de mística, vista como uma experiência limite, capaz de
cessar as palavras, os conceitos e as imagens do mundo conhecido parece
coerente com as concepções de Maliévitch, servindo de chave de compreensão,
em especial para suas telas não-figurativas, a exemplo da série Preto sobre
32 Cf. LACOSTE, Jean-Yves, op.cit., p. 1166. 33 MALEVITCH, K., Du cubisme et du futurisme au suprématisme. Le nouveau réalisme pictural [trad. franc.], Moscou, 1916. In: MALEVITCH, K. S., op.cit, p. 49.
45
branco (1915) e Branco sobre branco (1918), que marcam uma das experiências
limite da pintura de cavalete.
Um olhar sobre a biografia de Maliévitch deixará evidente que o artista
nunca pretendeu alcançar uma erudição aos moldes acadêmicos. Portanto, é
difícil afirmar quais foram, efetivamente, suas fontes teóricas, até porque a
afirmação de um caráter autodidata e do ineditismo das produções era algo
bastante cultivado pelos artistas modernistas. Por outro lado, Maliévitch esteve por
várias décadas em contato direto com debates e importantes intelectuais ligados à
tradição filosófica e teológica.
Sob esse aspecto, conforme aponta Bruno Duborgel:
Esta experiência maliévitchiana do despojamento extremo do ser, do nada, do ser abissal, não é feito sem certas correspondências com outros exemplos, tanto ocidentais, quanto orientais, da experiência mística. E como a maior parte dos comentadores, costuma-se naturalmente sugerir alguns ecos entre a ontologia suprematista de Maliévitch e tais enunciados aferentes ao niilismo russo, à mística de Lao-TséMeister Eckhart, ao pensamento de Jacob Boehme, de Ruysbroeck, ou de Dionísio o Areopagita, da teologia apofática, do Hesicasmo, etc.34
Em sua tese de doutorado intitulada Teologia negativa e Theodor Adorno - A secularização da mística na arte moderna o pesquisador Eduardo
Guerreiro Brito Losso oferece um modelo alternativo para abordar esse tipo de
questão:
Não apenas o que é chamado de teologia negativa foi objeto de modernização por parte de filósofos e teóricos. A mística foi em grau muito maior, com resultados e implicações culturais mais abrangentes, aparecendo em movimentos artísticos e políticos. A
34 DUBORGEL, Bruno, op.cit., p. 68. *Nessa passagem Duborgel se refere aos comentários de D. Vallier, (1980), pp.136-138, A. Nakov, Malévitch. Écrits. (1986), pp. 31 e 34, E. Martineau, Écrits, vol. 2 (1977), p. 27 e J-Cl Marcadé, Écrits, vol. 4 (1981), p. 14.
46
secularização da mística tal como Adorno a denominou na arte moderna não significa uma retomada ou regressão de ideias e práticas do passado, antes, a elaboração laica daquilo que já carregava boa parte das raízes da arte moderna. [...] Ao contrário da mística anterior que proporia a união mística com o absoluto, a indistinção de sujeito e objeto, a mística na modernidade procura o contato com o outro já em si mesmo. Em vez da humilhação que é também um sentimento de elevação, da autodiminuição que também é autoengrandecimento, o artista moderno duvida desse modelo de aniquilamento do eu e inventa outro. Seu modo de aniquilamento é fazer da incapacidade da linguagem e de sua negação uma chance artística, ideia estética e mística que desenvolve uma exigência de verdade ainda maior, fundamentada pela própria incerteza e reflexão individual emancipada de religião e ideologias.35
Percorrido por raros historiadores, salvo Michel de Certeau, no campo
da mística europeia, e Alain Besançon, nas ligações entre teologia e imagem, a
abordagem da mística parece ser um caminho quase inevitável se desejamos nos
aproximar da formação do pensamento e da cultura russa no final do século XIX e
início do século XX, em particular no caso da não-objetividade de K. Maliévitch.
Nesse panorama, é preciso fazer referência ao intelectual francês
Michel de Certeau que, a partir de sua erudição historiográfica, linguística,
psicanalítica e teológica (foi ordenado jesuíta em 1956), criou uma metodologia de
pesquisa capaz de lidar cientificamente com os textos místicos franceses do
século XVII. Sua abordagem linguística se constitui como um dos modelos
metodológicos historiográficos mais fundamentais de aproximação dos escritos
místicos, ainda que o conteúdo de suas pesquisas se concentre no caso particular
da mística francesa.
Já o livro L'image interdite, une histoire intellectuelle de l'iconoclasme (1994), do historiador Alain Besançon, é uma das fontes bibliográficas obrigatórias 35 GUERREIRO, Eduardo Brito Losso, Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna. 2007. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, pp. 281, 285.
47
a todos que estudam o apagamento e a recusa da imagem no campo das artes,
além de tratar sistematicamente das tangências entre arte e religião e apresentar
uma síntese de diversas questões que envolveram a representação do sagrado
desde os gregos até o século XX.
Mas como tudo isso poderia estabelecer ligação com a cultura, com a
russa do início do século XX? Embora ingênuo, se
pensarmos nas grandes heterogenias linguísticas, culturais e geográficas do
essência primordial, a vocação e o destino desse povo, foi uma controversa
expressão muitas vezes proferida não apenas por ocidentais, mas pelos próprios
intelectuais russos.
Buscando alguma resposta para essa questão, não raras vezes foi dito
que um dos traços mais significativos e determinantes da cultura russa está em
sua religião: a encontramos ligada às origens de sua língua, o eslavônio
eclesiástico, que foi revolucionado e normatizado na época de Púchkin; vemos a
fé cristã em cada queda e redenção espiritual, no tormento e na compaixão dos
personagens de Dostoiévski; a encontramos, ainda que às avessas, na sátira
amarga e na construção burlesca dos popes em contos populares36; vemos seu
simbolismo sem paixões, anedotas ou narrativas nos ícones postos em seus
36 Não seria possível deixar de citar a antítese desta questão na visão de um dos mais importantes críticos da tendência ocidentalizante. A polarização deste discurso pode ser constatada na Carta a Nikolai Vassílievitch Gógol que o nosso clero é objeto de desprezo geral da sociedade russa e do povo russo? Sobre quem o povo russo conta histórias obscenas? Sobre o pope, sua esposa, sua filha e seu criado. Quem o povo russo chama de raça estúpica, trânsfugas, garanhões? Os popes. Há um único pope na Rússia que não seja, para todos os russos, representante da glutonaria, da avareza, do servilismo, da indecência? Será que o senhor não sabe disso tudo? Que estranho! Segundo o senhor o povo russo é o mais religioso do mundo. Mentira! A base do sentimento religioso é a piedade, a devoção, o temor a Deus. O russo pronuncia o nome de Deus coçando o traseiro. Ele fala sobre o ícone; presta para rezar e para os potes tapar. Observe com cuidado e o senhor verá que este é um povo profundamente ateu por sua natureza. Há nele ainda muita crendice, mas não há vestígio de sentimento religioso. [...] A maioria do nosso clero sempre se distinguiu apenas pela pança gorda, pelo pedantismo teológico e ainda pela mais brutal ignorância. In GOMIDE, Bruno Barreto (org.), op.cit., pp. 151, 152.
48
, e mesmo seus camponeses que dão origem ao termo mujique,
ganham foneticamente um parentesco com a palavra cristão37.
Em O destino da cultura (1926), Nikolai Berdiáev reafirma o papel da
religião e da espiritualidade enquanto fatores determinantes da civilização e da
cultura russas:
Nossa escola eslavófila sempre esteve penetrada de um sentimento de hostilidade não apenas pela cultura europeia, mas por sua civilização. A tese da historiografia russa sobre a putrefação do Ocidente queria dizer que a grande cultura europeia iria em direção a seu declínio e ao triunfo de uma civilização mecânica e sem religião. [...] Queremos acreditar que a Rússia não seguirá a via da civilização, que ela encontrará seu caminho e seu próprio destino. Considera-se a Rússia como o único país predestinado a ter ainda uma cultura religiosa, uma verdadeira cultura espiritual. Este problema está fortemente colocado dentro do pensamento russo.38
Seguindo esse caminho também se chega ao próprio termo religião,
que em seu sentido de religar, propõe a união entre os homens, ideia que não
parece distante da proposta modernista de uma arte universal, sem tema e
atemporal, que busca em sua essência e na integração entre forma e conteúdo a
capacidade de se comunicar com todos, não por meio de uma retórica manipulada
ou de um sistema semântico pré-determinado, mas pela via da criação.
37 Em russo, (krestianskii: camponês) soa muito próximo do som de x (khristianskii: cristão), da mesma maneira que as formas substantivas das palavras x (khristianin: cristão) e (krestianin: camponês) são foneticamente associáveis. Embora tal sonoridade seja circunstancial, visto que as duas palavras não têm o mesmo radical, é possível dizer que a (khristianin) lógicamente (Khristos: Cristo), enquanto (krestianin) tem a mesma raiz do verbo (krestianstvovat:
(krest: cruz). 38 BERDIAEV, Nicolas, Le destin de la culture. Publicado originalmente em , 1926. Disponível em: http://www.larevuedesressources.org/le-destin-de-la-culture,761.html. Acesso em 17/07/2010.
49
1.3. Teologia Mística
Como foi apresentado até o momento, existem diversas interpretações
daquilo que se costuma chamar de mística. Contudo, é fundamental aprofundar a
questão, aproximando-se do texto intitulado Teologia Mística ; tratado fundador
da teologia negativa e da mística ocidental cristã e do qual os eslavos terão uma
interpretação bastante particular em relação ao Ocidente. Tal obra é atribuída a
Pseudo-Dionísio Areopagita, figura que, ao lado de Orígenes e Gregório de Nissa,
Como os estudiosos do tema afirmam, não se sabe muito sobre a real
identidade do autor de Corpus dionysiacum ou Areopagiticum, compêndio
composto de quatro tratados (Hierarquia celeste, Hierarquia eclesiástica, Nomes
Divinos, Teologia Mística) e de dez Cartas.
O autor dos textos seria, provavelmente, um monge de origem síria que
teria escrito entre o final do século V e início do VI (possivelmente entre 484 e
532) sob o pseudônimo de Dionísio Areopagita, figura bíblica convertida por São
Paulo após seu discurso no Areópago de Atenas, como consta nos Atos dos
apóstolos: Alguns homens juntaram-se a ele e creram. Entre eles estava Dionísio,
membro do Areópago, e também uma mulher chamada Dâmaris, e outros com 39
Os textos de Pseudo-Dionísio foram, como fruto de uma semelhança
entre seus nomes, inicialmente atribuídos ao bispo de Paris, São Dionísio.
Entretanto, pelo teor de seus textos é aceito que o autor tenha frequentado a
Escola neoplatônica de Atenas, sendo discípulo de Proclo e de Damáscio.
39 Atos 17: 34
50
Influente tanto no Ocidente quanto no Oriente e considerado pelos
estudiosos um dos mais importantes tratados do pensamento medieval, a obra de
Pseudo-Dionísio Areopagita operou uma transição entre o pensamento grego e a
teologia cristã capaz de marcar profundamente teorias filosóficas de importantes
pensadores como Tomás de Aquino, Hegel, Kant, Spinoza, Heidegger e Adorno.
Conforme indica Marco Lucchesi em sua introdução à tradução do
tratado para o português, sabe-se que o texto grego recebeu diversas traduções
latinas durante a Idade Média, tornando-se extremamente difundido e comentado
não apenas no Ocidente Medieval, mas também teve grande influência sobre o
pensamento oriental.
Segundo o tradutor, as três vias clássicas de se chegar à Causa eram
formadas por três linhas de argumentação, sendo estas a causalidade, o excesso
e a remoção:
Conhecer Deus por suas causas era um argumento bastante conhecido e praticado. O mundo era um livro cuja obra apontava a todo instante para seu autor. [...] A remoção consistia em não se atribuir a Deus o que parecia exclusivo dos seres sublunares: Deus não podia morrer, perpetrar um crime, abrir uma parcela de esquecimento. Removiam-se-lhe qualidades e atributos que a inteligência humana não suportava lançar ao Uno. Finalmente, a parte mais fascinante repousa no excesso, em que todas as belezas e virtudes da criação precisavam ser magnificadas em Deus, pois que se uma flor guarda a sua beleza, Deus é mais belo que a fugacidade daquela perfumada flor. [...]. Mas tudo isso não define a melhor parte do que seria o lugar absoluto de uma possível teologia, ou da ciência de Deus que deveria repousar como dissemos no mais radical de todos os silêncios. A teologia que se costumou chamar de negativa e silenciosa (apofática) [...] trabalha com uma dialética áspera, em que a Causa não pode sequer ser pensada, e as formas que impedem seu alcance são de fato intransponíveis.40
40 AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio, op.cit., pp. 9, 10.
51
A Teologia Mística inicia-se com uma oração à Trindade, remetendo-se
a Timóteo, a quem Dionísio indica a contemplação das coisas divinas. Neste
primeiro capítulo, intitulado O que é a Treva Divina , o autor dedica-se à tarefa de
diferenciar a teologia negativa (ou apofática) e a teologia afirmativa (ou catafática),
guiando o leitor, não por aquilo que é conhecido ou compreendido - seja pelos
sentidos, pelo intelecto ou pelo espírito - mas desconstruindo e abdicando de
qualquer certeza obtida pelo contato com os entes naturais.
composto por cinco breves capítulos que exemplificam esta escassez de palavras
própria do discurso apofático, em oposição ao excesso de linguagem da teologia
catafática.
Portanto, se a teologia afirmativa tenta por um processo de acumulação
de incontáveis atributos divinos (o Bem, a Beleza, a Sabedoria, etc.) se aproximar
de uma espécie de imagem do divino; seguindo o caminho contrário,
, a teologia negativa pressupõe que tal tentativa mostra-se vã no
sentido de que mesmo todo o exagero expresso pela linguagem seria ainda
insuficiente para descrever a Causa de todas as coisas, sendo esta superior a
todas elas, encontrando-se além de todos os conceitos humanos ou categorias
descritivas, escapando não só das afirmações, mas também de qualquer negação:
[...] não se Lhe aplicam afirmações ou negações: quando negamos ou afirmamos os seres que Lhe são posteriores, não A afirmamos, nem A negamos. A Causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a excelência dAquele, que está absolutamente separado de tudo, e acima de tudo supera toda negação.41
Não se trata, no entanto, de uma mera negação de atributos, que por
consequência conduziria ao raciocínio contraditório de refutar a própria existência
41 AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio, op.cit., p. 36.
52
do divino, mas na aceitação primeira da limitada condição natural do homem,
restrito em seu círculo de conhecimentos e sensações imprecisas à compreensão
de Deus.
Em outros termos, a teologia negativa apresenta-se como via de
aproximação do inefável, de uma existência divina que transcende todas as coisas
e que não poderia ser alcançada pelas vias da razão, pois não é no campo do
saber, mas da experiência vivida, que se processa a mística.
Em um texto intitulado A ideia religiosa russa (1927), Berdiáev aborda
questão análoga:
Não se pode ter uma ideia da fé ortodoxa russa a partir da teologia oficial. A fé ortodoxa russa não conhece ponto de doutrina teológica obrigatória e constituída em sistema, ela não tem nem mesmo escolástica. O racionalismo teológico é o que menos convém à consciência religiosa russa. A ideia religiosa russa implica que o mistério da vida divina não pode ser expresso em uma concepção racional.42
Essa rejeição da razão e da lógica constitui uma das características da
mentalidade ortodoxa no sentido de que o conhecimento místico dá atenção a
outro registro da experiência e não à racionalização por meio de conceitos. Porém,
é importante ressaltar que a mística ortodoxa difere substancialmente da
interpretação que o Ocidente faz da obra de Pseudo-Dionísio porque aposta na
possibilidade de transfiguração do homem a partir de seu contato com o divino.
Este é inclusive o foco da polêmica entre Gregório Palamás (1296-1359) e
Barlaam de Seminara (c. 1290-1348).
O teólogo Barlaam retomava o pensamento aristotélico de que todo o
conhecimento adquirido pelo homem se faz essencialmente pela percepção, pela
42 sse, Cahiers de la Nouvelle Journée, n. 8, Bloud et Gay: Paris, 1927, p. 12.
53
via sensorial. Deus, não sendo nem existência material, nem objeto da razão
humana, seria inacessível ao homem, sobretudo através de um contato direto, tal
como afirmado pela mística hesicasta. Seguindo este raciocínio, o homem estaria
invariavelmente separado de Deus, sendo que, a única forma de apreensão
(indireta) de Deus, repousaria na revelação alcançada pela fé nas escrituras.
Essa impossibilidade de conexão entre divino e homem era refutada
pelo discurso do monge Palamás, porque afirmar isto seria, segundo sua teoria, o
mesmo que desacreditar todo o Novo Testamento e a crença em Cristo.
Palamás defendia a possibilidade de o homem estabelecer um contato
direto com o divino por meio do corpo, ainda que este contato fosse operado de
maneira sobrenatural e na qual, nem a razão, nem a linguagem estariam aptas a
agir.
Evidentemente, esse tipo de discurso paradoxal recebe toda sorte de
contra-argumentos do pensamento racional e científico, ou em outras palavras;
dentro do conhecimento científico a mística não alcança legitimidade, pois não
pode ser posta à prova em um sistema de verificação observável e racional de
seus dados.
Por outro lado, não é gratuito que as ciências exatas e biológicas
conquistaram ao longo dos séculos o direito de dar vereditos sobre a verdade nas
instâncias mais variadas. Se algo não pode ser comprovado com base em
métodos e argumentos científicos, ainda que sua existência não seja de todo
negada pelos cientistas, também não se constitui como verdade. Por esta razão é
comum que os termos ciência, razão e verdade sejam muitas vezes convertidos
em sinônimos.
Apenas para citar alguns desdobramentos dessa ideia dentro da cultura
russa, Nikolai Berdiáev desenvolveria um dos temas fundamentais de sua filosofia
representada pela antítese entre espírito e coisa; mundo objetivo ou objetivação
54
do sujeito e mundo existencial ou não-objetivo. Para pensadores como Aleksiéi
Stepanovitch Khomiakov (1804-1860), Ivan Vassílievitch Kiriêievski (1806-1856),
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) e Vladímir Serguêievitch Soloviov
(1853-1900), por sua vez, existia uma clara opção pelo discurso moral atrelado a
um profundo sentimento religioso, em detrimento da razão científica e por
consequência, também em recusa ao niilismo.
Khomiakov havia estudado a história da Igreja e das religiões e era um
profundo conhecedor da literatura patrística e da obra de Santo Agostinho. Dentre
Em sua teoria do conhecimento, Khomiakov afirma a necessidade de
transpor a parcialidade do saber racional. Para tanto, considera a fé enquanto
processo, ele rejeita a ideia da matéria enquanto princípio do conhecimento,
defendendo a necessidade de tomar o infinito /
fundamento do ser.
Como expõe Zenkovski:
Rejeitando o materialismo enquanto doutrina do ser, ele reconhece do ser, que deve necessariamente
se conservar infinito, cessa mesmo de ser material: a matéria universal é uma abstração imaterial, ela não tem nenhum caráter de matéria . O dinamismo do ser absorve por assim dizer a matéria e é necessário então conservar o mundo em termos de energia. Se a primeira vista, o mundo aparece à razão como uma matéria inserida no esp , percebe-se que a matéria deixa de ser uma noção inicial e torna-se uma
O tempo é energia em seu desenvolvimento, o espaço é energia em suas combinações 43
43 Segunda Carta sobre a Filosofia a Samarin. In: , t. I, p. 326, 327 apud ZENKOVSKY, op.cit., vol.I, p. 224.
55
O conceito de ridade do espírito , que definia a teoria do
conhecimento de Kiriêievski não opunha a fé à razão, mas indicava a necessidade
a raiz interior da compreensão onde todas as energias se fundem em uma única 44 Um dos traços distintivos desta teoria é que,
não se tratava da aceitação de uma exclusividade soberana nem da fé, nem da
razão, mas da elevação do pensamento até um plano onde as oposições entre
estes conhecimentos estariam dissipados.
Kiriêievski (e também Samarin) iriam insistir, ainda, que a realidade
sensível ou superior nunca poderia ser deduzida racionalmente. A chave para o
alcançar a união entre objeto e conhecimento e as esferas sensível e espiritual.
Soloviov, a partir de uma interpretação platônica, faria também uma
distinção entre os conceitos racionais e a contemplação intelectual imediata das
Para pensadores como Berdiáev e Evdokimov, apenas tomando como
exemplo dois herdeiros desta discussão, a ciência era capaz de afirmar muitas
verdades existentes na natureza, mas jamais teria contato com a Verdade
transcendente , absoluta - objetivo maior da filosofia para estes pensadores. Por
tal motivo, a própria filosofia jamais se constituiria enquanto ciência, pois seu
campo de estudo era o espírito.
Mais uma vez, como expõe Zenkovski:
A integridade do espírito determinava a teoria do conhecimento de Kiriêievski e sua luta restabelecimento dessa integridade que era a condição do realismo e do conhecimento. Bem, mas esse realismo era para ele
44 In: , t. I, p. 250 apud ZENKOVSKY, op.cit., p. 240.
56
inseparável de seu caráter ontológico; e onde a afirmação do princípio de que a fé é o fundamento de todo o processo cognitivo. [...] o conhecimento da verdade deve ser uma presença na verdade, quer dizer uma obra de uma vida inteira e não aquela apenas da inteligência. [...] não se pode negar que havia em Kiriêievski (como em Khomiakov) elementos de utopismo quando ele espera reestabelecer a integridade. [...] O sonho romântico de uma síntese universal se transforma aqui em utopia de uma cultura ortodoxa integral [...].45
Se por um lado, na visão ortodoxa da mística não existe a busca de um
critério lógico, pois o conhecimento de Deus não pode ser normatizado,
sistematizado, ou seja, não pode ocorrer no campo da cognição, acontecendo
apenas na esfera da experiência, por outro, o pensamento místico ortodoxo
oferece uma argumentação interessante, justamente por não ter a preocupação de
sistematizar afirmações, não exatamente porque a teologia não se aplica ao
universo científico, mas por defender a existência de um tipo de conhecimento no
qual a razão seria completamente inapta a operar.
P. Evdokimov irá construir todo um discurso dentro da ideia de razão
segundo a qual o desejo de definir Deus pela razão, ou mesmo a
experiência daqueles indivíduos que chegaram a atingir o conhecimento de Deus,
significaria o efetivo afastamento do homem da Verdade. A partir dessa
concepção ortodoxa da mística, ele afirma que tentar converter Deus e o mundo
em objeto de conhecimento por meio de decomposições analíticas da realidade (a
da qual também falará Maliévitch) seria o mesmo que
atingir o próprio mal.
Para Berdiáev, que iria opor a natureza e a ciência à vida e ao espírito,
a razão científica e a objetivação do mundo seriam responsáveis não apenas por
uma visão deformada da Realidade superior, mas a causa primordial de toda a
corrupção no interior do homem. Segundo o filósofo: O mundo objetivado é um 45 ZENKOVSKY, B, op.cit.,p. 252.
57
mundo onde Deus e o homem estão duplamente ausentes, de maneira que
objetivar Deus é fazer Dele uma coisa que não é nem divina nem humana 46.
Em textos de intelectuais como Dostoiévski e Berdiáev encontra-se o
argumento que qualifica o Cristianismo como a mais autêntica e verdadeira forma
de Humanismo. Nisto, encontra-se uma das máximas dos romances de
Dostoiévski: negar Deus e aceitar a lógica humana implica que o mal também seja
negado e sem tais parâmetros morais absolutos, tudo se tornaria permitido, pois a
moral humana será sempre relativa.
Um dos dados fundamentais para compreender essa característica do
pensamento russo está ligado ao fato de que um dos procedimentos mais
consagrados dentro da lógica é o método analítico, ou seja, fragmentar o objeto de
estudo a fim de conhecer detidamente cada uma de suas partes. Ainda que eficaz
em alguns casos, tal método mostra-se bastante frágil quando se tem por objetivo
a construção de um conhecimento unificado ou a visão de um ser unificado, tal
como existente na cultura filosófica e artística russa.
Esse modelo racional de apreensão dos objetos de conhecimento se
opõe à construção retórica que existe nos escritos místicos, e que emprega as
metáforas da treva (gnóphos) e da ignorância (agnosía), construindo o relato da
percepção da presença de um Deus que, ainda que incompreensível e
inapreensível, manifesta-se por meio do mistério percebido através de uma
condição extra-humana da percepção e do intelecto, conhecido como êxtase
místico:
Para Pseudo-Dionísio e toda uma parte da tradição dionisiana que o segue nesse ponto, o êxtase contemplativo está além da
O conhecimento mais divino de Deus é o que se adquire pelo in-conhecimento, numa união que se situa além da inteligência [...] quando a inteligência, tendo-se afastado
46 BERDIAEFF, Nicolas, , Paris: Éditions Montaigne, 1936, p. 69.
58
de todos os seres e, em seguida, tendo-se desprendido de si, é unida aos raios supraluminosos (De Div. Nom. 827 a-b). Para Aristóteles, a teoria é a realização do que é próprio ao homem, a vida segundo o intelecto e a virtude; para Plotino, o êxtase é igualmente saída do intelecto para fora de si. Concepção pagã e concepção dionisiana opõem-se, portanto aqui muito claramente; seja uma superação da humanidade; seja uma realização da humanidade por divinização do intelecto.47
Maliévitch se aproxima desse tipo de discurso em passagens como a
seguir:
Considero como o princípio e a causa do que nós chamamos na vida de todos os dias, a excitação que se manifesta em todas as formas possíveis como coisa pura, na qual não existe consciência, inexplicável, da qual ninguém jamais pode provar de nenhuma maneira que ela existe, sem nome, sem precisão, sem tempo, sem espaço, sem estado absoluto e relativo. Considero como segundo grau da vida o pensamento no qual a excitação absorve o estado visível do real sem sair dos limites da interioridade. O pensamento é o processo ou o estado de excitação que se pressente sob o aspecto da ação real e natural. É porque o pensamento não é mais que algo por meio do qual é possível refletir sobre um fenômeno, quer dizer, compreender, conhecer, tomar consciência, saber, provar, fundar; não, o pensamento é somente um processo da ação da excitação que não é conhecível.48
Ainda que o estudo racional de Deus (ou do telos) seja
epistemologicamente inconsistente pela óbvia impossibilidade de sua
demonstração, é interessante notar que se deslocado o foco daquilo que é dito
para o como é dito, a teologia mística mostra-se bastante rica do ponto de vista do
discurso linguístico e filosófico, no sentido de que busca um método de
aproximação do homem a um conhecimento exterior a ele e, ao mesmo tempo,
parece revelar através da expressão, concepções individuais da realidade.
47 LACOSTE, Jean-Yves, op.cit., p. 450. 48 rôn147.
59
É sobre esse último ponto que o historiador Michel de Certeau, em seu
livro La Fable Mystique (1982), propõe uma interessante tese, vendo nas
experiências místicas uma tentativa de emancipação individual por meio da
expressão das subjetividades, e como consequência, sendo a mística um indício
da própria modernidade.
Dentro desse raciocínio, a mística poderia ser considerada uma espécie
de ferramenta de transgressão dos valores sociais e de afirmação de novos limites
do sujeito em um contexto exterior, mas que ele passa a manipular a partir de uma
experiência interna. Em outras palavras, a afirmação do sujeito e a transformação
em seu interior ocasionada pela experiência mística (que é necessariamente
individual) ganhariam o poder de transformar e de agir como instrumento crítico de
uma realidade social. O estudo de Michel de Certeau: La Possession de Loudun
(1978) também é emblemático sob este último aspecto.
Dentro da mística ortodoxa, a transformação através da mente é um
dos princípios da ideia russa de sobornost (cristandade/catolicidade), no sentido
de que a transformação da consciência individual seria o primeiro passo para a
transformação total da sociedade.
Na filosofia social de um dos fundadores do movimento eslavófilo russo,
o filósofo e poeta A. S. Khomiakov, este conceito estava atrelado ao princípio de
-se às relações que já estavam presentes na estrutura da
comuna rural e de uma vida social organizada a partir de princípios religiosos.
Na mesma linha, Berdiáev via na religião e na filosofia um meio de
transformação da sociedade:
[...] mas a criação de um homem novo e de uma fraternidade entre os homens é um problema espiritual, um problema religioso; ele supõe uma transformação interior. Isso é o que o comunismo não quer admitir, que ele mesmo é uma religião. Eis porque o cristão pode ser socialista, e mesmo, segundo minha convicção, deve ser socialista; mas é difícil que ele seja comunista, pois ele não pode
60
aceitar a ideologia totalitária do comunismo da qual fazem parte o materialismo e o ateísmo.49
Segundo Eugène Porret, o conceito de sobornost, traduzido muitas
vezes como catolicidade ou pelas palavras de
Khomiakov) relaciona-se com a ideia de uma ligação livre do particular ou
individual com o todo eclesiástico. A soborno:
Não é nem a submissão da liberdade individual à autoridade, nem o triunfo da liberdade sobre a autoridade, mas o livre consentimento à unidade da fé dentro da igreja. O ortodoxo raciocina assim: minha opinião individual está contida dentro da fé comum da Igreja e a fé comum da Igreja torna-se minha opinião individual. E o cristão não pode verdadeiramente fazer parte da Igreja a não ser através da liberdade.50
Voltando à questão da teologia negativa inserida no campo linguístico,
dentro do discurso teológico a negação funciona como uma espécie de estratégia
retórica do contrário, que ao pôr de lado tudo aquilo que não caberia associar ao
divino (partindo-se do pressuposto de que mesmo o maior, o melhor ou os
incontáveis atributos estarão sempre em contato com a limitação do pensamento e
da percepção humana) chega-se a um limite, a um nada que excede todas as
coisas, e é neste sentido que o discurso negativo pode funcionar como chave de
compreensão ao Suprematismo de Maliévitch.
Nesse momento, também seria apropriado ressaltar que o conceito de
não-objetividade em Maliévitch não se aproxima do niilismo nietzschiano, mas em
muitos aspectos parece estabelecer conexões com o pensamento negativo,
enquanto herdeiro da tradição retórica de se expressar por paradoxos:
49 BERDIAEV, N. Personne humaine et marxisme. In: Le comunisme et les chrétiens - Ouvrage collectif, p. 200 apud PORRET, Eugène, op.cit., p. 161. 50 PORRET, Eugène, op.cit., p. 61.
61
Quando no ano de 1913, tentando desesperadamente libertar a arte do peso morto da objetividade, eu me refugiei na forma do quadrado, e criei um quadro que nada mais era senão um quadrado preto sobre um fundo branco, a crítica, e com ela toda a
Tudo o que amávamos desapareceu. Estamos em um deserto... temos diante de nós um quadrado preto sobre um fundo branco [...]
Nada além de um deserto! Mas esse deserto é preenchido pelo espírito do senso da não-objetividade, que perpassa todas as coisas.51
O Mundo não-objetivo/sem objeto (1927) seja uma resposta de Maliévitch à crítica de
Alexandre Benois ao Quadrado Preto, publicada na imprensa russa por ocasião da
mostra 0.10, pode-se notar uma adequação plausível entre o sentido presente no
texto do artista e o termo místico original, que utiliza a ideia de deserto enquanto
simbolismo de um espaço interior, local de esvaziamento da razão e de todos os
conceitos:
Segundo a tradição latina, as principais características do deserto seriam: a) trata-se de um fenômeno histórico que se repete desde o cristianismo primitivo; b) está presente nas diversas culturas e
de realidade geográfica, passa pela experiência histórica de um (ou mais) povo, sendo necessária sua releitura simbólica: esterilidade/fertilidade; incompleteza/completeza; desapropriação/apropriação; caminho/meta; e) a fundamentalidade do relato simbólico de Jesus sendo tentado no deserto (Mt 4; Mc 1); f) Jesus como o deserto dos cristãos; g) por uma espiritualidade do deserto: dinâmica do provisório e o deserto enquanto escola do Absoluto. 52
51 MALEVICH, K., Suprematismo. In: CHIPP, H.B., op.cit, p. 346. 52 Dictionnaire de Spiritualité -267 apud PONDÉ, L. F. Crítica e profecia: A filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 63.
62
O discurso místico do esvaziamento (Maliévitch irá usar as metáforas
está nos escritos do artista associado
ao problema da ilusória fundamentação do conhecimento a partir do objeto:
Estudar a Realidade, quer dizer estudar o que não existe, o que é incompreensível, e o que é incompreensível para o homem é o que não existe; por consequência é o inexistente que está submisso ao estudo. O homem definiu a existência dos objetos que eram anteriormente incompreensíveis para ele, inexistentes, e ele quer os estudar, tomar não importa qual dos objetos definidos pelo homem e tentar os estudar e nós percebemos que o objeto, sob a pressão do instrumento de estudo, será partilhado imediatamente em uma multidão de objetos componentes, plenamente independentes, e o estudo provará que o objeto não existe, que existia somente a soma dos objetos. [...] É por isso que o que chamamos de Realidade é o infinito que não tem nem peso, nem medida, nem tempo, nem espaço, nem absoluto, nem relativo, e não será jamais traçado para se tornar uma forma. Ela não pode ser nem representada, nem conhecida. Não há como conhecê-la e ao meterno. O homem está perpetuamente preocupado de que tudo esteja fundamentado, pensado; é somente então que ele aborda a edificação do objeto ao construí-lo sobre fundações sólidas, estabelecidas cientificamente, esquecendo que ele constrói fundações sólidas para o objeto sobre o qual não existem fundações.53
A concepção ortodoxa do conhecimento enquanto algo assentado não
sobre a razão, mas sobre o terreno da experiência e do sagrado é amplamente
encontrada dentro da cultura russa. Tal desconfiança em relação ao pensamento
racional dentro da ortodoxia tem relação com um dado que N. Berdiáev aponta em
de Dostoiévski (1929), ao s jamais tiveram a 54 Na mesma obra, Fiódor Dostoiévski é eleito como modelo de
entendimento destas questões:
53 MALEVITCH, K., op.cit, pp. 153,154. 54 Aqui Berdiáev retoma a abertura do discurso de Aleksander Púchkin no texto Da insignificância
Depois de receber a luz do cristianismo de Bizâncio, ela não participou nem das revoluções políticas, nem da atividade intelectual do mundo católico romano. O grande período do
63
Costuma-se dizer que todo gênio é nacional, mesmo e sobretudo na medida em que ele é humano: isso é incontestavelmente verdade em se tratando de Dostoiévski. Ele é especificamente russo, russo em profundidade, o mais russo de todos os escritores da Rússia. [...] a obra de Dostoiévski é uma interpretação russa do Universal. [...] Compreender integralmente Dostoiévski é assimilar uma parte essencial da alma russa, é ter decifrado em parte o segredo da Rússia.55
Segundo Joseph Frank (1989), em uma carta que o escritor redige logo
após o período de aprisionamento na Sibéria, momento no qual teria vivenciado as
experiências religiosas mais marcantes de sua existência, Dostoiévski afirma que
se algum dia a verdade fosse descoberta fora de Cristo e da religião, ele
escolheria a religião e não a verdade; discurso que o escritor empresta a dois de
seus personagens do romance Os Demônios (1872), na cena em que Chátov diz a
Nikolai Vsievolódovitch Stavróguin Mas não foi você mesmo que me disse que,
se lhe provassem matematicamente que a verdade estava fora de Cristo, você
aceitaria melhor ficar com Cristo do que com a verdade 56.
A visão da Ciência e seus métodos enquanto meios categóricos de
legitimação de ideias, discursos e práticas, um recurso irrefutável de percepção e
entendimento do mundo é frequentemente combatido dentro dos romances de
Dostoiévski. Em seus escritos, a confiança na razão é substituída pela crença no
homem, pois acreditar no homem significa o mesmo que afirmar a crença em
Deus. Para Dostoiévski, o homem é a via de alcance e comunhão com o divino e
nisto concentra-se seu misticismo.
Renascimento não a influenciou de nenhuma maneira; a cavalaria não inspirou arroubos castos em nossos antepassados e os abalos benéficos produzidos pelas cruzadas não se refletiram nas terras do norte entorpecido... Um grande destino estava determinado para a RGOMIDE, Bruno Barreto (org.), op.cit., p. 49. 55 BERDIAEFF, Nikolas, , Paris: Ed. Saint-Michel, 1929, p. 14. 56 DOSTOIÉVSKI, F., Os Demônios [tradução de Paulo Bezerra], São Paulo: Editora 34, 2004, p. 249.
64
Como observa B. Zenkovski, o psicologismo de Dostoiévski relaciona-
se em certa medida a uma espécie de irra vski constata
que para compreender o homem é necessário ir mais longe que sua consciência e
-57
Imerso em si, o homem tem a chance de confrontar duas essências
conflitantes: o bem e o mal. A superação da razão em Dostoiévski, além de
funcionar como um discurso contra o pensamento niilista da época, que
relativizava o bem e o mal em função da lógica (como visto, por exemplo, em
Crime e Castigo), encontra-se ligada ao problema da liberdade.
Segundo Zenkovski:
A liberdade não é a verdade última do homem: esta é determinada pelo princípio ético, pelo que faz o homem ir em direção do bem ou do mal em sua liberdade. É por isso que esta última pode conter uma semente de autodestruição, mas ela pode também elevar o homem à transfiguração. Há uma dialética do mal dentro dos movimentos da liberdade, mas há também uma dialética do bem.58
Essa escolha da fé e da espiritualidade em detrimento da verdade
científica não implicava em um obscurantismo religioso por parte dos intelectuais
russos, ainda que o pensamento ocidental, herdeiro do Iluminismo, tenha forte
tendência a interpretar desta forma. Por outro lado, a questão se torna muito mais
complexa quando se percebe que, mesmo numa nação impactada por uma obra
como Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880), de Friedrich Engels,
existiram simultaneamente pensadores que desenvolveram sistemas com base
nos dois lados deste debate.
57 ZENKOVSKY, B, v. I, op.cit., p. 466. 58 Ibid, p. 468.
65
Ainda que a princípio paradoxal, essa foi uma das características mais
originais do trabalho de alguns dos pensadores russos no início do século XX,
dentre os quais Maliévitch, Bakhtin e Floriênski.
Embora existam alguns discursos que associam superficialmente a
razão científica ao mal, sendo exemplos da visão mais fanática do obscurantismo
religioso, é relevante perceber que a problematização dessa questão por parte da
intelligentsia russa do século XX tornava latente as tensões ideológicas presentes
no período pré-soviético e evidenciavam a crítica destes pensadores a uma
sociedade fundamentada em valores positivistas e produtivistas.
1.4. Maliévitch e Bakhtin igiosidade
Tendo em vista o panorama filosófico que foi apresentado até aqui,
torna-se possível iniciar a contextualização de algumas questões pontuais que
poderiam ter sido relevantes à formação e ao desenvolvimento do pensamento
artístico-filosófico de Kazímir Maliévitch naquilo que se refere aos
questionamentos da doutrina materialista, da objetividade e do pensamento em
seus limites exclusivamente racionais.
Contudo, a aproximação de Maliévitch ao conjunto de ideias de origem
religiosa dificilmente poderá ser feita sem o embate de contradições, até porque
nenhum artista que defendesse abertamente um discurso religioso teria tido a
chance de permanecer vivo na União Soviética.
relevante ressaltar que sua visão de mundo foi tecida em uma trama cultural muito
variada, na qual o acento religioso ganhou corpo em debates como os ocorridos
entre os intelectuais do círculo de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin.
66
O primeiro dado relevante que une os dois pensadores encontra-se em
Vitebsk, local onde foram escritos os primeiros textos filosóficos de Bakhtin e
Maliévitch. De maneira semelhante, em Maliévitch e Bakhtin, o pensamento passa
por estágios, mudanças e até mesmo contradições internas que são condizentes
com a visão de um mundo em constantes transformações. Há nos trabalhos dos
dois interesses metafísicos, filosófico-religiosos, formais, epistemológicos, além de
uma atividade crítica e pedagógica permeada por estes fatores. Outro dado
fundamental que une e distingue os dois pensadores do contexto da época eram
Maliévitch no que se refere
ao Construtivismo/Produtivismo e Bakhtin ao formalismo literário.
Pensar o homem apenas como resultado de uma sucessão de
evoluções tecnológicas e produtivas é estreitar os caminhos por onde passa toda
a capacidade do espírito humano. No campo filosófico-artístico, esses dois
pensadores iriam ainda se distanciar das inclinações que apontavam à existência
de uma verdade inacessível aos homens comuns, o que em última instância pode
ser pensado como algo em acordo com a própria doutrina cristã russa, que vê no
homem e no agora a possibilidade de conexão com o divino.
Bóris Schnaiderman, na introdução à tradução em português do livro de
Katerina Clark e Michael Holquist, aponta com precisão esse aspecto
aparentemente contraditório existente em Bakhtin:
Outro fato que parece difícil de entender quando se começa a abordar a obra de Bakhtin é a sua condição de homem profundamente religioso que, ao mesmo tempo, é capaz de sólidas abordagens marxistas de uma realidade cultural. No meu entender, esta condição de cristão marxista está bem de acordo com a sua personalidade de reunidor de contrários.59
59 CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, Mikhail Bakhtin, São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 13. (Publicado originalmente em inglês pela Harvard University Press, 1984).
67
Essa aparente contradição ideológica era, em maior ou menor grau,
possível de ser constatada em outros círculos intelectuais russos, desde pelo
menos o século XIX. Mesmo em Dostoiévski já se nota traços desta característica:
Mais do que qualquer um de seus contemporâneos, ele [Dostoiévski] aceitou a
ideia cristã harmonicamente, na plenitude da sua trindade: ele foi um místico, um
humanista e um naturalista, em conjunto .60
Como expõem K. Clark, M. Holquist (1984) e Caryl Emerson (1997), um
dos motivos disso é que muitos desses intelectuais haviam sido influenciados
simultaneamente por correntes que representavam os dois lados da controvérsia,
como o eslavofilismo/russofilismo e o internacionalismo/ocidentalismo.
Além disso, é possível perceber que essa conciliação de forças
antagônicas, ou seja, a visão de mundo contraditória e unificadora a um só tempo
estava em acordo com as teorias sobre o destino histórico da Rússia perante as
nações mundiais. Essa capacidade de integração constituiria, segundo filósofos
como Soloviov, a principal herança da Rússia ao Ocidente.
Utilizando Mikhail Bakhtin a título de exemplo dessa profusão de visões
de mundo, é possível perceber que em entrevistas concedidas, em 1973, a Viktor
Duvakin61 ele afirmava que quando jovem possuía conhecimento e interesse tanto
por figuras como Aleksander Meier (1875-1939), um expoente do pensamento
internacionalista, quanto por padre Pável Floriênski. Interessava-se ainda pela
filosofia de Vladímir Soloviov e pelo trabalho de F. F. Zelínski, um de seus
-
Filológica da Universidade de São Petersburgo, que por sua vez, era um helenista,
profundo conhecedor e tradutor dos textos antigos. Zelínski tinha entre seus
60 SOLOVIOV, Vladímir, Três discursos em memória de Dostoiévski. In GOMIDE, Bruno Barreto (org.), op.cit., p. 536. 61 BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V., Mikhail Bakhtin em diálogo: Conversas de 1973 com Viktor Duvakin. São Carlos: Pedro& João Editores, 2008 [tradução de Daniela Miotello Mondaro a partir da edição italiana].
68
principais pupilos Bakhtin e seu irmão e foi responsável pela criação de um grupo
ao seu redor - ainda que informal - dedicado aos estudos clássicos. Essa
pluralidade de interesses demonstra como:
[...] para a intelligentsia, o Helenismo proporcionava outra solução à velha busca de uma verdadeira comunidade [...]. No Helenismo, entretanto, a intelectualidade mais culta não propunha uma solução retrógrada, [...] sua panaceia endossava a alta cultura e o espirito de livre indagação. Os helenistas eram também em geral intelectuais que buscavam Deus ou intelectuais Ortodoxos. Viam a tradição helenística como parte da linhagem da tradição religiosa russa, que seguiu a igreja bizantina ou grego-ortodoxa e não a católico-romana.[...] Muitos helenistas, entre eles o próprio Zelínski, que gostavam de enxergar o helenismo na velha teoria de Moscou-terceira-Roma,
62
Outro professor de Bakhtin, estudioso da Antiguidade, que despertou
in nguísta, foi
Mikhail Mikhailovitch Pokrovski (1869-1942). Nesse panorama, também não é
possível deixar de citar um dos professores mais lembrados por Bakhtin e que
teria sobre os estudantes daquela época forte influência: Nikolai Losski, que pelas
palavras de Bakhtin era a mais brilhante figura da faculdade. As suas ideias eram
totalmente diferentes. Não era kantiano; ao contrário poderia ser definido como
antikantiano. Era um intuicionista. O seu trabalho fundamental é Bases do intuicionismo. 63
Losski, pai do também conhecido teólogo Vladímir Nikolaiévitch Losski
(1903-1958), retomava o neoplatonismo cristão que já estava presente nos
principais discursos eslavófilos e, como outros filósofos de sua geração, iria
fundamentar sua teoria do conhecimento, o intuicionismo , a partir do conceito de
sobornost e de vseedinstvo (pan-unidade) desenvolvido por Soloviov.
62 CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael , op. cit., pp. 58, 59. 63 Ibid., p. 61.
69
Como afirmam Clark e Holquist, na Rússia desse período foi
particularmente comum que jovens intelectuais interessados inicialmente pelo
marxismo operassem mais adiante em suas carreiras uma fusão entre o
pensamento coletivista socialista e os ideais cristãos de comunidade, pois:
[p]ara muita gente, a preocupação com o desenvolvimento de uma nova consciência religiosa na Rússia ligava-se inextricavelmente ao desejo de fundar uma ordem social renovada, uma sociedade mais comunalista. Alguns tiravam os modelos, para esta nova organização social, das primeiras comunidades cristãs, outros do socialismo utópico francês ou do populismo russo e outros ainda pregavam um ideário que importava numa teocracia comunista.64
Para entender a complexidade desses debates, pelo menos durante as
duas primeiras décadas do século XX, é necessário vencer a impressão causada
conclusão de que a cultura religiosa na Rússia teria sido automaticamente
extirpada a partir da tomada de poder dos bolcheviques.
Conforme Clark e Holquist, tanto nas capitais russas quantos nas
cidades do interior a teologia mostrava-se um tema tão recorrente quanto o
marxismo e era foco de interesse do público em geral, a exemplo de uma
audiência ocorrida na pequena cidade de Nevel, em 27 de novembro de 1918, que
foi capaz de atrair um público de seiscentas pessoas.
A diversidade de pensamento e de expressão nos primeiros anos após
a Revolução mostra como conferencistas como Bakhtin e Lev Vassiliévitch
Pumpiânski (1891-1940) eram capazes de abrir as sessões afirmando sua fé
ortodoxa e ao mesmo tempo aplaudir com entusiasmo oradores marxistas. Isto
pode ser compreendido quando se considera que:
64 CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, op.cit., p. 56.
70
Bakhtin prosseguiu [na] tentativa de tornar a filosofia de alguma maneira congruente com a teologia. [...] boa parte de sua obra inicial, suas preleções, em especial, preocupava-se não com a teologia como tal, mas com uma filosofia da religião, um intento de entender e descrever um mundo em que a prece tem nexo. A desconfiança de Bakhtin em relação às ideias exangues e sua correspondente predileção pelo que é densamente particular não se exprime, em um oculto, introvertido conhecimento individual do Deus de Abraão. Bakhtin não procurava Deus, no que São João da Cruz oposto, o espaço entre os homens transponível pela palavra, pela elocução. Em vez de buscar o lugar de Deus no êxtase e no silêncio, buscava-O na energia e na comunicação. Procurando uma conexão entre Deus e os homens, Bakhtin concentrou-se nas forças que possibilitavam as ligações, na sociedade e na linguagem, entre os homens.65
Essa filiação, ainda que bastante particular do pensamento de Bakhtin à
tradição cristã ortodoxa russa estava em acordo com o renascimento religioso que
se manifestou de maneira acentuada nas duas primeiras décadas do século XX,
em meio à nova intelligentsia russa e que, ao contrário do que possa parecer, não
destoava dos debates revolucionários da época, visto que grande parte destes
pensadores de inclinação ortodoxa (como Berdiáev e Bulgákov) eram não apenas
humanistas, no mais profundo senso da palavra, como tornaram-se conhecidos
por defender e divulgar o pensamento marxista na Rússia.
As relações de Bakhtin, que se tornou em 1916, membro da Sociedade
Filosófico-Religiosa de Petersburgo66, a qual existiu entre os anos de 1907 e 1917,
65 CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, op.cit., p. 87. 66 aqueles que se encontravam à deriva na sociedade moderna e em certo momento haviam decidido até admitir ateus que era próximo a Bakhtin ver George F. Putnam, Russian Alternatives to Marxism: Christian Socialism and Idealistic Liberalism in Twentieth-Century Russia, Knoxville: University of Tennesse Press, 1977, p. 96). Esse foro atraía muitos dos que procuravam uma alternativa para a sociedade czarista contemporânea, inclusive anarquistas místicos e gente próxima aos terroristas revolucionários. Durante os anos de 1908 e 1909, vários socialdemocratas tomaram partido nas controvérsias que agitavam a Sociedade Filosófico-Religiosa e participaram mesmo de suas
Cf. CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, op. cit., p. 55.
71
assim como as relações de suas teorias com o pensamento teológico russo são
estudadas em diversas obras como as de Aleksandra Mikhailovic: Corporeal (Illinois: Northwestern University
Press, 1997); de Ruth Coates: Christianity in Bakhtin: God and the exiled author (Cambridge: Cambridge University Press, 1999); e de Susan M. Felch e Paul J.
Contino (edit.): Bakhtin and Religion A Feeling for Faith (Illinois: Northwestern
University Press, 2001).
O exemplo de Bakhtin e de outros expoentes de seu círculo linguístico é
tomado aqui de empréstimo, pois o itinerário do grupo por Vitebsk e Leningrado,
entre os anos de 1919 e 1924, corresponde em muitos pontos ao trajeto e aos
anos em que Maliévitch e seus companheiros e alunos estiveram trabalhando nas
mesmas cidades.
Pumpiânski, Bakhtin e V. N. Voloshinov se transferiram de Nevel para
Vitebsk, sendo que, depois do ano de 1919, Vitebsk passou a acolher intelectuais
como P. N. Miedvédiev, I. N. Sollertinski e V. A. Reidemeister. Bakhtin se mudou
de Nevel para Vitebsk em setembro de 1920 e permaneceu na cidade até maio de
1924, onde trabalhou no conservatório popular de Vitebsk e esteve registrado
como Instrutor de Estética e Filosofia da Música. Maliévitch, por sua vez, fixou
residência em Vitebsk a partir do outono de 1919 (quando foi convidado a lecionar
na Escola de Arte da cidade) tendo se transferido para Leningrado em 1922.
Além disso, como Bakhtin e membros de seu grupo estiveram
trabalhando no campo da filosofia da religião durante os anos de 1918 a 1924 é
bastante plausível que Maliévitch, que se tornou amigo de Bakhtin, estivesse
familiarizado com os mesmos temas e debates.
Outro exemplo de ligação entre os dois grupos de Vitebsk era a
amizade em comum com Maria Veniaminovina Iudina (1899-1970), uma famosa
pianista russa formada pelo conservatório de Petrogrado, que havia cursado
Letras Clássicas na Universidade de Petrogrado. Iudina, além de prima de um dos
72
alunos mais próximos de K. Maliévitch, Lev Iudin (1903-1941), foi também colega
de classe de Dmítri Dmitrievitch Chostakóvitch (1906-1975). A família Iudin
ocupava um lugar destacado nos círculos artísticos de Vitebsk. A maioria de seus
membros era músico, a exemplo da tia de Maria Iudina, P. I. Iudina, que era uma
conhecida cantora da cidade.
A pianista estava a par das discussões da vanguarda artística,
interessando-se e participando de diversos círculos culturais, não apenas no
campo da música, mas das artes plásticas, da literatura e da arquitetura. Além de
Maliévitch e Bakhtin e membros de seu círculo - V. N. Voloshinov, B. M. Zubakin,
M. I. Kagan (1889-1937), L. V. Pumpiânski - a artista tinha contato com os filósofos
Fiódor Andreev (Andreevskii) e com o padre Pável Floriênski, com os artistas
Pável Filonov e Vladímir Tatlin, com o compositor Mikhail Matiuchin (que era
amigo próximo de Maliévitch) e com os escritores Bóris Pasternak e Óssip
Mandelstam.
Segundo uma história que se tornou célebre na época, Stalin,
emocionado ao ouvir a pianista que tocava ao vivo na rádio estatal o Concerto para Piano n. 23, de Mozart, fez uma ligação à emissora pedindo que lhe
fornecessem o disco que acabara de ser executado. Os funcionários da rádio
ficaram numa situação difícil, pois não haviam feito nenhum registro sonoro da
apresentação de Iudina. A solução encontrada foi convocar às pressas a pianista
e os músicos de uma orquestra a fim de fazer uma gravação durante a noite,
exclusivamente para atender ao pedido de Stalin. Segundo relatos da época, foi
necessário substituir dois maestros por conta do nervosismo, sendo que apenas o
terceiro foi capaz de realizar a tarefa. Iudina, por sua vez, teria permanecido
serena todo o tempo. Stalin, desde este momento tornou-se grande admirador da
pianista, tendo apreciado tanto a gravação a ponto de lhe enviar uma grande
recompensa em dinheiro.
73
Toda a história já seria motivo suficiente de admiração, mas Iudina
tornou-se lendária pelo desfecho que deu a anedota. Em uma carta de
agradecimento ao ditador, a pianista afirmou que tinha doado todo o dinheiro à
igreja que frequentava e que iria rezar por ele dia e noite, pedindo a Deus que
perdoasse os grandes pecados que havia cometido perante o povo e o país.
Contrariamente ao que se possa imaginar, Iudina não recebeu punição por tal
atitude. Segundo é relatado por Chostakóvitch em suas memórias67, o disco
gravado por Iudina foi encontrado no interior da vitrola de Stalin logo após sua
morte.
Não é necessário lembrar que um artista que defendesse publicamente
um discurso de fundo religioso não teria grandes chances de permanecer em
segurança na União Soviética, ainda mais após uma declaração assinada e
endereçada a Stalin. Contudo, mesmo que existam dúvidas sobre a veracidade da
história, o fato que torna o caso mais surpreendente é que Iudina não só declarava
histér , como também de que, seguramente, teve
influência junto a órgãos e funcionários do governo. Este dado é confirmado por
contemporâneos que relatam que durante os anos vinte e trinta Iudina foi capaz de
interceder várias vezes para aliviar condenações, conseguir melhores locais de
trabalho e de subsistência ou mesmo prestando ajuda financeira a vários de seus
amigos. Foi ela que conseguiu, por exemplo, a atenuação da condenação de
Bakhtin, inicialmente penalizado a cumprir detenção por cinco anos em um campo
de Solovki (segundo uma decisão do Colégio do OGPU registrada em fevereiro de
1930). Tal decisão foi modificada pela condenação do filósofo ao exílio no
Cazaquistão. 67 SHOSTAKOVICH, Testimony: The Memoirs of Shostakovitch, ed. Solomon Volkov, New York: Harper & Row Publishers, 1979. A veracidade das informações existentes no livro editado por Solomon Volkov é questionada por vários pesquisadores. Uma síntese desta polêmica pode ser lida no artigo de Laurel E. Fay, Shostakovich . In: Russian Review, vol. 39 (out., 1980), pp.
484-493. Disponível em http://www.jstor.org/stable/128813. Acesso em 14/01/2012.
74
Clark e Holquist apontam que, mesmo depois de muitos anos passados
das perseguições políticas soviéticas era uma tarefa difícil definir alguém como M.
Bakhtin, pois quando questionado sobre suas crenças 68 Ao mesmo tempo, os autores não duvidam que
Bakhtin tenha sido um homem religioso, ou mais precisamente, 69 que havia recebido uma educação religiosa
ortodoxa desde a infância. Tal afirmação se baseia em depoimentos de Viktor
Chklóvski, o qual teria, em entrevista, relatado que Bakhtin era conhecido nos
círculos intelectuais como um tserkovnik
Embora a atitude temerosa em relação à discussão pública de temas
religiosos seja bastante compreensível em relação a Bakhtin - que opostamente a
Maliévitch nunca gozou de altas ou destacadas posições nas instituições Estatais
e nem mesmo pôde receber ao final de sua vida as honras oficiais de um funeral
como o de Maliévitch - tal relato não poderia ser mais significativo à compreensão
da perseguição política e ideológica soviética, capaz de silenciar o pensador da
linguagem que dedicou sua vida estudando a dimensão social do diálogo.
Outros membros do círculo de Bakhtin, como Pável Nikolaevitch
Miedvédiev ou Valentin Nikolaevich Volochinov (1895-1936), que durante décadas
declararam abertamente suas inclinações religioso-místicas em revistas como
Notas do Teatro Itinerante de Massa de Gaideburov e Skarskaia (editada por
Miedvédiev, entre 1922 e 1924) tornaram-se cada vez mais discretos em relatar
suas crenças ou inclinações espirituais a partir de meados de 1920.
P. Miedvédiev foi um destacado crítico na vida intelectual de Vitebsk,
muito conhecido nos meios acadêmicos por seus debates públicos. Ele se mudou
para cidade logo após a Revolução de fevereiro, tornando-se Chefe do
Subdepartamento de Belas Artes no Gubono. Ele também ocupou os cargos de
68 CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, op.cit., p. 31. 69 Ibid, p. 145.
75
reitor da Universidade Proletária, onde lecionava História da Literatura Russa, e de
professor no Instituto de Educação Popular de Vitebsk. Em 1925,
aproximadamente um ano após o fechamento do Teatro Itinerante e sua revista
pelo Comitê local para Instrução Política, Miedvéd
pública razoavelmente aceitável e desfizera-se de toda a religiosidade, misticismo
e até sentimentalismo, para converter-se num jornalista de casca grossa, que
tinha vez na imp 70
Nesse contexto de desconfiança e de crise ideológica responsável pela
mudança de discursos e posturas públicas e no qual os textos adquiriam cada vez
mais uma coloração marxista (o que era necessário aos autores que quisessem
assegurar suas publicações) é fácil imaginar que Maliévitch não tenha dado
declarações públicas sobre temas religiosos, também porque ele foi um membro
do Futurismo russo71, grupo conhecido por sua postura esquerdista.
No entanto, muitas de suas cartas e relatos de seus alunos e
contemporâneos demonstram que o discurso de Maliévitch, em especial ao final
dos anos de 1910 e primeiros anos de 1920, esteve bastante permeado pela
evocação de Deus e da temática religiosa, ainda que em um sentido tão peculiar
que provocava a revolta tanto de materialistas, quanto de religiosos
tradicionalistas.
Nas epígrafes do tratado Dos novos sistemas na arte e de A propósito do problema da arte plástica, por exemplo, o artista escreve:
70 Cf. CLARK, Katerina e HOLQUIST, Michael, op.cit., p. 138. 71 Por volta de 1912-1913, o termo futurista começou a ser usado pela imprensa russa para designar grande parte das manifestações que visavam perturbar a moral e a ordem pública por meio de escândalos artísticos programados. David Burliuk e Vladímir Maiakóvski foram os primeiros a acolher a denominação, problemática por fazer referência ao movimento italiano, do qual os artistas russos sempre fizeram questão de se proclamar independentes. Depois de 1917, os grupos vanguardistas de Moscou e São Petersburgo (cubo-futuristas e egofuturistas) passaram
contexto pós-revolucionário.
76
velh 72, trecho que se
remete claramente a uma passagem bíblica Veja, eu gravei você nas palmas das
minhas mãos; seus muros estão sempre diante de mim. (Isaias 49:16). Tal trecho
é bastante emblemático, pois remete diretamente à atitude dos membros do grupo
suprematista Unovis, que costuravam nas barras das mangas de suas camisas
pequenos quadrados pretos.
Ivan Kliun (1873-1943) afirmou sobre Maliévitch: -me que sua
relação com Deus era um tanto particular: não acreditava em Deus, mas
tampouco lhe era hostil. 73 Anatoli Lunatcharski também teria dito que em sua
acepção, Maliévitch era "um homem profundamente religioso."74
O interesse de diversos grupos pela religião na Rússia, no início do
século XX, nunca se constituiu como um todo homogêneo. Muito ao contrário,
coexistiram no mesmo cenário grupos voltados ao pensamento ortodoxo e às
questões propriamente ligadas à Igreja e à religião enquanto instituições
tradicionais, e outros, que não faziam uma distinção exata entre teologia e
filosofia, mas tentavam repensar as questões da modernidade por meio de um
modelo retirado da tradição ortodoxa russa.
O que artistas como Maliévitch parecem apreender desse raciocínio de
fundo religioso é que em um mundo onde as liberdades individuais e o direito à
criação foram reprimidos e todos os valores espirituais foram combatidos em prol
de um discurso materialista, niilista e racional, abrem-se as portas à barbárie.
Além disto, há em Maliévitch uma desconfiança em relação ao pensamento
72 MALEVITCH, K., Des nouveaux sys , Vitebsk, 1919, e À propos du probleme de
[trad. franc.]. In: MALEVITCH, K. S., De Cézanne au Suprematisme, op.cit, p. 79. 73 KLIUN, I., Vospominaniia o K. S. Maliévitch (Recordações sobre K. S. Maliévitch). In: NAKOV, A., Kazimir Malewicz: le peintre absolu, vol. 3, Paris: Thalia Edition, 2007, p. 139. 74 MIEDVÉDIEV, A., (Axiomas da vanguarda), 14 agost. 2014 . In: T -
[Topos revista literária e filosófica]. Disponível em: http://www.topos.ru/article/iskusstvo/aksiomy-avangarda-11. Acesso em: 24/08/2014.
77
racional e sua limitação para compreender o mundo em sua totalidade, o que era
uma das propostas mais fundamentais do Suprematismo.
Ainda que esse questionamento da razão e do exercício da liberdade
seguindo um modelo cristão de conduta seja algo muito mais ligado ao
pensamento moral do século XIX, percebe-se alguns desdobramentos dessa
tradição intelectual na criação da língua zaúm desenvolvida pelos poetas do
futurismo russo V. Khlébnikov e A. Krutchônikh.
A zaúm (neologismo em russo que pode ser traduzido como
transmental, transracional ou além da razão) opera em uma instância que
ultrapassa o senso lógico e normativo, mudando as sequências, formas e padrões
da linguagem, recusando modelos estabelecidos do conhecimento. Este termo
merece algumas observações, pois poderia ser traduzido literalmente no Ocidente
ou uma interpretação errônea
de seu significado.
As pesquisas realizadas por Khlébnikov e Krutchônikh, tais como a
destruição e isolamento da palavra com a finalidade de libertá-la de suas
desconstrução da gramática, da sintaxe e da pontuação, que adquirem uma nova
existência fonética e gráfica, foram bastante influentes na cultura artística russa e
encontram ressonância nos trabalhos pictóricos de Maliévitch da fase conhecida
como Alogismo.
Como afirma o pesquisador Jean-Claude Marcadé (1995), o Alogismo
pode ser interpretado como a versão pictórica da zaúm, isto porque nos quadros
deste período, K. Maliévitch faz uso de formas retiradas do mundo objetivo, mas
as recoloca no plano pictórico de maneira contraditória em relação à forma como
são percebidas em um contexto comum. A confrontação de elementos
fragmentados, herdeiros da tradição cubista, com uma figuração desconectada da
realidade provoca no espectador a desorientação no campo da lógica.
78
No entanto, vale retomar o sentido literal do termo em russo, pois a
proposição za
Alogismo e a linguagem transmental coloquem o espectador em contato com uma
compreensão de mundo na qual a razão é insuficiente para operar sozinha, é
possível entender que, para os futuristas russos, o percurso para este além
superava, mas não excluía ou contornava de maneira sumária a questão da razão.
Segundo afirma Maliévitch em uma carta a Matiuchin, datada de julho
de 1913:
Nós rejeitamos a razão, mas nós rejeitamos a razão nos apoiando sobre o fato que outra razão cresceu em nós que em comparação com aquela que nós rejeitamos, podemos chamar de além da razão mas ela também é regida por uma lei, uma construção, um senso e é somente em sua compreensão que alcançaremos uma obra fundada sobre a lei destverdadeiramente nova. 75
As pesquisas de V. Khlébnikov sobre a linguagem dos feiticeiros, dos
cânticos mágicos dos xamãs da Ásia Central é um exemplo desse entendimento
da linguagem, do som e da palavra, que libertos de seus significados usuais
poderiam estabelecer diálogos com aquilo que transcende a matéria e assume
uma função mágica na criação.
Essa oposição entre o pensamento racional e a liberdade criadora - e a
associação deste binômio à concepção de uma dimensão finita ou infinita do
conhecimento - está presente no trabalho do filósofo Bóris Nikolaiévitch
Tchitcherin (1828-1903). Em A Ciência e a Religião (1901), Tchitcherin aponta a
existência de dois princípios opostos, o infinito e o finito ; a liberdade
, a razão. Por sua vez, se o princípio da lógica é
75 Carta de Maliévitch a Matiuchin publicada por E. Kovtun em Sieg über die Sonne. Aspekte russischer Kunst zu Beginn des 20, Berlim, Frölich & Kaufmann, 1983, p. 39 apud MARCADÉ, Jean-Claude, - Garde Russe 1907-1927, Paris: Flammarion, 1995, pp. 114, 115.
79
acabar com as contradições internas de uma determinada questão, como
consequência, cada noção deve se fechar sobre si mesma e ser apartada da
infinidade de outras noções. Segundo tal raciocínio, a razão aparece como algo
limitado e, portanto, não pode ser em si mesma, uma potência criadora.
Essa concepção que une as noções de infinito, liberdade e criação e
questiona a lógica como um elemento limitador do conhecimento é fundamental
dentro do pensamento futurista e da linguagem zaúm. É por este motivo que o
foco na linguagem transmental é a criação de novas sonoridades e por
consequência, de novas palavras.
Contudo, diferentemente dos simbolistas, que se concentravam nos
mais novos e profundos significados das palavras, os poetas futuristas deram o
passo seguinte apostando no fato de que o significado é sempre limitado,
enquanto o som e suas diferentes conjunções são infinitos.
Nesse panorama, ressalta-se a existência de uma visão bastante cara
ao pensamento filosófico russo, na qual a ciência sozinha jamais poderia ditar
verdades absolutas, pois a compreensão total da existência e a integração do
homem com o universo exigiria o desenvolvimento global do intelecto, da
percepção e do espírito, e esta consciência abrangente, segundo alguns
pensadores, só poderia ser atingida por meio do conceito filosófico de intuição (ou
Maliévitch).
1.5. Além da figuração
Muitos pesquisadores já afirmaram seu estranhamento em relação aos
termos e conceitos adotados por Maliévitch. Um caráter apontado como obscuro ,
80
misterioso e incompreensível e que se interpretado apenas dentro da sintaxe
da arte moderna talvez possa mesmo parecer impenetrável.
o
tem
necessidade de percebe-se um diálogo do artista
com outros elementos da cultura e da filosofia.
Isso pode ser compreendido como uma apropriação de elementos do
pensamento místico, no sentido de que a poética do sem-objeto busca fundar uma
nova experiência de mundo através da tomada de consciência por um processo
iconoclasta de libertação da representação figurativa e do desejo de elevar o
conhecimento a um estágio superior à razão.
Não por acaso, o título da primeira exposição suprematista (e última
futurista) é 0.10, sendo o Quadrado negro o marco zero da nova criação
que prenuncia o passo seguinte:
Mas eu me transfigurei no zero das formas e fui mais além do zero à criação, quer dizer, até o Suprematismo, até o novo realismo pictórico, até a criação não-figurativa. O Suprematismo é o princípio de uma nova cultura: o selvagem como o macaco foi vencido. Já não existem mais amores pelos lugarejos, já não há amor em nome do qual se modificava a Verdade da arte. O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva. O rosto da arte nova. O quadrado é uma criança real cheia de vida. É o primeiro passo da criação pura na arte. Antes dela existiam feiúras ingênuas e cópias da natureza. Nosso mundo da arte tornou-se novo, não figurativo, puro. Tudo desapareceu, restou a massa do material a partir do qual vamos construir a nova forma. Na arte do Suprematismo, as formas vão viver igualmente a todas as formas vivas da natureza.
81
Estas formas dizem que o homem chegou ao equilíbrio, partindo de um estado a uma razão para chegar ao estado com duas razões. (A razão utilitária e a razão intuitiva.)76
A transfiguração apontada por Maliévitch é a transformação da
consciência por meio da liberdade e por consequência, da existência, e nisto
encontra-se o centro da discussão filosófica no Suprematismo:
Apenas pelo fato de que estão vivas [formas] e saíram da matéria, a qual foi dada um novo aspecto para uma nova vida. Aqui é a Divindade que ordena aos cristais que tomem uma nova forma de existência. Aqui está o milagre. Também deve haver milagre na criação artística.77
Anna Leporskaia, uma das alunas de Maliévitch, afirmou que ao tomar
consciência do quadrado preto pela primeira vez, o artista
comer, nem beber, nem dormir por uma semana inteira . Em suas memórias, Ivan
Kliun
Ele conta que ao desenhar o Quadrado Preto, Maliévitch afirmou cruzavam constantemente a tela diante de seus olhos.78
Embora Maliévitch fosse conhecido por seu temperamento enérgico, o
que por si só já seria suficiente para dar uma tonalidade apaixonada ao escrito, é
interessante que tal narrativa estabeleça semelhanças com os estados físicos
relatados por religiosos místicos. No entanto, não haveria propósito em se fazer
maiores especulações sobre tal experiência, que como sempre, estará limitada ao
observador em sua transposição ao campo da linguagem.
76 MALEVITCH, K., Du cubisme et du futurisme au suprématisme. Le nouveau réalisme pictural [trad.franc.], op.cit., p. 67. 77 MALEVITCH, K. S., op.cit., p. 62. 78 DOUGLAS, Charlotte, The Art of Pure Design: The Move to Abstraction in Russian and English Art and Textiles: A Meditation. In: Russian Engages the West, Dekalb: Northern Illinois University Press, 2006, p. 98 apud SHATSKIKH, Aleksandra, 2012, p. 45.
82
Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, p.167 e 179.
Imagem 6: K. Maliévitch. Cabeça de camponês, 1928-‐1932. Ost. 55 x 44.5 cm. Museu Russo. Imagem 7: K. Maliévitch. Duas figuras em transformação suprematista. Ost, 60.5 x 72 cm. c. 1928-‐32. Museu Russo.
Porém, as anedotas, assim como o fato de Maliévitch apontar o
Suprematismo como místico e filosófico deixam transparecer ao menos dois
fatores: em primeiro lugar, que a criação é um ato de revelação para Maliévitch, e
o segundo, que o Suprematismo tem para o artista uma dimensão que se
manifesta tanto no campo material quanto imaterial. Aliás, não é por acaso que um
dos principais embates teóricos de Maliévitch tenha sido contra os artistas
construtivistas e produtivistas, que desenvolveram sistemas artísticos centrados
nos problemas técnicos, materiais e nos procedimentos artísticos.
Embora o termo místico/a seja muitas vezes empregado por Maliévitch
em seus textos, a aproximação de sua produção ao pensamento místico ortodoxo
é problemática, pois como aponta Jean-Claude Marcadé:
se trata da arte russa que se hesita em aplicá-la ao pensamento e à obra de Maliévitch. Não se trata, em todo caso, de uma religiosidade difusa e invertebrada ou de estados de alma teológicos. Mas se admitimos que a visão mística suprime os
83
intermediários e transforma a percepção comum de nossos cinco sentidos em uma contemplação do mundo em sua existência total, podemos afirmar que o Suprematismo maliévitchiano é místico. 79
Na outra ponta, conforme descreve Pondé, a potencialização dos
sentidos através da qual o místico estabelece contato com o divino é assim
descrita pela tradição ortodoxa hesicasta:
A partir dessa experiência e do seu acúmulo, os grandes pais do Monte Athos são pessoas translúcidas, transfiguradas: o rosto e o olhar estão transformados e pela sua imagem percebemos que se trata de pessoas constantemente expostas à energia incriada.80
Essa seria uma boa descrição para algumas das telas da fase Pós-
Suprematista de Maliévitch nas quais o artista estabelece um limiar entre a
figuração e a não-figuração. Nelas seria possível delimitar contornos humanos,
mas olhos acostumados às composições suprematistas também serão capazes de
ver esquemas geométricos justapostos.
Conforme Maliévitch:
Na verdade, o que cada indivíduo sabe a respeito de si é muito
por detrás da já citada máscara, que é considerada, erroneamente, a A filosofia do suprematismo tem todas as razões para ver com
ela discute é a realidade da face humana (a realidade de uma forma humana). Em suas representações, os artistas sempre tiveram uma predileção toda especial pela face humana, pois nela viam a melhor possibilidade de expressão para seus sentimentos (a mímica versátil, móvel, expressiva). Os suprematistas, ao contrário, deixaram de lado a representação da face humana (e da
79 MARCADÉ, J-C., Le Suprematismo est-il Mystique?. In: MALÉVITCH, K., La Lumière et la Couleur pp. 13,14. 80 PONDÉ, L.F., op.cit., p. 78.
84
objetividade naturalista) e encontraram novos traços para a reprodução direta das sensações (e não dos reflexos
nem tateia, sente.81
O retorno à figuração na obra de Maliévitch, que por muitas décadas foi
interpretado pejorativamente pela crítica europeia, foi um dos tópicos longamente
discutidos desde que um conjunto de obras foi deixado pelo artista na Alemanha,
sendo redescoberto pelo Ocidente em 1957, a partir de uma série de exposições
ocorridas em importantes museus de Londres, Amsterdã, Berna, Braunschweig e
Leverkusen.
A história dessa exposição começa no ano de 1927 quando Maliévitch
consegue autorização para visitar o exterior graças à intervenção de Anatoli
Vassiliévitch Lunatcharski (1875-1933). Lunatcharski, que certa vez se descreveu
-cultural soviética durante
os anos vinte. Sua posição é muitas vezes apontada como liberal por ter
conseguido, no cargo de Chefe do Comissariado do Povo à Instrução, o
Narkompros (Narodnyi komissariat prosvechtcheniia), entre os anos de 1917 e
1929, mediar os interesses e ideologias do governo com as propostas inovadoras
e utópicas dos artistas russos. Ele foi um dos responsáveis pelos programas de
construção de novos monumentos e de propagandas em trens e navios. Defendia
acessível a toda a população. Também foi o principal responsável pela concessão
de auxílios financeiros, apoio na concretização de projetos e exposições e assinou
permissões para viagens ao estrangeiro a diversos artistas e intelectuais russos
durante o regime bolchevique. Durante o início do período de perseguições do
regime stalinista, Lunatcharski, embora tenha sofrido com a diminuição de sua
influência junto aos membros do partido, ainda conseguiu prestar ajuda política e 81 MALEVICH, K. Suprematismo. In: CHIPP, H.B, op. cit., p. 349.
85
socorro financeiro a muitos intelectuais condenados pelo regime. Ao final de sua
vida, foi nomeado Embaixador soviético na Espanha.
Maliévitch viajou à Europa Ocidental na condição de representante do
Instituto estatal da cultura artística de Leningrado, o Ginkhuk. Em sua primeira
estadia na Europa, permaneceu em Varsóvia três semanas, entre os dias 8 e 28
de março de 1927, acompanhando a mostra retrospectiva de sua obra, que
ocorreu primeiramente em uma das salas do hotel Polônia. Em seguida, viajou
para Berlim, permanecendo lá por nove semanas e meia, entre 29 de março e 5
de junho, local onde, com a ajuda do arquiteto alemão Hugo Haring, ganhou uma
sala de exposição especial na Grosse Berlinische Kunstausstellung (7 de maio até
30 de setembro).
A mostra trazida da Rússia pelo artista compreendia cerca de setenta
pinturas (das quais um terço era suprematista), desenhos e modelos
arquitetônicos que correspondiam em grande medida ao conteúdo da primeira
exposição individual de Maliévitch ocorrida no ano de 1920, em Moscou: a Décima sexta Exposição do Estado - Do Impressionismo ao Suprematismo, onde cento e
cinquenta e três obras foram expostas ao público. Maliévitch também levou
consigo diversas tabelas explicativas sobre suas teorias de análise da nova
pintura de cavalete e um substancial volume de escritos filosóficos.
Conforme os planos de Maliévitch, as duas exposições deveriam ser
acompanhadas de conferências explicativas a respeito das pesquisas
pedagógicas realizadas no Ginkhuk e sobre o desenvolvimento de sua obra e da
arte de vanguarda.
Em 25 de março de 1927, Maliévitch realizou uma dessas conferências
em polonês no Clube artístico situado no interior do Hotel Polônia. Na palestra
intitulada Análise das correntes artísticas contemporâneas , além de expor os
resultados de suas pesquisas relacionadas à Teoria do elemento adicional em
86
pintura, o artista criticou a identificação da arte russa com a propaganda e o
utilitarismo.
Essa conferência se constituiu, na verdade, como uma cerimônia para
que o artista fosse homenageado pelos artistas e críticos locais, que já conheciam
seu trabalho, sendo seguida por um banquete (documentado em fotos da época)
no salão onde as obras foram expostas.
Diferentemente do que aconteceu em Berlim (onde Maliévitch, que não
dominava nenhuma língua ocidental, não foi nem mesmo capaz de descer na
estação de trem correta, tendo se perdido a caminho da capital), em Varsóvia,
Maliévitch encontrou um ambiente cultural mais inclinado às suas ideias.
Além do fato de dominar o polonês, devido a sua ascendência,
Maliévitch foi recebido por dois de seus antigos alunos e companheiros do Unovis;
o pintor Vladislav M. Strzeminski e a escultora Ekaterina N. Kobro, que haviam
fundado alguns anos antes o Unismo, uma vertente artística do Unovis exportada
à Polônia.
Na Polônia, esses dois artistas colaboraram amplamente para a
divulgação do Suprematismo por meio da organização de exposições de trabalhos
suprematistas no ano de 1923, da publicação de manifestos e artigos sobre a arte
não-objetiva e da criação da revista Zwrotnica (Direção), na qual foram publicados
tanto artigos escritos por Maliévitch, quanto textos a respeito do artista e do
Suprematismo.
O debate de Maliévitch com os artistas locais poloneses também teve
maior repercussão e aceitação do que com os artistas da Bauhaus, pois Maliévitch
já havia contribuído com a revista polonesa Blok, na qual foi traduzido e publicado
parte de seu tratado Dos novos sistemas da arte, no ano de 1924. Em fevereiro de
1926, Maliévitch também participou da Exposição Internacional de Arquitetura Moderna de Varsóvia, onde expôs quatro de seus Planites. Por tudo isto, é fácil
87
perceber que o público polonês estava mais familiarizado com a produção
pictórica e teórica de Maliévitch.
Terminada a estadia na Polônia, Maliévitch partiu para a Alemanha em
1o de abril em companhia de Tadeusz Peiper, poeta e diretor da revista Zwrotnica.
Lá teve como anfitrião o engenheiro Gustav von Riesen, cujo filho, Alexandre von
Riesen, serviu de intérprete ao artista.
Alguns dos trabalhos suprematistas de Maliévitch e do grupo Unovis
haviam sido expostos em Berlim, na Erste russisch Kunstausstellung (Primeira
Exibição de Arte Russa) ocorrida na Galeria Van Diemen entre os meses de
outubro e novembro de 1922. Essa exposição foi a mais importante mostra dos
trabalhos russos na Europa ocidental desde o isolamento causado pela eclosão da
Primeira Guerra Mundial e permaneceu sendo por muitos anos a mais relevante
mostra de arte abstrata/não-figurativa russa no Ocidente. Compreendia tanto
obras dos artistas do grupo Mundo da Arte até as mais recentes pesquisas
abstratas e do Construtivismo russo. O design do interior da galeria foi criado por
Lázar Márkovitch Lissitzki (El Lissitzki, 1890-1941), projeto que iria se desenvolver
mais adiante, no ano de 1927, no projeto para o Gabinete de Arte Abstrata, em
Hanover. Esta mostra foi transferida para o Museu Stedelijk, de Amsterdã, entre
os meses de abril a maio de 1923, para a qual Maliévitch enviou quatro obras
suprematistas, dentre as quais uma das telas da série Branco sobre branco
(1918), além da obra de tendência futurista Amolador de faca (1912-13) que, junto
com outros trabalhos de artistas russos, foi adquirida pela colecionadora e pintora
Katherine Sophie Dreier para seu museu de arte moderna em Nova Iorque, a
Société Anonyme (atualmente a obra se encontra na Galeria da Universidade de
Yale).
Embora Maliévitch tenha estabelecido contato com artistas e arquitetos
alemães anos antes de sua visita a Berlim, suas ideias sobre a arte de vanguarda
e, especialmente, sua produção teórica não foram tão bem acolhidas quanto em
88
Varsóvia, fato certamente agravado pelas dificuldades de comunicação do artista,
mas também porque Maliévitch foi obrigado a retornar repentinamente à União
Soviética, o que o impediu de realizar as conferências explicativas de sua teoria e
obra.
Quatro meses antes do encerramento da exposição em Berlim (1927),
Maliévitch foi convocado pelo governo soviético a regressar a Leningrado, tendo
que prestar depoimentos sobre sua estadia. Antes de regressar à União Soviética,
em 30 de maio, o artista confiou uma série de manuscritos e cadernos de notas a
Gustav von Riesen, ficando o arquiteto modernista Hugo Haring responsável pela
guarda das obras presentes nas exposições, além dos vinte e dois gráficos
explicativos de sua teoria e pelas pranchas sobre a teoria da cor desenvolvidas
pelo colega de Ginkhuk, Mikhail Matiuchin.
Segundo Hans von Riesen, Maliévich teria deixado aos seus cuidados
um grande pacote amarrado com cordas e pedido solenemente que guardasse o
material até o seu retorno, previsto para o verão de 1928, pois tinha planos de
exibir seus trabalhos em outros países da Europa. Contudo, sabendo da
conturbada situação política de seu país, ele deixou registrado em carta que, no
caso de não conseguir voltar e se durante os próximos vinte e cinco anos Riesen e
Haring não recebessem notícias dele, teriam a autorização para abrir o pacote:
[...] no caso de minha morte ou de um aprisionamento definitivo e no caso do proprietário desses manuscritos desejar publicá-los, será necessário estudá-los e, após isto, traduzi-los em outra língua, pois achando-me nessa época sob influências revolucionárias, poder-se-ia encontrar fortes contradições com a maneira que tenho de defender a arte hoje, ou seja, em 1927. Estas disposições devem ser consideradas como as únicas legítimas. 82
82 Carta datada de 30 de maio de 1927, Berlim. Arquivos de Hans von Riesen, atualmente no Museu Stedelijk, de Amsterdã apud MARCADÉ, J. C., - Garde Russe 1907-1927, op.cit., p. 11.
89
Pelo seu conteúdo, a carta parece ter servido de subterfúgio ao artista,
que ao tentar se resguardar da perseguição ideológica ao regressar à URSS,
desejou assegurar que sua ideologia artística, no ano de 1927, não seria mais
condizente com suas visões registradas em escritos anteriores.
Sobre o destino das obras expostas no Ocidente, Troels Andersen
(Catalogue Raisonne of the Berlin exhibition, 1927. Stedelijk Museum, Amsterdã,
1970) e Donald Barthelme (Catálogo da Bienal Internacional de São Paulo, 1994)
relatam que quinze dos trabalhos foram perdidos, vinte e quatro fazem parte
atualmente do acervo do Museu Stedelijk, de Amsterdã, três estão em coleções
particulares e de outros dois, também de coleções particulares, não se tem notícia.
Ainda em Varsóvia, Maliévitch teria ainda presenteado o arquiteto Simon Sirkus
(marido de Helena Sirkus83) com o Arquitetone Zeta. Após voltar à URSS,
Maliévitch foi obrigado a vender uma de suas pinturas que estava em exposição
em Berlim (Composição suprematista, de 1916) e duas outras obras teriam sido
presenteadas pelo artista a Hugo Haring e sua esposa.
Durante o período de ocupação nazista a maioria dos trabalhos que
havia ficado na Alemanha sob os cuidados da família von Riesen foi armazenada
por uma empresa de transportes, em Berlim, pelo agente de expedição Gustav
Knauer. Posteriormente as obras foram retiradas de Berlim ficando aos cuidados
de Alexander Dorner, diretor do Provinzialmuseum de Hanover. Com a ocupação
nazista em 1933, Doner, em um ato de coragem, manteve os trabalhos
escondidos.
Em 1935, Alfred H. Barr, então diretor do Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque, empreendeu uma cruzada pela Europa em busca de obras abstratas
e acabou adquirindo duas obras suprematistas e dois esboços arquitetônicos para
83 Em setembro de 1926, Maliévitch publicou trechos de O Mundo não-objetivo/sem objeto no primeiro número da revista polonesa Praesens. Graças às ligações da revista com o grupo francês Cercle et Carré, estes trechos foram traduzidos para o francês por Helena Sirkus, sendo esta a primeira tradução de um texto do artista para a língua francesa.
90
a coleção do museu pelo preço simbólico de aproximadamente duzentos dólares,
além do empréstimo de seis pinturas, um guache, cinco desenhos e cinco das
vinte e duas tabelas pedagógicas para sua mostra Cubismo e Arte Abstrata,
ocorrida em Nova Iorque, que foram posteriormente agregadas à coleção
permanente do MoMA .
Por esse período, Dorner não tinha mais condições de expor e nem
mesmo de conservar em seu poder tais trabalhos, seja porque as obras dos
modernistas estavam sendo confiscadas para venda ou destruição pelos nazistas,
seja porque aqueles que possuíssem ou apoiassem tal tipo de arte estavam (no
melhor dos casos) sob a ameaça de prisão.
No outono de 1935, os trabalhos foram então transportados por Dorner
pelo território holandês, mas a perseguição nazista tornou inviável a devolução
das obras. Como em 1936, duzentas e setenta pinturas do Museu de Hanover
fim de salvá-las de tal destino. Em uma manobra arriscada, o arquiteto as
escondeu em sua casa em Berlim e depois em Biberach, no sul da Alemanha.
Na década de 1950, Willem Sandberg entrou em contato com Haring,
adquirindo as obras para o Museu de Amsterdã. Embora a aquisição dos trabalhos
pelo Stedelijk tenha se concretizado em 1958, as disputas judiciais do museu com
os herdeiros do artista se estenderam por décadas, pois eles alegavam ter direito
sobre cerca de cem obras que teriam sido indevidamente vendidas por Haring ao
museu (o MoMA também estabeleceu acordos financeiros com os herdeiros do
artista por motivo semelhante). Apenas em abril de 2008, após anos de disputas
judiciais, os herdeiros de Maliévitch entraram em acordo com o governo de
Amsterdã. Com a exceção de cinco obras que foram restituídas à família, este
conjunto de obras e documentos pertence legalmente ao museu holandês.
Fora a importância histórica dessas duas exposições internacionais de
Maliévitch (representando tanto uma manobra estratégica do artista no sentido de
91
resguardar seu trabalho das autoridades soviéticas, quanto uma mensagem
enviada na garrafa ao Ocidente de uma obra pictórica e teórica que permaneceria
por décadas proibida de ser exposta na União Soviética) essas mostras marcam o
início de uma nova fase pictórica na obra do artista, normalmente conhecida pelo
seu retorno à figuração e à temática da arte popular, embora sob uma base formal
tomada de empréstimo da estética suprematista.
Como argumentam alguns pesquisadores, essa nova produção teria
sido acompanhada pela recriação de algumas telas de tendência neoprimitivista,
impressionista e cubista, que haviam originalmente sido feitas por volta da
primeira década do século XX, fato que gerou um extenso debate entre a crítica
nos anos de 1970 a respeito da identificação das obras antedatadas pelo artista.
Por volta de 1927, com o crescente aumento de poder dos órgãos de
vigilância e controle ideológico na URSS (1927 foi o ano em que Stalin expulsou
Trotski da direção do partido), era comum que fossem levantadas suspeitas sobre
aqueles que tivessem ligações com o exterior. Como já foi dito, após o regresso
de sua viagem à Alemanha, Maliévitch foi interrogado e permaneceu preso por
alguns dias. No ano de 1930, o artista foi mais uma vez preso e prestou novo
depoimento sobre a mesma viagem, sendo detido por mais de duas semanas. Por
conta da pressão e do medo de novas reprimendas do governo, sua família
destruiu parte de seus arquivos, incluindo telas.
Por conta desse episódio, em 1978, a pesquisadora Charlotte Douglas
defendeu o argumento de que alguns trabalhos de tendência impressionista de
Maliévitch teriam sido realizados ao final dos anos vinte e início dos trinta e não na
primeira década do século XX, conforme datações do artista.84
84 O problema das antedatações das obras de Maliévitch são especialmente discutidas por
, Soviet Union, 5/2, 1978 e por Elena Basner, the Collection of the Russian Museum (The Matter of
92
Ao longo das últimas décadas, o argumento que mais se solidificou
entre os pesquisadores ocidentais foi o de que Maliévitch, ao final da década de
vinte e início dos anos trinta, teria tido a necessidade de demonstrar a coerência
histórica de seu trabalho.
Sobre a questão Jean-Claude Marcadé aponta:
Há várias hipóteses que foram levantadas para explicar as evidentes antedatações de Maliévitch: datação segundo a data de início da execução, datação segundo a cultura pictórica, razões comerciais, vontade de mascarar o abandono de suas obras no exterior, pressões político-estéticas, etc. Proponho outra hipótese. Parece-me que ao final de sua vida o pintor quis refazer uma biografia pictórica que correspondesse àquela de um pintor seguindo as etapas que ele mesmo havia
todas as evidências, faltava a Maliévitch o elo impressionista, um impressionismo coerente. 85
Em continuidade a esse raciocínio, é possível propor que as pinturas de
Maliévitch com temática camponesa e as frenquentes citações visuais à arte
popular russa (presentes na escolha de padrões de cores, formas e objetos
ligados a esta cultura) façam parte de um raciocínio histórico mais amplo, no qual
o artista quis realizar sua própria versão e crítica ao realismo socialista, o qual
explorava constantemente a figura do trabalhador soviético e do camponês.
Também se deve considerar o fato de que algumas das pinturas
antedatadas de Maliévitch foram realizadas em um período próximo ao de seu
projeto de pesquisa científica do Impressionismo apresentado ao Museu Russo, o
proveito da coerência histórica, alguns destes trabalhos tenham sido feitos em
, Kazimir Malevich in the Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000. 85 MARCADÉ, Jean-Claude, Nouveaux aspects de la recherche malévitchienne. In: MALÉVITCH, Les Arts de la Representation p. 172, 173.
93
somatória a prática pedagógica do artista, ou seja, que tenham servido como
recurso metodológico à pesquisa do sistema impressionista.
Já em relação às chamadas obras Pós-suprematistas ou
Supranaturalistas de Maliévitch, muitas teorias, bem ou mal fundadas foram
construídas em torno de possíveis simbologias, significados ou conjunturas
políticas que justificassem o ressurgimento da figuração após o período não-
figurativo.
Como é possível deduzir, uma das primeiras hipóteses tenta explicar os
motivos desse retorno à figuração com base na perseguição política e ideológica à
qual foram submetidos os artistas da vanguarda (sobretudo os
futuristas/esquerdistas, que passaram a ser acusados pela crítica soviética de
a partir da instituição do dogma do realismo
socialista.
Nesse sentido, os trabalhos de Maliévitch foram muitas vezes
interpretados, seja como uma manobra de adequação formal e temática aos
ditames do governo, seja como o reflexo de um estado de espírito depressivo do
artista ou sua submissão forçada às ideologias vigentes no período.
De uma forma ou de outra, os trabalhos receberam por um longo
período uma apreciação negativa, sendo vistos como uma espécie de traição dos
ideais modernistas, ou como sintetizou o historiador T. J. Clark, eles
representaram 86
Por outro lado, o partido recomendava a representação da vida operária
e camponesa a partir de modelos figurativos, que tinham como principal referência
a arte dos pintores Ambulantes.
86 CLARK, T. J., Farewell to an Idea: Episodes from a History of Modernism, New Haven and London: Yale University Press, 1999 apud LODDER, Cristina, Malevich Scholarship: A Brief Introduction. In: DOUGLAS, Charlotte; LODDER Christina, op. cit., p. XIX.
94
No entanto, em trabalhos desse período realizados por Maliévitch é
possível distinguir uma clara intenção de não reduzir a arte aos temas e conteúdos
proletários . A linguagem plástica permanece sempre acima dos discursos
ideológicos, ou em outras palavras, a forma mantém sua força, independente de
conteúdos externos, que tentem ser sobrepostos a ela. Além disto, Maliévitch
afirmava que tais obras eram uma continuação de seu Suprematismo.
Frente a esse panorama é preciso perceber que a crítica ocidental foi
pouco precisa ao interpretar a retomada da representação no trabalho de
Maliévitch a partir de modelos socioculturais e mesmo psicológicos de artistas
ocidentais que, após experiências traumáticas, como a participação em guerras,
abandonaram a pintura, ou mesmo que, após uma fase de abstração e
experimentação formal, retornaram à figuração renegando sua produção anterior,
tal como nos casos de Giorgio de Chirico ou Carlo Carrà.
Porém, considerar que Maliévitch tenha se desiludido da poética não-
objetiva ou que tenha perdido a crença na validade de suas pesquisas
suprematistas, sendo este o motivo do surgimento de sua produção figurativa nos
últimos anos da década de vinte é um fato simples de ser refutado.
O primeiro indício capaz de negar esse tipo de teoria está registrado
nas fotografias tiradas antes e imediatamente depois de sua morte, em 15 de maio
de 1935, onde é possível perceber que mais que um evento público, as cerimônias
fúnebres foram arquitetadas por Maliévitch como uma espécie de réquiem
suprematista. Ou seja, não exatamente uma performance, no sentido pejorativo de
espetáculo ou encenação, mas ao contrário, como um desfecho solene e
grandioso de sua obra.
95
Para tanto, Maliévitch deu
instruções precisas a seus discípulos mais
devotados à execução de seu caixão
arquitetone : uma forma-objeto adornada
com elementos suprematistas. O caixão
era branco (assim como o plano das telas
suprematistas), tendo pintado um
quadrado imediatamente acima de onde
ficaria o rosto do artista e um círculo no
extremo oposto, sobre os pés.
É interessante notar que em
muitas obras não-objetivas de Maliévitch,
que possuem títulos que remetem ao
gênero do retrato, o artista
constantemente substituía a face por um
quadrado preto ou vermelho. Exemplos
disto são visíveis nas obras: Realismo Pictórico de uma camponesa em duas dimensões (1915); Autorretrato em duas dimensões (1915); Realismo pictórico de um jogador de futebol (1915) ou Realismo pictórico de um garoto com um saco
(1915).
Uma obra precursora do
Suprematismo, onde tal recurso parece
ser utilizado, porém de maneira menos
óbvia é Composição com Monalisa (1914),
no qual embora exista a colagem de uma
Imagem 8: Velório de K. Maliévitch, Leningrado, 1935. Fotografia. Imagem 9: Chegada do cortejo fúnebre na Estação, Leningrado, 1935. Fotografia. Imagem 10: Una e Natalia Andreievna no local onde as cinzas de Maliévitch foram dispersas, Nemchinovka, 1935. Fotografia.
Malevich, 1878-‐1935. The Armand Hammer Museum of Art and Cultural Center, Los Angeles, California, 1990, p. 20.
96
reprodução da obra de Leonardo da Vinci (o busto de Gioconda está anulado com
avant la lettre), a
composição dos elementos não-figurativos parece simular a silhueta da mulher
retratada.
O tampo do caixão de Maliévitch foi posto em posição vertical, ao lado
do corpo do artista e figurava como mais uma dentre as várias obras que estavam
expostas em uma das salas da Casa dos Artistas, de Leningrado. Pelas fotos, é
possível perceber que o velório estava organizado como uma mostra: na parede
ao fundo, sobre a face de Maliévitch, foi pendurada uma das versões da tela
Quadrado preto, muito provavelmente a partir das últimas orientações dadas pelo
artista enquanto vivo.
O carro, que foi seguido em procissão, transportou o caixão com o
corpo pelas ruas de Leningrado até chegar à Estação Ferroviária de Moscou. Ao
veículo, foi presa ao para-choque, como um estandarte suprematista, uma
reprodução do Quadrado preto.
As cinzas de Maliévitch foram dispersas em Nemchinovka, sob um
carvalho, próximo à datcha onde escreveu muitos de seus textos e esteve em
convívio com seus amigos. Nikolai Suétin (1897 1954) realizou o projeto e
executou o monolito suprematista de seu mestre, pintado com a imagem do
quadrado à frente.
Mais do que o caráter anedótico que esse evento possa ganhar, parece
plausível que esses fatos sejam suficientes para afirmar a profunda ligação de
Maliévitch com sua obra, o que refuta a teoria de que a realização de trabalhos
figurativos nos últimos anos da década de 1920 e no início da década de 1930
teria sido uma espécie de negação da poética não-objetiva.
Outra questão a ser abordada, relaciona-se ao caráter depreciativo que
está contido na própria concepção do termo retorno , pois muitas vezes a crítica
97
interpretou as obras Pós-suprematistas de Maliévitch como uma espécie de
involução teórica.
Esse tipo de raciocínio aparece frequentemente associado a
comparações de Maliévitch com a trajetória de outros pintores, que após
realizarem trabalhos dentro de uma concepção abstrata, nunca mais trabalharam
a partir de formas figurativas. O exemplo mais emblemático desta situação é
representado pela comparação do desenvolvimento da linguagem não-figurativa
da obra de Maliévitch a do artista Piet Mondrian.
Certamente não é de todo desapropriado pôr lado a lado o trabalho dos
dois artistas, tanto que Maliévitch costuma ser comparado a Mondrian com maior
frequência do que a outros artistas abstratos, a exemplo de V. Kandinski, mesmo
que a origem deste seja mais próxima. No entanto, o principal problema neste tipo
de comparação é que opostamente a Maliévitch, Mondrian partiu de um estudo
bastante centrado nas lições simbolistas e cubistas, operando literalmente aquilo
que se entende por abstração (do latim abstrahere
Sob esse aspecto, tanto Mondrian quanto Kandinski abstraíram suas
formas a partir da observação do mundo visível e por um processo de depuração
cada vez mais radical destes elementos figurativos chegaram a construções
plásticas abstratas nas quais as relações entre formas e cores tornaram-se muito
mais importantes do que as formas que lhes deram origem.
O que acontece no trabalho de Mondrian é que ao transpor tal limite, o
art figuração. Isto porque, sua concepção de uma
arte abstrata baseada no princípio universal da organização pelas ortogonais,
estava em ligação com a ideia de evolução, não apenas das formas artísticas,
mas da própria humanidade, ou ainda, de acordo com os diferentes estágios
evolutivos dos seres enunciados pela doutrina da Teosofia.
98
Mondrian, que segundo alguns de seus contemporâneos tinha em seu
ateliê apenas um único livro de Teosofia: A Nova Imagem Mundial (1915), de H. J.
Schoenmaekers, além das edições da revista De Stijl e Circle, onde teve textos
publicados, pautava-se em concepções artísticas muito mais dogmáticas e
inalteráveis do que as de Maliévitch, que por sua vez, foi um artista em diálogo
com um vasto e variável conjunto de ideologias, pressupostos filosóficos e
artísticos ao longo de sua vida.
Diferentemente de Piet Mondrian, que ao alcançar a abstração por volta
dos quarenta anos permaneceu convicto de seus posicionamentos artísticos,
nunca os alterando até o final da vida (foi com grande dificuldade que Mondrian foi
persuadido por Harry Holtzman e outros artistas, até mesmo a abandonar seu
ateliê em Paris, na época da Segunda Guerra, após uma bomba ter sido lançada,
destruindo o prédio ao lado), Maliévitch sempre assumiu em seus escritos e
acolheu com grande entusiasmo os movimentos de transformação, tanto artísticos
quanto sociais, fato que caracterizou um pensamento cheio de sutilezas e
mudanças e que muitas vezes chega a se apresentar ao leitor como contraditório,
não apenas quando são relacionados textos de períodos distintos de sua
trajetória, mas mesmo com ideias contidas em um mesmo tratado.
Contudo, até sob esse aspecto Maliévitch é coerente com suas origens,
no sentido de que a contradição parece ser um dado presente e até certo ponto
apreciado dentro da cultura russa.
Um dos exemplos disso pode ser encontrado em Diário de um escritor de Dostoiévski, onde há um capítulo intitulado Reflexões sobre a mentira e no
qual o autor afirma que os russos teriam uma predileção particular pela mentira. É
claro que aqui o escritor está questionando as convenções sociais, a
superficialidade de pensamento da classe burguesa do século XIX, além de
assumir um gosto particular pelas anedotas, pelo colorido especial que desvios da
verdade mais pragmática são capazes de contribuir na construção de uma
99
narrativa. Por outro lado, tal afirmação resulta em uma contradição de valores,
pois os aspectos morais cristãos, fortemente defendidos por Dostoiévski não
parecem de maneira alguma compactuar com um elogio à mentira.
Mais do que isso, é preciso levar em consideração que Maliévitch
esteve inserido enquanto artista e pensador em uma época na qual as
contradições se configuravam verdadeiramente como regras.
Nikolai Zernov recorre aos relatos de Berdiáev e de outros filósofos do
período como forma de demonstrar a dimensão dessa questão na cultura russa do
início do século XX:
[Viacheslav Ivánov] era típico do sincretismo da época, pronto a aceitar ideias opostas e submeter-se à sua estimulante influência. Berdiáev caracterizava seu amigo da Ivánov conseguiu combinar uma intensa imaginação poética com um incrível conhecimento da filologia clássica e da religião grega. Ele era um filósofo e um teólogo. Um teosofista e um ativista político. Não havia nenhum tema sobre o qual ele não pudesse lançar alguma nova e inesperada . Berdiáev continua ainda: As mais conflitantes tendências e convicções coexistiam na mente de Ivánov. Ele era tudo; um conservador e um anarquista, um nacionalista e um Comunista, e mais tarde um Fascista na Itália. Ele era originalmente um ortodoxo e tornou-se um Católico Romano; ele era um ocultista e um advogado da religião tradicional; um místico e um positivista cie 87
Aquilo que por muitas décadas foi interpretado como um traço
inacabado ou confuso do pensamento de Maliévitch pode ser visto como algo que
se insere dentro dessa característica presente na cultura russa.
Vê-se, por exemplo, uma deliberada afirmação do conceito de contraste
em obras não-figurativas que exibem títulos tão descritivos como Realismo Pictórico de uma Camponesa em duas dimensões (Quadrado vermelho), 1915;
87 BERDYAEV, N., Dream and Reality, p.159 apud ZERNOV, N., The Russian Religious Renaissance of the Twentieth Century, Londres: Darton, Longman & Todd, 1963, p. 175.
100
Aeroplano em voo (Composição Suprematista), 1915 ou Realismo Pictórico de um Jogador de Futebol, 1915. No texto Do cubismo e do futurismo ao suprematismo
(Moscou, 1916) Maliévitch aponta para o nascimento de uma - a
energia das dissonâncias obtida pelo encontro de duas formas opost
O contraste também está presente enquanto elemento formal na
concepção expositiva das pinturas. A forma de organização das obras no museu
era apontada por Maliévitch como uma questão fundamental na percepção
dinâmica dos trabalhos, pois, ao invés de expor uma cronologia didática ou
histórica das correntes artísticas o artista defende a ideia de que seria favorável
dispor as telas segundo princípios de contraste, colocando lado a lado trabalhos
de diferentes tensões pictóricas a fim de intensificar a experiência do espectador,
envolvendo-o em uma dinâmica intelectual, sensível e perceptiva.
Conforme apontava Maliévitch:
[...] as paredes dos museus são superfícies planas sobre as quais devem ser colocadas as obras na mesma ordem que a composição de formas é colocada sobre a superfície plana pictórica, quer dizer que, se sobre a superfície plana pictórica surgissem séries de formas uniformes, a própria obra debilitar-se-ia em sua intensidade e vice-versa. Se colocarmos uma série de trabalhos uniformes sobre a superfície plana, obteremos uma linha ornamental, o que anula a força que ela poderia fazer aparecer no meio de confrontações variadas. É por isso que parece ser mais vantajoso executar a montagem na seguinte ordem: ícone, cubismo, suprematismo, os clássicos, o futurismo percepção pictórica. 88
Em relação aos trabalhos Pós-suprematistas de Maliévitch, muito
além de aparentes contradições, seria proveitoso reconhecer o talento de
Maliévitch em realizar trabalhos dentro dos mais variados tipos de cultura
pictórica, até mesmo considerando que o artista tenha tentado dar sua versão 88 MALÉVITCH, K. S., L , 1919 [trad. franc.]. In: MALÉVITCH, K. S., Le Miroir Suprématiste , p. 73.
101
(seja ela, política, simbólica ou até mesmo irônica) ao dogma do realismo
socialista. Isto não implica, todavia, no reconhecimento de uma simples habilidade
manual, mas em levar em consideração a riqueza e a amplitude de seu
conhecimento artístico, capaz de abarcar produção, teoria, crítica, metodologia de
ensino das artes e museologia. Muito mais do que uma prova de erudição,
Maliévitch era alguém capaz de indicar tantos caminhos quanto sua época exigia,
e quando o espaço das discussões públicas foi vetado, o artista ainda se mostrou
hábil em inserir em seus textos questionamentos políticos e filosóficos.
Não é gratuito que os textos de maior teor filosófico tenham sido
escritos por Maliévitch durante os primeiros anos da década de 1920, quando os
órgãos de censura e repressão começaram a agir de maneira incisiva contra os
intelectuais de tendência opositoras ao regime. Muito mais do que uma aspiração
ou busca pessoal de Maliévitch, esses manifestos filosóficos são indícios de sua
resistência aos grupos materialistas e utilitários, que ganhavam força no período.
Grupos apoiados (pelo menos inicialmente) pelo Partido Comunista como a
AKHRR- Assotsiatsiia khudojnikov revoliutsionnoi Rossii (Associação de artistas
da Rússia revolucionária), fundada no ano de 1922 e dissolvida em 1932, que
estavam comprometidos não apenas com uma arte realista de caráter didático
artistas (o departamento de pesquisa de Maliévitch no Instituto Estatal de História
da Arte foi fechado no ano de 1928 sob pressão de representantes da AKHRR).
Outro dado que pode ser observado em telas realizadas por Maliévitch
na década de 1930, a exemplo de Esportistas (1930-1931) é que essas obras têm
traços estilísticos e aspectos formais que não fogem do trabalho que vinha sendo
realizado por ele na época de suas pesquisas futuristas, por volta de 1913, e que
já continham elementos geométricos e uma paleta que se desenvolveu no
Suprematismo.
102
Aliás, a compreensão do Suprematismo como um desenvolvimento
formal empreendido a partir das pesquisas futuristas e alogistas é uma hipótese
colocada pelo próprio artista, que datou o início do Suprematismo e da criação de
sua obra fundadora, Quadrado preto, no ano de 1913, fazendo-as coincidir com a
realização dos cenários e figurinos elaborados para a ópera futurista Vitória sobre o Sol (prólogo de V. Khlébnikov, músicas de M. Matiuchin, livreto de A.
Krutchônikh, cenários e figurinos de Maliévitch).
Embora tenha tido apenas duas apresentações no Teatro Luna Park (3
e 5 de dezembro de 1913), o espetáculo representou o ápice da associação
artística União da Juventude e movimentou o cenário cultural de Petrogrado.
Imagem 11: K. Maliévitch. Esportistas, 1930-‐31. Óleo sobre tela, 142 x 164 cm. Museu Russo, São Petersburgo. (Inscrição no verso da ocontornos
Imagem 12: K. Maliévitch. O Homem forte, 1913. Aquarela e grafite sobre papel, 53,3 x 36.1 cm. Figurino da ópera futurista
Vitória sobre o Sol. Museu Russo, São Petersburgo.
Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, pp. 157, 261.
103
Atualmente, existem seis esboços dos cenários da ópera, incluindo o
esboço para a capa do livreto. A composição destes projetos está estruturada a
partir de elementos em preto e branco herdados do Cubo-futurismo e do Alogismo.
Os figurinos eram compostos por estruturas geométricas e a encenação, bem ao
gosto futurista russo, era marcada por gestos automatizados, dissonâncias
polifônicas, falas non-sense, neologismos de toda espécie e palavras obscenas.
Ao que tudo indica, a simplificação das formas que compunham os
cenários e os figurinos da ópera conduziram Maliévitch à ideia das primeiras
formas não-objetivas. Dentre os esboços dos figurinos, o do Coveiro se destaca,
pois seu corpo é formado por um quadrado preto, evocando a silhueta de um
caixão. Porém, o esboço mais significativo no desenvolvimento do Suprematismo
é o do projeto para o quinto cenário da ópera, onde todos os elementos figurativos
são retirados do plano e um quadrilátero central, cortado diagonalmente evoca o
tema do eclipse parcial do sol, simbolizando o apagamento da razão Iluminista.
Perceber que existem empréstimos formais entre a produção Pós-
suprematista de Maliévitch e suas obras do período futurista é um dado relevante
para questionar a hipótese de alguns historiadores de que o artista teria voltado a
trabalhar dentro de uma estética figurativa por conta das perseguições políticas e
ideológicas do regime.
Já em meados da década de 1920, vários intelectuais e artistas
estavam sofrendo pressões para que alterassem seus posicionamentos
ideológicos e de fato, muitos acabaram adotando mudanças de conteúdo e
vocabulário, incluindo em seus textos temas e colorações marxistas, sociológicas
ou ainda menos
Por outro lado, na maioria dos casos é difícil determinar com precisão
os reais motivos deste tipo de mudança e neste caso, ao menos três hipóteses
podem ser levantadas. Em primeiro, é possível que tenha ocorrido alterações no
pensamento de alguns artistas frente às novas necessidades e debates sociais;
104
em segundo, tais alterações podem ter sido empreendidas apenas como um
engodo verbal para facilitar a aprovação de textos e sua publicação na imprensa;
por fim, também é possível imaginar que, após um momento de grande
efervescência intelectual, algumas teorias começaram a mostrar indícios de
esgotamento e tenham consequentemente ocorrido transformações nos discursos
artísticos.
Muito provavelmente essas questões possam ser colocadas a todos os
movimentos artísticos e literários que compuseram o cenário cultural dos anos
vinte na Rússia/URSS, tais como o Construtivismo e o Formalismo. Por outro lado,
também é necessário levar em consideração a recepção da crítica e o contexto
específico de exibição dos trabalhos, como no caso da tela Esportistas (1930-31),
que embora sob contornos figurativos, foi exposta em uma mostra intitulada Arte na Época do Imperialismo, que ocorreu no Museu Russo no ano de 1932.
O grande propósito dessa exposição era o de demonstrar as variadas
formas e
momento. Neste sentido, não seria exagerado pressupor que esta teria sido a
primeira versão russa da exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada), que foi
organizada em Munique pelo regime nazista no ano de 1937 e na qual foram
exibidas seiscentas e cinquenta obras dos artistas (involuntariamente incluídos) P.
Mondrian, P. Klee, M. Chagall, M. Ernst, V. Kandinski, F. Marc, artistas do grupo
Die Brücke, entre outros.
Com se vê na foto da Exibição de Arte Burguesa, ocorrida na Galeria
Estatal Tretiakov (Moscou, 1931), obras suprematistas são mostradas com o título
de: burjuaznoe iskusstvo v tupike ( : arte burguesa
em impasse/beco sem saída), formalizma ( : do formalismo) e
samootritsanie ( : negação de si mesmo).
A foto da exposição de 1932 mostra uma das salas onde estão
expostas duas obras de Maliévitch: Vaca e Violino (1913), a já citada tela
105
Esportistas e duas importantes obras de M. Larionov: Paisagem raionista (1912) e
a tela neoprimitivista Vênus (1919). Pela porta é possível identificar ainda o
Retrato Aperfeiçoado de Ivan Kliun (1913), de Maliévitch e a obra Camponeses colhendo uvas (1911), de N. Gontcharova.
O lema que coroa a sala afirma: kak mirossozertsanie anarkhizm est vyvernutaia naiznanku burjuaznost (
: Como o anarquismo enquanto
visão de mundo é virado ao avesso pelo gosto burguês Lenin). Tal máxima é
contundente o bastante para que se possa afirmar que a estética adotada por
Maliévitch em suas obras Pós-suprematistas estava longe de se adequar à
ideologia do partido.
Em 1997, Bruno Duborgel (ainda herdeiro da tradição crítica europeia
que viu os trabalhos figurativos realizados por Maliévitch com certo grau de
desdém) reinterpreta com muito mais tato as questões históricas e ideológicas que
poderiam ter influenciado a produção do pintor a partir dos últimos anos da década
Imagem 13: Exposição Arte na época do Imperialismo, Museu Russo, Leningrado, 1932. Fotografia.
Fonte: Malevich, 1878-‐1935. The Armand Hammer Museum of Art and Cultural Center, Los Angeles, California, 1990, pp. 19, 168.
Imagem 14: Exibição de Arte Burguesa, Galeria Estatal Tretiakov, Moscou, 1931.
Fotografia.
106
de 1920. O pesquisador questiona e busca definições nos seguintes termos:
Como olhar esses rostos sem rostos? Como estilizações simbólicas da imagem do homem de-singularizado e reinterpretado em referência ao sem-objeto, ao sem imagem? [...] Como símbolos acusadores da redução coletivista da pessoa ao anonimato, da desindividualização, da anulação da personalidade? Como os
que estaria por vir? Como símbolos do homem comunista capaz de abolir sua identidade singular em proveito da comunidade? Essas obras revelam um simbolismo polivalente e ambivalente que cruzam o ícone da humanidade crucificada em eco aos ícones da crucificação, do cosmo e do homem epifânico do Sem-objeto.89
Essas obras podem ainda ser interpretadas como um documento visual
da estreita ligação que Maliévitch sempre teve com a cultura popular ucraniana,
uma apropriação e reinterpretação formal que passa pela estética não-objetiva do
Suprematismo e, em alguns sentidos, caminha ao lado de aspectos presentes nos
discursos eslavônicos retomados pela intelligentsia russa do início do século XX.
89 DUBORGEL, Bruno, op.cit., p. 92.
107
Capítulo 2. Silhuetas do Absoluto: Teologia negativa e Sem-objeto (Bezpredmietnost)
Eu sou o Começo de tudo, pois em minha consciência criam-se mundos.
Eu busco Deus, busco-me em mim mesmo. Deus onipresente, onisciente, onipotente,
perfeição futura da intuição, como a suprarrazão universal do mundo. Eu busco Deus, busco minha própria face, eu já tracei sua silhueta
e esforço-me para me encarnar nela. E minha razão me serve de atalho para o que a
intuição havia delineado. * * *
Meu rosto ri e o riso sobrecarrega a sabedoria com as convulsões do rosto. Nisto eu discordo da natureza, pois
ela não sorri, não ri com caretas, ela é mais perfeita.
sou um grande começo. Envolverei meu rosto Com a sabedoria do brilho universal
Em meu rosto brilham e cintilam estrelas regenerando o fogo da sabedoria.
No mar dos teus olhos ilhas escuras estão cobertas por um anel em memória da escravidão
Imagem 15: K. Maliévitch. Torso feminino. Óleo sobre madeira. 58 x 48 cm. Museu Russo, São Petersburgo. Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, p. 95.
108
Vou rompê-las, pois a sabedoria está no interior de uma ilha escura como uma fonte de vida.
Eu uso uma concha, que conserva minha perfeição em Deus Meus olhos veem através de uma cadeia de anéis um mundo que
é a escada de minha sabedoria. Assim, pela escada do conhecimento, vou conhecer aquilo que está preservado
em mim e o que eu havia lançado no espaço viário para o conhecimento. Mas, o que eu sinto é resultado da sabedoria,
e meu conhecimento - o pedestal de minha escada. * * *
Tente não se repetir, nem no ícone, nem na tela, nem na palavra. Se algo na tua ação
te faz lembrar de um passado já realizado e me diz a voz de um novo nascimento:
Apague, cale-se, elimine depressa, se isso for fogo, para que os limites de seus pensamentos fiquem mais leves
e não enferrujem. Para ouvir a respiração de um novo dia no deserto,
limpe seus ouvidos e apague os velhos dias, pois só então você será sensível e branco, pois
por sabedoria, tenebrosos repousam na tua vestimenta e na respiração de uma onda se delineará para você o novo.
Teu pensamento agora perceberá os contornos e irá sobrepor a impressão do teu caminhar.
* * * A Razão é a primeira formação da face humana.
A Intuição - a formação vaga da segunda face da nova formação do homem do futuro. Mas predestina-se
nas profundezas do tempo o terceiro início, o qual completa por si mesmo todo o elo da construção mundial.
Dele nada se esconde e de vários milhões de páginas do mundo que serão lidas imediatamente, nem mesmo um detalhe irá escapar
do crânio futuro da suprasabedoria, mas aquilo que agora está oculto, será mais claro que o sol.
* * * Deus como Trindade, nesse estado se delineou
em uma parte das pessoas. Deus, Deus Filho e Deus Espírito. Deus é algo invisível, incognoscível, o mistério,
que criou a natureza, e que deve ir até ele através do filho de Deus que esteve
entre nós. Mas o Espírito Santo está acima deles. O céu é o lugar da permanência do Deus de três faces.
Nessa grosseira narrativa de nossa razão não se esconde o pressentimento de
que no filho - existe um homem que aspira a Deus, i. e. a sua própria nova face, e ao novo
Mundo. O Espíriro Santo - não seria o terceiro estado do homem, que encarnou no futuro imaterial,
109
onde, como no reino celestial, nada deste mundo será necessário.
K. S. Maliévitch, 1913.90
2.1. Equação do impossível: Maliévitch, misticismo e União Soviética
O estabelecimento de uma ligação histórica ou conceitual entre o
trabalho de Maliévitch e a tradição filosófico-mística russa sempre foi tema tratado
com reserva pelos estudiosos. Troels Andersen, no conceituado catálogo de 1970,
que reconstituiu a mostra retrospectiva da obra de Maliévitch levada à Polônia e à
Alemanha, em 1927, escreve sobre a possível ligação do trabalho do artista ao
pensamento místico; Jean-Claude Marcadé, um os mais respeitados tradutores de
Maliévitch, cita com cautela Mestre Eckhart na apresentação de sua tradução para
o francês de A Luz e a Cor (1921). Andréi Nakov, por sua vez, que por trinta anos
realizou pesquisas sobre o artista, ao empregar com certa liberdade o termo
místico/a em meados de 1970, acabou sendo alvo de críticas dentro do círculo de
pesquisadores, e mesmo Emmanuel Martineau, o mais cauteloso dentre estes
primeiros pesquisadores que publicaram durante a década de 1970, acaba
contornando a questão mais do que encontrando efetivamente um lugar de
discussão para o termo frente à produção pictórica de Maliévitch.
Ao citar os trabalhos da década de 1970 - ainda que nos últimos dez
anos a crítica e as exposições tenham enfrentado com maior coragem as
questões referentes à espiritualidade presentes no trabalho dos artistas russos, a
exemplo de duas importantes mostras ocorridas no Palazzo di Forti (Verona), 90 Poema provavelmente escrito entre os anos de 1917-1918, embora a datação indicada por Maliévitch seja de 1913. O manuscrito encontra-se no arquivo do Museu Stedelijk, de Amsterdã. Tradução inédita para o português a partir do russo. Transcrição do original disponível em http://kazimirmalevich.ru/bsp314/. Acesso em 01/09/2014.
110
intituladas: Kandinsky, Chagall e Malevich e lo spiritualismo russo, sob curadoria
de Giorgio Cortenova e Evgeniia Petrova (11 de setembro de 1999 a 15 de janeiro
2000) e Malevitch e le sacre icone russe - Avanguardia e Tradizioni, sob curadoria
de Giorgio Cortenova e Evgeniia Petrova com colaboração de Joseph Kiblitski (6
de julho 5 novembro de 2000) - é no sentido de ressaltar que estes
pesquisadores ajudaram a fundar a ideia de que concepções místicas,
transcendentes e espirituais estão profundamente presentes na obra de
Maliévitch.
Contudo, é preciso lembrar que a alcunha de místico em meio ao
regime bolchevique poderia, se levada às últimas consequências, ser equiparada
à acusação de branco. Ser chamado de místico, ainda que em muitos momentos 91 ou louco, também
foi motivo suficiente para expulsar no ano de formação da União Soviética, com
praticamente apenas a roupa do corpo, toda uma geração de filósofos e suas
famílias e mais adiante, tornar-
campos de trabalhos forçados e à morte, como aconteceu com muitos intelectuais
e artistas, como Pável A. Floriênski, Benedikt K. Livchits e Vera M. Ermolaeva.
Os deportados nesses Navios filosóficos ou Vapores da filosofia eram
figuras altamente qualificadas da Rússia da época, que escreviam a maioria dos
livros e artigos de jornais e ocupavam cargos de destaque em universidades e
institutos de pesquisa ou prestavam serviços especializados ao Estado92.
91 scaram representar toda forma nova da arte como, a princípio, um fenômeno corrupto/insalubre. Hoje em dia, tiveram o prazer em seguir o passado destas novas formas artísticas até a classe patológica e os classificar como Filisteus, místicos, idealistas, etc., mas sua reprovação dos artistas, acima de tudo, com a acusação de que seus trabalhos são
MALEVICH, K., The non-objective world: the manifesto of Suprematism, Mineola: Dover, 2003, p. 27. 92 A história dessas deportações é resgatada no livro The Philosophy Steamer: Lenin and the Exile of Intelligentsia, originalmente publicado no Reino Unido (Atlantic Books, 2006), que foi traduzido para o português por Alexandre Martins (Rio de Janeiro: Record, 2008, 420 páginas). Nele, a jornalista inglesa Lesley Chamberlain resgata com base em diários, cartas, memórias e registros
111
Dentre os exilados, muitos escolhidos pessoalmente por Lenin, estavam
pensadores como Nikolai A. Berdiáev, Semion L. Frank, Nikolai O. Losski, Sierguéi
N. Bulgákov, Aleksandr A. Kizevetter, Iuli I. Aikhenvald, entre outros.
A maior parte das prisões aconteceu em Moscou e Petrogrado, em 16
de agosto. Após terem sido interrogados pelos oficiais do governo, os detidos
foram acusados de práticas contrarrevolucionárias. Em 28 de setembro de 1922,
diversos intelectuais e suas famílias foram escoltados pela guarda soviética até o
navio alemão Oberbürgermeister Haken. Um segundo navio, o Preussen, deixou o
país seis semanas depois levando consigo outro grupo de intelectuais. Conforme
relatos dos exilados, não houve violência física, embora dentro dos navios as
condições de alojamento tenham sido bastante severas. Além disto, a cada um
dos exilados foi permitido levar duas mudas de roupas, além das próprias
vestimentas e nenhum outro pertence.
Esses intelectuais, que Lenin pôs no ostracismo, tornaram-se
adversários políticos aos olhos do regime socialista, pois contrários ao
materialismo, ateísmo e niilismo, acreditavam na importância de valores morais e
religiosos como base das reformas sociais do país. Em contrapartida, o projeto de
Lenin era o de eliminar todos os opositores ideológicos que defendiam valores
considerados nocivos e perigosos, não apenas à formação de um Estado moderno
na Rússia, mas por se apresentarem como lideranças concorrentes ao partido,
do GPU a história das deportações orquestradas por Lenin no início da década de 1920. Embora com o fim da URSS e a abertura dos arquivos secretos da Vetcheka/GPU o tema tenha despertado interesse de vários historiadores contemporâneos, salvo algumas publicações em russo, o livro de Chamberlain é ainda a única e mais completa fonte sobre o assunto disponível em língua ocidental. Antes dela, a história das expulsões foi apresentada pelos historiadores Mikhail Geller, em 1978 (no artigo Pervoe predosterzhenie udar klistom) e Mikhail Glavatski, em 2002 (no livro Filosofski parokhod v god 1922-i) e em 1988, pelo historiador alemão Karl Schlögel (em um dos capítulos de seu livro Jenseits des grossen Oktober Das Laboratorium der Moderne Petersburg 1909-1921), além da publicação por V.G. Makarov dos registros do GPU sobre o tema, em 2005.
112
visto que o pensamento ortodoxo e o misticismo russo estavam enraizados na
mentalidade popular e nas tradições russas.
Como aponta Lesley Chamberlain, as deportações tornaram-se
públicas em 31 de agosto de 1922 através de uma reportagem de primeira página
do Pravda também foi noticiada no
Ocidente, mas as deportações foram consideradas pela imprensa estrangeira
como um ato ironicamente misericordioso do partido bolchevique em relação aos
condenados. Isto porque, apesar das prisões e interrogatórios, a ação não teve
caráter violento, embora o fuzilamento sumário a qualquer um que retornasse a
União Soviética sem permissão fosse garantida (antes de partir, os deportados
foram obrigados a assinar documentos consentindo com esta sentença).
Conforme a autora era evidente que até 1922 não havia argumento
legal que justificasse uma deportação sem julgamento algum, ainda mais de um
número considerável de indivíduos, mas Lenin, servindo-se de sua formação de
advogado, legalizou as deportações uma semana antes das prisões ao alterar
uma única cláusula no artigo 57 do Código penal, no qual o exílio no exterior
pudesse ser oferecido como uma alternativa por parte do Estado aos desertores
ideológicos do regime, que por este aspecto, poderiam ser condenados à morte.
Os Vapores Filosóficos evidenciam como os bolcheviques foram hábeis
manipuladores da opinião pública na URSS e, sobretudo, no Ocidente,
conquistando simpatizantes e controlando a visão histórica sobre as atrocidades
do regime bolchevique que foram escondidas sob uma bandeira de clemência, já
durante o período em que Lenin estava no poder.
Entender como o próprio Maliévitch não foi parar no Navio Filosófico ou
em um dos campos é algo relevante.
Em primeiro lugar valeria perceber que embora Maliévitch tenha sido
um dos protagonistas da vanguarda russa, atuante em todos os principais debates
113
artísticos e culturais da Rússia/URSS, artistas como Marc Chagall e Vassíli
Kandinski93 acabaram alcançando reconhecimento no exterior muito antes de
Maliévitch, sobretudo pelo fato de terem deixado a Rússia durante as primeiras
décadas do século XX, estabelecendo-se como artistas, docentes e
pesquisadores em instituições, criando vínculos com a crítica e com o mercado de
artes europeu. Fato que lhes rendeu não apenas melhores possibilidades
financeiras, mas que também lhes garantiu décadas mais tarde, exposições,
publicações e o reconhecimento histórico de seus trabalhos muito antes disto
acontecer com a produção de Maliévitch.
Também é sabido que apesar do ucraniano, do polonês e do russo
Maliévitch não dominava nenhuma língua ocidental, o que o fazia diferir
substancialmente de uma figura erudita aos moldes europeus como Kandinski,
que teve contato com a cultura alemã desde a infância, fato capaz de fazê-lo
94 ou ainda como Mikhail Bakhtin, que afirmava já ter lido do
original, ainda muito jovem, alguns dos grandes tratados da filosofia alemã, como
a Crítica da razão pura, de I. Kant ou textos de F. Nietzsche. Isto porque, como
tantos outros membros de famílias russas tradicionais, Bakhtin pôde entrar em
contato com a língua e com a cultura alemã e francesa desde a infância.95
Em certo sentido, pode-se dizer que os trabalhos de Maliévitch
necessitavam igualmente de tradução, visto que a crítica alemã não lhe foi
favorável tanto por ocasião da exposição de suas obras na Primeira Exibição de
93 Após o período em que residiu em Vitebsk, sendo transferido em seguida para Moscou, Chagall conseguiu com a intervenção de A. Lunatcharski um passaporte para deixar a Rússia. O artista partiu para Berlim no ano de 1922. Kandinski, um ano antes de Chagall, também havia conseguido do governo a rara permissão para viajar para Berlim por um período de três meses, mas quando o governo percebeu que ele não retornaria dentro do tempo determinado, o artista foi enquadrado como traidor e teve sua nacionalidade revogada. 94 Carta de 16 de novembro de 1904 a Gabriel Münter apud SERS, Philippe. In: KANDINSKY, W., Do espiritual na Arte, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 10. 95 BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V., op.cit., p. 38.
114
Arte Russa, em Berlim, quanto na mostra retrospectiva ocorrida na Grosse Berlinische Kunstausstellung.
Na União Soviética, apesar de todos os entraves burocráticos, da
precariedade de condições financeiras e de trabalho, das críticas de grupos
opositores ao Suprematismo e mesmo com a crescente política de repressão
ideológica do regime é importante notar que Maliévitch conseguiu, não apenas ter
suas obras adquiridas pelo Estado, mas ao longo das três primeiras décadas do
século XX se manter em cargos do governo, lecionando, publicando e
desenvolvendo suas teorias sobre a arte.
A imagem de Maliévitch enquanto figura notável dos círculos artísticos
ficou registrada em diversos depoimentos de seus contemporâneos;
personalidade que lhe rendeu disputas públicas e opositores ferrenhos, mas que
também conquistou respeito e profundos admiradores.
O artista Nikolai Púnin e o cineasta Sierguéi Eisenstein oferecem
relatos interessantes sobre a atuação artística de Maliévitch e seu grupo de alunos
em Moscou e Vitebsk:
Por todas as partes havia círculos, quadrados, cruzes vermelhas e pretas nas casas, nas salas de leitura, nos manifestos, nos trens e nas barcas; o suprematismo surgiu em Moscou inteira como uma flor formosa96
Uma estranha cidade da província. Como tantas outras cidades de nossas regiões ocidentais em tijolos vermelhos. Enegrecida pela fumaça e triste. Mas de uma estranheza singular. Nas ruas principais, os tijolos vermelhos são pintados de branco. E sobre este fundo branco correm círculos verdes. Quadrados laranja. Retângulos azuis. É a Vitebsk dos anos 20. O pincel de Kazímir passou sobre esses muros de tijolos... Diante de vossos olhos círculos laranja, quadrados vermelhos, trapézios verdes...
96 PÚNIN, Nikolai. In: Iskusstvo kommuny (Arte da Comuna), 09/02/1919.
115
Confetes suprematistas, difundidos nas ruas de uma cidade surpresa. 97
A provinciana Vitebsk, que pelas palavras do artista representou a
é provavelmente o local onde Maliévitch desenvolveu com
maior liberdade suas ideias e consolidou um grupo de alunos, amigos e
admiradores que o acompanharam por vários anos e cidades e colaboraram com
suas exposições, teorias e atividades pedagógicas.
Para compreender a extensão da influência artística e pedagógica de
Maliévitch basta perceber que ele foi professor de boa parte dos artistas
contemporâneos da época. Entre 1915-1916 o artista trabalhou em conjunto a I.
Kliun, O. Rozanova, I. Puni, K. Boguslavskaia, M. Mienkov, L. Popova e N.
Udaltsova; entre 1917-1919, no Svomas de Moscou atuou junto a G. Klutsis. I
Kudriatchev, Z. Komissarenko, dentre outros; entre 1919-1922, na Escola de Arte
de Vitebsk e no Unovis, Maliévitch foi professor de N. Kogan, A. Kogan, I.
97 EISENSTEIN, S., Remarques sur Maïakovski apud VALABRÈGUE, Frédéric, Kazimir Sévérinovitch Malévitch Biographie, 1878-1935, Marseille: Images en Manoeuvres Editions, 1994, p. 160.
Imagem 16: Prédio das Casernas Brancas onde estavam alojadas as oficinas do Comitê de Vitebsk de Luta contra o Desemprego. A fachada do edifício havia sido decorada com painéis concebidos por Maliévitch. Dezembro de 1919. A fotografia aparece publicada na antologia Unovis, n.1, Vitebsk, 1920.
Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, p. 435.
116
Tchachnik, L. Khidekel, N. Suétin, L. Iudin, E. Magaril, E. Raiak, V. Ermolaieva, G.
Noskov, N. Èfros, entre outros.
Esse tipo de fuga de Moscou e Petrogrado para cidades provincianas
foi uma estratégia comum adotada pelos intelectuais em tempos de economia e
política difíceis, tanto por oferecer melhores condições de vida e recursos
materiais, quanto por proporcionar uma sensação maior de segurança em relação
ao controle ideológico ou político, sobretudo àquelas figuras que discordavam ou
que foram opositores dos bolcheviques.
É importante notar ainda que, logo após a Revolução de 1917 e ao final
da Primeira Guerra Mundial, a União Soviética foi tomada pela Guerra Civil, fato
que provocou turbulências nas grandes cidades e períodos de escassez de
alimentos e outros itens essenciais à sobrevivência.
Outro fator que levou ao êxodo dos moradores de Moscou e Petrogrado
e que agravou o ambiente anárquico pós-revolucionário foram os invernos
rigorosos dos anos de 1918 e 1919, sendo que as duas grandes cidades foram as
mais atingidas pelas nevascas.
Embora tenha havido um declínio das condições materiais, os
intelectuais que trabalhavam para o governo nessa época, como Maliévitch,
puderam ser amparados por alguns benefícios como as rações acadêmicas, e
apesar do desconforto material, isto não impediu que muitas pesquisas e trabalhos
científicos e artísticos fossem desenvolvidos. Os anos de 1918 a 1920 são
bastante conhecidos por sua agitação intelectual, publicações (ainda que o papel
fosse um recurso caro e escasso), apresentações e debates públicos de toda
natureza.
Esse declarado entusiasmo intelectual em meio ao caos social e
econômico pode ser explicado por um conjunto de ideias que circulavam há
décadas em meio à intelligentsia russa. Assim, se por um lado, uma parcela dos
117
intelectuais via a revolução bolchevique com reprovação e temor, um ataque às
tradições e à cultura russa, no sentido contrário, outros pensadores viam a
revolução como o sinal anunciador de profecias que apontavam a Rússia como a
nação que encabeçaria a transformação mundial.
As privações materiais eram consideradas um preço baixo (e um
exercício purgatório dos costumes burgueses assentados no conforto e no luxo) a
se pagar pela construção de uma sociedade nova em todos os seus aspectos.
Os artistas de vanguarda, sobretudo aqueles conhecidos como
esquerdistas, abraçaram prontamente a causa revolucionária, pois viam nela o
estopim de transformação de uma sociedade corrompida por suas antigas
concepções e modos de vida.
2.2. Poética do irrepresentável: O Nada como via do conhecimento
Desde 1915, quando Maliévitch expôs pela primeira vez sua tela
Quadrado preto muitas críticas e análises foram feitas a respeito desta e de outras
obras suprematistas. Do ponto de vista formal, entendidas as relações entre
geometria e abstração, a afirmação ontológica da pintura no plano, a decantação
das formas e cores em suas unidades primordiais, a rejeição do raciocínio
mimético, ilusório ou servil do artista à natureza exterior, à perspectiva cônica ou
aos cânones da tradição artística; estes e outros discursos foram construídos a
partir deste quadrado negro pintado de maneira diligente, com pequenas
pinceladas.
Ainda que fundamental, a análise e compreensão formal das obras
suprematistas corresponde a um discurso muito próprio da crítica e do
pensamento artístico modernista.
118
É evidente, que ao final do século XIX e início do século XX, coube aos
artistas modernistas expor por meio de seus tratados teóricos a um público
acostumado a bochechas rosadas, vestidos brilhantes e paisagens idílicas, os
caminhos de seu pensamento e o reflexo destas mudanças conceituais e de
percepção de mundo nas obras de arte.
Como ressaltava N. Berdiáev, a Rússia não passou pelo Renascimento
tal como o Ocidente. Como percebe o filósofo, este foi um período fundador dentro
da cultura ocidental, responsável pela construção de uma visão de mundo e de
homem que caracteriza alguns traços da mentalidade ocidental até praticamente
os dias atuais. Ainda segundo Berdiáev, é este tipo de construção que nos faz
perceber a inexistência, dentro da cultura literária russa, de um amor aos moldes
de Dante e Beatriz ou Romeu e Julieta, que, em contrapartida, provoca um
estranhamento e quase uma total falta de identificação entre o amor tortuoso,
abnegado, visto até mesmo como doentio, de personagens como Raskolnikov e
Sônia.
Embora seja apenas uma analogia, pensar sobre a produção
suprematista e pós-suprematista apenas por uma via formal, seguindo as lições
modernistas, acaba causando esse mesmo tipo de sensação de inadequação, não
apenas porque este dado parece insuficiente enquanto argumento que atesta a
relevância histórica da produção, mas também porque se forma um vale
incontornável entre observador e obra, resultante da falta de percepção dos
elementos conceituais que constituíram a sensibilidade do artista. A somatória
destes fatores resulta, em geral, no senso comum de ver nas telas de Maliévitch
tal como o crítico Alexandre Benois.
Por mais que a Rússia tenha tido um contato bastante intenso com o
pensamento ocidental e ainda que por muito tempo grande parte dos historiadores
europeus tenha assumido conhecer superficialmente o pensamento religioso russo
é preciso levar em conta, quando se trabalha com um artista ou pensador russo, a
119
existência de uma maneira especificamente nacional que os russos teriam de
interpretar e colocar-se diante das questões mundiais.
Não é aleatório que o pesquisador Alain Besançon tenha finalizado seu
livro L'image interdite, une histoire intellectuelle de l'iconoclasme (1994) com um
capítulo sobre a arte moderna e os desenvolvimentos abstratos na Rússia:
Este livro fechar-se-á com o Quadrado branco sobre fundo branco que Malevitch expôs em 1918. É preciso identificar por que caminho chegou-se ao apagamento da imagem representativa. Há muitos. Seguirei com mais particular atenção os motivos religiosos, implícitos ou explícitos, que permitem associar o nascimento da arte dita abstrata a uma onda iconoclasta, no sentido próprio e "histórico" da palavra. Sugeri que esse episódio ocorrera graças a uma espécie de colisão entre as formas elaboradas pela pintura francesa no contexto de uma certa estética e as exigências espirituais de artistas de um modo geral estranhos à França e portadores de uma estética inteiramente diversa. Aconteceu das primeiras mostrarem-se convenientes às segundas, que nelas se alojaram como um bernardo eremita numa concha.98
Uma análise centrada exclusivamente em discursos e reflexões
modernistas, sobretudo nos padrões ocidentais, não parece suficiente para
compreender de maneira mais profunda o pensamento de Maliévitch, pois há em
seu trabalho uma proliferação de conceitos inspirados no pensamento, na mística
e na cultura popular russas.
Conforme Eugène Porre:
O pensamento religioso russo prolonga no mundo moderno o gnosticismo de Orígenes e de Clemente de Alexandria, assim como a filosofia mística alemã de Mestre Eckart, de Jacob Boehme e de Franz von Baader. Mas ela possui sua característica própria que provém do cristianismo ortodoxo, fiel aos escritos dos Pais da Igreja oriental. Gregório de Nissa, em particular, não lhe é estranho. É necessário remontar mais alto e reconhecer que na origem dessa corrente há o platonismo [segundo Berdiá mais
98 BESANÇON, A., op.cit., p. 514.
120
favorável à filosofia do espírito e da via espiritual que não está pre 99
Um dos exemplos mais nítidos desse interesse se encontra na obra de
Vladímir Fedorovitch Odoiévski (1803-1869), que foi um dos filósofos a se dedicar
ao estudo de pensadores místicos como Karl von Eckartshausen (1752 1803) e
Franz Xaver von Baader (1765-1841), além de estudar os escritos patrísticos e
também místicos como os de Simão, o Novo Teólogo e Gregório de Sinai
(Khomiakov e Tchaadáiev são igualmente citados como atentos leitores da
literatura patrística).
Apenas para dar uma dimensão aproximada da importância destas
fontes, é em Odoiévski que se exprime pela primeira vez dentro da filosofia russa
Também é em sua obra que se define uma das
preocupações centrais retomada pelos eslavófilos: a teoria mística da integridade
do conhecimento em seu desejo de
suas hipóteses Odoiévski iria discutir a
possibilidade de e a produção de matéria a partir
de forças não-materiais, como a eletricidade.
Por outro lado, o problema é mais complexo do que o de enumerar os
trabalhos no campo da mística, pois além da influência de todas estas fontes
dentro da cultura russa, houve ainda uma disseminação de outras manifestações
do misticismo, tal como o desenvolvimento da maçonaria no reinado de Catarina II
e sua continuação nos reinados de Paulo I e Aleksandr I. Mais adiante, em
meados do século XIX, também não era incomum que muitas das famílias
abastadas de Moscou (dentre elas, a de um dos mais importantes colecionadores
russos, Sierguéi Chtchukin) cultivassem sobre o mesmo teto, tanto as normas
99 PORRET, Eugène, op.cit., p. 11.
121
mais rígidas da religiosidade ortodoxa, quanto os modismos espiritualistas que iam
de adivinhações do futuro até demonstrações teatrais de mediunidade e levitação.
Herdeiro dessas manifestações, o início do século XX foi coroado com
a catalização de um conjunto de ideias muito influenciadas pelo pensamento
alemão, mas prontamente absorvidas e provindas
do Romantismo e do niilismo.
Com a derrota política do levante de 1905 e com o Domingo sangrento,
uma visão romântica da morte, do desespero e da depressão levou muitos jovens,
intelectuais e ativistas políticos a cometer suicídios ou, por outro lado, a se voltar
para cultos religiosos espiritualistas e místicos. Assim, percebe-se que houve uma
espécie de polarização entre aqueles que sucumbiram à desesperança e todo um
grupo que foi tomado pelo espírito de transformação utópico de uma sociedade
que poderia recomeçar a partir do caos.
As doutrinas ocultas de origem ocidental, sobretudo as provindas da
França, conquistaram adeptos na Rússia pré-revolucionária, especialmente entre
artistas e escritores que, insatisfeitos tanto com a filosofia da Igreja como com o
positivismo e o materialismo da intelligentsia, buscavam uma alternativa espiritual
ao conhecimento de mundo e de si mesmos.
Muitas dessas doutrinas ocultistas, como o espiritualismo,
consolidaram-se dentro da cultura russa, pois foram dentro de seus discursos
promovidas a ciências, explicando o desconhecido por meio do conhecido ao
fornecer supostas explicações e justificativas teóricas que prometiam integrar
esferas opostas do conhecimento, como religião e ciência.
Conforme Bernice Glatzer Rosenthal:
A idéia de correspondências decorre da antiga ideia de macrocosmo, o grande mundo e o microcosmo, o mundo em miniatura ou o ser humano visto como um epítome do universo. A ideia de correspondências implica numa rejeição de dualismos
122
ontológicos, oposições binárias e causalidade linear em favor da resolução, um meio incluído (ou harmonia superior) e sincronicidade. Correspondências simbólicas e reais são ditas para conectar todas as partes do mundo visível e invisível.100
Os diversos artigos recolhidos em The Occult in Russian and Soviet Culture (1997) demonstram a diversidade de origens e os desenvolvimentos
desses discursos. Na introdução à coletânea Bernice Rosenthal aponta, dentre
outros exemplos, o panteísmo cósmico
aliados à filosofia de um pensador tão requisitado pela cultura russa quanto
Friedrich von Schelling (1775-1854), a presença de doutrinas ocultas como a
Sophia ou Sabedoria Divina e o renascimento do ocultismo francês, que envolvia o
interesse pela alquimia, astrologia, práticas mágicas e a Cabala, ou ainda o estudo
de doutrinas como o Espiritualismo, a Teosofia e Antroposofia.
Por sua vez, muitas dessas doutrinas aparecem combinadas às
crenças e práticas da cultura popular russa, adquirindo um acento nacional e
demonstrando a busca por respostas e demandas específicas desta cultura.
O interesse pelas questões místicas pode ser compreendido a partir do
estudo de algumas conjunções históricas ou, contrariamente a isto, como afirma
B. Zenkovski (1953), reflete uma espécie de necessidade psicológica contida na
sugere o pesquisador, tratava-se de uma espécie de modificação do misticismo
101
100 ROSENTHAL, Bernice Glatzer (ed.), The Occult in Russian and Soviet Culture, Ithaca and London: Cornell University Press, 1997, p. 3. 101 ZENKOVSKY, B., op.cit., p. 125.
123
É interessante pensar sobre a hipótese de Zenkovski, pois ainda que a
análise de confluências históricas ou das redes sociais possam esclarecer as
fontes e itinerários dos discursos dentro da sociedade russa, nada disto é capaz
de explicar quais foram as necessidades capazes de promover a proliferação
destes discursos na Rússia desde o século XVIII, ou ainda o caráter distintivo da
mística russa. , esse axioma que foi proferido com
certo grau de devoção por escritores, filósofos e artistas ao longo de gerações,
muito mais do que esclarecer efetivamente quais seria as diferenças ou
particularidades na forma de pensar ou construir a cultura, desperta a atenção
para o fato de que existiu nestes intelectuais a necessidade de forjar um termo
que reafirmasse o desejo de criação de uma cultura autêntica e independente das
outras nações.
Nesse panorama, talvez seja mais proveitoso observar como dentro da
cultura russa sempre existiram crenças tão arraigadas quanto contraditórias. Um
dos exemplos disto é que, ao mesmo tempo em que houve um culto à figura do
Cristo humilhado e abnegado, servindo de exemplo à conduta moral dos
indivíduos, coexistiu a ideia de superioridade da Rússia cristã sobre os demais
povos, detentora da verdadeira fé e herdeira do reino de Deus sobre a Terra . Ou
seja, conforme argumentado por alguns de seus filósofos, caberia ao povo russo
encontrar em seu destino histórico as respostas aos antigos problemas sociais,
justamente porque a transfiguração da vida (começando pela Rússia, que serviria
de exemplo às demais nações) só seria possível por haver no interior do povo
russo um forte desejo de unidade, de comunhão e fraternidade possibilitada pelos
ensinamentos da fé cristã e baseado no exemplo de humildade e piedade do
Cristo.
Para compreender ao menos um dos aspectos desse tipo de
pensamento que se proliferou entre pensadores e artistas nos séculos XIX e XX,
tanto no Ocidente quanto no Oriente, é necessário perceber que a mística reflete,
a princípio, um desejo de afirmação do sujeito, na medida em que este alcança
124
pela experiência (que é sempre individual) o contato com uma verdade superior.
Assim, o místico é alguém tocado ou que toca de alguma maneira esse
conhecimento extra-humano e pela narrativa pessoal compartilha essa
experiência.
Por outro lado, na Rússia, durante os séculos XIX e mesmo durante o
XX, essa doutrina religiosa se manifestou segundo uma concepção muito mais
ligada à ação social, à convivência e ao diálogo dos homens no mundo, do que
propriamente ao que se costuma compreender enquanto estados particulares de
êxtase místico.
Mais uma vez, o que parece estar em jogo dentro da cultura religiosa
russa é a crença na capacidade do homem de superar sua fragilidade e alcançar
uma existência divina na Terra, operando assim a transformação última da vida. A
doutrina da deificação do homem (o mistério da união entre Deus e o humano) é
ponto fundamental dentro do misticismo russo. Tal doutrina é fundamental,
sobretudo, à compreensão do Simbolismo russo, naquilo que diz respeito a uma
constituição teúrgica da arte.
Por outro lado, apesar de quase sempre existir uma concepção
fortemente religiosa atrelada à mística, também houve, desde o início do século
XIX, a presença de uma vertente laica ligada a uma perspectiva sagrada da vida,
das relações humanas, da ação e da formação da consciência do homem no
mundo, pela arte e pela linguagem (as concepções de Bakhtin sobre o diálogo são
um exemplo desse tipo de filiação mística). Este tipo de pensamento serviu de
inspiração para muitos artistas ao longo do século XX, mas foi concebido em uma
perspectiva filosófica, mais do que estritamente religiosa.
125
2.3. A cultura popular na obra de K. Maliévitch
Os chamados artistas futuristas/esquerdistas foram grandes entusiastas
da Revolução, colaborando com o novo governo na criação de museus, institutos
de ensino e pesquisa e na decoração de festas, prédios, trens e praças públicas.
Maliévitch, enquanto um destes entusiastas, compartilhava dos ideais de
transformação artística e social que ganharam força nos primeiros anos após a
Revolução, mas que sempre estiveram em pauta e na prática dos grupos
futuristas russos.
A atuação de Maliévitch como integrante do movimento futurista é
emblemática, pois o Suprematismo é até mesmo impensável sem que sejam
levadas em consideração suas pesquisas pictóricas futuristas e alogistas.
Contudo, a complexidade de sua trajetória artística marcada pelas múltiplas
experiências em contato com as vanguardas europeia e russa torna possível em
seu trabalho a coexistência, por vezes antagônica, de temáticas revolucionárias e
outras, que poderiam ser pensadas a partir de interesses presentes em correntes
tradicionalistas, como a eslavofilia.
A visão de uma vida camponesa, simples e bucólica em suas tarefas
cotidianas e na integração do homem com a natureza esteve durante o século XIX
e início do XX fortemente arraigada no imaginário dos poetas, desde Tolstói a
Dostoiévski, quanto em artistas da vanguarda russa, como Khlébnikov, Kamiênski
e Sierguéi Iessiênin.
Vemos o elogio ao homem e a vida simples em seus gestos e tradições
retratadas em Tolstó -me dos crentes entre os homens pobres,
simples, ignorantes, os peregrinos, os monges, os raskolniks 102
102 Cf. ZENKOVSKY, B., op.cit, p. 431.
126
Em dois textos publicados no ano de 1879 (Púchkin, Lermontov e
Nekrassov, e Testemunho a favor de Nekrassov) Dostoiévski seria ainda mais
enfático ao ressaltar que a grandeza da poesia russa residiria no vínculo de seus
poetas com a riqueza da tradição popular:
Púchkin não amava somente o povo pelos seus sofrimentos. A piedade pode andar de mãos dadas com o desprezo. Púchkin amou tudo quanto o povo amava e venerou tudo quanto o povo venerava. Amou apaixonadamente o campo, a natureza russa. Enganam-se os que consideram Púchkin rebaixado pela afeição ao povo. Nele encontrou figuras magníficas, escreveu a respeito do que há de mais profundo, e tudo isso permanece inteligível para o povo. O gênio russo, a verdadeira força de imaginação russa acha-se por toda a parte na obra de Púchkin. Se tivesse vivido mais ter-nos-ia deixado tais tesouros artísticos, colhidos no povo, que a nossa sociedade, tão orgulhosa de sua cultura europeia, teria há muito renunciado ao que nos vem do estrangeiro para se embeber na alma popular russa.103
Se nada achou na vida mais digno de amor do que o povo, foi porque [Nekrassov] havia compreendido que a verdade está no povo, e nele se conserva. Se não agia então por completo conscientemente, se as suas opiniões habituais não lhe refletiam os sentimentos, pelo menos tais sentimentos lhe estavam no coração. No mujique viciado, cuja imagem humilhada e humilhante o atormentava, via algo de verdadeiro e de santo que não podia deixar de admirar, que não podia deixar de compreender de todo o coração. Por isso coloquei-o entre os que reconheceram a verdade popular.104
A formação da ideia populista e de uma consciência nacional
especificamente russa no século XIX foi construída em torno da vida popular e da
figura do homem do campo. Esta idealização da figura camponesa foi amplamente
difundida entre os eslavófilos e populistas.
103 DOSTOIÉVSKI, F. M., Diário de um escritor, São Paulo: Edimax, 1974, p. 177. 104 Ibid., pp. 185, 186.
127
Dentro da eslavofilia, o povo encarnado na
figura do mujique é representado pelo homem simples,
rústico, distante da nobreza ou da intelligentsia, mas a
idealização de sua imagem vem da ideia de que o
homem simples estaria muito mais próximo dos mistérios
da fé e da verdade religiosa.
Esse apelo a uma espécie de inocência que
foi retomada pelos intelectuais no século XIX se remete
a um conceito que também existia na Igreja grega, mas
que se apresentava como um fenômeno muito mais
arraigado e essencial na vida da Igreja russa: o yurodivyi s
Imagem 17: K. Maliévitch. Camponesa com baldes e criança, 1912. Óleo sobre tela, 73 x 73 cm. Stedelijk Museum. Amsterdã. Imagem 18: K. Maliévitch. Camponesa com baldes, 1912. Óleo sobre tela, 80,3 x 80,3 cm. MoMA. Nova Iorque. Fonte: Fonte: , Jeanne (ed.), Malevich, 1878-‐1935. The Armand Hammer Museum of Art and Cultural Center, Los Angeles, California, 1990, pp. 49,54. Imagem 19: Tipos da Pequena Rússia. No.3. Mulher com trajes ucranianos. Fotografia. Séc. XIX. Imagem 20: Camponesa ucraniana carregando baldes. Fotografia. Séc. XIX. Fonte: http://ethnoworld.tumblr.com. Acesso em 09/09/2013.
128
aparece traduzido também
Conforme Fédotov, em (Paris, 1931)105
que alcançaram a santidade mas, antes de tudo, como pessoas simples que
escolheram viver longe da razão dos homens e próximo da loucura de Deus,
imersos em um profundo sentimento religioso, sacrificando a existência terrestre e
exterior por uma verdade celeste e interior.
Essa inocência era manifestada através da adoção de modos de vida
nos quais todos os confortos e prazeres terrestres, materiais e individualistas,
todas as formas de tentação do mundo, eram sacrificados em nome de uma
verdade espiritual.
105 FEDOTOV apud ZEKOVSKY, B., op.cit., p. 39.
Imagem 22: K. Maliévitch. Duas figuras masculinas. Início dos anos 1930. Óleo sobre tela, 99 x 79,5 cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Imagem 21: K. Maliévitch em Kursk, cerca de 1900. Fotografia.
Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, pp. 432, 171, 440.
Imagem 23: K. Maliévitch em Nemchinovka, 1931. Fotografia.
129
Assim, voltar-se para o povo simples, aos crentes, representava o
mesmo que se voltar para a Igreja em suas tradições seculares. Nisto residiria a
forma mais autêntica da fé cristã e a verdade absoluta da religião. Este modo de
vida religiosa desembocou no modelo moral para uma geração de intelectuais
russos do século XIX, e que, em certo sentido, continuou existindo durante o início
do século XX.
Em Maliévitch, ainda que não haja uma identificação absoluta com o
populismo religioso presente em Tolstói e Dostoiévski, a idealização da vida no
campo parece tomar forma como contraponto à cultura e à erudição europeias em
seus moldes mais tradicionais.
Maliévitch assume isto na redação de sua autobiografia de 1933 ao
afirmar: Decidi que jamais viveria nem trabalharia em uma fábrica. E jamais
estudaria. Pensava que os camponeses viviam bem, que eles tinham tudo e que
de nenhuma maneira tinham a necessidade de trabalhar na fábrica ou de saber ler
e escrever. 106
Uma comparação bastante verossímil pode ser feita com os escritos de
Pável Floriênski, que ao descrever em suas memórias sobre as angústias e os
descompassos existenciais em seus primeiros anos de atividade acadêmica, e
posteriormente, de docência, afirmava:
Era uma oscilação extenuante entre o saber que existe, mas não serve, e o saber necessário, que não existe.
Dão-me náuseuas a cultura e a sofisticação. Desejo a simplicidade.107
106 MALÉVITCH, K., Enfance et Adolescence Chapitres dfranc.], op. cit., p. 156. 107 FLORENSKI apud Víctor Gallego. In: FLORENSKI, Pável, Cartas de la prisión y de los campos, Pamplona, Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 2005, p. 22.
130
No texto inacabado de trinta e duas páginas datilografadas que foi
recebido pelo historiador Nikolai Khardjiev das mãos de Maliévitch pouco tempo
depois que o pintor já apresentava sinais do câncer, o artista oferece um relato
simbólico sobre sua infância e adolescência e as primeiras experiências que
definiriam sua atividade artística.
Os dois textos autobiográficos existentes, registros fotográficos da
juventude e dos anos finais de Maliévitch e a insistência na temática dos
camponeses em seus afazeres da vida rural em telas e desenhos de todas as
fases de sua obra, evidenciam o interesse e identificação do artista com a cultura
popular e com a imagem do camponês.
Maliévitch inicia o texto contando sobre sua infância em Parkhomovka,
distante tanto das grandes quanto das pequenas províncias, onde seu pai
trabalhava provavelmente na função de contramestre em uma refinaria de açúcar
de beterraba.
Dessa primeira infância, Maliévitch constrói um relato idealizado da vida
no campo, que seria fonte de inspiração durante sua trajetória como pintor e que
exerceu influência sobre a estética do Suprematismo e do Pós-suprematismo.
Na autobiografia, sua observação se concentra nas vestimentas
coloridas e nos gestos dos camponeses, contrapostos aos modos grosseiros e às
vestes cinzentas dos operários, os quais arriscavam sua saúde junto às máquinas,
fato que poderia lhes render mutilações. Assim, a máquina é vista como algo
perigoso e desconectado da natureza, que determina as maneiras e concepções
de mundo dos homens.
No texto, Maliévitch afirma também que, desde muito cedo, preferiu
estabelecer amizade com as crianças camponesas ao invés de se relacionar com
os filhos de trabalhadores da refinaria, pois segundo ele, estes viviam livres e em
comunhão com a natureza e com os animais.
131
A comparação entre o sentido da vida camponesa e operária é
colocada em oposição a todo o momento: Eu pensava: meu pai é obrigado a se
levantar à noite quando todos dormem e ir trabalhar, ou de ir dormir quando todos
vivem e respiram o ar dos campos, das florestas, [...] dos jardins. 108 Maliévitch
aponta ainda a diferença entre a comida fresca dos camponeses em comparação
ao alimento consumido pelos habitantes da cidade, afirma que o mel poderia muito
bem substituir todo o açúcar produzido na refinaria de seu pai e neste sentido,
considerava até mesmo inútil o trabalho despendido, pois um simples camponês já
seria capaz de cuidar de uma centena de abelhas, que produziriam algo de sabor
muito superior ao açúcar fabricado pelo homem.
108 MALÉVITCH, K., op.cit., p. 153.
Imagem 25: K. Maliévitch. Coveiro -‐ Figurino da ópera Vitória Sobre o Sol, 1913. Museu do Teatro. São Petersburgo.
Imagem 26: Traje feminino do leste da Ucrânia, início do século XX.
Imagem 24: Vestido tradicional de noiva do leste da Ucrânia, início do século XX.
Fonte: WOLYNETZ, Lubow K. (cur.) The Tree of Life, The Sun, The Goddess -‐ Symbolic Motifs in Ukrainian Folk Art. The Ukrainian Museum -‐ New York, Rochester, New York: Babiuk Enterprises, 2005, pp. 73, 74 e Malevich-‐1878-‐1935, Los Angeles, California: The Armand Hammer Museum or Art, 1990, p. 135.
132
Imagem 28: K. Maliévitch, Realismo Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões (Quadrado Vermelho), 1915. Óleo sobre tela, 53x53cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Imagem 30: Pissanki (ovos de páscoa ucranianos) com motivos do sol.
Imagem 31: Ruchniki (vestimenta cerimonial ucraniana tecida), nordeste ucraniano, anos 1930. 261,6 x 38 cm (esquerda), 238,7 x 33 cm (direita).
Fontes: Malevich-‐1878-‐1935, Los Angeles, California: The Armand Hammer Museum or Art, 1990, pp. 70, 74, 7 e WOLYNETZ, Lubow K. (cur.) The Tree of Life, The Sun, The Goddess-‐ Symbolic Motifs in Ukrainian Folk Art. The Ukrainian Museum -‐ New York, Rochester, New York: Babiuk Enterprises, 2005, pp. 144, 107.
Imagem 27: K. Maliévitch. Realismo pictórico de um moço com um saco nas costas, 1915. Óleo sobre tela, 71,1 x 44,4 cm. MoMA, Nova Iorque.
Imagem 29: K. Maliévitch. Suprematismo, 1915. Óleo sobre tela, 57.5 x 48.5 cm. Stedelijk Museum, Amsterdã.
133
Maliévitch narra de maneira anedótica certa vez em que liderou as
crianças camponesas em uma guerra contra os filhos dos trabalhadores da
refinaria, pagando-os diariamente pelo serviço com torrões de açúcar. Descreve
que suas habilidades em confeccionar os instrumentos de luta (arcos e flechas) os
ajudaram a vencer tal combate e, até nisto, deixa transparecer sua certeza na
superioridade dos camponeses em relação ao homem ligado à indústria e à vida
urbana.
Em outra passagem, fala sobre a estética dos camponeses, que sua
produção artesanal, suas roupas e objetos o agradavam fortemente e que tal dado
teria sido a fonte primeira de sua simpatia pelos camponeses. Além disto, segundo
o artista, os camponeses desenhavam e pintavam admiravelmente em todas as
épocas da vida, em oposição aos trabalhadores industriais que o faziam muito mal
e prematuramente abandonavam tal atividade, porque diferentemente dos
camponeses, que cultivavam as práticas artísticas enquanto parte de suas
tradições, dentro da fábrica e da vida urbana não haveria espaço para tal
atividade.
Maliévitch relembra ainda dos grupos de mulheres, que juntas
cantando, bordavam os vestidos tradicionais e as demais peças do enxoval das
noivas camponesas. Relata que sua mãe realizava tais bordados e que durante
parte de sua infância, ela o teria ensinado a bordar e fazer crochê.
Nesses bordados em motivos geométricos, estruturados em eixos
diagonais do ponto cruz e coloridos essencialmente em vermelho e negro sobre
tramas de tecido branco, parece bastante plausível apontar as origens de seu
interesse pela pintura e por uma estética universal, que se comunicasse por meio
de formas geométricas e cores puras, tal como desenvolvidas pelo Suprematismo.
Mirolasva M. Mudrak, em um dos textos mais interessantes dedicados
às ligações e influências da cultura ucraniana sobre o desenvolvimento da obra de
Maliévitch reforça o argumento:
134
As notas autobiográficas de Maliévitch deixam claro que a sua infância no campo ucraniano incutiram uma atração pelas artes decorativas nativas, particularmente pela intensidade da cor, embora contida, pela ornamentação nas fachadas caiadas das casas de aldeias [...]. Igualmente importante na formação da sensibilidade estética do artista estão os padrões geométricos dos tradicionais ovos de Páscoa [pisanki] e as singelas tapeçarias, os motivos angulares simples de bordados em ponto cruz sobre linho
, tanto masculinas quanto femininas, constrastando com as roupas dos nativos. Em numerosas ocasiões Jean-Claude Marcadé usou um argumento convincente em relação a tal arte popular ucraniana como fonte de inspiração para a arte de Maliévitch. [...] A predileção de Maliévitch pelas geometrias básicas, cores primárias e a clareza primitiva dos fundos brancos planos não deve ser tomada como meramente impressionista ou anedótica.109
Em 1995, Charlotte Douglas publicou uma fotografia na qual aparece
uma almofada com motivos suprematistas bordados e aplicações em tecido, que
foi apresentada por Maliévitch na Segunda Exibição de Arte Decorativa Moderna,
de Verbovka, ocorrida em dezembro de 1917.
Conforme relata Aleksandra Chatskikh em seu livro Black Square: Malevich and the Origin of Suprematism (2012), no Catálogo da Exibição de Arte Moderna Decorativa: Bordados e Tapetes a partir de desenhos de artistas (1915)
constam os projetos de Maliévitch (n. 90-91: cachecol e n. 92 para uma almofada).
O projeto feito por Maliévitch para a almofada é análogo à tela Suprematismo,
1915, que se encontra atualmente em Veneza, no Museu Peggy Guggenheim, e o
projeto para o cachecol é semelhante à obra Construção Suprematista n.18, que
se encontra no Museu Stedelijk, em Amsterdã.
A Primeira Exibição de Arte Decorativa Moderna de Verbovka ocorreu
na Galeria Lemercier, em novembro de 1915 e contou com a participação de
artistas como N. M. Davidova, A. A. Ekster e E. Vassilieva. 109 MUDRAK, Myroslava M., Malevich and His Ukrainian Contemporaries. In: DOUGLAS, Charlotte; LODDER Christina, op.cit, pp. 83, 84.
135
Ekster, em particular, era uma das artistas que tinha ligação direta com
a arte popular de Verbovka e a indústria regional de bordado. Ela fazia a ponte
entre os artistas e os artesãos, que transformavam em motivos as produções da
vanguarda.
Entretanto, como destaca Chatskikh, a primeira aparição do
Suprematismo, em 06 de novembro de 1915, em uma exibição de Artes
Decorativas atesta o fato de que o Suprematismo se relacionou com a produção
de objetos utilitários não somente depois da produção de pinturas não-objetivas,
entre os anos de 1915 e 1919, mas em paralelo ao seu nascimento.
O dado é relevante, pois confirma a crença precursora de Maliévitch na
não distinção entre as chamadas artes menores e maiores, tal como foi enunciado
por grande parte dos artistas russos durante os anos vinte. Em alguns sentidos,
esses projetos aplicados em cerâmicas, bordados ou objetos utilitários dentro da
cultura artística russa encontram suas origens no trabalho de grupos como o
círculo artístico de Abramtsevo, que resgatava as tradições populares e nacionais.
A ligação entre a estética suprematista e pós-suprematista e os objetos
artesanais provindos da cultura popular ucraniana também pode ser observada,
como destaco a seguir, pela aproximação de imagens, na motanka: boneca
ucraniana feita em tecido decorada com motivos geométricos ou estilizados.
Embora existam pequenas variações nas diferentes regiões em que aparece, sua
face nunca é representada de maneira figurativa, sendo completamente branca ou
tendo em seu lugar uma cruz. Seus braços também costumam ser perperdiculares
em relação ao corpo, configuração muito adotada por Maliévitch em suas telas
pós-suprematistas.
No período pré-cristão as motankas eram feitas com feno, fitas, cordas
e pedaços de tecido. Na face era proibida a representação dos olhos, nariz ou
boca, que aparecem substituídos pelo símbolo do sol.
136
Como discorre Liudmila Bulgakova-Sitnik no artigo Motiv sontsia v ykrainskomu narodnomu mistetstvi (O motivo do sol na arte popular ucraniana)110,
entre as ornamentações mais amplamente utilizadas na arte popular ucraniana
estão as formas geomórficas que incluem o quadrado, o círculo e a cruz. Outros
elementos frequentemente
linhas cruzadas, que juntas formam mais de cento e cinquenta padrões presentes
nos ovos de Páscoa (pisanki), bordados, tecidos, relevos em argila, madeira,
pedra e metal.
Padrões geométricos, enquanto formas primárias foram ao longo de
gerações utilizados por diversos povos em todo o mundo e costumam ser
interpretados em um contexto simbólico como uma tentativa de entendimento e
conexão do homem com o mundo natural e com o universo.
110 In: WOLYNETZ, Lubow K. (cur.) The Tree of Life, The Sun, The Goddess- Symbolic Motifs in Ukrainian Folk Art. The Ukrainian Museum - New York, Rochester, New York: Babiuk Enterprises, 2005, pp. 40-53.
Imagem 32: Foto: Motanka e senhora ucraniana, séc. XX. Fotografia. Fonte: http://mari-‐motanka.livejournal.com/7054.html Acesso em 25/02/2013. Imagem 33: Motanka contemporânea. Fotografia. Fonte: http://motanka.kiev.ua/. Acesso em 25/02/2013. Imagem 34: K. Maliévitch. Mulher com braços abertos, c. 1930, grafite sobre papel, 22,5 x 15,7 cm. Imagem 35: K. Maliévitch. Místico (inscrição de Maliévitch abaixo do desenho), c. 1930, grafite sobre papel, 22,5 x 17,3 cm. Fonte: ANDERSEN, T., K. S. Malevich: The Leporskaya Archive, Langelandsgade: Arthus University Press, 2011, pp. 199, 196.
137
Ainda de acordo com a pesquisadora, dentro da cultura popular
ucraniana, esses motivos eram imbuídos de poderes mágicos e embora sua
utilização em práticas rituais tenha se perdido ao longo dos séculos, os elementos
geométricos mais utilizados (quadrado, círculo e cruz) compõem até hoje a base
de toda a ornamentação tradicional eslava, mantendo seu simbolismo primordial.
Na ornamentação ucraniana, assim como em outros povos eslavos, o quadrado
ou losango (romb-kvadrat) é o motivo predominante.
Para os eslavos, o motivo do romb-kvadrat aparece associado à
fertilidade, o mundo e da 111. Formas como as cruzes (e variações como a suástica e a cruz
formada por cinco quadrados - khrest klinovatii) estão ligadas ao simbolismo do
sol ou ao culto do fogo e eram, provavelmente, empregadas na decoração de
amuletos para proteção contra maus espíritos. Segundo Bulgakova-Sitnik,
os Mongois, assim como para muitos outros povos, esse símbolo [suástica]
expressa a ideia de movimento contínuo 112.
Maliévitch emprega exatamente a mesma descrição da cruz como uma
imagem formada por cinco quadrados e fala também sobre a ideia de movimento
a partir da rotação da cruz: o quadrado é a forma primordial, seu desenvolvimento
no espaço, a partir de um quadrado central que se desloca nas quatro direções
ortogonais dá origem à cruz e a rotação desta, gera o círculo, segundo Maliévitch.
Isso constitui o tríptico suprematista descrito por Maliévitch para sua
exposição na Bienal de Veneza, de 1924. No verso das telas, encontram-se as
seguintes descrições feitas pelo artista que justificam tal sequência expositiva das
obras: 1 .
111 RZIHA, F., Studien uber Steinmets-Zeichen, Viena, 1883, p. 2 apud BULGAKOVA-SITNIK, Liudmila, op.cit, p. 42. 112 BULGAKOVA-SITNIK, Liudmila, op.cit, p. 48.
138
Representações semelhantes à motanka datam do final do período
paleolítico e fazem parte das diversas representações da divindade feminina que
simbolizam a fertilidade e a procriação. Na cultura popular ucraniana, a figura
feminina é bastante recorrente, pois as mulheres têm papel fundamental nos
rituais e celebrações cotidianas.
Como aponta Natalie Kononenko no artigo Postati Boguin v ucrainskomu narodnomu mistetstvi113 (Figuras da deusa na arte popular
ucraniana), o poder da mulher dentro da mitologia ucraniana está diretamente
associado à criação, não apenas no que diz respeito à maternidade, mas aos mais
diversos objetos, roupas e alimentos que provém as necessidades materiais e
espirituais da vida camponesa e que, por tradição, são produzidos pelas mulheres.
São elas que processam os grãos de onde se obtém o pão que sustenta e que
também celebra e abençoa os rituais de casamento e fertilidade (korovai), ou
ainda os pães de Páscoa (paska) e de Natal (kolatchi).
113 In: WOLYNETZ, Lubow K., op. cit., pp. 54-71.
Imagem 38: K. Maliévitch. Círculo preto, c. 1923. Óleo sobre tela, 105,5 x 106 cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Imagem 37: K. Maliévitch. Cruz preta, c. 1923. Óleo sobre tela, 106 x 106,5 cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Imagem 36: K. Maliévitch. Quadrado preto, c. 1923. Óleo sobre tela, 106 x 106 cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Fonte: PETROVA, Yevgenia (edit.) Kazimir Malevich in State Russian Museum, São Petersburgo: Palace Editions, 2000, pp. 82-‐84.
139
Imagem 39: Figuras femininas. Cultura Tripiliana. Coleção de Aleksandr Polichtchuk, Kiev.
Fonte: WOLYNETZ, Lubow K. (cur.) The Tree of Life, The Sun, The Goddess-‐ Symbolic Motifs in Ukrainian Folk Art. The Ukrainian Museum -‐ New York, Rochester, New York: Babiuk Enterprises, 2005, p. 58.
As formas presentes nos tecidos e bordados
das vestimentas tradicionais (ruchniki) - mais que
objetos utilitários - estão atreladas a diversas
simbologias, protegendo a casa e a família de energias
negativas ou ainda marcando ciclos de abertura, como
o casamento e fechamento da vida, como as
cerimônias funerárias.
Artefatos arqueológicos da cultura Tripiliana
(período Neolítico) encontrados na Ucrânia em meados
do século XIX dão maior profundidade às análises de
N. Kononenko ao mostrar o profundo enraizamento do
culto à figura e à divindade feminina.
Representações estilizadas dessas
divindades (Rojanitsia, Bereguinia e Mokocha) foram
largamente empregadas na cultura popular e
camponesa durante meados do século XIX,
especialmente, nos motivos aplicados à tecelagem e
aos bordados. Também nos pisanki e entalhes diversos
as divindades femininas reaparecem em
representações geométricas e mesmo abstratas de
mulheres em trajes ucranianos.
Um olhar sobre a obra gráfica e pictórica de Maliévitch pode comprovar
sem grandes dificuldades semelhanças entre essas imagens da cultura popular
ucraniana (com a qual Maliévitch esteve em contato no início e final de sua vida) e
a estruturação hierática das figuras humanas, com ou sem os braços, com a face
branca e encoberta por cruzes, sobretudo, nos desenhos e pinturas da fase pós-
suprematista. Também é notável que praticamente metade da produção visual de
140
Maliévitch, em que existe referência à representação do corpo ou rosto humanos é
dedicada à figura feminina.
2.4. A imagem limite: Pintura de ícone e a obra de K. Maliévitch
Embora não sob seu aspecto religioso, os ícones constituíram parte
fundamental do repertório de imagens de Maliévitch durante toda sua trajetória
artística, desde sua infância e adolescência, como relata em sua autobiografia:
Havia ícones pendurados mais pela tradição, e por assim dizer, que pelo sentimento religioso; nem meu pai, nem minha mãe se diferenciavam sobre esse último ponto, pois, sob diversos pretextos, eles se desviaram da igreja. Às vezes, meu pai gostava de se divertir convidando ao mesmo tempo o padre católico polonês - e o padre ortodoxo, de maneira totalmente inesperada por eles.114
Desde Kiev, esse contato constante de Maliévitch com os grafismos e
as cores puras presentes nas imagens populares russas (a exemplo do lubok -
espécie de gravura que ilustrava textos, comparáveis às ilustrações de cordel)
pode ser considerado como uma das mais importantes fontes da produção
pictórica do artista.
Esse tipo de filiação plástica à pintura de ícones, sobretudo com a
Escola de Novgorod, é bastante notável através da escolha do preto, vermelho e
branco como matrizes cromáticas privilegiadas pelo artista no Suprematismo
Estático e Dinâmico dos anos 1915 e 1916 e na escolha do motivo das cruzes
114 MALÉVITCH, K., Autobiographie extrait du manuscrit I/42 [trad. franc.]. In: MALÉVITCH, K., La Lumière et la Couleur, op.cit., p. 52.
141
pretas; construção formal bastante recorrente na composição dos mantos dos
santos, em ícones do século XVI.
Maliévitch tomou contato com a tradição da pintura de ícones desde o
início de seus estudos artísticos. Como destaca Miroslava M. Mudrak (2007),
algumas biografias sugerem que Maliévitch, ainda jovem, teria estudado sob a
tutela do então renomado artista de Kiev, Nikolai Kornilovitch Pimonenko (1862-
1912).
Pimonenko era o filho de um pintor de ícones, que iniciou sua formação
na Escola de Pintura de Ícones do Monastério de Kiev-Pechersk (Monastério das
Cavernas), tendo ingressado na Escola de Desenho de Kiev, onde esteve entre os
anos de 1878 a 1882. Posteriormente, Pimonenko se tornou o mais influente
professor desta mesma instituição, onde lecionou entre 1884 a 1900, período em
que Maliévitch tomou contato com o artista.
A busca modernista pelas origens foi responsável pelo crescente
interesse na Rússia pela arte popular e religiosa, que atraiu o interesse tanto de
colecionadores no fim do século XIX, quanto de artistas da vanguarda russa, em
especial representantes do Neoprimitivismo russo como M. Larionov e N.
Gontcharova.
Embora desde 1870, pintores e escritores russos de colônias artísticas
como Abramtsevo e Talashkino apontassem para a valorização das tradições
populares, Gontcharova e Larionov foram diretamente responsáveis pela
divulgação destas produções no contexto das vanguardas artísticas no início do
século XX.
No ano de 1909, Larionov expôs suas pinturas neoprimitivistas em
conjunto de bordados e tecidos provindos da Sibéria, lubki e pães típicos de
gengibre, evidenciando o parentesco de sua produção. Larionov e Gontcharova
também foram os organizadores de uma importante exposição sobre a arte
142
popular russa e a pintura de ícones ocorrida no ano de 1913, em Moscou, onde
foram exibidos mais de 170 lubki e ícones.
Larionov, assim como David Burliuk (1882-1967), esteve fortemente
interessado pela estética e simbologias dessas placas artesanais, sendo Larionov,
mais uma vez, responsável pela divulgação destas produções ao inseri-las em
exposições de grupos artísticos como o Rabo do asno, Alvo e Valete de Ouros.
Em 1913, também em Moscou, ocorreu uma exposição de ícones
intitulada A arte antiga russa, que reforça a ligação entre a estética de vanguarda
com tais produções.
Fonte: http://www.varvar.ru/en/ikona/yaroslavl/yaroslavl-‐icons4.html. Acesso em 29/12/2011. http://www.kazimir-‐malevich.org/. Acesso em 13/12/2013. AGUILAR, Nelson A. (curador geral), 500 Anos de Arte Russa -‐ State Russian Museum, São Paulo: Palace Editions/ Brasil Connects, 2002.
Imagem 41: K. Maliévitch. Suprematismo Místico, 1920-‐1922. Óleo sobre tela. 100,5 x 60 cm. Coleção particular dos herdeiros do artista.
Imagem 42: Ícone de São Nicolau. Séc. XVI. Têmpera sobre madeira, 96x74x2,5 cm.
Imagem 40: Ícone de Cristo em Majestade. Catedral da Transfiguração de Cristo. Monastério de Iaroslav. Primeira metade do século XVI. Museu de História e Arquitetura.
143
Como aponta Chatskikh (2012), outra figura da vanguarda russa
pertencente ao círculo de K. Maliévitch que tinha forte ligação com a arte popular
era Natalia Davidova. A artista foi fundadora e chefe do Centro Folclórico da Vila
de Verbovka, em Kiev. Artistas do grupo Supremus, liderado por Maliévitch,
estiveram entre os anos de 1915 e 1916 diretamente envolvidos com atividades do
Centro, como em exposições de trabalhos da cultura popular e a produção de
trabalhos cooperativos entre artistas da vanguarda e artesãos camponeses. O
foco principal era introduzir a nova estética não-objetiva aos camponeses,
produzindo peças artesanais de vestuário, tecidos e objetos do cotidiano
doméstico, de acordo com projetos dos artistas de vanguarda.
Em novembro de 1915, Davidova, Aleksandra Ekster e Nina Genke-
Meller organizaram a Exibição de Arte Moderna Decorativa do Sul da Rússia,
onde foram expostos objetos artesanais como tapetes, almofadas, cintos e
vestimentas confeccionados a partir de desenhos de Maliévitch, Ekster, Kliun,
Popova, Rozanova, Puni e outros artistas não-figurativos.
No início do século XX, em várias cidades russas, foi crescente o
interesse pela antropologia, etimologia e pelo folclore. Em 1908, o historiador
Simão Dubnov (1860-1941) colaborou na fundação da Sociedade histórica e
etnográfica judia, em São Petersburgo. Esta Sociedade foi responsável pela
organização de uma grande expedição etnográfica realizada entre os anos de
1912 e 1914 pela Ucrânia, Podillia e Volínia. Os artistas que acompanharam a
expedição coletaram poemas, músicas, copiaram diversos motivos folclóricos,
além de fotografar as sinagogas e tumbas. A coleção forneceu a base do Museu
etnográfico judeu, inaugurado no ano de 1916, em Petrogrado. Em uma segunda
expedição dirigida pela Sociedade histórica e etnográfica judia em 1916, artistas
como El Lissitzki e Ribak fizeram estudos das sinagogas e desenhos a partir da
arte popular e primitiva presentes nas cidades situadas ao longo do rio Dniepre.
Estes estudos feitos a partir das sinagogas do século XVIII foram o ponto de
partida para a criação de ilustrações de livros e de litografias que uniam a estética
144
folclórica às pesquisas formais da época, como é possível constatar nos trabalhos
de artistas judeus como Lissitzki, Chagall, Altman e Falk.
Em 1922, o Museu da Cultura Artística de Petrogrado, instituição que
teria Maliévitch como seu diretor entre 1923 e 1924, adquiriu cinquenta ícones e
diversas reproduções de pinturas budistas a partir do departamento etnográfico do
pictóricas e a Rússia Antiga, Oriental e a arte p 115
A fusão de elementos estéticos populares e de vanguarda pode ser
percebida também de outras formas. Pelas palavras de Aleksander Chevtchenko o
"Neoprimitivismo foi formado a partir da fusão das formas do Oriente e do 116. Esta definição do Neoprimitivismo se relaciona com a transformação
de paradigmas artísticos e com a conciliação dos artistas de vanguarda russa com
artistas ocidentais, como Cézanne, Gauguin e Matisse, os quais voltaram seu
olhar para o Oriente e ao mesmo tempo apontaram os vícios da tradição
acadêmica europeia, postura que há seu tempo também foi tomada pela
vanguarda russa.
Assim, o chamado Neoprimitivismo russo pode ser entendido tanto
dentro de práticas como a valorização de objetos e produções folclóricas das mais
diversas áreas da cultura russa (canções, vestimentas, ícones, brinquedos,
literatura, arte popular, etc.) como também a adoção híbrida desta estética popular
russa com a estética artística das vanguardas ocidentais, o que também costuma
ser nomeado por alguns pesquisadores ocidental.
115 Arquivo Central do Estado para Literatura e Arte, São Petersburgo, ofício 244, op.1, d.13, p.21. Cf. Irina Karasik, The Petrograd Museum of Artistic Culture. In: PETROVA, Evgenia et al. (org),
-Garde from the Collection of the State Russian Museum, St. Petersburg, London: Booth-Clibborn Editions, 1999, p. 16. (Catálogo de exposição) 116 CHEVTCHENKO, Aleksander, Neoprimitivism: Its Theory, Its Potentials, Its Achievement (1913). In: BOWLT, John E. (edit.) Russian Art of the Avant Garde: Theory and Criticism, London: Thames & Hudson, 1976, p. 49.
145
No contexto particular da obra de Maliévitch, a arte popular e o ícone
aparecem enquanto mediadores da compreensão das metamorfoses estéticas e
conceituais ocorridas no âmbito da arte moderna. A pintura de ícones, assim
como algumas produções da vanguarda, operam transformações onde os
significados habituais atribuídos à imagem são destituídos e reconstruídos dentro
de uma nova lógica, que busca uma ligação primordial entre forma e significado.
Como aponta Maliévitch a esse respeito:
Os ícones produziram sobre mim uma forte impressão. Eles me faziam sentir alguma coisa de familiar e admirável. Todo o povo russo aparecia neles, em toda sua emoção criadora... Eu percebia certa ligação entre a arte camponesa e a arte dos ícones; a arte dos ícones é a forma superior da arte camponesa. Eu compreendi
Compreendi os camponeses através dos ícones. Percebi suas faces, não como aquelas de santos, mas como de homens simples (essa foi a terceira reviravolta em minha vida). O conhecimento da arte dos ícones havia me convencido que se tratava, não de apreender a anatomia e a perspectiva, mas que era necessário ter a intuição da arte e do realismo artístico. Em outras palavras, eu via que a realidade e o tema são aquilo que se deve transfigurar em uma forma ideal saída das profundezas da estética, é por isso que tudo pode ser belo na arte.117
Num primeiro momento, como afirma Maliévitch,
se concentrava sobre a capacidade que o pintor de ícones possui em construir
uma imagem que está além de qualquer representação, discurso, cor, forma,
imagem ou coisa.
Essa ligação entre o visível e o invisível, o material e o impalpável
dentro da pintura de ícones reproduz o paradoxo e o mistério da encarnação do
Cristo; um ponto de contato entre o humano e o divino. Contudo se não quiser cair
117 MALÉVITCH, K., op.cit., pp. 163, 168.
146
no problema da iconolatria, o pintor tem que necessariamente superar a figuração
mimética, transformando o visível em uma forma simbólica.
Assim, a arte dos ícones trouxe à tona uma das questões fundamentais
no Suprematismo de Maliévitch: a de que a arte implica necessariamente em uma
transformação, uma transfiguração não só do visível, mas dos conceitos:
[...] através da arte do ícone eu compreendi o caráter emocional da arte camponesa, que eu já gostava há muito tempo, mas que eu não havia elucidado o âmbito e que tinha descoberto a partir do estudo dos ícones. No que essa arte havia transfornado minhas aspirações em direção à natureza, à ciência (anatomia, perspectiva), ao conhecimento da natureza pela execução de estudos. Os pontos de vista sobre a natureza e o naturalismo dos
, que os pintores de ícones [...] tinham transmitido todo um conteúdo em uma verdade antianatômica, fora da perspectiva aérea e linear. A cor e a forma eram elaboradas por eles a partir de uma percepção puramente emocional do tema.118
A fase neoprimitivista na pintura de Maliévitch testemunha diretamente
suas impressões a partir do simbolismo dos ícones e da arte popular camponesa.
Isto pode ser percebido na representação maciça dos corpos com pés e mãos
maiores que o natural, na frontalidade dos rostos, na escolha de um
enquadramento central que reforça a destruição da perspectiva cônica substituída
por uma perspectiva simbólica. A geometrização e estilização das formas, sejam
humanas ou da paisagem, reforça também a bidimensionalidade da tela.
A obra suprematista de Maliévitch estabelece ligações com a pintura de
ícones, especialmente porque o ícone não é um quadro de temática religiosa em
sentido ordinário ou a mera representação de imagens ligadas ao culto e à fé
religiosa, o ícone é antes de tudo, o local onde a espiritualidade se faz presente de
maneira concreta frente ao fiel, excluindo toda espécie de fetichismo, toda ligação
118 MALÉVITCH, K., op. cit., p. 118.
147
com o objeto. Assim, dentro da crença ortodoxa, o ícone não pode ser
considerado como representação gráfica e pictórica de uma forma humana, mas
sim, como ponto de encontro entre o espírito e uma verdade transcendente à
matéria. A imagem do ícone é a revelação dessa transfiguração no mundo visível.
Neste ponto da discussão, seria útil levantar mais algumas relações
entre o pensamento de Maliévitch e a cultura popular. Não que tal recurso se
constitua como um desvio, pois como aponta Nikolai Berdiáev:
[...] na consciência russa os elementos religiosos e populares são de tal maneira confusos que é difícil de distingui-los. Na ortodoxia russa, essa confusão chega quase à identificação. O povo russo crê no Cristo russo. O Cristo é o deus nacional, o deus dos camponeses russos, desenhado com os traços russos. Está nisso uma tendência pagã no seio da ortodoxia.119
Compreender esse tipo de concepção exige que se leve em
consideração o movimento de renovação religiosa ocorrido na Rússia que
defendia a crença na transformação dinâmica do mundo por meio do advento de
uma nova era cristã. Este renascimento espiritual estava intimamente ligado à
crença no destino messiânico da Rússia cristã, herdeira direta da tradição
Bizantina.
A discussão filosófica, ao mesmo tempo nacionalista e universal, sobre
o grande legado místico e messiânico da Rússia foi inaugurada por Piotr
Iakovlievitch Tchaadáiev (1794-1856). Considerato o pai da filosofia religiosa
russa, seu trabalho exerceu grande influência sobre o movimento eslavófilo e a
geração posterior de filósofos. Os principais temas de sua obra abordam as
questões da unidade da Igreja e seu papel no mundo, do destino histórico do
homem a partir de uma óptica cristã e daquilo que se habituou chamar de
119 BERDIAEFF, Nikolas, op.cit, p. 217.
148
O eslavofilismo, como alguns erroneamente interpretam, não se refere
à afirmação eugenista da superioridade do povo russo, mas à crença da
singularidade de sua cultura, uma maneira própria de interpretar e agir sobre o
mundo, inclusive a partir da percepção e assimilação nacional de culturas
estrangeiras. Assim, quando as produções da vanguarda europeia
desembarcaram na Rússia e houve uma rápida assimilação de várias propostas,
tal fato não deve ser entendido em seu estrito contexto artístico.
Dentro do pensamento filosófico russo, há também uma forte ligação
com a ideia teândrica de que a criação seria um dos meios morais de integração
entre o homem e o divino.
Nikolai Fiódorovitch Fiódorov (1828-1903) defende, em A Filosofia da causa comum/comunitária120, que o homem seria uma espécie de coautor da obra
divina. Nikolai Berdiáev, em O sentido da criação (1916)121, dá continuidade a
esse raciocínio afirmando que, se o homem foi criado à imagem de Deus, ele é
por natureza um ser criador, inclusive porque, tanto a liberdade quanto o dom da
criação foram concedidos ao homem pelo criador, conferindo-lhe esta tarefa por
direito e dever. Portanto, dentro desta concepção, caberia ao homem a tarefa de
dar continuidade à criação, à redenção e à ressureição universal.
Conforme aponta V. Soloviov:
A humanidade não deve apenas contemplar Deus, mas se deixar divinizar por essa contemplação; a nova religião não pode ser uma veneração passiva de Deus, ou uma simples adoração, mas deve tornar-se uma atividade em Deus e com Ele, quer dizer, uma ação conjunta de Deus e do homem, a fim de transformar a humanidade da carne ou do natural em uma humanidade espiritual e divina.122
120 FEDOROV, N.F., Filosofiia obchtchego dela (Filosofia da causa comum). Primeira edição, vol. I, Verny, 1906 e vol. II, Moscou, 1913. Republicado pelas edições L'Âge d'Homme, Lausanne, 1985. 121 BERDIAEV, N., Le sens de la creation: un essai de justification de l'homme, Bruges, Belgique: D. Brouwer, 1955. 122 SOLOVIOV, V., Les Fondements Spirituels de la Vie, Paris-Bruxelles: Beauchesne-éditions de la Cité Chrétienne, 1932, p. 163.
149
Frente a esse panorama, o estandarte da criação artística dentro do
modernismo europeu não pode ser tido como uma influência exclusiva e nem
mesmo inovadora em relação à vanguarda russa. O que ocorreu, no entanto, pode
ser identificado como a justaposição de discursos modernistas a um conjunto de
pressupostos filosóficos pré-existentes na Rússia.
Contudo, apesar de ter ganhado muitos seguidores e se feito presente
dentro da cultura russa do século XIX, o movimento eslavófilo enfrentou forte
oposição da intelligentsia russa, que desde as reformas operadas por Pedro,
ligava-se ao pensamento ocidental e à defesa de doutrinas e ideologias
estrangeiras, dentre elas o ateísmo e o niilismo, que iriam ganhar terreno durante
o século XX, ajudando a fundar algumas das bases teóricas do regime
bolchevique.
151
Capítulo 3. Notas de verão sobre impressões de inverno: Olhares sobre a cultura russa
3.1. Notas sobre as notas
Pode parecer contraditório separar em subcapítulos alguns tópicos
sobre Literatura, Ciência ou Filosofia se é comum afirmar que os intelectuais
russos sempre transitaram livremente por diversos campos do conhecimento e,
em seu projeto mais ambicioso, visavam uma compreensão total da realidade e a
construção integral do homem, que só parece possível a partir de uma concepção
não compartimentada dos saberes.
Contudo, se na cultura russa, em comparação ao pensamento
ocidental, há uma fronteira mais tênue entre os campos do conhecimento, essa
divisão é aqui esboçada apenas por uma questão de organização estrutural,
embora sempre vá existir o próprio impasse teórico quando um ocidental tenta a
partir de sua sensibilidade lançar um olhar distante sobre uma cultura estrangeira,
no caso a russa.
Tão pouco é fortuito a escolha do termo notas para esses
subcapítulos, pois longe de uma varredura e de uma análise exaustiva ou
sistemática da cultura literária e filosófica russa, tem-se o interesse de levantar um
conjunto pontual de dados e conceitos que foram relevantes à formação do
pensamento russo ao longo dos séculos XIX e início do XX, alguns dos quais
podem ser tomados como referências teóricas na compreensão do pensamento
não-objetivo na obra de Kazímir Maliévitch.
152
Muito já foi escrito sobre o notório papel dos escritores e poetas do
século XIX, assim como sobre o debate destes com a crítica, no que diz respeito à
representação da nacionalidade russa, ao posicionamento da Rússia enquanto
nação e seu destino histórico em relação aos demais povos.
Um leitor familiarizado com a cultura russa do século XIX saberá,
portanto, da importância da literatura na formação do pensamento social e na
constituição de uma identidade (ou ao menos, o desejo de construção de uma
identidade) russa.
Por outro lado, seria interessante considerar os desenvolvimentos e
transformações desses discursos fundadores durante os primeiros anos do século
XX em meio aos artistas da vanguarda russa.
Evidentemente, não é possível comparar de maneira absoluta a
natureza dos projetos e discursos da vanguarda russa do século XX ao trabalho
de autores como Herzen, Tchaadáiev, Soloviov, Tolstói e Dostoiévski na
constituição do pensamento filosófico e social russo. Por outro lado, grande
parcela dos artistas de vanguarda estava disposta a reivindicar o mesmo território
ideológico assumido pela literatura durante o século XIX.
Toda a euforia ideológica, o comprometimento com os ideais da
Revolução e a crença no papel insubstituível do artista na formação da sociedade
eram heranças diretas da geração do século XIX e parece natural que os novos
artistas tivessem o desejo de tomar o lugar que lhes havia sido prometido. Por
esta razão, não se pode ignorar a existência de uma continuidade no que diz
respeito à polarização dos debates artísticos e às discussões sobre a constituição
de uma identidade nacional versus a visão universal.
153
3.2. Notas sobre a literatura russa
Notem, por favor, senhores, que todos estes altos professores europeus, nossa luz e nossa esperança todos estes Mills,
Darwins e Strausses - às vezes consideram as obrigações morais do homem moderno de uma maneira muitíssimo espantosa. [...] O
senhor gargalhará e perguntará: por que lhe ocorreu começar a falar precisamente sobre esses nomes? Porque é ainda mais
difícil conceber falando de nossa juventude inteligente, entusiástica e estudiosa que estes nomes, por exemplo, lhes
escapassem durantes os estágios iniciais de suas vidas. É possível conceber que a juventude russa permanecesse
indiferente à influência destes e de outros semelhantes líderes do pensamento europeu progressista, especialmente no aspecto russo de suas doutrinas? esta é uma expressão engraçada:
emprego-a apenas porque este aspecto russo existe de fato nessas doutrinas. Ele consiste nas inferências que, derivadas
dessas doutrinas, na forma de inabaláveis axiomas, são extraídas apenas na Rússia, enquanto na Europa, diz-se, sequer se suspeita
da possibilidade de tais deduções.
F. M Dostoiévski - Diário de um Escritor, 1873.
Na França, no ano de 1953, foi lançada pela Editora Gallimard a
tradução do russo para o francês do livro de B. Zenkovski em dois volumes,
compêndio fundamental e amplamente reconhecido pelos estudiosos e
interessados no tema, que já trazia em sua contracapa o seguinte comentário:
Não havia até o momento, na França, uma história completa da filosofia russa. Eis aqui uma. Sua publicação responde a duas necessidades: mostrar que existe uma filosofia russa e dizer também o que é esta filosofia. Pois a opinião corrente é, sobretudo, de que não há filosofia russa. [...] Quando se fala do espírito russo, vemos Dostoiévski, vemos Tolstói, vemos grandes escritores que são ao mesmo tempo pensadores perturbadores, mas ninguém iria chamá-los de filósofos.123
123 ZENKOVSKY, B., op.cit., contracapa.
154
A maneira particular de pensar e interpretar as questões históricas,
culturais, artísticas, filosóficas ou políticas, fossem estas internacionais ou
nacionais, ess
compreendido em sua importância pela intelectualidade ocidental, como vemos
pela data da publicação francesa do livro de Zenkovski.
A History of Russian Thought - From the Enlightenment to Marxism (Stanford University Press, 1979) do historiador polonês Andrezej Walicki e
Through the Russian prism: essays on literature and culture (Princeton University
Press, 1989) do pesquisador da obra de F. Dostoiévski, Joseph Frank, são dois
exemplos bibliográficos que podem esclarecer algumas particularidades da cultura
russa e, ao mesmo tempo, mediar a percepção ocidental em relação ao
pensamento russo.
Ainda que Zenkovski inclua na história da filosofia russa capítulos
encabeçados pelos nomes de Gógol, Dostoiévski e Tolstói é necessário perceber
que tal operação requer do autor certo tato e esforço tático para convencer um
público ocidental especializado, que tinha na década de 1950, mas talvez ainda
hoje tenha, a concepção de que a filosofia russa seria apenas uma espécie de
subcategoria da escola alemã ou francesa, ou ainda um apanhado pouco
sistemático de ideias produzidas por teólogos ortodoxos e que não abarcavam
epistemologicamente as grandes questões discutidas pela filosofia mundial.
Outra percepção ocidental bastante difundida, ainda que equivocada, é
de que a Rússia produziu, sobretudo e se não exclusivamente, grandes
romancistas, mas nenhum filósofo de equivalente envergadura.
O problema é que esse tipo de raciocínio parece ignorar uma faceta
relevante da história russa, desconsiderando o fato de que os órgãos da censura
czaristas exerceram desde cedo um controle sobre as discussões públicas de
caráter político e social ou, como mais adiante dentro da União Soviética, os
artistas tiveram de lidar com esse mesmo tipo de entrave ideológico, disfarçando
155
críticas de fundo sociopolítico, filosófico ou religioso dentro de seus romances e
poesias.
Portanto, é difícil saber onde começam ou terminam as fronteiras entre
literatura e filosofia em Dostoiévski ou quais seriam os limites entre ficção, sátira e
a crítica mais ácida em Gógol, Saltikov, Tchekhov ou Zochtchenko.
Se todo grande artista é sempre político - sem abdicar das questões
artísticas relacionadas à forma, ao estilo e à liberdade de criação ou sem sucumbir
ao ranço proselitista que subjuga a essência a algum interesse partidário é
necessário notar que, desde antes do período czarista, grande parte dos poetas e
romancistas russos assumiu a tarefa de fazer da literatura um meio de expressão
e discussão das grandes questões sociais, que de outra forma não poderiam ser
abordadas.
Portanto, não há nada que impeça o estudioso mais pragmático de
buscar na literatura russa uma fonte de pesquisa da história das mentalidades e
da cultura russa.
Além disso, as produções da filosofia e da literatura russas sempre
estabeleceram estreitos diálogos com o pensamento ocidental, sobretudo o
alemão, francês e mesmo o inglês durante séculos, e isso, mais que depor contra
a autonomia da produção intelectual russa, comprova a erudição de seus
protagonistas.
Dostoiévski, apenas para citar o exemplo mais clássico desse tipo de
controvérsia, foi capaz de tecer seus escritos com questões filosóficas universais
permeadas pelas preocupações nacionais de cunho religioso, social e político.
Neste sentido, os especialistas em sua obra sempre apontarão a distinção entre
seus primeiros escritos, como Gente Pobre ou O Duplo, ambos de 1846, com a
produção posterior à redação de Recordações da Casa dos Mortos, de 1862, ou
seja, ao período que se seguiu a seu aprisionamento em Omsk, na Sibéria. Foi lá,
156
conforme descreve J. Frank (1989), que o escritor pôde recolher em uma precária
caderneta feita a partir de retalhos de papel costurados as expressões idiomáticas
típicas, os provérbios, canções e as histórias narradas pelos camponeses que lhe
forneceriam um rico material e possibilitariam um contato direto com a cultura
popular de seu país. Cultura esta, que o autor passaria a considerar superior em
seus aspectos morais em relação à cultura burguesa do século XIX.
Esse ideal de retorno e valorização das origens ou ainda o gosto
estético pelo exotismo iria se disseminar por vários países durante o século XX,
como visto no trabalho de artistas como Eugène-Henri-Paul Gauguin, Maurice de
Vlaminck e Henri Matisse. Como se sabe, a busca de um tesouro cultural primeiro
tornar-se-ia uma das tábulas rasas do modernismo europeu. Tudo estava por ser
redescoberto: Picasso e os cubistas encontrariam o elo perdido no geometrismo,
nos grafismos e na pluralidade de materiais da Arte Africana ou nos entalhes
medievais da Catalunha; as estátuas africanas seriam aos olhos e pelas palavras
de um Derain mais belas que qualquer Vênus de Milo; Gauguin e Brancusi
encontrariam a beleza original nas cores e nas formas polinésias e da Oceania.
Porém, o retorno a valores primordiais indicava uma evolução na
concepção da forma e a revolução na mentalidade: de Paris a Berlim, de Munique
à Barcelona os valores de uma sociedade burguesa em vias do colapso passavam
a ser questionados.
Como sintetiza Berdiáev:
A luta entre a Rússia e a Europa, entre o Oriente e o Ocidente apresentava-se como a luta entre o espírito e a desumanidade, entre a cultura religiosa e a civilização sem religião. Queriam acreditar que a Rússia não seguiria pelo caminho da civilização, que ela teria o seu próprio caminho, seu próprio destino, e que nela ainda seria possível uma cultura com base religiosa, uma cultura espiritual genuína. Na consciência russa, esse tema estava proposto de modo muito agudo. Mas era ele estranho à cultura ocidental [...]? O aparecimento de Nietzsche está ligado à consciência aguda desse tema, fatídico para a cultura ocidental. A nostalgia de Nietzsche pela cultura
157
trágica, dionisíaca, é uma nostalgia que aparece na época da civilização triunfante. [...] A revolta apaixonada de Léon Bloy contra
era uma revolta contra a civilização. Todos os católicos franceses simbolistas e românticos fugiram para a Idade Média, para a longínqua pátria espiritual, para se salvarem da nostalgia mortal provocada pela civilização que triunfava. Esse voltar-se dos ocidentais para épocas culturais passadas ou para culturas exóticas do Oriente significava a revolta do espírito contra a transição definitiva da cultura para a civilização [...].124
Na Rússia, nos anos anteriores à Revolução de 1917, a esse desejo de
resgatar a essência criativa da cultura redescoberta nas origens populares
somava-se um forte sentimento nacionalista capaz de banir das salas de
concertos a execução de peças de compositores estrangeiros até o século XIX tão
cultuados como Beethoven e Bach.
O interesse pelos impulsos originais levou muitos círculos artísticos pelo
mundo a se interessar pela produção de alienados mentais e de crianças.
Exposições foram organizadas pelos futuristas russos com mostras de desenhos,
poemas e textos infantis que eram expostos lado a lado com a produção destes
artistas (muitos dos poetas e artistas da vanguarda russa eram inclusive
colecionadores de desenhos e textos infantis). Alguns intelectuais apropriaram-se
em suas pesquisas poéticas dos desvios da linguagem infantil, a exemplo de
Roman Jakobson, que em conjunto com Nikolai Trubetskoi estabeleceu as bases
de uma nova disciplina científica, a fonologia, e anos adiante, em Estocolmo,
ainda foi capaz de contribuir de maneira inovadora com sua pesquisa linguística
sobre a afasia e a relação desta com os processos de construção da linguagem na
infância.
124 BERDIÁEV, Nikolai, Vontade de Vida e Vontade de Cultura. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N., Tipologia do simbolismo nas cultura russa e ocidental, São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 266.
158
Em Vitebsk, uma Comissão para a preservação dos Monumentos
Artísticos e Antiguidades da Provincia de Vitebsk, coordenada pelo pintor Romm
reuniu esforços para o levantamento e pesquisa histórica de produções da cultura
popular e folclórica local. Uma expedição liderada pelo escritor S. Anskii
(pseudônimo de Chloime Zanvl Rappoport, 1863-1920) no ano de 1912-1913
torno de 800 melodias musicias, 2000 fotografias da vida cotidiana e antiguidades
artísticas, e em torno de 1 125
Como expõe Joseph Frank126, Roman Jakobson (que dominava
aproximadamente vinte línguas, incluindo todas pertencentes ao grupo eslavo,
todas as românicas e grande parte das de origem germânica) em sua investigação
sobre a função dos sons e as raízes comuns de diferentes troncos linguísticos foi
quem conseguiu se aproximar do ideal poético de transformação sonora e
morfológica das palavras e criação de uma linguagem universal almejada por V.
do
próprio Jakobson, amigo de juventude do poeta.
Ainda segundo Frank:
[...] Jakobson conseguiu (ou menos para sua própria satisfação, se não para a de linguistas de outras convicções) elaborar doze oposições binárias que são suficientes para analisar todas as línguas conhecidas e que podem ser consideradas universais linguísticos. Exemplos dessas oposições são vocálico versus não vocálico, tenso versus frouxo e grave versus agudo, que são definidos em termos de seus correlativos acústicos na produção da fala. 127
125 RGA, f.2307, op.3, d. 68, l.6º apud SHATSKIKH, Aleksandra, Vitebsk: The Life of Art, New Haven and London: Yale University Press, 2007, p. 245. 126 FRANK, Joseph, Roman Jakobson: The Master Linguist. Publicado originalmente em New York Review of Books. 1984-1986, Nyrev, Inc. In: FRANK, Joseph, Pelo Prisma Russo-Ensaios sobre Literatura e Cultura, São Paulo: Edusp, 1992 [primeira edição 1989]. 127 Idem, pp. 8,9.
159
Contudo, nos grandes centros culturais da Europa Ocidental as origens
haviam de ser importadas, o desenvolvimento econômico e industrial obrigava os
artistas a sair em jornadas pelo mundo. Opostamente, na Rússia, a pureza
original encontrava-se logo ao lado, dentro de algum monastério, guardada no
interior das datchas.
Matisse, que teve uma estadia russa no ano de 1911, por ocasião da
instalação de seus dois painéis Danse e Musique na mansão do colecionador de
arte Sierguéi Chtchukin relata ter ficado profundamente impressionado pela arte
dos ícones. Matisse recomendava a seus colegas ocidentais que visitassem a
Rússia e conhecessem os ícones, uma arte que havia encontrado algo que ele
A revelação, portanto, veio do Oriente. Foi mais tarde que essa arte me tocou e compreendi a pintura bizantina (A cruz bizantina, a imaginação e a razão)*, diante dos ícones em Moscou. A gente se entrega melhor quando vê os esforços confirmados por uma tradição, por antiga que seja. Ela ajuda a saltar o fosso.128
No entanto, na Rússia do início do século XX, esse movimento ganhou
uma coloração nacionalista através da retomada de valores internos da cultura
popular e religiosa russa, a exemplo do trabalho de artistas como Mikhail Larionov,
Natália Gontcharova e Kazímir Maliévitch.
Larionov e Gontcharova foram os primeiros a encontrar um
denominador comum entre as pesquisas plásticas da vanguarda (com particular
interesse no trabalho de Gauguin) e a arte popular russa. Para tal, eles adotaram
deliberadamente em suas pinturas as cores, os padrões geométricos, os modos
estilizados e a ausência de perspectiva cônica tão características da arte popular
russa e do ícone.
128 MATISSE, Henri, O Caminho da cor. In: MATISSE, Escritos e reflexões sobre a arte, São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 227. *Nota de Matisse em Matisse-em-France, Aragon, 1971.
160
Nem mesmo alguém como Tatlin, que ao retornar de sua estadia
parisiense por volta de 1914, onde esteve em contato com as obras de Pablo
Picasso, pôde ignorar a força dos ícones ao expor seus primeiros contrarrelevos
de canto na mesma exposição em que Maliévitch apresentou obras suprematistas.
Ainda que de natureza significativamente distinta, o interesse pelas
formas originais da cultura nacional também é visível na pesquisa dos futuristas
russos, que no desejo de romper com os cânones e concepções tradicionais dos
altos círculos artísticos, organizaram exposições de arte popular e retiraram da
tradição popular a matéria primordial de muitas de suas pesquisas poéticas e
linguísticas.
Como aponta Joseph Frank:
O folclore era também muito popular entre os futuristas, que viam a glossolalia de algumas seitas religiosas russas como precursora
tinha estudado exemplos da épica oral russa com membros do Círculo Linguístico de Moscou já em 1915, e continuou a fazê-lo nos anos seguintes. Em 1929, escreveu um artigo, O folclore como Forma Específica de Criação , argumentando contra o uso de categorias tiradas da tradição literária escrita para analisar a literatura oral.129
Como é possível constatar através de muitas de suas entrevistas, R.
Jakobson sempre reconheceu a grande importância do contato que teve, ainda
jovem, com os artistas do Futurismo russo, destacando não apenas seus laços de
amizade e admiração por V. Khlébnikov, mas também a proximidade que teve
com artistas como Vladímir Maiakóvski, Kazímir Maliévitch, Mikhail Larionov e
Natália Gontcharova.
Em uma entrevista concedida a David Shapiro no início da década de
1980, Jakobson relata ter feito planos para uma viagem a Paris com Maliévitch, 129 FRANK, Joseph, op.cit., p. 11.
161
em 1914. Esse desejo de Maliévitch de viajar pela Europa é conhecido por meio
de sua correspondência com o compositor e amigo Mikhail Matiuchin, embora o
projeto tenha falhado por conta do início da Primeira Guerra Mundial.
Conforme o relato de Jakobson:
Desses pintores que são bem conhecidos, um dos primeiros com quem entrei em contato foi Maliévitch. Ele queria que eu fosse com ele a Paris, porque ele não falava francês, língua que eu falava desde a infância, e também porque eu estava teoricamente muito orientado na época. Ele queria que eu fizesse uma exibição de seu trabalho lá, explicando e interpretando suas pinturas.130
Essa proximidade, tanto de ordem pessoal quanto de orientação
teórica, mostra como Jakobson, em um artigo publicado em Moscou, no número 1
de Gazeta futuristov (Jornal dos Futuristas) em 18 de março de 1918 foi capaz de
da abstração, pesquisando novas formas para a alma de ferro-concreto de nossa 131.
Jakobson, no entanto, não era o único do grupo interessado nas
pesquisas de Maliévitch. No ano de 1919, o poeta formalista Viktor Chklóvski
132, referindo-se à Teoria do elemento adicional em
pintura desenvolvida por Maliévitch nos anos vinte.
Essa teoria estabeleceu algumas trocas com a escola literária formalista
e tinha entre uma de suas finalidades, demonstrar a existência e a diferença entre
130 JAKOBSON, R., Art and Poetry: The Cubo-Futurists. In: BARRON, S. e TUCHMAN, M., The Avant-Garde in Russia 1910-1930: New Perspectives, Massachusetts: Los Angeles County Museum of Art, 1980, p. 18. 131 JAKOBSON, Roman apud NAKOV, Andrei, -garde russe, Paris: Fernand Hazan, 1984. 132 ZHADOVA apud CHEETHAM, Mark A., Past to Present - A Diagnosis of Recent Abstraction. In: Abstract Art Against Autonomy Infection, Resistance and Cure since the 60s, New York: Cambridge University Press, 2006, p. 9.
162
elementos formais através dos quais seria possível determinar a filiação de uma
obra a uma corrente pictórica específica, como o Cubismo, o Futurismo, o
Suprematismo e outras.
Enquanto membros do grupo de críticos formalistas de Leningrado, V.
Chklóvski e Iúri Tinianov defendiam ideias no campo da poesia e da linguagem
que também estavam muito próximas a algumas das concepções estéticas não-
objetivas de Maliévitch.
Chklóvski, por exemplo, em enunciações apresentadas pela primeira
vez em 1914, envolvendo o conceito de ostranenie (que pode ser traduzido
litera
diferentemente da linguagem cotidiana - centrada na intenção de transmitir uma
mensagem - determinadas transformações e deslocamentos existentes no verso
poético tinham o poder de fazer com que o leitor percebesse a materialidade das
palavras, como se fossem proferidas e ouvidas pela primeira vez, ganhado não
apenas o frescor perdido, mas libertando o ouvinte à percepção de novas formas
interpretativas e sensíveis da linguagem.
Jakobson, em um texto intitulado Do realismo artístico cita uma
passagem que ajuda a exemplificar tal conceito:
O que é verde e está pendurado na sala? Bem, é um arenque Por que não tinha lugar na cozinha.
Por que verde? Foi pintado. Para que seja Este desejo de tornar a adivinhação
mais difícil, esta tendência a dificultar o reconhecimento, tem por consequência acentuar o novo traço, o epíteto original. Dostoiévski escrevia que, em arte, para mostrar o objeto, é preciso proceder através do exagero, deformar a sua aparência precedente, colori-lo como se dá cor aos preparados para observá-los no microscópio. Colorimos o objeto diferentemente e pensamos: ele se tornou mais sensível, mais visível, mais real. O cubista multiplicou o objeto
163
sobre o quadro, mostrou-o de diferentes pontos de vista, tornou-o mais palpável. 133
É igualmente possível ver o desenvolvimento desse conceito em um
texto de V. Chklóvski publicado em Moscou no ano de 1925 e no qual afirmava
que a ruptura de uma determinada sequência lógica contida na linguagem
corrente seria capaz de promover a
mesmo em uma publicação póstuma de M. Bakhtin (Estética da criação verbal - 1979), na qual o autor aponta que seria necessário ao poeta destruir as imagens
costumeiras das coisas, olhando-as de novo, operando inesperadas justaposições
dos objetos, recriando elos semânticos a fim de se obter um novo sentido para as
velhas palavras, coisas e conceitos.
Em um de seus textos, Jakobson fala sobre esses anos formadores e
reconhece a profundidade teórica dos trabalhos que foram desenvolvidos pelos
artistas de vanguarda:
Experimentos de tal importância como a pintura abstrata não-zaúmni), ao cancelar o
objeto representado ou designado, levantam agudamente o problema da natureza e da importância dos elementos que exercem função semântica nas figuras espaciais, de um lado, e na linguagem, do outro.134
Essa época da qual Jakobson dá testemunho de primeira linha foi um
período de trocas entre as diferentes disciplinas, que possibilitou a criação de
teorias e projetos ímpares e foi potencializada não apenas por fatores históricos,
como a Revolução de 1917, mas também porque a Rússia foi capaz de produzir
uma safra de intelectuais que não só tinha conhecimentos técnicos e formação
133 JAKOBSON, Roman, Do realismo artístico. In: TOLEDO Dionísio de Oliveira (org. e apres.), Teoria da Literatura Formalistas Russos, Porto Alegre: Editora Globo, 1976, p. 126. 134 JAKOBSON, R., Selected Writings apud FRANK, J., op.cit., p. 7.
164
acadêmica do mais alto nível, mas também interesses e abordagens tão múltiplas
da existência, que dificilmente seria possível falar de algum desses intelectuais
sem ao menos ter de mencionar três ou quatro áreas do conhecimento das quais
façam parte suas pesquisas.
Idealizando uma arte que sintetizasse interesses espirituais, científicos
e filosóficos e conjugando os campos da literatura, pintura, escultura, teatro,
música e arquitetura, a vanguarda artística russa do início do século XX tentava
encontrar na unidade destas esferas do conhecimento o denominador comum
entre o individual e o universal.
Não é por acaso que em um dos textos presentes no Catálogo da exposição 500 Anos de Arte Russa, ocorrida na Oca, no ano de 2002, o poeta e
tradutor Haroldo de Campos nomeia
Em entrevista concedida ao curador geral da exposição, Nelson Alfredo
Aguilar, o escritor e tradutor Boris Schnaiderman e a historiadora Cristina Dunaeva
fornecem uma aproximação dessa característica tão particular e fundamental à
compreensão da cultura russa:
Bóris: [..] Na cultura russa isso é estranho, porque às vezes aparecem indivíduos e movimentos que conseguem reunir as coisas mais... a ciência, os conhecimentos mais díspares, como do grande pensador da cultura Iúri Lotman, que faleceu já na década de 1990, o que Iúri Lotman estudou é incrível, linguística, literatura, cinema, ela é teatro, é ciências naturais, ela é física, matemática. [...]
vsieliénskoie tvórtchestvo], com a ideia de universalismo. [...] Bóris: O que acontece é o seguinte, Gógol tem um texto em que ele aponta para o fato de que Púchkin sendo russo tinha a capacidade de assimilar as culturas dos mais diversos povos e depois devolver, ele disse que isso é uma característica do russo. Isso foi retomado por Dostoiévski no famoso discurso na inauguração do monumento a Púchkin em Moscou, pouco antes da morte de Dostoiévski, ele retoma essa ideia de Gógol que os
165
russos têm essa capacidade de assimilar o que os outros criaram e devolver de uma forma transformada.135
Esse espírito interdisciplinar, que possibilitava aos intelectuais russos
transitar livremente entre as mais diversas áreas do conhecimento, produzindo a
partir de um amálgama de culturas nacionais (dito no plural em respeito à
diversidade contida dentro do vasto território russo) e internacionais poderia aqui
ser lembrado quase que a exaustão, mas apenas para citar alguns exemplos, é
possível apontar Kazímir S. Maliévitch, que além de pintor foi também um teórico,
filósofo, poeta e professor; A. Krutchônikh, que apesar de conhecido enquanto
poeta, realizou estudos na Escola de Arte de Odessa ou D. Burliuk e Maiakóvski
que iniciaram seus estudos artísticos na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura
de Moscou. Também não é raro dentro da cultura russa a existência de casos
ainda mais admiráveis como o de Vassíli Kamiênski (1884-1961), que acumulava
as tarefas de poeta, pintor e aviador.
Dentre os poetas futuristas, V. V. Khlébnikov é talvez o artista que
melhor represente a peculiaridade desse modelo de erudição russa. Khlébnikov
frequentou (ainda que de maneira irregular) entre os anos de 1903 e 1908 o curso
superior de Física e Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de
Kazan. Após este período, pediu transferência do terceiro ano do curso de Física
para o primeiro ano de Sânscrito (Seção de línguas orientais) por volta 1909,
embora tenha abandonado a Universidade definitivamente no ano seguinte.
Essa espécie de desilusão pela Academia foi em certa medida comum
aos artistas do futurismo, que imersos em um furor criativo pareciam não
encontrar lugar no interior do ensino tradicional. Outro bom exemplo é o do poeta
Benedikt Konstantinovitch Livchits (1887-1938) que interrompeu diversas vezes
135 AGUILAR, Nelson A. (curadoria geral), 500 Anos de Arte Russa - State Russian Museum, São Paulo: Palace Editions/ Brasil Connects, 2002, p. 34.
166
seu curso de Direito, pausas frequentemente satirizadas pelo amigo futurista
David Burliuk (que também havia abandonado sua formação acadêmica).
Segundo Clark e Holquist:
ligações com a Faculdade Filológico-Histórica da Universidade de Petersburgo. Durante o período em que Bakhtin foi estudante, Maiakóvski, por exemplo, visitava com frequência o campus. Os aliados mais próximos dos futuristas, na faculdade, eram os
para Bakhtin em seus debates nos anos 20 sobre a natureza da literatura e da linguagem. A maioria das cabeças condutoras do formalismo de Petrogrado, tais como Tinianov, Eikenbaum, Chklóvski, Polivanov e Iakubínski, estudava ou ensinava na universidade local na época em que Bakhtin a frequentava. A corrente viera à luz mais ou menos às vésperas do ingresso de Bakhtin no curso universitário, num cabaré de vanguarda, em dezembro de 1913, quando Chklóvski leu um texto onde argumentava que a poesia futurista, ao chamar a atenção para os sons das palavras, as emancipava de sua significação tradicional e tornara possível percebê-las de novo. A função da arte em geral deveria ser a de forçar estas novas percepções da palavra e do mundo. Chklóvski publicou o trabalho em 1914 sob o título de Ressurreição da Palavra. O texto agitou os futuristas aos quais aderira, e também repercutiu entre alguns estudantes dos cursos de linguística. Eles decidiram formar um círculo chamado OPOYaZ ou Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética. O grupo, composto por estudiosos de filologia, converteu-se em movimento crítico plenamente caracterizado, denominado Formalismo Russo, com ramos em Moscou e Petrogrado.136
O contato com as ciências exatas iria fundamentar uma série de
complexas teorias e investigações numéricas que questionavam a noção de
acaso, tentando desvendar a constância de determinados padrões numéricos e
sua relação com datas e eventos históricos e astrológicos.
colegas, é um bom exemplo que ajuda a compreender as peculiaridades culturais 136 CLARK, Katerina e HOLQUIST, op.cit., pp. 54,55.
167
e a natureza da intelectualidade russa das primeiras décadas do século XX. Isto
porque, as pesquisas de Khlébnikov no campo da Matemática e Física nunca
ficaram contidas no âmbito das Ciências Exatas, mas perpassavam seus contos e
poemas formando um amálgama particular.
Conforme Bóris Schnaiderman, o conto Ka, escrito por Khlébnikov em
1916:
[...] é um dos seus escritos mais característicos, repassado das suas preocupações esotéricas e numerológicas, das suas reflexões sobre um mundo em que os tempos se misturam e os espaços se interpenetram, num escrito cuja própria estrutura acompanha um tempo pessoal e inconfundível. 137
Também em Khlébnikov, não seria possível subestimar a importância
e a riqueza de sua formação inicial em contato com o pai, pedagogo e ornitólogo,
além de prefeito do vilarejo de Tundútov, na região de Astrakã, onde o poeta
nasceu. Sua mãe era alguém de considerável cultura e que pôde introduzir o
artista no mundo da música, literatura e história universais. As condições materiais
de sua família também possibilitaram que ele e seus irmãos recebessem desde
muito cedo a atenção de excelentes tutores, fazendo com que Khlébnikov fosse
apto a ler em russo e francês desde os quatro anos de idade. A presença de um
pai ornitólogo, uma mãe musicista e uma formação bem fundamentada em língua
estrangeira certamente forneceram as bases para suas grandes capacidades
linguísticas. Seu interesse por Zoologia, comprovado pela redação de artigos
Tentativa de criação do conceito de ciência natural ou Sobre o
cuco da região de Kazã , e pela expedição científica que supervisionou na região
do Ural, também podem facilmente ser associados ao estreito contato com a
natureza que teve durante a infância.
137 SCHNAIDERMAN, Bóris, O mundo precisa e Khlébnikov! In: KHLÉBNIKOV, Velimir, Ka [tradução do russo e organização de Aurora Fornoni Bernardini]. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 81.
168
A questão central é perceber o quanto todos esses dados biográficos,
inclusive suas estadias em Moscou, Kharkov e Astrakã, sua passagem
desajustada pelo exército, ou ainda a companhia dos irmãos Burliuk, Krutchônikh,
Maiakóvski, Guro, Matiuchin, Maliévitch e Kamiênski são essenciais para
estabelecer a abrangência e as múltiplas possibilidades criativas de sua obra, não
incorrendo o leitor no erro, ainda bastante comum, de acreditar que seus escritos
seriam fruto de uma percepção pré-dadaísta do mundo, destituído de lógica ou
sentido racional.
Compreender a complexidade de um artista como Khlébnikov exige do
leitor, para dizer o mínimo, não apenas um grau apurado de sensibilidade, mas
também obriga os intelectuais mais céticos a abandonar supostas perspectivas
privilegiadas de mundo protegidas pelo discurso científico, demonstrável em
fórmulas e experimentos. Em última instância, este é um aspecto fundamental à
compreensão da sensibilidade de toda uma época e, em particular, do grupo de
artistas do qual Maliévitch fazia parte.
Mais uma vez, como aponta Bóris Schnaiderman:
Iúri Tinianov mostrou muito bem que, ao contrário da noção consagrada ele deslocou em poesia a ênfase do som (como faziam os simbolistas) para o sentido. Toda sua obra é carregada de sentido. Os sons, mesmo quando não pertencem a palavras existentes, estão completamente semantizados. Isto se refere, em específico, à
zaúm) de Khlébnikov.138
Ou como disse T. Todorov a respeito das investigações sobre o acaso
ou de uma nova ordem racional e lógica, presentes tanto nas pesquisas
matemáticas, quanto linguísticas de Khlébnikov:
138 SCHNAIDERMAN, Bóris, op.cit., p. 80.
169
[...] o importante não é, entretanto, o tempo ou o espaço, mas
finalidade primeira é denunciar o assim chamado acaso, mostrar que não há nada de fortuito, que o arbitrário nada mais é que uma relação ainda ignorada. A harmonia universal reina; o homem deve honrá-la com um cálculo generalizado que revelará suas regras. As leis do mundo coincidem com as leis do cálculo .139
Outro relato bastante interessante sobre a figura do poeta é construído
por M. Bakhtin, em 08 de março de 1973, em conversas gravadas por Viktor
Duvakin.
Ainda que o estudioso afirme não ter conhecido Khlébnikov
pessoalmente, a descrição oferece ao leitor um registro da polissemia e da
polifonia cultural presentes nas propostas dos futuristas russos:
D [Duvakin]: E o que o interessava em Chlebnikov [Khlébnikov]? B [Bakhin]: Tudo. Também a própria forma ou estilo do seu pensamento me interessa. Isso, ele era efetivamente uma pessoa profundamente carnavalesca. Mas profundamente carnavalesca. O carnavalesco nele não era exterior, não era teatral, máscara exterior, mas uma forma interior, a forma interior seja das suas emoções subjetivas, seja do seu pensamento verbal, etc. Ele não podia se enquadrar em nenhum âmbito, não podia aceitar nenhuma ordem estabelecida. Entendia perfeitamente que coisa significa, digamos, realidade, pensamento real. Não se pode acusá-lo do fato de que fosse míope e jogasse... Não. D: Mas era muito abstrato. B: Não. Não. Entendia perfeitamente a realidade e entendia as pessoas. Entendia tudo isso perfeitamente, mas se quiser, fazia abstrações de tudo isso, mas não a favor de uma ideia qualquer abstrata, como os outros, não. Nele, as suas ideias tinham um caráter simbólico, ou melhor, um pouco místico. Eram uma espécie de visão profética. Só que era possível de algum modo fazê-las entrar no âmbito do misticismo vigente e amplamente desenvolvido na época. D: Simbolista. B: Sim. Não... simplesmente não era possível de modo algum incluí-lo ali. Tratava-se de uma visão mística particular. Isso. Um
139 TODOROV, T. Le nombre, la letter, le mot. In: Poétique n. 1, Paris, 1970 apud BERNARDINI, A.F., op.cit., p. 44.
170
misticismo sem misticismo, digamos. Mas místico. Era místico... ele pensava realmente em categorias muito amplas, cósmicas, mas não abstrato-cósmicas. D: Isso não ficou totalmente claro para mim. B: Ele sabia, e isso lhe era característico por isso digo que era muito carnavalesco em um nível profundo sabia, por assim dizer, fazer abstrações de tudo aquilo que era particular e sabia perceber um todo infinito, ilimitado, um todo, digamos, planetário. Era um dos presidentes do Globo terrestre... E do Universo inteiro. Sabia de qualquer forma, de algum modo interiormente, seja experimentar, seja transformar tudo isso em palavras. Mas eram palavras, certamente tais que, se entendidas como referidas às expressões comuns, digamos, como palavras sobre dados particulares, sobre experiências particulares, sobre pessoas particulares, então não seriam entendidas verdadeiramente. Não se pode entendê-lo. Mas, se de qualquer forma, conseguimos entendê-lo entrando no fluxo do seu pensamento cósmico, universal, então tudo isso se torna compreensível e extremamente interessante. Era uma pessoa extraordinária, extraordinária mesmo.140
Sob esse aspecto, há que se destacar outra característica fortemente
presente na cultura russa do final do século XIX e início do XX, a de que, muito
além de pensar os problemas artísticos em um quadro estritamente formal,
estético ou cultural, os artistas da vanguarda russa passaram a buscar um
distanciamento das teorias e da produção intelectual ocidental, ampliando e
aprofundando essas discussões em conformidade com as preocupações internas
e inserindo-as em um contexto científico, filosófico e político.
Em entrevista concedida a R. Georgin, Roman Jakobson destaca
alguns pontos da questão:
Aque a poesia futurista russa [...] , e esse florescimento da moderna poesia
russa seguiu notáveis desenvolvimentos da pintura moderna, em particular o pós-impressionismo francês e a realização que o
A cultura russa desse tempo, como Jakobson bem observa, tinha adquirido uma significação verdadeiramente
. Com efeito, os russos começavam a pensar teoricamente 140 BAKHTIN, Mikhail; DUVAKIN, Viktor, op.cit, pp. 127,128.
171
sobre esses problemas de forma muito mais ampla que seus confrades europeus, e a situá-los num vasto quadro científico-filosófico. [...] A vanguarda francesa dos anos vinte, disse ele, seguiu em grande parte o mesmo caminho artístico que os russos;
se li , as aspira
141
A múltipla formação e diversidade de interesses dos artistas da
vanguarda russa potencializaram a concretização de tal projeto, fato que foi
catalisado por desdobramentos históricos como a contratação pelo governo
bolchevique de artistas das mais variadas tendências para formar os quadros
docentes e de funcionários dos institutos estatais de ensino artístico, dos museus
de cultura artística ou ainda para atuar na construção de monumentos, na
elaboração de espetáculos ou na decoração de espaços públicos.
A sistematização do conhecimento artístico, ou em outras palavras, a
adoção de critérios científicos à produção, investigação, fruição e ensino das artes
fez parte da política bolchevique de controle da produção artística e, embora com
divergências conceituais e metodológicas entre os diferentes institutos, foi adotada
por instituições como os Svomas - Svobodnye gosudarstvennye khudojestvennye masterskie (Ateliês livres de arte do Estado), os Vkhutemas Vyschie gosudarstvennye khudojestvernno-tekhnitcheskie masterskie, 1920-1928 (Ateliês
superiores de arte e técnica do Estado), o Vkhutein Vyschii gosudarstvennyi khudojestvenno-mekhnitcheskii institut, 1929-1930 (Instituto estatal superior de
arte e técnica); o INKhUK Institut khudojestvennoi kultury, 1920-1922 (Instituto
de cultura artística de Moscou); o Ginkhuk Gosudarstvennyi institut khudojestvennoe kultury, 1925-26 (Instituto Estatal de cultura artística de
Petrogrado); a Rakhn Rossiiskaia akademiia khudojestvennykh nauk, 1921-1925
(Academia russa das ciências da arte), renomeada Gakhn Gosudarstvennaia 141 GEORGIN, R., Entretien avec Roman Jakobson. In: GEORGIN, R., Jakobson, pp. 11,12 apud FRANK, Joseph, op.cit. p. 6.
172
akademiia khudojestvennykh nauk, 1925-1930 (Academia estatal das ciências das
artes).
Esses institutos tentavam atender às premissas do projeto artístico-
pedagógico da Izo - Otdel izobrazitelnykh iskusstv (Seção de Artes Plásticas do
Narkompros), que tinha enquanto metas a formação de novos artistas,
pesquisadores e docentes, a ênfase na formação técnica e na criação de
trabalhos no âmbito da arte produtiva e o estabelecimento de institutos voltados à
pesquisa científica da arte.
Contudo, essa ligação entre as artes e a ciências não implicava em
uma equiparação total de valores ou na suplantação de um conhecimento por
outro, mas sim na tentativa de dissipar a oposição entre os campos de saber por
meio da associação de modos diversos de percepção.
Nesse sentido, a proposta de integração entre todos os campos
artísticos (música, artes visuais, teatro, etc.) sem a distinção entre artes maiores
ou menores e a ligação desta nova concepção artística a uma abordagem
científica pode ser visto como parte de um ideal muito mais abrangente de
transformação da realidade, potencializado com o advento da Revolução.
Aquém desses fatores, é necessário ressaltar a importância das redes
de influência, ou seja, compreender quais eram os círculos de amizade, quem
frequentava quem, quem se correspondia com quem, qual a natureza dos debates
privados um passo antes de se tornarem teoria ou crítica publicada na imprensa
oficial.
Um dos exemplos notáveis desse tipo de convergência foi o contato de
K. Maliévitch com a artista Natália Davidova, que seria apenas mais um nome em
meio a tantos outros na Sociedade de Artistas Supremus, fundada em 1916
(formada por Maliévitch, Ivan Kliun, Mikhail Matiuchin, Aleksandra Ekster, Mikhail
Menkov, Vera Pestel, Liubov Popova, Olga Rozanova, Nadejda Udaltsova e
173
Aleksandr Archipenko), se não fosse pelo fato de ser sobrinha de Nikolai Berdiáev,
dado que mostra um ponto de ligação entre um dos filósofos mais importantes da
Geração ou do Século de Prata142 com a vanguarda artística russa. O chamado
círculo de Bakhtin pode facilmente servir de modelo a essa mesma questão.
Como apontam Katerina Clark e Michael Holquist (1984), o círculo de
Bakhtin não se constituia como uma organização rigidamente estruturada, mas
antes de tudo, como um grupo de amigos que tinha interesses comuns e se reunia
periodicamente para debater questões filosóficas a partir da sinopse ou resenha
preparada por um de seus membros. Essas discussões eram amplas o suficiente
para transitar entre a crítica literária, política, música, biologia ou a filosofia de
Kant, Bergson, Proust ou Freud, mas versavam acima de tudo sobre questões de
teologia.
Após se formar na Faculdade Filológico-Histórica no ano de 1918,
Bakhtin viveu por dois anos na cidade de Nevel, onde lecionou no curso ginasial
da cidade entre os anos de 1918 e 1920, mudando-se em 1920, para Vitebsk; a
até então provinciana cidade natal de Marc Chagall e onde o filósofo Nikolai Losski
havia realizado o ginásio muitos anos antes de se tornar professor de Bakhtin na
Universidade.
Quando se estuda um artista como Maliévitch, que não cita suas
leituras ou autores referenciais e, muito menos, escreve notas explicativas em
seus textos, saber que as discussões do círculo de Bakhtin concentravam-se
sobre temas teológicos e que o grupo esteve instalado em Vitebsk na mesma
época em que Maliévitch trabalhava com seu grupo suprematista Unovis,
142 -
lectuais nascidos no final do século XIX e que, durante as primeiras décadas do século XX e em meio ao fervor revolucionário foi responsável pelo que se costuma chamar de renascimento filosófico religioso russo, em oposição ao pragmatismo e às inclinações ocidentalizantes da intelligentsia russa do século XIX.
174
dedicando-se à redação dos tratados de maior ênfase filosóficos, torna-se um
dado valioso.
Em Vitebsk, como afirma Frank:
Bakhtin e seus amigos (o primeiro dos círculos que se formariam a sua volta) liam Kant e Hegel, santo Agostinho e Vladímir Soloviov e os livros de Viecheslav Ivánov sobre os elementos dionisíacos da religião grega, que apresentavam tão grandes e estranhas semelhanças com o Deus morrente do cristianismo.143
O interesse do grupo pela teologia estava obviamente em desacordo
com a ideologia marxista do partido e levantava suspeitas das autoridades.
Bakhtin, além de Gueórgui P. Fedotov, e outros membros do círculo faziam parte
do grupo Voskrescenie (Ressurreição):
contemplava algo como o ideal comunista e se baseava na concepção ortodoxa russa de sobornost um verdadeiro sentido de comunidad , cujos primeiros defensores russos [...] foram os eslavófilos.144
Essa orientação teológica de Bakhtin parece ter sido o fator
determinante de sua condenação a seis anos de trabalhos forçados nas ilhas
Solovetsk, na Sibéria (o que certamente teria lhe custado à vida, especialmente
por causa de suas precárias condições de saúde decorrentes da osteomelite) se
não fosse a ajuda de amigos, que a partir da influência de Aleksiéi Tolstói e
Maksim Górki, conseguiram que uma crítica favorável a seu livro sobre
Dostoiévski (Problemas da Poética de Dostoiévski), escrita pelo Comissário do
povo à instrução, Anatoli Lunatcharski, fosse publicada:
143 FRANK, J., Voices of Mikhail Bakhtin, publicado originalmente em New York Review of Books apud FRANK, J., op.cit, p. 22. 144 Idem, p. 23.
175
[...] como Lunatcharski tinha escrito um extenso tratado sobre Religião e Socialismo (1908), no qual havia identificado o marxismo como o verdadeiro cristianismo, ele teria sido especialmente receptivo às implicações ético-religiosas subjacentes às opiniões de Bakhtin.145
Contudo, Bakhtin teve que cumprir uma pena de quatro anos até agosto
de 1934, no Cazaquistão, não podendo ao final desta, participar de discussões
públicas ou retomar sua produção literária até a década de 1940, visto que ex-
condenados eram proibidos pelo regime stalinista de residir em grandes centros
urbanos como Moscou e Leningrado.
Mesmo após décadas de doutrinamento marxista, seria ingênuo ignorar
a potência e o profundo enraizamento da cultura religiosa na consciência dessa
nova intelligenstia e do povo russo.
Logo após a Revolução de 1917, em um primeiro momento de agitação
intelectual e social, estas discussões de caráter filosófico e teológico fizeram-se
presentes tanto nos grandes centros quanto nas pequenas localidades, a exemplo
de Nevel e Vitebsk. Esse breve período de abertura ideológica possibilitou a
proliferação de diversas manifestações e debates ligados à ortodoxia russa, às
doutrinas místicas, esotéricas, ao judaísmo e mesmo ao pensamento e filosofias
clássicas.
Em um ensaio de Nikolai M. Bakhtin (1894-1950), que relata uma das
reuniões ocorridas em casa de F.F. Zelínski, logo após a Revolução, o filólogo
escreve sobre as inclinações teóricas e a posição do grupo em relação aos
eventos de 1917:
Isso acon , em São Petersburgo, durante a revolução comunista. Em um pequeno e frio apartamento na isolada Vassiliévski, à luz de velas (porque
145 FRANK, J., op.cit., p. 23.
176
obviamente naquele dia não havia eletricidade), nós nos reuníamos em doze, juntamente com nosso professor, o professor Zelínski; todos nós conhecedores da língua grega, filólogos e poetas, éramos uma companhia que costumava reunir-se e discutir temas clá
, assim a chamávamos. Porque acreditávamos sermos os primeiros expoentes de um novo Renascimento, que teria chegado logo, um Renascimento russo, definitivo e capaz da suprema integração da consciência da vida helenística com o mundo contemporâneo. Porque, como todo o resto da Rússia, as aulas de filologia clássica não eram somente ensinamento, mas, além disso, um modo de reorganizar a vida. Também o estudo da língua grega era uma participação ao perigoso e emocionante complô secreto contra as próprias bases da sociedade contemporânea em nome do ideal grego. Entusiasmados com isso, nós então nos encontrávamos frente a eventos que pareciam colocar um fim às nossas esperanças. A Rússia estava claramente a caminho de algo completamente diferente do Renascimento Grego.146
Como apontam Clark e Holquist (1984), após a Revolução ocorreram
diversos debates públicos e privados que abordavam desde concepções ligadas à
doutrina marxista e ao ateísmo, quanto à existência de Deus, discussões sobre os
Evangelhos e sobre as crises na cultura e na religião. Entre seus participantes
encontravam-se destacados representantes bolcheviques e intelectuais de
tendência religiosa. O próprio Lunatcharski se envolveu com Viatcheslav
Ivanovitch Ivánov (1866-1949) em uma destas célebres discussões, ocorrida no
Museu Politécnico de Moscou.
Embora desde 1917 o governo bolchevique não tenha economizado
esforços no combate às atividades eclesiásticas e ao pensamento religioso
ortodoxo e o ateísmo fosse uma corrente que ganhava força no interior da Rússia
desde pelo menos a época de Dostoiévski, uma série de organizações religiosas
foi fundada em Petrogrado.
146 BAKHTIN, Nicolas, Lectures and Essays, Birmingham: University of Birmingham Press, 1963, p. 43 apud BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V., op.cit., p. 297.
177
Ao contrário do que se possa pensar, houve um grande renascimento
religioso no início do século XX, uma força que já estava em formação durante o
século XIX, mas que foi potencializada pela Revolução. Isto porque, essas
associações filosófico-religiosas eram movidas pelo mesmo sentimento de
transformação que eclodiu na sociedade pós-revolucionária.
Embora fossem absolutamente contrários ao ateísmo e ao niilismo
como forças destrutivas da moral e da conduta humanas, muitos membros de
grupos religiosos tinham a convicção de que seria possível integrar aos ideais
marxistas o pensamento cristão. Muitos filósofos de inclinação religiosa (alguns
destes eram inclusive padres ortodoxos, a exemplo de Pável Floriênski) estiveram
bastante inclinados nos primeiros anos às manifestações comunistas, pois viam
uma base comum destas correntes de pensamento com o utopismo cristão no
qual acreditavam, particularmente expresso por um sentimento anti-clerical e que
punha em destaque a não-distinção de classes e a construção de uma vida
comunal.
Os debates públicos sobre questões religiosas foram se tornando cada
vez mais clandestinos a partir de 1918, quando foi determinado o fechamento da
Academia Teológica Ortodoxa de Petrogrado pelos bolcheviques. Isto, no entanto,
não foi suficiente para cessar a ação dos pensadores religiosos.
Em 1918, Berdiáev fundou a Academia Livre de Cultura Espiritual de
Moscou, que teve entre seus palestrantes Aleksiéi Fedorovitch Losev (1893-1988),
Pável Floriênski e Mikhail Bakhtin. Mesmo em Petrogrado, um grupo de
professores universitários, a maioria integrante de uma organização denominada
Irmandade da Divina Sabedoria (ou Irmandade de Santa Sofia), se reuniu para
fundar um centro de estudos religiosos denominado Instituto Teológico. Entre os
membros da Irmandade estavam figuras como Lev Platonovitch Karsavin (1882-
1952) e Anton Vladímirovitch Kartachev (1875-1961), historiador e teólogo, que
também foi um dos dirigentes da Associação Filosófica Livre e depois da
178
Revolução de fevereiro, tornou-se ministro dos cultos e das confissões durante o
governo provisório, sancionando a separação da Igreja do Estado e defendendo a
tolerância de credo religioso aos hebreus e cristãos não ortodoxos.
No mesmo ano de 1918 (embora seu efetivo funcionamento só tenha
sido iniciado em 16 de novembro de 1919) foi fundada a Volfila - Volnaia filosofskaia assotsiatsiia (Associação Filosófica Livre), que existiu em Petrogrado
entre os anos de 1919 e 1924 (a Associação foi fechada em 04 de setembro deste
último ano). Esta era uma associação voltada ao estudo da filosofia das religiões e
de ideologias tão diversas quanto o marxismo, o anarquismo, o comunismo e a
Antroposofia, além de concentrar seus debates de caráter místico sobre a questão
da revolução espiritual no interior da sociedade socialista.
O grupo foi criado a partir da iniciativa do crítico Ivánov Vassiliévitch
Razumnik (1878-1946) e reunia intelectuais como os filósofos L. P. Karsavin,
Nikolai O. Losski, Sierguéi Alekseiévitch Askoldov (pseudônimo de S.A. Alékseiev,
1870-1945), os poetas Aleksander Aleksandrovitch Blok (1880-1921), Andréi Biély
(pseudônimo de Boris Nikolaevitch Bugaev, 1880-1934), o pintor Kuzma
Sergeevitch Petrov-Vodkin (1878-1939), o diretor da orquestra de teatro Marinski e
do Conservatório Musical de Vitebsk, N. A. Malko (1883-1961) e o ator e diretor
teatral Vsevolod Emilevitch Meierkhold (pseudônimo de Karl Kazímir Teodor
Maiergold, 1874-1940). Entre os palestrantes e conferencistas das audiências que
foram realizadas entre outras localidades na Casa das Artes e no Palácio de
Inverno é possível citar: L. V. Pumpiânski, J. M. Gravis, S. F. Platónov (1860-
1933), E. V. Tarle (1974-1955), F. F. Zelínski, E. I. Zamiátin (1884-1937), N.
Losski, entre outros.
Existiram ainda grupos religiosos não-oficiais como o Voskrescenie (Ressureição), o cisma josefita e a Irmandade de São Serafim, fundada em 1921
por S. A. Askoldov, que tinha entre seus membros os historiadores E. V. Tarle e
S. F. Platonov. Além disso, entre os anos de 1921 e 1922, muitos pensadores
179
religiosos continuaram defendendo seus pontos de vista em palestras públicas
realizadas na Casa dos Escritores e na Casa dos Eruditos.
Segundo pesquisas de A. Chatskikh (2007), outro integrante do círculo
de Bakthin que alcançou alta posição no interior de uma irmandade secreta, a
Ordem mística da Rosacruz (fundada em 30 de junho de 1907) foi o poeta,
historiador da arte, arqueólogo e escultor Boris Mikhailovich Zubakin (1894-1938).
Zubakin era integrante da maçonaria e conhecido por suas inclinações
místicas. Entre os anos de 1918 a 1920, trabalhou como instrutor no
Departamento de Educação Popular do Distrito de Nevel, dividindo seu tempo
entre Nevel, Vitebsk, Smolensk e Minsk. Durante os anos de 1920, ele teve como
secretária a escritora Anastasia Ivanovna Tsvetaeva (1894-1993), irmã mais nova
da poetisa Marina Tsvetaeva.
Sergei Eisenstein fornece um relato sobre o caráter ímpar de Zubakin:
Eu tive um encontro muito interessante aqui com o indivíduo mais incomum: o errante Arcebispo da Ordem dos Cavaleiros do Espírito... Para começar, ele vê cada um dos corpos astrais e, baseado nisto, pode dizer os pensamentos mais íntimos de uma pessoa. Todos nós fomos testemunhas disto. Agora nós ficamos até quatro ou cinco horas da manhã estudando livros que contém a sabedoria do antigo Egito, a Cabala, os Fundamentos da Alta Mágica e ocultismo... Que um grande número de palestras que ele proferiu para (uma riqueza de informações sobre os antigos Maçons, Rosacruzianos, magos Asiaticos, Egito, e recentes (pré-revolucionárias) sociedades secretas... [...] Seu conhecimento parece ser infinito...147
Esse panorama atesta a existência de variadas convicções religiosas e
ideológicas na época e a tentativa por parte desses intelectuais de fornecer uma
147 Carta de Sierguéi Eisentein enviada de Minsk para sua mãe, 20 de setembro de 1920. Cf. Andréi Nikitin, Tampliery v Moskve (Templários em Moscou). In: Nauka i religiia (Ciência e Religião), n. 6, 1992, p. 23 apud SHATSKIKH, Aleksandra, op. cit., pp. 295, 296.
180
alternativa espiritual à construção de uma nova sociedade em meio ao regime
socialista.
Grande parte desses indivíduos defendia a construção do socialismo
fundamentado em um senso de comunidade, no exercício do livre arbítrio e das
liberdades individuais, o que estava fortemente em acordo com o conceito
ortodoxo de sobornost.
Os contextos políticos desses anos são extremamente complexos, pois
se foram de prolífera produção nos campos das artes, da filosofia e da religião,
também marcaram o início de ações efetivas do governo contra os opositores
ideológicos do regime. Embora os anos entre 1928 e 1930 sejam bastante citados
como a época das piores perseguições contra a Igreja e as associações religiosas,
muitas ações foram realizadas já durante os anos vinte, como o fechamento do
Seminário Teológico de Petrogrado, em maio de 1923 e a fundação, em 1925, da
Liga dos Ateus Militantes.
Contudo, o ambiente cultural movimentado, tanto por debates filosófico-
religiosos, quanto marxistas, forneceu as bases à construção de variados
discursos e iniciativas. Um olhar sobre as palestras públicas, os cursos para
operários e uma variedade de atividades educacionais realizadas pelo círculo de
Bakhtin mostra como estes intelectuais estavam dispostos a partilhar suas visões
utópicas, mas também pô-las em prática na vida cotidiana. Em Nevel, por
exemplo, essas iniciativas incluíram a participação da população na encenação de
uma peça de Sófocles.
De acordo com o exposto em uma das entrevistas concedidas a
Duvakin, Bakhtin e seus companheiros organizaram em 18 de junho de 1919 a
Noite em Memória de Leonardo da Vinci , na qual discorreram sobre os contextos
culturais e históricos da obra do artista, sua visão de mundo e sua relação com as
ciências. Além de discussões de textos de grandes pensadores da filosofia
kantiana e neokantiana, estes debates públicos envolviam temas como a
181
literatura, a economia, a cultura e a Revolução russas, incluindo também
discussões nas áreas de Biologia e Medicina. Como exemplos destas iniciativas,
em 27 de novembro de 1918, ocorreu um debate entre Bakhtin e o bolchevique
Gutman intitulado Deus e o Socialismo , no Clube Popular. No início do mês de
janeiro de 1919 aconteceu a palestra Cultura e Revolução e em 18 de maio do
mesmo ano, iniciou-se um prolífero debate intitulado tica do Cristianismo , que
teve como palestrantes Pumpiânski, Bakhtin, Kagan, Gurvich e Gutman.
É interessante notar que Bakhtin assimilou a seus estudos filosóficos e
literários algumas das características mais determinantes do cristianismo russo.
Como alguns autores discutem, uma dessas características relacionava-se à ideia
de que Cristo teria desistido de sua condição divina para compartilhar da frágil
condição humana, ou seja, um modelo que privilegiava os valores compartilhados,
em oposição aos individuais. Neste sentido, eles apontam como Cristo forneceu a
Bakhtin o modelo cenótico (do grego kénosis: esvaziamento) de amor, humildade,
caridade e piedade.
Isso se relaciona com o fato de Bakhtin conceber a linguagem como
meio de expressão da consciência individual (individualidade potencializada pelo
conceito de liberdade presente no pensamento cristão) e ao mesmo tempo como
eixo de ligação entre o indivíduo e o outro, o que em uma concepção ideal,
deveria simular o diálogo celeste entre homem e o divino:
[...] em Cristo encontramos uma síntese - única em sua profundidade [...] pela primeira vez surge um eu-por-mim-mesmo infinitamente aprofundado, entretanto, não um frio eu-por-mim-mesmo, mas um eu-por-mim-mesmo ilimitadamente bom em
. Cristo, assim, forneceu o modelo ideal de todas as relações humanas e, o que eu devo ser para o outro, Deus é para mim .148
148 BAKHTIN, M., Estetika Sloviesnovo Tvortchestvo (Estética da Criação Verbal), 1979, pp. 51, 52 apud FRANK, J., op.cit., pp. 25, 26.
182
Embora seja problemático estabelecer correlações absolutas entre o
círculo de Bakhtin e Maliévitch e seu grupo suprematista (visto que Maliévitch
deixa claro em cartas a Guerchenzon seu embate teórico com membros do
círculo, como L. V. Pumpiânski, V. A. Reidemeister e P. N. Miedvédiev) é
absolutamente provável que o artista teve contato com os principais debates
filosóficos na Vitebsk da época.
Catarina Diéguot retoma um interessante relato de Bakhtin sobre
Maliévitch, assim como as impressões da época sobre a lendária figura do artista
frente a seu grupo de alunos, em Vitebsk:
Os alunos de Maliévitch o idolatravam. Mas ele não tinha dúvida Eu sou o começo - dizia ele pois na minha criação criam-
se mundos . E falava ainda: A superfície da Terra não está organizada. Os mares irão cobrir as montanhas. Quero juntamente com essa natureza criar uma natureza suprematista, construída
E quando o retorquiam: O que então Vocês irão se
adaptar a ela, do mesmo modo que à natureza de Deus . E adaptaram-se. Viviam em seus mundos de quadrados e planos, inventavam junto com ele um novo céu e uma nova terra. Usavam roupas brancas como o professor - bordadas nas mangas com quadrados pretos. Os mesmos quadrados pretos que eram as estampas protocoladas de seus sonhos. Sobre seus encontros com Maliévitch, Bakhtin lembrou-se: Devo dizer, absolutamente todos seus alunos o adoravam. [Maliévitch] estava em busca de apóstolos e os descobriu: em Moscou, em São Petersburgo, em Vitebsk, em Smolensk. Em seu caixão (Lissitski compôs para ele um caixão chique branco, suprematista)149, os apóstolos faziam uma choradeira e ainda
Nós não somos atores na vida. Somos testemunhas. Sem ele, rastejamos no limo e na miudeza da rua. Nós estamos perdendo mais que um pai. Ele é a consciência. A pureza superior. O homem ígneo. Profeta. Messias. Até Tatlin, o adversário e não menos profeta, que certa vez viveu junto a Maliévitch na mesma casa, quando os convidados se reuniam, apontou o dedo para o teto e, não sem malícia, mas
149 O caixão foi executado por Nikolai Suétin, que foi aluno de Maliévitch.
183
também com respeito, atentou: Ei! Você está ouvindo? Ele anda .150
Os relatos de M. Bakhtin sobre esse período são de grande interesse,
pois evidenciam tanto o círculo de amizades de Maliévitch, como tornam possível
o levantamento de hipóteses mais sólidas sobre a natureza e a origem de algumas
das influências teóricas e visões de mundo do artista.
Abaixo, Mikhail Bakhtin em um trecho da terceira entrevista concedida a
Viktor Duvakin (8 de março de 1973) recompõe um extenso relato sobre tal
contato:
D [Duvakin]: E em Vitebsk por quanto tempo o senhor ficou? B [Bakhtin]: Bem, Vitebsk era um lugar interessante. Por quê? Porque ali vieram morar muitos representantes, e representantes muito importantes da inteligência de Petrogrado. Abriram um Conservatório Musical muito bom, de bom nível. Eu ensinava ali naquele Conservatório. Na liderança, como diretor do Conservatório, estava Malko. Malko diretor de orquestra, já tinha sido diretor da orquestra do teatro Mariisnkii. [...] O conservatório era simplesmente brilhante... Depois tinha uma Escola de Arte. O diretor da escola de arte era ninguém menos que Kazímir Malevich [Maliévitch] em pessoa. D: Mesmo! B: Sim... o fundador do suprematismo. D: E esse período era aquele do Quadrado preto, não é? B: Sim, talvez. Isso. Era o diretor da escola. O lugar era suntuoso. Ali uma vez tinha morado um banqueiro importante, Vichiniak. Bem, a sua casa construída de modo muito original, foi colocada pelo Estado à disposição da Escola de Arte. A escola de Arte... Malevich era a sua alma. Uma pessoa extremamente interessante. D: O senhor conhecia Malevich? B: Sim, o conhecia. Naqueles anos eu e ele éramos íntimos; quando estávamos juntos em Vitebsk éramos muito amigos. Precisamente. Minha mulher gostava muito dele gostava muito de Malevich. E quase sempre passávamos o tempo com ele, lá, naquela escola. B: [...] Minha mulher era de Vitebsk. Então, ele se ocupava também de astronomia.
150 DEGUOT, Ekaterina, Posle gueometrii (Depois da geometria). Disponível em: http://www.itogi.ru/paper2000.nsf/Article/Itogi_2000_12_07_185038.html. Acesso em 12/12/2008.
184
D: Malevich? B: Malevich, sim. Tinha um pequeno... D: Não será por influência de Chlebnikov [Khlébnikov]? B: ...telescópio... Em parte, tinha influência de Chlébnikov, claro... Então à noite dedicava-se à contemplação do céu estrelado etc. e dedicava-
muito bem e de maneira convincente a sua concepção artística como pintor e como pensador muito original, não obstante tivesse se formado sozinho. Tinha uma sólida formação artística, mas não acadêmica... era, sem dúvida, muito preparado, uma pessoa verdadeiramente de grande cultura... D: E então tinha já algumas teses suas sobre a estética? B: Sim, e as exprimia constantemente. Tinha também escrito um pequeno opúsculo, que depois sumiu de circulação. D: Bem, ele em essência, é o fundador sobre o solo russo daquilo que agora chamamos abstratismo [sic]? B: Sim, mas a sua foi uma forma singular de abstratismo [sic]. D: Em que consiste o suprematismo eestá para aquilo que é superior, para excelente? B: O suprematismo? Não, aqui se entende, digamos, o mais avançado, o último no campo da arte. D: O supremo. B: Sim, supremo, suprematismo. E é preciso dizer que, diferentemente dos abstratistas [sic] ele, todavia... sob esse aspecto continuava a tradição de Chlebnikov aquela do universal... D: Ah... aquela do internacionalismo e da universalidade... B: O universal, exato. O macrocosmo, o universo eis o que lhe interessava. D: ... o envolvia... B: É por isso que, em essência, a nossa arte trabalha em um cantinho muito restrito, em um espaço de três dimensões. Esse cantinho, esse espaço estreito, bem... é uma pequena retirada e nada mais. Mas o grande universo não entra aqui, e não pode... não se pode fazê-lo entrar. E, estando nesse cantinho, não se pode compreender o Universo. E então, Malevich tentava penetrar nele. Lembro-me do nosso primeiro encontro. Fui com alguém, não lembro mais, de propósito para conhecê-lo e a sua escola. Ele nos acolheu muito cordialmente, nos conduziu pelas salas, dando-nos explicações. E eu me lembro da sua primeira explicação. Aproximou- Bem, eis uma escultura. Aqui é como se existissem três dimensões, assim... . Mostrava tudo isso... Sabia, além do mais, fazer tudo isso de forma muito concreta Mas bem, eu, o artista, que criei tudo isso, onde estou eu? De fato, estou fora dessas três dimensões que representei. Vocês diriam que também eu encontro-me nas três dimensões. Mas certamente tratam-se de outras três dimensões, de outras. Eu
185
as contemplo e, como artista que contempla, situo o meu olho ao lado das três dimensões, em uma quarta dimensão, se as contamos aritmeticamente. Mas não se podem contar aritmeticamente. Não se pode dizer: três dimensões. São trinta e três, trezentas e trinta e três, etc. são inúmeras. E bem, a essas dimensões, dimensões do mundo, cósmicas, universais, eu, como artista, dirijo somente o meu olho. Eu mesmo, como ser humano, certamente... Vocês podem me atingir, etc. mas experimentem atingir-me como artista... O meu olho está fora em relação ao de
D: O meu olho com o qual eu vejo, está, em relação a vocês, fora das possibilidades de influência... É nesse sentido? B: Sim, exato. Vocês não podem me fazer nada. Bem, e tudo isso era de alguma forma muito convincente, porque era uma pessoa... Não se colocava absolutamente à mostra, não era cheio de ares, nada. Era sinceramente convencido daquilo que dizia, era um pouco maníaco. A propósito, acabou em um manicômio. D: Sim? B: Morreu em um manicômio em extrema pobreza... D: Onde? B: Acho que em Moscou. D: Não foi embora? B: Não, não foi embora. Mas as suas obras estão por todo lugar. Quando estava vivo ainda, na América, as suas construções, ou seja, os tais supremos fizeram um enorme sucesso. Só que, como ele mesmo dizia, esses supremati [Planites] na América não eram colocados assim como deveriam estar: deveriam ficar na horizontal, e ao invés os colocavam, assim, na vertical. Bem, dizia que em todo o caso, certamente, os [Planites] permanecem [Planites], e que essa posição não destrói o sentido artístico deles; mas, todavia, o seu pleno significado, digamos, revela-se somente na posição correta. Então, na América, naquela época... ele conseguiu um enorme sucesso. D: Já então? B: Já então, já então. Bem, as suas construções na América iam bem... as usavam... D: E aqui? Então, ensinava ali, e depois? B: Viveu na miséria e foi para um hospital psiquiátrico. Logo depois da saída de Vitebsk. Não sei que doença tivesse, não sei. Talvez quem sabe... Naquele tempo... D: Não entendiam. B: ... uma psicose aguda... uma neurose aguda, não uma psicose, talvez. Além disso, tinha definhado. D: Tinha definhado? B: Então, quando vivíamos em Vitebsk, não, porque ali tinha uma boa alimentação, podia-se comprar tudo, à vontade. Ele era, diria, uma pessoa robusta, uma pessoa robusta... Tinha uma personalidade... resoluta.
186
D: Era mais ou menos da geração de Maiakóvski? B: Sim, era de 1890. Sim, não era velho. Talvez fosse, porém, um pouco mais velho, agora não me lembro. Sim, eu não sei exatamente a sua idade. Era muito mais velho. Além disso, é preciso dizer que os seus alunos e alunas o idolatravam, completamente, o adoravam. E todos eles abandonavam-se, digamos, à contemplação semimística das profundezas do Universo etc. Todos, nas suas pinturas, saíam do espaço convencional. Todos acreditavam religiosamente nele. Era efetivamente assim, repito, aqui não havia hipocrisia em jogo. D: Bem. Que inesperado retrato! B: Sim, veja bem. Era, em geral, uma pessoa muito interessante e era apaixonante falar com ele. Ele era, além disso, absolutamente desinteressado do lucro, totalmente. Não corria atrás nem do sucesso, nem da carreira, nem do dinheiro, nem do bem estar nada disso lhe servia. Era, se prefere, um asceta, apaixonado pelas suas ideias. Era religiosamente convencido de estar descobrindo a nova perfeição, de conseguir penetrar, indagar, em tais profundidades do Universo, onde ninguém havia conseguido olhar.151
Tal relato é de grande interesse, especialmente se for levado em
consideração que raramente Bakhtin (que era uma pessoa bastante reservada,
apesar de inscrito em um círculo muito amplo de contatos) afirmava possuir
relações íntimas ou de efetiva amizade com figuras de sua época, tal como
declara em relação a Maliévitch. Também é notável a grande estima que Bakhtin
dedica deiramente de
roferido por alguém da
erudição de Bakhtin, contrariando toda uma crença fundada pela historiografia
europeia de que Maliévitch seria uma figura inculta, possuidor de um pensamento
pouco polido ou ainda desmistificando a imagem de Maliévitch, na Escola de
Vitebsk, como uma figura autoritária.
Contudo, percebe-se que Bakhtin não tinha conhecimento total da real
trajetória de Maliévitch, em especial, após sua saída em Vitebsk, lapsos de
informação bastante comuns nesse período e cada vez mais acentuados durante 151 BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V., op.cit., pp. 138-142.
187
o terror stalinista. Maliévitch nunca ocupou oficialmente a cadeira de diretor da
Escola de Arte de Vitebsk, embora sua influência não apenas no Instituto, mas na
cidade fosse grande, em especial depois da partida de Chagall. Também não
esteve internado em um sanatório, embora a informação não seja totalmente
infundada.
No verão de 1921, o grupo Unovis recebeu uma carta dos artistas
alemães. Não se sabe ao certo se esta carta ou alguma outra denúncia teria
provocado a prisão de Maliévich, em 05 de agosto deste mesmo ano, pela Cheka,
de Vitebsk. Porém, sabe-se que ele foi liberado pela polícia secreta,
aparentemente pelo fato de estar portando uma carta de A. Lunatcharski.
Existe uma correspondência nos arquivos de Vitebsk enviada por A. O.
Tshokher para Moscou relacionada ao ocorrido:
Em cinco de agosto foi preso o professor dos Ateliês de Arte; o renomado pintor Suprematista Maliévitch. O Executivo dos Trabalhadores da Província pede que imediata ação seja tomada para esclarecer a situação e libertar Maliévitch sob fiança devido ao seu estado de saúde.152
Por sua vez, Maliévitch escreve em uma carta em resposta a
Lunatcharski, enviada a Moscou, em outubro de 1921:
Parece que eu acabei em um porão ao invés de um sanatório; o que quase me sufocou. No entanto, felizmente, sua carta sobre colocar-me no sanatório, encontrada durante a prisão, me salvou. Se eu estou sendo preso agora, então a Cheka, realmente, não tem nada a fazer.153
152 GAVO, f. 101, op. 1, d. 39, p. 113. Telegrama publicado por A. G. Lisov. In: VAKAR, I. A.; MIKHIENKO, T. N. (ed.), Malevich o sebe, Sovremenki o Malevich: Pisma, Dokumenty, Vospominaniia, Kritika, Moscou: RA, 2004, vol. 1, p. 457. 153 Carta publicada por I. A. Vakar com comentário de G. I. Kazovskii e I.A. Vakar. Ibid, p. 150.
188
Embora não se aplique diretamente ao caso de Maliévitch, F.
Olejnovitch aponta em suas memórias os códigos criados pelas famílias para
comunicar os acontecimentos em suas correspondências, que visavam driblar a
censura da polícia política. Assim:
Teu irmão se recupera
l a seu -
154
Apesar desse ocorrido, Maliévitch responde aos artistas holandeses já
na data de 07 de setembro de 1921. Em 1922, a obra Quadrado negro aparece na
capa da Revista De Stijl (5, n. 9). Mais adiante, em 1924, após receber nova
correspondência com fotografias de trabalhos de alguns artistas, Maliévitch
publica sua resposta no periódico Mundo da Arte: Carta aberta aos artistas
, na qual discorre sobre as diferenças entre o
Suprematismo e o Neoplasticismo, embora posicione o movimento De Stijl como
uma espécie de desdobramento das pesquisas do Unovis.
Contudo, se existia a proximidade de ideias e interesses entre
intelectuais residentes em Vitebsk, em sentido contrário, deve-se ressaltar a
existência de visões antagônicas entre o grupo de Maliévitch e integrantes do
chamado círculo de Bakhtin.
Em uma carta enviada de Vitebsk a Moscou, na data de 21 de
dezembro de 1919, por Maliévitch ao amigo e filósofo Mikhail O. Guerchenzon,
alguém que tinha contato com um círculo de intelectuais e filósofos da mais alta
relevância (como N. Berdiáev, N. Losski, P. Floriênski, V. Ivánov), pode-se
perceber justamente a oposição de pensamento e os interesses conflitantes do
154 Cf. Víctor Gallego. In: FLORENSKI, P., op.cit., pp. 53,54.
189
artista em relação a alguns membros do grupo de Bakhtin, com o qual Maliévitch
dividiu uma mesa de conferências públicas:
Escrevi-lhe sobre minha palestra incompreensível para o auditório. Um pouco dela você lerá no meu livrinho Dos novos sistemas na arte [...]. Após a palestra me tranquei no quarto como se me escondesse da multidão que buzinava nos meus ouvidos. As palavras, claras para mim, não queriam sair. Seria melhor abrir meu cérebro na praça para que cada um pudesse descobrir o que é compreensível e necessário para si. Sentia que falava com mais sinceridade do que meus adversários, mas eles perceberam somente meu rosto nervoso e a gesticulação. Eu fervia, pois os adversários jogavam em mim volumes inteiros do pensamento de grandes nomes. Como foguistas jogando lenha, apoiavam-se neles, e eu sem nenhum à mão. [...] Há alguns dias vieram novamente até mim, pedindo-me para participar da disputa. Fiquei surpreendido, mas compreendi que lhes era necessário. [...] Fui. Tinha ainda mais gente nas salas e nas ruas. Os adversários rodeavam-se de livros, a batalha foi longa. [...] Os adversários (fugitivos de Petrogrado, professores e apolonistas) riram de mim. Atacaram com a última perfeição, com Bergson e outros. Assim, tinha que enfrentar os gladiadores desconhecidos e não convidados. E declarei que fui convidado pelos fulanos, e não por Bergson, Kant e Schopenhauer, e que tinham que sair dos resguardos. Tive de despi-los, pois pareciam repolhos escondendo os miolos.155
Os opositores de Maliévitch nesta ocasião foram o professor da
Universidade de São Petersburgo, Gruzenberg; o historiador da música, filósofo e
professor da Universidade Proletária Tschokher; além de três membros do círculo
de Bakhtin: o historiador da literatura especializado na cultura europeia, Lev
Vassilievitch Pumpiânski; o historiador Valerian Adolfovitch Reidemeister (Veiger
von Reidemeister), que era professor na Universidade Proletária e no Instituto
Popular de Educação; e o historiador da literatura e reitor da Universidade
Proletária de Vitebsk, Pável Nikolaevitch Miedvédiev.
155 MALIÉVITCH, K. Dos novos sistemas na arte [tradução de Cristina Dunaeva], São Paulo: Hedra, 2007, pp. 99,100.
190
Segundo pesquisas de A. Chatskikh (2007), a partir da leitura de jornais
da época, Maliévitch realizou uma palestra em 17 de novembro; Romm
apresentou uma conferência sobre El Greco em 20 de novembro e na primeira
dezena do mês de dezembro ocorreram dois debates. De acordo com os jornais,
esse conjunto de debates foi uma demonstração da polarização entre a
intelligentsia, adeptos da estética simbolista e os artistas de vanguarda,
representantes do que havia de mais inovador no campo da arte contemporânea:
O debate iniciou com o artista Romm, que ofereceu uma visão global das tendências básicas e movimentos pictóricos e sua evolução histórica. Romm foi seguido pelos camaradas Tschokher, Reidemeister e Miedvédiev, que tentaram demonstrar que as mais novas tendências em arte, especialmente o Cubismo e o Futurismo, apesar de seus clamores para ter uma base revolucionária, proletária, em verdade, apenas oferecem combinações interessantes de forma; para as grandes massas essa arte produz apenas sentimentos de tédio, espanto e descontentamento. As massas liderando a luta pelos ideais socialistas requisitam da arte novas revelações e novas e brilhantes cores. Cansado de viver dentro dos limites estabelecidos pelas leis da História, a humanidade agora se esforça para alcançar a profundidade das coisas, entender o significado da História e as últimas conquistas artísticas. Entretanto, é inútil buscar estas últimas conquistas no Cubismo e Futurismo. Eles não podem comunicar para nós o trabalho do mundo, elas são incapazes de criar esta grandeza na arte que nós chamamos de transformação da vida. 156
Ainda que entre os grupos artísticos e literários houvesse disputas e
divergências é notável ter havido na cidade de Vitebsk uma proliferação de ações
artísticas, publicações de textos e manifestos, que seguramente não teriam
alcançado o mesmo espaço em Moscou, onde já se configurava o monopólio dos
grupos de tendência produtivista e uma inspeção mais rígida dos órgãos de
controle do governo.
156 In: Disputa v iskusstve (Debate na arte), Isvestia, n. 276, 6 de dezembro de 1919, p. 4 apud SHATSKIKH, Aleksandra, op. cit., p. 71.
191
Em meados dos anos vinte, devido às péssimas condições materiais
em que trabalhavam os artistas em Vitebsk, tanto o grupo de Maliévitch quanto o
círculo de Bakhtin transferiram suas atividades para Leningrado.
A atuação do próprio Bakhtin é um exemplo dessa configuração política
e geográfica empreendida pelos grupos artísticos naquele momento. Como
marxista-leninista convencional, fez todo o possível para evitar o conflito com o 157
Essa atitude estratégica foi adotada por Maliévitch, como também por
uma série de grupos que discutiam sobre temas ligados à religião ou às filosofias
contrárias ao partido, como forma não abertamente hostil de resistência ao cerco
político e ideológico do regime bolchevique.
3.3. Notas sobre a filosofia russa
Como os estudiosos do assunto costumam afirmar, a criação de uma
escola filosófica russa teve sua origem nas últimas duas décadas do século XVIII,
tendo seu maior desenvolvimento já no século XIX, quando, por volta de 1870,
surgiram as primeiras obras de Vladímir Soloviov, iniciando-se assim, um segundo
período no qual os filósofos russos passaram a trabalhar a partir da construção de
sistemas propriamente ditos.
A questão da inexistência de uma filosofia russa, apontada pelos
críticos ocidentais até, pelo menos os anos de 1950, aparece constantemente
fundamentada sobre a assertiva de que os filósofos russos, a partir de métodos
157 FRANK, J., op. cit., p. 19.
192
ditos subjetivos, não foram capazes de fundamentar ontologicamente uma teoria
do conhecimento.
Essa percepção talvez possa ser explicada pelo fato de que muitos dos
filósofos russos foram também homens dedicados à literatura, à teologia, ao
direito ou às ciências exatas, fato que mais parece contribuir à originalidade e a
própria capacidade de seus filósofos de inserir os problemas teóricos em um
quadro histórico, potencialmente prático e não restrito a uma teorização inerte.
Longe de ignorar os principais debates filosóficos do Ocidente, muitos
autores irão defender a ideia de que a intelligentsia russa sempre teve uma
maneira particular de interpretar as influências estrangeiras frente às questões
nacionais. Este fato é verificável no desenvolvimento do trabalho de autores como
Vissarion Bielínski (1811-1848), Aleksandr Herzen (1812-1870), Mikhail Bakúnin
(1814-1876), notórios expoentes do movimento ocidentalista russo do século XIX,
como ainda no de figuras como Nikolai Gavrilovitch Tchernichévski (1882-1889),
Nikolai Aleksandrovitch Dobroliúbov (1836-1861) e Dmitri Ivanovitch Píssariev
(1840-1868), defensores do pensamento niilista e materialista na Rússia.
Como aponta J. Frank:
Os ocidentalizantes [...] começaram com alguma forma de romantismo social ou filosófico, mergulharam em Hegel, seguiram
inspirada pelos hegelianos de esquerda e particularmente por Feuerbach, voltaram-se para uma ação política a fim de transformar o mundo à luz da razão consciente. O ideal, tal como no jovem Marx, era fundir os resultados da filosofia alemã com o ativismo político francês. Bakúnin fixou-se na fase negativa dessa dialética e cunhou o famoso slogan que adornou as paredes da Sorbonne em 1968: Die lust de Zerstörung is auch eine schaffende Lust [A paixão pela destruição é também uma paixão criativa].158
158 FRANK, J., op. cit., p. 70.
193
Embora as ideias da corrente ocidentalizante tenham historicamente
tornando-se mais conhecidas e tenham fornecido algumas das bases teóricas ao
socialismo soviético e ainda que existam divergências conceituais internas entre
as próprias propostas dos representantes do eslavofilismo é importante perceber
que a corrente eslavófila foi responsável por uma ampla restruturação da
consciência e da identidade cultural russa, fomentando um campo de discussões e
fornecendo um modelo alternativo aos esquemas europeus que vinham desde a
época de Pedro I, o Grande (1672-1725), sendo largamente implantados na
estrutura sociocultural russa.
Pedro I, que reinou entre 1682 até sua morte em 1725, foi quem
arquitetou a mudança da capital de Moscou para São Petersburgo. Moscou
representava as antigas tradições e costumes, enquanto Petersburgo tornou-se o
emblema de uma nova nação que voltava suas costas ao passado medieval e
bizantino e olhava para o futuro de uma Rússia efetivamente inserida na Europa.
Pedro tornou-se conhecido por seu desprezo pelas tradições russas expressas em
seus ícones, sua arquitetura bizantina, sua língua; em contrapartida, interessava-
se pela ciência, pela cultura e tecnologias ocidentais, tendo realizado várias
viagens para países como Inglaterra e Holanda em busca de novos
conhecimentos a serem aplicados na industrialização e arquitetura de sua nação.
A partir destas viagens, Pedro contratou uma série de arquitetos, engenheiros e
artistas vindos da França e Itália, no início do século XVIII, uma mão de obra
qualificada para realizar seu projeto de construção da nova e barroca capital: São
Petersburgo.
Catarina II, a Grande (1729-1796), uma princesa alemã que se casou
contribuiu profundamente com a tradição de colecionismo na Rússia, adquirindo
cerca de quatro mil pinturas da arte ocidental, entre obras de artistas como
Rembrandt e Rafael, além de possuir uma grande biblioteca; coleções alojadas na
Galeria Hermitage, construída a pedido da imperatriz.
194
Todo esse movimento de renovação e substituição das tradições
eslavas por uma cultura voltada aos valores ocidentais pode ser sintetizado pelo
lema de Pedro I:
Nicolas Zernov (1963) escreve sobre esse brusco movimento de
ocidentalização da cultura russa:
Não havia nada fundamentalmente incompatível entre as culturas russa e ocidental, pois ambas eram enraizadas na revelação Cristã; a tensão entre elas foi resultado de um longo isolamento, suspeitas e mal-entendidos. Isto poderia ter sido resolvido gradualmente por um tratamento sábio e paciente dos pontos de contensão, mas isso não era o modo de agir do impaciente czar. Pedro odiava e temia o czarismo de Moscou e não perdia uma oportunidade de humilhar àqueles que permaneciam fiéis a este último. Ele ordenou que os nobres russos raspassem suas barbas, o que era considerado um ato de degradação, e a fumar tabaco, o que a Igreja ensinava como um hábito impuro. O monarca déspota encontrou uma satisfação maliciosa em forçar seus súditos a se rebaixarem diante de estrangeiros rudes e arrogantes. Assim Pedro construiu seu Império sobre uma base dividida. Ele destruiu a homogeneidade da cultura Russa. Para seus seguidores ele abriu o novo mundo do pensamento político, arte e ciência ocidentais. Ele alargou seus horizontes e deu a eles um gosto por conforto e até luxúria; mas esses frutos claramente proibidos da civilização europeia foram comprados pelo preço da apostasia vinda da sagrada tradição da ortodoxia russa.159
corruptor do Ocidente, personificado em Pedro, mas também traz à tona a questão
das diferentes polarizações (ocidentalista, eslavófila e eurasianista) nas
concepções e disputas teóricas sobre as origens e a construção da cultura na
Rússia.
159 ZERNOV, N., op. cit., pp. 8, 9.
195
Seriam os pensadores russos menos russos quando discutem questões
que em sua origem vieram de debates ocidentais do que os pensadores
eslavófilos? O modo particular dos russos de pensar os problemas universais
(considerando-se que o nacional está contido no universal) já não seria por si só
uma demonstração legítima da existência de uma cultura e um modo de pensar
próprios
parece ser tão arbitrário quanto, por exemplo, ignorar historicamente a
interpretação e as concepções russas da teoria marxista convertidas na forma do
marxismo-leninismo.
O questionamento dos modelos ocidentais fundou as bases do
pensamento eslavófilo do século XIX. Piotr Tchaadáiev, filósofo e amigo do poeta
Aleksander Serguêievitch Púchkin (1799-1837) que foi declarado louco, sendo
confinado em prisão domiciliar pelo regime de Nicolau I, defendeu (anos depois do
fato) em seu livro Apologia de um Louco
relação às outras nações europeias teria representado, em verdade, um ganho
histórico para o povo russo. Os intelectuais adeptos desta concepção
consideravam mais vantajoso não seguir o Ocidente, pois a falta de
desenvolvimento havia preservado a Rússia daquilo que estes intelectuais viam
s países do mundo
já havia sucumbido. Esse raciocínio retomava as contradições e embates que
existiram dentro da cultura e do próprio pensamento da intelligentsia russa desde
pelo menos o século XVIII.
Antes das reformas operadas por Pedro, a partir de elementos
provindos da civilização ocidental, a Rússia sempre foi caracterizada por uma
série de tradições fortemente ritualísticas. Havia distinção e significados religiosos
ou sagrados em relação a vários aspectos da vida, desde seus modos, costumes
e objetos cotidianos. Opostamente, o Cristianismo ocidental era visto como uma
forma degradada, corrupta ou mesmo herege em comparação a sua vertente
ortodoxa, não apenas naquilo que diz respeito à fé e aos cultos religiosos, como
196
também no que se refere aos modos cotidianos e à visão de mundo. Finalmente,
esse discurso também estava ligado à ideia messiânica da Rússia
O choque entre o desejo de continuidade desse conjunto de tradições
religiosas seculares, representado pelos staroviery (antigos crentes) e a
introdução de novos rituais propostos pelo Patriarca Nikon (1605-1681) entre os
anos de 1652 e 1666 provocaram o raskol (cisma) religioso no interior da Igreja
Ortodoxa, movimento acompanhado por uma série de manifestações de fanatismo
que precederam as reformas de Pedro.
A. V. Kartachev, em seu livro Istoriia Russkoi Tserkvi (História da Igreja Russa, vol. II, Paris, 1959) relata as consequências desastrosas resultantes desse
conflito, como os suicídios em massa cometidos pelos fiéis, que preferiam atear
fogo em si mesmos a se corromperem com os novos rituais adotados pela Igreja.
Em 1672, duas mil pessoas atearam fogo nos próprios corpos; em 1676, o número
foi de mil novecentos e vinte e nove suicídios; em 1679, mil e setecentas pessoas
morreram e, em 1687, o número de mortos chegou a dois mil e setecentos.
Andrezej Walicki em A History of Russian Thought (Califórnia: Stanford,
1979), por sua vez, retoma a tese de Tchaadáiev sintetizando-a na ideia de que os
russos tiveram a chance de fazer uso da história e da experiência dos povos
ocidentais, mas guiados pelas necessidades nacionais puderam evitar os erros
destas outras nações - nada também que um livro como Arquipélago Gulag,
de Aleksandr Soljenitsin, publicado no Ocidente no ano de 1973, não possa
converter em farrapos.
As discussões eslavófilas do século XIX e a retomada desse conjunto
de questões por intelectuais do século XX são abordadas aqui, não por acreditar
que elas sejam o reflexo mais primordial do pensamento russo, mas porque
parecem fornecer uma chave de compreensão, inclusive para tutorear o olhar
estrangeiro, em relação a algumas particularidades da cultura russa.
197
Diversos estudiosos irão afirmar que algumas das contribuições mais
complexas da cultura e da filosofia russas, em especial a partir do XIX, são
provindas desses pensadores eslavófilos e aparecem constantemente ligadas a
uma concepção ortodoxa de sua religião ou a uma concepção religiosa do destino
da Rússia.
Nicolas Zernov inicia o prefácio de seu livro exatamente com essa
questão:
Os russos pertencem àqueles povos cujas características nacionais e o senso de unidade tem sido formado pelo seu pertencimento a uma mesma Igreja. Embora seu isolamento geográfico e as calamidades de sua história tenham contribuído também para sua convicção de que eles formam uma comunidade igualmente distinta de seus vizinhos orientais e ocidentais, ainda sim o fator decisivo continua sendo a Ortodoxia (Pravoslavie) de sua religião.160
A questão religiosa é crucial à compreensão da cultura russa ao longo
dos séculos, pois em muitos sentidos ela funciona como uma espécie de
amálgama ao qual está atrelada uma série de problemas determinantes, dentre
eles, a questão moral da existência do homem, as preocupações com os
problemas sociais e históricos das nações, as questões provindas da doutrina
cristã envolvendo os conceitos de liberdade, de união e fraternidade entre os
homens; problemas estes que em alguns aspectos iriam desembocar
historicamente na própria constituição do socialismo soviético.
Também seria necessário ressaltar que o sentido de unidade dado pela
religião dentro do extenso território russo é relevante tanto do ponto de vista
histórico quanto filosófico
ou
160 ZERNOV, N., op. cit., p. VII.
198
A origem dessa crença encontra-se nos escritos do monge Philoteu
realizados por volta do século XV. De acordo com as especulações desta teoria,
após as quedas de Roma e Constantinopla, Moscou e por extensão toda a nação
russa, enquanto povo eleito e detentor da verdadeira fé cristã iria assumir o
A partir dessa ideia, desenvolveu-se no sécul
ideia estava relacionada a uma tentativa de unificação do reino celeste com o
reino material, um pacto religioso-político estabelecido entre Igreja e Estado, que
tomava forma através do regime autocrático.
Essa ligação entre a figura política e o poder religioso na Rússia é
analisada em detalhes por Mikhail Tcherniávski, no segundo capítulo de seu livro
Tsar and People: Studies in Russian Myths161:
A equação inconsútil entre o soberano russo e o objetivo divino tornou-se a fonte do messianismo russo no momento em que as
embora seus governantes não fossem mais príncipes-santos, mas czares imperiais, eles eram invariavelmente caracterizados com a
Imperador secular em vez de Czar, causou uma terrível crise na autoconsciência russa. A religiosidade messiânica, previamente vinculada à pessoa do governante, foi transferida para a noção de
corporificação da sagrada Rússia.162
Essa ideia esteve inserida no processo de secularização da consciência
russa, tendo como consequência a cristalização da retórica nacionalista, a qual se
somava ainda a um caráter fortemente moral provindo das ideias ortodoxas. Mas
embora essas crenças existissem desde o final do século XV, é comum que os 161 CHERNIAVSKY, Michael, Tsar and People: Studies in Russian Myths, New Haven, Conn.: Yale University Press, 1961. 162 FRANK, J., op. cit., p. 68.
199
estudiosos atribuam a Piotr Tchaadáiev a formulação mais clássica desse tipo de
messianismo que considerava a Rússia a nação capaz de resolver os problemas
sociais e aperfeiçoar os modos de vida coletivos existentes em sociedades mais
antigas.
Dostoiévski fornece mais uma vez a síntese profunda dessa concepção:
De fato: o destino russo é pan-europeu e universal. Chegar a ser russo verdadeiramente talvez signifique tão-somente ser irmão de todos os homens, homem universal, se assim posso exprimir-me. A divisão entre eslavófilos e ocidentais nada mais é do que o resultado de gigantesco mal-entendido. O russo verdadeiro interessa-se tanto pelo destino da Europa, pelo destino de toda a grande raça ariana como pelo da Rússia. Quem quiser aprofundar a história da Rússia desde Pedro, o Grande, verá que isso não é simples sonho meu. Ficará comprovado o nosso desejo, o desejo de todos, de união com todas as raças europeias no caráter de nossas relações com elas, no caráter de nossa política de Estado. O que tem feito a Rússia durante dois séculos senão servir mais à Europa do que a si mesma? [...] Os povos da Europa ignoram até que ponto os amamos. Todos os russos do futuro verão que se mostrar verdadeiramente russo importa em procurar um terreno de conciliação para todas as contradições europeias; e a alma russa o proporcionará, a alma russa universalmente unificadora que pode englobar no mesmo amor todos os povos, nossos irmãos e pronunciar, afinal, as palavras das quais resultará a união de todos os homens segundo o evangelho de Cristo.163
[...] a missão característica da Rússia consiste na adoção dos interesses intelectuais de toda a Humanidade. [...] Afirmo e repito que qualquer poeta, filósofo ou filantropo europeu é sempre compreendido e aceito na Rússia mais completa e mais inteiramente do que em qualquer outra parte do mundo, excetuando-se o próprio país.164
A capacidade da cultura russa de integrar o pensamento abstrato com a
vida prática, a busca de uma unidade do espírito com todos os aspectos da
163 DOSTOIÉVSKI, Fiódor, M., Discurso a respeito de Púchkin (pronunciado a 8 de junho de 1880 perante a Sociedade do Amigos da Literatura Russa). In: DOSTOIÉVSKI, FIÓDOR, M., op.cit., p. 197. 164 DOSTOIÉVSKI, Fiódor, M., A morte de George Sand (1876). Ibid, p. 77.
200
realidade e da conduta humana constitui aquilo que se costuma nomear como
idade Esse desejo de integrar diferentes campos do pensamento
e da vivência (a própria filosofia russa reflete essa tentativa de congregar os
princípios religiosos e científicos em um único corpo) foi o que possibilitou a
constituição de um utopismo que iria servir de modelo aos pensadores e artistas
russos do século XIX e XX. Mas esse
do homem) aparece ligado a dois conceitos fundamentais: a ideia de vsieliénskoie tvórtchestvo (criação universal) e de sobornost (união/comunidade/conciliaridade).
Alguns historiadores discutem sobre essas questões mostrando como
as doutrinas ortodoxas da sobornost e da criação universal tiveram sua origem
nos próprios meios coletivos e no uso comum das terras, ou seja, na unidade
social básica da vida russa conhecida como obchtchina.
A obchtchina era uma forma de organização da vida fundamentada em
tradições seculares que excluíam a ideia de individualismo e que existiu antes da
sociedade russa se voltar a valores e modos de vida ocidentais a partir das
reformas de Pedro. Durante o século XIX, por exemplo, esses mesmos ideais
foram retomados tanto pelos populistas russos, como pelos socialistas.
Embora não fossem nacionalistas dentro das mesmas concepções
místicas ou messiânicas que os eslavófilos, os populistas russos, movidos pelos
ideais de justiça, igualdade social e oposição à burguesia ocidental tomaram a
defesa de formas internas de organização coletiva como o mir.
O mir funcionava como uma espécie de associação de camponeses na
qual as terras cultivadas eram distribuídas periodicamente aos membros da
comunidade e as decisões eram tomadas em conjunto. Este tipo de associação
também serviria de modelo aos socialistas durante o século XX, embora os
resultados tenham levado os camponeses a um estado de miséria e exploração
semelhante ao da época da servidão.
201
O sentido mais profundo dessas questões pode ser compreendido por
meio de escritos de Pável Floriênski como O Pilar e o Fundamento da Verdade
(1914) e Iconostase (1922). Neles, seu pensamento está marcado pelos aspectos
utópicos presentes nas formas comunais de organização dos primeiros cristãos.
Contudo, avesso aos postulados clericais, Floriênski defendia tanto as
características comunais da vida cristã, quanto um sentido mais imediato da
presença de Deus no interior do homem. Para tanto, ressaltava a necessidade de
buscar, além dos sentidos, dos aspectos corpóreos e da percepção da matéria, a
realidade espiritual superior.
De maneira semelhante ao que já havia sido formulado pelos
pensadores eslavófilos, Floriênski se apoiava sobre a mesma utopia cristã que
vislumbrava o momento posterior no qual o homem seria capaz de superar o
incessante fluxo do tempo, das necessidades e dos eventos, que o levariam ao
profetizado . Floriênski, por sua vez, fazia uso deste discurso no
intuito de justificar o desaparecimento de todas as dicotomias terrenas entre
individual e social, de maneira que, por meio da transcendência, o homem
alcançasse um estado de união com o Absoluto.
Em A Preguiça como Verdade efetiva do homem (1921) e Deus não está destronado (1922), Maliévitch dá continuidade a esse mesmo discurso
utópico e sua crítica aos esquemas impostos pelo regime soviético - sem abrir
mão de colorações do messianismo russo. Neles, o artista escreve sobre o
conhecimento que se estende para além da matéria, dos sentidos e das relações
de trabalho:
O que pensa então alcançar a fábrica-usina? Alcançar pelo trabalho sua libertação do trabalho [...]. Se através do trabalho o homem se liberta do trabalho, a igreja, através da oração deve no reino dos céus libertar o homem ou a alma da oração, pois quais orações podem ser feitas quando tudo já foi alcançado e reunido a Deus? Ainda mais se tomarmos em consideração que a alma é uma parcela de Deus. Assim no futuro do homem não haverá fábricas, nem usinas; ele vai se livrar de atingir o bem; as fábricas
202
e as usinas não fabricarão mais os bens, pois o bem único é alcançado na perfeição ou Deus. [...] Assim a fábrica e a usina se preparam para conduzir o homem em um novo reino mecânico, depois de ter trilhado seu corpo como sua alma em uma vestimenta nova ou em equipamentos novos; e nesse reino o homem será representado como representou hoje a forma da alma no homem. A igreja conduzirá a alma no reino celeste; nestes dois estados o pensamento continuará a agir, mas então o pensamento não terá poder sobre toda coisa, algumas excitações restarão fora dele. E isto será o indício de que a proximidade de Deus não está longe. Pois o pensamento termina seu trabalho físico e começa o reino que não pensa, chega ao repouso, quer dizer, Deus liberado de toda a criação, encontrando-se no repouso absoluto. Nada necessita mais de Deus, pois Deus está nele. [...] A necessidade de entrar no repouso de Deus é uma condição obrigatória, pois se Deus não tivesse partido para o repouso, ele seria obrigado a construir sem fim; e porque continuar a criar significaria não ser perfeito, acima do qual não há nada. Depois de ter criado o
-nada do repouso 165
El Lissitzki em um texto intitulado Suprematismo do mundo-construção
publicado no Almanaque Unovis, n. 1, estende esse discurso messiânico ao
afirmar que o
.
A utopia do mundo sem-objeto, do estado de repouso e perfeição que
representa o anunciado pelo Suprematismo, aponta para a superação do
pensamento fundado sobre a realidade objetiva e das relações ordinárias
(trabalho, oração, regimes políticos, etc.).
165 MALÉVITCH, K. S., p. 176-178.
203
3.4. Notas sobre o colecionismo e os museus de arte na Rússia
Sierguéi Ivanovitch Chtchukin (1854-1936) e Ivan Abramovitch Morózov
(1871-1921) foram os mais importantes colecionadores de arte do final do século
XIX na Europa, que possibilitaram aos jovens artistas russos entrar em contato
com as novas tendências da vanguarda europeia.
Aos dois moscovitas juntavam-se mais de trinta colecionadores que
contribuíram para a renovação das artes e ciências russas da época, tendo
influência não só nos círculos culturais, mas nos setores industriais e comerciais
de Moscou e São Petersburgo. Uma burguesia interessada tanto em colecionar os
ícones e a arte russa de diversos períodos, quanto em investir nas recentes
pesquisas plásticas ocidentais.
Orientados pelo gosto pessoal ou seguindo os conselhos de
importantes marchands como Durand-Ruel, Vollard, Kahnweiler e Bernheim
Jeune, os colecionadores adquiriram mais de quatrocentas obras de vanguarda
que estavam compreendidas entre os movimentos do Impressionismo e do
Cubismo.
Sierguéi Chtchukin iniciou sua coleção em idade madura, após passar
dos quarenta anos, quando já havia alcançado a posição de diretor na indústria
têxtil de sua família.
Ivan Morózov, por sua vez, embora tenha estudado Química na Escola
Politécnica de Zurique, demonstrava interesse pelas artes, em especial pela
pintura, desde a infância, tendo aulas de pintura paralelamente aos estudos da
faculdade. Sua fortuna, talvez uma das maiores alcançadas por um comerciante
durante o século XIX, na Europa, era proveniente do comércio de tecidos.
204
A coleção de Sierguéi Chtchukin estava instalada no antigo palacete da
família Trubetskoi, construído no século XVIII e situado à Rua Znamienski, e
contava com duzentas e sessenta e quatro obras de arte moderna francesa.
Dentre estas, havia oito de Cézanne, treze telas de Monet, dezesseis de Gauguin,
dezesseis de Derain, quatro de van Gogh, nove de Marquet, quase quarenta obras
de Matisse, aproximadamente cinquenta e uma telas de Picasso, sete de
Rousseau, além de obras de artistas simbolistas, impressionistas, pós-
impressionistas e fauvistas, entre eles: Redon, Denis, Renoir, Pissaro, Vlaminck,
Signac, Sisley, Toulosse-Lautre e Dufy.
A coleção de Morózov estava situada em sua mansão à Rua
Pretchistenka e continha duzentas e quarenta obras de arte francesa de
vanguarda além de uma importante coleção com quatrocentas e trinta obras de
arte russa. Atualmente a mansão abriga a sede da Academia Russa de Artes.
Sua coleção, frequentemente apontada como mais conservadora em
relação à de Chtchukin, era formada especialmente por obras impressionistas e
demonstrava a cautela do colecionador em relação às invenções formais de um
jovem artista como Picasso. Possuía, entre pinturas e esculturas, duas obras de
Degas, seis de Renoir, seis de Monet, dezoito de Cézanne, onze de Gauguin,
cinco de van Gogh, treze painéis decorativos realizados por Maurice Denis, treze
de Bonnard, cinco de Derain, onze obras de Matisse, três de Picasso, duas de
Pissarro, cinco de Sisley, duas de Signac, três de Vlaminck, uma de Vuillard, seis
de Marquet, uma de Rouault, além de esculturas de Rodin e Mailllol. Dentre os
artistas russos, Morózov adquiriu quatro obras de Chagall, três de Larionov e uma
de Gontcharova.
Segundo os pesquisadores Natalia Semionova e Albert Kostenevich
(1993), em novembro de 1918, a partir de um decreto assinado por Lenin, esses
acervos russos foram nacionalizados. O Palácio Trubetskoi e sua coleção foram
convertidos no Primeiro Museu da Pintura Moderna Ocidental. Já a mansão de
205
Morózov foi nacionalizada em dezembro de 1918, tornando-se o Segundo Museu
da Pintura Moderna Ocidental.
Embora cada coleção tenha permanecido fisicamente separada, elas
foram em 1923 oficialmente vinculadas em uma só instituição denominada Museu
Estatal da Arte Moderna Ocidental I e II. Quadros de outras coleções particulares
como as de M. A. Morózov, N. P. Riabuchinski e M. S. Tseitlin também foram
agregados aos museus.
Em 1928, as coleções foram fisicamente unidas, sendo que a antiga
coleção de Chtchukin foi transferida para a mansão Morózov. Após isto, o palacete
Trubetskoi foi temporariamente convertido em Museu da Porcelana e
posteriormente, tornou-se a sede do Ministério da Guerra.
Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial e com a aproximação das
tropas alemãs de Moscou, por volta do ano de 1941, todas as obras foram
retiradas do Museu Estatal de Arte Moderna Ocidental (que foi fechado no mesmo
ano) e enviadas para depósitos localizados na Sibéria. Com o fim da Guerra, as
obras foram mais uma vez armazenadas, embora sem os devidos cuidados, nos
porões do Museu de Cultura Oriental.
Em 1948, Stalin decretou a dissolução do Museu de Arte Moderna e as
obras foram distribuídas sem nenhum critério entre os Museus Hermitage e
Púchkin, onde permaneceram estocadas nos porões durante décadas e proibidas
de serem expostas ao público a partir da alegação de que seriam o
ideias formalistas e servis da cultura burguesa decadente imperialista, que havia 166
Por fim, a mansão de Morózov foi para as mãos da Academia Militar do Exército
Vermelho.
166 KEAN, Beverly Whitney, All the Empty Palaces. Nova York: Universe Books, 1983, p. 289 apud SCHENKER, Libia, Colecionismo Moderno uma saga russa, Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2011, p. 204.
206
Atualmente as coleções encontram-se distribuídas entre os museus
Púchkin, Hermitage, Museu Baku e o Museu de Odessa, embora algumas obras
tenham sido vendidas pelos dirigentes do regime bolchevique e ido parar em
coleções particulares espalhadas pela Europa. Em um dos exemplos deste
desmembramento das coleções, segundo um dos sites especializados sobre o
assunto167, o colecionador americano Stephen Clark teria comprado quatro obras
(Madame Cézanne, de Cézanne; Café, de vang Gogh; La Jeune Fille, de Renoir e
La Chanteuse Verte, de Degas) do Museu Estatal de Arte Moderna Ocidental pelo
valor de 260.000 dólares. O colecionador americano Albert Barnes também
manifestou interesse em adquirir uma obra do acervo (Pierrot et Arlequin, de
milhão de marcos alemães pela obra.
Conforme aponta Libia Schenker (2011), o banqueiro e antigo
secretário do Tesouro Americano Andrew Mellon foi outra figura que adquiriu uma
considerável coleção a partir de negociações feitas com o governo bolchevique.
Sua coleção e o prédio da National Gallery, de Washington, foram, em 1936,
doados à nação americana, possivelmente como forma de acerto entre o
banqueiro e a Receita Federal americana.
Entre os artistas que tiveram contato com Morózov e Chtchukin,
Matisse é provavelmente o que oferece o relato mais vívido sobre os dois:
Entre os colecionadores que se interessavam por meu trabalho desde o começo, devo citar dois russos, Schukin [Chtchukin] e Morózov. Schukin, importador de tecidos orientais em Moscou, tinha cerca de cinquenta anos; era vegetariano e extremamente sóbrio. Ele passava quatro meses por ano na Europa [...], ele [...] me encomendou uma série de grandes quadros para a decoração de sua casa em Moscou o antigo palácio dos príncipes Trubetskói, construído durante o reinado de Catarina II. Depois disso, encomendou duas decorações para a escadaria de seu palácio, e foi assim que pintei A Música e A dança.
167 SEMYONOVA, Natalia, Split Museum, p. 65. Disponível em www.morozov-shchukin.com/html /splitmuseum.html. Acesso em 14/04/2012.
207
Morózov, um gigante russo, vinte anos mais novo que Schukin, tinha uma fábrica com três mil operários e era casado com uma dançarina. Ele havia encomendado decorações para seu salão de música a Maurice Denis, que pintou Os amores de Psiquê. [...] Quando Morózov ia à gale
. Já Schukin pedia para ver todos os Cézannes à venda e aí fazia sua própria escolha.168
Porém, a maior diferença entre os dois colecionadores talvez seja
expressa pela função que davam à suas próprias coleções. Embora Morózov
colecionasse por prazer, quase como um meio de se distanciar da pressão dos
negócios, ele também tinha a visão de um investidor, apostando nos artistas
nacionais e estrangeiros que poderiam ter seus nomes solidificados no mercado
de arte.
Uma das salas de sua mansão era dedicada exclusivamente ao
trabalho de Cézanne e continha uma amostra de obras de cada fase da pintura do
artista francês. Nenhum colecionador no mundo havia até aquele momento
investido tanto dinheiro nas obras de Cézanne. Apesar de tudo isto, Morózov não
tinha a intenção de ocupar um papel central no mundo das artes ou da cultura de
seu país; não buscava a atenção da imprensa ou o debate com críticos de arte e
recebia com restrições visitantes em sua coleção.
Chtchukin, contrariamente, tornou-se conhecido não apenas por abrir
as portas de sua mansão aos domingos a qualquer um que desejasse ver suas
obras (fato que fez de sua coleção particular o primeiro museu internacional de
arte moderna da história), como muitas vezes serviu pessoalmente de guia ao
público, fazendo explanações sobre as inovações formais da arte de vanguarda
europeia (de acordo com relatos de familiares e contemporâneos de Maliévitch, é
muito provável que o artista tenha estado na presença de Chtchukin, em uma
destas visitas monitoradas).
168 MATISSE, H., op.cit., p. 120.
208
Um frequentador do palacete que se tornaria célebre foi o escritor,
dramaturgo, crítico de arte e ativista político Anatoli V. Lunatcharski, que muito
antes de se tornar Chefe do Comissariado do Povo à Instrução estabeleceu
relações de amizade não apenas com Chtchukin, mas também com Stanislavski,
Lenin e Trotski.
A coleção de Chtchukin recebeu a atenção da imprensa russa em 1908,
quando o historiador e crítico Muratov publicou no jornal Russkaia mysli (Pensamento Russo),
influência no desenvolvimento da pintura russa e que ela havia se tornado o mais 169
Outro ponto a ser destacado é a importância de Chtchukin no
desenvolvimento da carreira de Matisse. Talvez seja mesmo impossível conceber
a projeção do artista no cenário artístico europeu se não fosse pelo incentivo
constante assegurado pelos investimentos financeiros feitos por Chtchukin ao
longo de sua carreira. Apenas como exemplo, os painéis Danse e Musique,
custaram-lhe ao total 2.7000 francos (1.5000 e 1.2000 francos, respectivamente).
Além disto, Chtchukin, que se tornou amigo do artista francês comprou deste,
aproximadamente quarenta telas que representavam a maioria das pinturas
realizadas entre os anos de 1908 e 1914. Em menor escala, é possível dizer que
artistas como Picasso e Braque (que naquele momento ainda representavam
apostas arriscadas no mercado de arte) também puderam contar com a
solidificação de suas carreiras através da aquisição de suas obras pelo
colecionador.
A história desses dois colecionadores foi publicada no ano de 1983 por
Beverly Whitney Kean em seu livro: All the Empy Palaces The Merchant patrons of Modern Art in Pre-Revolutionary Russia. Apesar de a pesquisadora ter contado
com a ajuda de importantes nomes como Alfred Barr - que a colocou em contato 169 SEMYONOVA, Natalya; KOSTENEVICH, Albert, op.cit., p. 16.
209
com familiares de Morózov, Chtchukin, de Matisse e de outras pessoas que
conheciam os colecionadores - a publicação e mesmo a circulação de seu livro, na
URSS, foi proibida, sendo que seu trabalho teve que circular de maneira
clandestina entre as mãos dos curadores dos museus russos até o final da década
de 1980.
Da mesma forma, até os anos de 1980 era difícil encontrar alguém que
tivesse conhecimento da existência de colecionadores na Rússia durante o início
do século XX, que fossem mais importantes do que qualquer outro conhecido pelo
Ocidente. Muitos russos acreditavam, inclusive até aquela época, que os acervos
dos museus haviam sido formados por iniciativa do governo soviético. Toda a
história das coleções estava envolvida no esquecimento, ou ao contrário, aqueles
que tinham informações sobre as obras e coleções, como os curadores dos
museus, viviam sob suspeitas e ameaças.
No ano de 1962, alguns funcionários do Museu Hermitage foram
oficialmente coagidos a retirar de exposição obras de Matisse e Picasso. Nem é
preciso dizer que o acesso às obras dos artistas da vanguarda russa era
igualmente proibido.170
No Brasil, o trabalho que fornece a visão mais detalhada destes
colecionadores é o livro Colecionismo Moderno: uma saga russa, de Libia
Schenker. Um dos dados relevantes apontados pela pesquisadora demonstra
como essas coleções de arte moderna ocidental foram responsáveis pela
transformação de paradigmas que existiam na Rússia desde a época de Pedro,
como por exemplo, de que São Petersburgo seria por excelência o centro da
influência europeia na Rússia, enquanto Moscou representaria o centro das
tradições eslavas.
170 In: Royal Academy of Arts Magazine, n. 97, p. 47 apud SCHENKER, Libia, op.cit., p. 211.
210
O estudo destes colecionadores vanguardistas, que investiram altos
valores na aquisição de obras de artistas pouco aceitos na época revela como no
final do século XIX essa ideia de uma Moscou atrasada ou arraigada em valores
antigos estava em vias de transformação, abrindo caminho para uma nova capital,
que durante as primeiras décadas do século XX acolheria algumas das instituições
de ensino e pesquisa da arte mais inovadoras da Europa, como os Svomas e
Vkhutemas.
Nesse sentido, Libia aponta que:
A rivalidade entre Moscou e São Petersburgo sempre foi tão grande que ra impossível alguém se considerar um cidadão da Rússia e de . O historiador Alexandre Benois confirmou a longa e profunda permanência desse sentimento ao afirmar após a Revolução de
O verdadeiro ato dos bolcheviques em transferir a capital de
vingança longamente esperada .171
Por outro lado, essa questão se mostra capaz de evidenciar a forte
tensão que se condensou durante a era soviética e, em especial nos primeiros
anos do regime, entre os valores eslavos e aqueles provindos da cultura ocidental
e que agiram na formação de uma nova identidade russa.
Essa tensão mostrava-se latente no final do século XIX por meio das
propostas artísticas dos artistas Peredvijniki (Ambulantes). Os pintores deste
grupo eram em sua maioria antigos dissidentes da Academia de Arte de São
Petersburgo e desejavam resgatar valores de caráter nacionalista através de sua
arte. Influenciados pelas transformações da época, dentre elas a recente
libertação dos escravos, eles realizavam exposições móveis por todo o país,
mostrando suas pinturas nas ruas para o povo e facilitando essa aproximação da
arte aos menos favorecidos através de temáticas sociais. Por outro lado, se a
171 KEAN, Beverly Whitney, op.cit, p.61 apud SCHENKER, Libia, op.cit, p. 30.
211
temática era centrada nos costumes e fatos históricos corridos na Rússia, suas
técnicas naturalistas mostravam-se claramente herdeiras da tradição Acadêmica
europeia amplamente ensinada em São Petersburgo.
Mais uma vez, o trabalho de Libia evidencia como essas coleções
agiram como agentes catalizadores de determinadas tensões artísticas em meio
ao contexto russo do século XX.
Um dos principais pontos que definem essa tensão encontrava-se no
desejo e no impasse de construção da identidade cultural russa, que buscava a
construção de uma visão nova de mundo, mas ao mesmo tempo, não queria abrir
mão dos dados mais característicos de sua cultura. No campo das artes visuais
esta tensão foi manifestada por meio dos debates sobre os novos caminhos da
representação artística, ou seja, entre as correntes figurativas e realistas e os
artistas que não concebiam mais a arte como uma cópia da natureza, e embora
partissem das discussões artísticas contemporâneas provindas de debates da arte
ocidental, voltavam-se simultaneamente às tradições russas, como a arte não
mimética dos ícones.
Além das coleções de arte ocidental, é preciso destacar a formação
precursora na Rússia dos museus de arte contemporânea. Entre os anos de 1918
e 1921, o governo soviético empregou mais de dois milhões de rublos na
aquisição de obras de artistas russos das mais variadas tendências, que foram
distribuídas por todo o país em aproximadamente trinta e seis museus.
Segundo a pesquisadora Svetlana Djafarova172, de maio a novembro de
1918, um grupo de artistas vinculados à Izo (a Seção de Artes Plásticas do
Narkompros), dentre estes: K. Maliévitch, O. Rozanova, V. Tatlin, V. Strzeminski e
172 DJAFAROVA, S., Les Musées de la Culture Artistique. In: BASNER, Elena; DJAFAROVA, Svetlana; MILNER, John , -Garde Russe Chefs- -1925, Musée des Beaux-Arts de Nantes, 30 janvier-18 avril, Ed. Brunet, Nathalie & Girard, Agnes, 1993.
212
A. Pevsner trabalhou no projeto de criação de uma rede de museus de arte
contemporânea; os primeiros museus do gênero no mundo. Foi eleita uma
comissão responsável pelas compras e ficou acertada a divisão das obras entre
as cidades russas. De setembro de 1918 a dezembro de 1920, foram adquiridas
mil novecentas e vinte e seis obras de quatrocentos e quinze artistas, entre
pinturas, esculturas e produções gráficas.
Como até então os museus se encontravam a serviço da nobreza,
servindo como locais apenas de conservação das obras, foi proposto que a
escolha dos trabalhos não seria guiada por conceitos tradicionais da história da
arte ou juízos de gosto, mas de acordo com o conceito de cultura artística , que
dava ênfase à experimentação e à criação no julgamento artístico. O ponto de
partida de avaliação seria dado pela análise formal das obras, levando-se em
consideração os aspectos inventivos, pictóricos e a fatura, e não a partir de
ligações com determinado contexto histórico ou escola artística.
O final da década de 1910 foi prolífero em debates e projetos referentes
à formação dos museus de cultura artística. As teses de Maliévitch, Nikolai Punin,
Brik, entre outros artistas e críticos, buscavam redefinir a estrutura e o papel do
museu enquanto espaço de criação, discutindo o acesso da população à vida
cultural e a tarefa insubstituível do artista na organização de todos os campos da
atividade artística.
Segundo as propostas de Maliévitch, era necessário unir a pesquisa
artística, científica e pedagógica de maneira a formar um único complexo cultural.
Neste sentido, o museu deveria ser concebido como um espaço de criação,
extensão natural dos laboratórios de pesquisa, fornecendo material às novas
investigações plásticas.
Na direção do Museu de Cultura Artística de Petrogrado (MKHK),
fundado em abril de 1921, Maliévitch propunha novos parâmetros de exposição
213
das obras.173 Conforme o artista, o museu contemporâneo deveria ser o reflexo
dos projetos da época contemporânea e não um local de conservação ou
acumulação de obras do passado:
Vejo o museu como um lugar onde o homem se encontra em todo um conjunto, onde cada um poderia ver a modificação, o crescimento e o desenvolvimento de todo um organismo e não examinar cada detalhe do todo em entrepostos isolados. E com isto, constituir a imagem do homem apenas com a forma contemporânea de sua última modificação e não sobrecarregar seus ombros com todos os mantos e togas do passado.174
A crítica de Maliévitch voltava-se, portanto, contra a ideia de uma arte
- inativa e obsoleta em suas formas e significação social - e do museu
enquanto espaço que serviria apenas à proteção dos tesouros da nobreza, do
passado ou ainda, como aconteceu anos depois, das produções que alcançaram
legitimidade pela imposição do governo soviético.
173 Os diretores do Museu da cultura artística de Petrogrado foram: Natan Altman (abril a julho de 1922), Andréi Taran (julho de 1922 a outubro de 1923) e Kazímir Maliévitch (outubro de 1923 a outubro de 1924). 174 K. S. Maliévitch [trad. franc.], Izobrazitelnoie iskusstvo (Artes da Representação/Artes Plásticas), Petrogrado, 1919. In: MALÉVITCH, K., Le Miroir Suprematiste, op. cit, p. 72.
215
Capítulo 4. Cultura e civilização: A disputa entre a consciência russa e a ideologia soviética
4.1. A intelligentsia russa do século XIX
Tendo abordado alguns aspectos do pensamento místico russo e do
pensamento eslavófilo, não seria possível deixar de lado a visão da intelligentsia
russa do século XIX.
O fenômeno conhecido como intelligentsia russa foi, como muitos
historiadores costumam considerar,
atraso material, técnico e econômico, impôs mudanças tão radicais que resultaram
em um abalo na autoconsciência do povo e na formação de dois extratos sociais
distintos. De um lado uma oligarquia burocrática recém-formada, uma distinta
classe instruída no exterior, russa por nascimento, mas ocidental por escolha,
educada nas línguas, artes e concepções de mundo do Ocidente, que defendia a
ideia de que os valores objetivos, racionais e científicos deveriam ser seguidos
como forma de libertar a Rússia de seu atraso material e intelectual, promovendo
formas de esclarecer o povo irracional por sua fé. De outro, o camponês comum,
visto como obscuro, arraigado nas tradições populares e nos modos de vida e
produção ainda ligados à cultura medieval.
Foi dessa nova elite cultural que emergiram figuras como Vissarion G.
Bielínski, Aleksandr I. Herzen, Mikhail A. Bakúnin, Ivan S. Turgueniev (1918-1883)
e Nikolai G. Tchernichévski (1828-1889).
216
Conforme expõe Isaiah Berlin no livro Russian Thinkers (1978), a busca por
respostas a essas prokliatie voprossi, ou seja, malditas questões (pela expressão
que se tornou famosa na Rússia do século XIX) constituiu a essência dessa
geração de pensadores, cuja propaganda revolucionária foi capaz de influenciar
não apenas seus contemporâneos, mas abrir caminho para as reviravoltas
políticas e sociais do século seguinte.
O foco dessas questões era essencialmente de ordem moral e social e
embora seja comum afirmar que expoentes do movimento eslavófilo como A. S.
Khomiakov e I. V. Kiriêievski estivessem movidos pelo nacionalismo, pelo
interesse nos antigos usos e costumes, pela cultura popular e religiosa da tradição
ortodoxa e riqueza espiritual da cultura russa, contrapondo estas características à
e d materialista, niilista e racionalista ,
tampouco é possível negar uma essência primordialmente moral dos personagens
literários e das discussões da intelligentsia. Na literatura produzida por figuras
como Dostoiévski e Tolstói, por exemplo, esse comprometimento com a exposição
de modelos de conduta, vivência e moral assumiu um caráter messiânico.
A forte tensão no campo do pensamento russo nas últimas décadas do
século XIX ocorreu pela polarização de duas tendências antagônicas: de um lado
um forte desejo de laicização da cultura e da civilização, e de outro, um retorno à
filosofia de fundamentação religiosa. Por outro lado, e dando mais lenha ao fogo
das contradições, a visão durante o período, fosse ela de tendência eslavófila ou
ocidentalista, era é a de que o homem é um ser uno, e sendo assim seus
interesses e ações sobre o mundo não poderiam estar divididos. Por tudo isto,
muitos intelectuais tentavam encontrar um denominador comum ao positivismo, ao
idealismo e às questões morais e espirituais.
Sobre essa questão, Berlin exemplifica:
217
Para Bielínski, o homem, o artista e o cidadão são um só indivíduo. Seja ao escrever um romance, um poema, uma obra de história, a filosofia, um artigo de jornal, seja ao compor uma sinfonia ou pintar um quadro, o homem está ou deveria estar expressando a integridade de sua natureza, não apenas sua parte profissionalmente formada. O individuo é moralmente responsável como ser humano pelo que faz como artista. Ele deve prestar sempre testemunho à verdade, que é uma e indivizível, em todos seus atos e palavras. Não existem verdades e cânones puramente estéticos. A verdade, a beleza, a moral são atributos da vida e não podem ser abstraídos dela.175
Esse aspecto moral presente nas artes russas está fortemente atrelado
à ideia do caráter transformador da cultura e em seu potencial de construir novas
bases para as discussões e ações que se referem aos problemas do homem e da
sociedade e que não poderiam ser esclarecidos pelas ciências exatas, raciocínio
que vai muito além de uma visão meramente utilitária da cultura.
Outro exemplo discutido por Berlin dessa visão
o de Tolstói:
No entanto, o que oprimia Tolstói não era simplesmente a natureza -
escrupulosa que fosse a técnica de pesquisa histórica, não se poderia descobrir nenhuma lei confiável do tipo exigido mesmo pelas ciências naturais menos desenvolvidas. [...] Ele deplora que, embora os fatores que determinam a vida da humanidade sejam muito variados, os historiadores selecionam entre eles apenas alguns aspectos isolados, digamos o político ou o econômico, e apresentam-no como a causa primordial e eficiente da mudança social. Mas muitos outros aspectos uma multiplicidade literalmente incontável de que se revestem todos os acontecimentos? [...] A história, tal como é normalmente escrita, costuma representar os acontecimentos públicos como os mais importantes, enquanto os acontecimentos espirituais são largamente esquecidos. No entanto, prima facie, eles, os
íntimos , são a experiência mais real e imediata
175 BERLIN, Isaiah, Vissarion Bielinski. In: BERLIN, Isaiah, Pensadores russos/ organização: Henry Hardy e Aileen Kelly, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 188.
218
dos seres humanos; eles e somente eles são aquilo de que, em última análise, é feita a vida. 176
O que Berlin (1988) salienta é o aspecto essencialmente moral da
intelligentsia russa, e por consequência, o valor que estes pensadores davam às
de qualquer postulado científico.
Embora seja necessário reconhecer que os pensadores eslavófilos
davam ênfase ao pressuposto de que o conhecimento último não poderia jamais
ser alcançado pelas vias exclusivas da razão e apesar da intelligentsia da
segunda metade d
esiástico russo, eles nunca foram materialistas
em um sentido absolutamente estrito, na medida em que não ignoravam uma
dimensão espiritual do homem e a riqueza das experiências interiores. Garantir
um espaço de ação e pensamento para o homem dentro de uma sociedade mais
igualitária era para a intelligentsia uma das formas de impedir que os indivíduos
não se deixassem levar pelas promessas de salvação ou por sentimentos de
pertencimento dentro de religiões ou do misticismo.
Essa desconfiança em relação aos limites da razão pode ser
compreendida dentro da cultura filosófica russa como uma derivação do idealismo
alemão, em especial a partir da interpretação do conceito de intuição em Fichte e
do
Por outro lado, também é possível propor que assim como os
eslavófilos, os artistas do simbolismo russo e alguns dos integrantes da vanguarda
176 BERLIN, Isaiah, op.cit., pp. 51, 52.
219
do século XX articulavam tal ideia associando-a com as doutrinas religiosas da
Ortodoxia e da mística russa.
Nesse sentido, e em especial para o grupo dos simbolistas russos, é
necessário ressaltar a importância de um filósofo como Vladímir Soloviov, que foi
capaz de congregar o idealismo metafísico com a Teosofia, a filosofia helenística e
as doutrinas místicas da Sophia (Sabedoria Divina).
Talvez uma das interpretações mais deturpadas ou compreendidas em
sua versão menos moral e mais política e utilitária pelos socialistas tenha sido a
de que as novas gerações teriam de sacrificar sua liberdade e individualidade por
um bem-estar social maior. Não será necessário apontar que os membros mais
destacados da intelligentsia russa da segunda metade do século XIX estavam
profundamente comprometidos como artistas e como cidadãos com a discussão
dos principais problemas morais e sociais de sua época, não tanto no sentido de
encontrar respostas irrefutáveis a estes problemas, mas enquanto agentes
conscientes do potencial transformador de suas ideias.
Para ilustrar essa situação, temos uma anedota narrada por Herzen e
retomada por Isaiah Berlin, na qual:
Herzen cita um fragmento de um diálogo típico entre ele e Louis Blanc, o socialista francês, a quem respeitava enormemente, que mostra o tipo de leviandade com que às vezes exprimia suas convicções mais profundas. A conversa teria ocorrido em Londres no início da década de 1850. Certo dia, Louis Blanc observou a Herzen que a vida humana era um grande dever social, que o homem deve sempre sacrificar-se à sociedade. Por quê , perguntei abruptamente.
se certamente toda a finalidade e missão do homem é o bem-estar da
Mas ele nunca será alcançado se todos se sacrificam e ninguém desfruta. Você está jogando com as palavras.
, respondi rindo.177 177 BERLIN, Isaiah, op. cit., p. 199.
220
Herzen está claramente questionando um dos postulados mais
defendidos de sua época, a de que a geração presente teria o compromisso moral
de sacrificar seu bem-estar ou mesmo suas vidas, suportando os mais terríveis
dias em nome da felicidade de gerações futuras. Contudo, o que o pensador
parece em última instância afirmar é que a história é imprevisível, ou seja, não há
lógica na História, ou pelo menos ela não opera de maneira tão linear ou garantida
como as Ciências Exatas.
Acreditar em um futuro glorioso garantido pelo sacrifício de uma
juventude, ainda que disposta a tal e bem-intencionada, é crer em algo tão
abstrato quanto na certeza do futuro messiânico da nação russa pregada pelos
eslavófilos, os quais também faziam uso da ideia do sacrifício, embora com base
numa visão religiosa e não-materialista.
Ainda pelas palavras de Herzen:
Se a humanidade caminhasse diretamente para algum resultado, não haveria história, apenas lógica [...] a razão se desenvolve lentamente, dolorosamente, ela não existe na natureza, nem fora da natureza [...] a pessoa tem que conciliar a vida com ela da melhor forma que puder, porque não existe nenhum programa. Se a história seguisse um programa estabelecido, perderia todo o interesse, se tornaria desnecessária, tediosa, ridícula [...] os grandes homens seriam simplesmente heróis se pavoneando num palco [...]. A história é pura improvisação, pura vontade, sem nenhuma preparação não existem fronteiras, não existem itinerários.178
Como aponta Herzen, ainda que haja a necessidade do compromisso
moral de cada indivíduo com a sociedade, os homens não podem ser pensados
enquanto simples marionetes, pois se o fossem
178 HERZEN, A., Da Outra Margem. In: Sobranie sochinenii v tridtsati tomakh (Obras reunidas em trinta volumes), Moscou, 1954-65, VI, p. 36 apud BERLIN, Isaiah, op.cit, p. 106.
221
uturo glorioso, garantido pela História,
seria apenas uma forma de ilusão e manipulação.
Talvez o pensador russo que mais se encontre situado nessa
encruzilhada de ideias seja Tolstói. Ocidentalistas e eslavófilos tanto atacavam
suas doutrinas quanto o disputavam. Muitos estudiosos costumam situar Tolstói
ao lado dos ocidentalistas por conta do caráter racionalista de suas ideias, sua luta
ideológica contra o regime tzarista e o desejo de questionar a corrupção moral do
homem russo de sua época. Em contrapartida, também é possível ver em Tolstói
a busca por aspectos da existência que se encontram fora das classificações e da
compreensão das ciências, por uma verdade última e imutável, muito mais
acessível e visível aos homens simples e àqueles que se mantiveram afastados
da educação formal e sua fogueira de vaidades.
Por sua vez, Herzen, um aberto ocidentalista, também defendia a figura
simbólica do camponês por este se apresentar como a classe mais distante do
regime autocrático e de seus costumes corruptos.
Ainda que em linhas muito gerais, essas questões são aqui levantadas,
pois apesar dos ocidentalistas defenderem pontos de vista opostos em relação
aos eslavófilos, é possível perceber a discussão de problemas comuns ou mesmo
algumas intersecções de pensamento entre tais correntes: o questionamento da
razão como fonte única de conhecimento do mundo, o problema da cultura e da
moral no quadro da transformação do homem e sua sociedade, o elogio à figura
do homem simples, do camponês.
Esses cruzamentos de ideias indicam problemas internos dentro da
cultura russa, cruciais a serem pensados, pois permitem uma visão em grande
angular dos desdobramentos artísticos no século XX, ou seja, das gerações que
herdaram tais debates.
222
Assim, parece importante levantar alguns pontos de confluência entre o
pensamento eslavófilo e ocidentalista, pois se um artista como Maliévitch tivesse
sido influenciado por um conjunto de ideias ligadas exclusivamente a um
movimento tão austero (para não dizer retrógrado) quanto o eslavofilismo, como
explicar seu envolvimento com os futuristas russos ou com os ideais
revolucionários? Sua filiação aos órgãos e funções do Governo Bolchevique?
Suas propostas artísticas e pedagógicas que entravam em acordo com os projetos
revolucionários e envolviam a não distinção entre artes menores e maiores, a
fundação de ateliês livres, a produção de obras voltadas à sociedade (exposições
públicas, aulas e conferências abertas e gratuitas) e, em última instância, como
entender até mesmo sua permanência na URSS?
Assim, frente a esse conjunto de questões discutidas tanto por
eslavófilos quanto por ocidentalista torna-se possível apontar, não uma indiscutível
filiação, mas sim, a inscrição histórica da obra de K. Maliévitch.
4.2. A instauração de uma controvérsia: Vekhi (1909)
Vekhi (Marcos) é o título da coletânea de sete artigos organizada pelo
historiador e crítico literário Mikhail O. Guerchenzon (amigo e correspondente de
K. Maliévitch durante os anos vinte), que foi publicada inicialmente no ano de
1909. Cabe relatar, que com apenas um ano de existência, o volume ganhou cinco
edições, somando um total de quinze mil cópias e gerou uma série de acirrados
debates em jornais do governo e revistas, encontros oficiais de sociedades
literárias, artigos e análises em todo o território russo e até mesmo fora dele (a
exemplo de sua repercussão na Alemanha) movimentando defensores, mas
sobretudo, detratores tanto de esquerda quanto de direita.
223
Apenas para dar a dimensão de quão importantes foram as discussões
geradas pelos textos publicados no volume, quando em 1990 o semanal russo
Moskovskie novosti (Notícias Moscovitas) fez uma primeira reimpressão da
coletânea, três outras reimpressões foram publicadas logo na sequência,
contabilizando duzentas e quinze mil cópias.
A linha central da publicação é formada pelo questionamento de cada
um dos autores da visão de mundo da intelligentsia russa do século XIX (em
especial o pensamento positivista promovido por figuras como Bielínski, Bakúnin,
Tchernichévski, Dobroliúbov e também pelos grupos contemporâneos, dentre eles
os Populistas e Social Democratas) sob os diversos aspectos que compõem a
cultura: a educação e a formação dos jovens, o colapso da família, a consciência
religiosa e espiritual, a filosofia, as leis, a política.
Esses pensadores não negavam o caráter e o comprometimento
rigorosamente moral que guiavam grande parte da intelligentsia russa do século
XIX. Bulgákov lembra em seu texto, inclusive, que figuras destacadas como
Dobroliúbov e Tchernichévski eram seminaristas, vindos de famílias com uma
tradição religiosa e clerical. O
haviam abandonado as fundamentações éticas originais do pensamento destes
autores em prol de atitudes muitas vezes violentas e amorais que tentavam se
justificar pela defesa de interesses coletivos de classe.
Logo na abertura do volume, Berdiáev dá o tom da crítica:
significando nossos sectários intelectuais que estão artificialmente isolados da vida nacional. Essa única comunidade esteve até agora isolada da existência, oprimida por dois tipos de rígida conformidade: a conformidade externa imposta por um governo reacionário e uma conformidade interna imposta pela inércia intelectual e conservadorismo emocional. A aproximação da intelligentsia com a filosofia é tão rasa quanto sua aproximação a outros valores espirituais: filosofia subordinada
224
a objetivos sociais utilitários. Apesar de seu amor pelo povo e pelo proletariado.179
Os autores de Vekhi, mobilizados por ideais metafísicos e espirituais,
pela crença em valores morais absolutos e no direito divino do homem à
individualidade e liberdade estavam convencidos de que o materialismo marxista
culminaria no desenvolvimento de uma sociedade cética e amoral, na medida em
que a intelligentsia
russos, estavam dispostos a sacrificar os valores criativos, os direitos, liberdades e
o bem-estar individua
econômicos coletivos, inclusive suscitando a violência revolucionária e acirrando
as disputas entre as classes.
Segundo os autores, esse era um dado potencialmente perigoso,
especialmente sob a perspectiva da revolução e no sentido de que facções mais
radicalistas poderiam justificar a partir dessas teorias de classe atos violentos e
terroristas contra indivíduos.
Um ponto a ser destacado nos escritos se refere à crítica às noções de
relatividade moral e de justiça de classe em detrimento da aceitação de uma
existência de valores absolutos. Também defendiam uma continuidade histórica
gradual e criticavam as bases teóricas e ideológicas da revolução, fato que fez
com que seus autores fossem fortemente qualificados como reacionários. Outro
aspecto fundamental dos textos encontra-se na preocupação com a concepção de
cultura e os fatores nacionais, ideológicos e políticos em jogo em sua formação.
Entre os autores de Vekhi estavam alguns dos filósofos, jornalistas e
historiados que iriam, já na década seguinte, ocupar os lugares mais proeminentes
do cenário intelectual russo e eram, ainda que de maneira contraditória, a
179 BERDIAEV, N., Philosophical Verity and intelligentsia truth. In: BERDIAEV, N. et al., Vekhi (Landmarks), New York/London: M.E. Sharpe, 1994, p. 1.
225
intelligentsia emergente que punha em questão as principais ideias da geração
anterior.
Embora os autores de Vekhi (Nikolai Berdiáev, Sierguéi Bulgákov,
Mikhail Guerchenzon, A. S. Izgoev, Bogdan Kistiakovski, Piotr Struve e Semion
Frank) tenham de uma maneira ou outra sido marcados como expoentes do
pensamento reacionário de sua época, é relevante notar que muitos deles tiveram
em comum a tantos outros jovens de sua geração uma sólida e precoce formação
marxista, iniciando suas vidas políticas e intelectuais como socialistas-marxistas.
Em sua luta contra o regime tzarista, alguns deles chegaram a sofrer
prisões e exílios, fato que não os distanciava das convicções essenciais da
juventude do final do século XIX, que desejava uma nova época de liberdade e
reformulação dos ideais nacionais.
Mikhail Ossipóvitch Guerchenzon foi o responsável pela edição e
prefácio da primeira publicação, tendo contribuído também com um dos artigos.
Muito da fama de Guerchenzon (comentada por Maliévitch em sua
correspondência com o historiador, datada de 15 de outubro de 1921) provêm das
polêmicas geradas a partir deste artigo e também pela Correspondência de um canto ao outro180, trocada entre ele e o poeta simbolista e filósofo místico
Viacheslav Ivánov durante o verão de 1920.
Guerchenzon nasceu em Kishinev, Bessarabia. Provinha de uma
família judaica e era filho de um homem de negócios, tendo se formado na
Faculdade de História e Filologia da Universidade de Moscou, no ano de 1894. Ao
longo de sua carreira como jornalista e historiador publicou diversos artigos e
resenhas em jornais, tornando-se em 1908, um dos editores do jornal Kriticheskoe
180 IVANOV, V.I., Correspondance d'un coin a l'autre/V. Ivanov et M. O. Gerschenson, Paris: Roberto Correa, 1931.
226
obosrenie (Pesquisa crítica). Um de seus trabalhos de maior destaque é o estudo
biográfico sobre os principais intelectuais russos dos anos de 1830 e 1840.
Seu pensamento difere substanciamente dos outros colaboradores de
Vekhi em dois pontos: em primeiro lugar, o escritor demonstra grande filiação à
filosofia e a visão de cultura de Lev Tolstói naquilo que se refere ao elogio de uma
vida simples, afastada e hostil aos racionalismos acadêmicos e, em segundo,
apesar de defender uma visão integral e inviolável da personalidade e da
autoconsciência, que não nega a importância e a existência de valores espirituais
ou metafísicos, Guerchenzon não realiza tal defesa a partir de uma visão de
mundo religiosa, como fazem em geral os demais escritores da publicação.
Outro autor de Vekhi, Nikolai Berdiáev nasceu em Kiev, na Ucrânia, e
iniciou seus estudos acadêmicos na Universidade de Kiev, em 1894. Não muito
distante do contexto revolucionário que permeava os círculos universitários da
época, Berdiáev se tornou marxista e ainda cursando a faculdade foi preso em
uma manifestação, sendo expulso da Universidade por este motivo. Anos mais
tarde, foi condenado a três anos de exílio também por atividades revolucionárias.
Em 1909, Berdiáev que estava apenas iniciando sua carreira como filósofo havia
abandonado o marxismo e fazia parte de círculos intelectuais ligados a escritores
e pensadores simbolistas e religiosos, como o novelista Dmitri Siergueievitch
Merejkovskii (1865-1941) e sua esposa, a poeta Zinaida Nikolaevna Gippius
(1869-1945). Fora da União Soviética, foi organizador de associações filosófico-
religiosas e editor de destacadas revistas, como Put (O Caminho), além de editor-
chefe da YMCA Press.
Sierguéi Nikolaievitch Bulgákov, o filho de um padre ortodoxo também
estava no início de sua carreira quando participou de Vekhi e, como Berdiáev,
após a fase marxista durante a juventude, consagrou-se padre anos mais tarde.
Em Paris, após sua expulsão da URSS, Bulgákov se tornou chefe do Instituto
Ortodoxo Teológico.
227
Opostamente aos dois autores anteriores, Piotr Berngardovitch Struve
(1870-1944) era já um destacado editor liberal e jornalista na época. Foi um dos
pioneiros teóricos do marxismo na Rússia contribuindo em sua divulgação nos
círculos intelectuais e públicos, tendo participado desde o início dos debates sobre
o Marxismo e o Populismo.
Semion Liudvigovitch Frank (1877-1950) era descendente de uma
família da classe média judaica russa e desde os anos de ginásio esteve envolvido
com os debates e as teorias marxistas. No entanto, ao terminar seus estudos
acadêmicos na Alemanha e retornar à Rússia, seu engajamento com os discursos
marxistas já havia terminado. Em 1912, se converteu ao Cristianismo.
O jornalista A. S. Izgoev (pseudônimo de Aleksander Solomonovitch
Lande, 1872-1935) nasceu na região dos Urais e após ter concluído seus estudos
universitários, tornou-se um ativista do Partido dos Cadetes, contribuindo a partir
de 1905 com o jornal do partido: Retch (Discurso) e com o jornal Russkaia mysli (Pensamento Russo).
Bogdan Aleksandrovitch Kistiakovski (1868-1920), talvez o menos
conhecido dentre os intelectuais acima citados, havia estudado Sociologia e
Direito e, por volta de 1908-1909, tornou-se um dos coeditores de Kriticheskoe obosrenie (Pesquisa Crítica).
Embora esses intelectuais compartilhassem da influência dos mesmos
ideais marxistas durante a juventude e durante suas trajetórias de vida tenham
participado de publicações conjuntas em jornais e revistas ou tenham divido o
mesmo destino de exílio forçado pelo regime bolchevique, eles nunca constituíram
uma única escola de pensamento.
Redigidos poucos anos depois dos fracassos da Revolução de 1905 e
da guerra Russo-japonesa, os artigos de Vekhi anunciavam de maneira cáustica a
necessidade de repensar a herança deixada aos russos através das doutrinas
228
sociais ditas materialistas, positivistas e niilistas, assim como quais poderiam ser
os resultados projetáveis dessas ideologias no futuro da Rússia. No entanto,
justamente por emergir de uma geração que foi inspirada e era conhecedora das
ideias de Bielínski, Tchernichévski e Turgueniev os autores de Vekhi mostram-se
contundentes ao criticar as falhas desses sistemas de pensamento.
Em 13 de dezembro de 1909 (no mesmo ano em que publicou
Materialismo e Empiriocriticismo) Lenin publicou no número 15 de Novyi Den
(Novo Dia) um artigo intitulado No que diz respeito à Vekhi 181 atacando
ferozmente os autores da coletânea, considerados por ele intelectuais burgueses
e porta-vozes do Partido Cadete e da continuidade do feudalismo e da servidão.
Segundo nota da publicação dos escritos de Lenin (1974), antes da
aparição desse artigo, ele havia realizado, em outubro de 1909, uma leitura
pública do texto A Ideologia da Burguesia Contra-Revolucionária , na Bélgica,
sendo seguida por outra crítica ao mesmo tema, em novembro de 1909, em Paris,
a partir do texto A Ideologia do Liberalismo Contra-Revolucionário: O Sucesso
de Vekhi e sua Significância Social .
Um pôster dessa última conferência encontra-se preservado pelos
arquivos do Instituto do Marxismo-Leninismo, Comitê Central da União Soviética,
especificando os principais tópicos da crítica à coletânea Vekhi:
I. A filosofia contra a qual Vekhi luta e os discursos da Duma do Cadete Karaulov, II. Bielínski e Tchernichévski aniquilados por Vekhi. III. Por que os liberais odeiam a revolução russa
IV. Vekhi e as Esquerdas na Rússia. Cadetes e Outubristas. A
democrática na Rússia ganhar por burgueses? VI. Discursos de Vekhi e Miliukov nas reuniões
181 LENIN, V. I., Concerning Vekhi. Novyi Den (Novo Dia), n. 15, 13 de dezembro de 1909. In: Collected Works, Progress Publishers: Moscou, 1974, vol. 16, pp. 123-131. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1909/dec/13.htm. Acesso em: 10/03/12.
229
eleitorais em São Petersburgo. Como Miliukov criticou o jornal ilegal revolucionário nessas reuniões.182
No artigo de dezembro de 1909, qualificando Vekhi verdadeira torrente de lama reacionária derramada sobre a cabeça da
, 183, Lenin define a
partir do ponto de vista antagônico as principais diretrizes da coletânea:
Essa coletânia da renúncia liberal engloba três temas principais: 1) a luta contra os princípios ideológicos de toda a visão de mundo (inclusive internacional) da democracia russa; 2) repúdio e vilipêndio do movimento de libertação dos recentes anos; 3) uma aberta proclamação de
Outubrista, ao antigo regime e a toda antiga Rússia em geral. 184
Embora os artigos de Bulgákov e Berdiáev sejam os mais citados por
Lenin, seu principal argumento contra os intelectuais de Vekhi é retirado da
contundente afirmação assinada por Guerchenzon.
No artigo Autoconsciência Criativa o filósofo escreve:
Tal como nós somos, não só não podemos sonhar em nos fundir com o povo, mas devemos temê-los mais do que todas as execuções do governo, e devemos abençoar este governo que por si só, com as suas baionetas e penitenciárias, ainda nos protege da ira do povo185.
182 LENIN, V. I., Concerning Vekhi, op.cit . 183 Ibid. 184 Ibid. 185 GERSHENZON, M., Creative Self-Consciousness. In: BERDIAEV, N. et al., op.cit., p. 64 [grifo do autor].
230
Evidentemente, o trecho coroa toda a argumentação de Lenin, que o
utiliza para exemplificar a essência reacionária da coletânea e dos autores de
Vekhi:
Este discurso é bom porque é franco, é útil porque revela a verdade sobre a verdadeira essência de toda a política do Partido Constitucional-Democrático ao longo do período de 1905-1909. Este discurso é bom, porque revela de forma concisa e vividamente todo o espírito de Vekhi. E Vekhi é bom, porque revela todo o espírito da verdadeira política dos liberais russos e dos democratas-constitucionalistas russos incluídos entre eles. É por isso que a polêmica Cadete com Vekhi e a renúncia Cadete de Vekhi não são nada além de hipocrisia, pura conversa fiada, pois na realidade os cadetes coletivamente, como um partido, como uma força social, passaram a buscar e estão perseguindo a política de Vekhi e não outra. As chamadas para participar nas eleições para a Duma em agosto e setembro de 1905, a traição da causa da democracia no final do mesmo ano, o medo persistente do povo e do movimento popular e da oposição sistemática aos deputados dos trabalhadores e camponeses nas duas primeiras Dumas, a votação para o orçamento, os discursos de Karaulov sobre religião e Berezovski sobre a questão agrária na Terceira Duma, a visita a Londres - estes são apenas alguns dos inúmeros marcos dessa política que tem sido ideologicamente proclamada em Vekhi.186
Entretanto, a resposta definitiva de Lenin a esse conjunto de
pensadores foi dada no ano de 1922 com a expulsão da União Soviética da maior
parte dos autores da coletânea e uma série de outros pensadores escolhidos a
dedo pelo próprio Lenin. Berdiáev, Frank e Izgoev foram expulsos em 1922 e
Bulgákov, no ano seguinte. Curiosamente Mikhail Gershenzon continuou vivendo
na Rússia, publicando artigos e até mesmo trabalhando em órgãos estatais.
As datas e os desdobramentos históricos mostram como esse grupo de
intelectuais já havia sido marcado por Lenin como inimigo da Revolução e de um
futuro regime socialista. Isto porque, embora os estudos sobre as expulsões dos
186 LENIN, V. I., op. cit. [grifo do autor].
231
intelectuais afirmem que, na época não havia nenhuma acusação real contra estes
filósofos, historiadores, jornalistas e críticos, a leitura dos artigos de Vekhi é capaz
de evidenciar o quanto (sob o ponto de vista de alguém como Lenin) eles
representavam um perigo real contra os ideais revolucionários e também como
estavam aptos a minar as estruturas teóricas, ideológicas e políticas do futuro
regime, na medida em que apostavam nos binômios religiosidade-moral e
liberdade-criativa como elementos fundadores da consciência nacional e pontos
de partida para a reconstrução da sociedade russa. Renascimento religioso que,
fosse pelas características e pelo enraizamento das tradições russas, fosse pelas
crenças e promessas histórico-religiosas da Rússia, tinha chances de vingar,
especialmente sob a orientação e esforços teóricos dessa nova e eloquente
intelligentsia. Era essa força potencial que Lenin temia e tratou de estirpar.
Em continuação a esse raciocínio seria possível afirmar que, durante o
século XIX, a corrente eslavófila já havia defendido esse mesmo traço, essa
mesma promessa em relação à cultura religiosa russa e que suas ideias, em
comparação as propostas dos ocidentalistas, não haviam angariado tantos
adeptos.
Porém, é preciso levar em consideração alguns fatores: em primeiro, se
intelectuais como Berdiáev, Semion Frank, Bulgákov e Losski nunca foram
ortodoxos em seu marxismo, também nunca o foram em seu apelo às ideias
(pela expressão de Bulgákov) e as falhas
de ambas as correntes. Em segundo lugar, os pensadores que iriam compor a
nova intelligentsia russa do início do século XX, estavam mais aptos do ponto de
vista teórico do que seus pares do século XIX, pois apesar da grande projeção e
potencial de agitação de suas ideias, estes pensadores, fossem eles ocidentalistas
ou eslavófilos nunca chegaram a construir sistemas filosóficos propriamente ditos.
de
Bakúnin, podem ter servido de combustível moral à juventude pré-revolucionária,
que desejava uma nação livre da servidão, mas que também esperava uma
232
oportunidade de sair da condição de cidadão comum e se ver na figura de herói da
nação (como aponta Bulgákov, na coletânea). Por fim, também é possível apontar
que, de maneira geral, os pensadores do século XIX não esclareciam
efetivamente uma rota teórica, nem de ação para a reconstrução da sociedade, ao
contrário dessa nova geração de pensadores, que não só se dedicava com
diligência a esta tarefa, como também criticava de maneira convincente as fissuras
que faziam ruir a retórica ocidentalista, e sobre as quais, eles temiam que, mais
adiante, fossem construídas as bases de um regime totalitário.
Sierguéi Bulgákov, em seu artigo Heroísmo e Ascetismo: Reflexões
sobre a Natureza Religiosa da Intelligentsia Russa observa que:
Obviamente, cada uma das atitudes é muito mais adequada a tempestades da história do que às calmarias, as quais debilitam heróis. O solo mais fértil para o heroísmo é composto de uma oportunidade máxima para atos heró
ma atmosfera de aventurismo heróico. Isto explica o grande poder do romancismo rintelligentsia. Não se deve esquecer que a revolução é um conceito negativo; não tem conteúdo independente e é caracterizado unicamente como a negação daquilo que destrói. O impulso da revolução consequentemente é ódio e destruição.187
Na coletânea, Berdiáev ataca o extremismo das doutrinas ocidentais
-se quase uma
um tipo especial de dogma
materialista e o espírito científico como um tipo especial de fé. Uma religião
-
187 BULGAKOV, S., Heroísmo e Ascetismo: Reflexões sobre a Natureza Religiosa da Intelligentsia Russa. In: BERDIAEV, N. et al., op.cit., pp. 30,31.
233
a verdade e 188
Bulgákov também é contundente ao afirmar que dentro do pensamento
189 e que a intelligentsia
de Cristo por Marx ou Mikhailóvski, e os Evangelhos ou melhor, o Apocalipse (é
mais cotável) pelo Capital [...]. 190
Nesse sentido é interessante pensar que essa substituição ocorria não
apenas a partir do aspecto votivo, de adoração dos jovens por esses pensadores,
mas como estes forneciam verdadeiros exemplos de conduta moral à juventude (a
exemplo do debate que um livro como Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev, gerou no
seio da cultura russa do século XIX).
O artigo Da Juventude Educada , A. S. Izgoev insistia sobre essa
mesma questão, ressaltando a importância de se repensar os valores que
estavam se consolidando no imaginário e na conduta moral da juventude russa e
no papel que a intelligentsia desempenhou nesse panorama. O autor faz,
inclusive, uso de diversas estatísticas e casos mostrando como a juventude
daqueles anos era muito pouco influenciada pelos valores e ideias de suas
próprias famílias ou de seus professores nos diversos anos de formação e como,
em contrapartida, estava fortemente inclinada a seguir os ideais da intelligentsia,
descrita por ele como materialista e cética.
Assim, se a intelligentsia russa do século XIX rejeitava a religiosidade
por considerá-la como o traço mais marcante do obscurantismo e atraso
intelectual da cultura russa, devendo ser combatida, por outro lado, Bulgákov ou
Frank - em A Ética do Niilismo - argumentam como a intelligentsia se aproveitou
188 BERDIAEV, op.cit., pp.7-9. 189 BULGAKOV, S., op.cit. p. 31. 190 Ibid, p. 40.
234
dessa estrutura inegável da cultura russa para a consolidação de um sistema
ocidental de ideias usando as fundações profundas desse sentimento religioso e
nacionalista, no qual o radicalismo pode ser entendido como um tipo de fanatismo
intolerante à religião, mas ao mesmo tempo dotado de uma idolatria
A intelligentsia rejeita a Cristandade e seus padrões e parece aceitar o ateísmo. De fato, ao contrário do ateísmo que adota o dogma da religião do homem-Divindade em uma ou outra das variantes produzidas pelo Esclarecimento Europeu Ocidental e então converte essa religião em idolatria. O princípio básico comum para todas as variantes é acreditar na perfeição natural do homem e no progresso infinito.191
Bulgá -
endeusado do heroísmo da intelligentsia, sua inerente auto-adoração e a
substituição de Deus e da Providê 192 resultassem em muito
mais do que uma geração de jovens arrogantes, provocando a degeneração de
uma sociedade espiritualmente doente a partir da institucionalização e
racionalização das noções de moralidade.
Como afirma o filósofo:
Até recentemente, o problema da religião e não entendia sua vital e excepcional importância. [...] Em matéria de religião nossa intelligentsia é conspicuamente ignorante. Esta não é uma acusação, pois não há, talvez, suficiente justificação histórica para essa ignorância, mas um diagnóstico da condição espiritual da intelligentsia.193
Em analogia a Raskolnikov, o personagem de Crime e Castigo,
Bulgákov retoma o raciocínio que denunciava 191 BULGAKOV, S., op.cit., p. 26. 192 Ibid, p. 32. 193 Ibid, p. 23.
235
na superioridade de seus pensamentos e que, pela construção de um argumento
racional, acha-se no direito de pensar e agir acima da nuvem da moralidade
Amoralidade ou para usar uma expressão antiga, niilismo, é a consequência
necessária da auto- 194
Outra questão aponta para como diferentemente dos eslavófilos que
recorriam a um nacionalismo por vezes simplista, os autores de Vekhi percebiam
na sociedade russa a existência do desejo de constituição de um sentimento
nacionalista e, ao mesmo tempo, a inadequação deste sentimento em relação à
fragilidade dos ideais adaptados do contexto europeu do século XIX, fato que
desaguava em dilemas estruturais na própria formação do pensamento e da
cultura russa.
Berdiáev em seu artigo Verdade Filosófica e verdade da
Intelligentsia 195 considera que:
Como resultado, a intelligentsia russa apreendeu doutrinas filosóficas europeias em uma forma distorcida, adaptando-as de acordo com interesses particulares e ignorando completamente os produtos mais significativos do pensamento filosófico. Positivismo científico e materialismo econômico, empiriocriticismo e neokantismo e Nietzschianismo foram todos distorcidos e adaptados às condições domésticas.196
O questionamento da
políticos ocidentais, igualmente apontado no texto de Bulgákov apresenta ao
menos três aspectos relevantes. O primeiro é o de justificar uma investigação
ilosófica, pelos termos de Berdiáev) dessas 194 BULGAKOV, S., op.cit., p. 32. 195 Já no título Berdiáev se aproveita da distinção clara entre os conceitos russos de Istina: Verdade absoluta e pravda: verdade ordinária, dos homens. 196 BERDIAEV, op.cit., p. 7.
236
correntes ocidentais a partir de um ponto de vista filosófico e histórico, ou seja,
entender a significação original desse conjunto de ideias, discutindo sua possível
validade e distanciamento em comparação ao contexto russo - e sob este aspecto,
parece claro que os intelectuais de Vekhi estavam não apenas reivindicando seus
campos de atuação, como demarcando a importância social e política de suas
ideias, ou em outras palavras, tentando assumir seus lugares como a nova
intelligentsia russa do século XX. Em segundo lugar, ela expõe a própria
fragilidade do projeto de constituição de uma consciência russa e baliza um dos
objetivos maiores desse grupo de filósofos, que era o de ajudar a formação da
cultura a partir da afirmação de uma consciência nacional, que seria constituída
tanto a partir dos dados internos, quanto das lições teóricas e históricas vindas do
Ocidente. O terceiro ponto concentra-se na tendência místico-filosófica como base
à formação dessa consciência, que se expressaria apenas por meio de uma
síntese do conhecimento e da fé, uma síntese que irá satisfazer as demandas
[Pravda- -spravedlivost]. 197
A desse nacionalismo, segundo explica Bulgákov,
seria formada a partir da ideia de irmandade entre os povos:
As fundações da ideia nacional não são meramente etnográficas e históricas, elas são primariamente religiosas e culturais; isto se baseia em um messianismo religioso-cultural no qual todo o sentimento consciente nacional é necessariamente lançado. [...] O desejo por uma autonomia nacional, pela preservação e defesa da nacionalidade é meramente a expressão negativa dessa ideia e tem valor apenas em virtude de seu conteúdo positivo implícito. Os mais destacados porta-vozes de nossa autoconsciência nacional, Dostoiévski, os Eslavófilos e Vladímir Soloviov entendem a ideia nacional precisamente dessa maneira, para eles, ligada com a missão da igreja Russa ou da cultura russa.198
197 BERDIAEV, op.cit., p.15 . 198 Ibid, p. 44.
237
Para os autores de Vekhi, o problema crucial era de que a intelligentsia
do século XIX estava disposta a subjugar as liberdades individuais e criativas em
prol de valores materiais e utilitári
), renegando a criação para um segundo plano e se opondo à
cultura como uma força espontânea da autoconsciência:
No pensamento e sentimentos da intelligentsia russa os clamores de distribuição e igualdade sempre compensam os clamores de produção e criação. Isto se aplica igualmente ao reino material e espiritual; para a intelligentsia russa olhar a criação filosófica é precisamente o mesmo que olhar a produção econômica. [...] Muitos se abstêm das questões filosóficas e da criação artística porque são consideradas imorais em relação às questões de primeira ordem como igualdade e distribuição. Houve mesmo certa época nos anos setenta, quando a sede pela educação era moralmente condenada. Os defensores de um incondicional e independente conhecimento, conhecimento como um princípio que transcende as preocupações cotidianas são ainda suspeitos de reacionários.199
A ideia de cultura professada por esse conjunto de filósofos no início do
século XX era de uma visão que não excluía ou opunha conhecimento de fé,
individual do social, e em certo sentido, não era nem mesmo contra o
racionalismo, mas sim, a visão unilateral e de valores baseados apenas na razão.
Contudo, o perigo anunciado em Vekhi era o de que esse ideal de integridade que
existia na cultura russa poderia facilmente ser convertido em uma visão totalitária:
De fato, nossa intelligentsia apreciava liberdade e professava uma filosofia na qual não há lugar para liberdade; apreciava o individual e professava uma filosofia na qual não há lugar para o individual; apreciava a ideia do progresso e professava uma filosofia na qual não há lugar para a ideia do progresso; apreciava a irmandade do homem e professava uma filosofia na qual não há lugar para a irmandade do homem; apreciava a justiça, tudo o que é nobre e professava uma filosofia na qual não há lugar para justiça ou para nada que seja nobre. [...] os melhores membros da intelligentsia estavam fanaticamente preparados para o autosacrifício e com o mesmo fanatismo professavam materialismo, o qual negava todo
199 BERDIAEV, op.cit., p. 2.
238
autosacrifício. [...] o pensamento filosófico criativo deve eliminar essa aberração e conduzir a consciência da intelligentsia para fora deste impasse.200
Ainda que grande parcela dos pensadores que publicaram em Vekhi tenham sido expulsos da URSS no Navio Filosófico no início dos anos de 1920 e
mesmo que boa parte de suas vidas intelectuais e acadêmicas tenha se
desenvolvido longe da União Soviética é importante ressaltar que essa nova
intelligentsia russa no início do século XX foi responsável pelo surgimento de
debates cruciais, com extensão suficiente para movimentar os meios culturais e
artísticos da época.
4.3. Cultura em disputa
A questão da cultura, seja sob seu aspecto material e técnico ou
espiritual e religioso, foi foco de diversos debates na Rússia durante as primeiras
décadas do século XX.
Em O destino da cultura (1926), Nikolai Berdiáev defende o
argumento central de que a criação estaria diretamente ligada ao espírito, e que
este, por meio do ato criador, seria o agente principal na transformação da
matéria. Contudo, a fase racionalista seria responsável pela transformação desta
potencialidade da criação em crítica, e assim, a razão destruiría tal força contida
no espírito:
Toda a cultura (mesmo material) é uma cultura do espírito. Toda cultura tem uma base espiritual; ela é o produto do trabalho criador do espírito sobre os elementos da natureza. Mas uma tendência
200 BERDIAEV, op.cit., p. 14.
239
que decompõe suas bases religiosas e espirituais, que inverte seu próprio simbolismo, aparece em meio da cultura. A cultura europeia, assim como a cultura antiga atravessa a fase do racionalismo, que rompe com as bases religiosas e reduz ao nada o simbolismo. É aqui que se manifesta a dialética fatal da cultura, que em certo grau de seu desenvolvimento começa a duvidar de seus próprios fundamentos e busca destrui-los.201
Berdiáev fala ainda sobre a crise da imagem e os impasses da criação
artística abertos pelo Romantismo, problemas herdados em primeiro momento
pelo Simbolismo (a estética defendida pela Geração de Prata), mas que se
desdobraram sobre diversas correntes modernistas, assim como sobre a figura do
artista enquanto sujeito que reivindica sua individualidade criadora e tenta
conjugar na matéria e na existência não só a criação de novas leis, mas a
realização destas.
Embora algo nasça de tal ato criador, este acaba se mostrando parcial,
pois fica retido dentro da existência e do significado simbólico da imagem, ou seja,
sua existência acaba limitada pela própria realidade exterior. O homem deseja a
mudança, a transformação do cotidiano e em última instância da realidade, de
suas concepções sobre a realidade. A arte, segundo aponta Berdiáev (em uma
visão em certos aspectos herdada do idealismo alemão) é o meio que possibilita o
ato criador, mas o ato criador humano é parcial, de onde resulta toda a crise da
arte, mas também do homem, frente ao que concebe como ideal e aquilo que
consegue transpor para o real.
Berdiáev defende a ideia de que a atividade criadora é por si mesma
um ato moral e essa ação criadora pode se identificar com a busca da Verdade e
da Beleza filosófico-religiosa, que constituem igualmente um bem moral. O esforço
criador, portanto, faria parte dessa dinâmica universal, dessa busca última do
homem. 201 BERDIAEV, Le destin de la culture, op.cit., p. 4.
240
O problema central é que o estágio criativo da cultura não pode se
sustentar para sempre. Então, a cultura se converte em civilização, em realização
material e prática da ideia. Nesta dinâmica reside um impasse que só poderia ser
superado, segundo Berdiáev, quando o homem se tornar capaz de superar não
apenas o estágio da cultura, mas da própria civilização. Este estágio último seria o
da transfiguração religiosa, o encontro com a verdade capaz de congregar criação
e civilização. Assim, o problema da criação no campo artístico é apenas uma das
facetas de uma questão de maior envergadura, representada pelo binômio: cultura
e civilização.
Como aponta Berdiáev, diferentemente do francês, língua na qual
essas duas palavras podem soar como sinônimos, os termos deveriam ser
compreendidos a partir de significados mais específicos, tal como são atribuídos
pelos filósofos russos e alemães. A cultura estaria diretamente relacionada ao
desenvolvimento espiritual das sociedades, enquanto a civilização relacionar-se-ia
ao desenvolvimento material na vida humana.
Essa diferenciação, muito mais que um dado particular do léxico russo
ou alemão, aponta para uma série de tensões teóricas, políticas e ideológicas
dentro da URSS e sobre a qual Berdiáev dedica sua atenção.
Para estruturar todo esse raciocínio, partindo das teorias de Oswald
Spengler (1880-1936), Berdiáev afirma que há
humanidade, a da barbárie, da cultura, da civilização e da transfiguração 202. Contudo, essa construção de uma história da filosofia que impulsiona
Berdiáev a recorrer aos filósofos alemães se relacionava com a tentativa de
compreender as relações internas entre a Rússia e a Europa Ocidental.
Os eslavófilos não eram contra a cultura europeia propriamente dita,
mas sim, hostis à sua civilização, ao passo que o interesse dos Românticos pelas
202 BERDIAEV, op.cit., p. 8.
241
culturas exóticas orientais, muito embora tenham se afastado de sua cultura
espiritual, religiosa ou mesmo simbólica em detrimento dos valores materiais e
técnicos, demonstrava 203
Como afirma Berdiáev:
[...] caem os fundamentos da teoria banal do progresso que fazia acreditar em um futuro sempre mais perfeito que o passado, e na marcha ascendente da humanidade, tendendo constantemente em direção às formas superiores da vida. A cultura não se desenvolve ao infinito. Ela carrega nela o germe de sua própria morte. Ela carrega nela os elementos que a colocam irredutivelmente em direção à civilização.204
Berdiáev mostra como esse ideal de integridade da cultura russa está
em origem associada à própria ideia do culto religioso como força de conexão
entre os indivíduos de uma sociedade, sendo a Igreja, a um só tempo, a origem e
o amálgama das tradições e do sentimento de unidade do povo:
A cultura está ligada ao culto; ela se desenvolve a partir do culto religioso [...]. O pensamento filosófico, o conhecimento científico, a arquitetura, a pintura, a escultura, a música, a poesia e a moral, - tudo está contido no culto da Igreja, organicamente, integralmente, sob uma forma ainda não diferenciada. 205
Paralelamente, o filósofo aponta como nas sociedades ocidentais, um
grau mais elevado de desenvolvimento material trouxe em si o germe que foi
capaz de destruir as bases naturais e espirituais da cultura ou ainda seu
desmembramento e substituição por valores materiais.
203 BERDIAEV, op.cit., p. 2. 204 Ibid., p. 2. 205 Ibid., p. 4.
242
Esse mesmo ponto é abordado por Maliévitch em alguns de seus
escritos, embora os conceitos de cultura e civilização adotados por Berdiáev
sejam substituídos pela discussão sobre a arte não-figurativa e a arte aplicada.
No tratado O mundo não-objetivo/sem-objeto (1927) Maliévitch afirma
que:
É certo que, tanto quanto antes, o público continua convencido de que o artista cria coisas desnecessárias, inúteis; ele não pensa que estas coisas inúteis sobrevivem através dos séculos e mantêm- o passo que as coisas necessárias, úteis, não duram muito tempo. O público não tem consciência de que desconhece o valor real, efetivo das coisas. Este é também o motivo do fracasso crônico de todo o utilitarismo. Uma ordem real, absoluta, somente seria obtida no convívio comum das pessoas se a humanidade se propusesse a dar forma a esta ordem tendo por base seus valores perenes. Obviamente, portanto, o momento artístico precisaria ser visto em todos os aspectos como o momento decisivo; enquanto isto não ocorrer, prevalecerá na sociedade humana a inquietude das
dos conhecimentos utilitários em voga, e esta medida é como sabemos altamente mutável.206
A tecnologia se insere nessa dinâmica da civilização, pois como está
relacionada às conquistas materiais e tecnológicas, não incorpora em si valores
absolutos, manifestando-se na forma de objetos que sempre estarão por ser
substituídos ou atualizados. A arte aplicada, subjugada a valores religiosos,
políticos ou de propaganda, segundo Maliévitch, não possui o efetivo valor
artístico que é atingido quando a arte alcança seu lugar na consciência.
Para citar a continuidade desse discurso no quadro das artes visuais,
Maliévitch afirma que n prática, onde
não consegue atingir seu estado ontológico. Por isto, ele afirma que as obras
ta forma, 206 MALEVICH, K., Suprematismo. In: CHIPP, H.B., op.cit., p. 349.
243
207 por estarem vinculadas a contextos e significados que são
exteriores e que obscurecem seu valor absoluto. Apesar desta espécie de
repouso, o objeto artístico continua dentro dos museus a gerar novas criações e
valores, inspirar novas formas às sociedades, ou seja, segundo tal argumento, a
arte continua a existir e agir dentro da cultura, porém livre do pragmatismo ou do
esgotamento da civilização.
Na civilização, (para usar a nomenclatura de Berdiáev, mas expondo a
perspectiva de Maliévitch) o objeto artístico estará sempre fadado a se tornar
obsoleto, pois terá uma significação limitada e condicionada pelo seu contexto
histórico, social e político.
Berdiá
que se relaciona mais uma vez ao papel messiânico da Rússia e ao início de um
de Berdiáev. A via de superação tanto da cultura como
da civilização e de transformação do homem e do mundo, para Berdiáev, seria a
Evidentemente, não existe em Maliévitch uma defesa de uma instituição
como a Igreja como há nos escritos dos filósofos russos do início do século XX.
Contudo, para se aproximar daquilo
malevitchiana ou de seu projeto artístico/cultural/humano é importante notar a
sobreposição dessas discussões que estavam presentes nos meios intelectuais da
época.
Em síntese, a resposta desses pensadores para a crise política não se
encontrava na política, mas na resolução de uma crise espiritual: a renovação e a
integração interior do homem e não a mudança da vida exterior pela adoção de
207 MALEVICH, K., op. cit., p. 349.
244
novos programas partidários e políticos. Para tanto, eles apostavam na
capacidade de sua sociedade de criar uma vida intelectual, artística, espiritual e
filosófica única. Esta seria a base do engajamento social nascido de valores e
tradições internas à cultura russa e não impostas mecânica e artificialmente por
algum contingente ou regime, o que foi, aliás, a visão totalitária e por essência
anticultural adotada pelo regime bolchevique anos depois: a sobreposição forçada
de uma cultura construída - a cultura soviética sobre a cultura russa.
Esse é um ponto importante a ser destacado, pois em seus escritos,
Maliévitch faz uma distinção muito clara entre o que considera ser a cultura russa,
baseada na pluralidade, em valores absolutos, na integração dos conhecimentos e
até mesmo na superação destes por uma verdade ontológica, e a cultura
soviética: artificial, utilitária, materialista e unilateral.
Ainda que tenha trabalhado em órgãos oficiais do regime soviético, é
importante ressaltar que Maliévitch, assim como os demais artistas que
escolheram permanecer na URSS, foram obrigados, em um país que havia
extinguido todos os seus marchands e colecionadores de arte, a buscar o
financiamento de suas produções junto ao governo. Apesar disto, Maliévitch não
esteve inserido ideologicamente no projeto didático de intelectual
massas mais engajados Isto porque, o ideal de popularização do
conhecimento entre os menos instruídos , ainda que tenha atraído muitos
intelectuais entusiasmados e comprometidos com efetivas reformas sociais,
assumiu dentro do partido um caráter nitidamente proselitista e de manipulação
das massas. Entender por que Guerchenzon nomeava Maliévitch como um
, homem primitivo, bárbaro, torna-se fundamental neste contexto.
Primeiramente, é necessário afastar do termo qualquer sentido
pejorativo, embora, ao lado de alguém com uma cultura e formação intelectual
como as de Pável Floriênski, por exemplo, Maliévitch possa parecer uma figura
inculta. Contudo, o que Guerchenzon - que não pretendia depreciar o artista
245
percebia em Maliévitch era o desejo de valorização da cultura popular como forma
de retorno das elites intelectuais às próprias origens, ao pensamento primordial da
cultura russa, sem colocar de lado a questão da constituição de uma cultura
universal; tábula rasa da vanguarda. Este, aliás, era um dos grandes dilemas da
intelligentsia russa: sua condição apartada, artificialmente construída, em relação
às demais camadas sociais.
Para Maliévitch, a cultura é unificadora, ao passo que a civilização se
mostra, em última instância, excludente, criando hierarquias e relações de poder.
Guerchenzon, por sua vez, fazia parte do grupo de intelectuais que propunha uma
transição gradual e a instauração de uma espécie de novo comunismo cristão.
Para Maliévitch e Guerchenzon, alertar para os falsos encantos da civilização, do
progresso material e civilizatório era também alertar que estas seriam formas de
distanciamento do conhecimento e da cultura popular seria o
, que se reconhece como parte de um todo ao qual está integrado, e
que poderia viver dentro deste comunismo cristão idealizado pela intelligentsia.
247
Capítulo 5. Maliévitch em Vitebsk
5.1. Unovis e o voo de Dédalo
Já no final dos anos de 1910, Vitebsk se tornou uma das mais agitadas
capitais culturais russas e um dos centros mais destacados da arte de vanguarda,
reunindo pensadores como M. Bakhtin, Lev Vassiliévitch Pumpiânski, V. A.
Reidemeister, Pável Nikolaievitch Miedvédiev, El Lissitzki, Marc Chagall, Kazímir
Maliévitch e seus discípulos: Nikolai Suétin, Lev Iudin, Ilia Tchachnik (1902-1929),
Vera Ermolaieva (1893-1937), Lázar Khidekel (1904-1986), Nina Kogan (1889-
1942), entre outros. Esse êxodo dos intelectuais que deixaram os grandes centros,
partindo para províncias mais distantes pode ser observado em outros casos.
Como afirmou Viktor Chklóvski, Kiev estava cheia de gente. A
burguesia e a intelligentsia da Rússia estavam invernando lá 208. Nevel é outro
exemplo que pode facilmente ser citado, embora por questões geográficas,
geopolíticas e pelos próprios contextos culturais, Vitebsk tenha se desenvolvido e
atraído muito mais olhares do que Smolensk, a Criméia ou mesmo Nevel.
Localizada a aproximadamente quinhentos quilômetros a oeste de
Moscou e seiscentos quilômetros ao sul de São Petersburgo, Vitebsk se tornou
tanto uma parada natural de viajantes que desejavam visitar as duas grandes
cidades, quanto residência de diversos intelectuais durante os anos vinte.
208 SHKLOVSKY, Viktor, A Sentimental Journey: Memoirs, 1917-1922/trad. Richard Sheldon, Champaign/Dublin/London: Dalkey Archive Press, 2004 (First published in English by Cornell University Press, 1970), p. 156.
248
Dois livros oferecem informações fundamentais sobre as origens e o
desenvolvimento da vida cultural de Vitebsk. O primeiro é trabalho de Clairer Le
Foll: -1923) - Eveil et rayonnement autour de Pen, Chagall et Malévitch e o outro, o livro de Aleksandra Chatskikh: Vitebsk: The Life of Art (Yale University Press, 2007).
Segundo as autoras, muito antes de se tornar o exílio dos intelectuais
da vanguarda, os quais buscavam melhores condições de vida ou literalmente
comida, combustível, abrigos aquecidos e emprego (tudo isto em meio à guerra
civil e à crise econômica), Vitebsk já era conhecida por ser uma rota natural de
grupos de artistas, fato ocasionado pela existência de numerosas estradas ligando
norte e sul, leste e oeste, que por ela passavam. Além disto, Vitebsk possuía um
porto fluvial e importantes conexões ferroviárias, como a linha Riga-Orlov, que
ligava Vitebsk a Moscou, São Petersburgo, Kiev e Brest. Apesar de seu aparente
provincianismo, já ao final do século XIX, Vitebsk era um importante centro
comercial e industrial e ao fim da primeira década do século XX, contava com uma
população de 109.000 habitantes.
Segundo Claire Le Foll, a primeira tipografia de Vitebsk foi aberta no
ano de 1797, fato que permitiu anos mais tarde, em 1838, a impressão do primeiro
jornal em russo na cidade. O primeiro teatro foi inaugurado no ano de 1845. Na
primeira década do século XX, estes números já estavam ampliados, sendo que a
cidade possuía onze bibliotecas, um circo, dois teatros, um museu, um cinema,
três salas de leitura, cento e duas usinas, trinta e um estabelecimentos escolares,
três tipografias e dois hospitais. Contava também com bondes elétricos desde o
ano de 1898, época em que nem mesmo São Petersburgo e Moscou ostentavam
tal recurso. Além disto, Vitebsk foi ao longo de sua história território de disputas,
sendo conquistada e destruída diversas vezes. Até mesmo Napoleão teria residido
nela por um breve período, em julho de 1812. Passando de um governo ao outro,
Vitebsk se tornou parte da Federação Soviética Russa em 1922, quando foi
249
transferida à jurisdição da Bielorrússia. Em 1924, foi rebaixada à condição de
distrito.
Um dado fundamental sobre a cidade é que, desde o final do século
XIX, mais da metade de sua população era constituída por famílias de origem
judaica, que já se encontravam fixadas na região desde 1551. Conforme, Le Foll,
em 1847 a comunidade judaica de Vitebsk era de 9.417 pessoas e em 1897
chegou a alcançar o número de 35.000. Esta preponderância da cultura judaica
no interior de Vitebsk é importante à compreensão do desenvolvimento e do
caráter particular da vida artística da cidade, comunidade que acolheu e projetou
no cotidiano alguns dos projetos mais utópicos de Maliévitch e seu grupo.
Nesse contexto, é necessário perceber como a existência dessa
comunidade judaica movimentou e proveu as estruturas da cidade com a
implantação de maternidades, hospitais, asilos, escolas, teatros, etc. Também por
causa dos judeus que ali residiam, a arquitetura de Vitebsk acabou sendo
particularmente marcada por sinagogas, igrejas e catedrais, fato que fez com que
o artista Ilia E. Répin lhe atribuísse a alcunha Dentro do
mesmo raciocínio, não se pode esquecer a importância dessa arquitetura urbana,
provinciana e religiosa a um só tempo para uma sensibilidade artística como a de
Marc Chagall.
Durante os anos da guerra civil, Vitebsk foi movimentada pela
passagem das tropas, além de se tornar, como já foi dito, a morada de intelectuais
e instituições estatais, sobretudo artísticas, criando um ambiente de intensa vida
cultural. Foi assim que passou a contar com a presença de um conservatório,
cinco escolas dedicadas ao ensino de música, além de uma orquestra sinfônica.
Porém, foram nos campos dos estudos linguísticos e das artes visuais, que se
originaram as maiores transformações culturais ocorridas na cidade.
Vários dos membros do círculo de Bakhtin se mudaram para Vitebsk
nos anos vinte ou proferiram palestras na cidade pela mesma época. Pumpiânski
250
foi o primeiro a se instalar no final de 1919, onde fundou um centro de estudos
neokantianos, sendo seguido por Bakhtin, em 1920. Ali, o grupo agregou novos
membros, dentre os mais destacados estavam Pável Nikolaiévitch Miedvédiev e
Ivan Ivanóvitch Sollertínski (1902-1944).
Sollertínski, que nasceu em Vitebsk, era além de historiador, um
conceituado estudioso do balé, música, teatro e literatura. Como grande parte dos
intelectuais de seu círculo, dominava várias línguas, inclusive o Português. Ele e
Pumpiânski são citados como, provavelmente, os únicos na Rússia do início do
século XX a dominar tal língua.
P. Miedvédiev foi redator da revista local Iskusstvo (Arte), que era uma
das quatro publicações financiadas pela imprensa russa e destinadas à divulgação
e aos debates da vanguarda artística. Ao longo de suas seis publicações (de
março a agosto de 1921) a revista pôs em circulação artigos de intelectuais como
Lissitzki, Miedvédiev, Voloshinov, Maliévitch e seu coletivo artístico: o Unovis. As
outras três revistas publicadas entre os anos de 1918-1923 foram: Izobrazitelnoie iskusstvo (Artes da Representação), Iskusstvo kommuni (Arte da comuna) e Jizni iskusstvo (Vida da Arte).
Estas revistas faziam parte de um conjunto de ações públicas dirigidas
pela Izo, que tinha por objetivo estabelecer o posicionamento das artes plásticas
frente ao projeto sócio-político soviético. A Izo foi responsável por ações que
incluíam a compra de obras dos artistas de vanguarda das mais variadas
tendências com o objetivo de formar os primeiros acervos de arte contemporânea
espalhados pelo território soviético; a organização de exposições gratuitas e sem
a presença de júri; a criação de museus e institutos de pesquisa artística em
diversas províncias abertos a toda a população que neles desejasse ingressar; a
decoração de espaços públicos nas festas comemorativas; ilustrações de livros
(especialmente infantis) e a publicação de livros de difusão da História da Arte e
da Literatura.
251
Em acordo com as políticas de difusão da cultura e a ideologia marxista
essas ações culturais e conferências não eram direcionadas apenas ao público
especializado, mas abertas aos operários e trabalhadores do campo. Estas eram
práticas e concepções endossadas por muitos intelectuais, que aceitaram
prontamente a tarefa de esclarecer as massas no intuito de diminuir as diferenças
culturais que operavam em uma sociedade dividida por classes. Em linhas gerais,
a crença era de que a circulação e elevação do nível de conhecimento iria se
desenvolver a partir de novos modos de vida coletivos.
Todavia, ainda que esse furor destrutivo/construtivo da revolução tenha
atingido igualmente alguns membros do partido, o traço distintivo entre as
concepções ideológicas defendidas por grande parcela dos intelectuais e artistas
da época em relação ao pensamento leninista era de que a revolução na
consciência humana, na qual a arte teria papel fundamental, deveria anteceder a
transformação material e não poderia ser restringida à construção de um modelo
esquemático do operário soviético , mas de um novo homem universal .
Vitebsk foi, ainda que por um curto período de tempo, o refúgio no qual
Maliévitch e seu grupo pôde trabalhar dentro desse espírito de renovação.
Em correspondência datada de 18 de novembro de 1919, o artista
relata a repercussão de sua chegada a Vitebsk:
Assim que cheguei, no dia seguinte, todos já sabiam da minha chegada. A conversa não parou, a água tremia cada vez mais, e no jornal saiu uma nota: ´Chegou o conhecido pintor futurista que bateu o recorde da arte com o suprematismo´; esqueceram de acrescentar que logo irá comer ferro, beber cobre líquido e engolir ferraduras. [...] No terceiro dia veio até mim uma delegação pedindo-me para fazer uma palestra sobre o cubismo e o futurismo. [...] E no que deu: exatamente porque falei com precisão respondendo às questões, fracassei e percebi a indignação e a desilusão. Gritavam-me que não devia falar do incompreensível, que estavam aí para conhecer o cubismo, para conhecer a verdade, e as mulheres falavam do meu penteado. [...] Mas não fiquei sozinho. Um pequeno círculo que me apoia começou um
252
trabalho infernal e está transcrevendo minha brochura nas litografias. 209
De fato, Maliévitch causou grande turbulência até mesmo dentro da
Escola de Arte de Vitebsk, que tinha inscritos seiscentos alunos e era liderada por
Marc Chagall, o qual em pouco tempo se viu obrigado a ceder espaço, não só da
fachada da mansão onde estava instalada a academia e que era pintada
inicialmente com trabalhos do artista simbolista, mas também o próprio cargo de
direção do Instituto e do Museu de artes aos membros do grupo de Maliévitch.
A grande difusão do Suprematismo em Vitebsk durante os anos vinte,
seja por meio da produção visual do grupo Unovis ou pela publicação de uma
série de brochuras de Maliévitch, chegou a levantar suspeitas em relação aos
métodos de ensino do artista no interior dos institutos de arte, atraindo a crítica de
Apesar dessas acusações, é fundamental perceber que Maliévitch
sempre conseguiu participar com destaque de cada momento histórico da
vanguarda russa, desde sua chegada em Moscou, alcançando posições e
financiamentos do governo para seus projetos, mesmo em momentos críticos do
regime soviético (a exposição retrospectiva de sua obra em Varsóvia e Berlim em
1927 é um exemplo emblemático disto). Assim, Vitebsk foi um local privilegiado
dentro de sua trajetória artística.
Contudo, para compreender a dimensão da figura de Maliévitch nesses
anos, deve-se levar em conta a existência de um forte e amplo círculo de amigos,
admiradores e de eventos protagonizados pelo artista. O conjunto destes dados
mostra-se capaz de fornecer uma explicação plausível para o fato de alguém
209 MALIÉVITCH, K., op. cit., pp. 96-98.
253
como Maliévitch ter conseguido permanecer em liberdade na União Soviética, até
1935.
O centro nervoso de toda essa movimentação cultural no campo das
artes visuais foi a Escola Popular de Arte de Vitebsk (que nos dias atuais tornou-
se o Museu de Arte Contemporânea de Vitebsk). O prédio pertencia originalmente
ao banqueiro I. V. Vichniak, situada no número 10, da Rua Voskresenkaia. Após a
Revolução o líder bolchevique Nikolai Bukharin homenageou sua própria família
ao rebatizar a rua como Bukharinskaia (atualmente Rua Pravda). O prédio foi o
local de trabalho e morada de figuras como Chagall e Lissitzki durante os anos de
1919 e1920, e Maliévitch e Vera Ermolaeva, entre 1919 e 1922.
Segundo as pesquisas de Aleksandra Chatskikh (2007), a Escola
começou oficialmente a funcionar no dia 28 de janeiro de 1919, embora alguns
artistas já atuassem em seu interior antes desta data. Chagall foi, inicialmente, o
grande maestro que ajudou a estruturar e dividir os cargos da instituição. Ele
acumulava diversas funções como as de Comissário de Belas Artes de Vitebsk,
Diretor de um dos ateliês da Escola (desde o mês de janeiro) e de Diretor da
Escola (a partir do final de fevereiro).
Em fevereiro de 1919, foi fundado o Conselho de Arte e de Produção
Artística de Vitebsk. Marc Chagall foi escolhido presidente, Ivan Albertovich Puni
(1892-1956) ficou responsável pela chefia do Agitprop (Comitê de Agitação
Política), Ksana Boguslavskaia (1892-1972) tornou-se chefe do Departamento de
Produção Artística, N. I. Liubavina era a chefe da Seção Pedagógica e I. K. Tilberg
dirigia o estúdio de escultura, tendo o crítico de arte Aleksander Gueorguievitch
Romm (1886-1952) como instrutor.
Segundo o desejo de Chagall, seu antigo professor, Mstislav
Valerianovitch Dobujinski (1875-1957) foi nomeado diretor da Escola Popular de
Arte de Vitebsk. Como muitos outros, Dobujinski aceitou o convite do ex-aluno em
busca de recursos e melhores condições de vida. Embora sua permanência em
254
Vitebsk tenha sido relativamente curta, em comparação a de outros artistas, sua
influência na cidade foi grande, pois o artista era já conhecido do público como um
dos principais nomes do grupo Mundo da Arte.
O grupo de artistas que constituiu a Escola em seus primeiros anos foi
responsável em grande medida pela formação de um cenário cultural de
vanguarda em Vitebsk. Isto porque, além de serem artistas de importância em
Moscou e São Petersburgo, tinham ligações diretas com os debates e artistas
europeus.
Fazia parte desse primeiro grupo, Puni (ou Jean Pougny, como ficou
conhecido após fixar residência na França, em 1924), que vinha de uma família de
artistas: seu pai era um músico profissional da orquestra do Teatro Imperial e seu
avô era o compositor e diretor italiano Cesare Pugni. Além disto, o próprio artista
havia viajado pela Itália e Bélgica, realizando estudos na França entre os anos de
1910 e 1912, onde manteve contato com artistas da Escola de Paris. Dentro desta
mesma perspectiva internacional, sua esposa, a artista Ksania Boguslavskaia, que
havia participado de exposições do grupo União da Juventude e era conhecida na
Rússia, tanto por sua beleza, quanto por ser a musa de Vielimir Khlébnikov, havia
estudado na Escola de Belas Artes de Nápoles e residido em Paris. Na Itália, ela
teve contato com artistas como Amadeo Modigliani e Chaim Soutine.
Logo após a partida de Dobujinski, Marc Chagall desempenhou na
prática a função de diretor. Contudo, a leitura de diários e memórias de alunos do
Instituto costuma levar à interpretação errônea de que Maliévitch teria ocupado o
cargo de diretor.
A relação pessoal e as disputas artísticas entre Chagall e Maliévitch são
alvo de discussão de vários historiadores. Há quem aponte como as desavenças
entre os dois foram o motivo principal da partida de Chagall de Vitebsk, outros
autores ressaltam a grande admiração e respeito que Chagall sempre teve por
Maliévitch e indicam a relação conflituosa com Romm como o motivo da partida de
255
Chagall. Claire Le Foll (2002) afirma, por exemplo, que as diferenças entre
Maliévitch e Chagall nunca tiveram um caráter pessoal e sim artístico, sendo que
estes sempre mantiveram relações respeitosas mútuas. Chagall teria sido até
mesmo favorável à formação do grupo Unovis, que além de garantir destaque à
instituição, proveria a demanda de alunos que desejavam se inscrever na Escola.
Em todo o caso, é sintomático perceber que do grupo de alunos que
estudavam com Chagall antes da chegada de Maliévitch, poucos permaneceram
fiéis ao antigo mestre. Desta lista de dissidentes, podemos ver alguns dos mais
destacados membros do grupo Unovis, que permaneceram ao lado de Maliévitch
não apenas em Vitebsk, mas partiram com ele da cidade em meados dos anos
vinte: Lazar Khidekel, Ilia Tchachnik, Lev Tsiperson e Mikhail Veksler. Em sua
todos aqueles
professores se rebelaram e inscreveram meus alunos na rebelião deles 210
Outros dois relatos contemporâneos põem em destaque a
personalidade e o grande carisma de Maliévitch sobre seus alunos:
Maliévitch [...] gostava das manifestações, das disputas e de novos axiomas. Em torno dele, havia muito barulho e movimento. Havia muitos seguidores e alunos fanáticos. Ele sabia comunicar a estes uma fé infinita neles próprios. Seus alunos o endeusavam a maneira dos soldados de Napoleão.211
Seu aspecto de professor, sua voz um pouco seca, doce, mas muito convincente davam a sua pessoa uma força atrativa. [...] nós todos fomos seduzidos. Nós permanecíamos sentados e escutávamos, hipnotizados, cada uma de suas frases.212
Em abril de 1920, de Escola Artística Popular Superior de Vitebsk ela
passa a ser nomeada como Ateliês Artísticos livres do Estado de Vitebsk
210 CHAGALL, Marc, My Life, New York: Da Capo Press, 1994, p. 144. 211 PUNIN, Nikolai apud VALABRÈGUE, op.cit., p. 101. 212 EFROS, Natan apud Ibid., p. 158.
256
(Vitsvomas). Como já era comum aos outros Svomas espalhados pelo território
russo, ficava a cargo dos estudantes a escolha de seus professores e a
participação nas atividades e na organização coletiva dos ateliês. Em 19 de junho
de 1920 (o mandato oficial é datado de 24 de junho) Vera Ermolaeva foi nomeada
pela Izo de Moscou como diretora dos ateliês, em substituição de Chagall.
Como comprovam documentos da época, Maliévitch chegou a receber
um tratamento diferenciado no interior do Vitsvomas. Conforme foi pedido por
Vera Ermolaeva, Maliévitch passou a receber um salário quatro vezes maior do
que seus colegas que ocupavam cargos semelhantes. Desde janeiro de 1921, ele
era o único professor que recebia um salário de 80.000 rublos, ao passo que os
outros ganhavam 19.000 rublos:
O professor dos Ateliês Artísticos do Estado de Vitebsk, Maliévitch, dirige desde 1º de novembro de 1919 um curso especial de teoria e de prática da nova arte nos ateliês artísticos. [...] Sendo o único teórico e pesquisador das questões da nova arte, Maliévitch, por sua presença, anima a vida escolar com toda uma série de grupos de estudos, assim, a presença de Maliévitch é absolutamente indispensável. Porém, as taxas fixadas para os mestres são inferiores ao mínimo vital e os Ateliês pedem a validação de uma taxa pessoal de 120.000 rublos por mês para Maliévitch com a finalidade de que ele possa continuar trabalhando em Vitebsk.213
Vitebsk ficava localizada em uma zona relativamente próxima aos
frontes de guerra e como outros locais também sofria com a falta de diversos
recursos materiais ocasionada pelo comunismo de guerra. Já no final de
dezembro de 1918, por exemplo, a falta de papel fez com que a impressão de
jornais, livros e folhetos fosse reduzida. Isto gerava um entrave político, pois o
o que incluía a
impressão de cartazes e material de propaganda e agitação. Por este motivo, é
213 Cf. carta de Ermolaeva ao chefe do Departamento de Instrução da região. In: GAVO, f. 837, op.1, d. 58, p. 91 apud FOLL, Claire Le, -1923) - Eveil et rayonnement autor de Pen, Chagall e Malévitch,
257
comum ver que as publicações da época (ou mesmo os cadernos de anotações
dos artistas - Maliévitch é um destes) eram impressas em formatos reduzidos, do
tamanho de um quarto de página.
Pensando nesses dados e considerando que por diversas vezes os
funcionários da Izo tenham recebido em atraso ou mesmo deixado de serem
pagos (cartas da época à administração mostram que Maliévitch também não
ficou isento deste problema), o pedido de Ermolaeva evidencia o grande prestígio
que Maliévitch gozava em Vitebsk.
Em seu Programa para a Academia de Vitebsk (1920), o Unovis
anunciava o fio condutor de suas pesquisas
sem se desligar dos problemas de arquitetura, da filosofia da nova arte, do teatro,
A importância da criação de um novo método artístico que atendesse às
mudanças da época era outra preocupação central do coletivo. Os temas básicos
de seu programa eram anunciados da seguinte maneira:
Orientação geral da oficina Cubismo, Futurismo e Suprematismo como a nova formulação mundial da cor pictórica. Tendências básicas tomam forma como temas de todas as outras tendências desenvolvidas. Sistematização, articulação das estruturas na pintura, equilíbrio das estruturas formais em pintura, tinta e pintura, material. Seção 1. Grupo 1: Abstração dos objetos. Conhecimento das formas pictórica e escultural, volume, plano, como uma introdução ao Cubismo. Pintura cor. Pintura materiais. Elementos de estruturação. Familiarização com o sistema e a construção da estrutura na tela e no espaço. Seção 2. Grupo 2. Cubismo. Cézanne e seu panorama pictórico tal como executado nas imagens pictóricas. Teoria do Cubismo e sistema da construção da forma por meio da textura e materiais. Espaço e a forma da distribuição Cubista dos elementos. Construção da natureza, deslocamento da construção e elaboração de uma nova construção Cubista. Ordenação dos elementos em sua forma pictórica pura. Cubismo e natureza. Estado estático e dinâmico. Seção 3. Grupo 1 Futurismo como uma teoria da velocidade.
258
Van Gogh como um expoente do dinamismo, a realização de sua perspectiva. Futurismo e natureza, cidade e vila como objetos que afetam a estrutura da velocidade de um instante. Teoria do Futurismo. Construção da velocidade dos objetos. A abordagem acadêmica. Seção 4. Dinâmica pura da cor. Sistema de construção. Economia. Decoração. Ornamento. Teatro. Movimento Suprematista sem-cor. Teoria do movimento da energia da cor. Arquitetura. Suprematismo Tridimensional da estrutura. O quadrado seu desenvolvimento econômico. A filosofia do Suprematismo. Ciência refutação da ciência. O desenvolvimento interior das construções da ciência natural. Personalidade e unidade. O coletivo como um caminho para a unidade. Oficinas Decorativas Teatro. Dinamismo. Estática. A fatura dos objetos, sua forma. Pintura mural e o plano. Composição decorativa.214
O programa de ensino do sistema suprematista no interior do Unovis
dividia-se nos seguintes eixos:
1. Dinamismo colorido puro, sistema de edificação, economia, cenário, ornamentação, teatro; 2. Movimento suprematista incolor; 3. Teoria do movimento suprematista; 4. Arquitetura, suprematismo corporal de construção; 5. O quadrado, seu desenvolvimento econômico; 6. Filosofia do suprematismo. Ciência - negações da ciência. Desenvolvimentos da construção em si, conforme a natureza; 7. Pessoa e unidade. O coletivo enquanto via para a unidade. 215
Inicialmente, os cursos da Escola de Vitebsk envolviam prioritariamente
o estudo de desenho e pintura, mas com a chegada de Lissitzki e com a formação
214 In: UNOVIS, Program for the Academy at Vitebsk (1920). Disponível em http://www.mariabuszek.com/kcai/ConstrBau/Readings/UNOVISpgm.pdf. Acesso em: 04/07/2013. 215 Programa do Coletivo Unovis dos Ateliês nacionais livres de Vitebsk. In Almanaque, n. 1, Vitebsk, 1920 apud MARCADÉ, 1995, p. 205.
259
do grupo Unovis, a Escola se voltou à formação arquitetônica, gráfica e às
investigações das formas plásticas no espaço.
Lissitzki trabalhou na Escola Popular de Arte de Vitebsk entre maio de
1919 e 1920, mas apesar de sua breve atuação, Vitebsk estava muito longe de ser
um ninho estranho a alguém de origem judaica e que teve contato com a província
desde a infância. Isto porque seu pai, que era um artesão, frequentemente
passava férias com a família em Vitebsk.
Assim como outros artistas que ali fixaram residência, Lissitzki trazia na
bagagem o conhecimento e o contato com o que havia de mais novo da
vanguarda europeia e ao mesmo tempo era capaz de se integrar perfeitamente às
tradições locais.
Lissitzki estudou no Departamento Técnico da Universidade de
Darmstadt, na Alemanha, entre os anos de 1910 e 1914. No mesmo período
viajou por cidades italianas e também conheceu Paris. Seu contato com Maliévitch
foi anterior a Vitebsk; os dois se conheceram depois da Revolução em Moscou,
quando Maliévitch já ocupava cargos de prestígio no Narkompros.
O artista chegou a Vitebsk em maio de 1919, a convite de Chagall para
atuar na Escola, que naquele momento necessitava da contratação de um
professor com conhecimentos em arquitetura. Porém, o interesse de Chagall por
alguém como Lissitzki tinha, provavelmente, relações com o trabalho gráfico e de
ilustração e com a origem judaica do artista.
Entre 1917 e 1919, Lissitzki esteve em contato com grupos ligados às
tradições judaicas de Moscou, Kiev e Vitebsk. Entre seus principais trabalhos
nesta área estão ilustrações de livros infantis de histórias da literatura judaica,
como, por exemplo, O Pequeno Bode (1919), que têm uma forte ligação estética
com a poética e com as temáticas das obras de Marc Chagall.
260
Contudo, a grande parceria que se formou no interior do Instituto foi
entre Lissitzki e Maliévitch, embora tal proximidade não tenha excluído
desavenças pessoais e conceituais. Os dois eram donos de fortes personalidades
e pontos de vista, por vezes simétricos, por vezes antagônicos, foram capazes de
mudar um ao outro, tanto que se pode praticamente dividir a produção de Lissitzki
entre antes e depois da chegada de Maliévitch, e o movimento contrário também
não pode deixar de ser notado. A observação de algumas datas também pode
confirmar com maior exatidão tal ligação: os Prouns (Projetos de afirmação do
novo) de Lissitzki são de 1920-1921, mesmo período em que Maliévitch se dedica
à escrita dos tratados filosóficos e à concepção de seus projetos suprematistas
tridimensionais, os arquitetones.
Maliévitch foi para Vitebsk após o convite de Lissitzki para que fizesse
parte do quadro docente da Escola. Antes de sua chegada, ele trabalhava nos
Ateliês Livres do Estado (Svomas), de Moscou. Sua esposa estava grávida e
morando em uma datcha sem aquecimento. Em Moscou, não havia comida ou
lugar para o artista morar, como ele relata em carta oficial:
Declaração ao Conselho dos Ateliês Livres Artísticos do Estado por parte de Kazímir Sieverínovitch Maliévitch Apesar do meu desejo de continuar trabalhando aqui, fui compelido, na ausência de um apartamento (estou vivendo em uma datcha fria), lenha ou eletricidade, a aceitar a oferta feita pelos Ateliês de Vitebsk, os quais irão me prover com as condições necessárias de trabalho e vida para deixar Moscou. K. Maliévitch P.S. Eu solicito que o Conselho veja bem o que me deve em salário atrasado e outras remunerações. Por favor, enviar para: Vitebsk, Bukharinskaia, 10. Ateliês Livres de Arte, em meu nome. 29 de Outubro de 1919.216 Estimado Mikhail Ossipóvitch. Não consegui revê-lo, tive que partir rapidamente para Vitebsk; este lugar parece-me um exílio. De
216 In: SHATSKIKH, A., op. cit., p. 67.
261
repente vieram umas pessoas de Vitebsk, me tiraram do frio e da escuridão. 217
Se a princípio Vitebsk representou um exílio para Maliévitch, em pouco
tempo se tornou o protótipo da utopia suprematista, pois foi nesta cidade que
Maliévitch reuniu em torno dele um grupo de seguidores, realizou exposições e
ações públicas e estendeu as discussões estéticas do Suprematismo para o
espaço, em objetos, cenários, cartazes, tecidos e projetos arquitetônicos. Foi
também onde escreveu e publicou seus mais importantes tratados teóricos e
filosóficos.
Entre o primeiro tratado, Dos novos sistemas na Arte, até o último,
Deus não está destronado, Maliévitch publicou De Cézanne ao Suprematismo
(Petrogrado, 1920); Suprematismo: 34 Desenhos (Vitebsk, 1920 com versão final
publicada em 1921); Sobre o problema das Artes Plásticas (Smolensk, 1920). Em
conjunto com os membros do Unovis, publicou em Iskusstvo o artigo Unovis; na
coletânea Unovis n. 1 publicou os artigos
Pura Performance , além dos manifestos Unom 1 e Declaração . Paralelamente,
em 1920, Ilia Tchachnik e Lazar Khidekel publicaram o livro AERO: Artigos e Projetos e El Lissitzki publicou um livro infantil: Um Conto suprematista sobre dois quadrados.
Dos Novos Sistemas na Arte é desse período notável na trajetória
artística e pessoal de Maliévitch. Datado de 1919, o texto foi, segundo uma carta
enviada pelo artista a seu amigo M. Matiuchin no início dos anos de 1920,
concebido antes de sua chegada, mas publicado em Vitebsk a partir das notas de
uma conferência proferida em 17 de novembro. Graças à ajuda de Lissitzki, foram
217 Trecho de uma carta enviada por K. Maliévitch a Mikhail Ossipóvitch Guerchenzon, de Vitebsk para Moscou, datada de 7 de novembro de 1919. In MALIÉVITCH, K, Dos novos sistemas na arte, op.cit., p. 90.
262
impressas mil cópias litografadas da brochura, uma quantidade bastante
expressiva para a época.
Em uma carta de Maliévitch para o filósofo Guerchenzon, datada de 07
O
principal é que toda minha energia poderia ser gasta na escrita de brochuras,
agora estou me devotando assiduamente no meu exílio em Vitebsk - o pincel
parece mais e mais 218
Ao mesmo tempo, fotos e relatos da época, publicados na Miscelânia Unovis n. 01, mostram como o Suprematismo se proliferou por Vitebsk pelos
muros, decorações de espaços públicos, em padronagens de roupas, em projetos
variados desenvolvidos pelos companheiros e alunos de Maliévitch. Os Prouns, de
Lissitzki, mostram bem este desenvolvimento espacial do Suprematismo.
Por outro lado, se a estética Suprematista despertou atenção de muitos,
ela também não permaneceu isolada da vida cultural, filosófica e religiosa de
Vitebsk. Um exemplo peculiar deste tipo de correspondência é apontado por
Aleksandra Chatskikh:
A utilização de letras largas, maiúsculas que os copistas intuitivamente utilizavam, ligam as páginas do livro de Maliévitch [Dos Novos Sistemas na Arte] e os pôsteres de propaganda com as páginas dos livros usados em práticas rituais de vários grupos religiosos que ainda existiam por aquela época. O próprio Lissitzki
apenas dois anos antes. O livro de Maliévitch criado e concebido por Lissitzki continha, inevitavelmente, alguns rudimentos dos pergaminhos sagrados judeus e trazia características dos manuscritos Talmutic.219
218 MALEVICH, K., Carta a M. O. Guerchenzon, Vitebsk, 07 de novembro de 1919. In: VAKAR, I. A.; MIKHIENKO, T. N. (ed.), op. cit, p. 110. 219 SHATSKIKH, A., op cit., p. 77.
263
A semelhança entre o ícone suprematista de Maliévitch, seu quadrado
preto, com um dos principais elementos do judaísmo ortodoxo, o tefilin/filactério
também é apontada por Chatskikh e embora esta possa parecer uma associação
pouco fundamentada, em especial se for levado em consideração que a data de
criação do quadro é anterior à residência de Maliévitch em Vitebsk, também não é
impossível imaginar que o artista, inserido em uma cidade tão definida pela
tradição judaica e religiosa possa ter visto em tal correspondência uma
confirmação a mais do caráter místico de sua criação artística.
Outro dado que não pode deixar de ser levado em consideração
quando se pensa na estadia de Maliévitch em Vitebsk é seu forte envolvimento
com o Unovis, enquanto algo que ultrapassa as necessidades existentes e
legítimas de lecionar por uma ração acadêmica ou subsídios materiais. Tanto sua
relação é pessoal, que sua filha recebeu o nome Una em homenagem ao grupo.
Também é relevante pensar sobre o teor das acusações que eram
feitas ao Unovis. A ideia de coletivo, comuna, programa ou partido foi algo comum
a muitos outros grupos entusiasmados pelos ideais revolucionários, mas o Unovis
foi alvo de acusações oficiais no interior do Instituto, sendo muitas vezes nomeado
pejorativam religiosa , segundo seus opositores,
por causa do sentimento místico do grupo, isto não apenas em
relação às produções e ensinamentos de Maliévitch, mas às maneiras,
vestimentas e relações adotadas pelo grupo. Sob o aspecto político, estas
acusações tornavam-se ainda mais graves porque o próprio Maliévitch afirmava
econômico suprematista 220
220 (Vitebsk) para Matiuchin (Petrogrado). In: VAKAR, A.; MIKHIENKO, T. N., op.cit., vol 1, Moscou: RA, 2004, pp. 122.
264
Em Vitebsk, não era raro que o coletivo
fosse comparado até mesmo às Lojas Maçônicas,
por causa da teatralidade das ações do grupo,
além de sua visão de mundo fortemente
idealizada, elementos que foram algumas vezes
associados por seus contemporâneos às práticas
religiosas e rituais da maçonaria. Este tipo de
leitura é até hoje feita em relação a outros grupos
que existiram pelo mesmo período. Alguns
autores apontam, por exemplo, evidências de que
os encontros filosóficos dos membros do círculo
e filosófico-
eram dedicadas às práticas maçônicas.
Durante os anos em Vitebsk, Iudin
pois mais que um professor, ele era
constantemente visto pelos alunos como um
mestre espiritual.
A leitura visual das fotos do período
pode demonstrar dados interessantes que
corroboram a esse tipo de interpretação. El
Lissitzki durante seus anos em Vitetbsk usava
barba e por vezes trajes que lembram as de um
religioso ortodoxo, fato que contrasta com a
imagem ocidentalizada e pragmática do artista, a
partir de 1920, quando começa a lecionar no
Vkhutemas de Moscou e, especialmente entre
1922 a 1925, quando fixa residência na Europa
Imagem 43 (acima): Lissitzki e Maliévitch, 1920. Fotografia. Centro Cultural Fundação Khardjiev-‐Chaga, Museu Stedelijk, Amsterdã. Imagem 44 (abaixo): Grupo Unovis, Vitebsk, 1921. Fotografia. Coleção Particular. Fonte: SHATSKIKH, A., Vitebsk -‐ The Life of Art, New Haven, London: Yale University Press, 2007, pp. 165, 189.
265
ocidental.
Além disso, fotos das aulas e reuniões
do grupo Unovis, mostram que seus integrantes
tinham quadrados costurados nos punhos das
mangas e as mulheres quase sempre têm algum
ornamento suprematista, seja em broches
pregados às camisas ou chapéus, quando não,
com vestidos que exibiam estampas suprematistas.
Algo que certamente não passava despercebido
em uma época de roupas monocromáticas, à
exceção, é claro, de seus colegas futuristas, que já
nos anos de 1910, mobilizavam a polícia por conta
de vestimentas pouco usuais.
Porém, essa devoção a Maliévitch e o
m ser
pensados a partir de determinados fatores. O
primeiro está ligado à euforia dos primeiros anos
após a Revolução, quando os projetos de
transformação social e da vida (byt) pareciam estar
a caminho de se realizar e os artistas de vanguarda
assumiram cargos oficiais sob o apoio do novo
regime, levando para dentro das instituições jovens
artistas que viam em uma época de guerra civil e
restrições das mais diversas a esperança de
colaborar na construção de uma sociedade
renovada. Um segundo ponto que certamente
fortaleceu a união do grupo em torno de Maliévitch
foi o de que boa parte de seus alunos era ainda
Imagem 45 (acima): Lissitzki em seu ateliê, Vitebsk, 1919. Fotografia Imagem 46 (abaixo): El Lissitzki. Autorretrato, 1924. Fotografia. Fonte: LISSITZKY-‐KÜPPERS, Sophie, El Lissitzky, Dresden: Verlag der Kunst, 1967, pp.28, 32.
266
bastante jovem (Maliévitch tinha nesse momento alunos com doze e quatorze
anos), um grupo de jovens entusiasmados que dedicavam integralmente suas
energias à utopia da não-objetividade.
Em uma das páginas de seu diário, datada de 12 de Fevereiro de 1922,
Lev I K. S. entra e imediatamente você tem outra atmosfera. Ele cria
em torno dele outra atmosfera. É realmente um 221
Contudo, ainda que possa ter havido uma euforia juvenil nas ações do
coletivo, um breve olhar sobre a cronologia destas ações pode demonstrar a
profundidade de sua inserção na vida cultural de Vitebsk.
A Escola de Arte foi inaugurada no final de janeiro do ano de 1919.
Como era comum a instituição teve seu nome alterado diversas vezes ao longo
dos anos como forma de transmitir pela linguagem as transformações ideológicas
e políticas de ensino do regime. Inicialmente, foi nomeada como Escola de Arte
Popular de Vitebsk, sendo renomeada, em 1921, como Estúdios Estatais Artístico-
Técnico de Vitebsk, posteriormente transformados em Instituto Artístico-Prático de
Vitebsk.
Segundo as Notas sobre o Movimento Unovis , de I. T. Gravis e
seguindo essa mesma linha de transformações, o coletivo de Maliévitch é
denominado como Grupo de jovens cubistas, em 17 de janeiro de 1920. Dias
depois, em 19 de janeiro, são nomeados de Molposnovis (Molodie Posledovateli Novogo Iskusstva), um anagrama para Jovens Seguidores da Nova Arte. Em 28
de janeiro, t
maduros como Maliévitch, Lissitzki e alguém como Tzivia Rozengolts, que tinha
sessenta anos de idade, o grupo é renomeado como Posnovis (Posledovateli Novogo Iskusstva), uma abreviação de Seguidores da Nova Arte. Em 14 de
221 IUDIN, Lev, Diários (Vitebsk, 1921-1922). In: VAKAR, A.; MIKHIENKO, T. N., op.cit., vol 2, p. 229.
267
fevereiro o grupo assume seu nome definitivo: Unovis (Utverditeli Novogo Iskusstva), Afirmadores da Nova Arte.
A promessa de uma síntese das artes oficializada por Wagner e
herdada da cultura alemã, primeiramente pelo Simbolismo russo, parecia estar
mais perto de se concretizar por meio das artes teatrais. Assim, no início de 1920,
por ocasião do primeiro aniversário do Instituto, o grupo de Maliévitch foi
responsável pela organização de diversos espetáculos, entre estes, uma nova
montagem da ópera Vitória sobre o Sol, em 06 de fevereiro, atuada, dirigida e
produzida pelos alunos de Maliévitch. Nesta segunda versão da ópera, Vera
Ermolaeva, sob a supervisão de Maliévitch, foi responsável pela criação dos
cenários e Lissitzki idealizou os figurinos.
Também é do mesmo período o projeto de um Balé Suprematista, no
qual os figurinos e coreografias foram concebidos pela artista Nina Kogan. No ano
de 1921, o Unovis organizou uma série de saraus de música, poesia e teatro.
Nestas apresentações, era comum a leitura de poemas de Maliévitch.
A escolha da ópera que gestou as primeiras formas suprematistas de
Maliévitch é emblemática, pois demonstra o desejo de celebração do
Suprematismo em Vitebsk. Somado a isto, Lissitzki tinha ainda a intenção de
inserir elementos mecânicos e elétricos à apresentação.
Além dessas apresentações durante os primeiros anos da década de
1920, a atuação do grupo se estendeu aos olhos de toda Vitebsk por meio de
decorações públicas em muros, praças, vagões de trem, a exemplo das
decorações em comemoração ao Dia do Trabalho, da Festa dos trabalhadores da
arte e das comemorações da Revolução de Outubro.
A presença suprematista tornou-se tão preponderante que, durante o
ano de 1919, Chagall já começou a esboçar planos de deixar a cidade, mas foi no
final de maio de 1920, quando ao retornar de uma breve viagem a trabalho para
268
Moscou, realizada no intuito de conseguir suprimentos para a Escola, que o artista
se viu definitivamente sitiado pelo Suprematismo, pois seus últimos alunos haviam
aderido ao grupo Unovis. Chagall deixou Vitebsk em 05 de junho de 1920.
O evento que colocou o Unovis definitivamente no mapa artístico russo
foi a Conferência de Professores e Estudantes de Arte de Toda-Rússia, ocorrida
entre 2 e 9 de junho de 1920.
O grupo Unovis chegou para a Conferência em Moscou no dia 8,
apenas um dia antes de seu término, fato que não impediu o grupo de participar
ativamente dos debates, demonstrando uma visão particular dos problemas
artísticos e que já se opunha naquele momento ao pensamento artístico dos
coletivos moscovitas.
A Conferência teve em seus primeiros dias como palestrantes D. P.
Chterenberg ( Resultados Atuais e Tarefas Futuras da Izo na Esfera da Arte
Educação ), V.V. Kandinski ( O Instituto de Cultura Artística ), O. M. Brik ( Arte e
Comunismo ), A. V. Lentulov ( Arte Contemporânea e as Escolas ), N. S.
Morgunov ( Centralização e Atomização ), D. A. Arkin ( As Tarefas da Arte
Educação e do Design Industrial ). A segunda parte do evento foi dedicada
especialmente à discussão das questões ligadas ao problema da arte-educação
no quadro da revolução cultural.
Em 8 de junho, em uma sessão aberta por Maiakóvski e encabeçada
por A. A. Morgunov ( O Eixo da Arte-Educação ):
O Camarada Maliévitch, saudando a conferência, se opôs a caracterização da nova arte como assustadora ao proletariado que foi feita pelo camarada Morgunov. Ao contrário, sua experiência pessoal em Vitebsk demonstrou que a nova arte não assusta o proletariado em absoluto [...] Atualmente todas as fábricas e moinhos, assim como o teatro e outros prédios públicos são decorados com as novas formas da arte. A partir disto, podemos
269
ver que, não apenas o proletariado não teme a nova arte, como a aceita alegremente.222
Um dos dados que pode explicar essa particular aceitação das artes
não-figurativas em Vitebsk era a maciça presença da cultura judaica. Segundo
documentos da época, 75% dos alunos que frequentavam a Escola Artística de
Vitebsk eram judeus223. Consequentemente, esta porcentagem se refletiu
diretamente no grupo Unovis, que também era formado em sua maioria por
judeus, dentre eles: Lissitzki, Iudin, Roiak, Khidekel, Veksler, Kogan, Tchachnik,
Tchervinka, entre outros.
Para compreender a proliferação de uma estética como a suprematista
em Vitebsk basta lembrar, como explica Le Foll (2002), que a arte tradicional
judaica era constituída essencialmente pelo desenho geométrico e ornamentos.
Esta escolha, em sua origem, estava em acordo com as tradições judaicas, que
proibiam a representação da figura humana e restringiam sua arte ao contexto
religioso, ou seja, à arquitetura das sinagogas, ao desenho de iluminuras e à
construção de objetos utilizados nos cultos. Mais pontualmente, esta preferência
pelas representações não-figurativas estava ligada ao segundo mandamento da
Torá, que proibia aos homens a criação de objetos destinados à idolatria, mas que
não restringia representações abstratas e decorativas.
Outro dado relevante sobre a comunidade judaica de Vitebsk e que
pode ter estabelecido relação com algumas das teorias e concepções estéticas do
grupo de Maliévitch é que, diferentemente dos círculos mais eruditos de judeus,
que cresceram em contato com a cultura e as línguas alemã e francesa, a maioria
dos judeus de Vitebsk era muito influenciada por movimentos místicos, como o
222 Cf. Protokol n. 12, RGA, f. 2306, op. 23, d. 116, p. 138v apud SHATSKIKH, A., op.cit, p. 149. 223 CHOULMAN, A., Iskusstvo trebuet jertv (A arte exige sacrifício), Michpokha, n. 03, 1997, p.51 apud FOLL, op.cit, p. 173.
270
hassidismo. Por volta do ano de 1909, Vitebsk possuía uma série de casas de
oração, quase todas hassídicas.
Entre outras particularidades, o hassidismo acreditava que Deus estava
presente em cada objeto, por toda parte e por todo o tempo, sendo este um dos
dados que abre espaço ao entendimento da integração entre poética suprematista
e as produções técnicas e aplicadas realizadas pelos integrantes do Unovis.
Conforme Claire Le Foll (2002), por volta da década de 1910, Vitebsk
contava com aproximadamente 90 mil habitantes e era uma das zonas de
residência onde se podia viver sem passaporte. Em grande parte por este motivo,
além da maioria de judeus (55%), sua população era formada por 29% de russos
e 12% de bielorussos, além de poloneses e lituanos, fato que conferia a Vitebsk
um caráter absolutamente multicultural.
Essa riqueza de tradições, hábitos, crenças, ou em outras palavras, a
existência de uma rica matriz cultural é um dado que não pode ser ignorado
quando se pensa na aceitação e na projeção das ideias e das ações do grupo
Unovis, em Vitebsk. A safra de publicações de Maliévitch e de outros artistas que
faziam parte do Unovis em um período de grandes restrições materiais, assim
como a inclinação destes artistas às artes gráficas aplicadas, como a ilustração de
livros e cartazes, deve ser pensada não apenas dentro do contexto da cultura e da
política soviéticas, mas também a partir de questões da cultura judaica. Para tanto
é preciso lembrar que, por décadas, o povo judeu teve sua população contida em
áreas específicas do território russo, sendo-lhe proibido manifestar seus credos,
tradições e costumes.
Como escreve Le Foll (2002), esse histórico de perseguições e ações
coercivas aos judeus dentro do território russo (sobretudo, daqueles provenientes
da Polônia) teve seu início entre os anos de 1772 e 1775. Contudo, foi com
Nicolau I, entre os anos de 1825 e r de correção dos
a russificação foi imposta de maneira mais brutal. Um regulamento do
271
ano de 1835, executado em 1843, obrigava os judeus a restringirem suas
moradias a zonas determinadas, afastadas de áreas de fronteira. Dentro desta
política, os judeus eram obrigados a prestar serviços militares por um período de
vinte e cinco anos. No entanto, em comparação aos russos, eles eram recrutados
em idade bem mais prematura, com doze anos ou menos, ao invés de dezoito
anos, além de serem submetidos a toda série de punições e violências (muitas
vezes inflingidas por eles mesmos - como mutilações - para fugir de tais serviços
militares). Em outras palavras, o intuito, quando não era o de extermínio, era o de
debilitar e desmoralizar os judeus a ponto destes se verem obrigados a abandonar
sua cultura e se converterem ao cristianismo.
Com o assassinato de Aleksandr II, no ano de 1881, no qual um judeu
foi acusado de ter envolvimento, as políticas antissemitas foram intensificadas,
dando vazão a uma série de novas medidas violentas e à abertura de diversos
pogroms. A partir do ano de 1840, o governo passou, por exemplo, a controlar o
ensino e os costumes do povo judeu, que foi obrigado a se vestir e a cortar o
cabelo (no caso dos homens) de acordo com os costumes russos. Em 1887, uma
lei proibiu aos judeus o direito de sair de suas cidades, o que acabou por
inviabilizar muitas de suas atividades comerciais. Anos depois, o comércio de
álcool também foi vetado aos judeus.
Contudo, como aponta Le Foll:
Face aos pogroms e às violências de todo o tipo, o povo judeu teve necessidade de se isolar e de se proteger. Ele se refugia na tradição e nos rituais religiosos não somente por crença, mas, sobretudo para não desaparecer completamente, para sobreviver. As medidas antijudaicas, em lugar de destruir a identidade judaica, fizeram com que explorassem outras vias, obrigando-os a criar uma nova solidariedade no cotidiano e novas formas de arte e de vida religiosa. O hassidismo, insistindo sobre o aspecto emocional da religião, soube manter a especificidade do judaísmo e marcou fortemente o coletivo da população judia em sua vida cotidiana e seu pensamento até o início do século XX. Ele se apresentava mais como uma ética, um modo de existência, do que como uma corrente religiosa. O hassidismo era bem paradoxal: de um lado
272
implicava numa vida muito regrada, obedecendo às leis ortodoxas, e de outro, autorizava o misticismo, o fantástico, o irracional. Ele tornava possível uma elevação constante do homem em direção ao mundo superior. Ele provinha uma atmosfera de milagre, de entusiasmo, de festa que se encontra nos quadros da escola de Vitebsk e de maneira recorrente em Chagall.224
Logo após a Revolução de 1917 e com a formação do governo
provisório, a Rússia assistiu a um breve, mas prolífero período de abertura
intelectual e social. Com o decreto de 20 de março de 1917, determinando que
todas as formas de discriminação nacional e religiosa estariam abolidas, o estado
de clandestinidade dos judeus começou a se alterar. Eles receberam o direito à
cidadania e igualdade civil, o que inaugurou, assim como em outros grupos
sociais, um lampejo de esperança e o ávido interesse dessa população de
participar das transformações na vida do país; muito embora os pogroms não
tenham sido abolidos e, especialmente durante os anos da guerra civil, a situação
de miséria dos judeus tenha se agravado.
Como a população de Vitebsk era formada em sua maioria por judeus,
existia alí grande potencial intelectual acumulado de uma população que viu a
oportunidade de se manifestar com maior liberdade em anos de história. A rápida
adesão dos judeus aos laboratórios artísticos de Vitebsk e o grande envolvimento
e entusiasmo com a vida da cidade representavam a resposta mais direta a esta
necessidade de divulgação de uma cultura que foi obrigada a se manter calada
por tanto tempo.
Com novos decretos que garantiam a liberdade de culto e o exercício
público de costumes e tradições, desenvolveu-se em Vitebsk um renascimento
dos círculos religiosos. Como extensão, ocorreu um movimento de revalorização
(ligado às expedições etnográficas que contaram com a participação de artistas,
224 LE FOLL, Claire, op.cit., pp. 35, 36.
273
como Lissitzki) das tradições da vida religiosa e dos modelos retirados do folclore
judeu, que receberam novas formas de interpretação em conjunto das estéticas
primitivista russa e de vanguarda.
Além disso, como as atividades comerciais dos judeus sofreram
diversas coerções ao longo dos anos, grande parte da população judaica passou a
se dedicar a atividades voltadas à produção artesanal, o que propiciou, em
Vitebsk, a existência de uma mão de obra pré-qualificada ao exercício das funções
nos ateliês artísticos.
Também é importante ressaltar o antagonismo do grupo de Vitebsk com
os grupos de Moscou, sendo o Unovis, já neste momento, acusado de
-Voznesensk
polemizaram com Maliévitch afirmando que a arte não-objetiva seria
poderiam atender às necessidades da revolução no quadro social. Em
contrapartida, em um debate com o antigo colega Kliun, Maliévitch argumentava
sua perspectiva em relação ao papel da não-objetividade na construção de uma
nova consciência:
O Camarada Maliévitch, discordando do Camarada Kliun, afirma que o conteúdo é ainda mais importante para a nova arte do que
Isso reflete a forma de uma nova vida, de novas cidades utilitárias. Dê-nos mais papel e iremos descarregar um Novo Mundo inteiro. A tarefa da era atual é a de ligar esses planos em organismos viventes. Assim como o socialismo desenvolveu no estudo apenas para se tornar a propriedade de todo o mundo, por isso nossos estúdios devem se tornar o local no qual a forma do novo mundo será construída. Nossos estúdios não precisam de pinturas, eles precisam de um plano para organismos viventes. O universo inteiro esforça-se por uma síntese, e a técnica da nova arte deve ser construída com isto em mente. Toda a natureza, toda
274
matéria aguarda esta mais nova revelação. A fim de alcançá-la o artista deve submeter isto ao seu crânio criati 225
Apesar da forte oposição dos grupos de Moscou, após a Conferência de Professores e Estudantes de Arte de Toda-Rússia, a Escola de Arte de Vitebsk
se tornou o coletivo mais conhecido da Rússia e para muitos, um modelo a ser
seguido. Maliévitch e seu grupo Unovis receberam ao longo dos meses seguintes
convites de escolas de outras províncias para apresentar o trabalho desenvolvido,
dentre elas, de Ekaterinburgo, Perm, Saratov e Samara. Além disto, a relação de
Maliévitch com os artistas Vladislav Strzeminski, Katarzina Kobro e Ivan
Kudriashev tornou possível a abertura de verdadeiras filiais do Unovis (o Unismo)
em cidades como Smolensk e Oremburgo.
O Unovis também foi ímpar no que se refere ao número de publicações
e ações coletivas nas mais diversas áreas artísticas. Dentre as realizações do
grupo, participou de nove exibições: três destas ocorreram na própria Vitebsk,
quatro em Moscou e uma em Petrogrado. Além disto, trabalhos do coletivo fizeram
parte de uma importante mostra em Berlim: a Primeira Exibição de Arte Russa, em
1922. Como um desdobramento dessa exposição, obras de integrantes do Unovis como Ermolaeva, Iudin, A. Kogan também foram expostas em outros pontos de
Berlim. Esta projeção internacional resultou na compra de trabalhos dos artistas
do coletivo pelo Narkompros, que foram posteriormente divididos por museus
espalhados pelas províncias.
As correspondências de Maliévitch atestam que o artista não tinha
intenções de permanecer muito tempo em Vitebsk, e frequentemente viajava a
Moscou, permanecendo lá por algumas semanas, mas as possibilidades em
Vitebsk foram tão favoráveis que em uma carta a D. Chterenberg e stou
morando em Vitebsk não para a melhoria da nutrição, mas pelo trabalho que
225 RGA, f. 2306, op.23, d.116, pp.129-30 apud SHATSKIKH, A. op.cit, pp. 149,150.
275
precisa ser feito nas províncias, esta é uma região na qual os figurões de Moscou
não estão muito inclinados a dar respostas a uma geração exigente 226
Certamente, existiam opositores das ideias de Maliévitch em Vitebsk
alguns membros do círculo de Bakhtin podem facilmente ser citados neste caso.
Porém, é preciso entender que esse tipo de oposição era algo que punha em
movimento um rico debate cultural na cidade. Ou seja, só poderia haver oposição
de ideias na medida em que os intelectuais podiam expressá-las publicamente.
Isto diferia substancialmente da situação cultural moscovita, que não cedia espaço
para determinadas publicações.
Um exemplo mais claro pode ser visualizado no debate sobre a questão
Vkhutemas e no
Inkhuk de Moscou e envolvia, de um lado os defensores da arte de produção e de
outro, da pintura de cavalete. No entanto, a diminuição de admissões nos cursos
de pintura e escultura, acompanhada da ênfase nas aulas de produção foi um dos
fatores que contribuíram ao fim de efetivos debates públicos (com apresentação,
argumentação e confrontação de pontos de vistas antagônicos, mas coexistentes)
e à adoção de um ponto de vista artístico unilateral, que prepararam em muitos
sentidos o território para o realismo socialista.
Esse tipo de polêmica teve outra coloração em Vitebsk, isto porque
mesmo dentro do grupo liderado por Maliévitch sempre houve uma variedade no
modo de interpretação da criação não-objetiva, da arte geométrica, da figuração
simbólica ou das artes aplicadas. Também havia em Vitebsk uma série de credos
artísticos e filosóficos, fato que ajuda a compreender a variedade da matriz cultural
que deu forma ao pensamento de Maliévitch nesses anos.
226 Carta de Maliévitch (Vitebsk) para D. P. Chterenberg (Moscou), 05 de outubro de 1920. In: VAKAR, A.; MIKHIENKO, T. N., op.cit., vol. 1 , p. 131.
276
Em um artigo intitulado A Nova Cultura , Lissitzki abordava o problema
opia social comunista, mas
levando em consideração o papel do artista enquanto pensador de categorias
universais. Este tipo de ação torna evidente o envolvimento dos artistas de
vanguarda com tarefas filosóficas - se não com a criação de um sistema filosófico
propriamente dito, ao menos com uma forma filosófica de abordar as questões
artísticas - e uma inclinação à criação de uma cosmogonia própria ao contexto
russo da época.
Vidmantas Siliunas faz algumas observações relacionadas ao
Simbolismo russo, mas que podem ser estendidas, em alguns aspectos, aos
movimentos russos de vanguarda imediatamente seguintes:
O simbolismo russo combina duas tendências aparentemente opostas: o universalismo (o cosmismo, a universalidade) e a individualização da consciência de uma personalidade criadora. Ambas as tendências remontavam ao papel mais elevado do messianismo da autoconsciência profética da personalidade criadora e à tendência de identificar o destino pessoal com o destino da sua nação, a qual buscava uma revelação e a
- ainda na metade do século surge a sensação de uma oposição nacional a outros modelos de civilização, sensação esta que leva a uma autoreflexão e a imagens mitológicas, à filosofia da autocriação, ao culto da criação e do criador.227
No contexto pós-revolucionário, as discussões sobre a criação artística
encontravam-se inseridas no problema mais amplo da cultura e da civilização.
Quando tudo é posto abaixo, resta considerar o que erguer no lugar e é a esta
questão que Maliévitch e seu grupo empenhavam-se em dar respostas por toda
Vitebsk.
227 o Labirinto de Deus. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N., op. cit., p. 88.
277
Não por acaso, no cântico de abertura de Dos Novos Sistemas na Arte,
EL UL TE uma linguagem integradora deste novo
mundo e, dentro deste mesmo espírito, a partir da publicação da Miscelânea
Unovis, n.1, Lissitz Lissitzki: uma nova
sonoridade que refletisse sua concepção linguística de um nome para um m
No manifesto UNOM 1 , presente na Miscelânea, o coletivo
proclamava ainda:
Por este UNOM eu me declaro livre de nação e credo, pertencendo a nenhum povo, considerando nenhuma linguagem nativa unitária, posição ao longo do caminho da unidade suprematista da dinâmica do espírito humano e linguagem do futuro U EL UL TE KA 228
que eram apresentados no almanaque, estava a rejeição a
:
[A]uto-determinação dá origem à nação que divide nosso pensamento unificado dando nascimento ao patriotismo natal e no qual todos os membros conscientes do povo devem rejeitar em nome da supremacia da unidade da humanidade... seguindo o supremativo caminho iremos nos liberar de nossa forma dividida e dilacerada, crucificada através de cinco continentes pelas garras do nacionalismo.229
[...] o seio de um novo ato religioso do espírito e todo o mundo utilitário da vida é baseado nesta chegada do Unovis como a única criatividade-pictórica pública de nosso pensamento que procede através do cubismo revolucionário para a não-objetividade, e de lá
228 MALEVICH, K., UNOM 1. In: Almanakh Unovis n. 1, Vitebsk, 1920, p. 10 apud SHATSKIKH, A., op.cit, p. 112. 229 Ibid. apud SHATSKIKH, A., op.cit, p. 125.
278
para a cor e a não-cor suprematista, para um novo mundo utilitário das coisas e do espírito religioso de puro ato.230
Apesar de toda essa euforia, o fim do grupo começou a ser anunciado
no ano de 1921. Com a Nova Política Econômica (NEP), foram estipuladas
mudanças nos planos diretivos do Narkompros que atingiram diretamente os
grupos artísticos. A resolução Sobre Glavpolitprosvet e as tarefas de agitação-
propagandística do Partido interferia na liberdade de criação e na autogestão dos
grupos artísticos, que desde aquele momento deveriam trabalhar voltados aos
interesses do partido, integrando sua atuação às demais seções do Narkompros.
Além disso, os problemas ocasionados pela guerra civil alteravam o
cotidiano da Escola. Em maio de 1921, Ermolaeva conseguiu intervir para que o
espaço dos ateliês não fosse convertido em alojamento de guerra. Com a primeira
reorganização do Narkompros, entre o final de junho e agosto de 1921, os Ateliês
livres artísticos de Vitebsk são renomeados como Instituto Prático Artístico de
Vitebsk, passando para a jurisdição da Gubprofobr (o Departamento da Educação
Profissional da Província de Vitebsk). A mudança indicava a obrigatoriedade do
desenvolvimento de uma arte utilitária no interior da escola.
Nesse panorama, os métodos pedagógicos de Maliévitch passam a ser
cada vez mais contestados, tanto pelas autoridades, quanto por intelectuais e
artistas locais, dentre estes, o pintor acadêmico Pen e Miedvédiev, que o
acusavam d
O Unovis foi, então, declarado como um grupo ilegal pela Izo. No
mesmo ano, ordens vindas da seção de Moscou determinavam que as províncias
mandassem relatórios detalhados de todas as atividades desenvolvidas nos 230 MALEVICH, K., K chistomu deistvu (Para a atividade pura). In: Almanakh Unovis n. 1 apud SHATSKIKH, A., op.cit, p. 124.
279
ateliês, assim como de seus professores, alunos e dos recursos utilizados. Em
meio a essas transformações, Ermolaeva é nomeada como reitora do Instituto. No
final de novembro de 1921, o Teatro e o Departamento de Artes Plásticas deixam
de receber subsídios do governo. A partir daí, as condições materiais do Instituto
passam a ser cada vez mais precárias, sofrendo desde a falta de materiais à
realização dos cursos e até mesmo carência de fundos para compra de insumos
básicos, como lenha para o aquecimento.
Em 1922, o Instituto recebe uma ordem da Seção regional de Instrução
determinando e restringindo ao mínimo necessário o
quadro de funcionários. Conforme cartas e documentos da época, tanto alunos
como funcionários e professores passavam fome e sofriam com doenças
agravadas pelas severas condições de vida. Móveis eram vendidos como
alternativa para aquisição de materiais para o Instituto. A situação financeira e a
forte tensão ocasionada pelo controle do Estado tornam a permanência do grupo
na cidade insustentável.
Maliévitch e seus discípulos deixaram o Instituto em junho de 1922,
partindo inicialmente para Moscou e depois para Petrogrado, onde passaram a
trabalhar no Ginkhuk. Em agosto de 1922, Ermolaeva segue os passos de
Maliévitch e seu grupo, partindo para Petrogrado, onde conseguiu uma nova
posição no Ginkhuk.
Em abril de 1923, Gravis assume o papel de diretor do Instituto. Em um
documento do período, ele deixa registrado:
Concluindo, deve ser dito que o Instituto sofreu com condições econômicas extremamente difíceis nos anos de 1921 e 1922. Os professores estavam literalmente morrendo de fome e Maliévitch viu a tuberculose [da esposa] piorar devido à falta de comida. Glavnoprofobr [a Administração Principal da Educação Profissional], Gubprofobr e Proforgans (Uniões Profissionais) não forneceram nem suporte ou orientação. O Instituto foi abandonado aos caprichos do destino. Como não havia esperança de melhoria
280
das condições de vida, os líderes do Instituto Kogan, Noskov, Maliévitch e Ermolaeva foram para Petrogrado [...]231
Durante 1921 e 1922 cinco milhões de pessoas morreram na União
Soviética em consequência da fome e da miséria. Com o início da Nova Política
Econômica, durante o verão de 1921, as instituições de ensino tiveram de se
adequar não somente às severas restrições econômicas como às exigências
burocráticas e ideológicas do Estado, sob a ameaça de demissões e fechamento
dessas instituições.
Conforme Pamela Katchurin232, entre janeiro e maio de 1922, metade
de todas as instituições e escolas de Vitebsk foram fechadas. As duas escolas que
permaneceram em funcionamento foram o Conservatório e o Instituto Prático-
Artístico de Vitebsk. Segundo a pesquisadora, tal sobrevivência deve ser atribuída
à atuação de Maliévitch e V. Ermolaeva, que revisaram os currículos, incluindo
disciplinas antes não ofertadas, como Ciências Sociais, Economia, Política e
carpintaria, e investiram esforços na aplicação prática das produções, como por
exemplo, na criação de cartazes e propagandas.
Devido às pressões políticas e pela precária conjuntura econômica do
Instituto de Vitebsk, em agosto de 1922, Maliévitch se instala em Petrogrado. A
exceção de Gravis e Kogan, todos os ex-membros do Unovis que ainda
trabalhavam com Maliévitch o seguiram. É emblemático notar que sua chegada a
Petrogrado coincide com o expurgo de intelectuais nos Navios Filosóficos.
O constante controle e supervisão dos órgãos governamentais sobre a
produção artística e intelectual, assim como as suspeitas de formação de grupos
231 GAVO, f. 246, op. 1, sv. 21, d. 311, p. 7 apud SHATSKIKH, A., op.cit, p. 222. 232 Malevich as Soviet Bureaucrat: Ginkhuk and the Survival of the Avant-Garde, 1924-1926. In: DOUGLAS, Charlotte; LODDER Christina, op.cit., pp. 123,124.
281
opositores dentro dos Institutos Estatais, evidentemente acompanharam
Maliévitch.
O Instituto estatal da cultura artística (Ginkhuk) foi formado a partir das
iniciativas de K. Maliévitch e V. Tatlin a partir do Museu da cultura artística de
Petrogrado (MKHK). Tendo como proposta aliar as pesquisas teóricas e práticas
dos professores e alunos, o ensino e a crítica das artes, as duas instituições
passaram a funcionar como uma espécie de complexo a partir de 1925.
Dentro dessa nova perspectiva, o museu não se constituiria mais como
um espaço contemplativo, mas como um organismo dinâmico que pudesse criar
um sistema de divulgação das pesquisas, acolhendo em seu acervo as obras de
seus jovens artistas.
No Ginkhuk, os artistas buscaram criar métodos críticos e pedagógicos
de inteligibilidade das artes por meio de processos de criação, experimentação e
investigação da cultura artística. Em consonância às pesquisas linguísticas que
haviam sido empreendidas pelos formalistas russos, as abordagens que se
fundamentavam em fatos psicológicos, biográficos ou históricos foram suplantadas
pela investigação dos elementos que compõem o vocabulário plástico.
As pesquisas no Ginkhuk eram desenvolvidas em sete seções. Além
das quatro seções principais, existiam laboratórios secundários como a Seção
experimental dirigida pelo pintor Pável Mansurov e a seção dedicada ao estudo da
fonologia, dirigida pelo poeta Igor Terentiev. Estes laboratórios anexos não eram
considerados oficiais, motivo pelo qual seus diretores, assim como os demais
colaboradores científicos, não tinham o direito à remuneração.
O Ginkhuk era constituído por quatro seções principais: a Seção da
Cultura Orgânica, dirigida por Matiuchin com colaboração científica de Boris, Maria
e Ksenia Ender e dedicada ao estudo da percepção dos elementos artísticos,
como cor, volume e espaço. A Seção da Cultura Material, dirigida por Tatlin até
282
1925, era dedicada à pesquisa dos elementos construtivos e materiais e voltava-
se à elaboração de modelos à nova arte industrial (com a partida de Tatlin para
Kiev, essa Seção foi transformada em Departamento de Arquitetura Suprematista,
sendo depois renomeado como Laboratório da Ordem Suprematista. Sob a
direção de Nikolai Suétin esta faculdade de arquitetura compreendia o ponto mais
alto do projeto pedagógico de Maliévitch). A Seção da Ideologia Geral da Arte, que
teve a principio Filonov como seu diretor, o qual desenvolveu uma teoria fundada
sobre o estudo dos materiais (entre 1925 e 1926, passou a ser nomeado como
Departamento da Metodologia Geral da Arte, sendo chefiado por Nikolai Punin). A
Seção Teórica e Formal, que foi renomeada como Departamento da Cultura
Pictórica e esteve sob a direção de Maliévitch, tendo como colaboradores
científicos Vera Ermolaieva, Liev Iudin e Lazar Khidekel. Era subdividido no
laboratório da cor, com Vera Ermolaieva a sua frente e no laboratório da forma,
dirigido por Iudin. Neste local Maliévitch e seus alunos desenvolveram uma teoria
crítica e pedagógica que visava analisar os sistemas artísticos contemporâneos. O
resultado deste trabalho foi a Teoria do elemento adicional em pintura.
Assim como ocorrera em Vitebsk, a atuação de Maliévitch à frente do
Ginkhuk de Leningrado atraiu a desconfiança das autoridades locais. A partir de
outubro de 1924 o Instituto tornou-se alvo de uma série de inspeções de órgãos
estatais como a Glavnauka (Direção principal científica de instrução pública do
Narkompros), resultando em seu fechamento no ano de 1926.
O estopim para o fechamento foi a publicação no jornal Leningradskaia Pravda, em 10 de junho de 1926, do artigo Um monastério patrocinado pelo
Estado , de Grigori Seri (pseudônimo do crítico de arte Grigori Siergueievitch
Ginger, 1897-1994). No artigo o autor desmoralizava uma grande mostra de
trabalhos realizada pelas cinco Seções do Ginkhuk, ocorrida entre maio e junho de
1926, além de acusar seus dirigentes de yurodivyi (santos loucos) e
que estariam desperdiçando o dinheiro do E
realmente talentosos passavam fo .
283
Devido à grande repercussão do artigo, uma comissão de inspeção
apoiada por Tatlin e Mansourov e da qual fazia parte o crítico produtivista Issakov
conclui que o Instituto não trabalhava a partir de fundamentos científicos , e sim
subjetivos
contrarrevolucionárias, Maliévitch foi demitido do cargo de diretor do Ginkhuk,
sendo o Instituto fechado em 15 de dezembro do mesmo ano e então
transformado em Instituto Estatal de História da Arte. A coleção de arte do Instituto
foi transferida para o Museu Russo, em Leningrado e para o Museu Estatal, em
Moscou.
Contudo, é preciso destacar que, das cinco principais Seções do
Ginkhuk apenas as de Maliévitch e de Matiuchin conseguiram sobreviver; as
seções dirigidas por Tatlin, Punin e Mansurov foram fechadas.
Desfechos como esse demonstram a impressionante capacidade de
compreensão da cultura (sem nenhum predicativo soviética, científica, etc.) e
das artes, e a profunda habilidade retórica e interpessoal de Maliévitch frente ao
turbulento contexto político soviético.
Afirmar de maneira simplista que Maliévitch teria adaptado seus
discursos e posicionamentos artísticos é não levar em conta a grande capacidade
do artista de dar, por assim dizer, sua própria versão dos fatos, fosse esta
pedagógica, teórica, museológica, não-figurativa, não-utilitária frente às principais
e dicotômicas discussões do período.
284
5.2. Dualismo e conciliação entre matéria e espírito na cultura artística e filosófica russa
Embora o Unovis tenha tido uma
existência meteórica, ele foi de grande
importância na trajetória conceitual do
Suprematismo, abrindo uma nova fase do
movimento. Isto porque, é no interior do Unovis
que as promessas do infinito branco das telas
suprematistas se abrem para o espaço.
Para os discípulos de
Maliévitch esse se torna o espaço real ocupado
pela arte na vida: o das cerâmicas, projetos
gráficos para revistas, letreiros e padronagens
de tecidos de Nikolai Suétin, das decorações
teatrais e ilustrações de livros de Vera
Ermolaeva e Nina Kogan, dos relevos e
projetos arquitetônicos de Ilia Tchachnik.
Nos textos da década de 1920,
Maliévitch escreve sobre a construção de um
conhecimento superior, que é atingido
pela arte e pelo pensamento, mas que
Imagem 48: Nikolai Suétin. Design para padrão textil, década de 20. Guache e nanquim sobre papel, 15.3x27 cm. Museu Russo, São Petersburgo.
Imagem 49: Unovis. Projeto para tribuna, Vitebsk, 1920. Guache sobre papel, 26.4x35.8 cm. Coleção
particular. Fonte: http://www.russianavantgard.com/suetin-‐
nikolai-‐p-‐177.html. Acesso em 04/05/2007.
Imagem 47: lia Tchachnik. Dois pratos com motivos suprematistas, década de 20. Museu Lomonossov, São Petersburgo. Fonte:http://www.russianavantgard.com/chashnik-‐ilya-‐p-‐157.html. Acesso em 04/05/2007.
285
depois se dissipa e entra em um estágio superior de equilíbrio, quase como se as
vaidades, os conceitos, os problemas terrenos ficassem para trás. Sem esta
dimensão mística, o leitor poderia pensar que o artista virou um produtivista, que
está negando a pintura de cavalete, mas não é isto.
Para compreender que tal visão não é exclusiva a Maliévitch, pode-se
tom
artigo intitulado A Nova Cultura , o artista escreve sobre a arquitetura enquanto
modelo à utopia da transformação social, discussão esta, que ia muito além da
lógica semelhante, em uma brochura impressa e editada com a colaboração de
Lissitzki, Maliévitch aponta para o futuro arquitetônico e espacial do Suprematismo
e anuncia sua retirada do campo pictórico:
[...] parece que pelo pincel não é possível alcançar o que se pode obter pela pluma. O pincel é confuso e não pode alcançar as sinuosidades do cérebro, a pluma é mais aguda. [...] Tendo estabelecido os planos determinados do sistema suprematista, a evolução ulterior do suprematismo, doravante arquitetônico, eu a confio aos jovens arquitetos, no sentido amplo do termo, pois vejo a época de um novo sistema propriamente arquitetônico. Eu mesmo me retirei no campo novo do pensamento e na medida de minhas possibilidades vou expor o que eu verei no espaço infinito do crânio humano. Viva o sistema unido da arquitetura mundial da Terra.233
Essa é uma das passagens frequentemente citadas pelos estudiosos
de Maliévitch, em especial, porque marca um momento de transformação no
pensamento e na produção do artista. Quando este trecho aparece
descontextualizado, no entanto, é em geral mal interpretado em comparação aos 233 MALEVITCH, K., Le suprématisme, 34 dessins [trad. franc.], Vitebsk, 1920. In: MARCADÉ, J.C., op.cit., p. 123.
286
escritos do final da década de vinte e início dos anos trinta, nos quais o artista faz
uma defesa teórica da pintura de cavalete e de algumas correntes da arte
moderna, como o Cubismo e o Futurismo.
Para não recair no mesmo equívoco, é preciso que o leitor tome
consciência de alguns dados. O primeiro deles refere-se à ironia com que
Maliévitch respondia determinadas críticas de seus opositores, assim como o bom
grado com que as recebia (a exemplo de A. Benois, na histórica crítica que faz ao
Quadrado Negro
Em uma via de mão dupla, Maliévitch se aproveitava dessas acusações
versus
pela superação dos limites estéticos e conceituais do homem.
Segundo esse discurso, a criação artística (zênite do projeto
modernista) seria apenas a fachada desse infinito a ser vislumbrado por meio da
poética suprematista. É o êxtase e a liberdade diante desta abertura da
consciência e para consciência que Maliévitch anuncia e não a morte da pintura.
Outro dado a ser considerado é a clara diferença entre a natureza da
produção dos artistas da vanguarda europeia, os quais realizavam um trabalho
haver trocas, influências e debates (como visto nos casos de Picasso e Matisse ou
Picasso e Braque) nunca houve um desejo programado e institucionalizado de
mobilização das forças artísticas, criando a partir destas uma unidade de ação.
Isto, por sua vez, é a descrição de algo muito próprio à vanguarda russa, que se
distinguia pelo desejo de transformar a arte em uma atividade coletiva e
efetivamente inserida na vida cotidiana.
O movimento de tomada do espaço, em grande medida encabeçado
pelos construtivistas e produtivistas
287
apenas pelo chamado esgotamento das questões pictóricas, mas pelas exigências
do governo bolchevique em relação ao posicionamento das artes ao contexto pós-
revolucionário.
Por volta do ano de 1918, teve início uma campanha do governo para
que fossem erigidos diversos monumentos exaltando os grandes líderes e figuras
revolucionárias. Havia uma demanda, e ao mesmo tempo uma carência de mão-
de-obra especializada, direcionada aos trabalhos escultóricos, arquitetônicos e
gráficos e é compreensível que os artistas tivessem o interesse financeiro e o
entusiasmo ideológico de atuar em projetos públicos.
Por esse período, foram encomendados bustos e estátuas em grandes
dimensões de personalidades que iam de Lenin e Marx até Cézanne. Como não
havia naquele momento um número significativo de artistas com habilidade e
formação adequadas para realizar encomendas deste porte, fora a falta de
subsídios para fundição em bronze destes trabalhos, o resultado é que pouco ou
quase nada restou das obras feitas em sua maioria em gesso.
Deve-se lembrar, também, que uma ordem do governo obrigava:
[...] todas as instituições e pessoas particulares a passar todas as suas ordens de trabalhos decorativos e pictóricos (sinais, cartazes, placas, cenários teatrais, pintura de edifício) exclusivamente ao ateliê coletivo da escola artística de Vitebsk. A transmissão e a realização de tais trabalhos fora do ateliê coletivo [eram] proibidos.234
Por outro lado, para Maliévitch, mais que uma determinação realizada
para gerar trabalho aos jovens artistas, essa tomada do espaço real adquiriu uma
conotação filosófica: o espaço real não pode ser exclusivamente o da realidade
234 GAVO, f. 837, op.1, d. 58, p.148 apud FOLL, Claire Le, op.cit, p. 109.
288
material ou visível (que já havia sido questionado pelo Suprematismo pictórico),
Contudo, o que acontece frequentemente ao leitor pouco familiarizado
com o pensamento de Maliévitch é recair sobre o aspecto contraditório da
afirmação frente à trajetória do artista, que não somente volta a pintar nos últimos
anos da década de vinte, como se dedica ao ensino e defesa da pintura de
cavalete anos depois. A chave para dissipar tal contradição encontra-se numa
compreensão mais profunda dos projetos do grupo Unovis.
As cerâmicas suprematistas, padronagens têxteis, as decorações
públicas e mesmo a inserção dos artistas em funções do governo bolchevique
podem e foram muitas vezes questionadas como produções contraditórias às
poéticas e ao pensamento filosófico malevitchiano. Em outras palavras, como no
mística pictórica tão próprios a não-objetividade
suprematista poderiam caber produções de arte aplicada que têm ressonância
com os projetos (opositores) do Construtivismo ou em última instância do
Produtivismo russo?
Chega-se aqui a um ponto crucial dentro do pensamento filosófico
russo do início do século XX e que em sua origem está ligada a uma ampla
discussão sobre os tem
s que talvez caminhem pelos mais brilhantes discursos de
Berdiáev, passando pela Correspondência de um canto ao outro de Ivánov e
Guerchenzon, pelos escritos de Maliévitch e culminando na figura de Pável
Floriênski, muito provavelmente o filósofo russo que conseguiu em seus escritos e
em sua própria existência, encontrar a unidade entre a ciência, tecnologia, arte e
espiritualidade profetizada pela filosofia russa.
Berdiáev nos introduz a questão:
289
Na nossa época não há tema mais pungente, tanto para o conhecimento como para a vida, do que o da cultura e da civilização, as suas distinções e relações mútuas. Esse é o tema do destino que nos espera. E nada preocupa tanto o homem quanto o seu destino.
[...] A cultura está relacionada com o culto e desenvolve-se com base no culto religioso e é, ademais, o resultado da diferenciação daquele, do desdobramento do seu conteúdo em diferentes direções. O pensamento filosófico, o conhecimento científico, a arquitetura, a pintura, a escultura, a música, a poesia, a moral, tudo isso está encerrado de modo organicamente integral no culto religioso, de uma forma ainda não completa e não diferenciada. [...] A cultura está relacionada com o culto dos antepassados, com as lendas e com a tradição. Ela é cheia de uma simbólica sagrada, nela estão dados os sinais e as semelhanças de outra realidade, a espiritual (diferentes realidades, a artística, a espiritual, a religiosa). Toda cultura (até mesmo a cultura material) é cultura do espírito; toda cultura tem base espiritual, é produto do trabalho criador realizado pelo espírito sobre os elementos naturais.235
ista é um preconceito
assagem esta que poderia levar o leitor a uma série de conclusões
infrutíferas ou mais uma vez ao senso comum de que Maliévitch seria incoerente
em seu próprio pensamento artístico. No entanto, é necessário perceber a
dimensão filosófica da afirmação: a transfiguração do artista e da arte, o que não
implica em um movimento de negação da arte, a perda de um valor histórico, sua
Contrariamente a isto, o foco está no homem, em sua evolução espiritual, que não
vê mais sentido em profissões, regimentos internos, imposições sociais, religiosas
ou políticas.
Nesse panorama, é fundamental identificar nas teorias filosóficas
russas as raízes do debate artístico que se polarizou entre as tendências
materialistas (objetivas, realistas ou produtivistas) e espiritualistas (não-objetivas,
235 BERDIÁEV, N. Vontade De Vida e Vontade de Cultura. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N., op.cit., pp. 265, 270.
290
abstratas), mas ao mesmo tempo, as discussões filosóficas que tentavam conciliar
estas duas visões em uma percepção integrada da existência.
Aleksandre Romm escreveu sobre uma exposição do Unovis, ocorrida
em 28 de março de 1921: a conquista de vastas expansões; construção no
espaço; uma radical reconstrução de toda a cultura técnico-material em uma
-
Unovis 236. O que interessa em particular nesse comentário de Romm é como
-
fundamentais entre suprematistas e construtivistas.
O Construtivismo foi um movimento nascido na Rússia em 1921,
embora os primeiros indícios de seu desenvolvimento possam ser datados de
1914. Contudo, como aponta A. Nakov, o termo Construtivismo, enquanto teoria
que põe em questão o problema da construção da forma ligada a uma filosofia
materialista só se consolidou oficialmente em janeiro de 1921 (exposição de K.
Medunetski e V. e G. Stenberg)237, por meio do manifesto Os Construtivistas .
O ano de 1914 costuma ser apontado dentro da genealogia
construtivista devido ao trabalho de Tatlin, que paralelamente à primeira exposição
de trabalhos suprematistas, surge como figura antagônica a Maliévitch, assim
como seus contrarrelevos de canto - com ênfase nas relações plásticas entre
diferentes materiais surgem como as primeiras formas opositoras da tendência
imaterial das telas suprematistas.
O que também aconteceu, em contrapartida, é que durante os primeiros
interpretados como parte do projeto construtivista. O próprio El Lissitzki, que
236 ROMM, A. apud SHATSKIKH, Aleksandra, op.cit, p. 208. 237 Cf. MARTINEAU, Emmanuel, In: MALÉVITCH, K. La Lumière et la couleur, op.cit., p. 29.
291
chegou a designar o artista Teo van Doesburg como um suprematista, buscou
conciliar visões simultâneas do Suprematismo e do Construtivismo em sua
produção prática e teórica. Por fim, a confusão de conceitos se instituiu em
diversos setores da crítica ocidental e soviética ao inserir Maliévitch na antiga
geração de construtivistas, ainda que em meio a alguns de seus maiores
opositores ideológicos, como Óssip Brik, Tatlin e Rodtchenko.
Embora durante décadas algumas correspondências simplistas tenham
sido feitas associando as obras suprematistas aos trabalhos do Construtivismo,
em especial naquilo que diz respeito ao enfoque geométrico e à investigação
formal, foi a rejeição ao caráter filosófico que distanciou desde o princípio Tatlin de
Maliévitch.
Ainda que a geometria seja um postulado requerido pelas duas
correntes artísticas, a adoção das formas geométricas no Suprematismo distancia-
se da visão racional, tecnicista ou matemática de construtivistas. No
Construtivismo a construção formal emergia das relações entre as formas e os
materiais: , segundo um de
seus lemas.
Trata-se de uma visão materialista da forma no sentido de que matéria
e forma eram, por vezes, concebidas como uma única coisa, a exemplo dos
contrarrelevos de Tatlin. Em contrapartida, no Suprematismo de Maliévitch,
existem implicações filosóficas n
enquanto expressões da
Um exemplo evidente dessa postura artística e ideológica antagônica
pode ser vista na orientação que Tatlin deu a seu discípulo Rodtchenko, o qual a
partir de 1921 assumiu o posto de principal opositor do Suprematismo branco de
Maliévitch:
As obras de Maliévitch agradavam-me mais que as outras, exceto, é claro, das de Tatlin. Elas eram novas, originais e não se
292
pareciam com as de Picasso. Mas Maliévitch, ele próprio, não era agradável. Ele era, como posso dizer, todo quadrado, com desagradáveis olhos astutos, pouco honesto, cheio de si, um pouco limitado em sua visão unilateral das coisas. Ele veio até
Você é único, mas você sabe o que está fazendo . Eu respondi: Não, eu não sei... Você sabe, tudo o que eles fazem é velho, é imitação. Tudo isso é passado. Trata-se de coisas novas, em nós, os russos. E eu, fiz com que viessem me ver. Em você, tudo está ali, e ele me deu seu endereço. Eu ia frequentemente até a casa de Tatlin, eu o estimava muito e achava, ainda como acho agora, que se tratava de um artista de grande talento. Também ele me contava tudo sobre Maliévitch. E ele d Não vá até ele! . E eu não fui.238
Não é possível negar que Maliévitch e seu grupo, em especial durante
os anos de atuação na Escola de Arte de Vitebsk, tenham agregado a seu léxico
a partir de concepções diferentes daquelas utilizadas pelos artistas construtivistas.
O próprio Maliévitch iria insistir no argumento de que o Suprematismo teria sido
influente no desenvolvimento do movimento construtivista239. Além disto, sabe-se
que os alunos do grupo Unovis tinham o programa construtivista como um de seus
tópicos de estudo.240
Contudo, compreender o significado particular que Maliévitch agrega a
termos como ou ajuda a dissipar
incongruências na concepção destes termos inseridos na retórica não-objetiva.
Para tanto, é preciso perceber que a ideia de utilidade é concebida por Maliévitch
em um quadro essencialmente artístico, que diz respeito à funcionalidade interna
da forma, uma espécie de embriologia artística - se assim for possível descrevê-la
238 RODTCHENKO, A., A porpos de Tatline: 1915-1917. In: la revolution, Paris: Philippe Sers Éditeur, 1988, p. 59. 239 y i konstruktyvizm (Os constutivismos russos e o construtivismo). Nova Gueneratsiia, n. 9, 1929, pp. 53-61. In: MALÉVITCH, Les Arts de la Representation, op.cit., pp.81-85. 240 konstruktyvizm (A pintura construída dos pintores russos e o construtivismo). Nova Gueneratsiia, n. 8, 1929, pp. 47-54. Ibid, pp. 74-80.
293
- e não como um aspecto da construção material de objetos ligada à lógica e à
funcionalidade da produção industrial.
Pelas palavras de E. Martineau:
O objeto não existe para Maliévitch, ele está dissolvido na energia-excitação do ser não-figurativo absoluto. O Suprematimo é, pois, uma negação em ação do mundo dos objetos, ele visa fazer aparecer o mundo sem-objeto, Die gegenstandslose Welt, o único
de funcionalidade ou de esquematização racional. A economia e o ndo verde da
da ausência, que tende à desnudação do ser. Se o Suprematismo é ao mesmo tempo pintura em ação ontológica e meditação sobre o ser, ele não desdenha os problemas técnicos da construção. O savoir-faire é capital para Maliévitch (não é possível esquecer seu imenso trabalho pedagógico no Unovis de Vitebsk e no Inkhuk de Petrogrado), mas ele não é nem o fator primeiro, nem o objetivo da criação.241
Somente a partir dessa nova dimensão é possível se distanciar da
interpretação errônea que vê a abstração geométrica (em oposição ao que se
chama frequentemente de abstracionismo lírico) como algo ligado à racionalização
e às ciências exatas. Esta dimensão não-objetiva descrita por Maliévitch, onde
reside a sensação original que deu origem aos objetos, mas que os precede e
existe de maneira independente a eles,
Aquém das questões formais, é necessário perceber que, ao longo de
seu desenvolvimento, o Construtivismo foi marcado por um forte apelo sociológico
e pela ideologia do materialismo marxista. Dentro deste quadro, seus
representantes tinham como intenção estabelecer um método artístico (e não um
241 MARTINEAU, E., Le Suprematisme est Anticonstructiviste. In: MALÉVITCH, K. La Lumière et la couleur, op. cit, p. 9.
294
estilo, especificamente) com base científica ligada às questões do proletariado e,
em última instância, do utilitarismo, tal como desenvolvido pela vertente
Produtivista.
Tendo por princípio a ideia de que a arte não poderia se desviar para o
campo da filosofia ou da metafísica, defendiam que após a superação da fase
experimental, , os artistas- os
problemas da arte no contexto industrial, ocupando-
Como explica C. Lodder:
Os trabalho de laboratório para descrever a investigação formal usualmente em três dimensões, mas às vezes em duas que era empreendida não como um fim em si, nem por um propósito imediatamente utilitário, mas com a ideia de que tal experimentação contribuiria finalmente à solução de alguma tarefa utilitária. Assim, teoricamente, o trabalho de
consistia em explorações artísticas dos elementos componentes da forma, material, cor, espaço e construção, explorações que eram iniciadas não por si mesmas, mas com o propósito de estabelecer em longo prazo as bases objetivas dos critérios artísticos e as leis gerais de suas interrelações. 242
Em retrospectiva, no final dos anos de 1940, Naum Gabo expõe uma
crítica a respeito dessa faceta do Construtivismo:
equívoco. Originalmente, ele servia para designar um grupo de
principal objetivo a eliminação da arte. Negavam todo valor da pintura de cavalete, da escultura, enfim, de qualquer obra que se propusesse exprimir idéias ou emoções, por si mesma. Exigiam do artista - e particularmente daqueles que eram comumente
- que pusessem seu talento a serviço da construção de valores materiais fabricando objetos utilitários: casas, mesas, cadeiras, fogões, etc. Sendo materialistas em sua
242 LODDER, Christina, El Constructivismo Ruso, Madri: Alianza Editorial, 1988, p. 7.
295
filosofia e marxistas em sua crença política, não podiam ver na arte nada mais que um passatempo agradável de uma sociedade capitalista decadente, um passatempo não apenas inútil à nova sociedade, mas ainda suscetível de lhe prejudicar. 243
Assim, o Construtivismo surgiu como uma reação direta à pintura de
cavalete, considerada parte de uma estética burguesa e ultrapassada, que não
poderia mais dar novas direções e respostas à arte mundial. Ao invés disto, os
artistas construtivistas propunham uma arte em três dimensões, apostando na
conciliação entre prática artística e técnica. O novo artista deveria conciliar as
tarefas de engenheiro, arquiteto e técnico, concebendo a arte a partir de uma
esfera política direcionada ao coletivo. Neste sentido, os construtivistas
propunham a criação de uma arte proletária, que se tornasse instrumento de
transformação sócio-econômica.
Suprematistas, por sua vez, apostavam em um utopismo cósmico, mais
do que no protótipo terreno de uma nova sociedade soviética. Para suprematistas,
ever
presentes n
ismo, Futurismo ou Suprematismo apontava para o desejo de
superar o campo material das artes, em oposição à conceituação tipicamente
técnica utilizada por construtivistas ou produtivistas, na qual eram empregados
Até meados da década de vinte, o termo fatura foi o centro de diversos
debates nos círculos artísticos russos. Em 1914, o crítico e escultor V. Markov
(pseudônimo de V. Matveis) publicou pela Edição da Sociedade de Artistas União da Juventude um dos textos mais citados sobre o assunto intitulado Princípios da
243 GABO, N., dée du réalisme constructiviste, 1948. In: READ, Herbert e MARTIN, Leslie (introd.), Naum Gabo Constructions, Sculptures, Peinture, Dessins, Gravure, Suiça: Éditions du Griffon, 1961, pp. 181,182.
296
criação nas artes plásticas - A Fatura . David Burliuk foi, no entanto, o primeiro
artista a abordar a questão em um texto publicado na coletânea Uma bofetada no gosto público já em 1912:
Estudo do quadro (o caráter de sua superfície) e da estrutura da superfície.[...] D. A superfície plana pode ser: 1. fortemente brilhante, brilhante, pouco brilhante, cintilante; 2. a superfície plana pode ser opaca. Segundo o caráter de seu brilho, o primeiro grupo pode ser dividido em: brilho metálico, brilho vítreo, brilho oleoso, brilho perolado, brilho sedoso. E. A superfície plana acidentada: 1. superfície lascada; 2. superfície enrugada; 3. superfície pastosa (opaca e turva); 4. superfície em forma de concha (plana, profunda), em forma de espessas conchas ou pequenas conchas, com forma perfeita ou imperfeita de concha. F. Estrutura da superfície do quadro (falamos aqui da superfície colorida do quadro): 1. granulosa; 2. fibrosa; 3. folhada. Eis o esqueleto esquemático da única classificação possível das obras pictóricas segundo a fatura.244
Ou segundo D. Chterenberg:
As escolas artísticas contemporâneas conseguiram graças a um trabalho artístico intenso revelar muitos elementos da atividade artística e assim fundar o indício objetivo do valor artístico como um valor profissional. Esses elementos são: 1. O material: superfície plana, fatura, elasticidade, peso e outras qualidades do material [...].245
Esse tipo de busca pela definição do caráter técnico e profissional da
atividade artística conduziria, mais adiante no regime bolchevique, à consolidação
de um projeto que delimitava e sistematizava a atuação dos artistas junto às
indústrias. A aplicação destes princípios levou não apenas à ideia geral de que o 244 BURLIUK, D., Faktura (Fatura), Moscou, 1912. In: Ydar v litso obchtchestvennovo vkusa (Uma Bofetada no gosto público), pp. 105-106. 245 CHTERENBERG, D. P., abril de 1919, Petersburgo-Moscou. In: CONIO, Gérad, Le Constructivisme russe, vol. I, Lausanne:
, p. 290.
297
artista deveria exercer a tarefa de produzir objetos como ajudou a consolidar a
formação do Produtivismo soviético.
Maliévitch distancia-se desse tipo de abordagem no sentido de que a
questão da fatura não era considerada estritamente a partir da investigação
material, ou seja, de uma enumeração ou esquematização dos meios técnicos
aplicados às artes plásticas, mas como um fenômeno ontológico dentro da lógica
da nova criação artística.
A investigação da fatura corresponderia, em um primeiro nível, aos
elementos formativos da obra de arte, dentre eles a forma, a cor e a textura.
Contudo, dentro da metodologia de pesquisa das correntes artísticas empreendida
por Maliévitch em sua Teoria do elemento adicional em pintura, a fatura se
constitui como o dado concreto através do qual se torna possível visualizar a
estrutura formal da nova arte e a partir da qual o artista identifica e analisa os
elementos adicionais que agiam e estruturavam as composições.
O desenvolvimento plástico das formas artísticas (a passagem do
vanguarda) pode ser entendido como o indício de um movimento de
transformação, pois, para Maliévitch, o movimento é em si o fator primeiro de
transformação da matéria, tornando os objetos, as formas, imateriais. Na
descrição do projeto para um filme suprematista, por exemplo, ele descreve esta
transformação dos elementos básicos do suprematismo ao por em movimento seu
elemento primordial: o quadrado negro.
O presente nas obras suprematistas
de Maliévitch foi uma das maiores preocupações dos artistas da década de 1920 e
ajuda a esclarecer a criação de uma série de modelos arquitetônicos e daquilo que
podemos nomear como artes aplicadas, não apenas nas fileiras produtivistas e
construtivistas, mas nos grupos ligados a não-objetividade, como o Unovis.
298
Na Rússia, as origens de conquista do espaço ou o que viria a se
tornar décadas ma estava ligada a uma
tradição filosófica representada por Nikolai Fiódorovitch Fiódorov, que fomentava
os sonhos de superação do tempo e do espaço e o controle do homem sobre a
matéria e as forças da natureza. Uma utopia que envolvia viagens interplanetárias,
a superação da morte e a compreensão e integração do homem aos mistérios do
Universo.
Ainda que fosse um filósofo cristão, Fiódorov foi um dos primeiros
pensadores russos a conciliar em sua utopia as inclinações filosóficas e religiosas
às questões científicas e naturalistas, apostando no potencial criador do homem
como meio de transformar a existência humana.
Basile Zenkovski (1955) descreve como ao final do século XIX e início
do XX os filósofos russos seguiram em duas direções antagônicas: de um lado
estavam aqueles ligados às teorias do conhecimento, ao pensamento kantiano, ao
criticismo e ao positivismo; na outra vertente, havia uma filosofia sendo pensada
não propriamente a partir da teoria do conhecimento, mas intimamente ligada à
intuição da realidade ou ao
corrente faziam parte filósofos tão cruciais à formação do pensamento russo do
século XX quanto Solovio
kov (e a Sofiologia).
Nesse sentido e, ainda que seja possível abordar o trabalho de outros
filósofos russos, é impossível não destacar mais uma vez a figura de Vladímir
Soloviov, que em sua obra explora a questão da integração de conhecimentos
aparentemente antagônicos na fundação de um conhecimento e de um ser
e
Conforme B. Zenkovski (1955):
Soloviov sempre distinguiu três fontes principais do conhecimento, a
299
do ser (fenomenológica, ideal, absoluta). As diferenças aparecem somente no domínio do conhecimento místico. O autor insistia sobre a falsidade do conhecimento puramente intelectual, lógico,
246
Soloviov foi, ainda em sua juventude, bastante influenciado pelas ideias
de Spinoza. Deste, ele teria herdado os fundamentos de sua teoria do
conhecimento representada pelo trinômio: empírico, racional e místico. Esta
concepção tríptica, mas ao mesmo tempo una da realidade também foi reforçada
pela trajetória pessoal do filósofo, que entre 1869 e 1874 passou pela Faculdade
de Ciências Naturais, abandonando-a pelo curso em Letras e depois ingressando
na Academia Teológica. Soloviov foi fortemente influenciado pelo pensamento
alemão, sobretudo o de Schopenhauer e de Schelling, passando pelo espiritismo e
pelo estudo da Cabala. Sua biografia (a semelhança, e quase que abrindo uma
tradição na trajetória intelectual e espiritual de outros filósofos, como Berdiáev,
Losski, Bulgákov e Floriênski) revela os questionamentos de uma geração que se
retirou de uma juventude alimentada pelo ateísmo, pelo niilismo e pelo marxismo,
para a formação de uma filosofia de base religiosa.
Nessa trajetória, os eslavófilos forneceram à teoria formulada por
Soloviov a ide apresentada em detalhes em sua obra
Os Princípios filosóficos do conhecimento integral (1877). É nesta epopéia
que será tão caro a muitos
pensadores do século XX, na Rússia, e que se estendeu aos projetos dos artistas
modernistas russos, dentre eles Maliévitch.
v representava a busca pela
integração da fé ao pensamento racional, à contemplação religiosa à ação do 246 ZENKOVSKY, B., op.cit.,vol. 2, p. 61.
300
homem sobre o mundo. Em última instância, o que a filosofia de Soloviov
idealizava não era apenas um equilíbrio harmonioso entre propostas contraditórias
e coexistentes de percepção da realidade, mas sim a crença de que não é
possível a existência de duas verdades antagônicas, que se negam e se anulam
mutuamente. Para tanto, Soloviov conclui a necess
a
mundo espiritual
Dentro dessa visão de mundo, a dualidade expressa por diferentes
conhecimentos levaria à desintegração espiritual do ser e ao afastamento da
Verdade. Por esta razão, Soloviov opõe a
a outra que e .
Esta doutrina cosmológica, que exerceu vasta influência sobre a cultura russa,
Soloviov nomeia de :
A alma do mundo é um e tudo; ela ocupa um lugar intermediário entre a multiplicidade dos seres vivos e a unidade absoluta de Deus. [...] Ela é um ser dúbio: ela compreende um princípio divino e um princípio criado; mas, não sendo determinada nem por um nem por outro, ela se torna livre.247
P. Floriênski apontará a Sophia enquanto um estágio supranatural
capaz de colocar o homem em contado com uma existência superior.
Por meio dessa doutrina, Soloviov também define a nidade universal
enquanto unidade que existe na multiplicidade. Tal modelo é, como se pode
deduzir, retirado da tradição religiosa na qual Deus é descrito como uno e ao
mesmo tempo dotado de uma Tri- ão a isto, Soloviov
247 SOLOVIEV, V., t. III, pp. 139,142 apud ZENKOVSKY, op.cit., vol. II, pp. 46, 47.
301
aponta que, todos os elementos humanos formam um organismo completo,
universal e individual conjunto, o 248
Dentro desse raciocínio, Soloviov não rejeita, nem mesmo exclui a
realidade. Pelo contrário, afirma uma relação mística com o mundo, na qual a
realidade material não se encontra excluída do Absoluto e nos dá acesso imediato
a este. Por isto, descreve a
ente
A relação entre material e imaterial estabelece uma dinâmica
fundamental no pensamento de Soloviov em relação a sua teoria do Absoluto:
Todo conhecimento repousa sobre o desconhecido... toda realidade esta li Essa definição puramente platônica abre a via em direção ao Absoluto. E nisto está o fundamento de todo o ser: assim, o Absoluto não está separado do cosmo, nó Em todos os seres humanos, mais profundo que todo sentimento determinado, que toda representação ou vontade, há uma sensação imediata da realidade absoluta 249
Esse conjunto de ideias se encontra profundamente entrelaçada às
concepções e ao discurso da não-objetividade de Maliévitch:
O ser humano observa na natureza a atividade inconsciente,
conformidade com a "legalidade" de sua consciência. Consciência é para ele o valor mais alto de sua existência, porque ele sabe que nada além da consciência o apoia em um ambiente no qual tudo desmorona sem resistência. Ele reconhece conscientemente como os elementos cegos do ambiente - o fenômeno físico da natureza o afetam e influenciam sua própria
248 SOLOVIEV, V., , t.III. Ibid, p. 115 apud ZENKOVSKY, op. cit., vol. 2, p. 40. 249 Idem, t. I e II, pp. 306, 308, 347 apud ZENKOVSKY, op.cit., vol. 2, pp. 34, 35.
302
consciência; ele gostaria de se livrar desta influência e tenta regular sua relação com a natureza. Assim a natureza e o ser humano constituem duas antíteses que se atraem mutuamente, mas cuja compreensão e cooperação mútuas são negadas, desde que a natureza, em realidade, é completamente diferente da caricatura que é formada na mente humana. Tudo que nós chamamos natureza, em última análise, é uma invenção da imaginação e não tem nenhuma relação com a realidade. Se o ser humano fosse de repente compreender a realidade verdadeira - naquele mesmo momento a batalha seria decidida, e a perfeição eterna e inabalável seria atingida. . . Este não é o caso, todavia, e assim a luta desesperada continua.250
Como aponta B. Zenkovski (1955), a proposta de conciliação entre
matéria e espírito foi introduzida na filosofia russa pela influência de Leibniz e
também pode ser constatada, em especial, nas obras de Viktor Kudriavtsev-
Platonov (1828-1891), Aleksis Kozlov (1831-1901), Leon Lopatin (1855-1920),
Sergei Askoldov (1870-1945) e Nikolai Losski (1870-1965).
Ao longo de seu trabalho Zenkovski traça um amplo panorama das
obras desses filósofos, de onde se ressaltam duas passagens sobre o dualismo e
conciliação entre matéria e espírito e seus desdobramentos sobre os limites do
conhecimento racional na concepção da realidade:
Kudriavtsev não pôde admitir que se negasse a realidade do sensível. o mundo material não é estranho a nosso espírito que dele faz parte ; é mesmo possível que haja uma relação interna mais estreita entre o mundo
251 A matéria, lemos em O espiritualismo, hipótese psicológica, como outra realidade, tem uma existência interna ou subjetiva; e esta parte interna funda suas manifestações e suas propriedades
o espiritualismo não anula em absoluto a natureza física, ele supõe somente que esta, em si mesma, é outra coisa diferente do que se pensa hab . Portanto, de tal ontologia, Lopatin afirma com insistência particular que a vida do
250 MALEVICH, K., The non-objective world: the manifesto of Suprematism, op.cit., pp. 18,20. 251 , t. I, fasc. II, p. 144 apud ZENKOVSKY, op.cit., pp. 85, 86.
303
cosmo compreende uma necessidade criadora e não lógica. De onde vem sua tendência a admitir o lado irracional do ser [...]. Ele
diversidade e riqueza inesgotável da realidade , da q infinitamente plástica O conhecimento não descobre a realidade em toda sua plenitude de leis e de forças . nosso desejo incoercível de atribuir ao universo uma forma mais racional que aquela que
. A possibilidade de um processo dialético provém do elemento irracional que o ser contém . É bastante evidente que, para além do elemento racional, existe um elemento irracional, supra-lógic .252
A , assim como de uma
em Lopatin é bastante
semelhante à visão de Maliévitch do mundo enquanto parte de um processo
perene de transformação da matéria e da cons
ligação à concepção material e
imaterial dessa realidade.
Segundo Maliévitch:
O homem que alcançou a perfeição está ao mesmo tempo no repouso, quer dizer, no absoluto, ele se liberta dos conhecimentos, dos saberes e das diversas provas, e ele não pode se esconder de Deus, porque ele fez de Deus o absoluto, livre de toda a ação. Deus é o repouso, o repouso é a perfeição; tudo está alcançado, a construção de mundos é finita, o movimento está estabelecido na eternidade [...]. mas o homem não suporta o repouso, o repouso eterno lhe dá medo, pois ele implica o não-ser e quando se aproxima o repouso eterno, que ele se aproxima de Deus, o homem se levanta de todas as forças de sua lou
-
aniquilação de si, é necessário se libertar também da alma, mas a alma na faculdade técnica religiosa é no momento um átomo indivisível. Se a religião quer Deus como ser, então toda coisa no mundo é também ser, pois cada coisa possuiu em si Deus, uma parcela da perfeição (a vida de todos os dias), e se examinamos mais profundamente cada coisa, nela há Deus inteiramente com
252 ZENKOVSKY, B., vol.II, op.cit, p. 205.
304
todo seu infinito e absoluto de perfeição. É por isto que o objeto não pode ser transformado em objeto de compreensão, como o próprio Deus [...] isto se justifica logicamente, pois no objeto e no homem existe Deus como perfeição.253
Nesse contexto, não seria possível deixar de apontar um pensador
como Pável Floriênski. Entre suas inúmeras atividades profissionais, graduou-se
em Matemática e Teologia antes de ser ordenado padre no ano de 1911, lecionou
História da filosofia na Academia Teológica de Moscou e foi editor da revista Diário Teológico. Entre 1920 a 1927, atuou nos cursos sobre História da Arte e sobre as
Teorias da perspectiva dos Estúdios de Arte Superior, e no final da década de
1920, obteve um cargo no Instituto Eletrotécnico Pan-Russo.
Sua obra estende-se por praticamente todo o território do pensamento
humano: matemática, física, química, teologia, biologia, geologia, eletrônica,
estética, história e crítica das artes (visuais, do teatro e da música), arqueologia,
etnografia, poesia e literatura, linguística e filologia. Dominava diversas línguas,
dentre elas o grego, o latim, além de línguas oriundas da Índia e do Iran. Por
consequência, em sua biografia, Floriênski aparece citado enquanto teólogo,
matemático, filósofo, engenheiro, pedagogo, cientista... Mas talvez a grande
síntese desta personalidade seja feita por A. Soljenitsin, ao apontar Floriênski
como o maior homem já aprisionado no Gulag.
O fascínio sobre Floriênski lhe rendeu a alcunha
ou ainda, de , devido a sua admirável capacidade de unir numa
mesma esfera de inteligibilidade, dissipando complexos paradoxos, saberes
ligados às Ciências naturais e tecnológicas com a Teologia, Filosofia e Estética.
Pelas palavras do filósofo:
253 La Fabrique [trad. franc.], op.cit., pp. 172,173.
305
Tenho investigado o mundo como um todo, como um só quadro e uma só realidade, mas em cada momento dado ou, melhor dizendo, em cada etapa da minha vida, investiguei-o a partir de um ponto de vista determinado. Examinava as relações do mundo seccionando-o em uma direção particular, em um plano particular, e tratava de compreender a estrutura do mudo a partir da característica que me ocupava nessa etapa de minha vida. Os planos mudavam, mas, no lugar de se anularem, enriqueciam-se mutuamente, pois a mudança favorecia uma contínua dialética do pensamento (a mudança dos planos de análise, enquanto ao mesmo tempo via o mundo como um todo).254
Em uma das diversas cartas escritas a seus filhos, redigida em 13 de
maio de 1937, quando cumpria pena em Solovki e poucos meses antes de seu
fuzilamento, Floriênski escreve a seu filho Kiril uma lista na qual enumera os
principais temas e campos de sua pesquisa:
Em matemáticas: 1) Os conceitos matemáticos como elementos constitutivos da filosofia (discontinidade, funções, etc.). 2) A teoria dos conjuntos e a teoria das funções das variáveis reais. 3) Os imaginários geométricos. 4) A individualidade dos números (número-forma). 5) O estudo das curvas in concreto. 6) os métodos de análises da forma. Em filosofia e história da filosofia: 1) As raízes culturais das origens da filosofia. 2) A base cultural e artística das categorias. 3) As antinomias da razão. 4) O estudo histórico-filológico-linguístico da terminologia. 5) As bases materiais da antropodiceia. 6) A realidade do espaço e do tempo. Em crítica de arte: 1) Os métodos de descrição e datação dos objetos da arte antiga russa (esculturas, artigos de joalheria, pintura). 2) A espacialidade nas obras de arte, principalmente nas artes figurativas. Em eletrônica: 1) O estudo dos campos elétricos. 2) Os métodos de análises dos materiais elétricos: a base científica dos materiais elétricos. 4) A difusão e elaboração dos elementos da despolarização aérea. 7) As classificações e a padronização de materiais, elementos, etc. 8) O estudo de uma série de rochas. 10) O estudo sistemático da mica e a descoberta de sua estrutura. 11) O estudo dos solos e dos terrenos., etc.
254 FLORENSKI, P. apud Víctor Gallego. In: FLORENSKI, Pável, Cartas de la prisión y de los campos, op.cit, p. 23.
306
Também há que por à parte a física do gelo e a utilização das algas.255
Esta lista fornece um vislumbre da vastidão de seu conhecimento, e
assim com em outras cartas, serve de testemunho da dedicação verdadeiramente
monástica e uma crença inabalável no valor social do trabalho e da pesquisa
científica, atividades realizadas segundo o próprio desejo de Floriênski, em uma
rotina diária, que se estendia pelas madrugadas, após horas de trabalho braçal
forçado e em condições, obviamente, precárias no que diz respeito à
disponibilidade de materiais, instrumentos e infraestrutura, para não falar da falta
de condições vitais em seu cotidiano.
Em uma série dessas cartas, vemos mais do que as preocupações
zelosas de um pai que desejava orientar as leituras, indicando autores, livros e
estimulando seus filhos ao estudo de novas línguas. Floriênski era sempre
enfático ao pedir que não lhe enviassem nada de valor e, em contrapartida,
conseguia ainda mandar periodicamente alguma soma em dinheiro à família -
frequentemente
confirmação de seus familiares do recebimento do dinheiro.
O relato pessoal e a produção de figuras como Pável Floriênski, Mikhail
Bakhtin ou Kazímir Maliévitch são fundamentais para evidenciar um dado
particular do utopismo russo nesses anos de profunda crise, miséria e terror e, ao
mesmo tempo, impressionante atividade criativa, perseverança e a expressão da
absoluta crença na atividade humana na constituição de uma espécie de novo
Humanismo russo.
Desde o século XIX, diversos pensadores russos defendiam a ideia de
que privações individuais seriam um mal pequeno a ser suportado em prol de um
255 FLORENSKI, Pável, op.cit., p. 18.
307
bem social geral, mesmo que este só fosse usufruído pelas gerações futuras.
Além disto, e ainda que possa soar como um descompasso é preciso olhar com
atenção para o fato de que muitos dos artistas russos idealizaram seus projetos
mais utópicos, não apesar, mas justamente, durante os anos mais conturbados de
sua história, próximos da Revolução, da guerra civil, da crise econômica e política.
Por este motivo, não é possível pensar os escritos místico-filosóficos de Maliévitch
como uma simples continuidade cronológica de sua produção, mas ressaltar o fato
de que o artista se volta para o universo filosófico, fundamentalmente durante os
anos de 1921 e 1922, assim como sua produção pictórica pós-suprematista
aparece como uma resposta concreta à crise humana do período.
A pesquisa científica de Floriênski sobre as rochas, as propriedades do
gelo e das algas nos campos de prisão de Solovki durante os anos de terror
stalinista fornece igualmente uma prova desse mesmo tipo de convicção e
devoção ao trabalho e ao conhecimento.
Embora, até hoje, a obra de Floriênski seja desconhecida de muitos, ele
é um dos mais importantes nomes da geração responsável pelo renascimento
religioso russo no final do século XIX e início do XX. Sua obra foi alimentada pelo
interesse sobre a antiguidade, a cultura bizantina e as tradições religiosas e
culturais da antiga Rus. Como outros intelectuais de sua geração, seu
pensamento foi movimentado pelo estudo de autores da estética ortodoxa e cristã
como Gregorio de Nissa, Pseudo-Dionísio, João Damasceno, Nicéforo, Plotino,
Gregório Palamás, Andréi Rublev e Vladímir Soloviov. Neste sentido, seu trabalho
é provavelmente o mais notável exemplo russo da síntese entre a tradição russa
ortodoxa, a tradição clássica, a filosofia alemã e as ciências exatas.
Pelas palavras de P.V. Floriênski e T. A. Chutova, no prólogo que
apresenta a edição espanhola das cartas redigidas por Floriênski a seus familiares
nos últimos anos em que viveu em campos de trabalhos forçados:
308
Dizem que na Rússia um poeta é mais que um poeta. Seguindo esse raciocínio, poder-se-ia afirmar que um filósofo também é mais que um filósofo, sobretudo, em uma época de profunda crise como a que viveu a Rússia e o mundo inteiro. Crise política, social, axiológica. Pável Floriê onde seu povo, por desgraça, estava
Sierguéi B optou por ficar... em sua pátria, mesmo que fosse nas Solovki, pois queria compartilhar até o final o destino de seu povo... sua pessoa e seu destino são a glória e a grandeza da Rússia, e ao mesmo tempo o maior de seus crimes .256
O traço distintivo da obra de Floriênski se concentra em sua profunda
capacidade de integrar a análise à síntese, discutindo aspectos tão variados da
cultura humana em um período de generalizada crise. Sua crença numa unidade
e indivisibilidade do ser - algo que é por toda parte da cultura russa do período lido
nos
textos de Maliévitch) faz com que aspectos tão pragmaticamente concebidos
como apartados do ser, como ciência e tecnologia, sejam vistos como integrantes
de uma mesma existência material-espiritual.
Um exemplo mais claro desta concepção integrada de mundo é
apresentado por Floriênski em tratados como Perspectiva Inversa (1920),
Iconostase (1922) e O Ritual da Igreja como uma Síntese das Artes (1922). Para
Floriênski, o culto ortodoxo é em si, também um fenômeno estético. Neste sentido,
o santuário religioso é compreendido em conjunto como um espaço físico e
imaterial, Este local, limiar entre céu e terra,
símbolos viventes
da unidade de dois mundos, que simbolizam e põem em ação à Iconostase.
De acordo com Floriênski - em uma leitura que pode ser transposta à
visão de Maliévitch sobre o Suprematismo - o ícone, enquanto principal elemento
256 FLORENSKI, P.V.; SHUTOVA, T. A., Prólogo: Al Lector. In: FLORENSKI, Pável, op.cit., p. 14.
309
da Iconostase tem por função servir de janela para outro mundo. Contudo, o
ponto fundamental de sua análise é expresso pela síntese que faz entre estética e
espiritualidade, ao defender a ideia de que a pintura é algo que ultrapassa a
simples materialidade da superfície pictórica. Suas discussões sobre o caráter da
matéria, da fatura pictórica e do culto religioso são brilhantes no sentido de que
unem discursos em princípio antagônicos sobre matéria/técnica e
imaterialidade/espiritualidade.
Victor Bychkov (1993) faz uma síntese dessa questão:
Arte, no entendimento de Floriênski, não é, em absoluto, psicológica, mas ontológica; é orientada à revelação do protótipo . [...] O artista não inventa uma imagem por si mesmo, mas apenas remove a cobertura de uma imagem que já existe, supramundana e eterna; ele não põe tinta sobre uma tela, mas clareia a pátina externa, a camada ex [...] Em outro
O objetivo da arte é descobrir na aparência sensual, a acidental crosta naturalística, e revelando o que é estável, imutável e tem significado geral e valor geral na
Assim, a imagem simbólica em arte é em si mesma realidade, mas de um nível mais alto do que a realidade do mundo visível. É o ícone que possui cada realidade no sentido mais alto. Floriênski interpreta a arte como uma das mais suficientemente formas perfeitas da atividade humana, como o
da mais alta atividade, da arte mais criativa - a teúrgia. Teúrgia a arte do é entendida pelo pensador russo como a pr a tarefa da transformação total da realidade pelo sentido, e a total realização do sentido na realidade. 257
A partir disso, é preciso compreender a estética enquanto um dos mais
elevados estágios dentro do sistema filosófico elaborado por Pável Floriênski,
assim como em Maliévitch, pois para estes pensadores, é no âmbito da estética
que se dissipa a dualidade entre matéria e espírito. Embora o impasse da
dualidade seja resolvido por Floriênski a partir de um dos axiomas do Cristianismo
257 BYCHKOV, V., op.cit, p. 44.
310
a encarnação do Cristo - no sentido da elaboração do que chamarei de
simbolismo religioso da matéria.
Para Floriênski, esse simbolismo da matéria não envolve uma
idolatraia, no entanto, é por meio primeiramente da matéria (e não do espírito),
que se faz possível a os objetos
simbolizam. Assim, a pintura de ícone e todo seu entorno põem o homem em
contato com
concebido por Floriênski como a forma superior do fenômeno estético.
Esse tipo de visão também é bastante verificável entre os postulados
defendidos pelos simbolistas russos. O poeta V. Ivánov, por exemplo, defende a
busca artística do equilíbrio entre matéria e espírito, pois apenas através das
formas do mundo material os mais altos valores da existência poderiam ser
percebidos.
Após a Revolução, Floriênski havia sido nomeado Secretário científico
da Comissão de Salvação dos monumentos de arte antiga do monastério da
Trindade de São Sérgio e fazia parte da comissão que havia sido organizada
imeditamente após a Revolução de Outubro e que tinha por objetivo reunir forças
para barrar os ataques de vandalismo e furtos das igrejas de Lavra, um dos mais
importantes centros da Ortodoxia russa.
No texto O ritual da Igreja como uma síntese das artes , escrito em 24
de outubro de 1918 para uma palestra à Comissão para Preservação dos
Monumentos e Antiguidades de Lavra, Floriênski discorre sobre como a
arquitetura religiosa, as decorações, pinturas, a indumentária e os objetos sacros,
a atmosfera visual e olfativa criada pelos incensos - que suavizam as cores,
brocados, veludos, dourações, proporções e contornos dos ícones - a poética dos
cântigos e a coreografia do clérigo compõem o culto religioso enquanto ritual
311
simbólico e integrador das esferas material (visual, olfativa, sonora, tátil), religiosa
e espiritual.
Em Floriênski e Maliévitch existe certa analogia na forma de conceber a
obra de arte como um , na qual tanto os elementos internos da
composição, quanto os aspectos externos e espaciais, que circundam a obra, são
fundamentais no ato de sua criação e apreciação.
Embora Floriênski esteja longe de ser um defensor dos museus e sua
ênfase na unidade inclua não apenas o espaço físico, mas o ritual no qual se
insere a obra (sobretudo, no caso do ícone), a concepção expositiva proposta por
Maliévitch pode ser considerada análoga ao do teólogo, pois visava uma mesma
simbiose entre obra e espaço.
De acordo com o Floriênski:
A obra de arte como uma entidade vivente requer condições para viver e particularmente para florescer. Separada dessas condições concretas da existência, especificamente da existência artística, ela morre, ou pelo menos entra em um estado de anabiose [...] Desta maneira, a vitalidade da arte depende do grau de unidade entre as impressões e os modos pelos quais são expressos. A verdadeira arte é a unidade do conteúdo e dos modos de expressão desse conteúdo, mas estes meios de expressão podem ser entendidos de maneira simplista [...] Então apenas um lado de uma unidade orgânica, um único lado, é tomado como algo autosuficiente, existindo em isolamento das outras faces da personificação [...]. Tomemos, por exemplo, o ícone. Evidentemente, o modo como é iluminado está longe de ser indiferente e, claro, para a existência artística do ícone a iluminação deve ser exatamente aquela sob a qual foi pintado. Não é, portanto, a luz difusa da oficina ou da sala de museu, mas a luz vacilante e irregular, até mesmo tenebrosa da lamparina. Calculado [para ser visto] nos movimentos de uma chama bruxuleante que se move com cada sopro de vento, prevendo antes do tempo os efeitos dos reflexos coloridos dos feixes de luz passando através de vidro colorido, às vezes facetado, o ícone só pode ser contemplado como tal, apenas na presença desta corrente, apenas nesta inundação de luz, fragmentada, desigual, que parece pulsar, rica em quentes raios prismáticos uma luz
312
que todos percebem como viva, que aquece a alma e parece exalar um caloroso perfume. 258
Floriênski retoma o pensamento neoplatônico no qual a ponte que une
o discurso estético ao discurso teológico é construída através do conceito de
sendo esta, uma essência que só poderia ser apreendida pelo homem ao
iluminar a matéria. Esta concepção da matéria como meio condutor da luz
indicaria a capacidade de transfiguração da matéria que anunciaria a possibilidade
de união do homem ao Divino. Neste sentido, não é possível deixar de perceber
mais uma vez a influência de Soloviov sobre o pensamento de Pável Floriênski.
concebia a arte como uma 259:
Em qual sentido a arte pode transformar a realidade? Soloviov esboça um exemplo das ciências físicas: diamantes e grafite são a mesma substância, contudo, é difícil sustentar que a beleza de um diamante resida nesta substância. Sua beleza resulta da refração
m agente ideal, mais elevada-doque-omaterial , de modo que a transformação do material através da encarnação deste em outro princípio mais elevado-doque- 260
Outro caminho teórico usado por Floriênski para fundamentar o mesmo
tipo de raciocínio é expresso em sua formulação sobre os três tipos de atividades
, teórica e
- -
258 FLORENSKY, Pavel, The Church Ritual as a Synthesis of the Arts. In: FLORENSKY, Pavel, Beyond Vision: Essays on the perception of Art. Edited by Nicoletta Misler, London: Reaktion Books, 2002, pp. 102, 105,107. 259 WEST, James, Russian Symbolism A study of Vyacheslav Ivanov and the Russian symbolist aesthetic, London: Methuen & Co Ltd, 1970, p. 44. 260 Ibid., p.39.
313
Segundo o pensador, a arte está conectada a estas três
atividades e se integra por meio destas à totalidade.
Como discorre Bychkov (1993), para Floriênski a arte, em seu estágio
mais elevado (Teúrgico) /vivo que é
criado e tanto modifica a cultura quanto é modificada por ela. Desta maneira, o
objetivo principal da arte seria a transformação da realidade, por meio da tarefa de
Contudo, vale ressaltar que não se trata de um discurso ligado à
,
mas de uma visão mística da realidade e das relações entre matéria e espírito que
se apresentam de maneira semelhante nas teorias dos dois pensadores.
A partir disso, é possível compreender a importância que Floriênski
dava ao estudo da espacialidade nas obras de arte, sendo este um pressuposto
teórico à sua classificação. Dado particularmente observável no curso
desenvolvido por ele entre os anos de 1921 e 1924, no Vkhutemas, de Moscou e
em seu ensaio Perspectiva Inversa , texto escrito a partir de duas palestras, uma
dada à Comissão para Preservação dos Monumentos e Antiguidades de Lavra,
em outubro de 1919 e outra, realizada no ano de 1920, na Seção Bizantina, onde
ele lecionava História da Arte Bizantina.
Ainda que sua atuação no Vkhutemas tenha relação mais estreita com
seus conhecimentos em Matemática e Engenharia, do que com suas crenças e
sua formação religiosa, é preciso mais uma vez levar em conta a maneira una com
que Floriênski concebia a cultura.
Em suas memórias, e por toda parte em sua obra, Floriênski evidencia
que o espiritual é percebido apenas em seu contato com a matéria. Para
Floriênski, o ponto integrador desta visão, responsável pela união de dois mundos
(conteúdo e forma) que nele se manifestam, é o símbolo:
314
Toda minha vida Tenho pensado sobre apenas um problema o problema do símbolo. Ele vê nisto uma encarnação material do espiritual que é, em certo sentido, um foco de criação como ele mesmo enfatiza, ele nunca pensou sobre o espiritual
abstratamente, f, ele escreve, mas eu queria vê-la encarnada , significando
ou símbolo. Era neste sentido que Floriênski considerava a si mesmo um simbolista.261
Tendo em vista esse trajeto conceitual, torna-se possível compreender
a dimensão religiosa que Floriênski dava a pesquisa técnica, científica e filosófica,
que foi empreendida até seus últimos dias, mesmo sob as condições de
aprisionamento nos campos de trabalhos forçados das ilhas Solovki.
261 BYCHKOV, V., op.cit, p. 67.
315
Capítulo 6: A cosmogonia suprematista
6.1. Apresentação das traduções
As traduções para o português das quatro cartas, de um tratado e de
um poema (Capítulo 2) apresentados na tese são inéditas. Além disto, estas
cartas não ganharam até o momento nenhuma tradução em língua ocidental e são
material ainda pouco estudado pela historiografia. Elas fazem parte do montante
de textos e documentos que receberam duas importantes publicações em russo
na primeira metade dos anos 2000 empreendidas por A. Chatskikh (Guileia, 5
volumes) e I. A. Vakar e V. I. Rakitin (RA, 2 volumes).
As quatorze cartas escritas por Maliévitch entre os anos de 1918 e 1924
endereçadas a M. O. Guerchenzon encontram-se atualmente no arquivo
Khardzhiev-Chaga, no Stedelijk Museum, em Amsterdã e também no
Departamento de Manuscritos da Biblioteca Nacional, de Moscou.
As traduções aqui apresentadas foram feitas a partir da publicação de
A. Chatskikh no quinto volume de Sobrânie sotchiniênii Kazímira Malíévitcha v piati tomákh (Obras reunidas de Kazímir Maliévitch em cinco volumes, Moscou:
Guileia, 1995-2004), escritos que também estão disponibililzados no site
http://kazimirmalevich.ru.
No corpo do texto foram indicados entre conchetes os mesmos
acréscimos, indicações e correções feitas por A. Chatskikh em sua publicação
original, como forma de tornar alguns trechos mais claros em relação à sintaxe e à
cadência geral da leitura. Na maior parte dos casos, a pontuação e o estilo
utilizados por Maliévitch foram mantidos, com a excessão de algumas passagens,
316
nas quais a pontuação utilizada originalmente dificultava a compreensão do escrito
em sua tradução para a língua portuguesa.
Embora não se saiba do paradeiro das cartas escritas por Guerchenzon
a Maliévitch, lacuna que também se repete com grande parte dos correspondentes
de Maliévitch, a exemplo das inúmeras cartas enviadas por M. Matiuchin que
também se perderam, a escolha da correspondência trocada durante os anos
vinte entre Maliévitch e o filósofo M. O. Guerchenzon e o colecionador e crítico de
arte P. D. Ettinger foi feita em função dessas cartas, enquanto textos privados,
fornecerem uma dimensão mais indicial do pensamento do artista, que coincide
com o momento de gestação de seus tratados filosóficos mais fundamentais. Além
disto, a redação das cartas ocorre em um momento privilegiado, de relativa
liberdade e consolidação dos projetos suprematistas de Maliévitch em Vitebsk.
Nelas o artista discute com seus interlocutores sobre o problema de
s espirituais e
existenciais. Maliévitch cita e problematiza debates que teve com membros do
círculo de Bakhtin, assim como sobre textos de filósofos contemporâneos como N.
Berdiáev, S. Bulgákov e outros intelectuais russos.
Conforme A. Chatskikh (2012), Guerchenzon e Maliévitch
estabeleceram contato por intermédio de Natalia Mikhailovna Davidova.
Davidova nasceu em 1885, na aristocrática família Gudim-Levkovitch.
Seu pai era herdeiro de uma antiga linhagem ucraniana que teve origem no século
XV e esteve ligado à Sociedade de Incentivo das Artes de Kiev, a qual daria
nascimento aos Museus de Belas Artes e de Artes Populares Decorativas de Kiev.
O marido de Natalia Davidova era neto do dezembrista Vassíli Lvovitch Davidov,
um caro amigo de Aleksander Púchkin. Além disto, figuras como Piótr Ilitch
Tchaikóvski tinham ligações muito próximas com a família de Davidova.
317
Na primeira carta aqui traduzida, Maliévitch tem como correspondente o
historiador e crítico de arte Pável Davidovitch Ettinger (1866-1948). Nascido em
uma rica família de judeus, em Lublin, na Polônia, Ettinger recebeu uma educação
privilegiada desde a infância, fato que lhe possibilitou o acesso à cultura e a
fluência em diversas línguas. Além, evidentemente, do russo e do polonês (língua
e origem que, certamente, o aproximaram de Maliévitch), Ettinger dominava o
alemão, francês, inglês, tcheco e ídiche.
O segundo interlecutor de Maliévitch nas cartas apresentadas, também
de origem judaica, é o historiador, filósofo, ensaísta e crítico literário Mikhail
Ossipóvitch Guerchenzon (Kishinev-1869, Moscou-1925). Seu nome e seu
trabalho não chegam a ser célebres entre historiadores de diferentes
nacionalidades. Contudo, na época em que Maliévitch se correspondia com
Guerchenzon sua fama era notória. Atualmente, seu trabalho representa fonte
relevante de pesquisa àqueles que se interessam pelas questões envolvendo a
cultura ju
Guerchenzon é um dos integrantes mais importantes dessa geração,
em especial, por sua participação como editor e autor do texto mais polêmico da
coletânea de artigos que punha em questão a intelligentsia russa do século XIX:
Vekhi (1909).
Em sua carreira, Guerchenzon escreveu mais de dez livros e uma
centena de ensaios e artigos tendo como foco a história intelectual e cultural
russa. Entre seus principais escritos, dedicados tanto a eslavófilos quanto a
ocidentalistas, estão aqueles que abordam grandes nomes da literatura russa,
como Piotr Tchaadáiev e Aleksandr Herzen. Foi também o autor de A sabedoria de Púchkin (1917); compôs ao lado de Viacheslav Ivánov um dos mais singulares
trabalhos filosóficos e críticos do período: Correspondência de um canto ao outro
(1921); assumiu o cargo de primeiro presidente da União dos Escritores Russos,
318
logo após a Revolução Bolchevique e, nos últimos anos de vida, foi ainda chefe da
Seção Literária da Academia Estatal das Artes Criativas (GAKhN).
No Ocidente, entre os principais pesquisadores que investigam a vida e
a obra de M. O. Guerchenzon estão Arthur A. Levin com sua tese de doutorado
The Life and Work of Mikhail Gershenzon (1869-1925): A Study in the History of the Russian Silver Age (University of California, Berkely, 1968) e Brian Horowitz,
Ph. D. pela mesma Universidade (1993), com a tese: M. O. Gershenzon and the Intellectual Life of Russia's Silver Age. É, especialmente, a partir de seu artigo
Jewish Identity and Russian Culture: The Case of M. O. Gershenzon
(Nationalities Papers, Vol. 25, No. 4, 1997), que são levantadas algumas das
questões fundamentais sobre a biografia e o trabalho do filósofo.
Guerchenzon nasceu em uma família de judeus em Kishinev, em uma
área oficialmente demarcada como Zona de Assentamento judeu, onde o governo
czarista impôs à população as mais variadas restrições econômicas e culturais,
que resultaram no isolamento intelectual forçado desta população. Apesar disto,
Guerchezon recebeu sua formação universitária em Berlim, tendo ingressado na
Universidade, em Moscou, apenas em seu retorno à Rússia, surpreendentemente,
na mesma época em que milhares de judeus foram obrigados a deixar a cidade.
Nesse contexto, o traço mais distintivo do pensamento de
Guerchenzon talvez só possa ser compreendido a partir de sua complexa relação
com a cultura judaica.
Embora nunca tenha praticado o judaísmo ou mesmo seguido seus
princípios, da mesma maneira que nunca se converteu ao Cristianismo russo, seu
interesse como historiador e filósofo resultou na publicação de dois livros sobre o
tema: A Chave para a Fé (1921) e O destino do povo judeu (1922).
Entretanto, como aponta Horowitz:
319
[...] para judeus como Guerchenzon, que rejeitavam a vida judaica, a cultura russa serviu como um mundo substituto. Tendo escapado da Zona de Assentamento judeu na Rússia, Guerchenzon foi morar em Moscou onde se casou com uma mulher russa e onde passou a viver de escrever sobre a história e a literatura russas. A cultura russa, não o judaísmo, tornou-se a base de sua identidade espiritual. A situação de Guerchenzon, entretanto, é mais complexa do que pode parecer à primeira vista, desde 1917 ele rejeitou inteiramente a cultura europeia, denunciando-a como
uma aberta insatisfação com a vida da intelectualidade russa. Embora ele tanto quisesse assimilar a sociedade russa, e em última instância, tenha conseguido plena aceitação, ele nunca se sentiu completamente confortável com sua decisão. Guerchenzon desejava intimamente participar e ainda sim, permanecer distante da cultura russa, este era o paradoxo fundamental de sua vida e o qual ele nunca conseguiu resolver.262
Essa dualidade é publicamente assumida por Guerchenzon, a exemplo
da resposta que deu a Arkadi G. Gornfeld quando este último lhe solicitou
informações sobre seu trabalho de historiador, por ocasião da publicação de um
artigo na Enciclopedia Judaica (1910):
Eu sinto que meu lado psicológico é inteiramente judaico e compartilho completamente o ponto de vista de Tchukóvski, Andréi Biéli e outros; ou seja, eu tenho certeza de que não sou capaz de entender intimamente os russos. Portanto, eu cuidadosamente evito tais temas (em contraste a Akhenvald, por exemplo). Todo o meu trabalho no campo da literatura russa teve como objeto os temas eternos e universais. 263
Como se vê, a questão do deslocamento causado pela filiação ambígua
às duas culturas, enquanto um judeu que participa e é aceito dentro da cultura
262 HOROWITZ, Brian, Jewish Identity and Russian Culture: The Case of M. O. Gershenzon, Nationalities Papers, Vol. 25, No. 4, 1997, pp. 699,700. 263 M. Guerchenzon a Arkadi Georgiévitch Gornfeld, 20 de janeiro de 1910. RGALI, Moscou (155-1-269) apud HOROWITZ, op.cit., p. 706. O artigo sobre Guerchenzon escrito por A. Gornfeld (1867-1941) consta no volume 6, p. 423, da coleção de 16 volumes publicados entre 1906 e 1913 da Enciclopedia Judaica (São Petersburgo).
320
russa, mas simultaneamente permanece estrangeiro a ela é destacada nas
reflexões do próprio Guerchenzon. Contudo, como discorre Horowitz, é esta
problemática particular que acaba servindo indiretamente de protótipo ao ponto de
vista do historiador, o qual identifica na cultura russa, tanto uma potência em
absorver as minorias, quanto a força interna e motriz de uma Rússia
Embora a declaração de Guerchenzon envolva questões e propósitos
muito mais complexos do que cabe aqui discutir, é valioso notar que essa visão de
(como a proposta pelo governo bolchevique) é o principal eixo de aproximação
entre o pensamento de Guerchenzon e Maliévitch. Tanto o historiador quanto o
artista irão justificar seus trabalhos a partir do universalismo, da unidade e da
essência da cultura russa. Porém, ao mesmo tempo em que defendem valores
universais, não abdicam da discussão de valores particulares: a questão judaica
no caso de Guerchenzon ou da cultura popular, em Maliévitch.
6.2. Traduções do russo para o português dos escritos de Kazímir Maliévitch
6.2.1. Correspondência Maliévitch Ettinger (Vitebsk-Moscou, 03 de abril de 1920)
Prezada Maria Boríssovna
321
Prezado pan264 Ettinguer
Recebi o cartão postal do senhor e me apressei em enviar as
brochuras. Estas brochuras foram publicadas por colegas que partilham do meu
pensamento. Empreenderam um trabalho diabólico, mas como diz o provérbio
atual 265 e não
pope com o proletariado. Eu julguei
que
foi realizada pelo Novo Deus e instalada no altar dos dias atuais, mas sobre isto,
pode-se ficar falando por muito tempo.
Dentro de algum tempo o suprematismo triunfará e consolidará novos
objetos
fala Machkovtsev266; que nos velhos objetos será adicionado um novo
Na publicação há ainda o tema do quadrilátero suprematista (ou melhor,
do quadrado) sobre o qual seria preciso deter-se, quem é ele e o que há nele;
sobre isso ninguém havia pensado e por isso eu tenho me ocupado em analisar
no mistério de seu espaço negro, o qual se tornou de alguma forma a nova face
do mundo suprematista; eu mesmo vou erigi-lo no espírito criativo. No entanto, o
senhor dirá que eu penso, talvez, de maneira demasiadamente ousada. Oh não,
eu vejo nisso aquilo que um dia as pessoas viram na face de Deus, e toda a
natureza representou a imagem de seu [Deus] na aparência semelhante ao ser
humano, e se alguém dos tempos antigos tivesse penetrado na face obscura do
264 Expressão de tratamento polonesa equivalente a senhor. 265 Ditado russo, bastante popular entre os membros do Unovis. Encontra-se citado,
MALÉVITCH, K. S., La Fabrique, op. cit., p.176. 266 Nikolai G. Machkovtsev (1887-1962), historiador e crítico de arte, autor do artigo Revolução e monumentos (Vida da Arte, n. 1, pp. 4-5), sobre o qual Maliévitch faz referência no trecho.
322
quadrado negro, talvez tivesse visto o que eu vejo nele. Oh, eu ainda falo
timidamente sobre ele, mas é inevitável que através dele passe a via do mundo
todo, junto da natureza de Deus. Através dele, no passado infinito, penetrou tudo,
para que através de sua face econômica se estabelecesse o mundo dos novos
objetos. Eu sei que o Suprematismo chegou à -
sobre isso é possível
desenvolver um discurso enorme e seria necessário desenvolvê-lo, porque nisto
encerra-se o desenvolvimento de um novo mandamento do mundo, o qual existiu
no passado e chegou até nós e seguirá mais adiante, deixando para trás milhares
de dígitos de anos. Por isto, no quadrado negro revela-se a forma da face da nova
Majestade da natureza, que para ele, por causa da Grandeza será o altar no qual
se esconderá um mistério, e esse mistério é tão distante, profundo e infinito que
em breve atingirá as estrelas celestes da via láctea, ao invés de aprofundar-se e
investigar todas as sinuosidades que se encontram em mim; ainda que pareça que
elas estão tão perto, mas na realidade estão longe. E muitos sábios elevam seus
olhares sobre as estrelas distantes, olham pelo telescópio querendo aproximar-se
delas e, nesse momento, esquecem que eles próprios são como estrelas, as quais
é preciso examinar. Mas eu mesmo sou uma estrela tão distante no espaço infinito
que nunca nenhum telescópio tocar-me-á. Mas nós, as pessoas, querem avistar
tudo através dos olhos e provar, tocar com os dedos, esquecendo que às vezes é
preciso ser cego. Oh, sobre isso se pode falar muito, mas isso não serve para
nada, uma vez que o beco sem saída267 sempre olhará atentamente para as
estrelas porque elas brilham, e aquelas que brilham [mais do que todas] ficarão
eternamente para ele, e ele irá se empenhar em consagrar tudo a elas; e para isso
-me Igor Grabar268 que se
267 xpressão tomada de empréstimo
268 Igor Emmanuilovitch Grabar (1871- 1960) foi um pintor figurativo ligado ao círculo Mundo da Arte, restaurador e historiador da arte. Entre suas funções, assumiu em 1913 a direção da Galeria Tretiakov e após a Segunda Guerra Mundial, foi conselheiro de Stalin sobre as questões do patrimônio arquitetônico.
323
atém à o que poderia o
arcanjo verter, já verteu, e nada disso funciona mais.
Talvez me ocupe algum tempo com a escrita sobre o Suprematismo,
porque nessa brochura não falei nada sobre isso. Escrevo como se fosse em
polonês, mas depois de vinte anos de luta com
esqueci o polonês.
Desejo ao senhor tudo de bom.
Atenciosamente,
Kazímir Maliévitch.
Vitebsk, 3 de abril de 1920.
O senhor esteve na minha exposição de 200 trabalhos já desaparecida
[?].
Rua Bukharin, 10, Escola de Arte de Vitebsk.
6.2.2. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de abril de 1920)
Caro Mikhail Ossipóvitch
Já faz seis meses que eu abandonei a capital pensando em descansar,
mas vi que tenho muito trabalho; claro, eu conheço todas as escolas, e já correm
324
rumores de outras cidades sobre o convite que me fizeram para a nova ciência da
Arte pictórica, mas à medida que crescem os ouvintes, eu me transformo
fortemente, e o próprio estudo sobre a Nova Pintura está sumindo dentro de mim,
estou partindo para a vastidão de outros estudos; fico sentado desde cedo e vou
aprendendo por mim mesmo, vou observando e pensando; já queria estar longe
do auditório de Arte pictórica, apesar de ver nele mais [pinturas] do que em
qualquer outro lugar. Na indissolubilidade com o Mundo da Natureza da essência
da ação vejo a experiência pura e não correspondida. Eu saí dos vilarejos mais
distantes por meio desta experiência e de minha origem iletrada. E eis que vim
parar na capital, permanecendo nela na mesma condição. Também reconstruí a
mim mesmo e cheguei ao Quadrado, ao círculo, à forma cruciforme bi-
dimensional; estas são as formas principais, os sinais de minha construção. Mais
adiante, a estas formas foi acrescentado o quadrado vermelho e o branco, todo o
Suprematismo está neles, a cor, o preto, o branco, eis aí as três colorações. Desta
forma, eu saí de toda picturalidade para o preto, para o colorido, para o branco,
abandonando todo o mundo objetivo, o qual o Cubismo e o Futurismo estenderam
e pulverizaram. Eu não pulverizei nada, eu expus o Quadrado preto, colorido e
branco, dei o Suprematismo colorido e não colorido, e eis que tomo a liberdade de
dizer que estes três princípios se tornarão uma nova Construção-de-mundo; o
Mundo velho colocou-se, [outrora], diante do nada e construiu a si mesmo; agora
eu me coloquei diante do nada, para que a essência construa a nova [Construção-
de-mundo]. Prevejo um grande número de anos do movimento Suprematista, o
qual, talvez, [fora] predito nos eventos passados; e de novo, meu espírito ou toda
essência de si irá construir a arquitetura do Mundo e do homem. E então, quando
você entra neste pensamento, de alguma maneira ocorre a pergunta sobre a
pintura se tornar uma parte menor frente à compreensão do caminho dos
acontecimentos da experiência.
325
Eu já não analiso o Suprematismo como pintor ou como uma forma
tirada por mim do crânio escuro, eu fico diante dele como um estranho que
contempla um fenômeno.
Por muitos anos eu estive ocupado com o meu movimento nas cores,
deixando de lado a religião do espírito, e passaram-se vinte e cinco anos, e agora
eu retornei ou entrei no Mundo religioso; não sei por que aconteceu assim. Eu
frequento a igreja, olho para os santos e para todo o mundo espiritual vigente, e
eis que vejo em mim mesmo, mas, talvez, no mundo em geral, que chega o
momento de mudar de religião. Eu vi que a pintura estava indo para sua forma
pura da ação, assim como o Mundo das religiões está indo para a religião da Ação
pura; todos os santos e profetas foram estimulados por essa mesma ação, mas
não conseguiram implementá-la, o obstáculo deles foi a razão, que vê em tudo
um propósito e um sentido, e toda ação do Mundo religioso se despedaçou sobre
estas duas paredes da cerca da razão, tornando-se finitos, sem conseguirem
alcançar o infinito. A saída das religiões para a ação pura torna-se obrigatória para
mim, a infinitude da ação do espírito religioso constitui-se como algo universal, e
então, nele não se encerra sua força, porquanto não será delineada a oração pelo
significado e pelo propósito, a oração passa pela ação da irracionalidade infinita.
Nem recompensas, nem promessas, nem punições não será como aconteceu
com Cristo, quando ele alimentou com cinco pães cinco mil homens, e [então] eles
o elegeram seu czar; mas e se ele os tivesse mantido famintos, e não tivesse
prometido nada no futuro, ele seria eleito ou não269. É preciso livrar o povo de
todas as religiões para a religião da ação pura, na qual não haverá nenhum tipo de
recompensas e promessas. Não sei como você reage às minhas resoluções, mas
269 Um dos traços mais distintivos do estilo de Maliévitch nestas cartas é a utilização de uma pontuação em total contrassenso ao russo, fato que gera alguns problemas de compreensão e de tradução. Embora Maliévitch não empregue o ponto de interrogação ao final da frase, entende-se aqui a presença e um questionamento retórico. Na introdução do site russo que disponibiliza os escritos de K. Maliévitch (Disponível em: http://kazimirmalevich.ru/t5_0_2/. Acesso em 17/11/2014) este aspecto - - também é indicado como uma característica predominante nos manuscritos do artista.
326
eu vejo no Suprematismo, nos três quadrados e na cruz, princípios não apenas
pictóricos, mas de tudo em geral; e uma nova religião. Também vejo um Novo
Templo; divido [o Suprematismo] em três ações - colorido, negro e branco; no
branco eu vejo a Ação Pura do Mundo, a primeira colorida como algo não-objetivo,
mas [na qual inicia-se] a retirada do Mundo Solar e suas religiões, em seguida, a
transição para o negro como concepção de vida e o branco como ação. Eu
mencionei que é preciso livrar o povo, eu novamente assumi esse papel, o qual
outros já tomaram para si mais de uma vez, mas talvez, seu movimento [popular]
seja necessário, a fim de ir de uma geração para outra; e o próprio povo deve ser
purificado, sua mais importante tarefa é a sua saída de si mesmo, ou seja, do
povo, para não mais caminhar, e sim agir eternamente. O Novo Templo é a ação
mundial de todos, aquela que nunca se detém, sua Liturgia é eterna, ela
absolutamente não se assemelha às religiões existentes e ao sacerdócio aos
ministérios que terminam como todas as ocupações e bailes, festas, e na qual
avança a ruptura com o Mundo Natural, ou seja, com toda a sua eterna existência
de ação.
Um Templo assim eu gostaria de semear, mas como para tanto é
necessário preparar-se, a fim de assimilar a ação real, deve realizar-se em mim a
ruptura completa com o mundo da Consciência Cívica, para o qual, após a
introdução da ação pura, não mais retornaria; uma grande responsabilidade
repousa diante dele, um enorme conhecimento de santidade, atuantes à sua
maneira. (É isso! Influente à sua maneira?) Avançando, tal pureza deve se tornar
o que qualquer pureza e ação das religiões existentes [se tornarão], estando
maculadas pela ferrugem e pela sujeira. Todo mundo pensa sobre si mesmo, que
não é nada perante Deus e não pode ser puro como ele, mas o Deus das religiões
contemporâneas não é de modo nenhum mais puro do que aquele que reza diante
dele. Eu posso ser um pecador, porquanto arcarei com meus próprios pecados
através do arrependimento e me tornarei puro, e depois, novamente, eu vou me
macular, mas conheço a bondade do eterno, arrependo-me e me purifico nele.
327
Mas o que acontecerá quando eu estiver diante de mim e vir em mim o eterno, e
vir que juntei toda a sujeira sobre mim mesmo e por todo esse tempo acumulei-a
tanto que ao invés de arrependimento e purificação estou me tornando mais sujo
ainda. Verei que a resposta não está diante de ninguém, eu mesmo sou eterno e
puro, e somente então não pecarei, porquanto o risco de pecado será arruinado e
injuriado pelo mais puro dentro de mim. O mundo está se movendo para a pureza,
e no Suprematismo branco começa sua nova existência cotidiana. E eis que a
mim parece que Bulgákov não vê Deus, embora queira agir com ele, ele quer a
unidade com ele, mas como comunhão, por isto nunca entrará nele. Bulgákov
encontra-se no turbilhão da religião do espírito, da qual ele precisa sair. Mas a
carta está terminando com o papel, porém gostaria de falar mais, e tenho medo
que ela não seja infinita. Queria dizer mais sobre a penetração filosófica e sobre a
ação pura, sobre o conhecimento e sobre a ação sem conhecimento e penetração
filosófica, mas sobre isso falarei na próxima vez.
Escreva-me, há tempos não chegam cartas tuas, e não sei se está
recebendo as minhas cartas.
Cumprimente Maria Boríssovna e as crianças
Tudo de bom,
Seu K. Maliévitch
11 de abril de 1920.
Vitebsk.
328
6.2.3. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 15 de outubro de 1921)
Prezado Mikhail Ossipóvitch
Recebi sua carta por Miedvédiev, o mesmo que é meu encarniçado
inimigo. Apenas eu não o tratei de maneira ofensiva e nas suas conferências
públicas ele está sempre xingando, inclusive me chamando de aborto humano,
como que para por lenha na fogueira. Agora, pelo visto, você e ele talvez falem de
mim; vejo suas definições de que eu sou um papua270 e agora em todo lugar só se
fala nisto, tanto que nesse momento, enquanto papua, eu sigo em meio aos
instruídos e eruditos medviedvianos271. Claro que toda Vitebsk já conhece a carta,
inclusive
conosco em Vitebsk, Miedvédiev trouxe uma carta do famoso escritor
Guerc s o que perturba mesmo é pensar: que
papua é esse, se para ele escreve alguém como Guerchenzon [?]. Alguns pediram
para ler a carta, mas eu não deixei, e veja como é curiosa nossa Vitebsk: a mim
molestaram com sua literaturidade272 aconselharam a aprender a escrever ou que
o manuscrito fosse corrigido, mas eu não aguentei e disse que eu não deixaria
que burros o corrigissem. Mas, além disso, [de] Petrogrado também vem
diretamente a desgraça, mas a mim mesmo parece [que], talvez, seja correto e
insolente escrever [assim]; penso agora, fazer tudo secretamente e não falar nada
270 Termo tomado de empréstimo do vocabulário de Guerchenzon, significando selvagem, bárbaro, primitivo, ingênuo. 271 O termo medviedievchtchiny trocadilho irônico entre o sobrenome de Miedvédiev e o termo medvied que têm entre si semelhança morfológica e sonora. Se tal sentido foi de fato pretendido pelo artista, ao dizer que o grupo de instruídos adeptos de Mina ciência, na verdade ele estaria os qualificando enquanto um bando selvagem de ursos. 272 No original: literaturchtchinoi ( .
329
para ninguém, e não imprimir, e quando eu morrer, que sejam organizados, se
algo for encontrado. Tudo para mim é novo, tudo deve ser observado; claro, todas
as coisas no mundo foram há muito tempo observadas, mas todas elas continuam
a ser examinadas, e agora eu realmente tenho começado a me preocupar com a
ideia do peso, [do] material e do oculto na imobilidade, sobre a razão da tendência
em direção ao centro de todas as coisas e o que elas impelem e ligam, e como
origina-se a repulsão oposta das coisas, de onde elas vieram. Escrevi uns
apontamentos sobre o movimento de Deus e o fato de que o homem não existe,
não existiu em absoluto e nunca existirá.
Mas Bulgákov sustenta de maneira absolutamente estranha a Verdade
e o amor, mas isso não dará em nada e também os monastérios que ele não
conseguirá construir. Ele salva a alma, mas não conhece de fato a alma, e talvez
eu também não saiba que em minha imagem chegou uma nova alma, e para ela
está se preparando um novo corpo. As maiores mudanças estão ocorrendo e é
preciso ver e contar tudo isso.
Mas em todo o caso, muitos Miedvédieves, e os que zombam deles
estarão em um debate comigo (mas esse debate acontece no sindicato onde é o
refeitório e por isto eu quero passar por lá), pois apesar de tudo, não conseguem
contrapor com seus argumentos algo contra mim, especialmente quando eu peço
para falar com seus pensamentos e linguagem.
Dê meus cumprimentos à Maria Boríssovna.
Um forte aperto de mão, seu K. Maliévitch.
Vitebsk, 15 [de outubro] de [19]21.
330
6.2.4. Correspondência Maliévitch Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de fevereiro de 1922)
Caro Mikhail Ossipóvitch
Faz tempo que não lhe escrevo, você também não me escreveu nada;
estive então em Moscou, mas também sem muito sucesso, quis divulgar meu
man 273 . Agora mesmo eu escrevi o meu maior
prematismo como não-ob primeiro lugar
a ausência de espírito prático e descambei totalmente na cultura objetiva. E coloco
tudo na não-objetividade, construo somente os planaltos e as planícies
Suprematistas; em meus Descobri
se Colombo descobriu a América - este homem deve certamente ser detestável a
qualquer pensador, aonde quer que fosse - em toda parte sua América está
descoberta.
Inventaram de caiar minha oficina, para o que era preciso descascar o
papel de parede; papéis de parede foram colados no papel jornal, e claro, pedaços
de jornal foram recitados como tesouros arqueológicos, foram encontrados
comentários críticos para os futuristas, mas também alguma nota sobre Picasso,
mas muito sem sucesso, pois o artigo não tinha nem começo nem fim, mas havia
trechos interessantes de Tchulkov, Bulgákov, Berdiáev. Claro, no artigo, Picasso
suportou ataques de todos ou tentativas de decifrar seu caráter misterioso, e por
isso o título do estudo além do mais, apimentaram
com uns acréscimos diferentes. Picasso, para eles, é um homem que está
corrompendo o espírito, embora Picasso olhasse para o mundo de forma tão
273 Segundo as traduções ocidentais em francês e inglês. No original: Bog ne skinut
: Deus não está destituído).
331
simples e clara como para a simplicidade geométrica de uma construção pictórica
e, em absoluto, não queria nem podia decompor ou expulsar o espírito do mundo;
o espírito permaneceu limpo, construído, assim, como [para ele] devia ser
precisamente na construção pictórica, e por isto é impossível falar sobre
decomposição do espírito; não é possível também falar que Picasso se referia
com indiferença ao objeto e fragmentava instrumentos musicais de maneira
indiferente, decrepitamente dispostos um ao lado do outro, e isto, em minha
opinião, é terrivelmente ingênuo; todos os escritores se aproximaram dele a partir
de um ponto de vista do mundo objetivo, e claro, para eles, o mundo objetivo
estava morrendo, porquanto a forma ou os sinais do que é objetivo estavam
desaparecendo, e seu espírito, se não for um para o todo, então, claro, morria;
mas, pois, pode-se ver o mundo duplamente ou multiplamente, e por isso, se os
pensadores indicados fossem não-objetivos, então encontrariam em Picasso um
pintor genial, um pintor, é verdade, que não sabe o que está criando, quais os
valores que ele carrega em seu deslocamento pictórico. Mas se ele colocasse
objetos musicais um ao lado do outro, como são vistos por um escritor de artigo,
isso não seria uma [pintura] valiosa, mas aqui existe a estrutura de diferenças
pictóricas, a qual não é vista pelos objetivistas274 no artigo intitulado
quem é ele para o
para estas formas não há
impressão correspondente além ram os
objetivistas, e tudo isto porque não podiam conhecer o espírito pictórico e sua
construção - claro, no inferno e no céu não estará em correspondência, pois tudo
que é objetivo neles é do mesmo modo [que] na cultura objetiva terrena, a qual
precisa ser derrubada como os males humanos. Em vez de buscar
correspondência, seria preciso fazer de Picasso o primeiro homem que realmente
274 Percebe-se nesse trecho que Maliévitch evita o uso do termo matierialista : materialista), fazendo uso de uma terminologia em ligação ao seu sistema retórico: predmetniki ( : objetivistas). Em geral, apontamentos de seus críticos.
332
[representa] o século de pedra na pintura, [contra] o qual se quebrou o mundo
objetivo; eu percebi, pois o orvalho no espírito pictórico, e talvez no Suprematismo,
já tenha se confirmado definitivamente e fornecido em primeiro lugar o elemento
não-objetivo da vida. Picasso lutou com o mundo objetivo, é verdade, preso em
seus fragmentos, mas isto foi bom; para mim já foi mais fácil remover o lixo
objetivo e expor o infinito, a ausência de espírito prático, a falta de senso prático,
motivo pelo qual o Inkhuk moscovita me persegue como não-materialista. Em
uma das reuniões todos me encurralaram, mas se eles fossem inovadores, e não
objetivistas, então nunca aplicariam a Arte na imagem tavernesca de panelas. Em
Moscou foi organizada a Academia das Ciências da arte, na qual se deve incluir
também membros do Inkhuk; mais uma oficina Politécnica de arte foi aberta, mais
uma ciência, e todos se preparam para ,
existe. É interessante saber quais pessoas formam a
Academia das ciências da arte; devem ser, Fritche, Kogan, Posse275; tudo isto é
interessante. De qualquer modo, que instituição é essa, quais questões são
examinadas [?]. Eu fico aqui no exílio e não sei nada do que acontece em Moscou.
Não se sabe se está com Davidova, preparava-se para me escrever do
estrangeiro, mas até agora nada. Penso em como publicar meu tratado sobre o
o- . Não consigo encontrar nenhum meio para
publicar a não-objetividade. Essa edição concluiria vinte e cinco anos de meu
trabalho pictórico e de reflexão sobre ele.
Um forte aperto de mão, K. Maliévitch.
Dê meus cumprimentos à Maria Boríssovna.
Instituto de Arte de Vitebsk. Rua Bukharin, n.10. 275 Vladímir Maksimovic Fritche (1870 - 1929): crítico literário e historiador de arte. Foi, na década de 1910, um dos primeiros a usar métodos marxistas na análise da história da literatura e da arte. Durante o período soviético foi um dos criadores mais influentes da metodologia sociológica da estética marxista-leninista. Piotr S. Kogan (1872-1932): historiador literário e crítico marxista. Foi presidente da Academia Estadual das Artes. Vladímir Aleksandrovitch Posse (1864 - cerca de 1933) era editor. In: http://kazimirmalevich.ru/bsp4212/#s9. Acesso em:15/12/2012.
333
11 de f[evereiro] de 1922.
6.2.5. Tratado: O espelho suprematista (1923)
O espelho suprematista 276
A essência da natureza é imutável em todos os fenômenos
modificáveis.
A1) O mundo como
diversidades
humanas
Deus
Alma
Espírito
Vida
Religião
Técnica
Arte
Ciência
Intelecto
Concepção de mundo
Trabalho
Movimento
Espaço
Tempo
= 0
276 Manifesto impresso no semanário A vida da Arte, 22 de maio de 1923, n. 20, pp. 15,16. Um excerto do manifesto foi publicado na revista LEF, 1923, n. 3, Junho-Julho, p. 183. Além do manifesto de Maliévitch, nesse número da Vida da Arte foram publicados os textos Declaração - O Florescimento do Mundo, de Pável Filonov; Declaração, de P. Mansurov; Não-Arte, mas a vida, de Mikhail Matiuchin, representando um manifesto do grupo Zorved (Visão ampliada).
334
1) Para a ciência, para a arte, não há limites, porque aquilo que se
conhece é ilimitado, inumerável, e o inumerável e a infinitude são iguais a zero.
2) Se a criação do mundo são os caminhos de Deus, e se os 277, então ele e o caminho são iguais a zero.
3) Se o mundo é a criação da ciência, do conhecimento e do trabalho, e
a criação deles é infinita, então ele é igual a zero.
4) Se a religião conheceu Deus, conheceu o zero.
5) Se a ciência conheceu a natureza, conheceu o zero.
6) Se a arte conheceu a harmonia, o ritmo, a beleza, conheceu o zero.
7) Se alguém conheceu o absoluto, conheceu o zero.
8) Não há existência nem em mim, nem fora de mim; nada pode mudar
nada, uma vez que não há o que se possa mudar e não há o que poderia ser
mudado.
2) A essência das diversidades. O mundo como não-objetividade/sem-
objeto.
6.3. A utopia do sem-objeto
[...] eu tenho me ocupado em analisar no mistério de seu espaço negro [Quadrado negro], o qual se tornou de alguma forma a nova face do mundo suprematista; eu mesmo vou erigi-lo no espírito criativo. No entanto, o senhor dirá que eu penso, talvez, de maneira demasiadamente ousada. Oh não, eu vejo nisso, aquilo
277 Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os
Romanos 11:33.
335
que um dia as pessoas viram na face de Deus e toda a natureza representou a imagem de seu [Deus] na aparência semelhante ao ser humano, e se alguém dos tempos antigos tivesse penetrado na face obscura do quadrado negro, talvez tivesse visto o que eu vejo nele. Oh, eu ainda falo sobre ele timidamente, mas é inevitável que através dele passe a via do mundo todo, junto da natureza de Deus. Através dele, no passado infinito, penetrou tudo, para que através de sua face econômica se estabelecesse o mundo dos
-
mas também sobre isso é possível desenvolver um discurso enorme e seria necessário desenvolvê-lo, porque nisto encerra-se o desenvolvimento de um novo mandamento do mundo, o qual existiu no passado e chegou até nós e seguirá mais adiante, deixando para trás milhares de dígitos de anos. Por isto, no quadrado negro revela-se a forma da face da nova Majestade da natureza, que para ele, por causa da Grandeza será o altar no qual se esconderá um mistério, e esse mistério é tão distante, profundo e infinito que em breve atingirá as estrelas celestes da via láctea, ao invés de aprofundar-se e investigar todas as sinuosidades que se encontram em mim, ainda que pareça que elas estão tão perto, mas que na realidade estão longe. E muitos sábios elevam seus olhares sobre as estrelas distantes, olham no telescópio, querendo aproximar-se delas e nesse momento esquecem que eles próprios são como estrelas, as quais é preciso examinar. Mas eu mesmo sou uma estrela tão distante no espaço infinito que nunca nenhum telescópio tocar-me-á.
O trecho acima, extraído da carta escrita por Maliévitch a Ettinger
(Vitebsk-Moscou) em 03 de abril de 1920 é apenas um dentre os exemplos das
idas e vindas de sua retórica filosófica. Em um mesmo parágrafo o artista faz a
travessia do indivíduo ao Absoluto, do ser ao cosmo, do natural e palpável ao
.
Megalomaníaco? Messias? A filosofia suprematista fez Maliévitch ser
posto por seus contemporâneos na ribalda destes dois opostos:
O Espírito do misticismo russo e alienação fertilizam estes empreendimentos na esfera da pura abstração, que é levada a um
336
nível extremo e absurdo, supervalorizando o lado metafísico do processo criativo. 278
O artista Maliévitch, apesar da exclusividade de sua aproximação com a pintura, é certamente um grande mestre. Não é surpreendente que em um país onde o incompreensível Kandinski pudesse ter êxito, o mais sintético e corajoso Maliévitch também fosse favorecido, especialmente depois de sua atual volta à pintura forte e severa.[...] O problema surge quando Maliévitch deixa de pintar e começa a escrever brochuras. Eu ouvi que os alemães também foram surpreendidos por seus escritos. Eu tentei ler os grandiloquentes e obscuros trabalhos teóricos do líder dos
alguma forma, unir suas metas e o caminho com a revolução e com Deus. 279
O Suprematismo poderia morrer de consumo abstracionista, de uma falta de sangue que é transportada à realidade. Ele deixa a impressão de estar enervado, embora produza a ilusão de criação, algo como as idéias de Platão, e reivindique o direito de tomar o lugar do Senhor Deus na invenção de novas formas. Há alguma irracionalidade nisto, algum tipo de loucura nesta fuga da realidade, há o orgulho de um homem que gostaria de ser Deus, [...] que acredita que com uma riqueza de idéias possa defender obras de arte. 280
Grande é a tentação de ver, não apenas em Maliévitch, mas também
em outros artistas da vanguarda mem que gostaria de ser
a bandeira da criação artística,
fazendo sombra para além dos domínios da arte. Claro, cirurgiões operam,
motoristas guiam, professores ensinam... e é isso que dita a lógica mais ordinária.
Contudo, artistas muitas vezes reivindicaram mais do que o exercício de suas
profissões e dos papéis que ocupam em uma determinada estrutura social. Neste
fato coexiste tanto a dimensão política quanto a espiritual da obra de Maliévitch. 278 K. Vinkler, The Exhibition of Prof. Malevich in the Club of Polish Artists and the Theory of Suprematism, Kurier Poranni, n. 89, 30 de março de 1927, p. 3. In DRUTT, Matthew (org), Kazimir Malevich, Nova Iorque: Guggenheim Museum, 2003, p. 260. 279 LUNATCHARSKI, A., Russian Artists in Berlin, Ogoniok, n. 30, 1927. In DRUTT, Matthew (org), op.cit., p. 261. 280 KLESCINSKI, J., Suprematism [excerto do artigo Ideia e Forma. Ensaios sobre o desenvolvimento da Arte Polaca] Varsóvia, c. 1931. Ibid, p. 260.
337
Como criador dessa cosmogonia, dessa efetiva construção utópica que
, ele a concebe a partir de um princípio e de um fim que
existem no mesmo tempo, no mesmo espaço infinito. Conceitos separados pela
lógica, mas concebidos como uma única entidade. Esse é o Absoluto incriado que
Maliévitch contempla e de onde parte sua criação:
Eu já não analiso o Suprematismo como pintor ou como uma forma tirada por mim do crânio escuro, eu fico diante dele como um estranho que contempla um fenômeno.[...] Mas o que acontecerá quando eu estiver diante de mim e vir em mim o eterno [...].281
Não estamos diante de um homem que se senta em um trono. O
movimento é o oposto, de retirada, de despojamento místico, de contemplação.
Para tanto, ocorre um movimento intrínseco e extrínseco que reúne o ponto de
partida ao ponto de chegada. Neste ponto, onde a origem toca seu desfecho,
aquilo que inicialmente parecia apartado tem a possibilidade de se perceber como
um: a linha torna-se plano, contido e completo. É o primeiro estágio do
Suprematismo, como aponta Maliévitch ao escrever sobre seu quadrado, seu
círculo e sua cruz. Mas o misticismo da forma não está completo, ou melhor, ainda
não foi completado pela via da dissolução das formas. A revolução que está
contida na interrupção de uma linha reta, na cor que desintegra contornos e se
converte em cor- de
Maliévitch é a contemplação desse si-mesmo-Absoluto e o apagamento das
concepções que faziam crer na concepção contraditória, pois compartimentada do
ser:
[...] eu saí de toda picturalidade para o preto, para o colorido, para o branco, abandonando todo o mundo objetivo, o qual o Cubismo e o Futurismo estenderam e pulverizaram. Eu não pulverizei nada, eu expus o Quadrado preto, colorido e branco, dei o Suprematismo colorido e não colorido, e eis que tomo a liberdade de dizer que
281 Correspondência enviada por Maliévitch a Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de abril de 1920).
338
estes três princípios se tornarão uma nova Construção-de-mundo [...].282
Como descreve Maliévitch, não se trata da decomposição do Cubismo:
passado presente e futuro somados em um vislumbre temporal. No
Suprematismo, esse infinito visual é uno e estabelece o equilíbrio entre a cor e o
espaço atemporal.
-de-
construção religiosa de mundo? podemos perguntar. Ao que Maliévich
responde: Deus não pode ser excluído do Absoluto,
Uma das sínteses do artista nos escritos da década de 1920 é a de que
o princípio espiritual não está por si errado, mas sim, a compreensão material
, pois a ideia da comunhão religiosa implica
em uma aceitação da condição primeira de separação do indivíduo desse
Absoluto que lhe é exterior. Em contrapartida, o pressuposto adotado por
Maliévitch é o de que o desejo de ser parte do Absoluto, a comunhão religiosa, se
baseia em um princípio equivocado, simplesmente porque o Absoluto não é
fragmentado - não podemos fazer parte de algo que nunca esteve dividido,
incompleto. É nesse momento que nos deparamos com o Absoluto do ser, ou
pelos termos de Maliévitch, nos encontramos diante do .
O Suprematismo é o reconhecimento dessa origem onde os seres não
estão apartados e não obedecem a uma função no mundo natural. Por este
pequenas
mazelas da vida cotidiana e da razão fica para trás:
Mas o que acontecerá quando [...] vir que juntei toda a sujeira sobre mim mesmo e por todo esse tempo acumulei-a tanto que ao invés de arrependimento e purificação estou me tornando mais
282 Correspondência enviada por Maliévitch a Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de abril de 1920).
339
sujo ainda. Verei que a resposta não está diante de ninguém, eu mesmo sou eterno e puro, somente então não pecarei, porquanto o risco de pecado será arruinado e injuriado pelo mais puro dentro de mim. O mundo está se movendo para a pureza, e no Suprematismo branco começa sua nova existência cotidiana.283
Reconhecer esse implica
necessariamente na concepção unificadada do reino espiritual e material, pois a
forma é mais do que seu culto material, é objeto de revelação. Perceber o que há
de imaterial na matéria passa pelo processo de transcender o racional. O
misticismo judaico ao qual Maliévitch é posto em contato em Vitebsk e a ideia
Ortodoxa que conjuga no ícone o realismo místico e o mistério da encarnação lhes
dão os fundamentos desta concepção.
Também não é possível deixar de apontar o enraizamento dessa
concepção na filosofia desenvolvida por Soloviov:
Quando acreditamos realmente em Deus, assim como no Bem que desconhece fronteiras, é imprescindível reconhecer também a
próprio ser da nossa natureza, não apenas no espírito, mas também na carne, e através dela também com os elementos do mundo externo, e isto significa reconhecer que a natureza é capaz de encanar em si a Divindade, significa acreditar na redenção e na consagração da matéria e na sua comunhão com Deus.284
A realização terrestre e material de um sentimento espiritual estava nas
origens do pensamento artístico da vanguarda russa, lição herdada desde a arte
bizantina até Simbolismo russo.
Como destaca Bernice Glatzer Rosenthal, na introdução da coletânea
The Occult in Russian and Soviet Culture, a 283 Correspondência enviada por Maliévitch a Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de abril de 1920). 284 SOLOVIOV, Vladímir, Três discursos em memória de Dostoiévski. In: GOMIDE, Bruno Barreto (org.), op.cit., p. 535.
340
a o conhecimento de si, do mundo, e do mito,
fez 285. Por outro lado,
a concepção do artista enquanto alguém que traz ao mundo ideias por meio de
sua ação direta sobre a matéria (ainda que tal enunciado seja amplo o suficiente
para ser aplicado a qualquer atividade humana), fazendo a correspondência
imediata de seu microcosmo com o macrocosmo, reiterou o desejo de ver na arte
um objeto de revelação.
Como ocorria no Romantismo alemão e como se desenvolveu
posteriormente no Simbolismo russo, muitos artistas atribuíram um sentido
religioso ou teúrgico à arte. Em contrapartida, é fundamental notar que foi
justamente a associação entre os aspectos estéticos da religião e da moral e a
concepção de um caráter sagrado da arte que desembocaram na consolidação de
uma espécie particular de sentimento místico, que não desejava a comunhão da
arte com Deus, mas sim a afirmação da alteridade artística. Embora a primeira
vista contraditório, este sentimento místico foi, no trabalho de muitos artistas,
construído a partir de temáticas e discursos ligados à religião, à espiritualidade e
ao ocultismo, contudo, como reflexo de um processo de laicização da arte.
Nesse panorama, a arte muitas vezes era vista como algo tão
profundamente sagrado que alcançava o direito de se equiparar, e não de renegar
o princípio da religião:
É preciso livrar o povo de todas as religiões para a religião da ação pura, na qual não haverá nenhum tipo de recompensas e promessas. Não sei como você reage às minhas resoluções, mas eu vejo no Suprematismo, nos três quadrados e na cruz, princípios não apenas pictóricos, mas de tudo em geral; e uma nova religião. Também vejo um Novo Templo; divido [o Suprematismo] em três ações - colorido, negro e branco; no branco eu vejo a Ação Pura do Mundo, a primeira colorida como algo não-objetivo, mas [na qual inicia-se] a retirada do Mundo Solar e suas religiões, em seguida, a transição para o negro como concepção de vida e o
285 ROSENTHAL, Bernice Glatzer (ed.), op.cit., p. 4.
341
branco como ação. Eu mencionei que é preciso livrar o povo, eu novamente assumi esse papel, o qual outros já tomaram para si mais de uma vez, mas talvez, seu movimento [popular] seja necessário, a fim de ir de uma geração para outra; e o próprio povo deve ser purificado, sua mais importante tarefa é a sua saída de si mesmo, ou seja, do povo, para não mais caminhar, e sim agir eternamente. O Novo Templo é a ação mundial de todos, aquela que nunca se detém, sua Liturgia é eterna, ela absolutamente não se assemelha às religiões existentes e ao sacerdócio aos ministérios que terminam como todas as ocupações e bailes, festas, e na qual avança a ruptura com o Mundo Natural, ou seja, com toda a sua eterna existência de ação.286
Ao colocar sua pintura no lugar tradicionalmente dedicado ao ícone
russo
do Suprematismo, Maliévitch tenta absorver do princípio religioso uma
mesma equivalência em essência e em existência para sua arte.
Na obra de Maliévitch, esse sentimento místico particular era também
uma crítica à razão e a afirmação da possibilidade de uma sensação, uma
contemplação imediata do Absoluto, que não está apartado do cosmo, tal como já
havia sido afirmado por Soloviov.
Embora não fosse exclusivo da retórica suprematista, um de seus
pontos fundamentais era a necessidade de ir além da fé incondicional no
conhecimento intelectual e na verdade material ou demonstrável. Para tanto, a
razão é a todo momento confrontada pela primazi
Considero a excitação e o pensamento como as bases mais importantes da vida cotidiana do homem [...]. Mas, este é o ponto de vista da vida de todos os dias; em realidade, a pura manifestação da excitação não pode jamais ser alcançada na contemplação do natural e é impossível perceber o que nós chamamos interior. Ela se encontra sempre no interior e não se presta ao real, nem ao natural [...]
286 Correspondência enviada por Maliévitch a Guerchenzon (Vitebsk-Moscou, 11 de abril de 1920).
342
O homem em suas manifestações tende a esperar em seu pensamento a perfeição, quer dizer a tornar a Realidade de sua excitação, mas no momento onde aparece a forma ele esquece que a forma é convenção, em Realidade a forma não existe; como é então possível manifestar a excitação quando a excitação não é forma, não tem fronteira; em segundo lugar, vamos assumir que a convenção seja a realidade ou o natural convencionais, mas neste momento a excitação mesma sairá convencionalmente para ir ao interior da forma, mas a partir do momento que a forma é manifestada, ela se torna morta [...].287
Segundo Malilévitch, a
com que a forma manifestada se torn[e] , inerte, esvaziada de seu real
significado e de sua verdadeira existência. A forma será sempre limitada ao passo
que a Maliévitch afirma que a objetividade
é apenas uma das formas de representação do mundo e de sua ordem natural, e
não constitui em si a Realidade.
sta e
propiciar o desenvolvimento de determinadas formas dentro de seu trabalho (esta
é uma das conclusões da Teoria do elemento adicional em pintura, de Maliévitch).
Contudo a visualidade exterior pode apenas explicar o desenvolvimento exterior
das formas e não a origem destas.
Para Maliévitch, todo conhecimento é, por essência, infinito, assim
como o infinito é o principio fundador de todo o conhecimento. A ideia de uma
mesma existência conectada de todos os seres, aliada a um processo perene de
transfor
termos comuns ao vocabulário de diferentes filósofos russos, como Pável
Floriênski.
287 MALÉVITCH, K. S., , op.cit., pp. 148,149.
343
Outro conceito fundamental dentro da filosofia suprematista era a
Maliévitch afirmava que, para a realização de qualquer ato, certo
gasto de energia deveria ser empregado, mas, contrariamente, todos os corpos
desejavam a conservação de sua energia. Desta maneira, os atos deveriam ser
energética dos corpos:
Havendo-me colocado sobre a superfície econômica do quadrado como perfeição da modernidade, eu o abandono à vida como fundamento do desenvolvimento econômico de seus atos. Declaro que a economia é a nova medida, a quinta288, da apreciação e da definição da Modernidade das artes e das criações; sob seu controle estão todas as invenções criadoras de sistemas, de técnica, de máquinas, de construções, assim como das artes (pintura, música, poesia)[...]289
Nesse sentido, o pintor destaca as obras cubistas, futuristas e
suprematistas como exemplos dessa , pois empregavam em
suas composições formas essenciais ou geométricas e superfícies planas
coloridas, opostamente às obras que se utilizavam de arabescos ou ornamentos,
, que levava os pintores a copiar ou a
embelezar as formas, dando-lhes um aspecto decorativo.
Para Maliévitch, a beleza existe na natureza porque ela é composta de
formas variadas , que estão inseridas em um sistema perene de transformação.
288 Apollinaire, no texto Os Pintores Cubistas (1913), menciona a influência da geometria no
as inquietações que o sentimento do infinito desperta na alma dos grandes artistas. Os novos pintores não tem a pretensão [...] de serem geômetras. Mas podemos dizer que a geometria é para as artes plásticas o que a gramática é para a arte do escritor. Hoje, os cientistas já não se limitam às três dimensões da geometria euclidiana. Os pintores foram levados espontaneamente, e por [...] intuição a preocupar-se com novas dimensões possíveis da extensão, que na linguagem dos
Rússia, o termo também era conhecido através da difusão do texto de Uspenski, A quarta dimensão (1909), e do panfleto Declaração da palavra como tal (1913) de Krutchônikh. 289 ], Vitebsk, 1919. In: MALÉVITCH, K.S., De Cézanne au Suprématisme, op. cit., p. 79.
344
Analogamente, o pintor também deveria elaborar suas composições pictóricas
utilizando signos variados a fim de obter dinamismos e tensões plásticas.
Embora Maliévitch afirme sua convicção numa arte regida pela criação
de formas totalmente novas, não-objetivas , sua aversão não se refere
diretamente à natureza, mas à submissão dos artistas aos cânones de beleza e à
cópia de formas idealizadas do mundo natural. Ele justifica esta posição afirmando
que, da mesma maneira que a natureza se modifica e se aprimora a cada dia, as
formas pictóricas deveriam ser percebidas dentro de um fluxo perene de
transformações, que em essência, refletem as próprias transformações do
homem.
A economia, que em um primeiro momento aparece associada ao
abandono da representação da visualidade dos objetos e à economia dos meios
da nova representação pictórica, é, dentro do sistema suprematista, o veículo de
despojamento por meio do qual o indivíduo dá o primeiro passo em direção ao
esvaziamento da razão e de toda visualidade que lhe é própria, de todas as
amarras conceituais que impediam o total exercício da liberdade criadora do
homem.
Assim, a economia se constitui como um dos conceitos mais
particulares dentro da filosofia de Maliévitch, pois, através da experiência
suprematista de despojamento místico e de cont
, ela refuta o idealismo que vê a beleza e
como os agentes transformadores da realidade.
O caráter ideológico da não-objetiva suprematista pode ser
exemplificado por um texto redigido por Maliévitch em 1924 a respeito de Lenin:
um tratado que passa das discussões sobre a iconoclastia ao culto da imagem.
345
Lenin: 290, Maliévitch compreendeu a dimensão do evento
desde seu princípio, tanto que, em 25 de janeiro, apenas dois dias depois do
-
gum tempo depois, escreveu ainda um ensaio que teria uma
Das Kunstblatt (n.10, 1924, pp. 289-293).
No mesmo ano, em 05 de abril, o ARTNews Magazine, de Nova Iorque,
publicou um artigo
aparecia descrita a rejeição dos oficiais de Petrogrado ao monumento a Lenin
proposto por Maliévitch: O Bolchevismo havia recusado a arte bolchevique em honra à memória de Nikolai Lenin, e o monumento cubista do líder morto desenhado por M. Maliévitch, expoente das idéias soviéticas em arte, foi rejeitada. Maliévitch... orgulhosamente exibiu um enorme pedestal composto por uma massa de ferramentas e máquinas agrícolas e industriais. No topo da pilha estava a "figura" de Lenin - um cubo simples, sem insígnias. "Mas onde está Lenin" - o artista foi questionado. Com um ar ferido, ele apontou para o cubo. Qualquer um pode ver isto, se tiver uma alma, acrescentou. Mas os juízes, sem hesitação, recusaram a obra de arte.291
O comentário de Maliévitch é por si só a síntese do artigo sobre Lenin.
Contudo, em um sentido mais amplo, pode-se dizer que ele estende àquele
momento histórico, que representou a morte de Lenin, algumas das questões que
já haviam sido discutidas pelos autores de Vekhi no início do século.
No editorial da revista LEF, em 1924, seus integrantes criticavam o uso
da imagem de Lenin:
290 In: DOUGLAS, Charlotte; LODDER Christina, op. cit., pp. 139-158. 291 Bolshevism Balks at Bolshevism Art. In: ARTNews, Nova Iorque, 5 de abril de 1924. Disponível em: http://faculty.dwc.edu/wellman/Malevich-review.html. Acesso em 16/09/2014.
346
Não reproduza Lenin mecanicamente! Não imprima seus retratos em posteres, em oleados, em placas, canecas, em caixas de cigarro! Não converta Lenin em bronze! Não devemos privá-lo de sua marcha alegre e da aparência humana que ele conseguiu manter dirigindo a história. Lenin ainda é nosso contemporâneo. Ele está entre os vivos. Precisamos dele como ser vivo, não como morto. Então, aprenda com Lenin, mas não o canonize! Não crie um culto do homem que em sua vida lutou contra todos os cultos! Não troquem objetos deste culto! Não troque Lenin!292
Já no tratado escrito por Maliévitch,
-
[...] que morreu por nós, os materialistas, que já não têm mais que O seguir, caír por ELE, a fim de se incorporar a ELE. [...] Surge a questão da forma sob a qual instaurar a unidade com ELE. Pode-se exprimir essa unidade pela entrada no cubo: a eternidade. Assim nascem as formas de um novo ritual religioso, que transbordarão na existência e reprimirão as realidades da vida material, cuja essência se encontra fora do ritual.293
O manifesto iconoclasta de Maliévitch é dividido em itens numerados:
os nos quais aparecem sobrepostos os discursos de defesa da não-
figuração e a rejeição ao culto de santificação da imagem de Lenin, como um
contrassenso aos próprios ensinamentos do líder comunista:
[A arte figurativa] produzirá de novo Rafael, para decorar as capelas Lenin, o desenvolvimento dessa nova via vai levar o materialismo a uma nova religião, decorará as igrejas com as representações da história nova [...]. Outros serão conduzidos das trevas da religião para a luz nova do materialismo. Uma luz, talvez mais crua, mas de novo religiosa. Para seu grande pesar.294
292 (Ne torguite Lenin), Lef, n. 1, 1924, p. 3. Disponível em: http://www.ruthenia.ru/sovlit/j/2946.html. Acesso em 01/12/2014. 293 BOIS, Yve-Alain, Malevitch et le politique - Kasimir Malévitch: Lénine. In: Macula, n° 3/4, 1978, p. 187. 294 BOIS, Yve-Alain, op.cit., pp. 188,189.
347
Conclusão
Nosso mundo contemporâneo é obrigado a tomar consciência de que não é a vida que será o conteúdo da arte, mas a arte deve ser o conteúdo da vida, pois é somente sob esta condição que a vida
pode ser bela.
O problema da forma na arte suprematista desempenhará e desempenhou um papel grandioso. Sem esse problema é impossível fazer aparecer qualquer elemento que seja das
sensações do mundo [...]295
K. Maliévitch, 1928
Não muitas ou evidentes são as ocasiões na História da Arte em que a
pintura nos leva à filosofia sem ir buscar nesta sua própria fundamentação ou
legitimidade. No Suprematismo de Maliévitch, como a revelação se dá por uma via
não verbal, é a arte que esclarece sua filosofia, que a constrói, uma filosofia na
qual são imprescindíveis as discussões sobre a visualidade no processo de
construção do conhecimento.
naturais a anunciação de uma profunda crise da consciência e do espírito
humano; Maliévitch afirmará que novas formas anunciam novos conteúdos e
reconhecerá nestas, um conhecimento dissociado da concepção objetiva da
realidade. Verá também que não há mentiras no plano e escolherá a via
iconoclasta em oposição ao culto material do objeto.
295 Maljarstvo v problemi arxitektury (A pintura no problema da arquitetura), Nova Gueneratsiia, n. 2, 1928, pp. 116-132. In: MALÉVITCH, K.S., Les Arts de la Representation, op. cit., p.17, 11.
348
Mas essa visualidade da qual fala Maliévitch não é uma laca que se
aplica sobre a superfície do mundo, ou ainda, a cópia desta laca empreendida por
qualquer artista a partir da aparência das incontáveis coisas que se acumulam.
Maliévitch fala sobre a importância da não-objetividade e do obsoletismo da
figuração em um mundo que visava à à do
homem.
O que há de revolucionário nesse movimento é que ao questionar a
própria concepção da realidade a partir da não-objetividade, Maliévitch questiona
todos os outros axiomas do mundo. Questiona os sentidos, questiona a razão,
questiona a consciência, ou em outros termos, questiona as três vias
fundamentais de acesso do homem ao mundo: as sensações que nos colocam em
contato com a realidade sensível, as ideias que nos dão acesso à esfera
metafísica e a contemplação que nos une ao Absoluto.
Nesse trajeto, a lógica cartesiana torna-se obsoleta e infantil, os
sentidos comuns já não bastam e tornam-se supremos:
via mística do conhecimento, e a consciência, tão segura em seus esquemas
comprovados pelo mundo visível, abre-se para um espaço infinito de
conhecimento.
O que também há de revolucionário e de político nesse movimento é
que depois dele o homem já não pode mais ser o mesmo, já não pode acreditar
nos mesmos esquemas, sejam eles ditados pela Igreja, pela Fábrica ou pelo
Estado. E como esse homem novo mundo
ao seu redor, e é quando o desejo de conhecer o mundo passa a ser suplantado
pela vontade de modificá-lo, regenerá-lo.
As artes visuais e o credo da liberdade artística, assim como as
doutrinas da integridade do conhecimento que constituíram as principais utopias
sociais russas durante o século XIX e início do XX serviram como modelo de
criação de uma realidade totalmente nova e na qual as experiências que haviam
349
sido desenvolvidas até então apenas em um plano teórico poderiam ter a chance
de ser aplicadas em diferentes esferas da existência.
Mas a transformação material era para Maliévitch apenas uma etapa. A
busca pela verdade não poderia abdicar das sensações, do intelecto e do espírito.
Era preciso abraçar todos os aspectos da existência humana e no processo de
compreensão total,
realidade visível.
Dentro desse raciocínio, os numerosos escritos sobre as correntes de
vanguarda e as novas formas na arte não podem ser entendidos exclusivamente
como parte de um discurso didático ou de uma mera retórica artística. Maliévitch
fala de novas formas, pois estas têm um significado em relação às questões
contemporâneas, fossem estas filosóficas, políticas, sociais.
ontológico e a relação da arte com o homem e o mundo que lhe eram
contemporâneos. Neste sentido, escreve uma história das formas e de suas
relações internas, uma história da consciência pictórica. E dest
aracterística da história, Maliévitch
ressalta também a transformação de mentalidades, de concepções de mundo,
vendo no caminho da transformação artística o indicativo de uma renovação
social, universal.
Em seus projetos artístico-pedagógicos, por exemplo, o museu não é
visto como um lugar de acúmulo, preservação ou exaltação do passado, ou seja, o
museu não é um local de cristalização histórica, mas de construção do
contemporâneo. O percurso sensível, intuitivo era o eixo de suas concepções
expositivas. Não por acaso, os primeiros museus de arte contemporânea do
mundo se consolidaram a partir da iniciativa e projetos de Maliévitch e outros
artistas da vanguarda russa.
350
Na visão de muitos pensadores do período, a Revolução de 1917
anunciava a possibilidade de criação de uma nova sociedade. Ao artista, no
entanto, é designada uma tarefa precisa, a de elaborar os novos objetos da vida
proletária. A ele também cabe uma função: apoiar o governo e educar visualmente
as massas pela propaganda, aos objetos e ao homem, cabe uma utilidade. A
visualidade torna-se mera consequência desta concepção de mundo
predeterminada pelo Estado.
Em conjunto, assiste-se ao movimento de controle e substituição da
Religião, da Filosofia e da Arte pela ideologia socialista e por uma visão de
Ciência que reivindicava o monopólio de ditar as diretrizes do conhecimento
humano.
Nesse panorama, emerge mais uma vez na Rússia o conflito entre
individual e coletivo, e o problema da liberdade torna-se crucial no discurso de
tendências antagônicas.
A Ortodoxia russa afirmava que a aceitação do bem por livre escolha é
o princípio de definição do bem, ao passo que um bem imposto ao sujeito ou um
sistema de constrangimento da vontade individual é a negação da essência do
próprio bem. Um pensador como Bakúnin, por sua vez, contestaria que, se Deus
existisse, o homem seria um escravo deste e estaria privado de sua liberdade.
Porém, se ao homem cabe a possibilidade da liberdade isto constitui a prova
ontológica da inexistência de Deus. Deus é visto, portanto, como a negação da
liberdade.
Em meio a tais polarizações, surge um terceiro discurso: a experiência
mística, que põe em evidência o fato de que, se a vivência interior não pode ser
diretamente acessada, sistematizada, nem normatizada pelo Estado, isto também
não poderá ser feito por meio de quaisquer dogmas. Se, como se sabe, o objeto
de estudo da mística jamais será a experiência em si, mas sim, o relato e a
expressão desta experiência, da qual ninguém além do sujeito tem acesso, a
351
mística torna-se um local privilegiado de preservação da individualidade. É,
portanto, neste fato que se encontra a potência criativa e libertária do discurso
místico; a mística se torna a afirmação do indivíduo, de sua unidade.
Graças a essa dinâmica, a verdade deixa de ser privilégio do
pensamento racional, objetivo. Opera-se uma dissociação da verdade e da
objetividade e o conhecimento que se esconde nesse novo
passa a reivindicar o direito de questionar os limites da Ciência, da Política ou a
validade de binômios até então inquestionáveis como: emoção-subjetividade e
razão-objetividade.
Na Rússia do final do século XIX e na União Soviética do início do
século XX, a coexistência de antagonismos fundamentais como criação e
naturalismo, individual e coletivo, personalidade e sociedade, espírito e matéria
era ainda mais contraditória se vista como algo que existiu em paralelo ao desejo
de integração do ser e das diferentes esferas da existência. Em meio a estes
debates Maliévitch busca no ícone a fundamentação de um discurso que afirma e
unifica duas instâncias: espiritual e material.
Entre o impasse da coexistência oficial ou clandestina de correntes
opositoras, Maliévitch buscava se afirmar enquanto pensador independente de
qualquer esquema exterior, pois quando o homem é mais que sua função, o
caminho é inverso: novas formas geram uma nova consciência, anunciando a
transformação daquilo que fervilhava de maneira inconsciente
Maliévitch, assim como a nova intelligentsia russa de sua época, não
estava empenhado em
da sociedade, ideais tão desejados em uma sociedade arrasada pela miséria, mas
ao mesmo tempo encorajada pelos projetos de mudança que despontaram com a
Revolução.
352
Contudo, no eixo central do pensamento da Geração de Prata, pode-se
perceber que a revolução, em essência,
vezes intocado da consciência humana.
Para Maliévitch, a transformação da humanidade, a verdadeira
revolução e utopia do homem só poderia ser concretizada a partir da
transformação de sua consciência, quando este fosse capaz de alcançar sua
ntes exclusivamente
econômicos, políticos ou didáticos, pois apenas indivíduos transformados
poderiam revolucionar a existência comum; ideia substancialmente oposta às
propostas de tendência marxista que eram defendidas pelo regime bolchevique.
Maliévitch busca a origem desse discurso na iconoclastia, retomando a
questão de uma arte infigurável, que já existia de maneira análoga nos ícones. A
crítica artística verá nisto tanto um escândalo quanto uma mera modernização,
uma retomada de temas caros à cultura russa, um discurso de vanguarda para
vanguardistas. Maliévitch verá nisto o estopim de sua filosofia, de sua utopia
suprematista: os ícones que serviriam de protótipo à ideia da matéria que faz
reverência, não à realidade visível, mas à verdade imaterial - a matéria que torna
acessível e age como espelho dessa realidade superior.
Mas seria religiosa essa realidade superior? Como afirma Ivan Kliun,
Deus seguramente não era estranho a Maliévitch e a quantidade de vezes em que
Deus é citado e discutido nos escritos do artista nos certifica de seu interesse pela
questão. Contudo, para responder a tal pergunta é preciso identificar duas ideias
fundamentais. A primeira se refere ao fato de que, Maliévitch, como artista e
filósofo, não ignora que todos os grandes debates da tradição filosófica russa
sempre tiveram como questão crucial (seja a favor, seja contra) o papel da Igreja e
da tradição espiritual no destino da Rússia, e que nenhum de seus filósofos pôde
permanecer neutro a este contraditório confronto de diferentes teorias filosóficas.
Maliévitch também não pôde permanecer indiferente à crítica ao triunfo do
353
racionalismo, ainda que sem compactuar com o aporte moral existente na filosofia
religiosa russa do início do século XX.
Em segundo lugar, para artistas como Maliévitch, a arte nunca foi um
mero instrumento técnico de ação sobre a matéria e de construção do mundo
físico. Construtivistas e Produtivistas acreditavam na consolidação de uma cultura
material, literalmente de um culto ao objeto e aos valores tecnológicos agregados
à criação destes novos objetos funcionais. Como se sabe, o Suprematismo de
Maliévitch e o Construtivismo de Tatlin surgiram aos olhos do público na mesma
exposição. O que não pode ser ignorado neste panorama, é que o nascimento
teórico do Construtivismo data de 1921, e 1922 seria, por sua vez, o ano da
expulsão dos intelectuais da URSS. Não por acaso, o montante de textos místico-
filosóficos de Maliévitch é escrito pela mesma época, afirmando um nítido
posicionamento do artista contra o culto ao objeto, à matéria e ao utilitarismo
vigentes.
Nessa polarização de discursos, Maliévitch opõem valores absolutos a
valores substituíveis, sensação imaterial em oposição à fatura material, não-
objetividade em oposição ao culto ao objeto e à objetivação da consciência e da
realidade. Dentro da mesma discussão, para Construtivistas, a arte era um
laboratório de descobertas e os resultados das experiências poderiam virar
projetos aplicáveis ao cotidiano. A arte não-objetiva de Maliévitch faz coincidir as
leis da criação e da criatividade na esfera do espírito humano. Neste processo, a
arte passa a ser concebida enquanto forma particular de experiência, energia
transformadora da matéria e das relações.
Nesse processo de busca do conhecimento, a imagem serve como o
meio para que uma verdade superior seja expressa. Não se trata propriamente da
negação de toda a realidade visual, mas da afirmação da existência de um
realismo místico que vê além da materialidade do mundo e deseja se interligar a
esta realidade mística por meio da liberdade e da criação.
354
Porém, não se trata de estabelecer um sistema hierárquico:
Alma, Espírito, Vida, Religião, Técnica, Arte, Ciência, Intelecto, Concepção de
,
como nos afirma Maliévitch em O Espelho Suprematista (1923). O que ocorre, no
entanto, é a ligação profunda de todas estas leis do universo tendo a criação como
denominador comum.
Nessa paradoxal combinação entre valores individuais e coletivos,
espirituais e materiais, encontra-se uma das mais importantes contribuições da
vanguarda artística russa ao debate social e político soviéticos. Isto porque, a
disputa sobre a realidade é também uma disputa sobre a verdade, e
consequentemente, sobre quem dita e quem se sujeita a essa verdade, a esse
sistema exterior. E se aos mais pragmáticos a arte ainda parece um
acontecimento secundário no panorama político do período, resta afirmar que, não
fosse o enraizamento, a força e a repercussão desse conjunto de ideias, arte e
artistas não teriam sido vistos como ameaças e diretamente combatidos pelos
dirigentes do regime soviético.
355
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