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ANPOF - Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
Diretoria 2017-2018Adriano Correia Silva (UFG)Antocircnio Edmilson Paschoal (UFPR)Suzana de Castro (UFRJ)Agnaldo Portugal (UNB)Noeacuteli Ramme (UERJ)Luiz Felipe Sahd (UFC)Cintia Vieira da Silva (UFOP)Monica Layola Stival (UFSCAR)Jorge Viesenteiner (UFES)Eder Soares Santos (UEL)
Diretoria 2015-2016Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N Brito (UNISINOS)Alberto Ribeiro Gonccedilalves de Barros (USP)Antocircnio Carlos dos Santos (UFS)Andreacute da Silva Porto (UFG)Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)Maria Isabel de Magalhatildees Papaterra Limongi (UPFR)Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)
Produccedilatildeo Samarone Oliveira
Editor da coleccedilatildeo ANPOF XVII EncontroAdriano Correia
Diagramaccedilatildeo e produccedilatildeo graacuteficaMaria Zeacutelia Firmino de Saacute
CapaPhilippe Albuquerque
COLECcedilAtildeO ANPOF XVII ENCONTRO
Comitecirc Cientiacutefico da Coleccedilatildeo Coordenadores de GT da ANPOF
Andreacute Leclerc (UnB)Antocircnio Carlos dos Santos (UFS)Antonio Glaudenir Brasil Maia (UECEUVA)Arthur Araujo (UFES)Carlos Tourinho (UFF)Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP)Ceacutesar Augusto Battisti (UNIOESTE)Christian Hamm (UFSM)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Claacuteudia Drucker (UFSC)Claacuteudio R C Leivas (UFPel)Daniel Lins (UFCUECE)Daniel Omar Perez (UNICAMP)Daniel Pansarelli (UFABC)Dennys Garcia Xavier (UFU)Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Dirk Greimann (UFF)Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE)Faacutetima Regina Rodrigues Eacutevora (UNICAMP)Felipe de Matos Muumlller (PUCRS)Flaacutevia Roberta Benevenuto de Souza (UFAL)Flavio Williges (UFSM)Francisco Valdeacuterio (UEMA)Gisele Amaral (UFRN)Guilherme Castelo Branco (UFRJ)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jairo Dias Carvalho (UFU)Jelson Oliveira (PUCPR)Joatildeo Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)Juvenal Savian Filho (UNIFESP)Leonardo Alves Vieira (UFMG)Liacutevia Mara Guimaratildees (UFMG)Lucas Angioni (UNICAMP)Luciano Carlos Utteiche (UNIOESTE)Luiacutes Ceacutesar Guimaratildees Oliva (USP)Luiz Antonio Alves Eva (UFPR)Luiz Henrique Lopes dos Santos (USP)
Luiz Rohden (UNISINOS)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)Marco Antonio Azevedo (UNISINOS)Marco Aureacutelio Oliveira da Silva (UFBA)Maria Aparecida Montenegro (UFC)Maria Cristina de Taacutevora Sparano (UFPI)Maria Cristina Muumlller (UEL)Mariana de Toledo BarbosaMauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Milton Meira do Nascimento (USP)Nilo Ribeiro Junior (FAJE)Noeli Dutra Rossatto (UFSM)Paulo Ghiraldelli Jr (UFRRJ)Pedro Duarte de Andrade (PUC-Rio)Rafael Haddock-Lobo (PPGF-UFRJ)Ricardo Pereira de Melo (UFMS)Ricardo Tassinari (UNESP)Roberto Hofmeister Pich (PUCRS)Rodrigo Guimaratildees Nunes (PUC-Rio)Samuel Simon (UnB)Silene Torres Marques (UFSCar)Silvio Ricardo Gomes Carneiro (UFABC)Sofia Inecircs Albornoz Stein (UNISINOS)Socircnia Campaner Miguel Ferrari (PUC-SP)Susana de Castro (UFRJ)Thadeu Weber (PUCRS)Vilmar Debona (UFSM)Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE)
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)FICHA CATALOGRAacuteFICA
F487 Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Organizadores Jairo Dias Carvalho [et al] Satildeo Paulo ANPOF 2017 359 p ndash (Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF)
Bibliografia ISBN 978-85-88072-56-5
1 Ciecircncia - Filosofia 2 Filosofia da natureza 3 Tecnologia - Filosofia I Carvalho Jairo Dias (Org) II Correia Adriano (Org) III Simon Samuel (Org) IV Tossato Claudemir Roque (Org) V Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia VI Seacuterie
CDD 100
APRESENTACcedilAtildeO DA COLECcedilAtildeO XVII ENCONTRO NACIONAL DE FILOSOFIA DA ANPOF
O XVII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF ocorrido em Araca-ju na Universidade Federal de Sergipe de 17 a 21 de outubro reuniu parte significativa da comunidade acadecircmica brasileira da aacuterea de filosofia como jaacute eacute tradiccedilatildeo nos encontros promovidos pela ANPOF desde 1984 em Diaman-tinaMG Tivemos mais de 2 mil apresentaccedilotildees e a participaccedilatildeo massiva de docentes e discentes de todas as partes do paiacutes O evento que se amplia a cada ediccedilatildeo refletindo a expansatildeo e a consolidaccedilatildeo nacional da nossa aacuterea eacute oportunidade uacutenica para a divulgaccedilatildeo e a discussatildeo de nossas pesquisas mas tambeacutem para o debate e o intercacircmbio de opiniotildees sobre temas relevantes para nossa comunidade acadecircmica e a consolidaccedilatildeo de redes de pesquisa
Desde 2013 a ANPOF vem publicando parte dos textos apresentados no evento nos Grupos de Trabalho e nas Sessotildees Temaacuteticas visando registrar as atividades do evento dar visibilidade a nossa produccedilatildeo e fomentar o diaacute-logo entre as pesquisas na aacuterea Nesta ediccedilatildeo do evento contamos com pouco mais de seiscentos textos aprovados dentre os efetivamente apresentados e submetidos para avaliaccedilatildeo dos Grupos de Trabalho e das Coordenaccedilotildees dos Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo
Apoacutes o processo de avaliaccedilatildeo dos trabalhos submetidos foi concedido aos autores um prazo de um mecircs para que revisassem seus proacuteprios textos uma vez que os autores respondem pela versatildeo final do seu texto Foi feita uma revisatildeo geral nos livros mas com foco antes de tudo na diagramaccedilatildeo e na padronizaccedilatildeo da apresentaccedilatildeo dos textos de modo que apenas ocasio-nalmente foram corrigidos erros evidentes principalmente de digitaccedilatildeo O processo de ediccedilatildeo dos livros durou o tempo compatiacutevel com a magnitude do material e a estrutura da ANPOF Os 22 volumes resultantes foram agrupados por afinidade temaacutetica tanto quando possiacutevel e sempre com a anuecircncia dos coordenadores de GTs
A ediccedilatildeo deste material natildeo teria sido possiacutevel sem a colaboraccedilatildeo dos Coordenadores de Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo e Coordenadores de GTs aos quais agradecemos profundamente A reuniatildeo dos textos e a soluccedilatildeo dos vaacute-
rios problemas ao longo do processo natildeo seriam possiacuteveis sem a contribuiccedilatildeo competente e inestimaacutevel de Samarone Oliveira da secretaria da ANPOF A comunidade da filosofia no Brasil se reuniraacute novamente em 2018 em Vitoacuteria por ocasiatildeo do XVIII Encontro Nacional de Filosofia Uma boa leitura e ateacute laacute
Diretoria da ANPOF
Tiacutetulos da Coleccedilatildeo ANPOF XVII Encontro
Ceticismo Dialeacutetica e Filosofia Contemporacircnea
Deleuze Desconstruccedilatildeo e Alteridade
Esteacutetica
Eacutetica Poliacutetica Religiatildeo
Fenomenologia e Hermenecircutica
Filosofar e Ensinar a Filosofar
Filosofia Antiga
Filosofia da Linguagem e da Loacutegica
Filosofia da Natureza da Ciecircncia da Tecnologia e da Teacutecnica
Filosofia do Seacuteculo XVII
Filosofia do Seacuteculo XVIII
Filosofia Francesa Contemporacircnea
Filosofia Medieval
Filosofia Poliacutetica Contemporacircnea
Hegel e Schopenhauer
Heidegger Jonas Levinas
Justiccedila e Direito
Kant
Marxismo e Teoria Criacutetica
Nietzsche
Pragmatismo Filosofia da Mente e Filosofia da Neurociecircncia
Psicanaacutelise e Gecircnero
Sumaacuterio
Hobbes e a cogniccedilatildeo de objetos sensiacuteveis 10Joseacute Edelberto Arauacutejo de Oliveira (UNICAMP)
Experimento e matemaacutetica na lei da queda dos corpos de Galileu Galilei 26Maacutercio Correia dos Santos (UNICAMP)
A impossibilidade de operaccedilatildeo intelectual sobre os fantasmas em Durandus de St Pourccedilain In Sent I dist3 q 5 [C] 42
Maria Clara Pereira e Silva (UNICAMP)
A criacutetica de Agostinho agrave cosmologia de Varratildeo na De Civitate Dei 53Evaniel Braacutes dos Santos (UNICAMP)
O conceito de mateacuteria primeira segundo Joatildeo Filopono de Alexandria e sua recepccedilatildeo no seacuteculo XVI em latim 69
Matheus Henrique Gomes Monteiro (UNICAMP)
Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis 84Allan Neves Oliveira Silva (UFMG)
Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6 97Maacutercio Augusto Damin Custoacutedio (UNICAMP)
Extensatildeo material em Filopono 106Faacutetima Regina Rodrigues Eacutevora (UNICAMP)
A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica 121Sueli Sampaio Damin Custoacutedio (ITA)
Criacutetica cartesiana agrave loacutegica dialeacutetica renascentista 134Joseacute Portugal dos Santos Ramos (UEFS)
Criacutetica ao realismo cientiacutefico de um ponto de vista epistemoloacutegico e pragmaacutetico 149Debora Domingas Minikoski (UEL)
Progresso cientiacutefico e especializaccedilatildeo no pensamento de Kuhn 164Elizabeth de Assis Dias (UFPA)
O ldquooportunismordquo e os argumentos contra a padronizaccedilatildeo na ciecircncia 178Bruno Camilo de Oliveira (UFERSAUFC)
Desfamiliarizaccedilatildeo e filosofia da ciecircncia a luz enquanto objeto cotidiano cientiacutefico e ficcional 193
Caroline Elisa Murr (UFPR)
La tecnologiacutea desde la praxiologiacutea ontologiacutea y epistemologiacutea de las praacutecticas tecnoloacutegicas 207
Diego Lawler (Instituto de investigaciones Filosoacuteficas de la Sociedad Argentina de Anaacutelisis FilosoacuteficoCONICET)
Desenvolvimento teacutecnico utopia e seus desdobramentos eacuteticos 224Gabriel Valim Alcoba Ruiz (UFABC)
Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica 230Lilian S Godoy Fonseca (UFVJMUFMG)
Convergecircncia tecnoloacutegica e design 239Jairo Dias Carvalho (UFU)
O design e a natureza dual dos artefatos tecnoloacutegicos 248Gilmar Evandro Szczepanik (UNICENTRO)
Moralizaccedilatildeo ou ressacralizaccedilatildeo da natureza humana Notas para uma aproximaccedilatildeo ao conceito de natureza humana iacutensito na argumentaccedilatildeo criacutetica de J Habermas agraves intervenccedilotildees bioteacutecnicas 263
Mauriacutecio Fernandes (UFPIUNISINOS)
A relaccedilatildeo entre ciecircncia e teacutecnica na Tese Complementar de Gilbert Simondon 276Pedro Mateo Baacuteez Kritski (UFPR)
Controle da natureza e materialismo nos sistemas de valores da ciecircncia moderna 293Liacutegia Lopes Gomes (USP)
Leibniz entre a matemaacutetica e a metafiacutesica 301Patricia Coradim Sita (UEM)
O debate epistemoloacutegico entre Hilary Putnam e Richard Rorty 316Gerson Albuquerque de Araujo Neto (UFPI)
Antirrealismo nomoloacutegico y realismo modal 321Neacutelida Gentile (Universidad de Buenos Aires)
Acerca del estatus ontoloacutegico de las leyes naturales 330Rodolfo Gaeta (Universidad de Buenos Aires)
Esperar o inesperado uma epistemologia em movimento 339Ginaldo Gonccedilalves Farias (UFBA) Eduardo Chagas Oliveira (UEFSUFBA)
O Dilema Central eacute suficiente para refutar a visatildeo disposicionalista das leis da natureza 356Renato Cesar Cani (UFPR)
Fenocircmenos irreversiacuteveis e a filosofia evolucionista de Charles S Peirce 370Max Rogeacuterio Vicentini (UEM)
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Hobbes e a cogniccedilatildeo de objetos sensiacuteveis
Joseacute Edelberto Arauacutejo de Oliveira(UNICAMP)
No conjunto das obras de Thomas Hobbes o tema da cogniccedilatildeo estaacute elaborado no interior de uma filosofia natural matematizada Isto ocorre porque para Thomas Hobbes haacute uma perspectiva que dentro do mesmo cenaacuterio ontoloacutegico ajusta as representaccedilotildees e os variados movimentos dos corpos externos ao homem
Por natildeo desconsiderar a questatildeo que abrange as representaccedilotildees e os objetos do mundo como situados dentro do mesmo acircmbito neste trabalho o processo cognitivo da fiacutesica hobbesiana eacute investigado desde a supressatildeo da teoria das espeacutecies inteligiacuteveis ocorrido entre a exposiccedilatildeo do movimento da luz em A short tract on first principles1 e o Leviatatilde Este procedimento permite examinar a condiccedilatildeo de admissibilidade de uma leitura para o abandono da noccedilatildeo de espeacutecies inteligiacuteveis entre as duas obras citadas a manutenccedilatildeo de uma vertente do realismo sem contradi-ccedilatildeo com o restante do sistema
Como pensar eacute um estado mental intencional a direccedilatildeo que esta intencionalidade toma (em um primeiro momento) diferencia o campo das interpretaccedilotildees representacionalistas do campo das interpretaccedilotildees realistas Quando se admite que os estados mentais intencionais dirigem--se de imediato para o mundo extramental tendo nas coisas do mundo os seus objetos o realista2 eacute o cenaacuterio No realismo aqui admitido tambeacutem
1 Em 1878 o editor Ferdinand Toumlnnies descobre no British Museum um manuscrito entre os documentos da casa dos Cavendish (Hobbes permaneceu sob a proteccedilatildeo financeira e poliacutetica destes nobres por mais de setenta anos) Intitula-o e o faz publicar como A short tract on first principle Toumlnnies fez tambeacutem a descoberta de parte de Elements of Law Natural and Politic
2 Para Perler ldquoAssim quando estou pensando em um amigo o meu pensamento eacute direcionado para um ser humano de carne e osso quando estou lembrando a casa do meu tempo de infacircncia minha lembranccedila eacute dirigida para a casa feita de tijolos e telhas Para lembrar a casa posso precisar de alguns itens cognitivos (conceitos imagens etc) que me permitem visualizar a casa e para tornaacute-la presente na minha mente Contudo tais itens satildeo nada mais do que meios especiais que eu uso dentro de um processo cognitivo []rdquo PERLER Essentialism and Direct Realism pp 111-112
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 10-25 2017
Hobbes e a cogniccedilatildeo de objetos sensiacuteveis
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designado como realismo moderado cada corpo em movimento encerra uma natureza ontologicamente independente daquela do proacuteprio conhe-cimento que se tem dele algo externo ao pensamento diverso e mutaacute-vel Assim estende-se por uma gnosiologia (que se ocupa com o modo de conhecer) sem dano para a sua dimensatildeo metafiacutesica (voltada para as questotildees sobre o modo de ser do real)3
Quando Hobbes expotildee a sua classificaccedilatildeo para pensamentos4 sem maiores complicaccedilotildees o tipo de pensamento isolado ou em cadeia natildeo precariza a maacutexima perante tudo a ser tratado qualquer coisa dita seraacute expressa sempre sobre a representaccedilatildeo e natildeo dos objetos em si Por este modo de considerar o dado sensorial o homem somente conhece a apa-recircncia das coisas5
Embora as dimensotildees internas e externas da ciecircncia de Hobbes ad-venham do resultado de um processo fiacutesico que unifica homem e mun-do na acepccedilatildeo de uma operaccedilatildeo da mente capaz de aparentar um objeto qualquer nota-se que aquilo que eacute designado como a representaccedilatildeo do mundo organiza-se (i) na oacutetica de quem raciocina6 e (ii) sempre estaacute em contraste com o proacuteprio mundo identificado nos objetos
Na oacutetica de quem raciocina ainda que os sentidos humanos sejam afetados por aquilo que estaacute fora dos indiviacuteduos Hobbes natildeo se deteacutem na exterioridade dos objetos em si faz ciecircncia com as aparecircncias7 sai em busca do ldquo[] conhecimento necessaacuterio para um filoacutesofo isto eacute para
3 Para Landim Filho ldquoObviamente o realismo natildeo nega que diversas operaccedilotildees cerebrais eou mentais sejam necessaacuterias para que algo possa ser apreendido ou percebido Mas natildeo eacute neces-saacuterio que essas operaccedilotildees intermediaacuterias sejam conhecidas como objetos para que objetos ex-tramentais possam ser apreendidos Sob este aspecto a apreensatildeo de objetos seria uma relaccedilatildeo diaacutedica cujos termos satildeo [i] as operaccedilotildees do cognoscente e [ii] a coisa mesma apreendida ou percebida como objetordquo LANDIM FILHO Tomaacutes de Aquino realista direto p 14
4 cf Leviatatilde I 1 sect 1 1 As referecircncias ao Leviatatilde obedeceratildeo ao modelo ldquoobra parte capiacutetulo paraacute-grafo e paacuteginardquo e dizem respeito agrave ediccedilatildeo Molesworth Quando das citaccedilotildees dsa obras de Hobbes todos os grifos satildeo do proacuteprio autor excetuando-se os casos especificamente detalhados
5 Quando descreve o seu sistema de modo anaacutelogo Hobbes descreve como compreender um re-loacutegio ou um pequeno autocircmato cf De cive Prefaacutecio do autor ao leitor sect 3 32 Para o De cive cita-se ldquoobra parte capiacutetulo paraacutegrafo e paacuteginardquo Todas as referecircncias dizem respeito agrave ediccedilatildeo de Molesworth
6 Quando considerados os corpos em movimento no interior do homem7 Para Hobbes a aparecircncia e a representaccedilatildeo satildeo idecircnticas ao denotarem pensamentos que sur-
gem isolados ou em seacuterie e possuem sua causa no movimento corpuscular externo ao corpo humano cf Leviatatilde I 1 sect 1-4 1-3
Joseacute Edelberto Arauacutejo de Oliveira
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aquele que pretende raciocinar8 [reasoning9]rdquo Opta por atribuir aos con-teuacutedos mentais uma anterioridade agraves palavras e relaciona toda a sua dou-trina de mateacuteria e movimento com as operaccedilotildees da mente (operations of the mind)10 O exame do terceiro capiacutetulo do Leviatatilde por exemplo confe-re ao discurso mental (mental discourse) uma precedecircncia em relaccedilatildeo ao discurso em palavras (discourse in words) assim o equiacutevoco minus ou mesmo a contradiccedilatildeo minus sugere a inadequaccedilatildeo um abuso de linguagem (they [wor-ds] are abused) da escolha de certas palavras para exprimir algo inicial-mente pensado
Como apresentado no Leviatatilde e nos Elementos da lei natural e poliacuteti-ca haacute o estabelecimento de um roteiro para a gecircnese deste conhecimento necessaacuterio para um filoacutesofo a saber (i) os inuacutemeros movimentos da mateacute-ria de um corpo externo pressionam de forma diversa os oacutergatildeos sensoriais (ii) o termo ldquosentidordquo11 denomina estes primeiros contatos (iii) partes or-gacircnicas internas conduzem tais movimentos na direccedilatildeo do ceacuterebro e do coraccedilatildeo (iv) ocorre uma contrapressatildeo originada na resistecircncia do ceacuterebro e do coraccedilatildeo (v) esta reaccedilatildeo em sentido contraacuterio envolve a soma entre a pressatildeo provocada pelo objeto e a contrapressatildeo oriunda da resistecircncia do ceacuterebro e do coraccedilatildeo12 (vi) pelo eacutetimo ldquoexperiecircnciardquo envolve-se o resultado da operaccedilatildeo de uniatildeo dos efeitos da impressatildeo dos objetos o que permi-te assegurar a interligaccedilatildeo daquilo que os sentidos humanos conhecem da
8 ldquoPor RACIOCIacuteNIO entendo computaccedilatildeordquo De corpore I 1 3 Elements of Philosophy the First Sec-tion Concerning Body eacute a traduccedilatildeo inglesa do texto latino Elementorum Philosophiae Sectio Pri-ma De Corpore supervisionada pelo proacuteprio Hobbes Todas as referecircncias a esta obra obedece-ratildeo ao modelo ldquoobra parte capiacutetulo e paacuteginardquo e dizem tambeacutem respeito agrave ediccedilatildeo de Molesworth
9 Leviatatilde I 9 sect 1 7110 Investigar a interioridade dos indiviacuteduos minus no plano da noccedilatildeo de operaccedilotildees da mente minus e a ex-
terioridade dos objetos em si eacute tambeacutem compreender para ser fiel agraves palavras hobbesianas as soluccedilotildees dadas para o que procede de um determinismo cinemaacutetico corpuscular do mundo fiacute-sico em concomitacircncia com as abstraccedilotildees das ldquoconsequecircncias dos acidentes dos corpos poliacuteticosrdquo Leviatatilde I 9 sect 1-4 71-72
11 ldquoO sentido eacute o movimento provocado nos oacutergatildeos e partes inferiores do corpo do homem pela accedilatildeo das coisas que vemos ouvimos etc e a imaginaccedilatildeo eacute apenas o resiacuteduo do mesmo movimen-to que permanece depois do sentido conforme jaacute se disse no primeiro e segundo capiacutetulos [do Leviatatilde]rdquo Leviatatilde I 6 sect 1-2 38-39
12 O termo ldquoresistecircnciardquo eacute empregado por Hobbes na caracterizaccedilatildeo do esforccedilo da representaccedilatildeo ldquopara forardquo (ldquooutwardrdquo) Aleacutem de se referir a uma mudanccedila de itineraacuterio dos movimentos que penetram no corpo humano ele o descreve como algo novo um misto da pressatildeo originada pelo objeto com o interior do homem cf Leviatatilde I 1 sect 4 1
Hobbes e a cogniccedilatildeo de objetos sensiacuteveis
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aparecircncia (ou representaccedilatildeo) das coisas e (vii) o entrelaccedilamento mental13 destas aparecircncias das coisas ndash quer presentes remetam ao passado ou pre-sumidas no futuro ndash define-se como a computaccedilatildeo de interioridades14 sus-cetiacuteveis de demonstraccedilatildeo15 ou seja o proacuteprio conhecimento adquirido pelo verdadeiro raciociacutenio16 Este roteiro reserva para o conhecimento adquiri-do a condiccedilatildeo de atributo17 das relaccedilotildees desencadeadas quando da pressatildeo dos movimentos externos sobre os oacutergatildeos sensoriais
Diferente do vieacutes acima exposto designado como a representaccedilatildeo do mundo organizada a partir da oacutetica de quem raciocina a reflexatildeo so-bre o contraste entre as representaccedilotildees e os objetos do mundo desvala em duas possibilidades epistecircmicas ou o contraste ocorre por inferecircncia ou por algum meio os objetos do mundo minus os corpos em movimento ndash e as representaccedilotildees assentam-se no mesmo campo Sobre o contraste por inferecircncia a primeira possibilidade o proacuteprio Hobbes a rejeita No de-bate sobre a questatildeo da substacircncia imaterial18 conservando-se as fontes de inteligibilidade (a saber induccedilatildeo deduccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo) o autor afasta-se daquilo que exige um eu substancial (nos moldes cartesianos19) como soluccedilatildeo Tambeacutem assegura que ocorre em erro ndash o erro das essecircn-cias separadas (separated essences) ndash aquele que admite a imaterialidade como causa de qualquer pensamento ou qualquer ato voluntaacuterio20
A segunda possibilidade ndash o contraste entre as representaccedilotildees e os objetos do mundo situados no interior de um mesmo campo ndash instala-se no cerne do questionamento sobre a maneira de caracterizar o viacutenculo
13 cf De corpore I 2 17 e I 6 65 14 Interioridade na acepccedilatildeo do percurso interno dos movimentos que as partes orgacircnicas do corpo
humano conduzem em direccedilatildeo ao ceacuterebro e coraccedilatildeo em oposiccedilatildeo agrave exterioridade dos movimen-tos dos objetos localizados fora do corpo do homem
15 cf Leviatatilde I 4 sect 3 19 16 cf De corpore I 6 6517 O termo ldquoatributordquo designa um sinal distintivo de uma dada dependecircncia cf Leviatatilde I 3 sect 8 15 18 Ver ROCHA Hobbes contra Descartes a questatildeo da substacircncia imaterial 199519 No texto da Segunda Objeccedilatildeo tratando da natureza do espiacuterito humano Hobbes identifica uma
peculiaridade do pensamento de Descartes ldquoPara M Descartes satildeo o mesmo a coisa inteligente e a intelecccedilatildeo que eacute seu ato ao menos diz que a coisa que entende e o entendimento que eacute uma potecircncia ou faculdade de uma coisa inteligente satildeo o mesmo E todavia todos os filoacutesofos distin-guem o sujeito de suas faculdades e atos isto eacute de suas propriedades ou essecircncias porque uma coisa eacute a coisa mesma que eacute e outra coisa eacute o que eacute sua essecircncia Pode pois suceder que uma coisa que pensa seja o sujeito do espiacuterito da razatildeo ou do entendimento e portanto seja algo corporal o qual se nega aqui sem prova alguma E isto eacute todavia o fundamento da conclusatildeo que parece querer estabelecer M Descartesrdquo AT IX-1 p 134
20 cf Leviatatilde IV 46 sect 19 675
Joseacute Edelberto Arauacutejo de Oliveira
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entre os corpos em movimento no exterior do homem e as represen-taccedilotildees destes O abandono da noccedilatildeo de espeacutecies inteligiacuteveis21 feita por Hobbes indica que o caminho trilhado concentra-se entatildeo na indagaccedilatildeo sobre como as representaccedilotildees dos universais ndash enquanto universais ndash e dos singulares se determinam22 Quando esclarece a forma das relaccedilotildees entre os universais e os singulares a sua visatildeo coaduna-se com a concep-ccedilatildeo catalogada como realismo moderado23 ldquo[] as coisas universais estatildeo contidas na natureza das coisas singulares []rdquo24 Entatildeo aquilo que estaacute contido na natureza das coisas singulares seria um item da mobiacutelia dispo-niacutevel para o caacutelculo do raciociacutenio algo denotado a partir daquilo que ele designa como concreto e que por sua vez na condiccedilatildeo de propriedade da topologia dos movimentos internos do corpo humano eacute objeto do caacutelculo mental na singularizaccedilatildeo destas mesmas coisas individualizadas
Se pelo lado da oacutetica de quem raciocina sem o recurso da noccedilatildeo de espeacutecies inteligiacuteveis apoacutes a sensibilizaccedilatildeo dada pelos movimentos da ma-teacuteria de um corpo externo sobre os oacutergatildeos sensoriais nada parece mudar (uma vez que se desencadeia uma computaccedilatildeo das representaccedilotildees passiacutevel de demonstraccedilatildeo) pelo lado que reflete sobre o discerniacutevel entre a repre-sentaccedilatildeo dos corpos externos em movimento e o proacuteprio mundo identifica-do nos corpos externos ao homem as noacutedoas comprometedoras da clareza se multiplicam
Em linhas gerais o desvio destes problemas de clareza pode ser dado simplesmente desconsiderando a questatildeo que abrange as repre-sentaccedilotildees e os objetos do mundo como situados dentro do mesmo acircm-bito Assim ao abandonar a noccedilatildeo de espeacutecies inteligiacuteveis livre das peias ontoloacutegicas25 a filosofia26 de Hobbes ndash unicamente ndash descreve um circuito que parte de uma fiacutesica dos movimentos corpoacutereos e avanccedila ateacute o de-
21 Sobre os elementos gerais da doutrina das espeacutecies inteligiacuteveis ver SPRUIT Species intelligibi-lis from perception to knowledge 1995
22 Aqui incluso o estatuto da existecircncia dos entes matemaacuteticos23 cf LANDIM FILHO A questatildeo dos universais segundo a teoria tomista da abstraccedilatildeo 200824 De corpore I 6 6825 Embora haja quem invoque para Hobbes o desenvolvimento de uma ontologia alicerccedilada na
mateacuteria e no movimento o discurso sobre a individuaccedilatildeo e a adequaccedilatildeo do mesmo ao que pode ser concebido de um corpo eacute breve como ocorre na segunda parte do De corpore Pelo tex-to corpo e movimento compotildee a reduccedilatildeo disponiacutevel da exterioridade dos objetos Sobre uma ontologia hobbesiana completamente definida como mateacuteria em movimento ver BERNSTEIN Hobbes and the young Leibniz 1980
26 Para Hobbes a filosofia eacute o conhecimento adquirido por raciociacutenio cf Leviatatilde IV 46 sect 1 664
Hobbes e a cogniccedilatildeo de objetos sensiacuteveis
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senvolvimento de uma ciecircncia poliacutetica voltada para os movimentos da relaccedilatildeo entre suacuteditos e soberano Desta forma na condiccedilatildeo de conheci-mento a filosofia eacute compreendida como um composto adquirido pela junccedilatildeo mental da possiacutevel natureza das coisas com o dado sensiacutevel que eacute expresso27 simbolicamente no discurso em palavras28 uma ciecircncia de for-ma pura29 apta a operar tanto com a representaccedilatildeo dos objetos extensos como com aquilo que desta pode ser abstraiacutedo30
Um resgate do entendimento de Hobbes para os processos da cogni-ccedilatildeo deixa claro que a filosofia eacute a proacutepria ciecircncia Na medida em que a filo-sofia natural hobbesiana tambeacutem opera com figuras planas geomeacutetricas31 a aceitaccedilatildeo de um tipo de objeto aleacutem do mundo corpoacutereo implica na ad-missatildeo de uma base mais ampla para a sua ciecircncia32 Como registrou no Leviatatilde I 5 sect22 37 por exemplo as relaccedilotildees com a igualdade das propor-ccedilotildees geomeacutetricas podem inseri-se naquilo que denominou como sinal cer-to e infaliacutevel da ciecircncia ndash entendendo-se o termo hobbesiano ldquocertordquo como a aspiraccedilatildeo daquele que demonstra a verdade cientiacutefica para algueacutem Esta variante desenvolvida sem os fundamentos da cinemaacutetica corpuscular33 da sua fiacutesica indica elementos metafiacutesicos no interior do sistema
Neste conjunto de circunstacircncias a supressatildeo das espeacutecies inteli-giacuteveis e a noccedilatildeo de sentido satildeo consideradas uma vez que o sistema do autor permite apenas lidar com o movimento corpuscular nos moldes de uma reduccedilatildeo ao ontologicamente disponiacutevel na exterioridade dos obje-tos ou seja uma ontologia materialista do movimento Sem a necessaacuteria articulaccedilatildeo com os demais elos da interioridade do corpo humano (as noccedilotildees de sentido e imaginaccedilatildeo por exemplo) o recurso da reduccedilatildeo ao
27 A similaridade entre os processos mentais e o raciociacutenio exposto pela linguagem natildeo eacute uma simples relaccedilatildeo de traduccedilatildeo entre a mente que computa imagens e os nomes inventados para marcar pensamentos Sobre este ponto ver HEINRICHS Language and Mind in Hobbes 1973
28 cf Leviatatilde I 329 cf De corpore I 6 6830 Hobbes confronta o termo ldquoabstratordquo ao termo ldquoconcretordquo embora entenda a natureza das coi-
sas abstratas como realizaacuteveis nas coisas concretas cf De corpore I 3 3131 Sobre a Geometria desenvolvida por Hobbes ver JESSEPH The Decline and Fall of Hobbesian
Geometry 199932 Hobbes reserva agrave Geometria o atributo de matildee de toda a ciecircncia natural (natural science) e diz
ser Platatildeo o melhor filoacutesofo grego porque justamente proibiu em sua escola aqueles que natildeo fossem de algum modo tambeacutem geocircmetras cf Leviatatilde IV 46 sect 11 668
33 Hobbes estabelece a mudanccedila corpoacuterea de lugar como a uacutenica certeza sobre aquilo que eacute exte-rior ao corpo do homem cf Leviatatilde IV 46 sect 11 e 15 668-672
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ontologicamente disponiacutevel parece conciliar diversos pontos proacuteximos ou proacuteprios de uma teoria metafiacutesica do ser natildeo desdobrada na forma de uma ontologia hobbesiana propriamente dita
Assim o ponto de partida eacute a aceitaccedilatildeo da movimentaccedilatildeo corpoacuterea como algo constitutivo da natureza proacutepria das coisas Claro que para um pensador do mecanicismo34 trata-se de uma metafiacutesica peculiar Ocorre uma rejeiccedilatildeo agrave falta de distinccedilatildeo entre o que compotildee a natureza das coi-sas e as partes das proacuteprias coisas no campo do roteiro que estabelece o conhecimento filosoacutefico porque aparentemente mescla-se o dado pura-mente sensorial com o dado gerado pelo raciociacutenio
Para o autor fazer inferecircncias loacutegicas de determinadas condiccedilotildees que levam a outras satildeo aproximaccedilotildees do raciociacutenio pois comeccedilam com as re-presentaccedilotildees disponiacuteveis e se constituem em verdadeiros pontos de parti-da daquilo que os caacutelculos mentais justificam Tal computaccedilatildeo requer um meacutetodo35 investigativo jaacute que nem todo caacutelculo mental eacute eleito como vaacutelido O meacutetodo36 (method) hobbesiano da ciecircncia natural (natural science)37 eacute caracterizado como (i) a computaccedilatildeo (computation) de interioridades pro-
34 Por mecanicismo entende-se a rejeiccedilatildeo da reflexatildeo relacionada com as causas da investigaccedilatildeo aristoteacutelica e a sua reduccedilatildeo para a causa eficiente Aristoacuteteles advoga que o conhecimento eacute possiacutevel na medida em que as diversas maneiras de discorrer sobre a causa de cada coisa eacute distinguida e as seguintes indagaccedilotildees metodologicamente respondidas com qual material uma determinada coisa eacute feita como que eacute feita qual a ideia da coisa e qual o intento para tal coisa ser feita cf ARISTOacuteTELES Metafiacutesica A 983b6-983b18
35 Para Hobbes ldquoO MEacuteTODO portanto no estudo da filosofia eacute o caminho mais curto para desco-brir os efeitos por suas causas conhecidas ou das causas para os efeitos conhecidosrdquo De corpore I 6 65
36 Polemista Hobbes discutiu a questatildeo do meacutetodo com matemaacuteticos do seu tempo No mesmo ano da publicaccedilatildeo do De corpore (1655) John Wallis ndash professor de Geometria de Oxford ndash imprime Elenchus Geometriae Hobbianae tecendo criacuteticas sobre os erros teacutecnicos da obra hobbesiana na soluccedilatildeo dos problemas geomeacutetricos Em resposta no ano seguinte Hobbes divulga Six Lessons como um apecircndice da versatildeo em liacutengua inglesa do mesmo De corpore Logo na Dedicatoacuteria Ho-bbes acusa Wallis de confundir o estudo dos siacutembolos o estudo da geometria e o pensamento simboacutelico escrito Na base dos argumentos do autor estaacute a noccedilatildeo de meacutetodo arguida no De corpore algo que Wallis parecia natildeo ter compreendido e que permitia solucionar controveacutersias como a quadratura do ciacuterculo ou a mediccedilatildeo das linhas curvas por exemplo Pelo que pode ser interpretado da argumentaccedilatildeo hobbesiana sobre a anaacutelise das figuras planas e suas relaccedilotildees com a igualdade das proporccedilotildees durante este debate deve-se separar o uacutetil para descobrir o que estaacute na natureza das coisas daquilo que se configura apenas como mais um evento de uma seacuterie causal Como no De corpore I 6 66 haacute a diferenciaccedilatildeo entre as partes da proacutepria coisa e as partes da natureza das coi-sas o conhecimento revela-se como originado tanto no raciociacutenio como no dado sensorial Sobre a querela com Wallis ver JESSEPH Squaring the Circle the war between Hobbes and Wallis 1999
37 cf Leviatatilde IV 46 sect 11 668
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vidas de demonstraccedilatildeo e (ii) a garantia da adequaccedilatildeo daquilo que se prevecirc como resultado futuro derivado de uma cadeia de eventos naturais ldquoAtri-buo a primeira causa das conclusotildees absurdas agrave falta de meacutetodo pelo fato de natildeo comeccedilarem seu raciociacutenio por definiccedilotildees []rdquo38
Nesta medida toda investigaccedilatildeo requerida pelo raciociacutenio depara-se com uma ldquovariedade de questotildeesrdquo39 Estas muacuteltiplas questotildees que envol-vem a ciecircncia acabam por determinar o tipo de investigaccedilatildeo pela analiacutetica busca-se o conhecimento de ldquoforma pura e indefinidardquo40 pela sinteacutetica in-quire-se sobre ldquoas causas de uma aparecircncia determinadardquo41 para usar uma expressatildeo do autor42 Definido o meacutetodo como analiacutetico ou como sinteacutetico tambeacutem dito como compositivo ou como resolutivo Hobbes esclarece
Nesse meio tempo eacute claro que ao buscar as causas haacute necessidade em parte do meacutetodo analiacutetico e em parte do sinteacutetico Do analiacutetico para conceber como as circunstacircncias conduzem individualmente agrave produccedilatildeo de efeitos e do sinteacutetico para reunir e compor o que elas podem efetuar isoladamente por si mesmas43
Atraveacutes deste prisma o meacutetodo analiacutetico e o meacutetodo sinteacutetico de Hobbes satildeo compreendidos como um processo de computaccedilatildeo de pares inversos ou seja um tipo de operaccedilatildeo da mente que adiciona e subtrai representaccedilotildees44 um evento de uma seacuterie causal45 e acaba mesclando o conhecimento originado no raciociacutenio com o originado pelo dado sen-sorial ldquoPortanto por aquelas coisas que satildeo mais conhecidas para noacutes devemos entender coisas que notamos por nossos sentidos e por mais conhecidas para a natureza aquelas de que adquirimos conhecimento mediante a razatildeo []rdquo46
38 Leviatatilde I 5 sect 8 3339 cf De corpore I 6 6840 De corpore I 6 6841 De corpore I 6 6842 No Leviatatilde IV 46 sect11668 e I 9 sect371 Hobbes separa o registro dos fatos (naturais ou da
vontade dos homens) das demonstraccedilotildees cientiacuteficas propriamente ditas (ou como grafado pelo autor as demonstraccedilotildees das consequecircncias de uma afirmaccedilatildeo para outra)
43 De corpore I 6 7744 cf SACKSTER Hobbes geometrical objects Philosophy of science 198145 Hobbes faz a diferenciaccedilatildeo entre as partes da proacutepria coisa e as partes da natureza das coisas
cf De corpore I 6 6646 De corpore I 6 66
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Embora especifique o meacutetodo analiacutetico como o adequado para a bus-ca das causas que satildeo partes da natureza das coisas (figura quantidade movimento etc) e ndash no curso do segundo e do sexto capiacutetulo do De cor-pore ndash esclareccedila ser este o mais apropriado para as ldquocoisas universaisrdquo a sua teoria dos nomes reflete uma tentativa de superaccedilatildeo dos embaraccedilos no estabelecimento dos limites entre o meacutetodo sinteacutetico e o meacutetodo analiacutetico Dito de outro modo o tema dos universais acomoda a resoluccedilatildeo da escolha do meacutetodo que uma vez confusa compromete a obtenccedilatildeo hobbesiana de conhecimento pelo raciociacutenio daiacute a apresentaccedilatildeo de uma teoria dos nomes
Conhecer por raciociacutenio eacute distinto de conhecer sensorialmente e di-ferente da memoacuteria mitigada Semelhante conhecimento eacute compreendido como alguma coisa que tem preacutestimo algo proveitoso capaz de produzir um determinado resultado que provoque as melhorias que a vida huma-na demanda47 Assim a noccedilatildeo de bem-estar atrelada ao conhecimento que se deseja adquirir enseja o entendimento de alguma coisa observaacutevel numa sucessatildeo de causas e parte de uma base jaacute sabida
Independente das dificuldades para a escolha do meacutetodo sinteacutetico ou meacutetodo analiacutetico de investigaccedilatildeo a teoria dos nomes do segundo capiacute-tulo do De corpore tambeacutem versa sobre o princiacutepio racional que faz com que algo seja uma coisa corpoacuterea em movimento ndash para usar a terminolo-gia de Hobbes ndash ou o principium individui dos entes singulares O primeiro ponto da argumentaccedilatildeo caracteriza os nomes como signos e os destina a registrar as concepccedilotildees ldquo[] dado que os nomes ordenados na fala [] satildeo signos de nossas concepccedilotildees eacute claro que natildeo satildeo signos das proacuteprias coisas []rdquo48 Haacute uma realidade determinada nos nomes em si desde que confinada ao acircmbito mental e como tal o seu caraacuteter eacute de mediar o per-cebido sensorialmente e o expresso49 como desigual ou diverso Assim aquilo que torna um corpo singular natildeo eacute uma essecircncia material nem um acidente corpoacutereo trata-se de principium como possibilidade de comeccedilo no propoacutesito de um fundamento loacutegico natildeo obrigatoriamente fiacutesico
A diferenccedila individual eacute conceitualmente composta de uma natu-reza especifica oriunda das operaccedilotildees mentais simples como medir e
47 cf Leviatatilde IV 46 sect148 De corpore I 2 1749 No sentido do discurso em palavras de Hobbes ldquoA diferenccedila portanto entre marcas e signos eacute
que fazemos as primeiras para nosso proacuteprio uso e as segundas para o uso de outrosrdquo De corpo-re I 2 14
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contar50 o que implica em considerar os (eventuais) lapsos da continui-dade (no caso um dado uma representaccedilatildeo que natildeo esteja disponiacutevel nos elementos que compotildeem os corpos) como preenchidos na unidade daqui-lo que harmoniza no discurso mental as coisas externas algo que daacute coe-recircncia sem essecircncia ou existecircncia como distinto nas criaturas nos corpos
Para Hobbes a diferenccedila individual se estabelece na contingecircncia das aparecircncias como uma coleccedilatildeo de acidentes das operaccedilotildees da mente Embora evidente no texto esta diferenciaccedilatildeo eacute por vezes atribuiacuteda ao conjecturado atomismo51 hobbesiano (quando em pauta estaacute a preser-vaccedilatildeo da identidade dos corpos ao longo do tempo52) ou deslocada para a discussatildeo sobre a distinccedilatildeo que a linguagem propicia ndash ao expor as contingecircncias das aparecircncias como uma coleccedilatildeo de acidentes das ope-raccedilotildees mentais Mesmo acatando a temporalidade hobbesiana como uma caracteriacutestica inerente dos corpos eacute contestaacutevel intuiacute-la sem um fundamento sensiacutevel
Como um corpo deixa um fantasma [representaccedilatildeo] da sua magni-tude na mente assim tambeacutem deixa uma ilusatildeo [representaccedilatildeo] do seu movimento ou seja uma ideia de que o corpo passa fora de um espaccedilo a caminho de outro pela sucessatildeo contiacutenua E a esta ideia ou ilusatildeo (sem me afastar muito da opiniatildeo comum ou da definiccedilatildeo de Aristoacuteteles) eu designo Tempo53
Ademais a distinccedilatildeo individual pela linguagem mesmo que natildeo suficiente ocupa-se com algo diametralmente diverso da tradiccedilatildeo dos co-
50 Cf De corpore I 1 351 Grant e Thiel identificam Hobbes com a revitalizaccedilatildeo do atomismo Grant atribui o seu ressurgi-
mento ao trabalho de vaacuterios pensadores renascentistas e a sua modernizaccedilatildeo agrave contribuiccedilatildeo de Pierre Gassendi (cf GRANT Geometry and Politics Mathematics in the Thought of Thomas Hobbes 1990) Aleacutem do proacuteprio Hobbes Thiel relaciona John Locke e Robert Boyle como atomistas e des-qualifica a questatildeo da individuaccedilatildeo como um genuiacuteno problema e transfere o debate metafiacutesico da identidade do ser para uma epistemologia de criteacuterios necessaacuterios para a formulaccedilatildeo de juiacutezos sobre a identidade do ser em diferentes pontos do tempo (ver THIEL Individuation 1998)
52 O discurso da mente na diferenciaccedilatildeo individual se estabelece na contingecircncia das aparecircncias mesmo quando uma dada propriedade de um corpo natildeo mais exista (um evento passado) ou quando eacute apenas esperada Hobbes entende o tempo como mais uma representaccedilatildeo e nesta medida ancora-se no movimento corpuscular externo
53 De corpore II 7 94
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mentaacuterios54 que relaciona Hobbes agrave eloquente ars rethorica na resoluccedilatildeo dos problemas humanos com as questotildees da filosofia da natureza
A admissatildeo da noccedilatildeo de ldquoespeacutecies inteligiacuteveisrdquo no relativo a uma fi-losofia natural ndash como descrito na Seccedilatildeo 2 de A short tract on first principle ndash eacute o postulado de maior descompasso com o conjunto da obra hobbesia-na ldquoTodo Agente que trabalha sobre um Paciente distante toca-o via um Medium ou por algo emitido por si mesmo [pelo agente] Que tal coisa que emite seja chamada Speciesrdquo55 Pela descriccedilatildeo haacute um processo dual que en-volve um objeto externo ao corpo do homem ndash designado como agente ndash e o aparato sensorial humano ndash nomeado paciente Natildeo haacute problema em en-tender o toque como a sensibilizaccedilatildeo dos oacutergatildeos internos por pressatildeo dos corpos externos ao homem poreacutem corpos externos expelindo de si aquilo que modifica os sentidos corporais eacute repreensiacutevel quando em foco estaacute a mecacircnica de Hobbes donde o corpo movimenta outro corpo56
Eacute bem verdade que mesmo com a afetaccedilatildeo dos sentidos humanos implicando numa sensibilizaccedilatildeo daquilo que estaacute no interior dos indiviacute-duos a obtenccedilatildeo do conhecimento em Hobbes continua sem se deter ne-cessariamente na exterioridade dos objetos O problema passa a ser sus-tentar a caracterizaccedilatildeo da ciecircncia como feita com as aparecircncias das coisas externas que circulam no interior do corpo do homem dotada de opera-ccedilotildees da mente procedentes de um determinismo corpuscular A ciecircncia do autor deixaria de perfazer um processo fiacutesico que unifica homem e mundo atraveacutes de uma produccedilatildeo mental capaz de representar um objeto qualquer (em oposiccedilatildeo ao proacuteprio mundo identificado nos objetos)
54 Embora em Os elementos da lei natural e poliacutetica (1640) e principalmente no De cive (1642) sejam encontrados os menosprezos agraves ars rethorica Butler e Skinner discutem a possibilidade de Hobbes com o Leviatatilde reconsiderar esta posiccedilatildeo e retomar o pressuposto humanista da necessidade das verdades racionais (no caso os meacutetodos da ciecircncia) precisarem da ldquoforccedila mo-triz da eloquecircnciardquo (cf BUTLER Image Rhetoric and Politics in the early Thomas Hobbes 2006 SKINNER Razatildeo e retoacuterica na filosofia de Hobbes 1999) Por sua vez Weinberger defende que a doutrina do meacutetodo hobbesiano consiste em uma original nova retoacuterica (cf WEINBERGER Hobbesacutes Doctrine of Method 1975)
55 A short tract on first principles Seccedilatildeo 2 Princiacutepio 156 Outro elemento desta Seccedilatildeo 2 que ocorre em oposiccedilatildeo agrave estrutura cinemaacutetica corpuscular ho-
bbesiana eacute o reconhecimento das espeacutecies inteligiacuteveis como substanciais ldquo[] essas species de-vem ser substacircnciasrdquo (A short tract on first principles Seccedilatildeo 2 Conclusatildeo 10) O autor exclui a possibilidade de serem acidentes ndash quando diferencia lux de lumen ndash ateacute porque os acidentes natildeo se deslocam espacialmente Assim eacute possiacutevel deduzir que haacute um sujeito que aglutina todos os conhecimentos possiacuteveis e um objeto capaz de iluminar todas as realidades
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O exame da admissatildeo da teoria das espeacutecies inteligiacuteveis no siste-ma hobbesiano carrega um elemento conceitual que insere a esfera do princiacutepio da individuaccedilatildeo no debate Na Seccedilatildeo 3 de A short tract on first principle Princiacutepio 2 o termo ldquofantasmardquo57 eacute apresentado nos moldes da imagem mitigada encontrada no segundo capiacutetulo do Leviatatilde ou seja o fenocircmeno da conservaccedilatildeo da imagem de um objeto ausente que sofre um processo de perda de nitidez com a passagem do tempo e a mudanccedila de espaccedilo ldquoPor fantasma noacutes entendemos a similitude ou a imagem de al-gum objeto externo que aparece para noacutes apoacutes o objeto externo ter sido removido sensorialmente [sensorium] como nos sonhosrdquo58
Na sequecircncia um pouco mais adiante o texto identifica nas espeacute-cies inteligiacuteveis a origem da produccedilatildeo do fenocircmeno
Um fantasma deve ser produzido por algum agente [] deve ser originalmente produzido pelas espeacutecies inteligiacuteveis[] O agente sendo o objeto externo o paciente deve ser aquilo no corpo pelo qual noacutes temos o sentido [sense] mas os espiacuteritos animais satildeo aqui-lo pelo qual noacutes temos o sentido (pela Seccedilatildeo 3 Princiacutepio 1) por-tanto os espiacuteritos animais satildeo o paciente[] Portanto [fantasma] deve ser a accedilatildeo do ceacuterebro [brayne] sobre os espiacuteritos animais etc59
Desde modo a preservaccedilatildeo da imagem esvaecida de um determi-nado objeto externo envolve dois estaacutegios (i) a accedilatildeo das espeacutecies inteligiacute-veis sobre o aparelho sensorial e (ii) a accedilatildeo cognoscente
Na continuidade da argumentaccedilatildeo a pena de Hobbes registra ldquoNoacutes dizemos entender uma coisa quando temos o fantasma ou aparecircncia des-ta coisardquo60 Sobre o fantasma ou aparecircncia de uma coisa base das somas e subtraccedilotildees do raciociacutenio entatildeo demarca-se o conhecimento cientiacutefico nos moldes da elaboraccedilatildeo daquilo capaz de tornar inconfundiacutevel uma coi-sa com outra Esta simetria entre os objetos externos (em si) as espeacutecies
57 No Leviatatilde em Os elementos da lei natural e poliacutetica e no De corpore Hobbes sempre admite a percepccedilatildeo sensorial e a memoacuteria mitigada ldquoPortanto o iniacutecio do conhecimento satildeo os fantas-mas dos sentidos e da imaginaccedilatildeo e sabemos suficientemente bem por natureza que haacute tais fantasmas mas saber por que existem ou de que causas procedem eacute tarefa do raciociacutenio []rdquo De corpore I 6 66
58 A short tract on first principles Seccedilatildeo 3 Princiacutepio 259 A short tract on first principles Seccedilatildeo 3 Conclusatildeo 460 A short tract on first principles Seccedilatildeo 3 Conclusatildeo 6
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inteligiacuteveis e a aparecircncia das coisas circunstancia-se na reflexatildeo sobre o princiacutepio da individuaccedilatildeo porque as espeacutecies inteligiacuteveis desempenham o papel teoacuterico do termo ldquosentidordquo
Para aquilo que chama a atenccedilatildeo ao que parece a doutrina das espeacutecies inteligiacuteveis de A short tract on first principles quando articula-da com o conjunto da filosofia natural de Hobbes na especificidade da abordagem do princiacutepio da individuaccedilatildeo permite trecircs ilaccedilotildees (i) eacute factiacute-vel perceber a cinemaacutetica corpuscular de Hobbes como inserida na esfera do sensiacutevel com objetos ricos em precisatildeo e pobres em extensatildeo (ii) as abstraccedilotildees propriamente ditas ndash permeadas de qualidades com infinitas extensotildees ndash sempre pertencem ao campo mental e (iii) estruturalmente conserva-se como pressuposto a noccedilatildeo de causa como distinta da noccedilatildeo de princiacutepio61
Com fidelidade agrave recomendaccedilatildeo hobbesiana de extremo rigor na pesquisa com os textos62 a leitura conduz agrave indicaccedilatildeo de inferecircncias de ma-nifestaccedilotildees particulares como pontos de partida do conhecimento Estas instalaccedilotildees mentais das manifestaccedilotildees particulares de componentes das coisas que a teoria dos nomes relata por natildeo serem separaacuteveis delas mol-dam um composto de noccedilotildees absolutas expressos pela linguagem ou seja haacute uma esfera determinada que nada acrescenta de real agrave natureza das coi-sas Hobbes compreende esta esfera determinada como os nomes em si en-quanto expressatildeo do discurso mental assim converge para a sustentaccedilatildeo de que o princiacutepio da individuaccedilatildeo e as coisas particulares confundem-se o que poderia levar a conclusatildeo de que as coisas (em si) natildeo careceriam de princiacutepios ndash como o da individuaccedilatildeo ndash para a sua inteligibilidade63
Quando se investiga a recepccedilatildeo da doutrina das espeacutecies inteligiacute-veis no seacuteculo 17 identifica-se tambeacutem o toacutepico da inexistecircncia de distin-ccedilatildeo real entre a essecircncia e a existecircncia nas criaturas
61 Gracia esclarece que a tradiccedilatildeo escolaacutestica sempre separa causas e princiacutepios (cf GRACIA In-troduction 1982) Por esta linha interpretativa Hobbes parece natildeo confundir o princiacutepio ndash da individuaccedilatildeo no caso ndash com a causa
62 cf Os elementos da lei natural e poliacutetica I 13 sect 8 Adota-se o modelo ldquoobra parte capiacutetulo seccedilatildeo e paacuteginardquo e dizem respeito agrave ediccedilatildeo de Toumlnnies
63 Na redaccedilatildeo do capiacutetulo oitavo do Leviatatilde intitulado Das virtudes vulgarmente chamadas intelec-tuais e dos defeitos contraacuterios a estas o alvo da pena criacutetica de Hobbes eacute a inquiriccedilatildeo das causas de Suaacuterez ldquoQuando algueacutem escreve volumes inteiros cheios de tais coisas eacute porque estaacute louco ou porque pretende enlouquecer os outrosrdquo (Leviatatilde I 8 sect 27 79)
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No que diz respeito a Hobbes distinguir eacute poder expressar dife-renccedilas ldquoAgora dois corpos satildeo ditos diferentes um do outro quando algo pode ser dito de um deles e natildeo pode ser dito sobre o outro ao mesmo tempordquo64 Durante o raciociacutenio mediante somas e subtraccedilotildees as aparecircn-cias dos movimentos corpusculares externos ao corpo humano ordenam uns em relaccedilatildeo aos outros nos moldes de um discurso mental que antece-de o discurso em palavras65 ldquoQuando algueacutem raciocina nada mais faz do que conceber uma soma total []rdquo66
Fora da esfera do caacutelculo mental tudo o que haacute eacute corpo em movi-mento Nestes termos corpo em movimento eacute carente de qualquer iden-tidade e por extensatildeo sem distinccedilatildeo real por absoluta impossibilidade de negaccedilatildeo em si algo sem pluralidade sem elementos que possam ser separados e sem espeacutecie alguma de diversidade Por conseguinte aquilo que a linguagem versa para o exterior do homem apenas expressa minus a posteriori minus o fluxo mental contingenciado pela computaccedilatildeo das repre-sentaccedilotildees
Esta trabalho buscou apresentar a renuacutencia agrave noccedilatildeo de ldquoespeacutecies inteligiacuteveisrdquo como o recurso que harmoniza a filosofia natural de Hobbes com uma das vertentes do realismo Demonstrou que a noccedilatildeo de ldquosenti-dordquo desempenha o mesmo papel das espeacutecies inteligiacuteveis na funccedilatildeo que explicita a relaccedilatildeo da faculdade cognitiva com os objetos externos ao cor-po do homem e o princiacutepio racional da individuaccedilatildeo Tambeacutem deu a co-nhecer que o corte da mediaccedilatildeo das espeacutecies inteligiacuteveis concilia pontos criacuteticos do sistema do autor a saber os conceitos universais e a ontologia dos corpos em movimento sem distinccedilatildeo real
Pari passu foi ventilado que os textos de Hobbes sustentam que os universais natildeo constituem um modo de ser mas um tipo de item mental
64 De corpore II 11 13265 A distinccedilatildeo hobbesiana entre o discurso em palavras e discurso mental (cf Leviatatilde I 3) eacute evi-
denciada quando emprega o termo ldquocorpordquo como um designativo preacute-linguiacutestico No primeiro capiacutetulo do De corpore ele explica que enquanto a escolha de uma palavra apropriada natildeo eacute feita dentro da longa seacuterie de conceituaccedilotildees pode-se encontrar ldquocorpordquo amparando uma alusatildeo geral a uma ideia ainda natildeo suficientemente esclarecida cf De corpore I 1 3
66 Leviatatilde I 5 sect 1
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Experimento e matemaacutetica na lei da queda dos corpos de Galileu Galilei
Maacutercio Correia dos Santos(UNICAMP)
Um dos experimentos mais estudados na ciecircncia de Galileu eacute o ex-perimento do plano inclinado descrito na terceira jornada de sua uacuteltima obra o Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (Discursos e demonstraccedilotildees matemaacuteticas sobre duas novas ciecircncias)1 de 1638 Este experimento tem por finalidade demonstrar o Teorema II ndash Proposiccedilatildeo II que afirma que ldquose um moacutevel partindo do repouso cai com um movimento uniformemente acelerado os espaccedilos por ele percorridos em qualquer tempo estatildeo entre si na razatildeo dupla dos tempos a saber como os quadrados desses mesmos temposrdquo2 e do Corolaacuterio I deste teo-rema que diz ldquoos espaccedilos percorridos em tempos iguais adquirem in-crementos segundo a seacuterie dos nuacutemeros iacutempares a partir da unidaderdquo3 Estas propriedades apresentadas por Galileu e demonstradas atraveacutes do experimento do plano inclinado pertencem a aceleraccedilatildeo de um corpo em queda livre Entretanto embora que a preocupaccedilatildeo de Galileu natildeo fosse definir o que entende por experimento ou como ele o utiliza na sua ciecircn-cia haacute claramente na sua obra pelo menos dois tipos de experimentos experimentos de pensamento e experimentos empiacutericos O objetivo deste artigo eacute demonstrar que na lei da queda dos corpos estes dois tipos de ex-perimentos estatildeo presentes no experimento do plano inclinado na qual haacute uma estrita relaccedilatildeo com a matemaacutetica ou melhor com a geometria A natureza do texto ocorre de forma exegeacutetica focando apenas na obra galileana deste modo este artigo natildeo iraacute se enveredar pelas linhas inter-pretativas dos comentadores
1 GALILEU Opere VIII pp 11-318 Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a due nouve scienze ndash Attenentti alla Mecanica amp i Movimenti Locali ndash para referecircncia ldquoDiscursosrdquo Para cita-ccedilotildees diretas ldquoDNCrdquo (Duas novas ciecircncias) seguido do ano e da numeraccedilatildeo das paginas Trad de L Mariconda e P R Mariconda
2 GALILEU Opere VIII p 209 DNC p 1363 Ibidem 210 DNC p 138
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 26-41 2017
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Experimento e matemaacutetica na lei da queda dos corpos de Galileu Galilei
O primeiro aspecto que podemos analisar eacute sobre a aplicaccedilatildeo mate-maacutetica na realidade na temaacutetica dos experimentos mais especificamente dos experimentos empiacutericos Os experimentos empiacutericos podem ser con-siderados os experimentos reais na qual Galileu ou os relatou em suas obras (mas natildeo diz se ele fez os experimentos) ou afirmou que realizou estes experimentos (estando eles dentro do possiacutevel do que era a Galileu ter feito) que envolve geralmente o uso de instrumentos e maacutequinas para a realizaccedilatildeo do experimento Na terceira jornada dos Discursos no estudo acerca dos movimentos locais Galileu define o movimento naturalmente acelerado dos graves como ldquoagravequele que partindo do repouso adquire em tempos iguais momentos iguais de velocidaderdquo4 Simpliacutecio (personagem da obra que representa a tradiccedilatildeo aristoteacutelica) aceita a definiccedilatildeo deste movimento mas afirma que seria oportuno apresentar um experimento que concordaria com a definiccedilatildeo apresentada Salviati (que representa o proacuteprio Galileu) responde
Salviati ndash Como verdadeiro homem de ciecircncia sua exigecircncia eacute mui-to razoaacutevel pois eacute assim que conveacutem proceder nas ciecircncias que aplicam as demonstraccedilotildees matemaacuteticas aos fenocircmenos naturais como se observa no caso da perspectiva da astronomia da mecacirc-nica da muacutesica e de outras as quais confirmam com experiecircncias sensatas seus princiacutepios que satildeo os fundamentos de toda a estru-tura ulterior (GALILEU Opere VIII p 212 DNC pp 139-140)
A partir do pedido de Simpliacutecio Salviati apresenta o experimento do plano inclinado e afirma que eacute desta maneira que se deve proceder nas ciecircncias demonstrativas aplicando as demonstraccedilotildees matemaacuteticas para confirmar com as experiecircncias os princiacutepios demonstrados Esta metodo-logia eacute a das ciecircncias intermediaacuterias que satildeo as ciecircncias que natildeo satildeo nem puramente matemaacuteticas nem puramente fiacutesicas (como a oacutetica harmonia astronomia e mecacircnica) Detemo-nos no termo ldquoaplicarrdquo (applicano) que se encontra na citaccedilatildeo utilizada Nesta passagem que antecede o relato do plano inclinado Salviati afirma que seu autor (Galileu) natildeo deixou de rea-lizar experimentos para assegurar-se da aceleraccedilatildeo dos graves Contudo na quarta jornada Galileu reconhece algumas dificuldades que surgem na realizaccedilatildeo dos experimentos e uma delas eacute a ideia de que os componentes
4 GALILEU Opere VIII p 205 DNC p 133
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e a realizaccedilatildeo do experimento devem ser ldquoperfeitosrdquo5 Esta problemaacutetica eacute apresentada por Simpliacutecio utilizando-se do exemplo do plano horizontal infinito para demonstrar que livre da resistecircncia do meio um corpo teria seu movimento perpeacutetuo
Simp () penso que eacute impossiacutevel suprimir a resistecircncia do meio de modo que natildeo se altere a uniformidade do movimento transversal e a lei da aceleraccedilatildeo na queda livre Todas essas dificuldades tor-nam assim sumamente improvaacutevel que os resultados demonstra-dos com proposiccedilotildees tatildeo fraacutegeis possam ser verificados atraveacutes de experimentos realizados na praacutetica
Salviati aceita as dificuldades postas por Simpliacutecio e afirma
Salv Todas as dificuldades e objeccedilotildees suscitadas estatildeo tatildeo bem fundamentadas que julgo ser impossiacutevel removecirc-las portanto eu aceito todas como penso que as admitiria tambeacutem nosso Autor Concordo que as conclusotildees assim demonstradas em abstrato se alteram na realidade e se mostram a tal ponto inexatas que nem o movimento transversal eacute uniforme nem a aceleraccedilatildeo natural acon-tece segundo a proporccedilatildeo suposta nem a trajetoacuteria de um projeacutetil eacute paraboacutelica etc (GALILEU Opere VIII p 274 DNC p 202)
A partir destas duas passagens na terceira jornada onde Galileu afirma a necessidade de apresentar experiecircncias que concordem com as demonstraccedilotildees matemaacuteticas de acordo com a metodologia das ciecircncias intermediaacuterias e na quarta jornada onde ele afirma uma inexatidatildeo entre o que eacute demonstrado em abstrato e depois em concreto reconhecendo como uma dificuldade podemos perguntar como Galileu concebe expe-rimento e matemaacutetica na construccedilatildeo de sua nova ciecircncia do movimento Primeiramente apoacutes as discussotildees sobre o movimento uniforme e o mo-vimento uniformemente acelerado Salviati relata a construccedilatildeo do apara-to e a execuccedilatildeo do experimento do plano inclinado agrave pedido de Simpliacutecio que tinha afirmado que seria conveniente apresentar uma experiecircncia
5 Aqui como os termos que se seguem a respeito da perfeiccedilatildeo estatildeo relacionados a construccedilatildeo ou execuccedilatildeo dos experimentos natildeo me refiro as propriedades ontoloacutegicas que o termo perfeiccedilatildeo pode oferecer refiro-me a preocupaccedilatildeo de Galileu em estabelecer a precisatildeo na funcionalidade da execuccedilatildeo de seus experimentos
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que concordasse com as demonstraccedilotildees apresentadas ou seja a demons-traccedilatildeo de que o movimento acelerado eacute agravequele que partindo do repouso adquire em tempos iguais momentos iguais de velocidade Salviati afirma
Salviati ndash Numa ripa ou melhor dito numa viga de madeira com um comprimento de aproximado de 12 braccedilas uma largura de meia bra-ccedila num lado de trecircs dedos no outro foi escavada uma canaleta neste lado menos largo com um pouco mais de um dedo de largura No interior desta canaleta perfeitamente retiliacutenea para ficar bem poli-da e limpa foi colocada uma folha de pergaminho que era polida ateacute ficar bem lisa faziacuteamos descer por ela uma bola de bronze duriacutessi-ma perfeitamente redonda e lisa Uma vez construiacutedo o mencionado aparelho ele era colocado numa posiccedilatildeo inclinada elevando sobre o horizonte uma de suas extremidades ateacute a altura de uma ou duas braccedilas e se deixava descer (como afirmei) a bola pela canaleta ano-tando como exporei mais adiante o tempo que empregava para uma descida completa repetindo a mesma experiecircncia muitas vezes para determinar exatamente a quantidade de tempo na qual nunca se en-contrava uma diferenccedila nem mesmo da deacutecima parte de uma batida de pulso Feita e estabelecida com precisatildeo tal operaccedilatildeo fizemos des-cer a mesma bola apenas por uma quarta do comprimento total da canaleta e medido o tempo de queda resultava ser sempre rigoro-samente igual agrave metade do outro Variando a seguir a experiecircncia e comparando o tempo requerido para percorrer todo o comprimento com o tempo requerido para percorrer a metade ou os dois terccedilos ou os trecircs quartos ou para concluir qualquer outra fraccedilatildeo atraveacutes de experiecircncias repetidas mais de cem vezes sempre se encontrava que os espaccedilos percorridos estavam entre si com os quadrados dos tempos e isso em todos as inclinaccedilotildees do plano ou seja da canaleta pela qual se fazia descer a bola Observamos tambeacutem que os tempos de queda para as diferentes inclinaccedilotildees do plano mantinham exata-mente entrei si aquela proporccedilatildeo que como veremos mais adiante foi encontrada e demonstrada pelo autor No que diz respeito agrave me-dida do tempo empregaacutevamos um grande recipiente cheio de aacutegua suspenso no alto o qual atraveacutes de um pequeno orifiacutecio feito no fun-do deixava cair um fino fio de aacutegua que era recolhido num pequeno copo durante todo o tempo em que a bola descia pela canaleta ou por suas partes As quantidades de aacutegua assim recolhidas eram a cada vez mais pesadas com uma balanccedila muito precisa sendo a diferenccedila e proporccedilotildees entre os pesos correspondentes agraves diferenccedilas e pro-porccedilotildees entre os tempos e isto com tal precisatildeo que como afirmei estas operaccedilotildees muitas vezes repetidas nunca diferiam de maneira significativa (GALILEI Opere pp 212 -213 DNC 1988 pp 140-141)
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Este relato experimental segue alguns passos metoacutedicos em sua exposiccedilatildeo Primeiro Galileu apresenta as informaccedilotildees para a constru-ccedilatildeo do aparato segundo explica como o experimento deve ser realiza-do e como as medidas devem ser consideradas terceiro explica como ocorreraacute o controle de um fenocircmeno natural (a queda de um corpo) por meio de um ambiente controlado e quarto revela a preocupaccedilatildeo em se construir o aparelho e seus constituintes ndash como uma bola polida ndash e de sua execuccedilatildeo de modo perfeito ou seja exato Neste caso para realizar o experimento do plano inclinado com perfeiccedilatildeo devermos obter uma es-fera perfeitamente polida e um plano perfeitamente liso Contudo apesar de Galileu considerar a mateacuteria perfeita6 natildeo podemos ignorar o fato de que ela conteacutem em si irregularidades e acidentes que impedem a exata execuccedilatildeo dos experimentos como a sua porosidade (tanto eacute a insistecircncia de Galileu em construir um plano perfeitamente liso ou seja o mais proacute-ximo possiacutevel de um plano sem porosidade para que natildeo ocorra atrito por menor que seja) fazendo com que Salviati reconheccedila na quarta jor-nada a ldquodeficiecircncia de nossos instrumentosrdquo7 Estas dificuldades surgem no momento em que as coisas consideradas em abstrato satildeo aplicadas na mateacuteria deixando de serem exatas e alterando as conclusotildees demonstra-das em abstrato ou seja fazendo com que um plano perfeitamente liso em abstrato natildeo seja perfeitamente liso em concreto Esta conclusatildeo jaacute tinha sido previamente exposta na separaccedilatildeo entre o que eacute considerado abs-trato e o que eacute considerado concreto na segunda jornada dos Discursos quando Salviati apresenta uma figura que representa uma balanccedila com pesos desiguais resultando que ldquodois pesos quaisquer que sejam per-manecem em equiliacutebrio a distacircncias inversamente proporcionais a seus respectivos pesosrdquo8 Apoacutes estabelecer este principio e de verifica-lo com a balanccedila testando o equiliacutebrio atraveacutes de blocos de madeiras com forma-tos e pesos distintos Salviati afirma
6 No inicio da primeira jornada dos Discorsi na discussatildeo acerca da ciecircncia da resistecircncia dos materiais Salviati invoca a perfeiccedilatildeo da mateacuteria contra uma tradiccedilatildeo que atribuiacutea agrave imperfeiccedilatildeo da mateacuteria a causa da ruptura e quebra dos corpos
7 GALILEU Opere VIII p 275 DNC p 203 8 (GALILEU Opere VIII p 154 DNC p 91) Esta conclusatildeo jaacute tinha sido obtida no tratado As Me-
cacircnicas (GALILEU Opere II pp 147-190)
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Salv Quero que considerem antes de passarmos a outros assun-tos como estas forccedilas resistecircncias momentos figuras etc podem ser consideradas em abstrato e separadas da mateacuteria assim como em concreto e ligadas agrave mateacuteria Deste modo aquelas proprieda-des que pertencem agraves figuras consideradas como imateriais rece-beratildeo algumas modificaccedilotildees quando lhe acrescentarmos a mateacuteria () Eis porque antes de continuar eacute necessaacuterio que estejamos de acordo em distinguir estas duas maneiras de considerar dizendo que numa o tomamos absolutamente quando consideramos o ins-trumento em abstrato ou seja separado da gravidade da proacutepria mateacuteria e noutra quando acrescentarmos a mateacuteria e com esta a gravidade agraves figuras simples e absolutas designaremos as figuras unidas agrave mateacuteria pelo termo momento ou forccedila composta (GALI-LEU Opere VIII p 154 DNC pp 91-92 destaque nosso)
Galileu afirma que haacute duas maneiras distintas de considerar a in-vestigaccedilatildeo das propriedades presentes em nossos instrumentos ou nos elementos que compotildeem a investigaccedilatildeo do objeto (como forccedilas resis-tecircncias figuras etc) uma de modo imaterial e outra de modo material (na qual a abstraccedilatildeo eacute aplicada agrave mateacuteria) Com esta consideraccedilatildeo po-demos acrescentar outro ponto dado por Salviati referente a dificul-dade posta pela resistecircncia do meio Esta resistecircncia apresenta-se de diversos modos e com isso Salviati afirma ldquoQuanto a perturbaccedilatildeo de-vido agrave resistecircncia do meio ela eacute uma dificuldade muito importante e em vista da multiplicidade de suas variedades eacute impossiacutevel submetecirc-la a regras fixas e trata-las cientificamenterdquo9 ou seja aleacutem da diferenccedila das propriedades abstratas exatas e da inexatidatildeo quando estas satildeo postas na mateacuteria a multiplicidade das variedades do objeto estudado como neste exemplo a da resistecircncia do meio torna impossiacutevel o tratamento cientifico deste objeto
Com estes trecircs momentos citados da obra de Galileu primeiro em que ele alude a aplicaccedilatildeo matemaacutetica na realidade segundo sobre as irregularidades que a mateacuteria apresenta frente agrave perfeiccedilatildeo geomeacutetrica e por fim sobre a multiplicidade das propriedades do objeto estudado voltamos a pergunta inicial como podemos considerar experimento e matemaacutetica na construccedilatildeo da nova ciecircncia de Galileu dado que existem algumas dificuldades postas pela relaccedilatildeo entre a matemaacutetica e o mundo
9 GALILEU Opere VIII pp 275-276 DNC p 203
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fiacutesico Ainda se referindo ao problema da resistecircncia do meio na quarta jornada dos Discursos Salviati nos oferece a resposta
Salviati ndash Estas propriedades referentes agrave gravidade agrave velocidade e tambeacutem agrave forma sendo variaacuteveis de infinitas maneiras natildeo podem ser tratadas de forma rigorosamente cientifica contudo para po-der tratar cientificamente esta mateacuteria eacute necessaacuterio abstrair essas propriedades e apoacutes ter encontrado e demonstrado as conclusotildees que prescidem das resistecircncias completa-las no momento de aplica-las concretamente com aquelas limitaccedilotildees que a experiecircncia nos ensina (GALILEU Opere VIII pp 275-276 DNC pp 203-204 destaque nosso)
Na construccedilatildeo da nova ciecircncia de Galileu os experimentos satildeo limitados e natildeo nos fornecem a conclusatildeo verdadeira se natildeo forem to-mados em conjunto com a abstraccedilatildeo matemaacutetica Com isto para seguir corretamente com o uso dos experimentos eacute necessaacuterio abstrair estas propriedades concretas e ajustaacute-las de acordo com as conclusotildees demos-tradas em abstrato Deste modo em relaccedilatildeo a aplicabilidade da matemaacute-tica no estudo da fiacutesica somente o que pode ser considerado fixo (ou seja imutaacutevel ou inexoraacutevel) eacute o que pode ser tratado de maneira rigorosa-mente cientifica e o que natildeo for imutaacutevel (como a gravidade a velocida-de a forma a resistecircncia do meio etc por se apresentarem de diversas formas) deve ser abstraiacutedo matematicamente para depois aplicarmos novamente na mateacuteria de acordo com as limitaccedilotildees que a experiecircncia nos ensina A partir deste ponto duas passagens na obra de Galileu devem ser consideradas A primeira apresenta-se na carta a Cristina de Lorena10 de 1615 onde Galileu afirma que a proacutepria natureza eacute inexoraacutevel e imutaacutevel apresentando-se sempre do mesmo modo pois ela em ldquonada se preocupa se suas recocircnditas razotildees e modo de operar estatildeo ou natildeo estatildeo ao alcance da capacidade dos homensrdquo11 segundo nrsquoO Ensaiador de 1623 que afir-ma que a natureza estaacute estruturada numa linguagem matemaacutetica escrita atraveacutes de caracteres como os triacircngulos circunferecircncias e outras figuras geomeacutetricas12 Estas duas passagens permiti-nos concluir que para Gali-
10 GALILEI Opere V pp 279-288 1988 pp 41-8111 GALILEU Opere V pp 316-317 1988 p 4912 ldquoA filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuadamente se abre perante nossos
olhos (isto eacute o universo) que natildeo se pode compreender antes de entender a liacutengua e conhecer
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leu o melhor modo de conhecer a natureza eacute a partir da maneira como ela mesma se apresenta ou seja o que eacute acessiacutevel ao conhecimento cien-tiacutefico eacute o que sempre se apresenta do mesmo modo por isso imutaacutevel ou inalteraacutevel e por a natureza apresentar-se desse modo por ser escrita em liacutengua matemaacutetica o melhor modo de conhececirc-la eacute atraveacutes da sua proacutepria estrutura matemaacutetica ou mais especificamente geomeacutetrica tornando as-sim possiacutevel extrair dela rigorosas demonstraccedilotildees cientificas tais como as rigorosas demonstraccedilotildees matemaacuteticas
Este procedimento de abstraccedilatildeo matemaacutetica aliado ao uso dos experimentos empiacutericos que demonstram estas irregularidades serve como uma espeacutecie de correccedilatildeo dos impedimentos que a mateacuteria apresen-ta ou seja para que os fenocircmenos sejam cientificamente demonstraacuteveis devemos regularizar a irregularidade do que natildeo eacute imutaacutevelinalteraacutevel para podermos tratar um fenocircmeno com demonstraccedilotildees necessaacuterias (de-monstraccedilotildees matemaacuteticas) e expocirc-los de forma rigorosamente cientifica Na quarta jornada dos Discursos na problemaacutetica que Simpliacutecio apre-senta a Salviati sobre as grandes distacircncias do movimento dos projeacuteteis ou da dificuldade de tratar de corpos em quedas imensas em relaccedilatildeo ao tamanho dos instrumentos utilizados nos experimentos (tornando-os limitados)13 Galileu alega atraveacutes de Salviati o que sustentamos
os caracteres com os quais estaacute escrito Ele estaacute escrito em liacutengua matemaacutetica os caracteres satildeo triacircngulos circunferecircncias e outras figuras geomeacutetricas sem cujos meios eacute impossiacutevel entender humanamente as palavras sem eles noacutes vagamos perdidos dentro de um obscuro labirintordquo (GALILEU Opere VI p 232 O Ensaiador 1978 p 119)
13 Esta eacute a justifica da escolha do estudo do movimento dos projeteis na quarta jornada e entre eles o tratamento dos projeteis de artilharia dado que distacircncias de tiro satildeo pequenas e natildeo ultrapas-sam quatro milhas Ademais trata-se de movimento que termina na superfiacutecie do globo terrestre ao passo que se uma trajetoacuteria paraboacutelica se prolongasse ateacute o centro da terra distacircncia natildeo infi-nita mas que pode ser considerada imensa alteraria a trajetoacuteria do projeacutetil Galileu afirma ldquoQuan-do portanto queremos aplicar agraves distacircncias finitas as conclusotildees demonstradas para distacircncias imensas devemos efetuar correccedilotildees posto que nossa distacircncia do centro da terra embora natildeo seja realmente infinita eacute tal que pode ser considerada imensa quando comparada a deficiecircncia de nossos instrumentos o lanccedilamento de projeacuteteis seraacute o mais importante e entre eles considera-mos somente os projeacuteteis de artilharia cujo alcance por maior que seja natildeo ultrapassaraacute quatro milhas enquanto que satildeo muitos milhares de milhas que nos separam do centro da terra E como as trajetoacuterias desses projeacuteteis terminam na superfiacutecie do globo terrestre muito pouco alteraratildeo sua forma paraboacutelica que admito sofreria grandes transformaccedilotildees caso terminassem no centro da terrardquo (GALILEU Opere VIII p 275 DNC 1988 p 203 destaque nosso)
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A vantagem desse meacutetodo natildeo seraacute pequena posto que se pode esco-lher as mateacuterias e as formas que satildeo menos sujeitas agraves resistecircncias do meio como acontece com os corpos muitos pesados e redon-dos e as distancias e as velocidades natildeo seratildeo em geral tatildeo gran-des que suas diferenccedilas natildeo possas ser corrigidas com precisatildeo (GALILEU Opere VIII p 276 DNC 1988 p 204 destaque nosso)
Com esse meacutetodo Galileu pode aplicar a matemaacutetica ao estudo da fiacutesica considerando ambas em conjunto Esta aplicaccedilatildeo das abstraccedilotildees matemaacuteticas tambeacutem foi discutida no Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (Diaacutelogo sobre os dois maacuteximos sistemas do mundo)14 de 1632 Na segunda jornada apoacutes Sagredo15 afirmar a importacircncia do estudo da natureza atraveacutes da geometria16 Galileu atribui ao aristoteacutelico Simpliacutecio a funccedilatildeo de negar a aplicaccedilatildeo da abstraccedilatildeo matemaacutetica aos objetos naturais feitas pelos matemaacuteticos pois somente cabe ao filoacutesofo natural o estudo destes objetos17 Simpliacutecio afirma
Simpliacutecio ndash Eu natildeo serei tatildeo injusto com Platatildeo mas direi antes com Aristoacuteteles que ele ficou muito absorvido e muito se deixou
14 GALILEU Opere VII pp 21-520 Ediccedilatildeo brasileira Diaacutelogo Trad de P R Mariconda 2011 15 Galileu utiliza os mesmo personagens (Salviati Sagredo e Simpliacutecio) nas duas obras no Diaacutelogo
e nos Discursos16 ldquo() eacute forccediloso confessar que querer tratar as questotildees naturais sem a geometria eacute tentar fazer
aquilo que eacute impossiacutevel de ser feitordquo (GALILEU Opere VII p 229 Diaacutelogo p 283) 17 No Livro II cap 2 da Fiacutesica Aristoacuteteles separa o fiacutesico (estudioso da natureza) do matemaacutetico
Ao estudar o sol ou a lua por exemplo o cientista natural deve se ater a eles como corpos natu-rais enquanto o matemaacutetico dedica-se a abstrair os seus aspectos matemaacuteticos e geomeacutetricos A ciecircncia Fiacutesica se torna assim incompatiacutevel com a ciecircncia Matemaacutetica Ambas possuem o mesmo objeto de estudo mas tratam-no de maneiras diferentes Aristoacuteteles afirma ldquoDevemos examinar em que o matemaacutetico se diferencia do estudioso da natureza (pois tambeacutem os corpos naturais tecircm superfiacutecies e soacutelidos bem como comprimentos e pontos a respeito dos quais o matemaacutetico faz seu estudo) Aleacutem disso devemos examinar se a astronomia eacute uma parte da ciecircncia natural ou se eacute distinta dela De fato seria absurdo se coubesse ao estudioso da natureza conhecer o que eacute o sol ou a lua mas natildeo lhe coubessem conhecer nenhum dos concomitantes que se lhe atribuem em si mesmos ndash principalmente porque os que estudam a natureza manifestamente se pronunciam tambeacutem sobre a figura da lua e do sol e buscam saber se a Terra e o mundo satildeo esfeacutericos ou natildeo Ora tambeacutem o matemaacutetico se ocupa desses itens mas natildeo enquanto cada um eacute limite de corpo natural tampouco estuda os atributos enquanto sucedem aos corpos naturais tomados nessa qualidade por isso o matemaacutetico os separa pelo pensamento tais itens satildeo separaacuteveis do movimento e isso natildeo faz nenhuma diferenccedila tampouco surge algo falso quando eles os separamrdquo (ARISTOacuteTELES Fiacutesica II cap 2 193b 22 2013 p 46)
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seduzir por sua geometria porque finalmente essas sutilezas ma-temaacuteticas Sr Salviati satildeo verdadeiras em abstrato mas aplicadas agrave mateacuteria sensiacutevel e fiacutesica natildeo funcionam porque demonstraratildeo bem os matemaacuteticos com seus princiacutepios por exemplo que a esfera toca o plano em um soacute ponto proposiccedilatildeo similar agrave presente mas quando se chega a mateacuteria as coisas vatildeo em outra direccedilatildeo e assim quero dizer desses acircngulos do contato e dessas proporccedilotildees que to-dos se desfazem quando se chega agraves coisas materiais e sensiacuteveis (GALILEU Opere VII p 229 Diaacutelogo p 283)
A este problema apontado por Simpliacutecio Salviati responde
Salviati ndash Sempre que em concreto aplicais uma esfera material a um plano material aplicais uma esfera natildeo perfeita a um plano natildeo per-feito e estes dizeis que natildeo se tocam em um ponto Mas eu vos digo que tambeacutem em abstrato uma esfera imaterial que natildeo seja uma esfera perfeita pode tocar um plano imaterial que natildeo seja um pla-no perfeito natildeo em um ponto mas como parte de sua superfiacutecie de modo que ateacute aqui o que acontece em concreto acontece do mesmo modo em abstrato e seria uma grande novidade que os caacutelculos e os saldos efetuados com nuacutemeros abstratos natildeo correspondessem depois em concreto agraves moedas de ouro e a prata e agraves mercadorias Mas Sr Simpliacutecio sabeis o que acontece Assim como para querer que os caacutelculos correspondam aos accedilucares agraves sedas e agraves latildes eacute ne-cessaacuterio que o contador leve em conta a tara das caixas embrulhos e outras embalagens assim tambeacutem quando o filoacutesofo geocircmetra quer reconhecer em concreto os efeitos demonstrados em abstrato eacute necessaacuterio que desconte os impedimentos da mateacuteria pois se souber fazer isso asseguro-vos que as coisas se corresponderatildeo de modo natildeo menos ajustado que os caacutelculos aritmeacuteticos Os erros portanto natildeo residem nem em abstrato nem no concreto nem na geometria ou na fiacutesica mas no calculador que natildeo sabe fazer bem as contasrdquo (GALI-LEU Opere VII pp 233-234 Diaacutelogo p 287 destaque nosso)
A natureza e a geometria satildeo inexoraacuteveis cada uma sempre idecircn-tica a si mesma eacute por esta razatildeo que o melhor meio de compreender a natureza eacute atraveacutes da geometria aplicando suas figuras abstratas na ma-teacuteria sensiacutevel se o geocircmetra ou o calculador erre o caacutelculo a culpa natildeo eacute da geometria porque esta sempre se apresenta do mesmo modo e sim do calculador ou do geocircmetra que faz mal uso de figuras ou linhas no momento de aplica-las Com o exposto apesar da consideraccedilatildeo de que um
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experimento pode ser exato em abstrato mas na mateacuteria eacute inexato pode-mos sustentar que para Galileu os experimentos confirmam a conclusatildeo demostrada pela matemaacutetica de acordo com a metodologia das ciecircncias intermediaacuterias Em outras palavras Galileu toma ambas em conjunto matemaacutetica e experimento e completa uma com a outra aquela como ne-cessitando de uma correspondecircncia concreta e ao mesmo tempo como uma correccedilatildeo das irregularidades materiais e esta como manifestaccedilatildeo das propriedades e irregularidades desta mesma mateacuteria poreacutem com uma demonstraccedilatildeo empiacuterica necessaacuteria
Apesar de Galileu utilizar este meacutetodo de fazer corresponder expe-rimento e matemaacutetica (ou abstrato e concreto) no experimento do plano inclinado este experimento ainda natildeo parece ser suficiente para demons-trar a lei da queda dos corpos como um todo e com isso Galileu tambeacutem utiliza o plano inclinado como uma projeccedilatildeo (ou idealizaccedilatildeo)18 no vaacutecuo A lei da queda dos corpos estaacute exposta nos Discursos em dois momentos na primeira jornada onde eacute debatido e refutado o preceito aristoteacutelico de que as velocidades nas quais os corpos caem dependem de seus pesos (para Galileu a velocidade de queda de todos os corpos de diferentes pesos e materiais natildeo dependem de seus pesos e sim da resistecircncia do meio se esta resistecircncia for nula todos os corpos cairatildeo com velocidade iguais) e na terceira jornada onde eacute discutido o movimento acelerado com a qual estes corpos caem ateacute atingirem o movimento uniforme Com isso pretendemos afirmar que a demonstraccedilatildeo da lei da queda dos corpos como exposto nos Discursos consiste em dois tipos de experimentos um empiacuterico e outro de pensamento e que no conjunto geral da lei estes dois tipos de experimen-tos estatildeo interligados no experimento do plano inclinado
Este experimento assegura portanto a demonstraccedilatildeo empiacuterica de que os espaccedilos pela qual um corpo que cai aceleradamente estatildeo entre si como os quadrados desses mesmos tempos (Teorema II ndash Proposiccedilatildeo II) e que estes espaccedilos crescem em nuacutemeros iacutempares a partir da unidade (Co-rolaacuterio I) ou seja o experimento demonstra a primeira parte empiacuterica lei da queda dos corpos mas natildeo a segunda parte a de que retirado todos os impedimentos do meio o corpo cai com velocidades iguais independente de seus pesos ou de seus materiais pois Galileu natildeo tinha acesso a um imenso espaccedilo vazio para demonstrar a segunda parte da lei Contudo
18 Aqui como na nota de nordm 5 a utilizaccedilatildeo do termo idealizaccedilatildeo no texto natildeo nos remete agraves discus-sotildees e propriedades metafiacutesicas que ele pode oferecer
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Galileu utiliza a idealizaccedilatildeo (ou experimento de pensamento) no plano inclinado pois do mesmo modo que Galileu usa o plano para relacionar a aceleraccedilatildeo dos corpos que cai verticalmente com a queda atraveacutes deste plano19 o plano inclinado tambeacutem lhe serve como uma comparaccedilatildeo entre o meio material e o meio imaterial
Primeiramente devemos observar a tentativa e a insistecircncia de Ga-lileu em eliminar todos os impedimentos externos como a resistecircncia do meio no plano construindo-os ldquoperfeitamenterdquo retos onde uma folha de pergaminho bastante polida eacute colocada sobre a ripa para ficar bem lisa e com isso as esferas ldquoperfeitamenterdquo redondas e lisas rolarem com o menor atrito possiacutevel Na exposiccedilatildeo do plano inclinado na primeira jornada do Diaacutelogo Galileu tambeacutem se refere a um moacutevel no plano que ldquoremovidos todos os impedimentos externos e acidentaisrdquo se move segundo ldquoo curso ordinaacuterio da naturezardquo20 e na primeira jornada dos Discursos Salviati afir-ma ldquoquis tambeacutem eliminar os obstaacuteculos que pudessem nascer do conta-to desses moacuteveis com o plano inclinadordquo21 Refiro-me a ldquotentativardquo (termo meu) porque Galileu reconhece as dificuldades e a insuficiecircncia que estes experimentos apresentam no momento de sua realizaccedilatildeo empiacuterica
Se portanto o modo de proceder nas ciecircncias intermediaacuterias eacute apresentar experiecircncias que concordem com as conclusotildees demonstra-das a experiecircncia de jogar corpos de diferentes pesos e materiais para demonstrar que suas velocidades satildeo a mesma no vazio natildeo pode ser rea-lizada porque Galileu natildeo dispotildee de certo espaccedilo restando-lhe recorrer a um experimento de pensamento Este experimento de pensamento eacute utilizado como uma projeccedilatildeo do que ocorre no meio material para um meio imaterial assim esta projeccedilatildeo eacute realizada no plano inclinado como um meio comparativo entre os dois ambientes um cheio de ar e outro vazio de ar Salviati na primeira jornada dos Discursos afirma
Salviati ndash Estamos tentando investigar o que aconteceria com os moacute-veis de pesos muito diferentes num meio cuja resistecircncia fosse nula de modo que qualquer diferenccedila de velocidade encontrada entre es-
19 Salviati afirma no Escolio referente ao Teorema 2 ndash Proporccedilatildeo 2 ldquoPortanto o que foi demonstra-do no referente agraves quedas verticais tambeacutem acontece do mesmo modo para os movimentos que se realizam em planos inclinados quaisquer supusemos com efeito que em tais planos os graus de velocidade aumentam sempre na mesma proporccedilatildeo ou seja proporcionalmente ao tempo ou ainda segundo a simples seacuterie dos nuacutemeros inteirosrdquo (GALILEU Opere VIII p 214 DNC p 142)
20 GALILEU Opere VII p 52 Diaacutelogo p 11121 GALILEU Opere VIII p 128 DNC p 71
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ses moacuteveis deveria ser referida unicamente a desigualdade de peso Jaacute que somente um espaccedilo totalmente vazio de ar e de qualquer outro corpo ainda que sutil e penetraacutevel poderia mostra-nos perceptiva-mente o que buscamos e posto que natildeo dispomos de semelhante es-paccedilo observaremos o que ocorre nos meios mais sutis e menos resis-tentes por comparaccedilatildeo com o que se vecirc acontecer nos meios menos sutis e mais resistentes Se constatarmos efetivamente que os moacuteveis de diferentes pesos especiacuteficos diferem cada vez menos em veloci-dade agrave medida que os meios satildeo cada vez menos resistentes e que finalmente embora extremamente desiguais em peso no meio mais tecircnue ainda que natildeo vazio a desigualdade eacute pequeniacutessima quase e inobservaacutevel parece-me que poderemos admitir como conjectura altamente provaacutevel que no vazio suas velocidades seriam totalmente iguais (GALILEU Opere VIII p 117 DNC pp 62-63)
Diferentemente da terceira jornada na passagem que Galileu alu-de agraves ciecircncias intermediaacuterias e que antecede o relato do experimento do plano inclinado Simpliacutecio natildeo pede para Salviati apresentar alguma experiecircncia mas este apresenta a dificuldade da observaccedilatildeo de corpos caindo num meio cuja resistecircncia fosse nula Natildeo dispondo de um espaccedilo para comprovar que os corpos caem no vaacutecuo com velocidades iguais independente de seus pesos ou de seus materiais resta-lhe como uacutenica alternativa observar e comparar o que ocorre num espaccedilo o mais proacutexi-mo possiacutevel do vaacutecuo que seja mais sutil e menos resistente Na natureza o uacutenico meio que possui estas caracteriacutesticas e que nos eacute acessiacutevel eacute o ar No movimento de queda no ar os moacuteveis natildeo dependem de seus pesos ou de seus materiais para determinarem suas velocidades pois eliminando a resistecircncia do meio todos os corpos se moveriam com igual velocidade Assim eacute somente comparando o movimento de queda livre de um corpo no ar ou na aacutegua que Galileu pode ldquonuma conjectura altamente provaacutevelrdquo demonstrar que no vaacutecuo todos os corpos atingem a mesma velocidade
Para um corpo jogado no ar e partindo do repouso o movimen-to adquirido eacute acelerado Se por exemplo o corpo que cai possuiacutesse um amplo espaccedilo no qual este movimento continuaria em determinado mo-mento a velocidade do corpo iria torna-se igual agrave forccedila da resistecircncia do meio anulando ambas e transformando o movimento acelerado em mo-vimento uniforme o que faz com que todos os corpos no vaacutecuo desceriam com a mesma velocidade Poreacutem como natildeo dispomos do espaccedilo vazio soacute
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podemos observar o movimento de queda no ar e atraveacutes do plano incli-nado para comparaacute-lo (ou projetadoidealizado) num meio vazio Deste modo podemos sustentar que o conjunto total da investigaccedilatildeo da lei da queda dos corpos pode ser dividida em duas partes uma observaacutevel di-retamente com auxiacutelios de experimentos e outra natildeo observaacutevel sobre a qual devemos supor o que ocorre no vaacutecuo a partir de um meio natildeo-vazio
Em nosso meio soacute podemos observar que o corpo que parte do repouso aumenta sua velocidade proporcionalmente ao quadrado do tempo e segue uma progressatildeo numeacuterica mas natildeo podemos observar a continuaccedilatildeo deste movimento acelerado ateacute que ele anule a resistecircncia do meio e passe para o movimento uniforme Poreacutem como Galileu afir-ma nos Discursos ldquoonde falta a observaccedilatildeo sensiacutevel devemos completa--la com o raciociacuteniordquo22 na segunda jornada do Diaacutelogo Salviati afirma de maneira similar ldquoSe queriacuteeis produzir uma experiecircncia mais ajustada deveriacuteeis dizer que se observasse se natildeo com os olhos da fronte pelo menos com aquele da mente ()rdquo23 Com isto o experimento do plano inclinado dentro da composiccedilatildeo da lei da queda dos corpos segue certo meacutetodo comparativo entre o material e o imaterial ou seja entre o espaccedilo no qual haacute resistecircncia do meio e o espaccedilo no qual natildeo haacute que eacute o vaacutecuo
Esta nomenclatura devo dizer natildeo pertence a Galileu nem define por completo a funccedilatildeo de seus experimentos ela tem por finalidade re-velar um aspecto deste experimento dentro dos Discursos Eacute bem verdade que natildeo haacute vaacutecuo no experimento do plano inclinado As condiccedilotildees postas para possuir este espaccedilo satildeo dadas por Salviati na primeira jornada quan-do este relata a experiecircncia de pesar o ar em outro meio tal como dentro de um frasco Salviati diz
Salviati ndash Em verdade natildeo sou capaz de ver diferenccedila alguma entre as constituiccedilotildees respectivas do meio envolvido (ambito) e do meio envolvente (ambiente) enquanto numa o meio envolvente (am-biente) natildeo pressiona em nada o meio envolvido (ambito) noutra o meio envolvido natildeo exerce pressatildeo alguma sobre o meio envol-vente essas constituiccedilotildees satildeo a localizaccedilatildeo de algum corpo no vaacute-cuo e a localizaccedilatildeo do ar no frasco onde foi comprimido (GALILEU Opere VIII p 126 DNC p 69 destaque nosso)
22 GALILEU Opere VIII p 104 DNC p 54 23 GALILEU Opere VII p 169 Diaacutelogo p 225
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Galileu consegue produzir o vaacutecuo retirando o ar comprimido den-tro de um frasco24 mas este espaccedilo obviamente natildeo eacute suficiente para deixar corpos caiacuterem com o movimento acelerado ateacute que estes se trans-formem em movimento uniforme e permitir verificar que neste meio todos os corpos caem com igual velocidade Assim a localizaccedilatildeo de um corpo no vaacutecuo dar-se pela natildeo-relaccedilatildeo entre dois meios o meio envol-vido (ambito) e o meio envolvente (ambiente) Enquanto no ar a relaccedilatildeo entre eles eacute dada pela pressatildeo que um exerce sobre o outro eliminando a resistecircncia do ar (o meio envolvente de um corpo envolvido) natildeo ocorre a relaccedilatildeo porque no vaacutecuo um corpo natildeo interage com o seu meio uma vez que este eacute vazio A partir disto verificamos que o corpo que desce pelo plano inclinado estaacute envolvido pelo ar que eacute o meio envolvente Contudo no plano inclinado com o uso de esferas e superfiacutecies lisas observamos que o corpo em queda livre pela vertical ou pela inclinada segue com o movimento acelerado Poreacutem em ambos os casos se o movimento se pro-longasse atraveacutes de um extenso espaccedilo (ou se prolongasse ao infinito) o movimento acelerado passaria a ser uniforme
Salviati ndash Comeccedilo pois pela primeira questatildeo afirmando sem ne-nhuma hesitaccedilatildeo que natildeo existe esfera tatildeo grande nem de mateacuteria tatildeo pesada que a resistecircncia do meio ainda que muito tecircnue natildeo refreie sua aceleraccedilatildeo e que na continuaccedilatildeo do movimento natildeo o reduza ao movimento uniforme o que eacute confirmado muito clara-mente pela proacutepria experiecircncia () Estimo portanto que existe um limite para a aceleraccedilatildeo do moacutevel natural que parte do repouso e que a resistecircncia do meio acaba por reduzir sua velocidade agrave uni-formidade na qual deveraacute manter-se para sempre (GALILEU Opere VIII pp 136-137 DNC pp 77-78 destaque nosso)
Eacute neste limite entre o movimento acelerado de um corpo e o movi-mento uniforme que ocorre a passagem entre um espaccedilo cheio de ar e um espaccedilo vazio de ar em que a resistecircncia do meio eacute anulada ou seja eacute neste momento que a lei da queda dos corpos se concretiza todos os corpos no vaacutecuo caem com a mesma velocidade Galileu natildeo dispotildee deste espaccedilo para verificar seus postulados mas afirma como vimos que onde falta a sensaccedilatildeo devemos completar com o uso da razatildeo Com isso o plano incli-
24 GALILEU Opere VIII p 126 DNC p 69
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nado possui um limite porque nele natildeo podemos observar esta passagem entre os movimentos acelerado e uniforme Devemos contudo imaginar um plano prolongado ao infinito retirados todos os impedimentos e aci-dentes externos e com bolas perfeitamente lisas para observarmos com os olhos da razatildeo esta mudanccedila de movimentos Desta maneira Galileu observa o movimento no plano inclinado empiacuterico e compara com um espaccedilo na qual ele natildeo dispotildee Assim o experimento do plano inclinado permite a Galileu projetar o que ocorre no meio imaterial a partir do meio material na formulaccedilatildeo da lei queda dos corpos servindo-lhe como base comparativa entre os meios distintos
Referecircncias
PrimaacuteriasGALILEI G Edizione Nacionale Le Opere di Galileo Galilei Firenze S A G Barbegravera 1968 20 v
______ Ciecircncia e Feacute Cartas de Galileu sobre a questatildeo religiosa Traduccedilatildeo Carlos Arthur R do Nascimento Rio de Janeiro Editora Nova Stella 1988
______ Diaacutelogo sobre os dois maacuteximos sistemas do mundo ptolomaico e copernica-no Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas Pablo Rubeacuten Mariconda Satildeo Paulo Editora 34 2011
______ Duas Novas Ciecircncias (incluindo Da forccedila de percussatildeo) Introduccedilatildeo de Pa-blo R Mariconda Traduccedilatildeo e notas de Letizio Mariconda e Pablo R Mariconda Nova Stella Editorial Satildeo Paulo SP 1988
______ O Ensaiador Traduccedilatildeo e notas de Helda Barraco Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo 2ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Abril Cultural 1978
SecundaacuteriasARISTOacuteTELES Fiacutesica Trad Lucas Angioni Campinas Editora da Unicamp 2009
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A impossibilidade de operaccedilatildeo intelectual sobre os fantasmas em Durandus de St Pourccedilain In Sent I dist3 q 5 [C]
Maria Clara Pereira e Silva(UNICAMP)1
A histoacuteria da filosofia eacute permeada por diversos debates a respeito da cogniccedilatildeo humana mais precisamente sobre a apreensatildeo intelectual de coisas extramentais Contrariando inuacutemeras teorias que defendiam que a intelecccedilatildeo da coisa material deve ser mediada por uma seacuterie de processos de abstraccedilatildeo Durandus de St Pourccedilain2 no Comentaacuterio agraves Sentenccedilas de Pedro Lombardo I distinccedilatildeo 3 questatildeo 5 [C] afirma que o intelecto agen-te eacute incapaz de operar abstraindo seja sobre os fantasmas seja sobre o intelecto possiacutevel3 Neste estudo me proponho a reconstruir os argumen-tos pelos quais Durandus determina que o intelecto agente eacute incapaz de operar abstraindo sobre os fantasmas
A afirmaccedilatildeo de que o intelecto agente eacute incapaz de operar abstrain-do mina o componente essencial da estrutura de teorias vigentes inclusi-
1 Bolsista CNPq2 Durandus de St Pourccedilain (12705-1334) eacute considerado o primeiro anti-tomista dominicano
pela historiografia Suas teorias foram alvo de grandes criacuteticas entre seus contemporacircneos do-minicanos dentre eles seu mentor Hervaeus Natalis (1260-1323) Estas criacuteticas culminaram na censura de 93 proposiccedilotildees listadas em 1314 por uma comissatildeo dominicana Lista que foi am-pliada para aproximadamente 235 proposiccedilotildees censuradas em 1317 por Pierre de la Palo e Jean de Naple A censura foi aplicada principalmente sobre proposiccedilotildees encontradas nos livros II e IV do In Sent Indicando que ao investigar a teoria da cogniccedilatildeo de Durandus em questotildees dos livros I e II podemos encontrar assim como os proacuteprios opositores de Durandus agrave eacutepoca passagens nas quais ele se diferencia das concepccedilotildees da Ordem Sua produccedilatildeo intelectual natildeo soacute afetou a produccedilatildeo de seus contemporacircneos mas impactou diretamente o cenaacuterio posterior da filosofia medieval O que eacute atestado pelo fato de as teorias de Durandus terem sido objeto de estudo na caacutetedra de nominalismo na Universidade de Salamanca no seacutec XV GILSON [1947] aponta Durandus juntamente com Pedro de Auriol (1280-1322) como predecessor de Guilherme de Ockham (1285-1347) Sobre a teoria cognitiva de Ockham cf GUERIZOLI 2010
3 In Sent d 3 q 5 sect 4 ldquonec in fantasmata nec in intellectum possibilem ltintellectus agensgt habet aliquam actionemrdquo
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 42-52 2017
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A impossibilidade de operaccedilatildeo intelectual sobre os fantasmas em Durandus de St Pourccedilain In Sent I dist3 q 5 [C]
ve no periacuteodo em que Durandus redigia as trecircs versotildees do In Sent4 Entre estas tantas deve-se destacar a teoria da abstraccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino pois em 1309 o Capiacutetulo Geral da ordem dos dominicanos foi reformulado tendo em vista se conformar agrave doutrina tomista
Assim pode-se dizer que era de comum acordo identificar o ho-mem como um composto de corpo material e intelecto imaterial5 Este uacuteltimo por ser imaterial eacute mais nobre que o corpo e os objetos materiais Por isso segundo esta hierarquia o intelecto rege o corpo e o corpo e os objetos materiais natildeo satildeo apreendidos diretamente pelo intelecto pois a um ente imaterial natildeo eacute admitido nem um traccedilo de materialidade
O abismo entre o material e o imaterial representa uma dificuldade consideraacutevel na compreensatildeo de como nosso intelecto poderia perfazer um processo de aquisiccedilatildeo de conhecimento das coisas materiais E da mesma forma a dificuldade se manteacutem diante da necessidade de expli-car como algo menos nobre material poderia afetar o mais nobre imate-rial Pois a defesa de que a percepccedilatildeo se inicia nos oacutergatildeos dos sentidos eacute acompanhada da defesa de que noacutes percebemos imediatamente o objeto externo por meio de uma espeacutecie uma representaccedilatildeo A partir desta um fantasma uma imagem do sensiacutevel eacute formado no oacutergatildeo corporal desig-nado imaginaccedilatildeo E a funccedilatildeo do intelecto agente eacute transpor este limiar do imaterial ao material operando sobre este fantasma abstraindo sua forma ou quididade6
No entanto uma vez que Durandus se posiciona contra a tese de que a cogniccedilatildeo se daacute quando o intelecto eacute afetado pela accedilatildeo de um obje-
4 Durandus defende posiccedilotildees controversas em discussotildees norteadas por noccedilotildees como relaccedilatildeo essecircncia e trindade Por este motivo logo apoacutes a redaccedilatildeo da primeira versatildeo do In Sent [A] (1308) Durandus eacute compelido a escrever uma segunda versatildeo [B] tendo em vista o tiacutetulo de doutor em teologia o qual recebe no mesmo ano de 1312 Apesar de ter tido 235 de suas pro-posiccedilotildees censuradas em 1317 Durandus revisa os livros I e II do In Sent reafirmando suas po-siccedilotildees e constitui uma terceira versatildeo [C] de seu comentaacuterio entre 1318-1325 (cf IRIBARREN 2005 pp 254-274) Nestes livros Durandus trata sobre o processo de cogniccedilatildeo lanccedilando matildeo inclusive do intelecto angeacutelico como estudo de caso para a compreensatildeo do intelecto humano Destaca-se o tratamento das noccedilotildees de relaccedilatildeo universal espeacutecies e pessoas divinas
5 ST Ia q 75 a 4 ldquohic homo non sit anima sed compositum ex anima et corporerdquo6 In Sent I d 36 q 3 lsquoquidditates rerum secundum suas rationes specificas et perfectiones earum
secundum modum specificum quo eis conveniunt non sunt ideo formaliter et proprie sed solum metaphorice nec aliquid formaliter in Deo existens correspondens eis secundum similitudinem Ergo res creatae quantum ad suas quidditates secundum rationem earum specificam hellip non habent essentiam divinam propter idearsquo
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to externo considera que postular um intelecto agente eacute desnecessaacuterio Para ele uma forma nunca poderia ser impressa ou dada ao intelecto pela accedilatildeo de um objeto extramental pois isso o qualificaria como um tipo de causa eficiente de algo muito mais nobre que ele mesmo7 E esta conse-quecircncia eacute inaceitaacutevel para Durandus
Assim Durandus determina que o intelecto agente eacute incapaz de operar abstraindo tanto sobre os fantasmas quanto sobre o intelecto pos-siacutevel Uma vez que o intelecto agente natildeo perfaz nenhuma operaccedilatildeo8 natildeo deve ser admitido como parte da alma humana Ele eacute excessivo e postular sua existecircncia natildeo contribui em nada com seu esquema cognitivo
No que diz respeito a uma possiacutevel accedilatildeo intelectiva sobre os fan-tasmas Durandus defende sua inviabilidade visto que nos fantasmas natildeo haacute nenhuma accedilatildeo Esta demonstraccedilatildeo eacute feita segundo as duas vias por intermeacutedio das quais o intelecto poderia perfazer uma operaccedilatildeo sobre os fantasmas Pois se o intelecto operasse o faria imprimindo algo nos fantasmas ou abstraindo algo deles9
Toda virtude que eacute recebida no corpo nem por si nem segundo es-peacutecie pode ser senatildeo no corpo e puramente corpoacuterea natildeo obstan-te ela seja efetivamente um espiacuterito criado ou incriado Ademais qualquer virtude impressa nos fantasmas pelo intelecto agente eacute no corpo como eacute evidente E ela nem por si mesma nem segundo espeacutecie pode ser senatildeo no corpo visto que no corpo e no espiacuterito natildeo haacute nenhuma propriedade comum de maneira una e uniacutevoca Portanto esta virtude se assim fosse seria meramente corpoacuterea Ser puramente corpoacuterea eacute a razatildeo pela qual tal virtude natildeo pode mover por si o intelecto possiacutevel atraveacutes da fantasia Portanto tal virtude refuta que a razatildeo mova o intelecto possiacutevel seja por si seja por meio de fantasmas10
7 Cf HARTMAN 2012 p 1398 In Sent I d 3 q 5 sect26 ldquoCum ergo intellectus agens non agat in fantasmata aliquid imprimendo
uel aliquid abstrahendo neque secundum rem neque secundum rationem nec agat in intellec-tum possibilem nec sine fantasmate nec cum fantasmaterdquo
9 In Sent I d 3 q 5 sect4 ldquoIdeo si necessarium est ponere intellectum agentem hoc erit propter aliquam operationem eius necessariam ad actum intelligendi operatio autem intellectus agen-tis non potest intelligi nisi in fantasmata uel nisi in intellectum possibilem set nec in fantasmata nec in intellectum possibilem habet aliquam actionem ut declarabitur ergo fictitium est ponere intellectum agentemrdquo
10 In Sent I d 3 q 5 sect5 ldquoomnis uirtus que recipitur in corpore et nec ipsa nec eadem secundum speciem potest esse nisi in corpore est mere corporea non obstante quod ipsa sit effectiue a spi-
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A primeira demonstraccedilatildeo de que o intelecto natildeo imprime nada nos fantasmas se daacute por conta da dicotomia intransponiacutevel entre corpo e inte-lecto O fantasma eacute um que corpoacutereo carrega materialidade em si enquanto o intelecto eacute forma eacute imaterial Se este uacuteltimo se prestasse a uma operaccedilatildeo tendo em vista imprimir algo no fantasma necessariamente teriacuteamos que admitir um certo lsquocontatorsquo Teriacuteamos que admitir materialidade no intelecto agente Levando este raciociacutenio ao limite se o intelecto agente imprimisse alguma virtude no fantasma esta virtude estaria incapacitada de mover o intelecto possiacutevel pois esta virtude recebida no fantasma eacute no corpo con-teacutem materialidade enquanto o intelecto possiacutevel eacute imaterial Portanto de-vemos concluir que o intelecto agente natildeo pode imprimir nenhuma virtude no fantasma que possa mover o intelecto possiacutevel agrave accedilatildeo intelectual
A segunda demonstraccedilatildeo de que o intelecto natildeo imprime nada nos fantasmas eacute a que leva em conta a superioridade do intelecto angeacutelico em detrimento do intelecto agente
Visto que se o anjo natildeo pode imprimir a forma imediata na mateacute-ria corporal eacute evidente que muito menos que isto pode o intelecto agente O fantasma eacute um quecirc corpoacutereo portanto o intelecto agente natildeo pode imprimir nenhuma forma nos fantasmas11
No que diz respeito agrave cogniccedilatildeo das coisas materiais Durandus deixa claro que o abismo entre o material e o imaterial natildeo eacute superado nem mesmo pelo intelecto angeacutelico12 este que eacute muito mais perfeito que o intelecto agente Se o intelecto angeacutelico mais perfeito que o intelecto
ritu creato uel increato set quecunque uirtus impressa fantasmatibus ab intellectu agente est in corpore ut de se patet et ipsa nec eadem secundum speciem potest esse nisi in corpore quia in corpore et spiritu nulla est communis proprietas recipiendi aliquid unum et uniuocum ergo illa uirtus si qua esset mere est corporea set per talem uirtutem non potest mouere fantasia intel-lectum possibilem cum sit pure corporea ea ratione qua non potest secundum se ergo talis uirtus frustra ponitur cum tota ratio ponendi ipsam sit ut ipsa sit fantasmatibus ratio mouendi intellec-tum possibilemrdquo
11 In Sent I d 3 q 5 sect6 ldquo() quia si angelus non potest in materia corporali imprimere formam immediate uideretur quod multo minus hoc posset intellectus agens fantasma autem est quid corporeum ergo intellectus agens nullam formam potest fantasmatibus imprimererdquo
12 IRIBARREN 2008 p 53 ldquoDa maneira que ltDurandusgt vecirc os benefiacutecios da imaterialidade angeacute-lica natildeo satildeo refletidos em sua individualidade mas em seu modo de operaccedilatildeo Ambas as almas angeacutelicas e humanas pertencem agrave mesma espeacutecie de substacircncias incorpoacutereas Mas o que torna a alma angeacutelica melhor do que a humana eacute que a alma do anjo eacute uma forma separada enquanto alma humana eacute meramente uma forma separaacutevel e esta diferenccedila produz um modo de intelec-ccedilatildeo nos anjos que eacute mais perfeito e menos mediado do que a cogniccedilatildeo humanardquo
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humano natildeo possui a virtude de imprimir a forma imediata na mateacuteria a possibilidade do intelecto agente possuir esta virtude deve ser total-mente descartada Assim devemos admitir que o intelecto agente natildeo age imprimindo nada nos fantasmas
Aleacutem disso a investigaccedilatildeo prossegue tendo em vista determinar que o intelecto agente tambeacutem natildeo abstrai nada dos fantasmas nem por uma abstraccedilatildeo real nem por uma abstraccedilatildeo segundo a razatildeo13
Natildeo eacute real visto que tal abstraccedilatildeo real ou seria uma separaccedilatildeo da-quilo que preexiste ao ato nos fantasmas como abstraiacuteda ou sepa-rada uma pedra de um rochedo ou como separado o acidente do sujeito pela corrupccedilatildeo do acidente14
Verificamos que o intelecto agente natildeo abstrai nada dos fantasmas por intermeacutedio de uma abstraccedilatildeo real de primeiro tipo ou seja aquela que separa o acidente do sujeito pela corrupccedilatildeo deste acidente Pois o in-telecto teria que operar de maneira similar agrave separaccedilatildeo de uma pedra de um rochedo pela corrupccedilatildeo do rochedo O intelecto teria que operar se-parando a materialidade preexistente nos fantasmas e acessando apenas a atualidade a forma contida neles Acontece que jaacute estabelecemos que natildeo haacute nenhum ato nos fantasmas o que Durandus reafirma no seacutetimo paragrafo da presente questatildeo
O primeiro natildeo se pode dizer visto que natildeo haacute qualquer ato nos fantasmas que indique neles seu ser para a presenccedila do intelecto agente nem pela corrupccedilatildeo Nem pela translaccedilatildeo para o intelecto possiacutevel como se fosse anterior nos fantasmas e posterior no inte-lecto possiacutevel visto que a forma natildeo migra de sujeito em sujeito15
13 In SentI d 3 q 5 sect7 ldquoSecunda pars probatur scilicet quod intellectus agens non agit in fan-tasmata aliquid abstrahendo uel remouendo quia illa abstractio uel esset realis uel secundum rationemrdquo
14 Idem ldquoNon realis quia talis realis abstractio uel esset realiter separatio alicuius preexistentis actu in fantasmatibus sicut abstrahitur uel separatur lapis ab altero lapide uel sicut separatur accidens a subiecto per corruptionem accidentisrdquo
15 Idem ldquoPrimum non potest dici quia nichil est actu in fantasmatibus quod desinat in eis esse ad presentiam intellectus agentis neque per corruptionem neque per translationem ad intellectum possibilem tanquam prius esset in fantasmatibus et postea in intellectu possibili quia forma non migrat de subiecto in subiectumrdquo
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Natildeo eacute possiacutevel que intelecto agente opere separando a materialidade preexistente da forma atual presente nos fantasmas precisamente porque natildeo haacute atualidade nos fantasmas Assim do mesmo modo nenhuma forma poderia ser comunicada ao intelecto possiacutevel como se a forma migrasse da coisa material para o fantasma e do fantasma para o intelecto possiacutevel
A outra possibilidade levantada por Durandus tem o intuito de le-var a teoria abstrativa ao seu limite Trata-se de uma abstraccedilatildeo real que retira da potecircncia para o ato ao modo da virtude divina
[] Visto que se uma forma for retirada da potecircncia ao ato ela proacutepria seria retirada nela como se no sujeito do qual a potecircncia eacute retirada Portanto se o intelecto agente retirasse alguma forma de potecircncia passiva do fantasma fossem espeacutecies inteligiacuteveis ou qualquer outra forma a proacutepria forma seria nos fantasmas como no sujeito Assim o intelecto agente agiria nos fantasmas imprimin-do algo certamente a forma que retirara retornando ao primeiro membro imediato anterior ao reprovado Portanto tal abstraccedilatildeo natildeo pode ser real16
O objeto da intelecccedilatildeo eacute em ato no mundo Se um processo de abs-traccedilatildeo ocorresse de modo a constituir um fantasma este natildeo seria exata-mente como a coisa extramental O fantasma eacute em potecircncia e se o inte-lecto agente abstraiacutesse do fantasma retirando sua forma da potecircncia para ato teriacuteamos que admitir um intelecto capaz de retirar uma forma que seria no fantasma exatamente como no sujeito extramental O intelecto operaria no fantasma abstraindo a mesma forma que retirara da coisa por meio do proacuteprio fantasma O que claramente natildeo se sustenta
A abstraccedilatildeo segundo a razatildeo tambeacutem eacute negada por Durandus
A accedilatildeo da razatildeo eacute conhecer o objeto cognitivo do intelecto Entretanto o agente natildeo age sobre o fantasma como se conhecendo o conhecido visto que nem o intelecto agente conheceu os fantasmas nem sua accedilatildeo eacute o conhecido Assim se toda cogniccedilatildeo
16 Idem ldquoNec secundum potest dici quia cum aliqua forma educitur de potentia in actum ipsa educta est in illo tanquam in subiecto de cuius potentia educitur Si ergo intellectus agens de potentia passiua fantasmatum educeret aliqua formam siue esset species intelligibilis siue que-cunque alia forma ipsa educta esset in fantasmatibus sicut in subiecto et ita intellectus agens ageret in fantasmata aliquid imprimendo scilicet formam quam educeret et rediret primum membrum immediate prius reprobatum Talis ergo abstractio non potest esse realisrdquo
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intelectual eacute pressuposta segundo seu proacuteprio poder o intelecto agente natildeo age sobre os fantasmas abstraindo segundo a razatildeo Nem de qualquer outro modo age neles nem imprimindo algo nem abstraindo algo Nem segundo a coisa nem segundo a razatildeo17
Este tipo de abstraccedilatildeo eacute descartado pois a accedilatildeo da razatildeo eacute conhe-cer o objeto cognitivo do intelecto isto eacute a forma inteligiacutevel O intelecto agente natildeo tem como objetivo conhecer os fantasmas Em segundo lugar se esta abstraccedilatildeo natildeo tem em vista abstrair do fantasma deve ter em vista a quididade contida nos fantasmas O intelecto deveria operar separando a quididade do fantasma e das condiccedilotildees individuais de modo que assim separada ela se encontrasse segundo si inteligiacutevel E sendo a quididade inteligiacutevel por si natildeo haveria nenhum obstaacuteculo para a apreensatildeo intelec-tual Poreacutem este argumento natildeo apresenta de que modo o intelecto agen-te separaria segundo a razatildeo a quididade das condiccedilotildees individuantes representadas nos fantasmas18 E se tal operaccedilatildeo natildeo pode ser provada natildeo pode ser feita pelo intelecto agente
Assim segundo alguns aquilo que impede a representaccedilatildeo da qui-didade universal eacute a condiccedilatildeo material e individual do fantasma Em consequecircncia o intelecto agente nunca poderia ser movido pela accedilatildeo dos fantasmas nem pela abstraccedilatildeo segundo a razatildeo como afir-mam Isto porque os fantasmas nunca poderiam representar a qui-didade universal por tal abstraccedilatildeo mas sempre sob as condiccedilotildees singulares Segundo a opiniatildeo DESTES a quididade do intelecto natildeo eacute representada a natildeo ser pelos fantasmas visto que segundo eles as espeacutecies abstraiacutedas pelos fantasmas natildeo seriam representaccedilotildees da quididade Portanto tal abstraccedilatildeo natildeo satisfaz quanto agrave repre-sentaccedilatildeo da quididade universal19
17 In Sent I d 3 q 5 sect8 ldquo() omnis actio rationis est cognoscentis circa cognitum obiectiue inte-llectus set agens non agit circa fantasmata sicut cognoscens circa cognita quia nec intellectus agens fantasmata cognoscit nec sua actio est cognitio imo presupponitur omni cognitioni intel-lectuali secundum ponentes ipsam ergo sua actio circa fantasmata non est abstractio secundum rationem Nullo ergo modo agit in ea nec aliquid imprimendo nec aliquid abstrahendo neque secundum rem neque secundum rationemrdquo
18 In Sent I d 3 q 5 sect11 ldquoNullo modo ostendunt quomodo intellectus agens separaret secundum ratio-nem quidditatem a conditionibus indiuiduantibus sub quibus representatur in fantasmatibusrdquo
19 In Sent I d 3 q 5 sect12 ldquoQuia stante reali impedimento alicuius actionis impossibile est sequi actionem ut patet in trabe impediente descensum lapidis et | tenebris impedientibus uisum (quandiu enim trabs manet sub lapide et tenebre sunt in medio nec lapis potest descendere nec
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A impossibilidade de operaccedilatildeo intelectual sobre os fantasmas em Durandus de St Pourccedilain In Sent I dist3 q 5 [C]
Este argumento possui muitos complicadores A condiccedilatildeo material do fantasma impede que ele mova o intelecto agente imaterial e que re-presente uma quididade universal Por sua proacutepria constituiccedilatildeo material ele nunca poderia representar algo senatildeo sob condiccedilotildees materiais E mesmo que fosse capaz de representar algo este argumento natildeo fornece nenhuma explicaccedilatildeo sobre como o intelecto operaria separando a quidi-dade das condiccedilotildees materiais e individuais Portanto o intelecto natildeo age sobre a quididade e nem sobre os fantasmas
O estabelecimento da negaccedilatildeo de uma abstraccedilatildeo segundo a razatildeo pois ldquoset agens non agit circa fantasmata sicut cognoscens circa cognitardquo eacute fundamental para que Durandus sustente no final da presente questatildeo que
O universal eacute esta razatildeo ou intenccedilatildeo universal ou coisa sob a in-tenccedilatildeo de um universal natildeo eacute o primeiro objeto do intelecto nem preexiste agrave intelecccedilatildeo mas eacute aquilo que eacute formado pela operaccedilatildeo do inteligente20
O universal21 eacute entendido por Durandus como produto da operaccedilatildeo intelectual Ele natildeo se encontra e pode ser abstraiacutedo das coisas nem eacute conhecido por intermeacutedio de um tipo refinado de reminiscecircncia O tex-to latino eacute claro no uso do termo ldquoformatumrdquo para designar a operaccedilatildeo que tem como resultado o universal Eacute tambeacutem por este motivo que natildeo e aceitaacutevel dizer que o fantasma eacute responsaacutevel por representar ao intelecto o fruto de sua proacutepria operaccedilatildeo intelectual
oculus uidere) set illud quod impedit representationem quidditatis uniuersaliter est materialis et indiuidualis conditio fantasmatum ut IPSIMET dicunt Cum ergo illud nunquam amoueatur a fantasmatatibus per quamcunque actionem intellectus agentis nec per illam abstractionem rationis quam ponunt sequitur quod fantasmata per talem abstractionem nunquam poterunt representare quidditatem uniuersalem set semper sub conditionibus singularibus Aliter autem non representaretur quidditas intellectui nisi per fantasmata secundum ISTOS quia non ponunt quod a fantasmatibus abstrahatur aliqua species que sit representatiua quidditatis Ergo talis abstractio non sufficit ad representandum quidditatem uniuersalemrdquo
20 In Sent I d3 q5 sect28 ldquoUniversale id est ratio vel intentio universalitas aut res sub intentione universalitatis non est primum obiectum intellectus nec praeexistit intellectioni sed aliu forma-tum per operationem intelligendi()
21 IRIBARREN 2008 p 53 ldquoSublinhando esta afirmaccedilatildeo estaacute a maneira nominalista de Duranddus compreender os universais pela qual o universal eacute formalmente o resultado de um ato do intelec-to nada real eacute um universal e o que quer que exista na realidade extramental eacute de fato singularrdquo
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Ainda assim superados todos estes argumentos Durandus apre-senta um uacuteltimo que poderia ser usado contra ele em defesa de que po-deria haver ainda um terceiro modo de operaccedilatildeo intelectual que natildeo a abstraccedilatildeo ou impressatildeo de algo ainda natildeo examinada
ALGUEacuteM diria entretanto que esta divisatildeo seria insuficiente isto porque o intelecto agente age nos fantasmas dando a eles a virtu-de de mover o intelecto possiacutevel certamente sem que imprimis-sem ou abstraiacutessem algo dele mas apenas assistindo De similar visto que a luz daacute agrave cor a virtude de mover a visatildeo e entretanto natildeo imprime nada na cor nem abstrai nada da cor mas tanto as-siste e do mesmo modo pode ser dito do intelecto agente e dos fantasmas como parece22
Seria possiacutevel que o intelecto agente operasse nos fantasmas sem imprimir ou abstrair algo mas apenas assistindo Segundo Durandus o ato de dar uma virtude natildeo dando nada certamente parece implicar em uma contradiccedilatildeo E o exemplo da luz apenas causa confusatildeo Pois natildeo eacute a luz que sem nada acrescentar ou subtrair da cor daacute agrave cor agrave virtude de mover a visatildeo mas o contraacuterio Eacute a cor que daacute agrave luz a virtude de mover a visatildeo uma vez que eacute ela a uacutenica que possui esta virtude nem o meio nem o oacutergatildeo a possuem Assim se a cor natildeo tivesse a capacidade de dar agrave luz a virtude de mover o meio e o oacutergatildeo da visatildeo nenhum destes dois receberia as accedilotildees da cor Natildeo eacute possiacutevel dizer que a cor operou apenas assistindo sem nada retirar ou dar agrave luz A cor de fato deu a virtude de mover a vi-satildeo agrave luz Assim natildeo eacute aceitaacutevel dizer que o intelecto agente opere sobre os fantasmas sem nada acrescentar ou abstrair deles Assistir significaria retirar algo sem nada retirar Ou acrescentar algo sem nada acrescentar Esta noccedilatildeo de assistir natildeo eacute nada menos que vazia e falsa23
22 In Sent I d 3 q 5 sect14 ldquoSet diceret ALIQUIS quod hec diuisio sit insufficiensquia intellectus agens agit in fantasmata dando eis uirtutem mouendi intellectum possibilem non quidem ali-quid imprimendo nec abstrahendo set solum assistendo et ponitur simile quia lumen dat co-lori uirtutem mouendi uisum et tamen nichil imprimit colori nec a colore aliquid abstrahit set tantum assistit et eodem modo potest esse circa intellectum agentem et fantasmata ut uideturrdquo
23 In Sent I d 3 q 5 sect15 ldquoEt ideo non est mirum si ex falso assumpto conclusum est aliud falsum Non ergo oportet ponere intellectum agentem ex actione eius circa fantasmata quia nulla est ut probatum est Et hec est prima pars principais deductionisrdquo
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A impossibilidade de operaccedilatildeo intelectual sobre os fantasmas em Durandus de St Pourccedilain In Sent I dist3 q 5 [C]
Assim portanto Durandus mina todas as possibilidades de ope-raccedilatildeo do intelecto agente sobre os fantasmas O intelecto natildeo age nem imprimindo algo nem abstraindo algo dos fantasmas Nem de maneira real nem segundo a razatildeo de nenhum modo Por esta via a operaccedilatildeo do intelecto agente eacute completamente impossibilitada Nesta medida Duran-dus abre caminho para uma teoria da cogniccedilatildeo nova que natildeo se baseia na abstraccedilatildeo pois natildeo considera que a coisa material possa causar a opera-ccedilatildeo intelectual do intelecto imaterial
Referecircncias
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A criacutetica de Agostinho agrave cosmologia de Varratildeo na De Civitate Dei
Evaniel Braacutes dos Santos(UNICAMP)
Introduccedilatildeo
O proposito deste estudo eacute apresentar a criacutetica estabelecida por Agostinho (354-430) agrave cosmologia de Varratildeo (116-27 aC)1 O quesito central abordado aqui repousa na noccedilatildeo de physiologia empregada por Agostinho para caracterizar a cosmologia de Varratildeo Embora a investiga-ccedilatildeo da physiologia de Varratildeo seja propriamente empreendida no interior das paredes da escola (facilius intra parietes in schola) ela natildeo pertence agrave cidade devido ao caraacuteter geral da investigaccedilatildeo a physiologia para Varratildeo se adequa ao mundo ao todo Agostinho entretanto criacutetica a concepccedilatildeo cosmoloacutegica de Varratildeo sobretudo porque este natildeo postula qualquer ves-tiacutegio de incorporeidade quanto agrave natureza do mundo e sua origem bem como no que tange agrave operaccedilatildeo imanente no mundo
A cosmologia de Varratildeo segundo Agostinho eacute negativamente res-trita aos limites do mundo (si quidem ille totam theologian naturalem us-que ad mundum istum vel animam eius extendere potuit) este que subsu-me tudo incluiacutedo os deuses Assim sendo Agostinho entende que Varratildeo concebe o mundo como um todo composto de duas partes maiores o ceacuteu e a terra estes por sua vez divididos em partes menores Tanto a totali-dade do mundo quanto cada uma de suas partes eacute compreendida como uniatildeo de corpo e alma
A despeito da complexidade da noccedilatildeo de alma em outros contex-tos entendo que no contexto da cosmologia tal noccedilatildeo eacute compreendida por Varratildeo na leitura de Agostinho como um constituinte corpoacutereo sutil
1 Nas partes centrais da criacutetica agostiniana estarei retomando com modificaccedilotildees algumas ideias presentes em meu estudo precedente Ver SANTOS (2017) Ademais nas partes sobre a leitura que Tomaacutes de Aquino empreendeu sobre a cosmologia agostiniana tambeacutem retomo com modi-ficaccedilotildees algumas ideias presentes em SANTOS (2014 2015 2016)
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 53-68 2017
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imperceptiacutevel nas palavras do proacuteprio Agostinho tendo Varratildeo como referecircncia ldquovi quadam invisibili ac praepotentirdquo Interessa-me aqui sobre-maneira a noccedilatildeo de vis entendida como a alma da totalidade do mundo
Antes de apresentar a criacutetica que Agostinho estabelece a respeito da cosmologia de Varratildeo eacute interessante mencionar que o bispo de Hipona natildeo eacute lido pelos medievais apenas nos domiacutenios da teologia metafiacutesica e psicologia Com efeito eacute possiacutevel encontrar nos autores medievais dis-cussotildees agostinianas propriamente cosmoloacutegicas uma constataccedilatildeo que torna Agostinho ainda mais interessante quando se discute problemas de filosofia da natureza Dentre outros autores Tomaacutes de Aquino (1225-1274) em vaacuterias passagens de suas obras apresenta discussotildees agostinia-nas sobre a cosmologia Aqui entretanto restrinjo a discussatildeo pois fo-carei a atenccedilatildeo na tese agostiniana retomada por Tomaacutes segundo a qual existe um ceacuteu aquoso (ou ceacuteu de aacutegua)
O ceacuteu aquoso Tomaacutes de Aquino inteacuterprete da cosmologia agostiniana
Tomaacutes ao inserir-se como exegeta do Genesis 1 sustenta que haacute aacutegua na parte superior do universo Eacute pois o ceacuteu aquoso ou cristalino a nona esfera (nona sphaera) acima da Lua um ceacuteu uniforme e moacutevel (uni-forme et mobile)2 e ademais desconhecido pela concepccedilatildeo de mundo dos tempos de Platatildeo e Aristoacuteteles mas totalmente conhecida por Agostinho Nesse contexto preciso mencionar que natildeo importa para o historiador da filosofia medieval o fato do ceacuteu aquoso assim como do ceacuteu empiacutereo ter a existecircncia garantida pela sacrae Scriptura e pelos expositores sacrae Scripturae3 O que de fato importa para o historiador da filosofia medieval eacute que tais ceacuteus estatildeo integrados num assentimento que eu diria ldquonaturalrdquo4 da concepccedilatildeo medieval de mundo assim como a esfera do fogo que
2 Cf In Sent II d 14 q 1 a 4 resp3 Tomaacutes trata do ceacuteu aquoso nos seguintes textos In Sent II d 14 q 1 a 1 e a 4 ST Ia q 68 aa
2-4 QDP q 4 a 1 ad54 ldquoAd primum ergo dicendum quod in hoc nihil auctoritati Scripturae derogatur si diversimode
exponatur dummodo hoc firmiter teneatur quod sacra Scriptura nihil falsum contineatrdquo (In Sent II d 14 q 1 a 1 ad1 Grifo meu)
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embora natildeo seja em si mesma experimentada eacute assumida naturalmente como existente pelos pensadores antigos e medievais5
No intuito de afirmar a existecircncia do ceacuteu aquoso Tomaacutes precisa enfrentar uma seacuteria objeccedilatildeo presente na ST Ia q 68 a 2 arg 3 A obje-ccedilatildeo toca num quesito sobre o qual Tomaacutes possui muito apreccedilo a relaccedilatildeo entre a causalidade divina e a natureza Na objeccedilatildeo afirma-se que a aacutegua enquanto elemento eacute ordenada (ordinatur) agrave geraccedilatildeo do misto (mixti) e como o lugar (locus) do misto eacute sobre a terra (supra terram) natildeo haveria razatildeo para haver aacutegua acima da oitava esfera ou seja eacute supeacuterfluo (frus-tra) Entretanto a objeccedilatildeo continua para que natildeo haja a necessidade de se afirmar que a causalidade divina eacute supeacuterflua (nihil autem in operibus Dei est frustra) eacute preciso negar que existe aacutegua acima da oitava esfera6 Assim sendo a objeccedilatildeo ao identificar o elemento aacutegua com o ceacuteu aquoso admite o caraacuteter supeacuterfluo da causalidade divina Nessa medida Tomaacutes precisa refutar a identificaccedilatildeo e o caraacuteter supeacuterfluo
A segunda opiniatildeo (secundam opinionem) presente na ST Ia q 68 a 2 ad3 sintetiza de modo razoaacutevel a refutaccedilatildeo de Tomaacutes Conforme a ST Ia q 68 a 2 resp a segunda opiniatildeo sustenta que o ceacuteu sideacuterio ou seja o conjunto dos corpos celestes desde a Lua ateacute a oitava esfera a esfera das estrelas natildeo tem a natureza dos quatro elementos Nessa opiniatildeo (opi-nionem) a nona esfera eacute designada de ldquoaquosardquo (aqueum) devido agrave diafa-neidade (diaphaneitatem)7 Nessa medida a segunda opiniatildeo serve como arguiccedilatildeo contra a identificaccedilatildeo entre o elemento aacutegua e ldquoas aacuteguasrdquo acima da oitava esfera afirmada na objeccedilatildeo (ST Ia q 68 a 2 arg 3) Todavia o caraacuteter supeacuterfluo da causalidade divina natildeo eacute explicitamente contempla-do na segunda opiniatildeo (ST Ia q 68 a 2 resp) ou seja deve haver alguma
5 ldquo[] eo quod ignis in sua sphaera non lucet ut a philosophis probatum est [] Similiter et ignis elementum secundum quod in sphaera sua est non sensu sed ratione deprehenditurrdquo (In Sent II d 14 q 1 a 2 ad2)
6 ldquoPraeterea aqua cum sit elementum ordinatur ad generationem corporis mixti sicut imperfec-tum ordinatur ad perfectum Sed supra firmamentum non est locus mixtionis sed supra terram Ergo frustra aqua esset supra firmamentum Nihil autem in operibus Dei est frustra Ergo aquae non sunt supra firmamentumrdquo (ST Ia q 68 a 2 arg 3)
7 A segunda opiniatildeo afirma ldquoSi autem per firmamentum intelligatur caelum sidereum quod non sit de natura quatuor elementorum tunc et aquae illae quae sunt supra firmamentum non erunt de natura elementarium aquarum sed sicut secundum Strabum dicitur caelum Empyreum idest igneum propter solum splendorem ita dicetur aliud caelum aqueum propter solam dia-phaneitatem quod est supra caelum sidereumrdquo (ST Ia q 68 a 2 resp)
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razatildeo que justifica a existecircncia do ceacuteu aquoso embora ele natildeo seja da natureza dos elementos
A despeito da objeccedilatildeo se referir explicitamente agrave causalidade divi-na (ST Ia q 68 a 2 arg 3) Tomaacutes natildeo a menciona explicitamente na ST Ia q 68 a 2 ad3 Ao que tudo indica a afirmaccedilatildeo da ldquooperaccedilatildeordquo do ceacuteu aquoso que ldquocarregardquo (revolvit) consigo as demais esferas abaixo dela jaacute refuta o caraacuteter supeacuterfluo da causalidade divina Tomaacutes afirma que a se-gunda opiniatildeo (ST Ia q 68 a 2 ad3) sustenta natildeo soacute que a natureza do ceacuteu aquoso natildeo se identifica com a natureza dos elementos mas tambeacutem que para alguns (quidam) que sustentam a segunda opiniatildeo o ceacuteu aquoso eacute o primeiro moacutevel (primum mobile) cujo movimento eacute o diurno Pelo mo-vimento diurno o ceacuteu aquoso revolvit todo o ceacuteu sideacuterio e por esta razatildeo ele confere a continuidade da geraccedilatildeo (continuitatem generationis) na re-giatildeo sublunar Nessa medida o ceacuteu aquoso conforme os anocircnimos (qui-dam) eacute a ldquocausardquo natural mais universal (revolvit) pois eacute pelo ceacuteu aquoso que o ceacuteu sideacuterio realiza a diversidade (diversitatem) da geraccedilatildeo e da cor-rupccedilatildeo pelo movimento proacuteprio Tomaacutes natildeo esclarece o viacutenculo que os anocircnimos (quidam) sustentam entre o ceacuteu aquoso e o ceacuteu sideacuterio sobre-tudo quanto ao verbo revolvit Eacute possiacutevel que para os anocircnimos segundo Tomaacutes o verbo revolvit denote que o ceacuteu aquoso de algum modo eacute causa do movimento zodiacal8 do ceacuteu sideacuterio Entretanto pode-se questionar se nesse contexto a causalidade (revolvit) estaacute restrita agrave locomoccedilatildeo ou tambeacutem pode dizer respeito agrave mudanccedila qualitativa Embora natildeo seja a posiccedilatildeo assumida por Tomaacutes natildeo haacute impedimento que vete uma inter-pretaccedilatildeo que sustente haver complementaridade no contexto restrito de ST Ia q 68 a 2 ad3 entre a opiniatildeo dos anocircnimos (quidam) e a de Ba-siacutelio esta que eacute ratificada por Agostinho (o ponto central estudado aqui) Nessa complementaridade o ceacuteu aquoso eacute a causa do movimento zodiacal do ceacuteu sideacuterio (quidam) por um lado e por outro eacute causa de frieza nos outros corpos celestes estes que seriam caacutelidos (Baacutesilio) Nessa hipoacutetese a diferenccedila de natureza (de natura) afirmada pela segunda opiniatildeo na ST Ia q 68 a 2 resp toma como referecircncia apenas as noccedilotildees de substacircncia e quantidade ou seja que a diferenccedila entre o ceacuteu aquoso e o elemento
8 O movimento zodiacal eacute semelhante ao movimento diurno ou seja diz respeito agrave volta que determinado corpos celeste daacute ao redor da Terra Poreacutem o movimento diurno ocorre de oriente a ocidente e o zodiacal de ocidente a oriente
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aacutegua estaacute restrita agrave negaccedilatildeo de mudanccedila substancial e quantitativa no ceacuteu aquoso Assim sendo o ceacuteu aquoso natildeo somente revolvit as demais esfe-ras mas tambeacutem causa frieza nos corpos celestes abaixo do ceacuteu aquoso donde decorre que o ceacuteu sideacuterio eacute mutaacutevel no acircmbito da qualidade
Tomaacutes recusa a hipoacutetese de haver mudanccedila qualitativa no ceacuteu si-deacuterio um procedimento que pode estar vinculado com a concepccedilatildeo de mundo de Aristoacuteteles Entretanto na ST Ia q 68 a 2 ad1 Tomaacutes afirma que eacute preciso se diferenciar de Aristoacuteteles na ldquoordem dos elementosrdquo (or-dinem in elementis) para que seja possiacutevel sustentar a existecircncia do ceacuteu aquoso um procedimento aliaacutes que o aproxima de Agostinho Antes de apresentar a passagem entretanto eacute preciso natildeo soacute mencionar a objeccedilatildeo que Tomaacutes visa solucionar (solutio) mas tambeacutem a distinccedilatildeo entre dois domiacutenios de discursos
A objeccedilatildeo que Tomaacutes visa fornecer uma soluccedilatildeo (solutio) foca-se na noccedilatildeo de gravidade (gravis) Pela objeccedilatildeo afirma-se que sendo a aacutegua naturalmente grave (naturaliter gravis) seu lugar proacuteprio (locus proprius) natildeo eacute acima (sursum) mas abaixo (deorsum) logo natildeo haacute aacutegua acima do ceacuteu sideacuterio9 Eacute interessante notar que Tomaacutes na ST Ia q 68 a 2 ad1 guiado por Agostinho eacute bastante enfaacutetico em separar os dois domiacutenios de discussatildeo sobre ldquoa instituiccedilatildeo da natureza das coisasrdquo (instituit naturas rerum) Tais domiacutenios podem ser designados de ldquoespeculativordquo e ldquofan-taacutesticordquo O primeiro centra-se numa investigaccedilatildeo argumentativa bastante restrita ou seja que busca nas proacuteprias coisas as ldquorazotildeesrdquo ou o seu ldquoca-raacuteter cientiacuteficordquo sem apelo ao que seria ldquonatildeo-naturalrdquo O segundo por seu turno busca o que haacute de ldquoextraordinaacuteriordquo ou de certo modo ldquonatildeo-naturalrdquo nas coisas o que pode ser evidenciado pelo mau uso da noccedilatildeo de milagre (miraculum) este que em si mesmo possui sua dignidade mas que natildeo pode intervir no domiacutenio ldquoespeculativordquo Eacute possiacutevel ainda que as explica-ccedilotildees de tipo fantasiosa possuam ldquograusrdquo cujo aacutepice eacute a irracionalidade
Na QDP q 4 a 1 ad5 Tomaacutes eacute bastante rigoroso em se opor a uma explicaccedilatildeo de tipo fantasiosa ldquoproacuteximardquo da irracionalidade Nela se afir-maria que na instituiccedilatildeo do universo certas aacuteguas geradas sobre a ter-ra ascenderam ateacute a nona esfera e laacute permanecem ldquocongeladasrdquo devido agrave intervenccedilatildeo divina Nesse caso o ceacuteu aquoso eacute grave mas natildeo ldquodescerdquo
9 ldquoAqua enim est naturaliter gravis Locus autem proprius gravis non est esse sursum sed solum deorsum Ergo aquae non sunt supra firmamentumrdquo (ST Ia q 68 a 2 arg 1)
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por milagre Tomaacutes afirma que essa explicaccedilatildeo eacute inaceitaacutevel pois soacute ldquo[] puerilis dementiae et insipientis mentis est talem de caelestibus capere opinionemrdquo10 Nessa medida eacute preciso buscar as reais razotildees que justifi-cam a existecircncia e a natureza do ceacuteu aquoso o que se faz pela investigaccedilatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquoaacuteguardquo atribuiacuteda a ele bem como pela investigaccedilatildeo da semelhanccedila e da diferenccedila entre ele e o elemento aacutegua
A noccedilatildeo de ldquoaacuteguardquo empregada na designaccedilatildeo da nona sphaera deno-ta numa primeira leitura a transparecircncia ou diafaneidade dessa esfera11 Haacute ainda uma segunda designaccedilatildeo da nona sphaera a saber ldquocristalinardquo (crystallinum) designaccedilatildeo esta que natildeo diz respeito ao ldquocongelamentordquo do discurso fantaacutestico mas tatildeo somente agrave solidez da nona sphaera12 Uma solidez (soliditatem) aliaacutes que ao ser comparada agrave solidez glacial natildeo diz respeito agrave fluidez do elemento aacutegua13 Ademais diferentemente do ele-mento aacutegua por si mesmo passiacutevel de mudanccedila substancial o ceacuteu aquo-so natildeo sofre mudanccedila substancial Assim sendo o ceacuteu aquoso possui as seguintes caracteriacutesticas ingerado incorruptiacutevel transparente e solidez glacial A aacutegua elementar por outro lado possui estas caracteriacutesticas ge-raacutevel corruptiacutevel fluiacuteda transparente
A uacutenica semelhanccedila entre o ceacuteu aquoso e o elemento aacutegua numa primeira leitura eacute a transparecircncia Se a semelhanccedila estaacute restrita somente na transparecircncia Tomaacutes poderia no domiacutenio da especulaccedilatildeo eliminar o termo ldquoaacuteguardquo da designaccedilatildeo da nona sphaera pois o ar eacute mais transparen-te do que a aacutegua Nesse caso poderia ser empregado a noccedilatildeo de ldquoarrdquo natildeo a noccedilatildeo de ldquoaacuteguardquo pois aquele evidenciaria ainda mais a transparecircncia da nona sphaera Entretanto Tomaacutes no domiacutenio da especulaccedilatildeo manteacutem o termo ldquoaacuteguardquo na designaccedilatildeo da nona sphaera
10 ldquo[] uma crianccedila tola ou um imbecil poderiam imaginar tais coisas sobre os ceacuteusrdquo11 ldquoEt ideo sicut caelum Empyreum dicitur quod est simile igni in hoc quod est lucidum totum
ita etiam caelum chrystallinum vel aqueum dicitur inquantum convenit cum aqua in hoc quod est diaphanum sive quod sit aliqua pars ejus lucens (sicut est in caelo sidereo cujus quaedam partes lucent scilicet stellae) et aliqua pars diafanardquo (In Sent II d 14 q 1 a 1 resp)
12 ldquoEt has aquas quidam vocant caelum crystallinum non quia fit de aqua congelata in modum crystalli quia ut dicit Basilius in Hexameron puerilis dementiae et insipientis mentis est talem de caelestibus capere opinionem sed propter illius caeli soliditatem sicut et de omnibus caelis dicitur Iob XXXVII 18 quod solidissimi quasi aere fusi suntrdquo (QDP q 4 a 1 ad5)
13 ldquo[] quae sunt supra caelos non sunt fluidae sed quasi glaciali soliditate circa caelum firmatae Unde et a quibusdam dicuntur caelum crystallinumrdquo (ST Ia q 68 a 2 ad2)
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No que toca agrave noccedilatildeo de ldquoqualidaderdquo Tomaacutes ao se referir a Aristoacute-teles escreve ldquo[calida et frigida] sunt primae tangibiles qualitates ut dicitur in II de Generatrdquo14 No restante da passagem Tomaacutes afirma que Aristoacuteteles estabelece em sua fiacutesica que a frieza eacute uma das qualidades contraacuterias presentes nos elementos no caso aqui ela eacute contraacuteria agrave quen-tura do fogo logo nenhum corpo celeste pode ser frio pois sua mateacuteria eacute o eacuteter no qual natildeo cabe contraacuterios Nessa medida a noccedilatildeo de eacuteter de Aris-toacuteteles eacute um seacuterio impedimento para a afirmaccedilatildeo do ceacuteu aquoso Todavia eacute preciso notar que mesmo considerando seriamente a concepccedilatildeo de eacuteter de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de quinta esssentia de Tomaacutes possui nuanccedilas proacute-prias devido agrave sua metafiacutesica Pela metafiacutesica Tomaacutes entende que quanto mais superior o corpo eacute menos material e mais formal pois recebe mais esse ldquo[] in universo ordinantur corpora super nos secundum quod mi-nus sunt materialiardquo15 e noutra passagem a pena de Tomaacutes registra ldquo[] corpus tanto debeat esse superius quanto formalius []rdquo16
Natildeo podem passar despercebidas as implicaccedilotildees cosmoloacutegicas que se seguem desses dois fragmentos Mesmo sendo constituiacutedo pela quinta essentia quanto maior a esfera do corpo celeste menos quinta essentia este possui O menor grau de materialidade encontra-se no ceacuteu empiacutereo Ademais pelos dois fragmentos pode-se inferir que para Tomaacutes numa leitura metafiacutesica da mateacuteria presente no universum corporeum e numa escala ascendente haacute ldquopropriedadesrdquo mais sutis constituiacutedo a mateacuteria de cada esfera ldquo[] quod per aquas intelligitur prima materia de cujus sub-tiliori parte factae sunt aquae quae super caelos suntrdquo17 Portanto mesmo na regiatildeo superior do universo (universo ordinantur) ou seja da esfera da Lua para cima o corpo mais elevado eacute menos material (minus materialia) e mais formal (formalius) Eacute nesse contexto que deve ser investigado em que consiste a diferenccedila que o proacuteprio Tomaacutes afirma na ST Ia q 68 a 2 ad1 entre ele e Aristoacuteteles Com efeito no intuito de sustentar que existe o ceacuteu aquoso Tomaacutes eacute conduzido a afirmar explicitamente que eacute neces-
14 ldquo[o quente e o frio] satildeo as primeiras qualidades tangiacuteveis como eacute dito no Sobre a Geraccedilatildeo IIrdquo (In De caelo II 13 n 13)
15 ldquo[] no universo os corpos que estatildeo sobre noacutes estatildeo ordenados na medida em que satildeo menos materiaisrdquo (In Sent II d 14 q 1 a 1 ad2)
16 ldquo[] um corpo deve ser mais superior na medida em que eacute mais formal []rdquo (QDP q 4 a 1 ad5) 17 (In Sent IId 14 q 1 a 1 resp) ldquo[] por aacutegua havia entendido [ie Pedro Lombardo] a mateacuteria-
-prima de cuja parte suacutetil foi feita a aacutegua situada sobre os ceacuteusrdquo
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saacuterio estabelecer outra ordem nos elementos (ordinem in elementis) Por que eacute necessaacuterio estabelecer outra ordem nos elementos para se afirmar o ceacuteu aquoso ou seja por que a ordem estabelecida por Aristoacuteteles natildeo poderia ser aplicada juntamente com a afirmaccedilatildeo do ceacuteu aquoso Aqui com efeito a concepccedilatildeo de cosmo de Aristoacuteteles e a de Agostinho encon-tra-se em discussatildeo sendo muito diferentes
Tomaacutes na ST Ia q 68 a 2 ad1 foca-se na ldquoorganizaccedilatildeordquo dos elemen-tos tal como Aristoacuteteles apresenta Ao se referir a Aristoacuteteles Tomaacutes na ST Ia q 68 a 2 ad1 retoma a segunda opiniatildeo apresentada na ST Ia q 68 a 2 resp qual seja aquela que sustenta que a natureza (natura) do ceacuteu aquoso natildeo se identifica com a natureza dos elementos Nessa medida a nona esfera eacute designada de ldquoaquosardquo (aqueum) devido agrave diafaneidade (dia-phaneitatem) Ademais para alguns (quidam) o ceacuteu aquoso eacute o primeiro moacutevel (primum mobile) cujo movimento eacute o diurno pelo qual ele confere a continuidade da geraccedilatildeo (continuitatem generationis) na regiatildeo sublunar
Na ST Ia q 68 a 2 ad1 Tomaacutes natildeo estaacute simplesmente repetin-do a segunda opiniatildeo jaacute apresentada na ST Ia q 68 a 2 resp mas estaacute complementando-a uma vez que introduz a discussatildeo com Aristoacuteteles o que natildeo eacute feito na ST Ia q 68 a 2 resp Conforme jaacute apresentado a ob-jeccedilatildeo que Tomaacutes visa fornecer uma soluccedilatildeo (solutio) afirma que sendo a aacutegua naturalmente grave (naturaliter gravis) seu lugar proacuteprio (locus proprius) natildeo eacute acima (sursum) mas abaixo (deorsum) logo natildeo haacute aacutegua acima do ceacuteu sideacuterio Em resposta Tomaacutes escreve
Parece a alguns que se resolveria essa objeccedilatildeo pelo fato de as aacuteguas embora naturalmente graves estarem contudo contidas sobre os ceacuteus por virtude divina ndash Mas essa soluccedilatildeo Agostinho a exclui dizendo que agora nos importa indagar como Deus instituiu as naturezas das coisas e natildeo o que nelas quis operar para manifes-taccedilatildeo do seu poder ndash Por onde deve-se dizer de outro modo que a soluccedilatildeo resulta do que acabamos de dizer segundo as duas uacuteltimas opiniotildees sobre as aacuteguas e o firmamento Assim conforme a primei-ra opiniatildeo eacute necessaacuterio estabelecer para os elementos uma ordem diferente daquela de Aristoacuteteles de modo que certas aacuteguas espes-sas estejam ao redor da terra e outras tecircnues ao redor do ceacuteu e que aquelas estejam para o ceacuteu como estas para a terra18
18 (ST Ia q 68 a 2 ad1 Trad Alexandre Correcirca Aqui com modificaccedilotildees) ldquoAd primum ergo dicen-dum quod quibusdam videtur ratio illa solvenda per hoc quod aquae quamvis sint naturaliter
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A criacutetica de Agostinho agrave cosmologia de Varratildeo na De Civitate Dei
Pelo que se nota Tomaacutes repudia uma soluccedilatildeo (solutionem) de tipo fantasiosa sobre o ceacuteu aquoso Isso evidencia a seriedade da postura de Tomaacutes ao tratar da objeccedilatildeo Conforme o autor a soluccedilatildeo (solutio) adveacutem das duas uacuteltimas opiniotildees apresentadas na ST Ia q 68 a 2 resp Na discussatildeo com Aristoacuteteles Tomaacutes se refere agrave primeira opiniatildeo das duas uacuteltimas ou seja a segunda opiniatildeo Tomaacutes afirma que conforme esta opiniatildeo eacute necessaacuterio estabelecer outra ordem nos elementos diferente daquela estabelecida por Aristoacuteteles ldquoSecundum autem primam opinio-nem oportet ponere alium ordinem in elementis quam Aristoteles ponatrdquo Eacute importante notar de antematildeo que Tomaacutes natildeo se refere precisamente agrave posiccedilatildeo (situs) mas a ordem (ordinem) Estabelecer outra ordem nos ele-mentos significa mudar suas posiccedilotildees no universo tal como Aristoacuteteles estabelece por exemplo que o ar esteja acima do fogo e natildeo o fogo acima do ar Esse natildeo parece ser o caso
Ainda eacute muito importante recordar que a necessidade (oported) afirmada por Tomaacutes tem como propoacutesito sustentar a existecircncia do ceacuteu aquoso logo haacute um viacutenculo muito iacutentimo entre a ldquoordem dos elementosrdquo (ordinem in elementis) e o ceacuteu aquoso Tomaacutes de certo modo subsume a noccedilatildeo de ldquoceacuteu aquosordquo na noccedilatildeo de ldquoelementordquo e assim elabora outro universo (ordinem) distinto do universo de Aristoacuteteles Esta eacute a razatildeo pela qual eacute necessaacuterio estabelecer outra ordem que seja diferente daquela sus-tentada por Aristoacuteteles pois tal procedimento eacute incompatiacutevel com a con-cepccedilatildeo de mundo do estagirita Tomaacutes portanto ao menos no contexto da discussatildeo cosmoloacutegica sobre o ceacuteu aquoso se aproxima e eacute influenciado por Agostinho
A cosmologia agostiniana e a criacutetica a Varratildeo
Agostinho na De Civitate Dei VI 5 afirma que para Varratildeo o termo theologia denota a explicaccedilatildeo racional sobre os deuses havendo trecircs ti-
graves virtute tamen divina super caelos continentur Sed hanc solutionem Augustinus excludit II Lib super Gen ad Litt dicens quod nunc quemadmodum Deus instituit naturas rerum convenit quaerere non quid in eis ad miraculum suae potentiae velit operariUnde aliter dicendum est quod secundum duas ultimas opiniones de aquis et firmamento patet solutio ex praemissis Secundum autem primam opinionem oportet ponere alium ordinem in elementis quam Aristo-teles ponat ut quaedam aquae spissae sint circa terram quaedam vero tenues circa caelum ut sic se habeant illae ad caelum sicut istae ad terramrdquo
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pos19 ldquordquo20 A teologia miacutetica para Varratildeo segundo Agostinho consiste ba-sicamente em atribuir aos deuses as caracteriacutesticas humanas sobretudo aquelas vinculadas ao roubo agrave mentira e ao adulteacuterio A theologia physica por sua vez eacute compreendida como pertencente aos filoacutesofos
A segunda classe de teologia para que chamei a atenccedilatildeo eacute aquela acerca da qual os filoacutesofos nos deixaram muitos livros em que se questiona os deuses mdash que satildeo eles onde residem qual a sua ori-gem quais as suas qualidades Existem desde determinada eacutepoca ou satildeo eternos provecircm do fogo como crecirc Heraacuteclito provecircm dos nuacutemeros como afirma Pitaacutegoras ou dos aacutetomos como pretende Epicuro e outras questotildees que se podem ouvir mais facilmente dentro das paredes de uma escola do que caacute fora no foacuterum21
Varratildeo conforme Agostinho natildeo encontra inconsistecircncias na teologia fiacutesica ou teologia dos filoacutesofos22 A teologia fiacutesica encontra-se nos livros dos filoacutesofos e seu domiacutenio de estudo pertence propriamente agraves escolas Enfim a teologia civil eacute compreendida por Varratildeo como o conhe-cimento dos ritos e sacrifiacutecios da religiatildeo oficial praticada pelos cidadatildeos incluindo os sacerdotes23
Varratildeo segundo Agostinho compara as teologias ldquoA primeira eacute a teologia que melhor se acomoda ao teatro a segunda ao mundo a terceira agrave cidaderdquo24 Nota-se que embora a investigaccedilatildeo da teologia fiacutesica seja pro-priamente empreendida no interior das paredes da escola ela natildeo per-tence agrave cidade devido a caracteriacutestica universal Varratildeo nesse sentido eacute
19 ldquo[] tria genera theologiae dicit esse id est rationis quae de diis explicatur []rdquo (De Civitate Dei VI 5)
20 (De Civitate Dei VI 5 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira Aqui com modificaccedilotildees) ldquoMythicon appe-llant quo maxime utuntur poetae physicon quo philosophi civile quo Populirdquo
21 (De Civitate Dei VI 5 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira) ldquoSecundum genus est inquit quod de-monstravi de quo multos libros philosophi reliquerunt in quibus est dii qui sint ubi quod genus quale est a quodam tempore an a sempiterno fuerint dii ex igni sint ut credit heraclitus an ex numeris ut Pythagoras an ex atomis ut ait Epicurus Sic alia quae facilius intra parietes in schola quam extra in foro ferre possunt auresrdquo
22 Cf De Civitate Dei VI 523 ldquoTertium genus est inquit quod in urbibus cives maxime sacerdotes nosse atque administrare
debent In quo est quos deos publice colere [quae] sacra ac sacrificia facere quemque par sitrdquo (De Civitate Dei VI 5)
24 (De Civitate Dei VI 5 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira) ldquoPrima inquit theologia maxime accom-modata est ad theatrum secunda ad mundum tertia ad urbemrdquo
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atraiacutedo dentre as teologias para a teologia fiacutesica25 Agostinho entretanto criacutetica a concepccedilatildeo que Varratildeo possui da teologia fiacutesica sobretudo porque este natildeo postula qualquer resquiacutecio de incorporeidade quanto agrave natureza do mundo e sua origem bem como no que tange agrave operaccedilatildeo imanente no mundo Nesse contexto Agostinho contrapotildee a concepccedilatildeo de theologia physica de Varratildeo com a concepccedilatildeo platocircnica (platonicis)
A concepccedilatildeo platocircnica refere-se natildeo soacute a Platatildeo (42728-347 aC) mas tambeacutem a seus disciacutepulos Ela eacute apresentada por Agostinho como o aacutepice do desenvolvimento da teologia grega ndash uma evoluccedilatildeo do sensiacutevel ao racional do corpoacutereo ao incorpoacutereo No interior da teologia grega Agos-tinho situa diversos pensadores como Tales Anaximandro (cerca de 610-547 aC) e Anaxiacutemenes (cerca de 585-5285 aC) Ademais a investigaccedilatildeo desses trecircs pensadores possui uma caracteriacutestica comum a restriccedilatildeo na corporeidade26 seja quanto agrave origem seja quanto agrave natureza do mundo
Os platocircnicos possuem uma investigaccedilatildeo mais evoluiacuteda pois insti-tuem outra origem para o mundo a saber a divindade ele que eacute entendi-do como o criador das coisas
Cedam pois estas duas teologias mdash a fabulosa e a civil mdash aos filoacute-sofos platoacutenicos que reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas fonte luminosa da verdade dispensador da felicidade eterna Cedam ainda a tatildeo grandes pensadores que chegaram a conhecer um Deus tatildeo grande esses outros filoacutesofos cujo pensa-mento escravo do corpo natildeo admite para a natureza senatildeo ori-gens corpoacutereas a aacutegua segundo Tales o ar segundo Anaxiacutemenes o fogo segundo os estoacuteicos segundo Epicuro os aacutetomos isto eacute corpuacutesculos pequeniacutessimos indivisiacuteveis e imperceptiacuteveis e tan-tos outros que natildeo vale a pena citar para quem os corpos simples
25 ldquoQuis non videat cui palmam dederit Utique secundae quam supra dixit esse philosophorum Hanc enim pertinere testatur ad mundum quo isti nihil esse excellentius opinantur in rebusrdquo (De Civitate Dei VI 5)
26 ldquoIonici vero generis princeps fuit Thales Milesius unus illorum septem qui sunt appellati Sa-pientes [] Aquam tamen putavit rerum esse principium et hinc omnia elementa mundi ipsum-que mundum et quae in eo gignuntur existere Nihil autem huic operi quod mundo considerato tam mirabile aspicimus ex divina mente praeposuitrdquo (De Civitate Dei VIII 2) Se referindo a Anaximandro Agostinho escreve ldquo[] nec ipse aliquid divinae menti in his rerum operibus tri-buensrdquo (De Civitate Dei VIII 2) Quanto a Anaxiacutemenes eacute dito ldquoIste Anaximenen discipulum et successorem reliquit qui omnes rerum causas aeri infinito dedit nec deos negavit aut tacuit non tamen ab ipsis aerem factum sed ipsos ex aere ortos crediditrdquo (De Civitate Dei VIII 2)
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ou compostos inanimados ou vivos mas todavia corpos satildeo cau-sas e princiacutepios das coisas27
Agostinho natildeo mencionar a noccedilatildeo de incorporeidade na passagem citada Todavia eacute notaacutevel que os platocircnicos adquirem a concepccedilatildeo de deus como incorpoacutereo uma vez que diferentemente dos outros pensadores mencionados os platocircnicos natildeo estatildeo restritos aos sentidos e as imagens28 A concepccedilatildeo da incorporeidade por conseguinte eacute indicador de maturida-de filosoacutefica Com efeito a maturidade filosoacutefica eacute elevada ao grau maacuteximo quando aleacutem da incorporeidade tambeacutem a causalidade eacute atribuiacuteda a deus Portanto deus para os platocircnicos eacute simultaneamente incorpoacutereo e causa
Agostinho atribui a Platatildeo o meacuterito de ter desenvolvido e aperfei-ccediloado a tese sobre a causalidade divina
Talvez de facto aqueles que com mais agudeza e verdade com-preenderam Platatildeo filoacutesofo tatildeo acima de todos os gentios e adqui-riram uma maior fama ao tornarem-se seus disciacutepulos tenham de Deus esta concepccedilatildeo eacute nrsquoEle que se encontra a causa da existecircncia a razatildeo da inteligecircncia e a regra da vida ndash trecircs aspectos que se rela-cionam o primeiro com a parte natural da filosofia o segundo com a parte racional e o terceiro com a parte moral29
27 (De Civitate Dei VIII 5 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira) ldquoNon solum ergo ista quae duae theolo-giae fabulosa continet et civilis Platonicis philosophis cedant qui verum Deum et rerum aucto-rem et veritatis illustratorem et beatitudinis largitorem esse dixerunt sed alii quoque philoso-phi qui corporalia naturae principia corpori deditis mentibus opinati sunt cedant his tantis et tanti Dei cognitoribus viris ut Thales in umore Anaximenes in aere Stoici in igne Epicurus in atomis hoc est minutissimis corpusculis quae nec dividi nec sentiri queunt et quicumque alii quorum enumeratione immorari non est necesse sive simplicia sive coniuncta corpora sive vita carentia sive viventia sed tamen corpora causam principiumque rerum esse dixeruntrdquo
28 ldquoHi et ceteri similes eorum id solum cogitare potuerunt quod cum eis corda eorum obstricta carnis sensibus fabulata sunt In se quippe habebant quod non videbant et apud se imaginabantur quod foris viderant etiam quando non videbant sed tantummodo cogitabant 18 Hoc autem in conspectu talis cogitationis iam non est corpus sed similitudo corporis illud autem unde videtur in animo haec similitudo corporis nec corpus est nec similitudo corporis et unde videtur atque utrum pulchra an deformis sit iudicatur profecto est melius quam ipsa quae iudicatur Haec mens hominis et rationalis animae natura est quae utique corpus non est si iam illa corporis similitudo cum in animo cogitantis aspicitur atque iudicatur nec ipsa corpus est Non est ergo nec terra nec aqua nec aer nec ignis quibus quattuor corporibus quae dicuntur quattuor elementa mundum corporeum videmus esse compactum Porro si noster animus corpus non est quo modo Deus creator animi corpus est Cedant ergo et isti ut dictum est Platonicisrdquo (De Civitate Dei VIII 5)
29 (De Civitate Dei VIII 4 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira) ldquoFortassis enim qui Platonem ceteris philosophis gentium longe recteque praelatum acutius atque veracius intellexisse ac secuti esse fama celebriore laudantur aliquid tale de Deo sentiunt ut in illo inveniatur et causa subsistendi et ratio intellegendi et ordo vivendi quorum trium unum ad naturalem alterum ad rationalem tertium ad moralem partem intellegitur pertinererdquo
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Conforme a passagem a teologia natural de Platatildeo e dos platocircnicos eacute a mais elevada dentre as teologias gregas exatamente porque estabele-ce que deus eacute a causa da permanecircncia no ser
A opiniatildeo destes filoacutesofos marca jaacute um grande progresso sobre a de Varratildeo na aproximaccedilatildeo da verdade Realmente este soube de-senvolver a teologia natural apenas ateacute aos limites deste mundo ou da sua alma aqueles poreacutem confessam um Deus que ultrapas-sa toda a natureza da alma um Deus que fez natildeo apenas este mun-do visiacutevel a que tantas vezes chamamos o ceacuteu e a terra mas tam-beacutem toda a alma sem exceccedilatildeo um Deus que concede a felicidade agrave alma dotada de razatildeo e de inteligecircncia como eacute o caso da alma humana fazendo-a participar da sua luz imutaacutevel e incorpoacuterea30
A diferenccedila entre o estudo de Varratildeo e o estudo dos platocircnicos eacute enfaacutetica pois enquanto aquele se restringe aos limites do mundo e de sua alma ambos incluiacutedos na corporeidade estes investigam aleacutem dos limites da corporeidade A teologia natural de Varratildeo seguindo Agostinho busca uma explicaccedilatildeo physiologica31 para os eventos do mundo32 sendo portan-to uma espeacutecie de mecacircnica que estuda as causas eficientes corpoacutereas33 mesmo porque Varratildeo na leitura de Agostinho natildeo concebe a noccedilatildeo de incorporeidade
O mundo na teologia natural de Varratildeo eacute compreendido como um todo composto de duas partes maiores o ceacuteu e a terra estes por sua vez divididos em partes menores Tanto a totalidade do mundo quanto cada uma de suas partes eacute compreendida como uniatildeo de corpo e alma A despeito da complexidade subjacente na noccedilatildeo de alma entendo que no estudo da teologia natural ela eacute compreendida por Varratildeo como
30 (De Civitate Dei VIII 1 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira Grifo meu) ldquoHi iam etiam Varronis opi-nionem veritatis propinquitate transcendunt si quidem ille totam theologian naturalem usque ad mundum istum vel animam eius extendere potuit isti vero supra omnem animae naturam confiten-tur Deum qui non solum mundum istum visibilem qui saepe caeli et terrae nomine nuncupatur sed etiam omnem omnino animam fecerit et qui rationalem et intellectualem cuius generis anima humana est participatione sui luminis incommutabilis et incorporei beatam facitrdquo
31 Cf De Civitate Dei VII 532 ldquo[] quibus aliquid fit in mundo []rdquo (De Civitate Dei VII 9) 33 A expressatildeo ldquoefficientibus causisrdquo eacute empregada por Agostinho a respeito de Varratildeo cf De Civi-
tate Dei VII 9
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um constituinte corpoacutereo sutil imperceptiacutevel ldquovi quadam invisibili ac praepotentirdquo34
A noccedilatildeo de vis denota a alma da totalidade do mundo ldquoNas suas reflexotildees preliminares sobre a teologia natural o citado Varratildeo emite a sua opiniatildeo de que deus eacute a alma do mundo (que os gregos designam de κόσμος) e de que este mesmo mundo eacute deusrdquo35 Existe uma senten-ccedila registrada pela pena de Agostinho que pode ser atribuiacuteda a Varratildeo ldquoTudo estaacute pleno de Juacutepiterrdquo36 Juacutepiter eacute portanto a vi a anima mundi que governa as causas eficientes37 Ademais um dos designadores de Juacutepiter eacute impellendi38 cuja raiz ldquoimpulrdquo39 vincula-se fundamentalmente natildeo soacute agrave noccedilatildeo de violecircncia mas tambeacutem a de locomoccedilatildeo Nesse sentido para Varratildeo deus eacute concebido como a vis muito poderosa a causa eficiente da locomoccedilatildeo do universo
Consideraccedilotildees finais
Ao que tudo indica Agostinho se empenha em criticar a cosmolo-gia de Varratildeo porque para este a natureza do mundo sua origem bem como a forccedila que o locomove possui como referecircncia a noccedilatildeo de corpo A cosmologia agostiniana conforme resumida pela leitura de Tomaacutes neces-sariamente referencia a noccedilatildeo de divindade sendo um de seus atributos
34 A passagem completa diz ldquoNeque enim sicut sciebat esse mundum esse caelum et terram cae-lum sideribus fulgidum terram seminibus fertilem atque huius modi cetera sicut hanc totam molem atque naturam vi quadam invisibili ac praepotenti regi atque administrari certa animi stabilitate credebat ita poterat affirmare de Iano quod mundus ipse esset aut de Saturno in-venire quo modo et Iovis pater esset et Iovi regnanti subditus factus esset et cetera taacuteliardquo (De Civitate Dei VII 17)
35 (De Civitate Dei VII 6 Traduccedilatildeo de Joatildeo Dias Pereira Aqui com modificaccedilotildees) ldquoDicit ergo idem Varro adhuc de naturali theologia praeloquens deum se arbitrari esse animam mundi quem Graeci vocant κόσμος et hunc ipsum mundum esse deumrdquo
36 (De Civitate Dei VII 9) ldquoIovis omnia plenardquo37 Se referindo a Juacutepiter Agostinho escreve ldquoSicut enim nihil fit ita nihil inchoatur ut fiat quod
non faciens causa praecesserit Hunc sane deum penes quem sunt omnes causae factarum om-nium naturarum naturaliumque rerum []rdquo (Cf De Civitate Dei VII 9) Ainda a respeito de Juacute-piter Agostinho cita o seguinte fragmento de Varratildeo que por sua vez citaria Valerius Soranus ldquoIuppiter omnipotens regum rerumque deumque Progenitor genetrixque deum deus unus et omnesrdquo (De Civitate Dei VII 9)
38 Cf De Civitate Dei VII 1039 Ver por exemplo o sentido de impello impellere impuli impulsum impetum
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A criacutetica de Agostinho agrave cosmologia de Varratildeo na De Civitate Dei
justamente a incorporeidade Nesse contexto ademais a fronteira do que seria a leitura que Agostinho faz de Platatildeo e dos platocircnicos e sua proacutepria concepccedilatildeo sobre a operaccedilatildeo de Deus eacute complexa sendo que a diferen-ccedila caso exista encontra-se nos detalhes Com efeito o sentido de ldquout in illo inveniatur et causa subsistendirdquo natildeo eacute simples Pereira traduz como ldquoeacute nrsquoEle que se encontra a causa da existecircnciardquo Combegraves traduz do seguinte modo ldquoqursquoon trouve en lui la cause de lrsquoexistencerdquo A traduccedilatildeo de Wiesen reza ldquowhich would discover in him the cause of physical existencerdquo Satildeo traduccedilotildees bem diferentes para ldquocausa subsistendirdquo As traduccedilotildees portu-guesa e francesa possuem um sentido abrangente A traduccedilatildeo inglesa por sua vez eacute bem mais restrita As duas primeiras parecem apontar para uma noccedilatildeo criacionista em sentido cristatildeo A traduccedilatildeo inglesa por outro lado parece indicar um sentido mais proacuteximo da causalidade filosoacutefica grega e platocircnica uma accedilatildeo demiuacutergica Escolher a melhor opccedilatildeo para en-tender a sentenccedila agostiniana eacute uma tarefa bastante exigente sobretudo se se considera que a sentenccedila eacute redigida em diaacutelogo com o pensamento pagatildeo romano e grego sendo que Agostinho deseja se manter como filoacute-sofo dialogando com outros filoacutesofos
Referecircncias
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Evaniel Braacutes dos Santos
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______ Causalidade e Natureza na Cosmologia de Tomaacutes de Aquino Philoacutesophos Goiacircnia v 20 n 1 2015 pp 95-124
______ Vestiacutegios da cosmologia de Empeacutedocles em fontes latinas dos seacuteculos XII--XIII Dissertatio Pelotas v 44 pp 131-150 2016
______ Os sentidos de theologia physica para os antiqui Tomaacutes de Aquino leitor de Agostinho Princiacutepios Natal v 24 n 43 pp 9-41 2017
PEPIN Jean La ldquotheacuteologie tripartiterdquo de Varron Essai de reconstitution et recher-che des sources Revue drsquo Etudes Augustiniennes Et Patristiques v 2 pp 265-294 1956
THOMAE DE AQUINO In libros Aristotelis De caelo et mundo Opera omnia iussu impressaque Leonis XIII P M edita vol III Roma Typographia Polyglotta 1886
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______ Suma de Teologia (11 vols) Trad Alexandre Correia Livraria Sulina Edi-tora1980
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O conceito de mateacuteria primeira segundo Joatildeo Filopono de Alexandria e sua recepccedilatildeo no seacuteculo XVI em latim
Matheus Henrique Gomes Monteiro(UNICAMP)
Os estudos sobre o pensamento de Joatildeo Filopono de Alexandria e sua influecircncia indicam que na histoacuteria da filosofia ele traria vaacuterias inovaccedilotildees para o conceito de mateacuteria primeira1 e poderia de fato ter contribuiacutedo para profundas mudanccedilas na filosofia da natureza a partir do seacuteculo XVI
Em texto publicado em 1987 Schmitt2 comentou a situaccedilatildeo da pes-quisa sobre a importacircncia e a sorte (fortuna) dos livros de Filopono no seacutecu-lo XVI A seu ver os estudos sobre esse tema ainda eram poucos e no futuro podiam prosseguir o trabalho iniciado pelo pesquisador de determinar a menccedilatildeo a ou a reproduccedilatildeo dos argumentos de Filopono em textos filosoacuteficos a partir do seacuteculo XVI ou seguir com uma investigaccedilatildeo de caraacuteter mais filoloacute-gico considerando a acuraacutecia das traduccedilotildees ou a introduccedilatildeo de vocabulaacuterio
No primeiro caso pode-se contar o trabalho de Sorabji3 e o de Eacutevo-ra4 que abordam a posteridade do conceito filoponiano de mateacuteria em Reneacute Descartes nos Princiacutepios de filosofia De Haas menciona tambeacutem uma possiacutevel influecircncia desse conceito tambeacutem em Isaac Newton5
1 Em portuguecircs pode-se encontrar πρώτην ὕλην traduzida por ldquomateacuteria primardquo Opto por traduzir a locuccedilatildeo por mateacuteria primeira para destacar o significado de ordem (pois haacute referecircncias a substra-tos segundo e terceiro) e para evitar duas confusotildees uma com a palavra composta mateacuteria-prima e outra com a traduccedilatildeo para o latim materia prima ndash neste trabalho lidando com traduccedilotildees para o latim eacute conveniente diferenciar bem quando se trata de uma ou quando se trata do conceito discutido aqui em portuguecircs
2 Ver Schmitt C Philoponusrsquo Commentary on Aristotlersquos Physics in the Sixteenth Century pp 251267
3 Ver Sorabji R Matter Space and Motion Theories in Antiquity and their Sequel pp 38-39 Sorabji comenta sobre o assunto na introduccedilatildeo ao livro Philoponus and the Rejection of the Aristotelian Science em 1987 e apoacutes revisar sua interpretaccedilatildeo em nova ediccedilatildeo em 2010
4 Ver Eacutevora F R R Filopono e Descartes conceito de extensatildeo material pp 83-1045 Ver De Hass F A J John Philoponusrsquo New Definition of Prime Matter Aspects of its Background
in Neoplatonism and the Ancient Commentary Tradition p xii
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 69-83 2017
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Matheus Henrique Gomes Monteiro
No presente artigo propotildee-se antes de investigar essas influecircncias propriamente ditas delimitar quais eram os textos e as traduccedilotildees dispo-niacuteveis Este estudo se levado a cabo poderaacute contribuir posteriormente para o avanccedilo e o aprofundamento da discussatildeo sobre as contribuiccedilotildees de Filopono para a Histoacuteria da Filosofia Moderna e para a assim chamada Revoluccedilatildeo Cientiacutefica do seacuteculo XVII
A tiacutetulo de introduccedilatildeo a esse estudo neste artigo enunciam-se os principais tratamentos que Filopono daacute ao conceito de mateacuteria primeira e em quais livros eles satildeo desenvolvidos em seguida apresentam-se in-formaccedilotildees a respeito da publicaccedilatildeo dos livros de Filopono e do contexto dessa publicaccedilatildeo dando especial enfoque ao De aeternitate mundi con-tra Proclum no qual o filoacutesofo desenvolve o conceito de mateacuteria primeira como o substrato tridimensional
Filopono trata da mateacuteria primeira fundamentalmente de dois mo-dos Numa primeira fase ele a entende como um substrato sem forma so-bre o qual agiria o doador das formas e numa segunda fase como uma extensatildeo tridimensional De fato no in Categorias ele entende de acordo com Aristoacuteteles que haacute dois tipos de mateacuteria a mateacuteria primeira que eacute sem forma e incorpoacuterea e a mateacuteria segunda que eacute em trecircs dimensotildees6 Poste-riormente no in Physica Filopono chama a mateacuteria segunda de extensatildeo corporal7 Por fim a partir do contra Proclum Filopono natildeo apresenta mais a mateacuteria primeira como um substrato sem forma e incorpoacutereo na verda-de o que antes era a mateacuteria segunda passa a ser tratado como a mateacuteria primeira a extensatildeo tridimensional8
6 ldquoNa natureza das coisas a quantidade ocupa a segunda posiccedilatildeo Pois como tem sido frequen-temente dito a mateacuteria prima que eacute antes de ser dado a ela o volume sem corpo sem forma ou figura recebe as trecircs dimensotildees e torna-se tridimensional E isto que Aristoacuteteles chama de segundo substrato entatildeo recebe as qualidades e constitui os elementos tal que a qualidade tem o terceiro grau entre as coisas que haacuterdquo (Joatildeo Filopono in Categorias [8313ndash19] apud Eacutevora F R R Filopono de Alexandria e a criacutetica ao conceito de mateacuteria prima p 62 A traduccedilatildeo eacute da autora do artigo)
7 ldquoA mateacuteria e substrato segundo ndash quero dizer o corpo que eacute extenso em trecircs dimensotildees e sem qua-lidade ndash mesmo podendo subsistir por si mesma nunca subsiste sem qualidades Assim tambeacutem a extensatildeo espacial mesmo se pudesse subsistir por si mesma (pois o que impediria o espaccedilo de estar vazio do corpo como dissemos se pensamos no recipiente natildeo contendo nenhum corpo dentro de si) de nenhum modo ela permanece vazia do corpo totalmente por sirdquo (in Physica Corolaacuterio sobre o lugar [5793-9] Trad David Furley)
8 ldquoE por isso eacute que lto tridimensionalgt eacute o substrato primeiro para todas as formas fiacutesicas da qual com a adiccedilatildeo subsequumlente de qualidades substanciais vecircm a ser na existecircncia o fogo a aacutegua e
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O conceito de mateacuteria primeira segundo Joatildeo Filopono de Alexandria e sua recepccedilatildeo no seacuteculo XVI em latim
Esse tratamento dispensado ao conceito de mateacuteria primeira reper-cute na criacutetica de Filopono a Aristoacuteteles Por exemplo em De caelo9 Aristoacute-teles defende a existecircncia do eacuteter o quinto elemento cujo movimento natu-ral eacute o circular e que por ausecircncia de contrariedade natildeo sofre geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo e argumenta ainda que os corpos celestes satildeo compostos desse elemento e por essa razatildeo satildeo eternos O estagirita entende assim que o universo eacute composto de duas regiotildees distintas ocupadas por corpos de mateacuteria distinta que se movem por movimentos distintos Poreacutem em De aeternitate mundi contra Aristotelem obra escrita provavelmente apoacutes o contra Proclum Filopono defende a unidade do universo e dos movimentos celestes e sublunares com base no novo conceito de mateacuteria primeira10
A oposiccedilatildeo de Filopono a Aristoacuteteles e os frutos das suas criacuteticas fo-ram investigadas amplamente sendo mais conhecidos os estudos realiza-dos por Duhem11 Wohlwill12 Combrie13 Wolf14 Schmitt15 Wildeberg16 So-rabji17 e De Hass18 No Brasil Eacutevora publicou vaacuterios artigos sobre a filosofia de Filopono em especial um a respeito do conceito de mateacuteria primeira19
o restanterdquo (Joatildeo Filopono contra Proclum l 11 c 6 [42511ndash14] Trad Michael Share) Outra traduccedilatildeo feita com base no texto grego editado por Hugo Rabe (1899) e disponiacutevel em publica-ccedilatildeo recente eacute esta ldquoEacute por isso que esta lttridimensionalidadegt eacute o primeiro substrato de todas as formas naturais Eacute a partir dela e pela reuniatildeo das qualidades essenciais que o que foi produzido na existecircncia torna-se corpo fogo aacutegua etcrdquo (Trad Mueller-Jourdan)
9 Sobre o eacuteter sua existecircncia natureza e ausecircncia de contrariedade cf Aristoacuteteles De caelo l 1 c 1-4
10 Simpliacutecio reproduziu no in De caelo commentaria vaacuterios argumentos de Filopono que este teria desenvolvido no contra Aristotelem Wildberg selecionou esses trechos no esforccedilo de reconsti-tuir a obra de Filopono que estaacute perdida e o resultado foi publicado com a traduccedilatildeo para inglecircs feita pelo proacuteprio Wildberg (cf Against Aristotle On the Eternity of the World) Sendo assim Filo-pono teria afirmado em contra Aristotelem que ldquoporque as ltcoisasgt no ceacuteu e as ltcoisasgt abaixo da lua satildeo ambas tridimensionais nada as distingue uma da outrardquo (frag IV17 apud Simpliacutecio in De caelo commentaria [13816-18] Trad Wildberg)
11 Duhem P Le systegraveme du monde histoire des doctrines cosmologiques de Platon agrave Copernic12 Wohlwill E Galilei und sein Kampf fuumlr die copernicanische Lehre13 Crombie A C Augustine to Galileo the History of Science from 400 to 165014 Wolff M Fallgesetz und Massebegriff zwei wissenshaft-historische Untersuchungen zur Kos-
mologie des Johannes Philoponus p 146-8 Do mesmo autor haacute o artigo ldquoPhiloponus and the Rise of Preclassical Dynamicsrdquo p 84-120 (De aeternitate mundi contra Aristotelem)
15 Schmitt 198716 Wildberg C John Philoponusrsquo Criticism of Aristotlersquos Theory of Aether17 Sorabji 1988 18 De Haas 199719 Ver Eacutevora F R R Filopono de Alexandria e a criacutetica ao conceito de mateacuteria prima
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No entanto apesar dos estudos da influecircncia de Filopono sobre os pensadores do iniacutecio da Idade Moderna especialmente a influecircncia de seu conceito de mateacuteria primeira e das criacuteticas agrave filosofia aristoteacutelica ain-da satildeo poucas as investigaccedilotildees focadas nas traduccedilotildees dos textos para o latim e suas possiacuteveis repercussotildees
As pesquisas que existem sugerem que no seacuteculo XIII um comentaacuterio ao De anima atribuiacutedo a Filopono foi traduzido para o latim por Moerbeke como tambeacutem o in De caelo commentaria escrito por Simpliacutecio que devido agrave reproduccedilatildeo dos textos filoponianos constituiu-se outra fonte do pensamen-to do filoacutesofo20 Entretanto nessa eacutepoca a influecircncia de Filopono fez-se pre-sente em especial na discussatildeo sobre a eternidade do mundo21 Em contra Proclum e em contra Aristotelem Filopono defendera a impossibilidade de o mundo ser eterno no sentido de ter uma duraccedilatildeo sem comeccedilo e sem fim Era defensor da criaccedilatildeo do nada (creatio ex nihilo) enquanto ela significasse que o mundo tivera um iniacutecio de duraccedilatildeo Vaacuterios dos seus argumentos em especial os que se baseavam nos problemas decorrentes do conceito de in-finito encontravam-se em Tomaacutes de Aquino (1222-1272) em Boaventura (1217-1274) e Gersonides (1288-1344)22
Poreacutem o conhecimento dos latinos a respeito do pensamento e dos textos de Filopono ainda era bem limitado Os comentaacuterios filoponianos agraves obras de Aristoacuteteles e sua oposiccedilatildeo a vaacuterios aspectos da filosofia aristo-teacutelica ainda natildeo haviam ganhado ampla traduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo23 Do seacutecu-lo XIII ateacute o seacuteculo XV os livros de Aristoacuteteles eram lidos majoritariamen-
20 Haacute algumas ediccedilotildees desses textos publicadas recentemente Ver Commentaire sur le De anima drsquoAristote Geacuterard Verbeke (Ed) Louvain Publications Universitaires de Louvain 1966 Com-mentaire sur le traiteacute Du ciel drsquoAristote Fernand Bossier (Ed) Louvain Leuven University Press 2004 Crombie (1953 p 246) comenta que os argumentos de Filopono se tornaram conhecidos no seacutec XIII em razatildeo da traduccedilatildeo feita por Moerbeke do comentaacuterio de Simpliacutecio a Sobre o ceacuteu
21 Ver Grant E A History of Natural Philosophy From the Ancient World to the Nineteenth Cen-tury pp 130-7
22 Ver Wildberg C ldquoJohn Philoponusrdquo23 Considera-se por exemplo o caso do in De generatione et corruptione de Filopono ldquoA Idade Meacutedia
latina parece desconhecer este comentaacuterio ao De generatione et corruptione mesmo que alguns fragmentos apareccedilam presentes nas glossas marginais da translatio vetus feita por Burgundio de Pisa A primeira traduccedilatildeo latina do comentaacuterio de Filopono parece ser aquela realizada por Hie-ronymus Bagolinus com base na ediccedilatildeo aldina de 1527 publicada em Veneza por Hieronymus Escoto em 1540 a segunda realizada por Andreas Silvius foi publicada por Vagrisius em 1564rdquo (Kupreeva I ldquoIntroductionrdquo In Philoponus On Aristotle On Coming-to-Be and Perishing 25-11 p 3 Ancient Commentators on Aristotle)
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te em latim em traduccedilotildees medievais com algumas correccedilotildees A leitura da obra aristoteacutelica era feita tambeacutem com base em comentadores em liacutengua latina entre eles Tomaacutes de Aquino24 e comentadores aacuterabes traduzidos para o latim entre eles especialmente Averroacuteis25 Aliaacutes ao longo do Re-nascimento a leitura de Averroacuteis teria influenciado vaacuterios filoacutesofos cons-tituindo o fenocircmeno investigado hoje como averroiacutesmo
Aparentemente os textos de Filopono soacute seratildeo amplamente conhecidos a partir do seacuteculo XVI na Itaacutelia graccedilas ao projeto editorial de Aldo Manuacutecio de publicar o corpus aristoteacutelico em grego bem como os livros de seus comentadores antigos Com a nova ediccedilatildeo e publicaccedilatildeo do grego de Aristoacuteteles houve um renovado interesse pelos comentadores antigos Sobre isso comenta Copenhaver
O grego se tornou inevitaacutevel para o curriacuteculo humanista e alguns alegavam que ele era indispensaacutevel para a filosofia Escrevendo em 1520 no momento em que os humanistas latinizaram a totalidade do corpus aristoteacutelico Thomas More disse a Martin Dop que ldquoAristoacute-teles ele mesmo [] natildeo podia ser completamente conhecido sem o domiacutenio das letras gregas [] pois nada do que ele escreveu foi tatildeo bem traduzido que natildeo pudesse ser melhor compreendido pela mente que o ouvisse em suas proacuteprias palavrasrdquo O ideal de More natildeo foi realizado Enquanto um filoacutesofo da universidade como Ja-copo Zabarella podia dominar o grego [poreacutem] entre seus colegas isso natildeo era um feito universal [] 26
24 ldquoOs humanistas tambeacutem apesar das suas invectivas contra os lsquobaacuterbarosrsquo das universidades dos seacuteculos XIII e XIV recorreram com frequumlecircncia agraves suas ideacuteias geralmente sem fazer a referecircncia Eacute impressionante por exemplo que o grande estudioso helenista George Trebizond haja resolvi-do um dos poucos problemas examinados na sua scholia a respeito da Fiacutesica ndash o problema sobre o movimento no vaacutecuo mdash com uma paraacutefrase da visatildeo de Tomaacutes de Aquino sobre o assunto Ed-ward Cranz destacou que a impressatildeo dos comentaacuterios medievais sofreu uma contraccedilatildeo acen-tuada depois de 1535 mas o significado desse fenocircmeno natildeo deve ser exagerado Por um lado houve notaacuteveis exceccedilotildees a essa tendecircncia por exemplo o sucesso duradouro dos comentaacuterios de Tomaacutes de Aquino e de Joatildeo de Jandun Por outro lado o decliacutenio da impressatildeo das expositio-nes e quaestiones medievais deveu-se mais provavelmente agrave saturaccedilatildeo do mercado livreiro do que agrave falta de interesse dado que os grandes filoacutesofos aristoteacutelicos do seacuteculo XVI demonstravam um excelente conhecimento da exegese medievalrdquo (Bianchi 2007 p 61)
25 Ver Hankins J Humanism Scholasticism and Renaissance Philosophy pp 30-4826 Ver Copenhaver B P Translation Terminology and Style in Philosophical Discourse c 3 3 p 95
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Segundo Black27 em algumas universidades da Itaacutelia desse periacuteodo especialmente em Paacutedua o ensino universitaacuterio passou a basear-se nas publicaccedilotildees em grego e provavelmente o uso dos comentadores antigos nessa liacutengua comeccedilou com Ermolao Barbaro em 1480 De fato o interes-se de promover a consulta agraves fontes gregas existiu todavia apesar de um e outro exemplo notaacutevel de conhecimento heleniacutestico a leitura do grego nos originais natildeo era uma habilidade comum aos intelectuais da eacutepoca Na Europa prevalecia o latim
Nesse contexto concomitante ao projeto de editar os textos de Aris-toacuteteles e seus comentadores antigos em grego ganhou forccedila o projeto de traduzi-los para o latim28 Entre as publicaccedilotildees estavam os livros de Filopo-no e entre estes o contra Proclum no qual o filoacutesofo desenvolve o conceito de mateacuteria primeira como extensatildeo tridimensional29
Assim eacute possiacutevel explicar a publicaccedilatildeo de contra Proclum no seacuteculo XVI como extensatildeo do projeto editorial de Aldo Manuacutecio Nesse caso Filo-pono apareceria como um cristatildeo platocircnico leitor comentador e criacutetico do texto aristoteacutelico30 vindo de uma eacutepoca anterior agrave influecircncia aacuterabe
27 Ver Black R The Philosopher and Renaissance Culture In Hankins J (Ed) 2007 pp 13-2928 ldquoA disponibilidade dessas novas ferramentas interpretativas teve um grande impacto sobre o
debate filosoacutefico Soacute para citar dois exemplos a descoberta dos comentaacuterios de Alexandre de Afrodiacutesia e de Simpliacutecio a De anima intensificaram as jaacute acirradas controveacutersias sobre a inter-pretaccedilatildeo correta da psicologia aristoteacutelica enquanto um melhor conhecimento sobre os comen-taacuterios de Filopono que eram bem criacuteticos dos ensinamentos da Fiacutesica e do De caelo provocou uma profunda reconsideraccedilatildeo da filosofia natural de Aristoacuteteles que ainda ecoou em Galileordquo (Bianchi 2007 p 60)
29 Sobre o texto grego a ediccedilatildeo criacutetica de Hugo Rabe (1899 p iiindashix) estabelece que ele eacute de auto-ridade textual simples e descomplicada Os coacutedices disponiacuteveis satildeoM Codex Marcianus graec 236 saec IXXp Parisinus graec 2058 saec XVt Editio Veneta a Trincavelo parata (1535)
30 Rabe fala de um Codex Antonianus que eacute mencionado por Jean Mahot em uma carta publicada com sua traduccedilatildeo de contra Proclum em 1557 mas que segundo Rabe estaria ausente da biblioteca vene-ziana de Santo Antocircnio jaacute por volta de 1650 De todo modo a biblioteca fora destruiacuteda em um incecircndio no seacuteculo XVIII Lang e Macro (2001 pp 34-5) mencionam ainda um Codex Escorialensis Σ III 19 Em nota publicada juntamente com a ediccedilatildeo de 1535 de contra Proclum Victor Trincavello mostra--se persuadido de que Filopono respondeu a Proacuteclo defendendo a feacute contra ldquoo oacutedio e o furorrdquo do pagatildeo Schmitt (1987 pp 253-5) entende que Filopono parecia interessante aos filoacutesofos do seacutec XVI porque ele era cristatildeo defendia racionalmente a doutrina da criaccedilatildeo contra os pagatildeos e sendo identificado com certo platonismo mostrava-se algueacutem agrave procura de uma convergecircn-cia possiacutevel entre Platatildeo e Aristoacuteteles A esse respeito observo que haacute duas abordagens que precisam ser distinguidas uma que se atenta aos produtores do texto (o projeto editorial de Aldo Manuacutecio os editores e os tradutores) e outra que se dirige aos leitores do texto e ao modo como o receberam cada um O entendimento de Schmitt ao meu ver estaacute mais alinhado com a segunda abordagem
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e por isso capaz de ajudar os filoacutesofos renascentistas a entender o ldquoau-tecircntico Aristoacutetelesrdquo sem a mediaccedilatildeo das traduccedilotildees latinas feitas na Idade Meacutedia nem a dos comentaacuterios dos filoacutesofos aacuterabes
No entanto a defesa da eternidade do mundo por parte dos averroiacutes-tas especialmente professores nas universidades de Paacutedua e de Bolonha pode ter impulsionado a publicaccedilatildeo de textos sobre a criaccedilatildeo do mundo do nada (ex nihilo) bem como genealogias histoacuterias e outros gecircneros textuais para defender o iniacutecio do universo Nesse cenaacuterio eacute possiacutevel que apoacutes a publicaccedilatildeo o contra Proclum tenha servido a um interesse particular for-necer argumentos para refutar a eternidade do mundo e assim defender racionalmente a criaccedilatildeo de nouo (com iniacutecio de duraccedilatildeo) Natildeo obstante ele pode ter contribuiacutedo tambeacutem com outros debates e inspirado novos con-ceitos como o de mateacuteria definida como substrato tridimensional
O contra Proclum em grego foi editado por Victor Trincavello (Vic-tor Trincauellus) e publicado em Veneza em 153531 Trincavello era um erudito conhecedor do grego e editou vaacuterios textos em grego de Filopo-no e de outros comentadores antigos de Aristoacuteteles
A primeira traduccedilatildeo de contra Proclum para o latim foi realizada por Gaspare Marcello (Gaspar Marcellus) e foi publicada em Veneza em 155132 Marcello era natural de Montagnana proviacutencia de Paacutedua e foi professor de medicina na Universidade de Paacutedua Aleacutem do contra Pro-clum traduziu tambeacutem dois livros de Alexandre de Afrodiacutesia um publica-do em 1546 e outro em 1558 O contra Proclum tambeacutem foi traduzido por Jean Mahot (Ioannes Mahotius) e publicado em Lyon em 155733 Mahot
31 Ioannis Grammatici Philoponi Alexandrini contra Proclum de mundi aeternitate Pela casa edi-torial de Bartolomeu (Bartholomaeus Casterzagensis) com a diligentia de Giovanni Francesco Trincavello (Ioannis Franciscus Trincauellus) Para referecircncia t [Parte da publicaccedilatildeo] Paacutegina linhandashPaacutegina linha As partes da publicaccedilatildeo satildeo as notas (prefaacutecio cartas dedicatoacuterias etc) numeradas segundo a ordem em que aparecem e os livros (I a XVIII)
32 Ioannis Grammatici cognomento Philoponi libri duo de viginti adversos totidem Procli successo-ris rationes de mundi aeternitate ad octauum Physicorum Aristotelis librum atinentes Tradutor Gaspare Marcello (Gaspar Marcellus) Ano de publicaccedilatildeo 1551 (em Veneza pela casa editorial de Hieronymus Scotus) Para referecircncia GM 1551 [Parte da publicaccedilatildeo] Paacutegina linha ndash Paacutegina linha A paacutegina A estaacute agrave esquerda no original e a paacutegina B agrave direita Nessa publicaccedilatildeo aleacutem dos livros que compotildeem o contra Proclum haacute duas cartas dedicatoacuterias uma no iniacutecio dirigida ao papa Juacutelio III e outra nas paacuteginas 45B e 46A dirigida a Ioannes Cernelius
33 Ioannes Grammaticus Philoponus Alexandrinus in Procli diadochi duodeuiginti argumenta De mundi aeternitate Opus uaria multiplicique Philosophiae cognitione refertum Tradutor Jean Ma-hot (Ioannis Mahotius) Ano de publicaccedilatildeo 1557 (em Lyon cum privilegio regis) JM 1557 [Parte
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era nativo de Argentan na Normandia e esteve a serviccedilo de Franccedilois de Tournon cardeal em Lyon sendo professor em Tournon e possivelmente na Universidade de Turim34
Deve-se ter em mente que nesse contexto as traduccedilotildees de obras da Greacutecia antiga para a liacutengua de Roma variavam de acordo com a es-cola Na eacutepoca os tradutores do grego para o latim especialmente os humanistas queriam retomar o latim claacutessico e explicitar sobretudo o sentido do texto grego revelando sua capacidade expressiva Mui-tos se opunham aos neologismos agraves transliteraccedilotildees e agraves formas estra-nhas ao latim de Ciacutecero Algumas traduccedilotildees se faziam de acordo com o ldquoneolatimrdquo35 e segundo um exerciacutecio de emulaccedilatildeo do estilo de Ciacutecero ou de outros autores claacutessicos da liacutengua latina Poreacutem havia controveacuter-sias especialmente tratando-se do texto filosoacutefico Alguns preferiam a traduccedilatildeo mais proacutexima do texto original ou senatildeo uma traduccedilatildeo com uma escrita mais clara ndash nesse sentido mais atenta agrave adequaccedilatildeo do que eacute dito em grego para as formas expressivas do latim ndash mas ainda assim adotando certos termos teacutecnicos como substantia que natildeo existiriam no latim claacutessico e que se fossem trocados por outros provocariam in-compreensatildeo e pouca receptividade por parte do puacuteblico leitor princi-palmente dos filoacutesofos acadecircmicos36
O contra Proclum de Filopono de Alexandria natildeo foi exceccedilatildeo Na tra-duccedilatildeo de Gaspare Marcello nota-se a intenccedilatildeo de empregar palavras jaacute consagradas pela tradiccedilatildeo latina de comentaacuterios Essas escolhas podem indicar que Gaspare estava preocupado com a recepccedilatildeo do texto nos de-bates universitaacuterios Por sua vez a traduccedilatildeo de Jean Mahot publicada seis
da publicaccedilatildeo] Paacutegina linha ndash Paacutegina linha Nessa publicaccedilatildeo haacute nove notas quatro cartas qua-tro poemas e um prefaacutecio (escrito por Cleacutement Mahot parente de Jean Mahot o tradutor) Duas das cartas satildeo de Jean Mahot para o cardeal Franccedilois de Tournon No prefaacutecio Cleacutement Mahot expotildee sistematicamente o que entende por filosofia e como Filopono se insere nela
34 Ver Lohr C H Renaissance Latin Translations of the Greek Commentaries on Aristotle Nota 1535 O neolatim foi a variedade da liacutengua que surgiu na Renascenccedila Nasceu do desejo de retornar
aos modelos claacutessicos enquanto saiacutea do acircmbito das discussotildees teoloacutegicas e teoreacuteticas das uni-versidades para se expandir rumo aos temas profanos e comuns Tornou-se na eacutepoca e por alguns seacuteculos a liacutengua internacional da difusatildeo da cultura cientiacutefica e literaacuteria
36 cf Copenhaver 2007 pp 77-110 Copenhaver emprega a expressatildeo ldquotraduccedilatildeo filosoacuteficardquo para se referir agraves traduccedilotildees feitas nesse periacuteodo
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anos depois revela a preferecircncia pela clareza no discurso filosoacutefico em latim em vez de imitar a elegantia do discurso grego37
Aleacutem disso deve-se destacar que o contra Proclum eacute editado e traduzido por filoacutesofos isto eacute pessoas reconhecidas socialmente por exercerem o papel de filosofar ndash por exemplo como professores em al-guma universidade ndash ou por terem cultura filosoacutefica ocupando-se com a leitura ediccedilatildeo e traduccedilatildeo dos textos Em notas publicadas com a tradu-ccedilatildeo haacute referecircncias a Marcello como ldquophilosophus patauinusrdquo38 e a Mahot como ldquoturnoniensi gymnasio praefectus classicusrdquo39
Nesse sentido natildeo eacute temeraacuterio julgar que as traduccedilotildees de Gaspare Marcello e de Jean Mahot natildeo apenas disponibilizavam o texto para leitura mas tambeacutem revelavam a intepretaccedilatildeo de cada um a respeito da discussatildeo realizada por Filopono Certamente devido agrave natureza de seu trabalho eles natildeo comentam nem desenvolvem essa interpretaccedilatildeo Ela se revela nas es-colhas dos termos em latim na proximidade ou distanciamento da ordem textual Nas palavras escolhidas especialmente encontram-se a soluccedilatildeo de ambiguumlidades a formalizaccedilatildeo e a expressatildeo dos conceitos e tambeacutem o indiacute-cio de duacutevidas hesitaccedilotildees Na padronizaccedilatildeo do vocabulaacuterio pode-se notar tambeacutem o reconhecimento dos conceitos principais e seu uso teacutecnico cer-tificando que os dois tradutores em vez de publicar uma combinaccedilatildeo de vocaacutebulos processado mecanicamente por regras gramaticais haviam lido e formado uma interpretaccedilatildeo a respeito do que estava escrito em grego Nesse sentido restrito eles podem ser considerados inteacuterpretes tal como sugere sua apresentaccedilatildeo nos livros como interpres
Entre as traduccedilotildees de contra Proclum haacute evidentemente seme-lhanccedilas devidas agrave ordem textual original40 que eacute mantida com mais ou
37 Em nota Jean Mahot comenta ldquoNeque uero in hisce conuertibus orationis cultum aut elegantiam consectatus sum Philosophicum enim hoc scribendi genus eiusmodi esse persuasum habeo ut dum Latina sit oratio interpres de reliquis non debeat laborare e re enim omnis hic cura suscipitur quam in hac disputandi subtilitate exprimere haud temere qui orationis ornatum consectari uolet Graece enim orationis felicitas uerbis ad haec exprimenda accomodis abundat quae in Latinum conversa prioris elegantiae gratiam amittant nec nisi sententiae dispendio aut secure omiti aut temere com-mutari possintrdquo (JM 1557 [Nota 1] 133-27) A nota 1 eacute uma carta de Jean Mahot dirigida ao cardeal Franccedilois de Tournon sem data nem local indicados
38 GM 1551 [Nota 1] 1 3-439 JM 1557 [Nota 1] 1 2-340 O original neste caso refere-se agrave ediccedilatildeo do texto grego feita por Victor Trincavello em 1535
Ainda que na eacutepoca houvesse disponibilidade de manuscritos em bibliotecas o mais provaacutevel eacute
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menos proximidade Sob esse aspecto a obra estrutura-se em dezoito livros cada um correspondente a um argumento de Proacuteclo seguido do comentaacuterio e contra-argumento de Filopono Nos dezoito argumentos Proacuteclo defende que o mundo natildeo teve iniacutecio nem teraacute fim de duraccedilatildeo mas sempre existiu No argumento do livro XI ele diz que eacute necessaacute-rio que a mateacuteria (ὕλη) exista pois para que a geraccedilatildeo aconteccedila e ela acontece eacute necessaacuterio que a mateacuteria e a forma (εἶδος) existam sendo a mateacuteria ldquoem vista de algordquo e a forma ldquoisso do que eacute em vistardquo
Filopono responde ao argumento de Proacuteclo em quinze partes cada uma correspondente a um capiacutetulo Fundamentalmente ele diz que natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria e a forma existam poreacutem eacute necessaacuterio que a mateacuteria exista com a forma ou seja o argumento de Proacuteclo natildeo provaria a necessidade de uma existecircncia propriamente mas provaria apenas a necessidade da relaccedilatildeo entre mateacuteria e forma Entretanto como Proacuteclo ou outro filoacutesofo simpaacutetico agraves suas ideacuteias poderiam dizer que a mateacuteria pode existir sem a forma (a mateacuteria primeira πρώτην ὕλην) Filopono apropria-se de uma nova definiccedilatildeo desse conceito
Dos capiacutetulos 1 a 3 o filoacutesofo retoma o que Platatildeo os pitagoacutericos e os estoacuteicos disseram sobre esse conceito e discutindo os argumentos que justificariam essa definiccedilatildeo ele desenvolve a sua proacutepria definiccedilatildeo de mateacuteria primeira como o tridimensional (τὸ τριχῇ διαστατὸν) Nos capiacute-tulos restantes Filopono combate e descarta completamente o conceito de mateacuteria incorpoacuterea e sem forma reduzindo-o ao absurdo e no seu lu-gar defende que desde que a mateacuteria exista ela existe com forma e que o primeiro substrato eacute um volume sem determinaccedilatildeo (ὄγκον ἀόριστον) definido em trecircs dimensotildees (τρισὶ διαστάσεσιν) Com base nesta defini-ccedilatildeo argumenta que a mateacuteria natildeo existiu desde sempre ndash natildeo haacute prova disso ndash mas desde o momento em que ela foi criada por Deus ela existe com uma forma
No especiacutefico das traduccedilotildees pode-se destacar que ao lado do acor-do em verter πρώτην ὕλην por materia prima haacute diferenccedilas conside-raacuteveis entre a versatildeo de Marcello e a de Mahot na traduccedilatildeo de τὸ τριχῇ διαστατὸν
que Gaspare Marcello se tenha baseado na ediccedilatildeo de 1535 para fazer a traduccedilatildeo de contra Pro-clum Nesse ponto a traduccedilatildeo de Jean Mahot eacute mais suscetiacutevel de debate considerando-se que nas cartas publicadas conjuntamente ele revelou ter procurado por manuscritos completos
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Em primeiro lugar deve-se ter em mente que essa locuccedilatildeo tem um artigo definido (τὸ) um nuacutemero (τριχῇ) e um adjetivo (διαστατὸν) e pode ser traduzida literalmente por ldquoo extenso em trecircsrdquo ou ldquoo tridimensionalrdquo41 Eacute importante tambeacutem atentar-se para o uso dessa locuccedilatildeo Filopono em-prega-a como outro nome sinocircnimo de corpo e de volume indetermina-do Assim τὸ τριχῇ διαστατὸν significa o substrato dito simples ou ab-solutamente Diferente dela Filopono usa a locuccedilatildeo τρισὶ διαστάσεσιν para significar as trecircs dimensotildees (comprimento largura e profundida-de) que definem a natureza do substrato
A primeira locuccedilatildeo eacute traduzida por Gaspare Marcello como dimen-sio trina e agraves vezes como triplex dimensum42 Por sua vez ela eacute traduzida por Jean Mahot na primeira ocorrecircncia como triplici dimensione diffu-sum mas ela tambeacutem aparece com outras formulaccedilotildees como triplex di-mensio e tria interualla43
A dimensio trina eacute formalmente um nome acompanhado de um adjetivo A palavra dimensio traduz διαστατὸν e no lugar do caraacuteter de qualidade (do que eacute dimensional) ela potildee um caraacuteter de accedilatildeo em geral mais precisamente de medida em geral A ldquodimensatildeordquo que eacute o substrato eacute singular e parece sugerir uma unidade poreacutem ela eacute tambeacutem ldquotrinardquo segundo uma foacutermula semelhante agrave da Santiacutessima Trindade Deus uno e trino Certamente a semelhanccedila pode ser mera coincidecircncia poreacutem nesse caso ela poderia ser bem conveniente para expressar a situaccedilatildeo de um sujeito que apesar de ser definido por trecircs dimensotildees natildeo eacute com-posto por eles mas eacute simples segundo Filopono44
Aleacutem da trina dimensio Marcello traduz a locuccedilatildeo por trifariam di-mensum ou seja o triplamente dimensionado Nessa traduccedilatildeo ele em-prega um particiacutepio passado em latim que empresta ao termo o caraacuteter
41 M Share traduz por the three-dimensional e P Mueller-Jourdan por la tridimensionaliteacute42 Gaspare Marcello usa regularmente a primeira forma a outra se encontra uma vez em 63B15-1643 Jean Mahot traduz τὸ τριχῇ διαστατὸν de vaacuterios modos ldquotriplici dimensione [] diffusumrdquo
(18533) ldquotriplex dimensiordquo (18739 1881) ldquotrifariam interuallardquo (18741) ldquotriplex inte-ruallumrdquo (18743) ldquotria interuallardquo (1881 1882) e ldquotrifariam extensumrdquo (1886)
44 Essa interpretaccedilatildeo natildeo eacute isenta de problemas inclusive para Filopono pois que na definiccedilatildeo que ele daacute agrave mateacuteria primeira o tridimensional natildeo poderaacute ser composto de forma e substrato mas deve ser simples Mas natildeo seria o proacuteprio tridimensional composto pelas dimensotildees Esse problema eacute examinado no livro XI capiacutetulo 7 Natildeo cabe discuti-lo agora mas para efeito de pro-blematizaccedilatildeo jaacute se pode notar a conveniecircncia de tratar de uma dimensatildeo una e trina em vez de um volume de trecircs dimensotildees
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Matheus Henrique Gomes Monteiro
de accedilatildeo concluiacuteda (passado) mas tambeacutem de algo submetido agrave accedilatildeo de outro (passivo) Fazendo isso Marcello sugere uma oscilaccedilatildeo no interior do mesmo conceito entre a dimensatildeo e o dimensionado entre medir e ser medido entre forma e sujeito
Em triplex dimensio Jean Mahot parece aproximar-se da primeira soluccedilatildeo de Marcello A diferenccedila estaacute em triplex que potildee um sentido de multiplicaccedilatildeo no nuacutemero o substrato eacute tripla dimensatildeo um em trecircs vezes Poreacutem em tria interualla Mahot parece ir em sentido radicalmente con-traacuterio pois o singular διαστατὸν eacute apresentado no plural interualla sem indiacutecio de uma unidade A palavra interuallum tem o sentido de um prolon-gamento intermediaacuterio entre dois pontos quaisquer Essa traduccedilatildeo mostra o substrato como uma conjugaccedilatildeo de trecircs intervalos (o comprimento a lar-gura e a altura) que podem comeccedilar cada um em um ponto e terminar em outro ainda que os pontos natildeo estejam determinados haacute uma intenccedilatildeo de limites que determinem algum volume Nesse sentido tria interualla pode indicar que para Filopono o substrato eacute finito embora seus limites sejam indeterminados ou desconhecidos45
Por outro lado em triplici dimensione diffusum Mahot amplia o sen-tido da locuccedilatildeo Enquanto insere os aspectos singular e passivo de particiacute-pio passado remove o sentido de medida ou de intermediaacuterio e enfatiza a indefiniccedilatildeo do prolongamento O sentido eacute que o substrato estaacute espalhado difundido em uma dimensatildeo triacuteplice
A locuccedilatildeo τρισὶ διαστάσεσιν que Filopono usa para expressar o que define o substrato eacute traduzida tanto por Gaspare Marcello quanto por Jean Mahot por tribus dimensionibus46 Na versatildeo de Marcello o substrato (trina dimensio) e o que define (tres dimensiones) recebem nomes muito proacuteximos parecendo que a dimensatildeo antes singular aparece depois como dimensotildees o que pode inclusive suscitar a pergunta a dimensatildeo eacute uma ou satildeo vaacuterias Por sua vez as versotildees de Jean Mahot optam por distinguir cla-ramente o substrato e o que o define Natildeo obstante como visto o substrato recebe vaacuterios nomes cada um destacando um possiacutevel significado seu
45 Filopono diz que a mateacuteria primeira eacute o corpo o tridimensional e tambeacutem um volume inde-terminado No capiacutetulo 6 ele chega a distinguir o volume indeterminado que eacute ldquosubstacircncia do corpordquo do volume determinado que eacute um acidente Apenas no volume determinado o corpo tem um tamanho delimitado segundo o comprimento a largura e a profundidade Essa distinccedilatildeo suscita algumas dificuldades como saber se o volume indeterminado eacute tambeacutem infinito
46 ldquotribusdimensionibusrdquo (GM 1551 [Livro XI] 62B39) ldquodimensionibus tribusrdquo (JM 1557 [Livro XI] 18536)
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O conceito de mateacuteria primeira segundo Joatildeo Filopono de Alexandria e sua recepccedilatildeo no seacuteculo XVI em latim
Bibliografia
Bibliografia primaacuteria47
Ediccedilatildeo do texto grego feita por Victor Trincavello (1535)
ΙΩΑΝΝΟΥ ΓΡΑΜΜΑΤΙΚΟΥ ΑΛΕΞΑΝΔΡΕΩΣ ΤΟΥ ΦΙΛΟΠΟΝΟΥ ΚΑΤΑ ΠΡΟΚΛΟΥ ΠΕΡΙ ΑΙΑΔΙΟΤΗΤΟΣ ΚΟΣΜΟΥ Ioannis Grammatici Philoponi Alexandrini con-tra Proclum de mundi aeternitate Cautum est Veneti Senatus consulto nequis librum hunc imprimat impune uel alibi impressum uendat
Pela casa editorial de Bartolomeu (Bartholomaeus Casterzagensis) com a dili-gentia de Giovanni Francesco Trincavello (Ioannis Franciscus Trincauellus)
Ediccedilatildeo do texto grego feita por Hugo Rabe (1899)
Ioannes Philoponus de Aeternitate mundi contra Proclum Hugo Rabe (Ed) Lip-sae B G Teubneri 1899
Traduccedilotildees para o latim
Por Gaspare Marcello (1551) Ioannis Grammatici Cognomento Philoponi Libri duodeuiginti Aduersus totidem Procli successoris rationes de mundi aeternitate ad octauum Physicorum Aristotelis librum attinestes Gaspare Marcello Montag-nensi Philosopho Patauino Interprete Venetiis apud Hieronymum Scotum 1551
Por Jean Mahot (1557) Ioannis Grammaticus Philoponus Alexandrinus in Procli Diadichi duodeciuinti argumenta De mundo aeternitate Opus uaria multiplique Philosophia cognitione refertum Ioanne Mahotis Argentenaeo interprete Lug-duni 1557 Cum priuilegio regis
Traduccedilotildees para liacutenguas modernas
Joatildeo Filopono de Alexandria (Philoponus) Against Aristotle On the Eternity of the World Christian Wildberg (Trad) Ithaca New York Cornell University Press 1987 (Ancient Commentators on Aristotle)
47 Os textos da bibliografia primaacuteria de domiacutenio puacuteblico estatildeo disponiacuteveis na internet no siacutetio eletrocircnico do Google Play Livros e no do Archiveorg Deve-se destacar tambeacutem o serviccedilo pres-tado pela Muumlnchener Digitalisierungs Zentrum Digitale Bibliothek em cujo siacutetio se encontram vaacuterios manuscritos e publicaccedilotildees digitalizados
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Matheus Henrique Gomes Monteiro
______ Against Proclus On the Eternity of the World 9-11 Michael Share (Trad) London Bloomsbory 2010 (Ancient Commentators on Aristotle)
______ In Gloses et commentaire du livre XI du Contra Proclum de Jean Philopon autour de la matiegravere premiegravere du monde Leiden Brill 2011 (Philosophia Anti-qua v 125)
Place Void and Eternity Philoponus Corollaries on Place and Void David Fur-ley (Trad) Simplicius Against Philoponus on the Eternity of the World Chris-tian Wildberg (Trad) Ithaca New York Cornell University Press 1991 (Ancient Commentators on Aristotle)
Bibliografia secundaacuteriaBlack R The Philosopher and Renaissance Culture In Hankins J (Ed) The Cambridge Companion to Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge Univer-sity Press 2007 pp 13-29
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Crombie A C Augustine to Galileo the History of Science from 400 to 1650 Cam-bridge Harvard University Press 1953
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Grant E Much Ado About Nothing Cambridge Cambridge University Press 1981
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Hankins J Humanism Scholasticism and Renaissance Philosophy In Hankins J (Ed) The Cambridge Companion to Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 2007 pp 30-48
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Kupreeva I Introduction In Philoponus On Aristotle On Coming-to-Be and Per-ishing 25-11 I Kupreeva (Trad) London Bloomsbury 2005 p 3 (Ancient Com-mentators on Aristotle)
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Wildberg C John Philoponus The Stanford Encyclopedia of Philosophy 2008 Disponiacutevel em lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesphilopo-nusgt Acesso em 22 nov 2016
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
Allan Neves Oliveira Silva(UFMG)
1 Introduccedilatildeo
Eacute no encalccedilo de Avempace (Ibn Bāǧǧa ndash m 1136) e Averroacuteis (Ibn Rushd ndash m 1198) que a emergecircncia da filosofia escrita em liacutengua aacuterabe na Andaluzia e no Magreb encontra seu maior vigor no seacutec XII Sobre eles natildeo satildeo poucos os paralelos que podemos traccedilar seja no que tange as vi-vecircncias pessoais no contexto geograacutefico-poliacutetico em que estatildeo inseridos seja quanto ao percurso intelectual que fizeram A filosofia compreen-dida neste uacuteltimo quesito fez atraveacutes dos dois pensadores seu caminho no Islatilde ocidental ocorrendo de maneira particularmente inovadora na medida em que rivalizava com seus confrades orientais em duas frentes decisivas A primeira foi uma progressiva retomada exegeacutetica das obras que compunham o corpus propriamente atribuiacutedo a Aristoacuteteles o que foi acompanhada de uma revisatildeo mais cuidadosa e consequente descarte do aparato pseudo-epigraacutefico ateacute entatildeo embutido Essa atitude significou a renuacutencia progressiva agrave influecircncia de Avicena e do avicenismo que tomava curso no oriente ao tempo em que por concomitacircncia incitou a elimina-ccedilatildeo de traccedilos neoplatocircnicos que inspiraram seu pensamento e que mar-cavam a falsafa como um todo sobretudo por meio da Teologia de Aristoacute-teles e do Liber de Causis Na segunda frente tem-se que o reavivamento do Aristoacuteteles andaluz natildeo estava ligado a uma investigaccedilatildeo e reinter-pretaccedilatildeo de suas obras stritu senso mas incorporava desenvolvimentos de certa tradiccedilatildeo aristoteacutelica encabeccedilada por al-Farabi1 Tendo em vista essas duas facetas gerais eacute possiacutevel compreender a admiraccedilatildeo creditada a Avempace por Averroacuteis que se faz visiacutevel pela atenccedilatildeo e pelas frequentes
1 Ver Puig Montada (2005)
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 84-96 2017
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
referecircncias que este confere a suas obras ainda que seja para criticaacute-las2 O que se faz mais expressivo poreacutem ndash e eacute isso que nos interessa aqui ndash eacute o que permanece taacutecito nos escritos de Averroacuteis sobre a influecircncia que o saragoccedilano exerceu positivamente em seu pensamento determinando em alguns casos a elaboraccedilatildeo de argumentos cruciais e de seu leacutexico3
Nesta exposiccedilatildeo quero abordar duas teorias caras a Averroacuteis no que diz respeito agraves noccedilotildees universais inteligiacuteveis e a apreensatildeo delas pelo intelecto humano mostrando como sua formulaccedilatildeo estaacute fortemente vinculada sua leitura de Avempace A primeira eacute o que alguns estudio-sos chamam embora natildeo sem dissensotildees de teoria da intencionalida-de que estaacute centrada no conceito de malsquonacirc fundamental tanto na filo-sofia quanto na teologia islacircmicas e que aqui traduzo por ldquointenccedilatildeordquo4 A segunda eacute a que ficou conhecida como a teoria dos dois sujeitos ou substratos (subiectummawducirclsquo) que eacute elaborada para resolver o pro-blema conciliatoacuterio da unidade epistecircmica dos conceitos universais que garante o conhecimento cientiacutefico para todos os indiviacuteduos que conhe-cem e da multiplicidade desse mesmo conhecimento quando tomado em perspectiva os indiviacuteduos em seus exerciacutecios contingentes das ati-vidades cognitivas Para tornar mais firme o ponto que pretendo argu-mentar irei me centrar nas obras de maturidade de Averroacuteis a saber o Meacutedio Comentaacuterio e sobretudo o Grande Comentaacuterio ao De anima de
2 Averroacuteis ainda considerava que Avempace em certa medida tinha se deixado influenciar pelo pensamento aviceniano que era conhecido na Andalusia conforme sentencia no Grande Comen-taacuterio ao De anima de Aristoacuteteles ldquoSed illud quod fecit ilium hominem [Avempace] errare et nos etiam longo tempore est quia Moderni dimittunt libros Aristotelis et considerant libros expositorum et maxime in anima credendo quod iste liber impossible est ut intelligatur Et hoc est propter Avicennam qui non imitatus est Aristotelem nisi in Dialectica sed in aliis erravit et maxime in Metaphysica et hoc quia incepit quasi a serdquo (GC c 30 l 41-48 ver ediccedilatildeo citada desta obra na nota 4 abaixo)
3 Embora seja senso comum a influecircncia de Avempace sobre Averroacuteis sobretudo em sua ju-ventude estudos sobre os diversos toacutepicos e nuances dessa influecircncia estatildeo por ser fazer Para a intencionalidade e espiritualidade dos objetos de cogniccedilatildeo ver Wirmer (2004) e Black (2010) particularmente p 71 n 22 para a noeacutetica e psicologia em geral ver introduccedilatildeo de Taylor em Averroacuteis (2009) pp lxxxix-xciii e suas notas agrave traduccedilatildeo para a fiacutesica ver Puig Mon-tada (1993) e (1996)
4 Este conceito no acircmbito do kalacircm eacute estudado por Frank (1967) e (1981) em Avicena e Averroacuteis por Black (2010) em Avempace por Blaustein (1986) em Averroacuteis por Blaustein (1984) pp 68-122 em Avempace e Averroacuteis por Wirmer (2004) Para o desenvolvimento do conceito nos latinos ver Knudsen (1982)
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Aristoacuteteles5 Ainda assim vou explicitar importantes diferenccedilas entre os dois filoacutesofos muccedilulmanos e extrair ao final um corolaacuterio que eacute o da superaccedilatildeo argumentada do pensamento do Estagirita a despeito de levantada a bandeira de seu reavivamento
2 A intenccedilatildeo e sua funccedilatildeo epistemoloacutegica
O vocabulaacuterio da intenccedilatildeo eacute a pedra fundamental sobre o qual Aver-roacuteis desenvolve sua doutrina de apreensatildeo de noccedilotildees pela alma tanto do acircmbito da percepccedilatildeo sensiacutevel quanto o da apreensatildeo intelectual Por esse termo ele usualmente significa os objetos cognitivos que satildeo compreen-didos pela alma em seus distintos niacuteveis de apreensatildeo a depender do grau de imaterialidade ndash ou ldquoespiritualidaderdquo (rucirchanicircya) como eacute tambeacutem cha-mado por ambos filoacutesofos muccedilulmanos aqui tratados ndash que encerram nas respectivas faculdades receptoras A captaccedilatildeo desses objetos cognitivos por cada faculdade envolve um procedimento abstrativo especiacutefico que resulta na gradual desmaterializaccedilatildeo ou separaccedilatildeo para com a mateacuteria e os acidentes materiais tal como encontrados na realidade concreta ex-terna Nessa medida para que por exemplo qualquer dos cinco sentidos externos ndash juntamente com a faculdade interna organizadora dos dados recebidos o chamado sentido comum ndash perceba um determinado objeto sensiacutevel digamos uma cor ou um som eacute necessaacuterio que ele a apreenda e receba de um modo que natildeo seja aquele que afeta os oacutergatildeos dos sentidos Em outras palavras eacute a dimensatildeo formal do objeto percebido que eacute re-gistrada pela faculdade sensitiva que a recebe abstraiacuteda da mateacuteria com a qual existe na natureza A analogia do sinete de ouro ou de ferro e sua impressatildeo marcada na cera sem a mateacuteria constituinte eacute o recurso usado por Aristoacuteteles em De anima II12 para explicar o caso e a esse respeito Averroacuteis discorre do seguinte modo na parte correspondente do MC
De acordo com esse exemplo cada um dos sentidos eacute afetado por isso que ele naturalmente eacute afetado pela cor se eacute uma cor pelo som se eacute um som Ele natildeo pode ser afetado por isso no sentido em que
5 Cito o Meacutedio Comentaacuterio (MC) e o Grande Comentaacuterio (GC) do qual o original aacuterabe foi perdido restando apenas a traduccedilatildeo latina medieval de Miguel Scotus a partir das respectivas ediccedilotildees Averroacuteis (2002) e Averroacuteis (1953) ediccedilatildeo latina feita por F Crawford e (2009) versatildeo inglesa feita por R Taylor
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
ele se torna som ou cor mas antes no sentido que ele se torna a intenccedilatildeo do som particular (mušār ilāhī) ou a intenccedilatildeo da cor par-ticular ndash isto eacute a [intenccedilatildeo] individual (šaḫs) natildeo universal Isso que tem essa potecircncia ndash a de [receber] a intenccedilatildeo abstraiacuteda da ma-teacuteria ndash eacute o sentido primeiro Quando ele a recebe ele e o recebido se tornam uma uacutenica coisa embora sejam quanto agrave existecircncia (bi-l-wuǧūd) duas [coisas] diferentes6
Embora afetados pelas propriedades materiais dos objetos exter-nos natildeo satildeo elas propriamente que realizam nos sentidos a percepccedilatildeo eacute antes o que cada sentido apreende formalmente daquilo que os apresen-ta Da cor e do som particular resultam as intenccedilotildees por meio das quais os objetos tornam-se perceptiacuteveis agraves faculdades da alma As intenccedilotildees sen-siacuteveis recebidas nas faculdades sensitivas satildeo isentas pois da materiali-dade caracteriacutestica da realidade externa Eacute a rejeiccedilatildeo ou anulaccedilatildeo dessa materialidade que constitui o caraacuteter abstrativo proacuteprio da recepccedilatildeo sen-sitiva Averroacuteis evidencia o contraste da dimensatildeo formal no objeto real e nos sentidos ao destacar a disparidade ontoloacutegica (bi-l-wujucircd) com que se apresenta Dessa diferenciaccedilatildeo observa-se que a intenccedilatildeo usufrui de um estatuto existencial proacuteprio que o estabelece enquanto objeto cogniti-vo formado na alma Esse modo de existecircncia reflete um modo de ser que eacute imaterial no sentido que contraria o modo com que a dimensatildeo formal existe no exterior
Conveacutem aqui um acerto de contas terminoloacutegico O uso de malsquonacirc para a dimensatildeo formal na psicologia cognitiva animal e humana eacute uma peculiaridade nascente na filosofia aacuterabe com maior expressatildeo em Aver-roacuteis e Avempace e que natildeo encontra correspondente direto no texto aris-toteacutelico Neste encontramos colocaccedilotildees que podem ser sintetizadas na emblemaacutetica foacutermula de que natildeo eacute a pedra que estaacute na alma mas sua forma7 ldquoFormardquo a que me refiro por dimensatildeo formal e que corresponde em grande medida ao conceito de intenccedilatildeo traduz o grego eicircdos que no aacuterabe foi vertido para sucircra Pela proximidade que sucircra possui com malsquonacirc no contexto tratado natildeo eacute de se surpreender que tanto Averroacuteis quanto Avempace faccedilam uso de ambos os termos indistintamente Dessa conve-niecircncia torna-se manifesto o aspecto existencial apontado da intenccedilatildeo na
6 MC p 87 l 12-197 De anima III8 431b29-432a1
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medida em que se porta como objeto cognitivo e que justifica a justa e mais apropriada traduccedilatildeo de malsquonacirc por ldquonoccedilatildeordquo ou ldquoconceitordquo A conces-satildeo teacutecnica deste termo entretanto eacute marcantemente feita por Averroacuteis tendo em vista esse mesmo aspecto que o conecta ao modo de ser nas fa-culdades receptivas sensiacuteveis corpoacutereas e no intelecto ao passo que sucircra integraria a existecircncia externa agrave alma como parte formal da substacircncia que eacute o ente natural8 Essa diferenciaccedilatildeo entre malsquonacirc e sucircra jaacute estaacute contida em Avempace ldquoA diferenccedila que haacute entre a intenccedilatildeo e a forma eacute que a for-ma se torna junto com a mateacuteria uma coisa soacute sem que aiacute haja diferenccedila enquanto que a intenccedilatildeo do apreendido eacute uma forma separada da mateacute-ria Assim pois a intenccedilatildeo eacute a forma separada da mateacuteriardquo9 Ao considerar os diversos graus de separabilidade da mateacuteria o que define a gradaccedilatildeo progressiva de imaterialidade ou espiritualidade existente temos funda-mentada a classificaccedilatildeo rushdiana das intenccedilotildees sensiacuteveis (dos sentidos externos e comum) imaginativas (da imaginaccedilatildeo e de modo geral dos sentidos internos) e inteligiacuteveis (do intelecto humano)10 O aspecto exis-tencial da intenccedilatildeo em cada uma das faculdades e sua consequente gra-daccedilatildeo satildeo pontos bastante enfatizados por Avempace que descreve rei-teradamente em suas obras trecircs modos de existecircncia para as intenccedilotildees O terreno terminoloacutegico comum nos dois autores eacute com isso estruturado pela sistematizaccedilatildeo ontologizante dos objetos de cogniccedilatildeo
Uma outra propriedade implicada na intenccedilatildeo determina a pecu-liaridade do termo e avaliza seu uso no contexto de uma teoria da inten-cionalidade tal como se desenvolveraacute no Ocidente latino medieval tardio Como mencionado na passagem citada do MC a intenccedilatildeo eacute necessaria-mente intenccedilatildeo de algo ndash no caso intenccedilatildeo do som particular da cor particular ndash que sempre remete a partir do qual ela eacute formada enquan-to conceito que expressa a essecircncia da coisa em um modo de existecircncia
8 MC p 87 4-6 ldquo[] a sensaccedilatildeo de cada sentido eacute isso que recebe as formas sensiacuteveis (suwar mahsucircsacirct) sem a mateacuteria Por isso as [formas sensiacuteveis] satildeo intenccedilotildees na alma e coisas corpoacute-reas fora da alma completamente natildeo percebidas e indiferenciadas [nelas mesmas]rdquo GC II c 121 l 14-20 ldquo[] receptio formarum sensibilium ab unoquoque sensu est receptio abstracta a materia Si enim reciperet eas cum materia tune idem esse haberent in anima et extra animam Et ideo in anima sunt intentiones et comprehensiones et extra animam non sunt neque inten-tiones neque comprehensiones sed res materiales non comprehense omninordquo
9 AVEMPACE De anima (1960) p 9411-1310 GC III c 6 l 68-78 c 7 l 55-64
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
proacuteprio A intenccedilatildeo forccedilosamente se refere a algo externo a si mesma e esse seu aspecto referencial ou relacional sinaliza ao referente a base de seu conteuacutedo enquanto conceito De fato nesse vieacutes Avempace fala em O regime do solitaacuterio da relaccedilatildeo particular que a intenccedilatildeo sensiacutevel recebi-da possui para com um determinado indiviacuteduo em contraposiccedilatildeo agrave rela-ccedilatildeo universal ou geral a qual sustenta a intenccedilatildeo inteligiacutevel para com os muacuteltiplos indiviacuteduos referentes mediadas pelas intenccedilotildees sensiacuteveis mais espirituais na imaginaccedilatildeo A relaccedilatildeo constituinte da intenccedilatildeo e que a faz ser propriamente intencional estaacute pois intimamente ligada com o modo de existecircncia que ela porta (e vide abaixo a preferecircncia terminoloacutegica por sucircra)
Natildeo haacute em absoluto qualquer corporeidade na forma da faculdade racional e por isso desaparece dela toda relaccedilatildeo particular (nisba hacircsṣa) entre ela e o indiviacuteduo (shahs) pois sempre que existe a rela-ccedilatildeo particular haacute entatildeo alguma corporeidade e eacute graccedilas a esta que existe a relaccedilatildeo particular E quando a corporeidade eacute eliminada e haacute pura espiritualidade natildeo resta para as [formas] senatildeo a relaccedilatildeo geral (nisba lsquoacircmma) que eacute sua relaccedilatildeo com seus indiviacuteduos Eis por-que tambeacutem quando essa relaccedilatildeo geral desaparece do mesmo modo desaparece totalmente a corporeidade dessa forma natildeo lhe restando relaccedilatildeo com [seus indiviacuteduos] senatildeo de uma outra maneira11
O aspecto relacional da intenccedilatildeo eacute um caminho de via dupla ao tem-po em que pelo conteuacutedo mesmo se refere a algum objeto fora da alma eacute por causa do objeto mesmo referido que a intenccedilatildeo eacute formada nas dis-tintas faculdades sensitivas corpoacutereas e na intelectual Assim a intenccedilatildeo de determinada cor ou som soacute mantem uma relaccedilatildeo individual e ocorre nos sentidos porque a coisa externa se fez presente na percepccedilatildeo sensiacutevel e para ser percebida continha essa mesma intenccedilatildeo natildeo em ato mas em potecircncia No que tange a intenccedilatildeo inteligiacutevel embora se refira aos existen-tes individuais fora da alma ela eacute recebida sem mediaccedilatildeo no intelecto a partir das intenccedilotildees imaginativas que a contecircm em potecircncia ldquoOs inteligiacute-veisrdquo nos diz Averroacuteis no GC ldquosatildeo as intenccedilotildees das formas da imaginaccedilatildeo separadas da mateacuteria (intellecta sunt intentiones formarum ymaginationis
11 AVEMPACE O regime do solitaacuterio (2010) p 134 l 5-11
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Allan Neves Oliveira Silva
abstracte a materia)rdquo12 O conceito intelectual portanto com seu modo de ser totalmente imaterial no sentido que natildeo guarda em seu conteuacutedo qual-quer traccedilo de corporeidade ou de acidentes da mateacuteria estaacute estritamente vinculado pelo seu aspecto relacional agraves intenccedilotildees imaginativas de que eacute conceito13 Esse viacutenculo eacute firmemente estabelecido e prova sucinta disso eacute a curiosa expressatildeo intellecta materialiaal-malsquoqucirclacirct al-hayucirclacircnicirc presente no filoacutesofo cordobecircs que eacute bastante recorrente no Tratado sobre a conjunccedilatildeo do intelecto com o homem de Avempace e que qualifica o inteligiacutevel por sua proveniecircncia uacuteltima fundada nos entes naturais percebidos pelos sentidos Com os dois aspectos contidos na malsquonacirc inteligiacutevel ndash uma delas que respon-de agrave intencionalidade propriamente dita ndash eacute possiacutevel constatar inovaccedilatildeo apurada do empirismo aristoteacutelico expresso pela foacutermula oudeacutepote noeicirc aacuteneu phantaacutesmatos hecirc psycheacute14 Averroacuteis entretanto eacute mais enfaacutetico que seu antecessor andaluz em dois pontos capitais que aqui apenas remeto 1ordm- ele organiza de modo consistente uma continuidade existencial da ins-tacircncia imaginativa agrave inteligiacutevel na medida em que ao contraacuterio de Avempa-ce admite a funccedilatildeo ldquomotorardquo das imagens para a apreensatildeo das intenccedilotildees inteligiacuteveis15 2ordm- natildeo haacute em sua noeacutetica um estaacutegio intelectivo no homem em que as noccedilotildees inteligiacuteveis natildeo satildeo mais apreendidas nas intenccedilotildees ima-ginativas o que dissolveria o aspecto relacional descrito Para Avempace em certo estaacutegio de desenvolvimento intelectual elas satildeo captadas por si mesmas (bi-nafsihi) como numa espeacutecie de contemplaccedilatildeo pura natildeo me-diada de conceitos abstratos para o homem que percorreu sua ascensatildeo pelo conhecimento cientiacutefico experimentado o que parece compreender a conjunccedilatildeo com o intelecto agente16
12 GC III c 30 l 31-3213 Cf AVEMPACE Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) pp 192-195 passim14 De anima III7 431a16-1715 ldquoUm dos aspectos mais originais da obra consiste em colocar em relaccedilatildeo a questatildeo da accedilatildeo que o
motor exercita sobre o moacutevel com a noeacutetica Avempace concebe a accedilatildeo do intelecto agente sobre o humano segundo o modelo do movimento fiacutesico O intelecto eacute o lsquomotorrsquo que move o homem em direccedilatildeo a sua uacuteltima perfeiccedilatildeordquo (GEOFFROY 2005 p 691)
16 Ver para tanto Avempace Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) p 197 l 8 e p 199 l 13-15 A proacutepria analogia da luz para descrever o processo de aquisiccedilatildeo do inteligiacutevel serve a esta con-clusatildeo visto que nela sua percepccedilatildeo direta isto eacute sem os ldquointermediaacuteriosrdquo que satildeo as formas espirituais sensiacuteveis eacute correspondida agrave contemplaccedilatildeo direta da luz (ora ldquosolrdquo) que acaba se confundindo no tratado com o proacuteprio intelecto agente ver p 197-198 Ver ainda sobre isso Blaustein (1986) pp 210-211 que levanta problemas quanto agrave ausecircncia do aspecto referencial dos inteligiacuteveis puros
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
3 A teoria dos dois sujeitos
No comentaacuterio quinto do terceiro livro do Grande Comentaacuterio ao De anima Averroacuteis sustenta sua famosa tese do intelecto material separado e uacutenico para todos os homens Eacute por meio dele que os indiviacuteduos recebem as noccedilotildees inteligiacuteveis imateriais e as conhecem apoacutes realizarem a accedilatildeo abstrativa sobre as intenccedilotildees sensiacuteveis na imaginaccedilatildeo o que eacute feita por meio da causa atualizadora sempre em ato o intelecto agente separado A defesa da separabilidade do intelecto material eacute de acordo com Averroacuteis feita por Temiacutestio mas satildeo as implicaccedilotildees teoacutericas aparentes dessa tese inobservadas pelo filoacutesofo grego tal como interpretado que constrangem logicamente sua viabilidade Averroacuteis agrupa essas implicaccedilotildees em trecircs questotildees (questiones) gerais das quais me atenho agraves duas primeiras Es-tas antes de se referirem agrave natureza do intelecto material (o que faz es-tritamente a terceira) trazem em foco a possibilidade da apreensatildeo das intenccedilotildees inteligiacuteveis e o caraacuteter proacuteprio delas enquanto pensadas pelos intelectos teoacutericos (intellectus speculativus) individuais humanos Eacute pre-ciso explicar de que modo com o intelecto material uacutenico e eterno com-partilhado por todos eacute possiacutevel que para cada indiviacuteduo o pensamento de noccedilotildees inteligiacuteveis venha a ser 1- contingente dado que ora pensamos ora natildeo e 2- individuado dado que este pensamento que tenho eacute meu e ele se diferencia cumulativa e temporalmente do teu17 O que estaacute em jogo nas duas questotildees eacute que sendo a eternidade e a unidade do intelecto ma-terial partilhadas pelos objetos de conhecimento que ele intelige conti-nuamente esses objetos inteligiacuteveis de algum modo devem efetivamente pertencer com tais propriedades a todos os indiviacuteduos que estatildeo engaja-dos no ato de pensar Averroacuteis responde a tais demandas com a chamada teoria dos dois sujeitos ou substratos dos inteligiacuteveis ldquo[] os inteligiacuteveis em ato tecircm dois sujeitos dos quais um eacute o sujeito por meio do qual (per quod) eles satildeo verdadeiros (vera) ou seja as formas que satildeo imagens ver-dadeiras e o outro por meio do qual os inteligiacuteveis satildeo um dos existentes no mundo e este eacute o intelecto materialrdquo18 Com essa tese temos o seguin-
17 GC III c 5 l 344-36118 ldquo[] intellecta in actu habeant duo subiecta quorum unum est subiectum per quod sunt vera
scilicet forme que sunt ymagines vere secundum autem est illud per quod intellecta sunt unum entium in mundo et istud est intellectus materialisrdquo (III c 5 l 386-390)
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te os inteligiacuteveis satildeo uacutenicos e eternos na medida em que o substrato no qual satildeo recebidos e compreendidos eacute o intelecto material havendo neste sua fundaccedilatildeo existencial enquanto seres Entretanto por outro lado tam-beacutem as intenccedilotildees sensiacuteveis da imaginaccedilatildeo satildeo ditas substratos e o satildeo na medida em que eacute a partir delas que os inteligiacuteveis entatildeo em potecircncia satildeo inteligidos em ato no intelecto material Pelo fato das intenccedilotildees sensiacuteveis serem distintas em cada um dos indiviacuteduos cognoscentes tais indiviacuteduos se tornam autocircnomos natildeo apenas quanto aos apreendidos pelos cinco sentidos mas tambeacutem quanto ao proacuteprio ato cognitivo que daacute acesso ao corpus de inteligiacuteveis corpus este que eacute partilhado tal como o intelecto material por todos
Satildeo notaacuteveis as similaridades que se pode traccedilar do leacutexico usado por Averroacuteis e do estabelecimento mesmo dos dois sujeitos para os in-teligiacuteveis com o que encontramos em Avempace em especial no jaacute citado Tratado sobre a conjunccedilatildeo De fato guardadas as devidas proporccedilotildees e peculiaridades de sua argumentaccedilatildeo e doutrina podemos dizer que Aver-roacuteis inspirou a estrutura de seu comentaacuterio quinto nesta obra Tambeacutem aiacute Avempace fala das questotildees problemaacuteticas (al qawl al-mushakkik)19 agrave tese de que o intelecto eacute numericamente uno para todos e ele trata de resolver tais questotildees como foco central do tratado descrevendo o mecanismo de apreensatildeo intelectual e as classes de indiviacuteduos ndash o vulgo os cientistas e os filoacutesofos ndash que atuam em niacuteveis distintos no processo intelectivo Em-bora Avempace fale com bastante frequecircncia no referido tratado apenas do sujeito (mawducirclsquo) dos inteligiacuteveis visando as intenccedilotildees imaginativas o termo se aplica igualmente ao intelecto em que ele se realiza Em O regime do solitaacuterio o procedimento explicativo ao falar da forma inteligiacutevel daacute o tom da influecircncia de modo mais expliacutecito
Esta forma sobre a qual noacutes temos enumerado com respeito agrave for-ma particular tem uma existecircncia oposta [a ela] Com efeito o su-jeito daquela forma [particular] sobre o qual se apoia e pelo qual ela existe e eacute verdadeira (sacircdiq) eacute uno [enquanto que] o sujeito no qual ela eacute uma disposiccedilatildeo (hayrsquoa) eacute muacuteltiplo [Por sua vez] o sujeito desta [forma inteligiacutevel] pelo qual ela existe eacute muacuteltiplo e o sujeito para qual ela eacute uma disposiccedilatildeo eacute muacuteltiplo20
19 AVEMPACE Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) pp 19119-20 19511 1991320 AVEMPACE O regime do solitaacuterio (2010) p 178 1-5
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Aspectos da influecircncia avempaceana sobre a teoria da intelecccedilatildeo de Averroacuteis
Tal como Avempace Averroacuteis aplica o esquema terminoloacutegico do duplo sujeito com o qual explica a concepccedilatildeo e existecircncia dos inteligiacuteveis tambeacutem ao acircmbito da percepccedilatildeo sensorial das noccedilotildees que possuem grau de materialidade Averroacuteis deve-se dizer se apresenta mais consistente que seu predecessor na medida em que restringe de modo mais argu-mentado e contiacutenuo a fundaccedilatildeo existencial dos inteligiacuteveis no intelecto material que defende como separado ao passo que o outro ao tempo em que vincula a noccedilatildeo de existecircncia deles agraves intenccedilotildees imaginativas muacuteltiplas a que se referem ndash como subentende-se na passagem acima ndash no Tratado sobre a conjunccedilatildeo ele os designa enquanto tais como ldquoum dos existentes do mundordquo (ahad mawjucircdacirct al-lsquoacirclam)21 No entanto o ponto que distancia mais radicalmente os dois filoacutesofos eacute precisamente o sujei-to em que os inteligiacuteveis se encontram enquanto tais Jaacute observamos que Averroacuteis os articula no intelecto material uacutenico mas o que Avempace tem em mente no Tratado sobre conjunccedilatildeo eacute ao contraacuterio a unidade do inte-lecto agente onde os inteligiacuteveis seriam ldquouacutenicos eternos impereciacuteveis e incorruptiacuteveisrdquo22 Eacute curioso notar que ainda que isso esteja firmemente estabelecido no saragoccedilano ele insiste em remeter o sujeito do inteligiacute-vel tal como eacute apreendido agrave multiplicidade dos intelectos humanos suas ldquodisposiccedilotildeesrdquo ao passo que Averroacuteis os unifica no intelecto material Essa transposiccedilatildeo agrave primeira vista incoerente no Tratado sobre a conjunccedilatildeo eacute em alguma medida explicitamente apontada no GC que acusa pela proacute-pria flexibilidade lexical do modo de escrita avempaceano o tratamento equiacutevoco da noccedilatildeo de intelecto ora aplicado ao agente ora ao humano23
4 Conclusatildeo
As duas seccedilotildees que expus entram em paralelo e confluem para a conclusatildeo mais abrangente que quero extrair aqui A teoria da intencio-nalidade desenvolvida por Avempace e Averroacuteis eacute atraveacutes da noccedilatildeo de malsquonacirc filosoficamente integrada agraves noccedilotildees imateriais apreendidas pelo intelecto de modo a destacar a dimensatildeo referencial que tais noccedilotildees pos-suem vis-agrave-vis a proveniecircncia rigorosamente empiacuterica nela implicada
21 AVEMPACE Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) p 19415-1622 AVEMPACE Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) p 1991523 GC III c 5 l 729-756
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Por se referir a algo concreto em uacuteltima instacircncia mas que faz imedia-to apelo aos dados sensiacuteveis da imaginaccedilatildeo a intenccedilatildeo inteligiacutevel conta nestes dados os sujeitos onde satildeo ldquoverdadeirosrdquo isto eacute cujo referente atesta sua existecircncia como objeto cognitivo de algo Por outro lado haacute a dimensatildeo existencial da intenccedilatildeo inteligiacutevel enquanto entidade imate-rial que como essecircncia se encontra em um modo de existecircncia peculiar intelectual no substrato de mesma natureza incorpoacuterea o intelecto Este eacute o outro sujeito do inteligiacutevel Essas duas dimensotildees satildeo sistematizadas pelos dois filoacutesofos no que entendo ser o estatuto dos inteligiacuteveis por eles desenvolvidos para resolver problemas da intelecccedilatildeo como os dois breve-mente apresentados do GC Os inteligiacuteveis tanto para Avempace quanto para Averroacuteis satildeo compostos pelo que eles designam ldquoaspectosrdquo ou ldquopar-tesrdquo sendo um o que neles ldquopersisterdquo e o outro o que neles ldquoperecerdquo24 A di-ferenccedila crucial eacute que enquanto o lado eterno dos inteligiacutevel para Averroacuteis eacute marcantemente argumentado como estando no intelecto material uacutenico e separado para Avempace tal aspecto estaacute vinculado com o intelecto agente embora de algum modo os intelectos humanos individuais sejam ditos sujeitos A doutrina noeacutetica desenvolvida pelo filoacutesofo cordo-becircs incluindo sua famosa tese do intelecto material que tanto aticcedilaraacute o mundo latino ainda que por um movimento criacutetico em diversos pontos eacute resultado de uma maturaccedilatildeo de ideias lanccediladas por seu predecessor Ambos poreacutem concordam ao conquistar com o estatuto dos inteligiacuteveis como se faz ver um terreno inovador e estranho ao pensamento do pri-meiro Mestre de Estagira
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24 AVEMPACE Tratado sobre a conjunccedilatildeo (2010) p 191 l 21 p 193 l 13 GC III c 5 l 600-601
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Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6
Maacutercio Augusto Damin Custoacutedio(UNICAMP)
Haacute dois momentos distintos da interpretaccedilatildeo que Tomaacutes de Aquino faz da identidade da essecircncia com a coisa no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII O primeiro momento da interpretaccedilatildeo se daacute em VII 6 quando Tomaacutes sus-tenta que as substacircncias particulares sensiacuteveis possivelmente satildeo o me-lhor candidato agrave identidade com a essecircncia Em um segundo momento ao comentar VII 11 a tese da identidade eacute finalizada com o refinamento da noccedilatildeo de mateacuteria mas natildeo revisada como sustentam comentadores1 No longo caminho argumentativo entre as duas liccedilotildees haacute uma constacircncia a insistecircncia com que Tomaacutes recorre agraves formas platocircnicas para sustentar a relevacircncia de uma investigaccedilatildeo sobre a identidade entre a essecircncia e a coisa2
Ao opor-se agraves formas platocircnicas Tomaacutes esclarece que por maior que seja a dificuldade da investigaccedilatildeo ela natildeo pode ser evitada e se deve resistir agrave tentaccedilatildeo de recorrer agrave faacutecil poreacutem equivocada soluccedilatildeo segundo a qual a essecircncia eacute separada ldquoOs platocircnicos afirmam que haacute formas sepa-radas somente por esta razatildeo que certo conhecimento das coisas sensiacute-veis talvez seja obtido por meio dessas formas na medida em que as coi-sas sensiacuteveis existem por participar delasrdquo (Exp Met VII lec 5 n 1368)
1 Galluzzo (2013 269-282) tratou extensivamente do Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII e sustentou que Tomaacutes endossa a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles em VII6 mas em VII 11 revisa a posiccedilatildeo com o intuito de dar relevacircncia a distinccedilatildeo entre a mateacuteria e forma Natildeo creio que as noccedilotildees de mateacuteria e forma natildeo possuam relevacircncia em VII 6 especialmente na oposiccedilatildeo agraves formas platocircnicas
2 Tomaacutes prefere referir-se aos platocircnicos mesmo ao lidar com posiccedilotildees ou argumentos atribuiacutedos a Platatildeo Este cuidado possivelmente se deve ao pouco acesso que Tomaacutes teve ao texto de Platatildeo Ao longo do artigo e nas traduccedilotildees uso indistintamente ldquoposiccedilotildees platocircnicasrdquo ou ldquoplatocircnicosrdquo para referir aos argumentos sob ataque Natildeo entro portanto no debate sobre a precisatildeo his-toacuterica da expressatildeo nem me compete esclarecer a quais autores refere o termo ldquoplatocircnicosrdquo O tema eacute apresentado por HENLE 1956 p xxi Sobre o uso que Tomaacutes faz da expressatildeo ldquoposiccedilotildees platocircnicasrdquo vide HENLE 1955 p 391-409 Para a ocorrecircncia do termo ldquoplatocircnicosrdquo em outras obras especialmente o Comentaacuterio ao Livro das Causas vide DE VOGEL 1966 p 69-70
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Maacutercio Augusto Damin Custoacutedio
As formas platocircnicas cumprem a funccedilatildeo no comentaacuterio de siacutentese das posiccedilotildees sobre a ausecircncia de identidade Nesse contexto argumentativo a aversatildeo agraves formas platocircnicas natildeo deve ser compreendida como aversatildeo a Platatildeo ela eacute antes de tudo uma defesa do hilemorfismo ou se se preferir ela decorre da dependecircncia que a metafiacutesica de Tomaacutes tem das noccedilotildees de mateacuteria e forma como modelo explicativo
A referecircncia aos platocircnicos surge logo no iniacutecio do comentaacuterio as-sim que se informa o leitor que obviamente natildeo haacute possibilidade de se considerar nem o acidente3 nem o composto acidental4 como idecircnticos agrave substacircncia Tomaacutes esclarece que a investigaccedilatildeo restringe-se aos entes na-turais o que significa que se pergunta pela relaccedilatildeo que as substacircncias sen-siacuteveis que satildeo entes particulares guardam com sua natureza ou quidida-de ldquoPoreacutem talvez seja suficiente para a posiccedilatildeo que a quididade da coisa seja a mesma que a coisa ao inveacutes da forma mesmo que seja verdadeiro que aja formas porque as formas existem distintas das coisasrdquo (Exp Met VII lec 5 n 1368) Natildeo se trata de colocar as formas platocircnicas no centro da discussatildeo trata-se de mostrar que por serem separadas ou seja en-tes universais distintos dos entes naturais particulares as formas natildeo po-dem sem destruiacuterem sua natureza ser idecircnticas laquoDestas consideraccedilotildees o Filoacutesofo quer que entendamos que as formas separadas satildeo destruiacutedasraquo (Exp Met VII lec 5 n 1368) Por esse motivo aqueles que sustentam as formas separadas natildeo podem consideraacute-las para a tese da identidade que por seu turno tem que ser resolvida no interior dos entes sensiacuteveis particulares Donde se segue o alerta ao leitor do comentaacuterio laquoAdemais uma coisa eacute entendida e tem existecircncia por meio de algo que eacute conectado com ela e eacute o mesmo ao inveacutes de secirc-lo por meio de algo separado delaraquo (Exp Met VII lec 5 n 1368) Do corpo de argumentos sobre a tese da identidade destaca-se o seguinte ataque agraves formas separadas
3 Sobre a ausecircncia de identidade da essecircncia com o acidente Tomaacutes comenta ldquoPois eacute evidente que a essecircncia do homem branco natildeo eacute a mesma que a do homem porque nem tudo o que eacute predicado por acidente do sujeito eacute necessariamente o mesmo que o sujeitordquo (Exp Met VII lec 5 n 1360)
4 ldquoPois o sujeito eacute em um certo sentido um meio entre dois acidentes que satildeo predicados dele na medida em que estes dois acidentes satildeo um porque o homem do qual predicam eacute um Portanto homem eacute o meio e branco e musical satildeo os extremosrdquo (Exp Met VII lec 5 n 1360)
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Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6
Tomaacutes sustenta que as formas devem ser destruiacutedas uma vez que satildeo inuacuteteis seja para que o intelecto conheccedila5 por meio delas a essecircncia das coisas seja porque natildeo eacute por participaccedilatildeo nelas que decorre a nature-za mesma das substacircncias naturais particulares laquoPois se as formas forem mantidas meramente para nosso entendimento das coisas e para seu ser (hellip) segue-se que eacute inuacutetil sustentar as formas separadasraquo (Exp Met VII lec 5 n 1369) Tomaacutes insiste nessa dupla caracterizaccedilatildeo da forma sepa-rada que daacute a natureza dos existentes particulares e que possibilita ao intelecto o conhecimento da natureza desses mesmos particulares
Ele diz lsquoe se elas estatildeo separadas umas das outrasrsquo ou seja se a essecircncia da coisa e a coisa mesma natildeo forem apenas diferentes mas tambeacutem separadas uma da outra dois absurdos se seguem O primeiro eacute que natildeo haveraacute entendimento daquelas coisas cuja es-secircncia eacute separada delas a segunda eacute que estas mesmas coisas natildeo seratildeo seres (Exp Met VII lec 5 n 1363)
Tomaacutes argumenta tambeacutem que se existem formas separadas do ente natural das duas uma ou as formas seriam em vista de algo ou se-riam por si Ser em vista de algo condiciona a existecircncia das formas ao nosso intelecto ou agrave existecircncia de substacircncias particulares Dificilmente argumentando por essa via se concluiria que a forma separada seria a essecircncia daquilo de que depende para ser o que natildeo eacute o caso Se a forma for por si entatildeo eacute preciso admitir que ela como todo ente eacute em vista de uma essecircncia Contudo como se admite para efeitos de argumento que a essecircncia eacute forma separada regredir-se-ia ao infinito A forma separada essecircncia dos particulares por ser separada seria um ente cuja nature-za seria uma forma separada que por ser separada etc Ademais se as essecircncias das formas forem separadas elas seratildeo substacircncias anteriores em relaccedilatildeo agraves formas o que significa que as formas natildeo mais poderiam ser tratadas como substacircncias primeiras
Eacute preciso enfatizar que haacute no funcionamento do argumento a admissatildeo impliacutecita de que as formas separadas satildeo substacircncias separadas
5 ldquoQuanto a isto ele diz primeiro que no caso das predicaccedilotildees essenciais a essecircncia da coisa e a coisa ela mesma devem sempre ser a mesma Isto fica claro quando se sustenta que haacute substacircn-cias que satildeo separadas destas substacircncias sensiacuteveis ou naturezas anteriores Pois os platocircnicos dizem que ideias abstratas satildeo substacircncias desse tipordquo (Exp Met VII lec 5 n 1362)
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ou seja entidades do mundo criado laquoOs platocircnicos adotam a posiccedilatildeo de que as ideias devem ser substacircncias e natildeo pertencer a algum sujeito Pois eacute proacuteprio da substacircncia natildeo ser em um sujeitoraquo (Exp Met VII lec 5 n 1370) Somente desse modo Tomaacutes pode sugerir ao leitor que se deve perguntar pela primazia substancial das formas Uma vez que satildeo subs-tacircncias por serem separadas as formas ou seriam substacircncias primei-ras ou sua essecircncia seria anterior e separada Se se admite que as essecircn-cias satildeo anteriores e separadas entatildeo satildeo elas as substacircncias primeiras e natildeo as formas contrariando a admissatildeo inicial Tomaacutes natildeo considera no argumento o caso em que as formas satildeo separadas dos particulares sensiacuteveis mas natildeo satildeo separadas absolutamente pertencendo a alguma inteligecircncia superior como ao doador de formas Descartada essa pos-sibilidade tem-se aquilo que Tomaacutes designa como laquoplatocircnicoraquo ou como formas platocircnicas Contudo como o argumento elimina a possibilidade de se considerar ente ou substacircncia as formas separadas resta consideraacute--las nas substacircncias particulares das quais satildeo formas laquoSe estes sujeitos quero dizer das coisas sensiacuteveis entre noacutes satildeo substacircncias devem secirc-lo por participaccedilatildeo nestas formas separadas Portanto estas formas seratildeo no sujeitoraquo (Exp Met VII lec 5 n 1370)
O segundo argumento contra as formas platocircnicas estrutura-se en-torno das duas funccedilotildees da forma quais sejam possibilitar que as coisas sejam tais quais satildeo e possibilitar que conheccedilamos as coisas tais quais satildeo Se a forma eacute a essecircncia e eacute separada da coisa entatildeo ela natildeo pode operar nenhuma de suas duas funccedilotildees Ela natildeo poderia nos dar o conhe-cimento das coisas sensiacuteveis pois quando conhecemos algo que eacute total-mente separado natildeo conhecemos aquilo do que este algo estaacute separado6 Se a essecircncia de algo eacute separada deste algo entatildeo a essecircncia da forma deve ser separada dela7 Poreacutem se a essecircncia e a sua forma satildeo ambas separadas tem-se que a essecircncia do bem por exemplo natildeo eacute na forma bem e o bem natildeo eacute na essecircncia de bem Isto ocorre porque sendo o bem separado da forma do bem a essecircncia do bem natildeo pode ter o atributo que a forma do bem possui e confere agraves coisas boas Do mesmo modo a es-secircncia do ser natildeo seraacute na forma do ser e esta natildeo seraacute no ser Isto significa que natildeo haveria existecircncia uma vez que sem a essecircncia do ser natildeo pode
6 Exp Met VII lec 5 n 13657 Exp Met VII lec 5 n 1366
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Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6
haver nenhuma outra essecircncia Em outras palavras natildeo havendo essecircn-cias das formas natildeo haveria nem formas nem particulares
Para Tomaacutes a questatildeo sobre a identidade da essecircncia permanece em aberto em Metafiacutesica VII 6 uma vez que aprendemos que ela natildeo eacute cons-truiacuteda nem como compostos acidentais nem como acidentes nem com for-mas platocircnicas A questatildeo continua em Metafiacutesica VII 11 quando Tomaacutes re-coloca o tema ao esclarecer que embora tenha-se concluiacutedo que a essecircncia dos particulares lhes eacute interior natildeo estaacute claro como isso eacute possiacutevel
Deve-se notar que da opiniatildeo que ele manifestou aqui segundo a qual cada coisa e sua essecircncia satildeo a mesma ele agora exclui dois tipos de coisas coisas que satildeo por acidente e substacircncias que satildeo materiais embora acima ele tenha excluiacutedo somente as coisas que satildeo ditas serem acidentais Isto eacute necessaacuterio natildeo apenas para ex-cluir a anterior mas tambeacutem para excluir as substacircncias materiaisPoreacutem de fato eacute impossiacutevel para a forma existir exceto em uma substacircncia particular Desse modo se toda coisa natural tem a ma-teacuteria que eacute parte de sua espeacutecie e esta pertence agrave essecircncia ela deve ter tambeacutem a mateacuteria individual que natildeo pertence agrave sua essecircncia Portanto se alguma coisa natural tem mateacuteria ela natildeo eacute sua proacute-pria essecircncia mas algo tendo uma essecircncia (Exp Met VII lec 11 n 1535)
A passagem parte da compreensatildeo de que a multiplicidade dos particulares natildeo pode ser identificada com a essecircncia e soacute pode ser ex-plicada por aquilo que o indiviacuteduo tem aleacutem da essecircncia o princiacutepio que o individua ldquoPois como foi dito acima o que a definiccedilatildeo significa eacute a es-secircncia e definiccedilotildees natildeo satildeo dadas a indiviacuteduos mas agraves espeacutecies Portan-to a mateacuteria individual que eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute distinta da essecircnciardquo (Exp Met VII lec 11 n 1535) Tomaacutes recorre ao princiacutepio de individuaccedilatildeo porque precisa apresentar soluccedilatildeo para um problema cria-do por sua abordagem das formas separadas Ao tratar a separaccedilatildeo como substancializaccedilatildeo da forma e eliminaacute-la como soluccedilatildeo possiacutevel resta que a essecircncia seja idecircntica agrave substacircncia sensiacutevel particular Contudo para ser idecircntica agrave substacircncia particular eacute necessaacuterio que a essecircncia possua tanto a forma quanto a mateacuteria que caracterizam a substacircncia natural A mateacute-ria entretanto eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo nos particulares e enquanto tal natildeo pode estar presente na essecircncia o que a particularizaria Para eli-
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minar a dificuldade Tomaacutes subdivide em dois os modos de apresentaccedilatildeo da mateacuteria a mateacuteria que individua que natildeo estaacute presente na essecircncia e a mateacuteria comum intelectual
Que a mateacuteria estaacute presente na essecircncia fica claro pelo cuidado de Tomaacutes ao se alongar no tema Eacute necessaacuterio fazecirc-lo para esclarecer que natildeo eacute o simples fato dos seres sensiacuteveis particulares serem materiais que os impede de serem idecircnticos agrave essecircncia Caso houvesse o que evidente-mente natildeo eacute possiacutevel um ser sensiacutevel que natildeo fosse particular ele seria idecircntico a sua essecircncia pois o que impede a identidade natildeo eacute a mateacute-ria sem qualificaccedilatildeo mas aquilo que da mateacuteria o individua Por outro lado se natildeo se considerar que haacute um princiacutepio da individuaccedilatildeo nos par-ticulares eles seriam reduzidos agrave unidade de sua natureza Natildeo haveria uma pluralidade de homens mas homem por exemplo Ao contraacuterio eacute necessaacuterio que a pluralidade de indiviacuteduos possua aleacutem de sua natureza o princiacutepio de sua individuaccedilatildeo Ademais ambos essecircncia e individuaccedilatildeo satildeo internos agrave substacircncia sensiacutevel
Resta esclarecer o ataque agraves formas platocircnicas que ocorre em VII 8 onde satildeo consideradas inuacuteteis para a explicaccedilatildeo da geraccedilatildeo e da cor-rupccedilatildeo A anaacutelise da inutilidade se assenta no fato de que toda geraccedilatildeo envolve mateacuteria preacute-existente uma vez que tudo que eacute gerado o eacute por algo similar Isto se aplica a todos os casos de geraccedilatildeo ldquoDesse modo na geraccedilatildeo das coisas vivas noacutes encontramos um princiacutepio efetivo intriacutenseco o poder formativo da sementerdquo (Exp Met VII lec 8 n 1442e) Contudo Tomaacutes dedica-se a esclarecer especificamente o caso mais complicado da geraccedilatildeo espontacircnea uma vez que ele natildeo envolve a transmissatildeo integral da mateacuteria e da forma que garantem a identidade no gerador e similar-mente no gerado Neste caso natildeo haacute transmissatildeo de mateacuteria
Primeiro haacute que se tratar da geraccedilatildeo das plantas sem a presen-ccedila de sementes caso em que deve haver alguma mateacuteria preacute-existente que apodrecida age sob o calor do Sol8 Segundo haacute que se admitir que a geraccedilatildeo espontacircnea tambeacutem pode ser artificial como ocorre quando ao se massagear uma parte do corpo restaura-se o balanccedilo dos humores e ganha-se sauacutede9 Quanto ao segundo princiacutepio Tomaacutes sustenta que haacute trecircs meios pelos quais o que eacute gerado eacute similar ao que gera O primeiro
8 Exp Met VII lec 8 n 1442c9 Exp Met VII lec 8 n 1442e
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Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6
meio ocorre quando a geraccedilatildeo eacute totalmente uniacutevoca caso em que a forma do que gera e do que eacute gerado compartilham do mesmo modo de ser que informa diferentes partes da mateacuteria10 O segundo meio ocorre quando a geraccedilatildeo eacute parcialmente uniacutevoca caso em que a forma do gerador e do ge-rado natildeo possuem o mesmo modo de ser embora sejam de algum modo similares11 Este eacute o caso da geraccedilatildeo artificial na qual a forma pensada pelo artesatildeo eacute similar a forma na mateacuteria quanto ao conteuacutedo do que eacute dado pela forma Deve-se ressalvar que neste caso ambos permanecem distintos quanto ao seus seres um intelectual e outro particular sensiacutevel O terceiro meio ocorre quando a geraccedilatildeo eacute equiacutevoca de sorte que a forma daquele que gera natildeo guarda qualquer semelhanccedila com o gerado sendo que ambos guardam relaccedilatildeo pela parte ou pelo que haacute na parte12 Este parece ser o caso do exemplo em que se obteacutem equiliacutebrio dos humores e sauacutede ao se massagear uma parte do corpo
A criacutetica agraves formas na discussatildeo da geraccedilatildeo novamente dirige-se agrave separaccedilatildeo e estrutura-se como segue O que eacute gerando eacute uma substacircncia composta de mateacuteria e forma poreacutem certamente natildeo a forma e a mateacute-ria que participam da geraccedilatildeo Entretanto no caso da geraccedilatildeo uniacutevoca e por semelhanccedila deve haver uma mateacuteria e uma forma que preexistam ao gerado Neste caso do mesmo modo que a mateacuteria e a forma satildeo um composto no gerado tambeacutem devem secirc-lo naquele que gera motivo pelo qual a forma natildeo pode ser separada A forma eacute imposta pelo que gera a uma certa mateacuteria dando origem ao que eacute gerado Novamente natildeo eacute ne-cessaacuterio sustentar qualquer forma separada para explicar o processo A conclusatildeo de Tomaacutes repete a foacutermula de ataque ao platonismo Uma vez
10 ldquoIsto ocorre de trecircs modos Primeiro quando a forma da coisa gerada preacute-existe naquele que gera de acordo com o mesmo modo do ser e de modo semelhante quando o fogo gera o fogo ou o homem proveacutem do homem Este tipo de geraccedilatildeo eacute completamente uniacutevocordquo (Exp Met VII lec 8 n 1444)
11 ldquoO segundo eacute quando a forma da coisa gerada preacute-existe naquele que gera natildeo de acordo com o mesmo modo do ser nem da substacircncia do mesmo tipo Por exemplo a forma da casa preacute-existe no construtor natildeo com a forma material que possui nas pedras e madeira mas com o ser imate-rial que tem no intelecto do construtor Este tipo de geraccedilatildeo eacute parcialmente uniacutevoco no que diz respeito agrave forma e parcialmente equiacutevoco no que diz respeito ao ser da forma em seu sujeitordquo (Exp Met VII lec 8 n 1445)
12 ldquoO terceiro eacute quando a totalidade da forma da coisa gerada natildeo preacute-existe no gerador mas so-mente alguma parte dela ou alguma parte da parte assim como na medicina o que eacute aquecido preacute-existe ao calor que parte da sauacutede ou tem alguma relaccedilatildeo com a sauacutede Este tipo de geraccedilatildeo natildeo eacute uniacutevoco de forma algumardquo (Exp Met VII lec 8 n 1446)
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Maacutercio Augusto Damin Custoacutedio
que as formas separadas natildeo satildeo necessaacuterias devem ser destruiacutedas Outros dois argumentos se seguem contra as formas separadas
como causa da geraccedilatildeo O primeiro investiga se eacute correto dizer que haacute uma esfera de formas que se encontra acima da esfera dos corpos ma-teriais13 Responde-se que mesmo existindo tal esfera seria inuacutetil para explicar a geraccedilatildeo Isto porque se existissem tais formas separadas natildeo seriam determinadas e particulares mas universais como ficou esclare-cido ao se tratar a diferenccedila entre sua mateacuteria comum e o princiacutepio de individuaccedilatildeo Contudo por experiecircncia sabemos que a causa da geraccedilatildeo de um particular eacute outro particular motivo pelo qual as formas separadas natildeo podem ser a causa geradora de qualquer substacircncia sensiacutevel parti-cular Novamente as formas separadas caem em completa inutilidade e deve ser destruiacutedas Segundo haacute que se lidar com as exceccedilotildees agrave regra14 como eacute o caso de animais hiacutebridos esteacutereis e reproduzidos pelo cruza-mento de dois animais distintos A razatildeo para os hiacutebridos entretanto re-side na quantidade imprecisa de mateacuteria Por exemplo se a forma de um cavalo eacute recebida por menos mateacuteria do que o necessaacuterio para gerar um cavalo tem-se a geraccedilatildeo da mula15 O caso das exceccedilotildees tambeacutem negam as formas separadas porque percebe-se que mesmo quando a forma natildeo eacute preservada no acircmbito da espeacutecie a mateacuteria o eacute no acircmbito do gecircnero16 Como pode-se constatar segundo Tomaacutes as formas separadas natildeo tem qualquer relevacircncia para a explicaccedilatildeo da geraccedilatildeo e por esse motivo de-vem ser destruiacutedas
A insistecircncia de Tomaacutes em contrapor sua soluccedilatildeo da tese da iden-tidade entre a essecircncia e a coisa agraves formas platocircnicas ou ao platonismo revelam o quanto o hilemorfismo eacute importante para sua metafiacutesica Esta importacircncia se reverte em um itineraacuterio que comeccedila em Metafiacutesica VII 6 quando ele esclarece que a identidade da forma deve ocorrer com as substacircncias sensiacuteveis particulares Nessa medida o foco do argumento
13 Exp Met VII lec 7 n 1427-3114 Refiro-me agrave regra segundo a qual o semelhante gera o semelhante ldquoPois o homem proveacutem do
homem e de modo similar o cavalo proveacutem do cavalordquo (Exp Met VII lec 7 n 1432)15 ldquoA potecircncia formadora que se encontra no esperma do macho eacute designada pela natureza a pro-
duzir na totalidade o mesmo do qual o esperma foi separado Poreacutem seu objetivo secundaacuterio quando natildeo pode induzir a semelhanccedila perfeita eacute induzir qualquer tipo de semelhanccedila que puderrdquo (Exp Met VII lec 7 n 1433)
16 Exp Met VII lec 7 n 1424
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Tomaacutes de Aquino Contra as Formas Platocircnicas no Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 6
encontra-se na noccedilatildeo de forma Em Metafiacutesica VII 11 esclarece-se como isso eacute feito ao distinguir-se dois tipos de mateacuteria a que funciona como princiacutepio de individuaccedilatildeo e a mateacuteria comum intelectual ficando claro como a identidade ocorre quanto agrave mateacuteria Por fim mostra-se como for-ma e mateacuteria permitem compreender todos os casos de identidade liga-dos agrave geraccedilatildeo dos particulares mesmo os casos em que natildeo haacute transmis-satildeo da mateacuteria como ocorre com a geraccedilatildeo espontacircnea ou em casos em que natildeo haacute transmissatildeo integral da forma como nos hiacutebridos Concluo portanto que o ataque agraves formas platocircnicas mostram natildeo haver revisatildeo de tese entre o Comentaacuterio agrave Metafiacutesica VII 8 e 11 Assim como mostram natildeo haver tratamento exclusivamente loacutegico de Metafiacutesica VII 6
Bibliografia
AQUINO Tomaacutes In duodecim libros metaphysicorum Aristotelis expositio Eds M-R Cathala e R Spiazzi TurimRoma Marietti 1964
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HENLE R J Saint Thomas and platonism A study of ldquoPlatordquo and ldquoPlatonicirdquo texts in writings of St Thomas The Hague Martinus Nijhoff 1956
HENLE R J St Thomas methodology in the treatment of ldquoPositionesrdquo with par-ticular reference to ldquoPositiones Platonicaerdquo Gregorianum 36 1955 pp 391-409
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Extensatildeo material em Filopono1
Faacutetima Regina Rodrigues Eacutevora(UNICAMP)
O objetivo deste artigo2 eacute discutir o tratamento dado por Joatildeo Filo-pono de Alexandria (c 490-570)3 em suas obras de maturidade agrave noccedilatildeo de mateacuteria prima (procircte hylecirc) Embora ateacute pelo menos 517 ele aparen-temente tenha se mantido fiel a uma teoria da mateacuteria que ele atribui a Aristoacuteteles sua visatildeo eacute radicalmente alterada a partir de 529 quando passa a conceber a extensatildeo tridimensional (to trikhecirci diastaton) como o primeiro substrato (procircton hypokeimenon) sujeito uacuteltimo das proprieda-des e natildeo mais como a primeira propriedade a ser imposta sobre a mateacute-ria prima dispensando portanto o sujeito incorpoacutereo e sem forma como um niacutevel mais baixo como ele supotildee encontrar na concepccedilatildeo aristoteacutelica da mateacuteria
1 Artigo desenvolvido como parte das atividades de pesquisa do Projeto ldquoO rompimento com a tese aristoteacutelica da dicotomia entre ceacuteu e terra Filopono de Alexandria e sua recepccedilatildeo no iniacute-cio da filosofia modernardquo Bolsa de produtividade em Pesquisa niacutevel 1B concedida pelo CNPq (processo nordm 3106282013-0) e Projeto temaacutetico FAPESP ldquoFilosofia Grega Claacutessica Platatildeo Aris-toacuteteles e sua Influecircncia na Antiguidaderdquo coordenado por Marco Zingano ndash USP (processo nordm 200916877-3)
2 Este artigo eacute uma continuaccedilatildeo da pesquisa jaacute publicada em Eacutevora 2013 e Eacutevora 2008 Cabe destacar que a discussatildeo feita a seguir eacute devedora dos estudos feitos por Richard Sorabji e por Christian Wildberg (ver bibliografia)
3 Nascido no final do seacuteculo V Filopono viveu em Alexandria ateacute por volta de 570 e pertenceu agrave Escola Neoplatocircnica de Alexandria onde foi aluno de Amocircnio filho de Hermeacuteias (c 440-520) Considerado um dos mais importantes comentadores antigos de Aristoacuteteles Filopono escreveu inuacutemeros comentaacuterios sobre Platatildeo e Aristoacuteteles (in Categorias in Analytica Priora in Analytica Posteriora in Meteorologica in de Generatione et Corruptione in de Anima in Physica) e diversos tratados sobre matemaacutetica (entre os quais in Nicomachi Introductione arithmetica) e astrono-mia (De Usu Astrolabii eiusque Constructione Libellus) Filopono tambeacutem escreveu importantes tratados dedicados a questatildeo da eternidade do mundo entre os quais se destacam de Aeterni-tate Mundi contra Proclum escrito entre 529 e 530 e de Aeternitate Mundi contra Aristotelem escrito por volta de 535 Ele ainda eacute autor de alguns tratados teoloacutegicos e sobre a criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo do universo (Opificio Mundi que data da segunda metade do seacuteculo VI) Conjetura-se tambeacutem que Filopono seja autor de alguns textos meacutedicos
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 106-120 2017
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Extensatildeo material em Filopono
Embora atualmente haja uma enorme controveacutersia em torno do status do conceito aristoteacutelico de mateacuteria prima e ateacute mesmo da pre-senccedila efetiva dessa noccedilatildeo no corpus aristoteacutelico havia entre os comenta-dores antigos de Aristoacuteteles um certo consenso com respeito agrave visatildeo de Aristoacuteteles de mateacuteria prima
No seu comentaacuterio agraves Categorias Filopono entende que Aristoacuteteles ao discutir a natureza da ousia no livro VII da Metafiacutesica (1029ordf 10-26) introduz um argumento no qual os corpos fiacutesicos satildeo abstratamente des-providos de todos os seus atributos em seguida satildeo desprovidos de com-primento largura e altura apoacutes o que nada permanece exceto a mateacuteria Filopono refere-se a essa passagem da Metafiacutesica ao discutir por que Aris-toacuteteles teria concebido a categoria da quantidade na segunda posiccedilatildeo e a qualidade na terceira Diz Filopono
Na natureza das coisas a quantidade (to posoacuten) ocupa a segunda posiccedilatildeo Pois como tem sido frequentemente dito a mateacuteria prima que eacute antes de ser dado a ela o volume (exonkocirctheisa) sem corpo sem forma ou figura recebe as trecircs dimensotildees e torna-se tridimen-sional E isto que Aristoacuteteles chama de segundo substrato (deute-ron hypokeimenon) entatildeo recebe as qualidades e constitui os ele-mentos tal que a qualidade tem o terceiro grau entre as coisas que haacute (Filopono in Categorias 8313-19)
Segundo essa interpretaccedilatildeo de Filopono da concepccedilatildeo aristoteacutelica da natureza da substacircncia a mateacuteria prima (procircte hylecirc) corresponderia ao sujeito mais fundamental das propriedades de um corpo o primeiro substrato (procircton hypokeimenon) desprovido de corpo forma ou figura qualidades e ateacute mesmo dimensotildees As trecircs dimensotildees de acordo com esta interpretaccedilatildeo seriam as primeiras propriedades a serem impostas sobre a mateacuteria prima e uma vez impostas haveria o segundo substrato (deuteron hypokeimenon)4 a mateacuteria extensa em trecircs dimensotildees e sem qualidades5 tambeacutem chamada de extensatildeo corpoacuterea (socircmatikon diastecirc-ma) Entatildeo esta mateacuteria quantificada receberia as qualidades e constitui-ria um terceiro niacutevel entre as coisas que haacute os elementos
4 Este termo deuteron hypokeimenon eacute tambeacutem usado por outros comentadores como Simplicio e Alexandre de Afrodisias
5 FILOPONO in Physica 5795
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Faacutetima Regina Rodrigues Eacutevora
Essa visatildeo da extensatildeo tridimensional como a primeira proprieda-de reaparece no comentaacuterio de Filopono agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles que data de 5176 no contexto da sua discussatildeo sobre a diferenccedila entre extensatildeo tridimensional espacial e extensatildeo corporal (socircmatikoacuten diaacutestecircma) tridi-mensional Diz Filopono
O que eacute extenso em trecircs dimensotildees natildeo eacute automaticamente um cor-po noacutes natildeo aceitaremos que esta seja uma definiccedilatildeo de corpo visto que eacute em virtude de ser algo a mais que corpo eacute extenso em trecircs dimensotildees Corpo eacute uma substacircncia quantidade (to poson) eacute uma propriedade da substacircncia tal que extensatildeo tridimensional eacute uma propriedade da substacircncia Mas se corpo eacute uma substacircncia entatildeo a extensatildeo tridimensional eacute uma propriedade do corpo (Filopono in Physica 5615-10)
Nesta passagem do comentaacuterio de Filopono agrave Fiacutesica fica evidente que a extensatildeo tridimensional (to trikhecirc diastaton) eacute concebida por ele nesta obra como uma propriedade pertencente agrave categoria da quantidade (to poson) Contudo ele reconhece que a quantidade eacute uma propriedade in-separaacutevel do corpo por esse motivo o corpo eacute extenso em trecircs dimensotildees7
6 Cabe notar que pesquisas recentes sugerem que possivelmente o comentaacuterio a Fiacutesica foi revisto por Filopono apoacutes 529 quando ele teria introduzido algumas ideias novas Os comentaacuterios de Filopono agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles livros I II III e IV foram completamente preservados em grego ateacute os nossos dias Infelizmente as versotildees gregas de seus comentaacuterios aos livros V VI VII e VIII da Fiacutesica perderam-se restando apenas alguns de seus fragmentos O conteuacutedo da metade perdida deste comentaacuterio de Filopono eacute parcialmente conhecido atraveacutes de uma traduccedilatildeo aacuterabe do seacuteculo X da Fiacutesica de Aristoacuteteles feita por Ishacircq ibn Hunayn (c 830-910) na qual foram in-cluiacutedos resumos dos comentaacuterios de Filopono aos livros III IV V VI e VII e de dois comentaacuterios finais sobre o livro VIII Embora bastante abreviados estes resumos aacuterabes dos comentaacuterios de Filopono agrave Fiacutesica parecem refletir com precisatildeo as ideias de Filopono Isto eacute evidenciado por um estudo feito recentemente por Paul Lettinck que comparou o conteuacutedo dos resumos dos comentaacuterios aos livros III e IV desta versatildeo aacuterabe com aquele dos comentaacuterios de Filopono aos quatro primeiros livros da Fiacutesica preservados em grego Segundo Lettinck natildeo haacute divergecircncia significativa entre o conteuacutedo das duas versotildees (a este respeito ver EacuteVORA 1995 p 281-305) Em 1992 os resumos dos comentaacuterios de Filopono que acompanham os livros V VI VII e VIII desta ediccedilatildeo aacuterabe da Fiacutesica de Aristoacuteteles foram traduzidos para o inglecircs por Lettinck e publi-cados em 1994 juntamente com a traduccedilatildeo do texto de Simplicii in Aristotelis Physicorum Libros Quattuor Priores Commentaria editado anteriormente em Berlim (1882) por H Diels (CGA v9) dedicado agrave discussatildeo aristoteacutelica sobre o vazio
7 Diz Filopono ldquoAgora se extensatildeo tridimensional eacute uma propriedade do corpo entatildeo extensatildeo tridimensional natildeo eacute definiccedilatildeo de corpo mas eacute uma propriedade dele inseparaacutevelrdquo (Filopono in Physica 56120)
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Extensatildeo material em Filopono
Apesar de reconhecer que a extensatildeo tridimensional eacute propriedade da substacircncia e que a mateacuteria prima eacute o primeiro substrato sujeito uacuteltimo do mundo fiacutesico e que subjaz agrave extensatildeo tridimensional Filopono no co-mentaacuterio agrave Fiacutesica refere-se agrave mateacuteria prima pouquiacutessimas vezes De fato eacute o segundo substrato (deuteron hypokeimenon) isto eacute a extensatildeo tridimen-sional (to trikhecirci diastaton) que protagoniza este comentaacuterio desempe-nhando o papel que tradicionalmente era da mateacuteria prima como o primei-ro substrato imutaacutevel da mudanccedila substancial e qualitativa Diz Filopono
Em geral os quatro elementos satildeo o substrato de todas as coisas fiacutesicas aquelas que estatildeo sujeitas agrave geraccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo Pelo fato de esses elementos serem misturados sempre de diferentes modos a forma fiacutesica vem a ser Contudo a extensatildeo tridimensional isto eacute o corpo sem qualidade eacute o substrato destes elementos em si e em geral de todas as coisas A mudanccedila vem a ser com respeito a este substrato que permanece imutaacutevel enquanto corpo [] Em nosso Summikta Theocircrecircmata [um tratado perdido sobre geometria] noacutes mostramos [continua Filopono] que o segundo substrato (deute-ron hypokeimenon) permanece imutaacutevel como corpo (Filopono in Physica 15610-17)8
Mas em toda e qualquer mudanccedila segundo ensina Aristoacuteteles haacute sempre um substrato que deve necessariamente permanecer imutaacutevel9 que corresponderia ao primeiro substrato (procircton hypokeimenon) Entatildeo se a extensatildeo tridimensional (to trikhecirc diastaton) no comentaacuterio de Filo-pono agrave Fiacutesica permanece imutaacutevel quando a mudanccedila ocorre entatildeo ela desempenha nesta obra o papel do primeiro substrato imutaacutevel
Portanto no seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles Filopono como notou Wildberg modifica a ontologia da concepccedilatildeo aristoteacutelica da mateacute-ria tal como entendida pelos comentadores antigos de Aristoacuteteles e enfa-tiza a importacircncia do segundo substrato (deuteron hypokeimenon) com-posto de mateacuteria prima e extensatildeo indeterminada em trecircs dimensotildees Embora ainda aristoteacutelica - na medida em que mateacuteria prima eacute concebida
8 Esclareccedilo que nas citaccedilotildees utilizarei colchetes [hellip] para incluir palavras numa citaccedilatildeo visando tornaacute-la mais clara Quando esse tipo de inclusatildeo tiver sido feita pelo tradutor manterei os che-vrons lthellipgt por ele utilizados
9 Na Fiacutesica Aristoacuteteles afirma que no que concerne ao vir a ser ldquoeacute evidente que eacute necessaacuterio que algo subjaza aos contraacuteriosrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 7 191a 3)
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como pertencente a um niacutevel anterior agrave extensatildeo tridimensional - a teo-ria da mateacuteria desenvolvida neste comentaacuterio jaacute aponta para a inovadora concepccedilatildeo defendida por Filopono a partir de 529
Esta nova e original ideia eacute desenvolvida a partir do De aeternitate mundi contra Proclum10 obra escrita por Filopono em 52911 onde Filopo-no trata a extensatildeo tridimensional (to trikhecirci diastaton) como primeiro substrato (procircton hypokeimenon) sujeito uacuteltimo das propriedades e natildeo mais como a primeira propriedade a ser imposta sobre a mateacuteria prima
Ao criticar o deacutecimo primeiro argumento de Proacuteclo contra os cris-tatildeos Filopono opotildee-se ao conceito de mateacuteria prima incorpoacuterea e sem forma por consideraacute-lo absolutamente desnecessaacuterio uma vez que a ex-tensatildeo tridimensional isto eacute o corpo desprovido de todas as qualidades permanece imutaacutevel enquanto corpo quando as mudanccedilas ocorrem por-tanto eacute a extensatildeo tridimensional (to trikhecirci diastaton) que eacute o primeiro substrato (procircton hypokeimenon) das mudanccedilas fiacutesicas
Wildberg ao comentar essa nova concepccedilatildeo de primeiro substrato desenvolvida por Filopono no contra Proclum afirma que uma das prin-cipais dificuldades de interpretaccedilatildeo decorre da terminologia empregada ldquoos conceitos e os termos descritos nas passagens relevantes revelam frequentemente uma falta de rigor inadministraacutevel o que talvez indique que Filopono esteja tentando expressar novas ideias dentro do quadro de paradigmas natildeo mais adequado Os estudiosos assim interpretaram a nova ideia de Filopono de maneiras diferentesrdquo (Wildberg 1988 p 205)
10 Obra editada por Hugo Raben (Ioannes Philoponus de Aeternitate Mundi contra Proclum Lei-pzig 1899) Segundo Sorabji existe uma versatildeo aacuterabe do contra Proclum ldquopublicada em 1944 por G Graf ldquoGeschichte der christlichem arabischen Literatur vol I Vat 1944 p 417-18 A versatildeo grega [que sobreviveu] carece da primeira parte que apresenta o primeiro dos dezoito argu-mentos de Proacuteclo que estatildeo sob ataque Mas dos argumentos de Proacuteclo os primeiros nove foram publicados em uma versatildeo aacuterabe independentemente de Filopono por A Badawi Neoplatonici apud Arabes Islamica 16 Cairo 1954 e a partir dela o primeiro argumento perdido de Proacuteclo foi traduzido para o francecircs por GC Anawati (1956) p 21-25rdquo (Sorabji 1987 p 11) Cabe notar que o contra Proclum era desconhecido na Idade Meacutedia Latina mas tornou-se amplamente co-nhecido a partir do seacuteculo XVI em traduccedilotildees para o latim
11 Esta dataccedilatildeo foi possiacutevel graccedilas uma referecircncia astronocircmica presente no texto um fenocircmeno ocorrido durante a sua redaccedilatildeo Diz Filopono ldquopois exatamente agora em nosso tempo no ano 245 do [calendaacuterio] Diocleciano os sete planetas estatildeo em conjunccedilatildeo no mesmo signo do zo-diacuteaco Tourordquo (Filopono contra Proclum 57914-17) O ano de 245 do calendaacuterio Diocleciano corresponde ao ano 529 da nossa era Tabelas astronocircmicas contemporacircneas atestam que esta conjunccedilatildeo ocorreu em 29 de maio de 529
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Extensatildeo material em Filopono
Simpliacutecio no seu comentaacuterio ao De Caelo destaca que Filopono estaacute evidentemente desgostoso com o conceito de mateacuteria incorpoacuterea (asocirc-matos hylecirc) e relembra que Filopono afirma que
Na deacutecima primeira sessatildeo da [sua] refutaccedilatildeo [dos escritos] de Proacuteclo ele provou que eacute impossiacutevel que a assim conhecida mateacuteria incorpoacuterea e sem forma exista e que em vez disso os corpos satildeo no final das contas reduzidos agrave extensatildeo tridimensional (to trikhecirci diastaton) Mas [conclui Simpliacutecio com a acidez que permeia todas as polecircmicas que envolvem ele e Filopono] eu nem li o que eacute alar-deado laacute nem teria o prazer de ler tatildeo baixo non sense que mesmo agora eu natildeo sei como o meu projeto de expor o De Caelo fez-me cair neste esterco de ldquoAugeasrdquo (Simplicio in De Caelo 13526-136)
Uma objeccedilatildeo que se poderia levantar contra a noccedilatildeo proposta por Filopono eacute que a extensatildeo tridimensional sendo uma quantidade natildeo permaneceria inalterada no caso das mudanccedilas quantitativas logo natildeo poderia ser o primeiro substrato Filopono discute essa questatildeo em inuacute-meras passagens do contra Proclum12 Segundo Filopono nas mudanccedilas quantitativas o que muda satildeo as quantidades determinadas a extensatildeo tridimensional por outro lado como jaacute indicara no seu comentaacuterio agrave Fiacute-sica ldquonatildeo eacute o mesmo que alguma quantidade determinada isto eacute 2 ou 3 cuacutebitos de comprimento nem algo com formardquo (Filopono in Physica 520 25)
Logo conclui Filopono na mudanccedila quantitativa a extensatildeo tridi-mensional permanece imutaacutevel enquanto tal pois um corpo submetido agrave mudanccedila quantitativa natildeo se torna ou deixa de ser tridimensional
Sobre esta extensatildeo tridimensional segundo Filopono eacute que de-veratildeo ser impostas as qualidades13 Contudo mesmo indeterminada a extensatildeo tridimensional continua sendo quantidade e como tal ela ne-cessita de um substrato do qual seria atributo Essa objeccedilatildeo o proacuteprio Filopono apresenta a si mesmo diz ele
De acordo com a doutrina das categorias quantidade eacute diferente de substacircncia mas a extensatildeo tridimensional enquanto tal pertence agrave categoria da quantidade enquanto o corpo eacute uma substacircncia Con-
12 Ver contra Proclum 41215-28 41324-4145 e 41416-2013 Ver contra Proclum 41312-24 e 41420-41510
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Faacutetima Regina Rodrigues Eacutevora
sequentemente a extensatildeo tridimensional enquanto tal dificilmen-te poderia ser um corpo Corpo por outro lado eacute uma substacircncia e eacute tridimensional isto eacute caracterizado pela extensatildeo tridimensional Portanto deve haver algum substrato para a extensatildeo tridimen-sional uma vez que corpo eacute constituiacutedo por este substrato e pelo atributo da extensatildeo tridimensional O substrato deve ser a mateacuteria prima incorpoacuterea (Filopono contra Proclum 42116-4224)
Para responder a essa objeccedilatildeo Filopono desenvolve o seu argu-mento mais arguto e sofisticado concebendo a extensatildeo tridimensional como pertencente agrave categoria da substacircncia e natildeo agrave da quantidade como ele supunha no seu comentaacuterio agrave Fiacutesica A extensatildeo tridimensional no contra Proclum eacute tratada como a ousia do corpo (42313 - 42411) natildeo mais como uma quantidade acidental mas como uma quantidade essen-cial (ou substancial) (poson ousiocircdes)
Diz Filopono
Nem toda qualidade ou quantidade eacute um atributo acidental haacute qualidades14 e quantidades essenciais (ou substanciais) (ousiocircdes poson) E o que nos corpos eacute independente [de qualquer substrato] e eacute a substacircncia (ousia) eacute a extensatildeo tridimensional indefinida que eacute o substrato uacuteltimo de todas as coisas (Filopono contra Proclum 40523)
Esta tese eacute retomada mais adiante por Filopono que diz
[Eacute sabido que] haacute algo como a qualidade substancial que eacute referida natildeo na categoria das qualidades mas na categoria das substacircncias (ousia) como sendo uma diferenciaccedilatildeo substancial (ousiocircdes) as-sim tambeacutem possivelmente haacute algo como uma quantidade substan-cial (poson ousiocircdes) e isso eacute precisamente a extensatildeo tridimensio-nal (to trikhei diastaton) Pois a uacutenica coisa encontrada nos corpos que eacute independente [de qualquer substrato] e que eacute a real substacircn-cia (ousia) desses corpos eacute uma espeacutecie de volume tridimensional
14 Filopono chama de qualidades essenciais aquelas que contribuem para a constituiccedilatildeo de uma substacircncia como por exemplo o calor do fogo a gravidade da terra a brancura da neve ou a esfericidade do ceacuteu que satildeo diferenciaccedilotildees constitutivas de suas respectivas substacircncias As qualidades acidentais por outro lado embora pertencentes agrave substacircncia natildeo satildeo parte dela (Ver Filopono contra Proclum 42315-22)
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Extensatildeo material em Filopono
indefinido (onkos tis trikhei diastatos) visto apenas como magnitu-de (Filopono contra Proclum 4244-11 Grifos meus)
Portanto segundo Filopono a partir do contra Proclum a subs-tacircncia do corpo natildeo eacute nada aleacutem da extensatildeo tridimensional indefinida que se tornaraacute definida quando receber uma diferenciaccedilatildeo determinada (grande ou pequena)
Estaacute claro [diz Filopono] que a extensatildeo tridimensional natildeo eacute uma quantidade acidental pois se ela fosse (acidental) ela poderia vir a ser ou deixar de ser sem que o corpo fosse destruiacutedo Mas noacutes natildeo podemos nem mesmo pensar um corpo sem a extensatildeo tridimen-sional Portanto ela eacute a substacircncia do corpo Se entatildeo a extensatildeo tridimensional eacute realmente a substacircncia do corpo enquanto tal e apenas ela permanece imutaacutevel ao longo das mudanccedilas dos corpos como foi mostrado entatildeo natildeo haacute argumentos para mostrar que a mateacuteria incorpoacuterea deva subjazer a ela como seu substrato Ela mesma eacute o primeiro substrato (procircton hypokeimenon) subjazendo todas as formas naturais e aleacutem disso eacute a partir dela e a partir das qualidades substanciais em combinaccedilatildeo (syntithemenocircn) que os corpos vem a ser tornam-se reais isto eacute fogo aacutegua e assim por diante (Filopono contra Proclum 42423-42514)
Este primeiro substrato segundo Filopono deve necessariamente ser corpoacutereo pois nada corpoacutereo vem a ser de algo incorpoacutereo15 e deve ter forma pois segundo Filopono a concepccedilatildeo de que o primeiro subs-trato que subjaza todas as formas deve ele mesmo ser algo amorfo eacute um postulado infundado (4254-6) visto que nada pode existir sem forma inclusive a mateacuteria se ela natildeo for uma palavra vazia (4275-4285) Final-mente Filopono argumenta que as trecircs dimensotildees natildeo satildeo um composto mas algo simples 4285-17 Diz ele
As trecircs dimensotildees natildeo satildeo um composto de forma e mateacuteria sub-jacente mas eacute um volume (onkos) simples e tem o seu ser neste fato e subjaza a todas as outras coisas como seu sujeito (Filopono contra Proclum 4287-10)
15 Ver contra Proclum 44019-44313 cf XI3 41225-41321
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Portanto conclui Filopono eacute evidente que a extensatildeo tridimensio-nal eacute o primeiro substrato de todas as coisas e suas mateacuterias16
Este conceito de mateacuteria reaparece nos fragmentos sobreviventes do tratado De aeternitate mundi contra Aristotelem17 obra da maturidade de Filopono escrito provavelmente entre 530 e 533-4
O De aeternitate mundi contra Aristotelem como o tiacutetulo evidencia opotildee-se a teses aristoteacutelicas tais como a eternidade do mundo e conse-quentemente a eternidade do movimento e do tempo Contudo ele natildeo se resume a um comentaacuterio criacutetico A meu ver nesse tratado enquanto argumenta contra a teoria do eacuteter e a eternidade dos corpos celestes Filo-pono apresenta tambeacutem sua tese com respeito agrave criaccedilatildeo e agrave destruiccedilatildeo do universo18 e ao movimento das esferas celestes
Amplamente conhecido na Antiguidade Tardia e na Idade Meacutedia o contra Aristotelem exerceu grande influecircncia nos pensamentos islacircmico judeu grego e latino19 contudo ele foi perdido posteriormente Restaram dele apenas 134 fragmentos20 grande parte preservada pelo pagatildeo neo-platocircnico ateniense Simpliacutecio (sec VI) que graccedilas agrave sua acirrada polecircmi-ca com Filopono incluiu em seus comentaacuterios ao De caelo e agrave Fiacutesica de
16 Ver contra Proclum 440 6-817 O texto que eacute usado na anaacutelise a seguir foi editado e traduzido para o inglecircs por C Wildberg em
1987 Philoponus J Against Aristotle on the eternity of the world (vide bibliografia) 18 Segundo Simpliacutecio no comentaacuterio agrave Fiacutesica Filopono ldquoafirma que [no contra Aristotelem] de-
monstraraacute que o mundo natildeo se transforma em um absoluto nada mas em algo diferente maior e mais divino Eacute extraordinaacuterio [diraacute Simpliacutecio] que por um lado [Filopono] crecirc que a destrui-ccedilatildeo do mundo eacute uma mudanccedila para algo que existe e que eacute mais divino mas por outro lado diz que a geraccedilatildeo ltdo mundogt natildeo adveacutem de algo que existiu Ele declara que este mundo se transforma em outro mundo que mais divino ndash uma ltproposiccedilatildeogt que ele elaboraraacute nos livros seguintes ndash sem perceber que isso natildeo eacute uma destruiccedilatildeo do mundo mas um aperfeiccediloamentordquo (frag VI132 Simplicius in Physica 117738-11785)
19 Os estudos histoacutericos sobre o contra Aristotelem ainda natildeo podem determinar com precisatildeo o grau de influecircncia desta obra sobre o pensamento medieval latino grego judeu e aacuterabe Pode-se no entanto segundo Sorabji afirmar pelo menos que ele era conhecido no mundo aacuterabe medie-val por Al Farabi (c 873-950) pela Escola Filosoacutefica Cristatilde de Bagdaacute (seacutecs X e XI) e por Avicena (980-1037) e no ocidente cristatildeo medieval por Satildeo Boaventura (c1217-1274) e Satildeo Tomaacutes de Aquino (c1224-1274) que no seu in De caelo et mundo refere-se inuacutemeras vezes a Filopono Tambeacutem o pensador judeu Gersonides (c 1288-1344) e o bizantino Gemitos Pleton (c1355-1452) parecem ter tido acesso ao contra Aristotelem A partir do seacuteculo XVI vaacuterios livros de Filopono foram traduzidos para o latim diretamente do grego e tornaram-se amplamente co-nhecidos sendo por exemplo alvo de criacutetica de Cesari Cremonini (1550-1631)
20 129 em grego 4 em aacuterabe e 1 em siriacuteaco
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Aristoacuteteles extensos fragmentos do De aeternitate mundi contra Aristo-telem21 reproduzidos diretamente do tratado original para em seguida atacaacute-los Eacute provaacutevel que o contra Aristotelem tenha sido traduzido para o siriacuteaco e para o aacuterabe dada a clara influecircncia de alguns de seus argumen-tos no debate sobre a eternidade do mundo na filosofia aacuterabe Aleacutem disso entre os fragmentos que sobreviveram quatro estatildeo em aacuterabe22 e um em siriacuteaco Christian Wildberg traduziu para o inglecircs os 134 fragmentos so-breviventes os agrupou e os alocou em seccedilotildees (livros) que ele acredita corresponderem agrave divisatildeo original do tratado23
No contra Aristotelem e em alguns tratados posteriores Filopono afirma que se forem abstraiacutedas as formas de todas as coisas evidente-mente restaraacute apenas a extensatildeo tridimensional natildeo havendo com res-peito a isso diferenccedila entre corpos celestes e corpos terrestres O mundo segundo Filopono eacute materialmente uniforme todos os corpos sejam ter-restres ou sejam celestes satildeo feitos segundo ele dos mesmos elementos e estatildeo igualmente sujeitos agrave geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo E declara abertamen-te que os corpos celestes satildeo compostos de uma mistura das partes mais puras dos quatro elementos24 e que os corpos celestes ldquonatildeo possuem
21 Dentre os fragmentos gregos sobreviventes 128 foram recuperados dos comentaacuterios de Sim-pliacutecio e um fragmento foi extraiacutedo de um tratado intitulado Conspectus rerum naturalium escrito no seacuteculo seacutetimo pelo estudioso bizantino Symion Seth A partir de Simpliacutecio in De caelo foram recuperados frag 1 4-61 63-75 77-78 e 80-107 e a partir de Simpliacutecio in Physica os frag 108-133 Simpliacutecio eacute uacutenica fonte de fragmentos do contra Aristotelem que teve acesso direto ao tratado original
22 Dos quatro fragmentos em aacuterabe trecircs foram extraiacutedos de um polecircmico tratado do seacuteculo X de Al-Farabi contra Filopono Recentemente estes foram publicados por Mahdi 1967 Haacute ainda um uacuteltimo fragmento em aacuterabe recuperado de uma revisatildeo anocircnima do texto aacuterabe do seacuteculo XII de Abucirc Sulaymacircn al-Sijistacircnicirc
23 Os fragmentos 1-107 foram alocados por Wildberg nos cinco primeiros livros do contra Aris-totelem No sexto livro foram alocados os fragmentos 108-133 Wildberg destaca que apesar da reconhecida relevacircncia destes fragmentos ainda eacute muito recente o estudo deles J Zahlfleisch foi o primeiro resumir o debate entre Simpliacutecio e Filopono em dois artigos publicados por volta da virada do seacuteculo ldquoEm 1943 Ettenne Evrard produziu uma coleccedilatildeo importante e o comentaacuterio sobre os fragmentos do primeiro livro do contra Aristotelem No entanto ele cobriu natildeo mais do que cerca de um quinto do material e o trabalho que nunca foi publicado eacute acessiacutevel somente na Biblioteca da Universidade de Liege Felizmente muitas das suas conclusotildees estatildeo incorpo-rados em um artigo substancial publicado pelo mesmo autor em 1953rdquo (Wildberg 1988 p 4)
24 Ver Filopono contra Aristotelem frag III56 In Simpliacutecio in De caelo 8415-22 Filopono estaacute retomando aqui explicitamente uma tese platocircnica presente no Timeu (ver Platatildeo Timeu 31 b 4ff 40ordf 2 e 58 c)
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qualquer outra natureza do que os elementos deste mundo Pois natildeo haacute [diz ele] talvez nenhuma [qualidade] observada nos corpos de laacute que tam-beacutem natildeo faccedila parte dos copos terrestresrdquo (Filopono contra Aristotelem frag III59 In Simplicio in De Caelo 8830- 891)
Finalmente Filopono menciona segundo afirma Simpliacutecio em seu comentaacuterio ao De caelo que os ceacuteus sendo visiacuteveis
satildeo tambeacutem tangiacuteveis (haptos) e sendo tangiacuteveis eles tecircm qualida-des taacuteteis dureza e maciez lisura e rugosidade secura e umidade e [outras] qualidades semelhantes bem como calor e frio que inclui todas estas [] Contudo [Filopono diz Simpliacutecio] estaacute supondo que os corpos celestes satildeo tambeacutem tangiacuteveis a noacutes isto eacute evidente a partir de seu frequente apelo ao calor do sol e sua afirmaccedilatildeo final de que o que eacute tridimensional (to trikhecirci diastaton) eacute idecircntico nos corpos celestes e nos corpos de nossa regiatildeo Pois nenhuma coisa tridimensional diferiraacute de outra na medida em que eacute tridimensio-nal assim como nenhum corpo diferiraacute de outro na medida em que eacute um corpo (Filopono contra Aristotelem frag III59 In Simpliacute-cio in De caelo 8915-25)
Esta tese eacute retomada no fragmento IV71 do contra Aristotelem no qual Filopono defende que ldquoporque as [coisas] celestes e as [coisas] sublunares satildeo ambas extensotildees tridimensionais (trikhei diastata) nada distingue uma da outrardquo (Filopono contra Aristotelem frag IV71 In Simplicio in De Caelo 13415-20) Tambeacutem em um pequeno tratado preservado em fragmentos por Simplicio no final do seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles eacute encontrada uma tese semelhante Diz Filopono
Aqueles que afirmam que os ceacuteus natildeo constam dos quatro elemen-tos senatildeo da quinta essecircncia supotildeem que eacute uma composiccedilatildeo da quinta mateacuteria subjacente e da forma solar ou lunar No entanto se se abstrair as formas de todas as coisas evidentemente soacute restaraacute a sua extensatildeo tridimensional em virtude do que nada distingue os corpos celestes dos corpos deste nosso mundo (FILOPONO apud Simpliacutecio in Physica 133110-22)
Ou seja a extensatildeo eacute concebida como o sujeito uacuteltimo de todos os corpos sejam celestes sejam terrestres A extensatildeo tridimensional (to tri-khecirci diastaton) eacute tratada por Filopono como o primeiro substrato (procircton
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hypokeimenon) sujeito uacuteltimo das propriedades distanciando-se assim da teoria da mateacuteria tal como encontrada segundo ele crecirc na filosofia aristoteacutelica
O conceito de mateacuteria associado agrave ideia de extensatildeo presente em De Aeternitate Mundi contra Proclum e De Aeternitate Mundi contra Aristo-telem levou alguns historiadores e filoacutesofos da ciecircncia contemporacircneos como Richard Sorabji25 Samuel Sambursky26 e Christian Wildberg27 a ad-vogarem a tese de que Filopono teria antecipado o conceito cartesiano de mateacuteria
De fato o conceito de mateacuteria de Filopono eacute formulado em termos que recordam Descartes quando afirma nos Princiacutepios Filosoacuteficos parte II art 11 que ldquose despiacutessemos um corpo por exemplo uma pedra daqui-lo que sabemos que natildeo eacute requerido pela natureza do corpordquo tirariacuteamos primeiro a dureza depois a cor depois a gravidade e mesmo assim ela continuaria sendo um corpo por uacuteltimo o frio o calor e todas as outras qualidades e ainda assim ela continuaria tendo a natureza de corpo fi-nalmente ldquorestaria em sua ideacuteia que eacute extensa em largura altura e pro-fundidaderdquo (DESCARTES Princiacutepios filosoacuteficos II art 11)
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A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica
Sueli Sampaio Damin Custoacutedio(ITA)
() a retoacuterica eacute uacutetil embora a verdade e a justiccedila sejam por natu-reza mais fortes que os seus contraacuterios De sorte que se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem a verdade e a justiccedila seratildeo necessa-riamente vencidas pelos seus contraacuterios e isso eacute digno de censura1
James Murphy2 em seu ensaio publicado em 1969 foi um dos primei-ros a notar a forte conexatildeo entre a Retoacuterica e a Filosofia Moral nos curriacutecu-los das universidades medievais3 e mais especificamente o uso da retoacuterica aristoteacutelica para se estudar em conjunto com a Eacutetica e a Poliacutetica4 Segundo o autor a Retoacuterica fazia parte do curriacuteculo assim como a gramaacutetica e a dia-leacutetica5 e o estudo coordenado entre as obras perdurou ateacute o final da Idade Meacutedia Isso foi possiacutevel por conta da circulaccedilatildeo do influente comentaacuterio de Giles de Rome sobre a Retoacuterica de Aristoacuteteles traduzida por Guilherme de Moerbeke depois de 1270
A interpretaccedilatildeo de Murphy eacute relevante por duas razotildees Primeiro porque esclarece ao leitor que mesmo que a Retoacuterica a Herecircnio6 fosse mais conhecida o texto de Aristoacuteteles na versatildeo latina jaacute circulava agrave eacutepoca Se-gundo porque haacute diferentes abordagens entre os textos da Retoacuterica que
1 ARISTOacuteTELES Obras completas Retoacuterica Volume VIII Tomo I Lisboa Centro de Filosofia da Uni-versidade de Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 1355a p 93
2 MURPHY J ldquoThe Scholastic Condemnation of Rhetoric in the Commentary of Giles of Rome on the Rhetoric of Aristotlerdquo MURPHY J Rhetoric in the Middle Ages A History of Rhetorical Theory from St Augustine to the Renaissance
3 Vide tambeacutem BRIGGS C Aristotlersquos Rhetoric in the Later Medieval Universities A Reassessment4 Oresme por exemplo traduziu para o francecircs a Poliacutetica e a Eacutetica de Aristoacuteteles Ver ORESME
N Maistre Nicole Oresme Le livre de Politiques drsquoAristote ORESME N Maistre Nicole Oresme Le livre de eacutethiques drsquoAristote Ver tambeacutem MEUNIER F Essai sur la vie et les ouvrages de Nicole Oresme
5 ALLEN J Aristotle on the Disciplines of Argument Rhetoric Dialectic Analyticrdquo6 Retoacuterica a Herecircnio Trad e introd de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra Satildeo Paulo
Hedras 2005
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 121-133 2017
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Sueli Sampaio Damin Custoacutedio
circulavam Na Retoacuterica de Aristoacuteteles haacute criacuteticas agraves estruturas persuasivas empregadas pelos sofistas conhecidos agrave eacutepoca e tambeacutem o reconhecimen-to da utilidade da retoacuterica no processo de convencimento7 Para Aristoacutete-les em que pese a verdade e a justiccedila serem por natureza mais fortes que seus contraacuterios as mesmas podem ser vencidas pela mera persuasatildeo
Vaacuterios comentadores8 reconhecem a Retoacuterica a Herecircnio inicialmen-te atribuiacuteda a Ciacutecero (106-43 AC) como um dos manuais mais conheci-dos na Idade Meacutedia inclusive que a tradiccedilatildeo cristatilde a empregava para ob-ter a benevolecircncia dos ouvintes recorrendo agrave noccedilatildeo de justiccedila9 Partilho entretanto da posiccedilatildeo de Murphy de que o comentaacuterio de Giles de Rome sobre a Retoacuterica de Aristoacuteteles circulava entre os autores medievais e que inclusive os mesmos a usavam para apresentaccedilatildeo de seus temas
Jaacute tratei em outros textos10 da influecircncia aristoteacutelica no seacuteculo XIV quando Oresme11 aborda os usos diferentes atribuiacutedos agrave moeda do mes-
7 Aristoacuteteles critica a posiccedilatildeo dos retoacutericos sofistas quando classifica os tipos de retoacuterica 1) a re-toacuterica por conhecimento a qual ele se associa 2) a retoacuterica por intenccedilatildeo usada pelos retoacutericos da eacutepoca do autor e que natildeo se valiam dos silogismos retoacutericos (o corpo das provas) ao contraacute-rio enfatizavam a forccedila persuasiva da emoccedilatildeo e valorizavam o estilo e a magia da palavra bem cuidada e expressiva Este segundo tipo segundo Aristoacuteteles estimulava aspectos exteriores agrave razatildeo como por exemplo discursos visando a compaixatildeo a ira ou outras paixotildees da alma em detrimento do raciociacutenio loacutegico
8 CURTIUS Ernest Robert Literatura Europeacuteia e Idade Meacutedia Latina p 117 Segundo o autor a Retoacuterica Medieval contemplava a Retoacuterica a Herecircnio a Doutrina oratoacuteria (Institutio oratoria de Quintiliano [35-95]) e a tradiccedilatildeo cristatilde (desde Satildeo Jerocircnimo [340-420] ateacute Santo Agostinho [354-430])
9 Ver por exemplo a Retoacuterica a Herecircnio Livro III 3 p 153 ldquoConveacutem que todo o discurso daqueles que sustentam um parecer tenha a utilidade como meta de modo que o plano inteiro de seu discurso venha a contemplaacute-la No debate poliacutetico a utilidade divide-se em duas partes a segura e a honesta () A mateacuteria honesta divide-se em reto e louvaacutevel Reto eacute o que se faz com virtude e dever Subdivide-se em prudecircncia justiccedila coragem e modeacutestia Prudecircncia eacute a destreza que pode com certo meacutetodo discernir o bem e o malrdquo
10 CUSTOacuteDIO SSD A autoridade e a lei civil no Seacutec XIV trabalho apresentado na Universidade do Porto em 08 de setembro de 2016 CUSTOacuteDIO S A organizaccedilatildeo poliacutetica no seacuteculo XIV segundo o ldquoTratado sobre a moedardquo de Nicole Oresme CUSTOacuteDIO M A D CUSTOacuteDIO S S D O valor da moeda em Oresme e Copeacuternico CUSTOacuteDIO S S D Poliacutetica e teoria monetaacuteria em Nicole Oresme
11 O autor aborda estas questotildees em ORESME N Traictie de la premiegravere invention des monnoies de Nicole Oresme Reacuteimpression Genegraveve Slatkine Reprints 1976 Oresme cita expressamente vaacuterias passagens do texto de Aristoacuteteles como as citaccedilotildees expressas nos capiacutetulos I VI VIIII XV XVI XVII XXIV XXV e na Conclusatildeo da Pol I II V e VII e da Eacutetica I II e V Ver tambeacutem ORESME N The De Moneta of Nicholas Oreme and English Mint Documents ORESME N Pequeno tratado da primeira invenccedilatildeo das moedas (1355)
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A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica
mo modo que Aristoacuteteles ou seja como proposiccedilotildees praacuteticas passiacuteveis de se demonstrar e de se conhecer Oresme mostra ser possiacutevel conhecer a natureza do homem por meio da apresentaccedilatildeo e anaacutelise de exemplos ou seja de casos particulares abordando diferentes usos justos da moeda A ldquonoccedilatildeo de justiccedilardquo eacute apresentada por ele como a maior das virtudes morais por contemplar o ldquobem do outrordquo e natildeo de si proacuteprio12 Ela eacute vista como a virtude que deve reger as relaccedilotildees entre os homens no reino e se constitui em dar sentido agrave accedilatildeo humana pois orienta o agir em vista do proacuteximo seja por meio das leis do reino seja por meio de uma noccedilatildeo de igualdade obser-vada nos casos particulares O primeiro sentido dado por uma compreen-satildeo de justiccedila universal leva em conta o bem viver da associaccedilatildeo poliacutetica no caso o reino e a sua autossuficiecircncia O segundo sentido aponta para uma justiccedila particular uma vez que contempla a anaacutelise do ganho ou perda dos envolvidos e especialmente aponta para um ato injusto no qual se des-respeita a igualdade entre as partes e os bens13 Assim o priacutencipe que natildeo acata a lei eacute identificado como um ldquohomem injustordquo da mesma forma que o ganancioso e o iacutemprobo pois o homem respeitador da lei eacute o que reconhece e segue a constituiccedilatildeo do reino a qual estaacute vinculado
Interessa-me neste momento analisar a noccedilatildeo de justiccedila a partir da recepccedilatildeo da Retoacuterica de Aristoacuteteles designada doravante como Ret e especialmente a partir da noccedilatildeo de lei natural presente no Livro I Esse recorte analiacutetico se justifica por duas razotildees Primeiro porque haacute co-mentadores14 que citam passagens escolhidas da Ret para defender ou analisar a concepccedilatildeo de direito natural em Aristoacuteteles Segundo porque embora haja referecircncia ao termo ldquojusticcedilardquo em vaacuterias obras aristoteacutelicas eacute na Ret que o filoacutesofo apresenta trecircs exemplos de lei natural e os associa a uma certa noccedilatildeo de justiccedila natural
Destacarei em minha anaacutelise a noccedilatildeo de lei natural presente nos capiacutetulos 10 e 13 do livro I da Ret com o intuito de localizar o peso ar-gumentativo das passagens expostas sobre a noccedilatildeo de justiccedila Defenderei que o argumento retoacuterico introduzido nas passagens estudadas parte da premissa ldquoinjusto por naturezardquo
12 Ver DUNBABIN J ldquoThe Reception and Interpretation of Aristotlersquos Politicsrdquo BERTELLONI F Al-gunas reinterpretaciones de la causalidad final aristoteacutelica en la teoriacutea poliacutetica medieval
13 Ver BRETT A S ldquoPolitical Philosophyrdquo 14 KRAUT R Are there Natural Right in Aristotle DESTREacuteE P ldquoAristote et la question du droit
naturelrdquo Phronesis
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Sueli Sampaio Damin Custoacutedio
O texto da Ret traz trecircs tipos de discursos retoacutericos i) o judicial ou fo-rense (Ret I 10-15) que visa apresentar as acusaccedilotildees ou defesas sobre fatos ocorridos e mostrar a justiccedila ou injusticcedila do que foi feito ii) o deliberativo ou poliacutetico (Ret I 4-8) que busca demonstrar a vantagem ou desvantagem de uma determinada accedilatildeo e iii) o epidiacutectico (Ret I 9) que visa mostrar a virtude ou viacutecio de uma pessoa ou coisa apresentando o conceito do belo do nobre do honesto e seus contraacuterios Destacarei nas anaacutelises seguintes o discurso retoacuterico forense levando em conta os toacutepicos15 apresentados no livro I capiacutetulo 10 que abordam os delitos ou transgressotildees conscientes das leis e os toacutepicos presentes no capiacutetulo 13 que analisam a justiccedila e os graus de injusticcedila dos atos
Cada gecircnero do discurso retoacuterico (deliberativo forense e epidiacutecti-co) tem um fim diferente O discurso forense (Ret I 10-15) tem como fim abordar ldquoo justo ou o injustordquo Ele se constitui pela defesa ou pela acusa-ccedilatildeo das partes envolvidas Segundo Aristoacuteteles (Ret I 1358b) ldquoo orador forense pode natildeo negar que fez algo mas nunca confessaraacute que come-teu intencionalmente a injusticcedila pois entatildeo natildeo seria necessaacuterio o juiacute-zordquo Desse modo a premissa sobre a qual o debate forense se constitui ldquoeacute o justo e seu contraacuteriordquo e as provas teacutecnicas satildeo estabelecidas em vista dessa premissa
Acredito ser possiacutevel defender a coerecircncia entre as posiccedilotildees apre-sentadas na EN livro V e na Ret livro I sobretudo quando se compreende o termo ldquonaturalrdquo a partir dos sentidos descritivo e normativo O sentido descritivo eacute dado pelas obras loacutegicas de Aristoacuteteles o segundo o nor-mativo eacute apresentado nas obras das ciecircncias praacuteticas como a Etica Ni-comaqueia (EN) e a Poliacutetica (Pol) O primeiro sentido descreve o que eacute proacuteprio do homem ou seja a sua natureza mista16 As decisotildees e escolhas do homem natildeo necessariamente decorrem de uma vontade racional mas podem decorrer do que o apetite excita ou incita Assim do ponto de vista loacutegico as accedilotildees humanas satildeo compreendidas seguindo a base dos contraacute-rios como possibilidades Zingano17 interpreta do mesmo modo quando
15 Os toacutepicos satildeo ldquolugaresrdquo de onde os argumentos podem ser descobertos ou criados a partir de proposiccedilotildees que se apoiam em opiniotildees comuns ou seja de ldquolugares comuns da razatildeordquo
16 Vide REMOW G Aristotle Antigone and Natural Justice ldquoFenocircmenos humanos que acontecem sempre ou para a maior parte [tais como a linguagem costumes sociais] satildeo descritivamente naturais para os seres humanosrdquo p 599
17 ZINGANO M Particularismo e universalismo na eacutetica aristoteacutelica
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A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica
expotildee que ldquomesmo que o haacutebito esteja profundamente enraizado resta que a accedilatildeo tomada singularmente eacute sempre tal que se se pode A entatildeo se pode natildeo-Ardquo18
O segundo sentido o normativo expotildee que a coisa eacute normativamente natural e decorre do ldquoato de pesar razotildeesrdquo Eacute a partir do ato de pesar razotildees que o homem ordena a busca de meios em vista de um fim e nessa medida eacute por meio da razatildeo que o homem decide em favor de algo em detrimento de outro algo Esse procedimento pode ser melhor compreendido na Eacutetica Eudemia (EE II 6 1222b28-29) quando Aristoacuteteles19 expotildee que o homem eacute princiacutepio de movimento uma vez que pratica a accedilatildeo e delibera sobre ela O argumento eacute apresentado da seguinte maneira i) se a accedilatildeo eacute movimento e ela eacute necessaacuteria para entender a natureza do homem entatildeo ii) a delibera-ccedilatildeo praacutetica permite identificar no homem um eu que decide e que deter-mina por razotildees os meios para obter o fim desejado O filoacutesofo desenvolve melhor o argumento no texto da Fiacutesica quando esclarece que ldquoquem delibe-rou eacute causa assim como o pai eacute causa de seu filho e de modo geral o agente que fezrdquo (Fis II 3194b29-32) Percebe-se que a escolha deliberada eacute apre-sentada como princiacutepio da accedilatildeo natildeo como princiacutepio final mas como princiacute-pio eficiente ou seja aquilo de onde se parte o movimento Desse modo o normativamente natural estaacute associado agrave natureza descritiva do homem e agrave sua aquisiccedilatildeo de excelecircncia por meio do haacutebito pois ao agir o homem atua-liza as suas potecircncias e eacute do exerciacutecio da vontade sob a orientaccedilatildeo da razatildeo para deliberar sobre os meios e a escolha dos fins que os seres humanos atingem excelecircncias morais e intelectuais Com isso Aristoacuteteles natildeo busca eliminar os apetites que satildeo proacuteprios do homem mas busca apresentar os meios pelos quais o desejo passional se torna desejo virtuoso
A interpretaccedilatildeo de Remow de ldquolei naturalrdquo mobiliza vaacuterias obras de Aristoacuteteles sobretudo (EN III5 1112a31-33) para expor o argumento de que o homem eacute princiacutepio de movimento ldquoparece serem causas a natureza a necessidade e o acaso e aleacutem deles a razatildeo e tudo o que eacute feito pelo ho-memrdquo Zingano parece defender essa interpretaccedilatildeo e expotildee a necessidade de fixar o caraacuteter preciso de contingecircncia para a compreensatildeo da doutrina aristoteacutelica das normas praacuteticas Segundo ele para Aristoacuteteles ldquoa accedilatildeo eacute
18 ZINGANO M Particularismo e universalismo na eacutetica aristoteacutelica p 8219 As obras de Aristoacuteteles estatildeo referenciadas em BARNES J (Ed) The Complete Works of Aristotle
Volumes I and II
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algo que natildeo eacute mais isso do que aquilo e que se torna isso e natildeo aquilo por uma deliberaccedilatildeo racional que escolhe isso em detrimento daquilordquo20 Nessa medida para Zingano a razatildeo se impotildee sob a forma de dever ou seja o as-pecto normativo da accedilatildeo eacute apresentado uma vez que estabelece uma ordem de preferecircncia e prevalecircncia no dever de agir conforme as circunstacircncias observadas De fato no sentido normativo a accedilatildeo natildeo deve ser compreen-dida pela sua frequecircncia mas pelo ato de pesar razotildees e buscar a felicidade do homem e do bem viver da comunidade poliacutetica
Para Remow os dois sentidos descritivo e normativo satildeo variaacuteveis pois retratam a natureza humana que estaacute no campo dos juiacutezos possiacuteveis do contingente21 no campo do natildeo-necessaacuterio Essa indeterminaccedilatildeo do agir reforccedila a linha interpretativa da noccedilatildeo do particularismo no pensamento aristoteacutelico com a tese das circunstacircncias22 Assim ao aplicar o que a lei or-dena seria preciso levar em conta as circunstacircncias no meio das quais noacutes agimos sobretudo porque a accedilatildeo humana tomada nela mesma natildeo estaacute sujeita agrave determinaccedilatildeo e dependeria do entendimento das circunstacircncias nas quais a accedilatildeo ocorre Nessa medida tanto a accedilatildeo como as circunstacircncias podem ser identificadas como particulares e tambeacutem indefinidas
Natildeo se trata aqui de dizer sobre o nuacutemero infinito de circunstacircn-cias com peso moral mas entender o seu caraacuteter indefinido de modo que caberia ao prudente avaliar o conjunto de regras em funccedilatildeo dessas cir-cunstacircncias A criacutetica a essa interpretaccedilatildeo se dirige agrave indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo e de suas circunstacircncias mas tambeacutem a impossibilidade da existecircn-cia de uma lei universal que abarcasse a multiplicidade de circunstacircncias que afetam as accedilotildees possiacuteveis dos homens
Zingano23 discorda dessa interpretaccedilatildeo e defende que as proposi-ccedilotildees praacuteticas satildeo passiacuteveis de se demonstrar ou se conhecer Ao tratar da temaacutetica apresenta a estrutura silogiacutestica do argumento ldquoA eacute B nas circunstacircncias C em vista do fim F para todo Prdquo em que P figura pela con-
20 ZINGANO M Particularismo e universalismo na eacutetica aristoteacutelica p 8521 Ver ZINGANO Particularismo e universalismo na eacutetica aristoteacutelica pp 78-79 ldquoSer contingente
se diz de dois modos Num primeiro sentido eacute tudo o que natildeo tem existecircncia contiacutenua no sen-tido em que o contingente natildeo existe sempre ndash por exemplo o homem natildeo existe sempre Num segundo sentido o contingente natildeo eacute somente aquilo a que a existecircncia pode falhar mas o que quando existe pode ser assim e natildeo assimrdquo
22 BARNES J ldquoAristotle and the methods of ethicsrdquo BARNES J ldquoProof and the Syllogismrdquo23 ZINGANO M Particularismo e universalismo na eacutetica aristoteacutelica p 93
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A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica
diccedilatildeo necessaacuteria de apreensatildeo do bem a tiacutetulo de toda pessoa para quem algo aparece como bomrdquo A noccedilatildeo do bom estaacute vinculada a certa circuns-tacircncia como por exemplo ldquoalgo pode ser bom para os atenienses mas natildeo para os tebanosrdquo Entretanto uma vez esclarecida a condiccedilatildeo neces-saacuteria da apreensatildeo do bem (se para os atenienses ou para os tebanos) a conduta eacute obrigatoacuteria Assim definido o domiacutenio bem como os membros dele o dever permanece uacutenico para as circunstacircncias definidas O debate moral estaria assentado na anaacutelise do que eacute preciso fazer em vista das circunstacircncias em que a accedilatildeo ocorre Entatildeo avalia-se ldquoo que se deve em vista de quem se deve pelo fim bom e o modo como se realiza a accedilatildeordquo (ARISTOacuteTELES EN II 5 1106b21-24)
A singularidade das proposiccedilotildees praacuteticas reside no fato de que natildeo se deve aplicar ao caso uma seacuterie de regras previamente estabelecidas da mesma forma que nas ciecircncias teoreacuteticas como a Fiacutesica sobretudo por-que ldquoA eacute B em determinadas circunstacircnciasrdquo mudadas as circunstacircncias a proposiccedilatildeo natildeo se aplica Aleacutem disso nas proposiccedilotildees praacuteticas o ob-jeto da accedilatildeo estaacute associado ao seu ser apreendido Ou seja o predicado ldquoser bomrdquo natildeo funciona do mesmo modo que nas proposiccedilotildees sobre o ser como ldquoser retiliacuteneordquo ou ldquoser brancordquo
Para Aristoacuteteles para praticar o bem eacute preciso primeiro conhececirc--lo No entanto para as proposiccedilotildees morais aristoteacutelicas natildeo basta ape-nas conhecer o bem para que isso por si mesmo se torne um bem real Eacute necessaacuterio se estabelecer uma sabedoria praacutetica para este fim e por isso o filoacutesofo trata a temaacutetica a partir das ciecircncias praacuteticas como a Eacutetica e a Poliacutetica Na EN III 3 111a18-19 o autor estabelece uma ordenaccedilatildeo entre as circunstacircncias a serem analisadas e as mais importantes estatildeo vinculadas agrave noccedilatildeo de bem e de seu alcance ou seja o filoacutesofo associa a conduta do agente ao fim esperado defendendo portanto uma concepccedilatildeo teleoloacutegica As proposiccedilotildees morais bem como o juiacutezo moral incluem na exposiccedilatildeo do autor a referecircncia ldquoa quem algo eacute bomrdquo do mesmo modo que a tipologia da lei eacute estabelecida em vista do particular ou do geral quando o filoacutesofo trata do conceito de justiccedila
Na Ret 10 e 13 do livro I Aristoacuteteles apresenta a tipologia das leis e nas passagens presentes na Ret I 13 e15 associa os trecircs exemplos agrave lei natural como segue
Primeira passagem presente no capiacutetulo 10
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a lei ou eacute particular ou comum Chamo particular a lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns as leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos (ARISTOacuteTELES Ret I 10 1373b 9-12)
Segunda passagem presente no capiacutetulo 13
Chamo lei tanto a que eacute particular como a que eacute comum Eacute lei parti-cular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo agrave natureza Pois haacute na natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo como por exemplo o mostra a Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer que embora proibido eacute justo enterrar Polini-ces porque esse eacute um ldquodireito naturalrdquo24 [] (ARISTOacuteTELES Ret I 13 1373b 4-12)
As passagens acima trazem dois pontos interessantes para a anaacutelise i) os criteacuterios usados para o estabelecimento da tipologia das leis e ii) a coerecircncia e consistecircncia dos argumentos A primeira passagem (Ret I10) apresenta os toacutepicos que abordam os delitos ou transgressatildeo consciente das leis escritas O criteacuterio usado para definir a tipologia das leis eacute a forma Aristoacuteteles diferencia a lei particular da comum pela forma escrita ou natildeo escrita A segunda passagem (Ret 113) expotildee os toacutepicos que analisam a justiccedila e os graus de injusticcedila dos atos neste momento o filoacutesofo traz no-vos criteacuterios a) a forma natildeo eacute mais definidora da tipologia uma vez que a lei particular pode ser escrita ou natildeo escrita e b) a lei comum eacute definida segundo a natureza e natildeo precisaria ser escrita uma vez que decorre de um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto Para a anaacutelise das duas pas-sagens haacute duas hipoacuteteses interpretativas A primeira expotildee a frouxidatildeo dos conceitos aristoteacutelicos nesse debate e por consequecircncia a impossibilidade de se construir uma teoria da justiccedila com base na expressatildeo ldquolei naturalrdquo A segunda esclarece que as passagens da Ret natildeo representam a posiccedilatildeo do filoacutesofo mas sim a estruturaccedilatildeo de um discurso retoacuterico25
24 Haacute controveacutersia interpretativa se o termo direito natural deve ser usado nessa passagem (DESTREacuteE 2000) Contudo essa discussatildeo natildeo seraacute desenvolvida no presente trabalho
25 YACK B ldquoNatural Right and Aristotlersquos Understanding of Justicerdquo
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A noccedilatildeo de justiccedila na recepccedilatildeo da Retoacuterica
Interpreto que Aristoacuteteles elabora uma noccedilatildeo geral com os exem-plos citados a partir da premissa ldquoinjusto por naturezardquo do discurso re-toacuterico Busca com isso ldquodemonstrar que algo eacute assim na base de muitos casos semelhantesrdquo Essa noccedilatildeo eacute estabelecida em vista do ldquoargumento comumrdquo da superioridade da lei natural em relaccedilatildeo agrave lei particular e eacute construiacuteda com base no debate sobre a imutabilidade da lei comum (An-tiacutegona) e sobre a universalidade da lei natural (Empeacutedocles e Alcidaman-te) Nos casos de Empeacutedocles e de Alcidamante a noccedilatildeo de laquolei naturalraquo estaacute associada ao argumento da universalidade e deve ser vaacutelida para to-dos em todos os lugares e eacutepocas Empeacutedocles eacute citado por Aristoacuteteles para expor o alcance da lei natural e da sua universalidade O argumento laquode natildeo matar nenhum ser viventeraquo eacute estabelecido a partir do princiacutepio de que todos os seres satildeo iguais por natureza Assim a proibiccedilatildeo de matar estaria assentada na noccedilatildeo de lei natural e na universalidade dessa lei Para Empeacutedocles a lei natildeo pode ser laquojusta para alguns e natildeo para outrosraquo e portanto o seu alcance deve se estender a todos Aristoacuteteles retrata esse argumento na seguinte passagem laquoE como diz Empeacutedocles acerca de natildeo matar o que tem vida pelo fato de isso natildeo ser justo para uns e injusto para outros (ARISTOacuteTELES Ret I 13 1373b 15-18) A igualdade de tratamento eacute estabelecida para todos os viventes independentemente das circunstacircncias estudadas Essa interpretaccedilatildeo pode ser observada na passagem ldquomas a lei universal estende-se largamente atraveacutes do amplo eacuteter e da incomensuraacutevel terrardquo (EMPEacuteDOCLES DK B 135)
O terceiro exemplo o de Alcidamante26 foi incluiacutedo na Ret pos-teriormente pelos medievais e aborda que a escravidatildeo eacute injusta por natureza A passagem inserida ldquocomo tambeacutem diz Alcidamante no seu Messeniacuteacordquo (ARISTOacuteTELES Ret I 13 1373b 18-21) visa introduzir o ar-gumento que a escravidatildeo eacute injusta por natureza porque ldquoLivres deixou Deus a todos a ningueacutem fez escravo a naturezardquo
Com a exposiccedilatildeo dos trecircs casos a retoacuterica aristoteacutelica mostra como eacute possiacutevel elaborar um discurso forense a partir da noccedilatildeo comum com-partilhada de lei natural defendida pelos saacutebios citados Este discurso tem como fim abordar ldquoo justo ou o injustordquo Ele se constitui pela defesa ou
26 KENNEDY George A Aristotle On Rhetoric A Theory of Civic Discourse p 103 Segundo o autor essa passagem foi introduzida por um comentador medieval uma vez que ela natildeo aparece nos manuscritos de Aristoacuteteles Kennedy esclarece que Alcidamante era mestre de retoacuterica um so-fista disciacutepulo de Goacutergias
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pela acusaccedilatildeo das partes envolvidas sobretudo porque ldquoo orador forense pode natildeo negar que fez algo mas nunca confessaraacute que cometeu inten-cionalmente a injusticcedila pois entatildeo natildeo seria necessaacuterio o juiacutezordquo Desse modo a premissa sobre a qual o debate forense se constitui ldquoeacute o justo e seu contraacuteriordquo e os argumentos satildeo estabelecidos em vista dela
Entendo que ao iniciar com as opiniotildees reputaacuteveis Aristoacuteteles mostra ao seu leitor como eacute possiacutevel elaborar um argumento retoacuterico a partir da noccedilatildeo geral dos particulares ou seja dos exemplos dos casos A construccedilatildeo do argumento retoacuterico partiria da opiniatildeo compartilhada pelos saacutebios Soacutefocles e Empeacutedocles de que a lei natural eacute imutaacutevel e a passagem natildeo representaria a posiccedilatildeo aristoteacutelica sobre a temaacutetica De-fendo esta posiccedilatildeo pelo fato da Retoacuterica natildeo ser uma ciecircncia praacutetica como a Eacutetica e portanto o discurso retoacuterico natildeo apresentaria necessariamente argumentos demonstrativos mas sim estrateacutegias e teacutecnicas de persuasatildeo Portanto ao expor as opiniotildees reputaacuteveis Aristoacuteteles natildeo estaria preo-cupado em demonstrar a verdade como se observa na EN livro V mas em apresentar a base sobre a qual os oradores iniciam um discurso de convencimento e persuasatildeo
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Criacutetica cartesiana agrave loacutegica dialeacutetica renascentista
Joseacute Portugal dos Santos Ramos(UEFS)
O objetivo do texto eacute apresentar a criacutetica que Descartes faz nas Re-gulae agrave Loacutegica Dialeacutetica renascentista e esclarecer a sua opccedilatildeo anunciada no Discurso do meacutetodo por uma loacutegica fundamentada em determinados preceitos matemaacuteticos Julgo que a criacutetica de Descartes se dirige sobre-tudo a Pedro da Fonseca um dos maiores idealizadores do Curso Conim-bricense da Companhia de Jesus estabelecido em Portugal em meados do final do seacuteculo XVI e iniacutecio do seacuteculo XVII
Ao longo da Histoacuteria da filosofia tratou-se do meacutetodo constituiacutedo por Descartes a partir de determinados preceitos loacutegico-matemaacuteticos os quais convergem a uma ordem como um dos marcos na investigaccedilatildeo filo-soacutefica proposta no iniacutecio da modernidade No entanto havia pelo menos um seacuteculo que debates e comentaacuterios acerca do meacutetodo preocupava de maneira peculiar o pensamento especulativo tardio visto que conceitos latinos como ordo e methodus aparecem constantemente em tiacutetulos de publicaccedilotildees renascentistas1 dentre as quais destaca-se as Instituiccedilotildees Dialeacuteticas de Pedro da Fonseca
Instituiccedilotildees Dialeacuteticas eacute um comentaacuterio ao Organon de Aristoacuteteles e destina-se a servir de propedecircutica ao ensino da Loacutegica podendo ser con-siderado uma introduccedilatildeo agrave Loacutegica aristoteacutelica Assinala-se pois que na medida em que Pedro da Fonseca ao contraacuterio de diversos outros renas-centistas reivindica a sua articulaccedilatildeo com a analiacutetica abre-se agraves grandes questotildees do meacutetodo que tanto haviam motivado agrave atenccedilatildeo de Zabarella Agriacutecola e Pedro Ramos
Segundo Coxito2 pela divulgaccedilatildeo que teve e pelas polecircmicas que originou a concepccedilatildeo de Loacutegica Dialeacutetica de Pedro da Fonseca deu ensejo aos comentaacuterios realizados pelos mestres da Companhia de Jesus estabe-lecidos na Escola de Coimbra nos seacuteculos XVI e XVII A partir do horizonte
1 Cf GILBERT 1963 Apecircndice 2 Cf COXITO 1980 p 95
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Criacutetica cartesiana agrave loacutegica dialeacutetica renascentista
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investigativo que propotildee o projeto de um ideal de loacutegica ordem e meacutetodo foram publicados entre periacuteodo de 1592 e 1606 cinco volumes corres-pondentes aos oito tomos de um Curso de Filosofia dirigidos aos alunos do coleacutegio da Companhia de Jesus em Coimbra Esse Curso foi ministra-do em diversos Coleacutegios Catoacutelicos europeus no iniacutecio da modernidade3 designadamente em La Flegraveche Escola onde Descartes estudou durante a Paacutescoa de 1607 a setembro de 16154 Como atestam diversos historiado-res da filosofia os Comentarii foram uma novidade na filosofia europeia do seacuteculo XVI e XVII o que certamente levou a Descartes ter contato com a Loacutegica Dialeacutetica de Pedro da Fonseca por meio da esteira de seus estu-dos realizados em La Flegraveche Vejamos nas consideraccedilotildees de Rodis-Lewis as semelhanccedilas entre as estruturas dos cursos de La Flegraveche e de Coimbra com especial atenccedilatildeo ao estudo da Loacutegica
A filosofia coroava o ciclo dos estudos que se desdobrava em trecircs anos de Loacutegica Fiacutesica e Metafiacutesica apresentadas pelo mesmo pro-fessor Havia pois trecircs professores em simultacircneo [destaca-se] o que recebia os alunos para Loacutegica era procedido pelos dois colegas que seguiam os outros no segundo e no uacuteltimo ano5
Acrescenta Marion
Tanto no Coleacutegio La Flegraveche como em todos os Coleacutegios da Compa-nhia de Jesus ndash valia pelo menos em princiacutepio ndash a regra de que em Loacutegica em Filosofia Natural Moral e em Metafiacutesica se deve seguir a Doutrina de Aristoacuteteles [] O Curso [do Coleacutegio La Flegraveche da Com-panhia de Jesus] englobava a leitura (praelectio) pelo mestre do proacuteprio texto de Aristoacuteteles comentado e desenvolvido depois pri-mordialmente na esteira do Comentaacuterio dos Conimbricenses [] 6
3 Segundo Pinharada Gomes ldquoOs Conimbricenses foram a norma do pensamento filosoacutefico das Escolas da Companhia de Jesus tanto em Portugal como na Europa sobretudo nos paiacuteses onde a prevalecircncia da Escolaacutestica de origem peninsular foi tida e havida como primeiro recurso mental na oposiccedilatildeo agraves teses da Contra Reforma e das ciecircncias modernas que pelo descobrimento de um fato novo admitiam a hipoacutetese de questionar a validade dos princiacutepios da nominada filosofia perenisrdquo GOMES 1992 p 109
4 Cf RODIS-LEWIS 1995 p 25 5 RODIS-LEWIS 1995 p 26 Nesta perspectiva Gomes afirma que Descartes tendo sido aluno do
Padre Noel em La Flegraveche que ldquoa par dos Commentarii lia Pedro da Fonseca nas aulas de loacutegicardquo GOMES 1992 p 118
6 MARION 1975 p 20
Joseacute Portugal dos Santos Ramos
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Gaukroger ressalta o seguinte acerca da formaccedilatildeo filosoacutefica de Des-cartes em La Flegraveche
Ratio studiorum recomendava que o ldquoOrganonrdquo de Aristoacuteteles for-masse o nuacutecleo do ensino da [Loacutegica] Dialeacutetica [] Na Ratio de 1586 remendou-se o comentaacuterio do Organon feito por Pedro da Fonseca e na versatildeo definitiva de 1599 acrescentou-se a Introduc-tio in dialecticam de Toletus Fonseca e Toletus eram [portanto] especialmente influentes e a extensiacutessima seacuterie de comentaacuterios sobre Aristoacuteteles produzida na deacutecada de 1590 pela Universidade de Coimbra em Portugal baseou-se em grande parte nos comen-taacuterios deles Foi um desses comentaacuterios escritos pelos jesuiacutetas no intuito de estabelecer uma leitura definitiva de Aristoacuteteles que proporcionou o que mais se aproximava de uma leitura ortodoxa de Aristoacuteteles para as escolas jesuiacutetas [tal como La Flegraveche] Por inter-meacutedio desses comentaacuterios [Comentarii Conimbricensis] Descartes aprendeu maior parte de sua filosofia7
E Gomes destaca que Descartes tendo sido aluno do Padre Noel em La Flegraveche que ldquoa par dos Commentarii lia Pedro da Fonseca nas aulas de Loacutegicardquo8 Julgamos que a mais eminente obra desse periacuteodo que deve ter influenciado a formaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Descartes mais espe-cificamente no que diz respeito agrave Loacutegica foi a Institutionum dialecticaraum (1564) Ressalto ainda que a mencionada obra revela um momento culmi-nante dentro de uma tradiccedilatildeo continuada especialmente ao permitir um diaacutelogo entre o pensamento escolaacutestico tardio e o pensamento moderno
A Loacutegica estabelecida na obra intitulada Instituiccedilotildees Dialeacuteticas de Pedro da Fonseca propotildee que o primado do individual ou singular eacute um requisito formal aplicaacutevel ao domiacutenio da realidade admite a prioridade do conceito em relaccedilatildeo ao juiacutezo e agraves formas dianoeacuteticas do pensamento manifestando assim a mais sugestiva inspiraccedilatildeo de renovar a investiga-ccedilatildeo loacutegica e com ela toda a estrutura da filosofia Ademais eacute relevante destacar a seguinte designaccedilatildeo do objeto da Loacutegica Dialeacutetica feita por Pe-dro da Fonseca no iniacutecio da Instituiccedilotildees Dialeacuteticas
7 GAUKROGER 2002 p 82 8 GOMES 1992 p 118
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[] se entenderaacute que o objeto proacuteprio da Dialeacutetica (ao qual se apli-ca obviamente toda a sua anaacutelise) eacute a oraccedilatildeo pela qual a partir do conhecido se mostra o desconhecido Com efeito eacute em transmitiacute-la e em explicaacute-la que se consome todo o pensamento e cuidado dos dialeacuteticos pelo que fica evidente pelo que fica dito9
Como se sabe nas Regulae (1622-1628) obra escrita ainda no pe-riacuteodo de juventude Descartes tendo por intuito estabelecer os primeiros raciociacutenios loacutegicos de um meacutetodo inovador revela duas importantes criacute-ticas que possivelmente marcam a influecircncia da Loacutegica Dialeacutetica de Pedro da Fonseca em sua formaccedilatildeo filosoacutefica a saber (i) ao rejeitar a distinccedilatildeo de dois extremos e um meio realizada pelos Dialeacuteticos em suas formas si-logiacutesticas10 e sobretudo (ii) ao condenar a formulaccedilatildeo dos juiacutezos a partir dos encadeamentos pelos os quais os Dialeacuteticos alegam governar a razatildeo11
A criacutetica agrave distinccedilatildeo de dois extremos e um meio realizada pelos Dialeacuteticos em suas formas silogiacutesticas decorre primeiramente da po-siccedilatildeo cartesiana de que em toda questatildeo deve haver necessariamente um objeto desconhecido pois senatildeo segundo Descartes ldquoseria vatilde a sua investigaccedilatildeordquo12 Em segundo lugar esse objeto desconhecido deve ser de-signado de alguma maneira pois senatildeo alega Descartes ldquonatildeo estariacuteamos determinados a procuraacute-lo em vez de qualquer outro objetordquo13 Em tercei-ro lugar o objeto apenas pode ser assim designado por meio de alguma outra coisa que seja conhecida14 E finalmente conclui Descartes ldquoMas aleacutem disso para que a questatildeo seja perfeita queremos que seja comple-tamente determinada de tal modo que natildeo se procure nada a mais do que aquilo que se pode deduzir dos dados investigadosrdquo15
Por considerar que apenas as artes matemaacuteticas contemplam obje-tos pelos quais se estabelece consequecircncias plenamente deduzidas racio-nalmente mediante juiacutezos verdadeiros Descartes opta pela constituiccedilatildeo de uma loacutegica que difere dos encadeamentos da Dialeacutetica os quais como assinala culminariam em formulaccedilotildees de juiacutezos irrefletidos e sem funda-
9 FONSECA 1964 p 2310 Cf Regulae (AT X 430)11 Cf Regulae (AT X 365)12 Regulae (AT X 430) 13 Regulae (AT X 430) 14 Regulae (AT X 430) 15 Regulae (AT X 431)
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mento16 Para compreender a criacutetica que Descartes dirige agrave Loacutegica Dialeacute-tica exponho a seguir os raciociacutenios que Pedro da Fonseca anuncia a sua concepccedilatildeo de meacutetodo a partir da formulaccedilatildeo de juiacutezos
Para Pedro da Fonseca (1528-1599) diferentemente de Descartes eacute a determinaccedilatildeo das relaccedilotildees entre conceito e raciociacutenio no ato da for-mulaccedilatildeo dos juiacutezos que revela a unidade noeacutetica do ldquouniverso loacutegicordquo o que por conseguinte leva ao reconhecimento de que o ldquoverdadeirordquo e o ldquofalsordquo natildeo residem nos juiacutezos mas primariamente nos elementos concei-tuais que os constituem
Na obra Instituiccedilotildees Dialeacuteticas especificamente no iniacutecio do seacutetimo capiacutetulo do Livro VI Pedro da Fonseca assume dois pressupostos neces-saacuterios para a estrutura da argumentaccedilatildeo filosoacutefica [] um eacute a invenccedilatildeo dos argumentos e outro eacute a sua colocaccedilatildeo com o propoacutesito de confirmar o que se pretende e que se designa juiacutezo17 A partir dessa estrutura Pedro da Fonseca trata o meacutetodo como meio de conceber as questotildees propostas mediante processos loacutegicos expostos nos Livros anteriores Assim para o designado ldquoAristoacuteteles Portuguecircsrdquo a atitude da razatildeo deve reclamar o pa-pel de se descobrir (invetio) raciociacutenios provaacuteveis e ordenaacute-los (iudicium) com intuito de solucionar um dado problema Segue Fonseca
Deve-se notar contudo que o dialeacutetico ensina duas espeacutecies de juiacute-zo um com o qual saiba cada um constituir cada argumentaccedilatildeo outro com o qual entenda cada um a via metoacutedica para dispor entre si os argumentos que se tomam para provar alguma coisa Embora como dissemos a primeira espeacutecie de juiacutezo deva ensinar-se antes da invenccedilatildeo a segunda poreacutem natildeo pode ensinar-se senatildeo depois da invenccedilatildeo Porque a variedade dos argumentos se ensina pela in-venccedilatildeo ningueacutem que a ignore poderaacute pocircr ordem nos argumentos Noacutes portanto com Aristoacuteteles quer ao tratar da argumentaccedilatildeo em comum quer quando discorremos acerca da demonstraccedilatildeo e do si-logismo dialeacutetico ensinaremos aquela espeacutecie de juiacutezo por que se entende a construccedilatildeo de cada argumentaccedilatildeo antes da invenccedilatildeo dos argumentos Feito isto passaremos agrave segunda que se designa ou ordem ou colocaccedilatildeo ou disposiccedilatildeo ou meacutetodo18
16 Cf Regulae (AT X 365)17 Cf PEREIRA 1967 p 35318 FONSECA 1964 p 355
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Trataremos aqui da segunda espeacutecie de juiacutezo a saber a via metoacutedi-ca O autor portuguecircs relata que o meacutetodo eacute constituiacutedo pelas vias de anaacute-lise (resolutio) e siacutentese (compositio)19 Para ele as concepccedilotildees de anaacutelise e siacutentese indicam que o meacutetodo tem como operaccedilatildeo fundamental um pro-cesso investigativo que conduz de um efeito agrave causa que o produz ou ao inverso que deduz o efeito do conhecimento da causa Certamente a partir de tais consideraccedilotildees Mehl transcreve a seguinte designaccedilatildeo atribuiacuteda a Loacutegica Dialeacutetica de Pedro da Fonseca ldquoa arte que ensina a via e a maneira pela qual se pode facilmente e sem erros conhecer as coisas desconheci-das por meio das coisas conhecidasrdquo20 De acordo com Pereira em Pedro da Fonseca a resoluccedilatildeo (ou anaacutelise) confere um processo judicativo que permite isolar cada argumento e assim possibilita examinar o processo da construccedilatildeo21 Deve-se ressaltar que essa anaacutelise natildeo culmina em uma irredutibilidade de elementos simples mas em trecircs modos de relaccedilotildees sinteacuteticas a definiccedilatildeo a divisatildeo e a argumentaccedilatildeo pelas quais se pode or-denar o objeto fornecido pela invenccedilatildeo (invetio) Jaacute a ordem confunde-se com o proacuteprio methodus (ou vias) a saber o meacutetodo dispotildee e ordena en-tre si diversos argumentos em virtude da resoluccedilatildeo de um dado problema apresentado Assume-se portanto que em Pedro da Fonseca o processo de descoberta (invetio) reclama posteriormente uma via sinteacutetica ou orde-naccedilatildeo definitiva termos com os quais o autor tambeacutem designa o proacuteprio meacutetodo (methodus) Apoacutes descrever como ocorre a descoberta (invetio) dos argumentos Fonseca dedica a partir do esquema da didaacutetica legada pelos renascentistas cinco capiacutetulos do Livro VII ao estudo do meacutetodo Nesta perspectiva o meacutetodo visa agrave clareza e a distinccedilatildeo no encadeamento loacutegico das razotildees culminado na sua proacutepria concepccedilatildeo de ordem22
As concepccedilotildees de loacutegica ordem e meacutetodo em Descartes tal como em Pedro da Fonseca estatildeo estreitamente ligadas No entanto diferente-mente da tradiccedilatildeo renascentista estabelecida em Coimbra durante a deacute-cada de 1590 Descartes concebe a ordem a loacutegica e o meacutetodo a partir das operaccedilotildees de intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo as quais requerem a disposiccedilatildeo de de-terminados objetos mais especificamente aqueles que satildeo contemplados
19 Cf PEREIRA 1967 pp 292-29320 MEHL 2001 p 109 21 Cf PEREIRA 1967 p 294 22 Cf PEREIRA 1967 pp 294-295
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nas demonstraccedilotildees da Aritmeacutetica e da Geometria Isto porque segundo Descartes ldquo[] Na busca do caminho reto da verdade natildeo se deve ocupar--se com nenhum objeto sobre o qual natildeo se possa ter uma certeza tatildeo evi-dente quanto aquela das demonstraccedilotildees da Aritmeacutetica e da Geometriardquo23 Por considerar que apenas as demonstraccedilotildees matemaacuteticas prescrevem objetos pelos quais se estabelecem consequecircncias plenamente deduzidas racionalmente mediante juiacutezos verdadeiros Descartes opta pela consti-tuiccedilatildeo de uma loacutegica que difere dos encadeamentos da Dialeacutetica Renas-centista e reclama como alternativa os raciociacutenios da ordem e da medida Vejamos novamente as consideraccedilotildees de Descartes
[] bem poucos uacuteteis parece-me satildeo os encadeamentos median-te os quais os Dialeacuteticos pensam governar a razatildeo conquanto natildeo nego sejam muitos apropriados para outros usos Isso porque todo erro possiacutevel [] nunca proveacutem de uma maacute inferecircncia mas [] de formular juiacutezos irrefletidos e sem fundamento Conclui-se eviden-temente dessas consideraccedilotildees que o motivo pelo qual a Aritmeacutetica e a Geometria satildeo muito mais certas do que as outras disciplinas eacute que satildeo as uacutenicas a versar sobre um objeto tatildeo puro e tatildeo simples [] e satildeo inteiramente constituiacutedas de consequecircncias que devem ser deduzidas racionalmente24
Na Regra IV Descartes acrescenta
[] com intuito de lograr o conhecimento de tudo [que eacute possiacutevel conhecer] parece-me que nada mais eacute exigido senatildeo a intuiccedilatildeo in-telectual e a deduccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo agraves outras operaccedilotildees intelec-tuais que por exemplo a Dialeacutetica empreende com o auxiacutelio dessas primeiras (intuiccedilatildeo e deduccedilatildeo) aqui elas satildeo inuacuteteis isto eacute devem ser incluiacutedas dentre os obstaacuteculos porque natildeo haacute nada que se pos-sa acrescentar agrave luz da razatildeo sem a obscurecer de alguma coisa25
E na Regra X Descartes alega
Talvez alguns se espantem de que neste quesito em buscamos os meios de tornarmos mais aptos para deduzir as verdades umas
23 Regulae (AT X 366)24 Regulae (AT X 365) 25 Regulae (AT X 372-373)
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das outras omitimos todos os preceitos dos Dialeacuteticos Por in-termeacutedio desses preceitos eles acreditam reger a razatildeo humana prescrevendo-lhe certas formas de raciociacutenios tatildeo necessariamen-te concludentes que a razatildeo que nelas confia embora chegue de certa maneira a banir a evidecircncia e a atenccedilatildeo da proacutepria inferecircncia pode mesmo assim em virtude da forma agraves vezes concluir coisa indubitaacutevel Eacute que na realidade observamos que a verdade escapa amiuacutede desses viacutenculos enquanto os proacuteprios indiviacuteduos que os utilizam permanecerem enleadas neles [] Eacute sobretudo para evitar aqui que nossa razatildeo se decirc o lazer durante o exame de alguma ver-dade que rejeitamos essas formas loacutegicas como contraacuterias ao nosso propoacutesito []26
E em seguida conclui
Ora para que se torne ainda mais evidente que essa arte de racioci-nar [Ars disserendi ou seja Arte Dialeacutetica] em nada contribui para o conhecimento da verdade haacute que observar que os Dialeacuteticos natildeo podem construir com sua arte nenhum silogismo cuja conclusatildeo seja verdadeira a natildeo ser que eles jaacute tenham a mateacuteria ou em ou-tras palavras a natildeo ser que conheccedilam previamente a proacutepria ver-dade que dele deduzem Disso resulta manifestamente que uma forma loacutegica assim natildeo permite a eles mesmos constatar nada de novo e que por conseguinte a Dialeacutetica comum eacute totalmente inuacutetil para aqueles que querem descobrir a verdade das coisas Ela [a Loacute-gica Dialeacutetica] pode servir apenas algumas vezes para expor mais facilmente a outros as razotildees previamente conhecidas e conse-quentemente cumpre fazecirc-la passar da Filosofia para a Retoacuterica27
No Discurso do meacutetodo Descartes retoma o propoacutesito anunciado nas Regulae ldquoOs estudos devem ter por objetivo dar ao espiacuterito uma di-reccedilatildeo [um meacutetodo] que lhe permita formular juiacutezos soacutelidos e verdadei-ros sobre tudo que se lhe apresentardquo28 direcionando-o a reconstituir a loacutegica29 a partir de raciociacutenios que operam os objetos matemaacuteticos Nesta
26 Regulae (AT X 405-406)27 Regulae (AT X 406)28 Regulae (AT X 359)29 Cf Discours de la meacutethode (AT VI 17-18) A vantagem da loacutegica diz respeito a formulaccedilotildees
racionais de preceitos verdadeiros Segundo Gilson a loacutegica anunciada por Descartes eacute aquela ensinada nas Escolas (Escolaacutestica) a saber os silogismos e outras instruccedilotildees aristoteacutelicas Mas Gilson acrescenta que Descartes considera as formas silogiacutesticas supeacuterfulas ou mesmo inuacuteteis
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perspectiva Descartes relata30 ldquoEstudara um pouco quando jovem entre as partes da filosofia (i) a loacutegica e entre as matemaacuteticas (ii) a anaacutelise dos geocircmetras e (iii) a aacutelgebra trecircs artes ou ciecircncias que pareciam dever contribuir ao meu propoacutesito [constituir um verdadeiro meacutetodo]rdquo31 Em re-laccedilatildeo agrave loacutegica Descartes diz
Mas ao examinaacute-las atentei que quanto agrave loacutegica seus silogismos [ tais como os da Dialeacutetica] e a maior parte de suas outras instruccedilotildees servem mais para explicar aos outros as coisas que jaacute se sabem ou mesmo como a arte de Luacutelio para falar sem discernimento daque-las que ignoram do que para aprendecirc-las e embora ela contenha efetivamente preceitos muito verdadeiros e muito bons existem misturados a eles tantos outros que satildeo nocivos ou supeacuterfluos32
Embora Descartes atribua agrave loacutegica (Dialeacutetica) da sua eacutepoca ldquoprecei-tos verdadeirosrdquo33 a critica por tratar apenas de objetos (ou coisas) que jaacute se sabem e por natildeo ensinar um meio pelo qual se cultiva a razatildeo isto eacute um modus operandi da proacutepria razatildeo que lhe evidencie uma correspon-
pois a partir delas por exemplo a validade destas formas eacute independente dos seus conteuacutedos e tambeacutem porque se pode deduzir corretamente uma verdade previamente conhecida mediante premissas absurdas Cf GILSON 1987 pp 183-814 Descartes trata detalhadamente deste as-sunto em uma carta enviada a Mersenne datada de 18 de marccedilo de 1641
30 Cf Discours de la meacutethode (AT VI 17-18) De acordo com Gilson os problemas tratados pela ma-temaacutetica da eacutepoca de Descartes dizem respeito (1) agrave anaacutelise geomeacutetrica mais especificamente a anaacutelise proposta por Pappus e (2) a aacutelgebra dos modernos desenlvolvida a partir da aritmeacutetica de Diofanto Cf GILSON 1987 pp 187-191
31 Discours de la meacutethode (AT VI 17) O propoacutesito de Descartes eacute constituir um meacutetodo Gilson as-sinala que quando Descartes escreve os termos ldquoarterdquo ou ldquociecircnciardquo pretende propor como inuacutetil o problema secular ldquoUtrum logica sit ars aut scientiardquo Tal problema diz respeito sobretudo agrave diferenccedila entre loacutegica e ciecircncia realizada por Tomaacutes de Aquino ldquoars loacutegica id est scientia ratio-nalisrdquo Cf GILSON 1987 p 183
32 Discours de la meacutethode (AT VI 17) Desde as Regulae Descartes sustentava que as formas do silogismo natildeo auxiliavam em nada a busca da verdade Cf Regulae (AT X 439-440) Segundo Jullien a loacutegica da eacutepoca de Descartes era uma disciplina autocircnoma e se caracterizava por ldquofor-mas silogiacutesticasrdquo Cf JULLIEN 1996 pp 24-25
33 Cf Discours de la meacutethode (AT VI 17) De acordo com Gilson os termos ldquoinstruccedilotildeesrdquo e ldquoprecei-tosrdquo (do latim praecepta) satildeo algumas regras loacutegicas estabelecidas para desenvolver o conteuacutedo de um conceito Nesta perspectiva ele expotildee a seguinte defesa da loacutegica cartesiana contra a aris-toteacutelica feita por Claberg ldquoNotum interim est Logicae Peripateticae praecepta omnia et singula ad syllogismum tendere non aliter atque omnes lineae ad centrum in aliquo circulo sicut Johan Wllius ex communi Peripateticorum sensu logicae Peripateticaerdquo Defensio cartesiana c X 2 In GILSON 1987 p 183
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decircncia necessaacuteria entre diferentes objetos investigados Esta correspon-decircncia deve lhe evidenciar portanto quais satildeo os preceitos que constitui-ratildeo uma nova loacutegica Para realizar esta correspondecircncia e encontrar tais preceitos ele investiga o modo como a anaacutelise dos antigos geocircmetras e a aacutelgebra dos modernos pode contribuir com o seu propoacutesito
No que diz respeito agrave anaacutelise dos antigos e a aacutelgebra dos modernos aleacutem de se estenderem a mateacuterias muito abstratas e que natildeo pare-cem inicialmente de nenhuma utilidade a primeira estaacute sempre tatildeo restrita agrave consideraccedilatildeo das figuras que natildeo pode exercitar o enten-dimento sem fatigar em demasia a imaginaccedilatildeo e quanto agrave uacuteltima ficamos tatildeo sujeitos a certas regras e a certos sinais que dela se fez uma arte confusa e obscura que embaraccedila o espiacuterito ao inveacutes de uma ciecircncia que o cultive Foi isto que me levou a pensar que cum-pria procurar algum outro meacutetodo que compreendendo as vanta-gens destas trecircs artes fossem isentos de seus defeitos34
Para Descartes a evidecircncia de um objeto geomeacutetrico natildeo eacute conce-bida por definiccedilotildees postulados etc fornecidos pela Geometria Elementar de Euclides nem tatildeo pouco pelos encadeamentos da Loacutegica Dialeacutetica mas por um novo criteacuterio loacutegico a saber a anaacutelise que examina uma corres-pondecircncia necessaacuteria entre um objeto geomeacutetrico e outros objetos mate-maacuteticos Logo a evidecircncia do objeto geomeacutetrico se daacute pelo proacuteprio modus operandi da razatildeo Os outros objetos matemaacuteticos satildeo os nuacutemeros algeacute-bricos entretanto ainda em sua explicaccedilatildeo Descartes sustenta que haacute tambeacutem problemas com a aacutelgebra dos modernos 35 No iniacutecio seacuteculo XVII a Aacutelgebra era explicada por meio de caacutelculos demasiadamente abstratos mas diante do aspecto loacutegico de sua operacionalidade Descartes dirige--lhe a atenccedilatildeo com o intuito de interpretar algebricamente as figuras geo-meacutetricas No Discurso do meacutetodo ele continua a sua explicaccedilatildeo
34 Discours de la meacutethode (AT VI 17-18) 35 Cf Discours de la meacutethode (AT VI 20) Segundo Jullien os algebristas modernos do seacuteculo XV
como Regiomontanus Luca Paccioli e Nicolas Chuquet ainda utilizavam regras de caacutelculos rudi-mentares Seus sucessores do seacuteculo XVI sobretudo Cardan Tartaglia e Bombelli conseguiram o ecircxito de resolver as equaccedilotildees do terceiro e quarto grau Entretanto as notaccedilotildees ainda eram bastante confusas e coube a Descartes a realizaccedilatildeo de uma reforma estrutural na utilizaccedilatildeo da Aacutelgebra a favor da Geometria JULLIEN 1996 pp 32-34
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Notei que para conhececirc-las eu precisaria agraves vezes considerar cada uma em particular e outras vezes somente decoraacute-las ou compreender as vaacuterias ao mesmo tempo Assim pensei que para melhor consideraacute-las em particular teria de supocirc-las como linhas porque natildeo havia nada mais simples e nem que pudesse conceber mais distintamente agrave minha imaginaccedilatildeo e aos meus sentidos mas para reter e compreender as vaacuterias ao mesmo tempo eu precisava explicaacute-las por alguns sinais os mais curtos possiacuteveis e que desse modo aproveitando o melhor da anaacutelise geomeacutetrica e da aacutelgebra corrigiria todos os defeitos de uma pela outra36
Descartes portanto estabelece o seu criteacuterio de anaacutelise a partir da concepccedilatildeo que prescreve o encadeamento loacutegico do efeito (que eacute aqui uma propriedade ou lugar de uma figura geomeacutetrica) agrave sua causa necessaacuteria (que eacute aqui uma equaccedilatildeo algeacutebrica correspondente) Segue Descartes
[] os objetos das matemaacuteticas satildeo notadamente diferentes toda-via todos coincidem em apenas considerarem as diversas relaccedilotildees e proporccedilotildees que entre eles se encontram Diante disso pensei que seria melhor examinar apenas essas proporccedilotildees conjecturando-as apenas nas disciplinas que servissem para tornar o seu conheci-mento mais faacutecil mesmo assim sem os limitar de modo algum a essas disciplinas com o intuito de poder melhor aplicaacute-las a todas as outras agraves quais conviesse37
Assim no caso em que se eacute solicitado resolver uma dada questatildeo matemaacutetica se deve primeiramente identificar uma construccedilatildeo geomeacutetri-ca mediante a proposiccedilatildeo de uma equaccedilatildeo algeacutebrica correspondente Tal soluccedilatildeo eacute concebida em funccedilatildeo dos segmentos dados38 Em seguida sem fazer qualquer distinccedilatildeo entre os segmentos dados e os desconhecidos ele analisa o grau de dificuldade da questatildeo apresentada de modo a estabe-lecer relaccedilotildees e proporccedilotildees entre os segmentos dados e os procurados A partir deste cultivo da razatildeo Descartes entende que a sua loacutegica eacute suficien-temente fundamentada em poucos preceitos que requerem apenas as ldquolon-
36 Discours de la meacutethode (AT VI 20) Nesta perspctiva Allard relata que eacute a partir da matemaacutetica mais precisamente na anaacutelise dos antigos geocircmetras e na Aacutelgebra dos modernos que Descartes descobre a ldquoexpressatildeo histoacutericardquo do ldquomeacutetodo da ciecircncia universalrdquo Cf ALLARD 1963 p 42
37 Discours de la meacutethode (AT VI 20) 38 Cf Discours de la meacutethode (AT VI 20-21)
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gas cadeias de razotildees tatildeo simples e faacuteceis de que os geocircmetras costumam servir-se para chegar agraves suas mais difiacuteceis demonstraccedilotildeesrdquo39 Eis os precei-tos que estruturam a loacutegica cartesiana (1) nunca se deve aceitar nenhuma proposiccedilatildeo como verdadeira sem o conhecimento de sua evidecircncia40 (2) dividir cada uma das dificuldades que se examine em tantas parcelas quan-tas fosse possiacutevel e necessaacuterio para de modo mais simples resolvecirc-las41 (3) conduzir por ordem os raciociacutenios comeccedilando pelos objetos simples e por isso mais faacuteceis de conhecer ateacute o conhecimento dos mais compostos e assim supondo uma determinada ordem mesmo entre aqueles objetos que natildeo se precedem naturalmente uns aos outros42 (4) efetuar enumeraccedilotildees completas e revisotildees gerais para que natildeo haja a miacutenima possibilidade de se estaacute omitindo algum dado do exame43
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39 Discours de la meacutethode (AT VI 19) 40 Preceito da evidecircncia Cf Discours de la meacutethode (AT VI 18) 41 Preceito da anaacutelise Cf Discours de la meacutethode (AT VI 18) Assinala-se que o conceito resoluccedilatildeo
prescreve desde os antigos geocircmetras a via de descoberta analiacutetica (Vide ALLARD 1963 p 44)42 Preceito da siacutentese Cf Discours de la meacutethode (AT VI 18-19) Assinala-se que o conceito composiccedilatildeo
prescreve desde os antigos geocircmetras a via de descoberta sinteacutetica (Vide ALLARD 1963 p 44)43 Preceito da revisatildeo geral Cf Discours de la meacutethode (AT VI 19)
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Criacutetica ao realismo cientiacutefico de um ponto de vista epistemoloacutegico e pragmaacutetico
Debora Domingas Minikoski (UEL)
Introduccedilatildeo
A praacutetica cientiacutefica eacute um importante recurso mobilizado por auto-res do debate realismoantirrealismo A partir das criacuteticas que van Fraas-sen (1989) dirigiu a IBE por meio do argumento do bad lot1 os realistas Stathis Psillos (2000) e Peter Lipton (2010) recorreram agrave praacutetica cientiacute-fica2 com o intuito de responder van Fraassen argumentando que IBE eacute parte fundamental das praacuteticas inferenciais na ciecircncia e que aleacutem disso o realismo cientifico eacute a perspectiva que melhor condiz com a postura epistemoloacutegica dos proacuteprios cientistas
O movimento em direccedilatildeo agrave praacutetica cientiacutefica natildeo se restringe ao realismo cientiacutefico antirrealistas como Kyle Stanford (2006) fazem uso da histoacuteria da ciecircncia como elemento problematizador do argumento de IBE e por conseguinte do proacuteprio realismo cientiacutefico A fim de percorrer a trajetoacuteria da praacutetica cientiacutefica como elemento constituinte do debate realismoantirrealismo apresentaremos na primeira seccedilatildeo o argumento da inferecircncia da melhor explicaccedilatildeo (IBE)3 e seu papel no realismo cien-tiacutefico a partir do ceacutelebre artigo de Gilbert Harman (1965) Em seguida na segunda seccedilatildeo apresentaremos o trabalho historiograacutefico de Stanford
1 O argumento do bad lot pode ser elencado da seguinte forma ldquoI)IBE compara hipoacuteteses de um conjunto de acordo como o criteacuterio da explicaccedilatildeo II) mas IBE natildeo esgota todas as possibilidades de comparaccedilatildeo III) entatildeo a hipoacutetese escolhida pode ser a melhor de um conjunto ruimrdquo (SILVA MINIKOSKI 2016 p 245)
2 Psillos e Lipton responderam o argumento do bad lot a partir do que eles chamaram de conhe-cimento de fundo (background knowledge) (2000 e 2010) Trata-se de uma premissa extra inse-rida em IBE na qual a melhor explicaccedilatildeo natildeo eacute eleita apenas pela comparaccedilatildeo com as hipoacuteteses alternativas mas tambeacutem a partir do conhecimento jaacute estabelecido na comunidade cientiacutefica o conhecimento anterior
3 Do inglecircs inference to the best explanation (IBE)
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 149-163 2017
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como problematizaccedilatildeo ao caraacuteter eliminativo de IBE e por fim na terceira seccedilatildeo apresentaremos a concepccedilatildeo socioloacutegica de Bruno Latour (2000) como complemento a questotildees referentes agrave comparaccedilatildeo e a produccedilatildeo de alternativas rivais questotildees estas suscitadas a partir do trabalho de Stan-ford Ainda veremos que a concepccedilatildeo de Latour tambeacutem problematiza IBE mas agora a partir de uma anaacutelise socioloacutegica da dinacircmica cientiacutefica
I- Realismo cientiacutefico e a Inferecircncia da melhor explicaccedilatildeo
Com o intuito de apresentar a relaccedilatildeo entre o argumento da infe-recircncia da melhor explicaccedilatildeo e o realismo cientiacutefico iremos expor o arti-go de Gilbert Harman de 1965 que propocircs que a inferecircncia da melhor explicaccedilatildeo seria um melhor relato das praacuteticas inferecircncias da ciecircncia e que posteriormente foi usado pelo realismo cientiacutefico natildeo soacute como um relato das praacuteticas inferenciais dos cientistas mas como uma forma de compreender o processo de aceitaccedilatildeo de teorias
O realismo cientiacutefico se constitui a partir da deacutecada de 1970 como um programa de pesquisa institucionalizado que reuniu algumas discus-sotildees haacute muito conhecidas na filosofia Sua principal motivaccedilatildeo filosoacutefica eacute definir que o sucesso da ciecircncia se daacute em razatildeo de que podemos segu-ramente sustentar a crenccedila na verdade das teorias aceitas assim como inferir legitimamente as entidades inobservaacuteveis postuladas por elas
Para justificar esse passo muitos adeptos do realismo cientiacutefico re-correm a uma argumentaccedilatildeo de tipo abdutivo4 uma regra que hoje eacute mais conhecida como Inferecircncia da melhor explicaccedilatildeo (IBE)
Gilbert Harman (1965) publicou o artigo com o titulo ldquoInference to the Best Explanationrdquo no qual tinha por objetivo demonstrar a relevacircn-cia de IBE (no acircmbito ordinaacuterio e cientiacutefico) em detrimento de outras in-ferecircncias de cunho enumerativo Vamos nos deter agora em reconstruir parte da argumentaccedilatildeo de Harman com a pretensatildeo de I) apresentar a
4 Trata-se de um modo de argumentaccedilatildeo utilizado na produccedilatildeo de hipoacuteteses que caso sejam verdadeiras poderatildeo explicar um dado conjunto de fenocircmenos esse processo argumentativo foi descrito por Charles S Peirce do seguinte modo o fato surpreendente C eacute observado mas se A fosse verdadeiro C seria um fato natural logo haacute razotildees para suspeitar que A seja verdadeiro Desse modo Peirce utilizou-se desse raciociacutenio como forma de justificar a crenccedila na verdade de hipoacuteteses posteriormente o autor tambeacutem observou que o meacutetodo eacute tambeacutem uacutetil para a desco-berta de novas hipoacuteteses (PSILLOS 2007 p 4)
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estrutura de IBE (premissas e conclusatildeo) e II) compreender o papel de IBE enquanto argumento em defesa do realismo cientiacutefico
Harman afirma que IBE corresponde aproximadamente ao que ou-tros autores chamaram de ldquoabduccedilatildeordquo ldquomeacutetodo de eliminaccedilatildeordquo ldquoinferecircncia hipoteacuteticardquo ldquoinferecircncia eliminativardquo ldquoinduccedilatildeo eliminativardquo entre outras denominaccedilotildees mas prefere sua terminologia por acreditar que ela eacute mais eficiente em evitar problemas do que as terminologias alternativas (cf HARMAN 1965 p 89) No que diz respeito ao procedimento de IBE ele afirma ldquoAo fazer essa inferecircncia [IBE] se infere do fato de que certa hipoacute-tese explicaria a evidecircncia a verdade dessa hipoacuteteserdquo (HARMAN 1965 p 89) Dessa forma i) IBE elege a explicaccedilatildeo como criteacuterio de escolha entre hipoacuteteses5 ii) a partir da explicaccedilatildeo fornecida pela hipoacutetese estamos au-torizados em sustentar a crenccedila em sua verdade
O autor nos fornece ainda outras informaccedilotildees a respeito de IBE tatildeo importantes quanto as anteriores iii) em geral haveraacute outras hipoacuteteses que podem explicar a evidecircncia e por isso eacute preciso que estejamos aptos a rejeitar hipoacuteteses alternativas iv) quando um cientista infere a existecircncia de partiacuteculas subatocircmicas como por exemplo o quark ele estaacute inferindo a verdade dessa explicaccedilatildeo (no caso a entidade inobservaacutevel ldquoquarkrdquo) para os vaacuterios dados que ele deseja levar em conta (HARMAN 1965 p 89)
A argumentaccedilatildeo do autor esboccedila a situaccedilatildeo em que a IBE seraacute uti-lizada e a proacutepria estrutura desse argumento em cenaacuterios tanto ordinaacute-rios quanto cientiacuteficos IBE nos fornece um criteacuterio para eleger hipoacuteteses e entidades que melhor se adequem agrave evidecircncia observada ndash o criteacuterio da melhor explicaccedilatildeo Aleacutem disso como haviacuteamos citado acima podemos observar porque IBE eacute tambeacutem chamada de ldquoinferecircncia eliminativardquo a partir da comparaccedilatildeo ela precisa eliminar hipoacuteteses que natildeo possuam teor explicativo satisfatoacuterio para eleger a que melhor explica a evidecircncia a hipoacutetese verdadeira juntamente com seu conjunto de entidades exis-tentes Essa comparaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a inferecircncia seja garanti-da contudo essa necessidade traz muitos problemas a IBE como vere-mos na proacutexima seccedilatildeo deste trabalho
5 Harman reconhece que existe um problema sobre como podemos julgar uma hipoacutetese suficien-temente melhor que outra contudo ele afirma que qualquer julgamento seraacute presumivelmente baseado em paracircmetros como simplicidade plausibilidade capacidade explicativa etc Apesar de natildeo negar o problema do criteacuterio da melhor explicaccedilatildeo o autor natildeo iraacute desenvolver esse problema em seu artigo (HARMAN 1965 p 89)
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A partir das consideraccedilotildees de Harman cujas consideraccedilotildees fo-ram adaptadas como argumento para uma defesa do realismo cientiacutefico como consequecircncia da aceitaccedilatildeo de teorias (SILVA CASTILHO 2015 p 244) podemos visualizar a regra do seguinte modo ldquouma evidecircncia E deve ser explicada b) a hipoacutetese H explica melhor E do que outras hi-poacuteteses rivais c) conclusatildeo H eacute passiacutevel de crenccedila em sua verdade e as entidades inobservaacuteveis postuladas por H podem ser inferidasrdquo (SILVA 2011 p 3)
A partir da formulaccedilatildeo acima eacute possiacutevel compreender por que IBE eacute tatildeo cara a muitos adeptos do realismo cientiacutefico eacute possiacutevel justificar 6 por meio deste argumento a crenccedila na verdade das teorias juntamente com a crenccedila na existecircncia de entidades inobservaacuteveis Ainda IBE eacute um argumento persuasivo que apresenta muitas vantagens pois ele legitima filosoficamente as teses do realismo cientiacutefico fundamentando as con-clusotildees dos cientistas em relaccedilatildeo agraves entidades inobservaacuteveis e afastan-do assim a consideraccedilatildeo de que essa conclusatildeo se trata apenas de uma ldquoprecipitaccedilatildeo ontoloacutegicardquo Aleacutem disso ele natildeo soacute fornece uma justificaccedilatildeo filosoacutefica para os procedimentos cientiacuteficos mas tambeacutem parece nos dar uma descriccedilatildeo muito confiaacutevel dos procedimentos usados na ciecircncia (SIL-VA 2011 p 275)
Feita a apresentaccedilatildeo do argumento de IBE na proacutexima seccedilatildeo apre-sentaremos o argumento de Kyle Stanford assim como sua sustentaccedilatildeo histoacuterica que problematiza o caraacuteter eliminativo presente na segunda premissa de IBE
II- O argumento das alternativas natildeo concebidas de Kyle Stanford e sua fundamentaccedilatildeo histoacuterica a teoria
da pangecircnese de Darwin
Apresentaremos nessa seccedilatildeo o argumento das alternativas natildeo concebidas (unconceived alternatives) Posteriormente apresentaremos
6 A princiacutepio toda hipoacutetese eacute passiacutevel de crenccedila em sua verdade IBE eacute justamente uma das formas de justificar essa crenccedila uma questatildeo muito importante para o debate realismoantirrealismo eacute IBE fornece uma boa justificaccedilatildeo para a crenccedila na verdade das teorias e na existecircncia de inob-servaacuteveis Para realistas que fazem uso deste argumento a resposta eacute positiva entretanto para antirrealistas como van Fraassen (2007) a resposta eacute negativa
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em linhas gerais um dos episoacutedios historiograacuteficos7 usados por Stanford para fundamentar seu argumento a teoria da pangecircnese de Darwin
Kyle Stanford apresentou em Exceeding our grasp (2006) uma anaacute-lise criacutetica do caraacuteter eliminativo de IBE A necessidade desse elemento eacute verificada na exigecircncia realista de que a as conclusotildees desse tipo de argumentos deve ser resultado da exclusatildeo de qualquer possibilidade al-ternativa (CASTILHO 2014 p 43) Ainda para Stanford o que estaacute em jogo quando analisamos esse tipo de inferecircncia eacute a proacutepria confiabilidade da eliminaccedilatildeo (STANFORD 2006 p 29)
A confiabilidade da eliminaccedilatildeo reside na comparaccedilatildeo de hipoacuteteses isto eacute no caso do argumento de IBE a conclusatildeo soacute se assegura se a se-gunda premissa for atendida se efetivamente houver a comparaccedilatildeo entre hipoacuteteses alternativas Contudo Stanford argumenta que a histoacuteria da ciecircncia expotildee casos onde houve inuacutemeras falhas em conceber (conside-rar) alternativas seacuterias no processo eliminativo A partir disso a questatildeo de haverem seacuterias alternativas que satildeo plausiacuteveis e bem confirmadas pela evidecircncia natildeo eacute uma mera possibilidade inserida em um contexto ceacuteti-co que se assemelha aos democircnios cartesianos mas alternativas que se efetivam e que satildeo como a mecacircnica newtoniana a relatividade geral e a geneacutetica mendeliana (2006 pp 29-31)
Ainda Stanford nos lembra da importacircncia desse tipo de inferecircncia tanto no acircmbito comum quanto no acircmbito cientiacutefico Em nosso cotidiano nos utilizamos dessas inferecircncias quando queremos achar a explicaccedilatildeo para um dado fato que nos eacute problemaacutetico como por exemplo se ouvimos um estrondo na rua inferimos que a melhor explicaccedilatildeo eacute a de que um carro se acidentou e natildeo que fora um aviatildeo (2006 p 29) Todavia no acircm-bito cientiacutefico a sua utilizaccedilatildeo precisa ser feita com cautela pois o preccedilo a se pagar caso natildeo sejam feitas todas as consideraccedilotildees necessaacuterias pode ser eleger e por conseguinte aceitar uma hipoacutetese que se mostra com-pletamente inadequada para explicar a evidecircncia e que posteriormente pode ser substituiacuteda por alguma rival que jaacute estava disponiacutevel mas que natildeo havia sido considerada adequadamente no momento da comparaccedilatildeo As consequecircncias deste erro podem significar um atraso consideraacutevel no
7 Stanford apresenta trecircs episoacutedios da histoacuteria da biologia como forma de exemplificar seu argu-mento i) a teoria da pangecircnese de Darwin a ii) a teoria da stirp de Francis Galton e iii) a teoria do germe plasmaacutetico de August Weismann
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desenvolvimento do conhecimento de alguma aacuterea da ciecircncia (CASTILHO 2014 p 45)
Mesmo que Stanford esteja criticando o caraacuteter eliminativo de in-ferecircncias como IBE o autor reconhece que esse tipo de raciociacutenio possui um papel muito importante tanto no domiacutenio comum quanto no cien-tiacutefico pois sem elas argumenta o autor dificilmente iriacuteamos muito lon-ge com nosso conhecimento Aleacutem disso em muitos casos encontramos nesse tipo de inferecircncia uma confiaacutevel ferramenta (2006 p 29) Assim Stanford busca problematizar a questatildeo de ateacute que ponto os cientistas satildeo capazes ou natildeo de exaurir todo o campo de possibilidades alternativas sem contudo deixar de reconhecer o papel de inferecircncias como IBE na ciecircncia (2006 pp 29-30)
Stanford estaacute nos sugerindo que ao longo da histoacuteria da ciecircncia alternativas seacuterias foram desconsideradas na eliminaccedilatildeo mas o que eacute de fato uma alternativa natildeo considerada Para Stanford uma alternativa natildeo considerada eacute uma hipoacutetese real isto eacute que estaacute disponiacutevel na literatura filosoacutefica aleacutem disso essa hipoacutetese tem de ser conhecida pelo proponen-te da hipoacutetese original e eacute uma alternativa seacuteria plausiacutevel e que natildeo estaacute fora do campo conceitual do defensor da hipoacutetese original (SILVA CAS-TILHO 2015 p 246) Quanto agraves duas primeiras explicaccedilotildees natildeo parece haver complexidades todavia a terceira precisa ser mais bem desenvol-vida o que significa dizer que a hipoacutetese alternativa tem que estar dentro do campo conceitual do proponente (ou defensor) da hipoacutetese original
Para atender ao terceiro criteacuterio a alternativa deve respeitar dois requisitos i) precisa oferecer para o proponente (ou defensor) da hipoacute-tese original uma explicaccedilatildeo dos fenocircmenos que o defensor da hipoacutetese original se propocircs explicar ii) Em segundo lugar a alternativa precisa ser passiacutevel de compreensatildeo ao proponente da hipoacutetese original Assim o de-fensor da hipoacutetese original deve perceber a alternativa como uma possi-bilidade de explicaccedilatildeo sem que seja necessaacuteria a alteraccedilatildeo de seu quadro conceitual como um todo (2015 pp 245-246)
Feita a apresentaccedilatildeo do argumento passaremos agora para a ex-posiccedilatildeo do episoacutedio que Stanford usa para fundamenta-lo a hipoacutetese da pangecircnese de Darwin
A hipoacutetese da pangecircnese foi apresentada na obra A variaccedilatildeo de ani-mais e plantas sob domesticaccedilatildeo (1868) A questatildeo da variaccedilatildeo e da heran-
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ccedila dos caracteres era central para Darwin na medida em que uma hipoacute-tese que explicasse esses problemas complementaria seu evolucionismo pois para ele todas as variaccedilotildees significativas de um ponto evolutivo deveriam ser variaccedilotildees hereditaacuterias herdadas por geraccedilotildees posteriores (2015 p 247) Para explicar as variaccedilotildees herdadas era preciso explicar o processo de transmissatildeo desses caracteres
O problema da transmissatildeo eacute tratado hoje por um especiacutefico pro-grama de pesquisa a geneacutetica Contudo na eacutepoca de Darwin essa disci-plina natildeo existia e os problemas ligados agrave hereditariedade eram tratados no mesmo quadro conceitual dos problemas da geraccedilatildeo e do desenvol-vimento dos embriotildees gerados pela reproduccedilatildeo Portanto os caracteres herdados por um novo organismo deveriam ser compreendidos a partir de sua geraccedilatildeo das condiccedilotildees que ocasionaram sua reproduccedilatildeo (2015 p 248) Eacute nesse quadro conceitual que a pangecircnese se localiza
Em linhas gerais a hipoacutetese eacute formulada da seguinte forma Darwin parte do pressuposto jaacute estabelecido em sua eacutepoca de que as ceacutelulas (unidades do crescimento) convertem-se nos vaacuterios tecidos e substacircncias que estatildeo presentes em nosso organismo mas aleacutem disso o naturalista supotildee que as unidades de crescimento expelem gracircnulos que satildeo disper-sos por todo o corpo (circulam pelo organismo) e se forem alimentados adequadamente se multiplicaratildeo por autodivisatildeo Esses gracircnulos satildeo chamados por Darwin de gecircmulas e eles satildeo coletados a partir de todas as partes do corpo que as originam para constituiacuterem os elementos se-xuais O desenvolvimento desses elementos dependeraacute da uniatildeo deles com outras ceacutelulas nascentes ou que estatildeo parcialmente desenvolvidas Ainda as gecircmulas satildeo expelidas por todas as unidades em todas as fases do desenvolvimento do organismo e natildeo somente na fase adulta Por fim Darwin assume que as gecircmulas em seu estado de dormecircncia possuem afinidade entre si e eacute justamente por conta dessa afinidade que elas se agregam nos brotos (elementos sexuais) A partir dessas consideraccedilotildees Darwin conclui que natildeo satildeo os oacutergatildeos reprodutivos e nem os brotos que produzem os novos organismos mas sim essas unidades as gecircmulas (DARWIN apud SILVA CASTILHO 2015 p 248)
Eacute nas gecircmulas que os caracteres hereditaacuterios residem Cada ceacutelula parental eacute responsaacutevel pela geraccedilatildeo do novo organismo em desenvolvimento por meio da gecircmula que expelem Nesse sentido a
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formaccedilatildeo de um novo organismo eacute um processo parcial pois cada parte do corpo parental fornece o material para a formaccedilatildeo do oacutergatildeo corres-pondente do herdeiro (2015 p 249)
O naturalista defendia a pangecircnese como uma ldquohipoacutetese provisoacute-riardquo Todavia mesmo concebendo a pangecircnese dessa forma Darwin a sustentou de maneira confiante Ao analisar trechos da correspondecircncia pessoal de Darwin8 Stanford verifica a total confianccedila do naturalista em sua hipoacutetese da pangecircnese confianccedila essa que proveacutem do que Darwin ad-mitia sem nenhum problema em suas correspondecircncias ele natildeo poderia considerar nenhuma outra hipoacutetese que explicasse tatildeo bem os fenocircme-nos centrais da geraccedilatildeo e da heranccedila quanto sua hipoacutetese fazia (2006 pp 67-68 2015 p 249) Para chegar a essa conclusatildeo se levarmos em con-ta a construccedilatildeo de hipoacuteteses via IBE Darwin teria elegido sua hipoacutetese como melhor explicaccedilatildeo apoacutes considerar exaustivamente as alternativas disponiacuteveis Todavia veremos agora que Darwin teve acesso a uma alter-nativa mas que natildeo a considerou
Quando Darwin publicou seu trabalho sobre a pangecircnese seu pri-mo Francis Galton considerou a hipoacutetese como uma explicaccedilatildeo promis-sora da transmissatildeo dos caracteres contudo para Galton a hipoacutetese de Darwin apresentava alguns problemas9 sobretudo a admissatildeo de que as gecircmulas circulavam pelo corpo Para Galton essa admissatildeo precisava ser testada e ele se dispocircs a fazecirc-lo (POLIZELLO 2008 p 45) Assim em 1871 Galton publica o artigo Experiments in pangenesis by breeding from rabbits of a pure variety into whose circulation blood taken from others va-rieties had previously been largely transfused no qual realizou tranfusotildees de sangue em coelhos silvergrey Pressupondo que a circulaccedilatildeo das gecircmu-las pelo organismo era correta Galton realizou transfusotildees em animais que ele considera de raccedila pura os coelhos silvergrey e posteriormente
8 Dentre as correspondecircncias analisadas por Stanford encontram-se a correspondecircncia de Da-rwin para Huxley de Maio aproximadamente do ano 1865 A correspondecircncia para Hooker de 23 de Fevereiro de 1868 e a carta de Darwin para Muller de 3 de Junho de 1868 (2006 p 64-68)
9 Esses problemas eram ldquoa) Sob o ponto de vista fiacutesico era difiacutecil compreender como um cor-po coloidal (como as gecircmulas deviam ser) poderia passar livremente atraveacutes das membranas encontradas no organismo b) Havia dificuldades em entender como se dava a passagem das gecircmulas do pai para o corpo da matildee Se elas se difundiam no corpo da matildee entatildeo um nuacutemero mais limitado das gecircmulas paternas passaria para o feto que entatildeo apresentaria menos caracte-riacutesticas paternas levando os descendentes a serem muito mais parecidos com as matildees e com as avoacutes (2008 pp 45-46)
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os cruzava com outros animais puros a fim de verificar se os animais apresentavam sinais de mistura O raciociacutenio de Galton era simples caso as gecircmulas pudessem circular pelo organismo elas poderiam atraveacutes de tranfusotildees de sangue serem transmitidas de um individuo para o outro (2008 p 46) Apoacutes 88 coelhos em 13 ninhadas serem testados e nenhum indicio de alteraccedilatildeo na raccedila ser identificado Galton conclui que a hipoacutetese da pacircngenese do modo como Darwin a expocircs era incorreta (GALTON 1871 p 404) Poreacutem apesar dos resultados Galton permaneceu otimista em relaccedilatildeo agrave pangecircnese contanto que esta sofresse algumas alteraccedilotildees (2008 p 49)
A partir desses resultados Galton propocircs a sua hipoacutetese alternativa sobre a transmissatildeo a teoria da hereditariedade ancestral a qual descreve que o material germinal natildeo eacute produzido pelos pais mas sim transmitido sem alteraccedilatildeo de uma geraccedilatildeo a outra Essa concepccedilatildeo foi apresentada a Darwin em vaacuterias ocasiotildees contudo Darwin respondia a Galton afirmando que natildeo conseguia acompanhar seu raciociacutenio (2006 p 74) Desta forma segundo Stanford parece natildeo haver indiacutecios que Darwin tenha considera-do a e por fim eliminado a alternativa de Galton (2006 pp 74-75)
A seguir na terceira e uacuteltima seccedilatildeo deste trabalho apresentaremos a concepccedilatildeo socioloacutegica de Bruno Latour cuja anaacutelise da dinacircmica cien-tiacutefica nos mostra os desafios que o proponente de uma alternativa rival seacuteria precisaraacute enfrentar para construir sua hipoacutetese e para que ela tenha chances de ser considerada em um processo eliminativo
III- A abordagem soacutecio-construtivista de Bruno Latour como contribuiccedilatildeo ao debate realismoantirrealismo
A partir da concepccedilatildeo da dinacircmica cientiacutefica de Thomas Kuhn pre-sente em A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas (1962)10 Latour compreen-de a construccedilatildeo dos fatos como o produto de uma comunidade cientiacutefica que possui uma dinacircmica interna que define o programa investigativo a ser seguido fomentando pesquisas do interesse comunitaacuterio e dificultan-do pesquisas que natildeo se encaixam nesse interesse (KUHN 2011 Cap I e II LATOUR 2000 Cap I e II) Contudo ao inveacutes de focar nas estruturas amplas que guiam a pesquisa os paradigmas Latour iraacute seguir sua anaacuteli-
10 Utilizaremos aqui a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Editora Perspectiva de 2011
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se por meio dos fatos em processo de construccedilatildeo mesmo que esses fatos natildeo sejam por si mesmos paradigmas
Latour divide o desenvolvimento da ciecircncia em dois momentos a ciecircncia pronta e a ciecircncia em construccedilatildeo momentos estes que podem ser exprimidos na figura do Jano bifronte (LATOUR 2000 p 16) O velho Jano representa a ciecircncia pronta periacuteodo no qual os fatos cientiacuteficos jaacute estatildeo construiacutedos o que significa dizer que jaacute se consolidaram e que natildeo mais existem controveacutersias entre os cientistas a respeito da explicaccedilatildeo para determinados fenocircmenos isto eacute os pesquisadores natildeo estatildeo mais rivalizando para encontrar uma dada substacircncia bioquiacutemica que estimula a produccedilatildeo do hormocircnio do crescimento construir um modelo para a estrutura do DNA ou desenvolver uma forma mais eficaz de comunicaccedilatildeo a longas distacircncias11 Todos esses fatos jaacute nos satildeo dados e os meios pelos quais eles se tornaram fatos saem de cena Eacute a ciecircncia em construccedilatildeo que abriga as disputas a respeito da construccedilatildeo dos fatos e termos como ldquocon-correcircnciardquo ldquoprazordquo ldquojogadardquo ldquoretoacutericardquo entre outros aos quais natildeo costu-mamos relacionar com os fatos cientiacuteficos emergem Assim a porta de entrada do autor para compreender a dinacircmica cientiacutefica eacute a da ciecircncia em construccedilatildeo onde seraacute possiacutevel acompanhar os cientistas na tentativa de encerrar controveacutersias ou de reabri-las (2000 pp 14-15)
Como jaacute dissemos para Latour assim como para Kuhn a ciecircncia eacute um empreendimento coletivo isto significa dizer que um fato natildeo pode ser construiacutedo de maneira isolada O destino das afirmaccedilotildees de um artigo cientiacutefico (meio pelo qual os cientistas expotildeem suas produccedilotildees) depen-deraacute do que os outros membros da comunidade fizerem com ele (2000 p 53) Caso a comunidade acolha essas afirmaccedilotildees elas se tornaratildeo fatos caso contraacuterio se houver um ou mais discordantes a comunidade estaraacute diante de uma controveacutersia (2000 p 54) Contudo em ciecircncia natildeo basta que algueacutem se pronuncie contra as afirmaccedilotildees de um artigo para que isso se transforme em uma controveacutersia O discordante precisaraacute enfrentar todos os recursos mobilizados por aquele a quem ele se opotildee (2000 p 54) Para Latour a construccedilatildeo dos fatos eacute um processo que demanda dois
11 Os exemplos dados satildeo retirados de episoacutedios da histoacuteria da ciecircncia usados com exemplo por Latour A controveacutersia entre Schally e Guillemin na busca do hormocircnio que estimula o hormocircnio do crescimento (2000 pp 42 48) a disputa entre Watson e Crick com Linus Pauling e Rosalind Franklin na construccedilatildeo do modelo do DNA (2000 pp 28-31) e por fim a disputa entre a Bell Company com as companhias telefocircnicas rivais (2000 pp 206-209)
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niacuteveis o social e o natural ou seja os recursos que precisam ser mobiliza-dos para construir um fato precisam ser tanto naturais quanto sociais12 Nesse sentido o construtor de fatos precisa arregimentar aliados huma-nos (outros pesquisadores diretorias das revistas cientiacuteficas etc) e natildeo humanos (entidades observaacuteveis e inobservaacuteveis instrumentos institui-ccedilotildees financiadoras etc) (LATOUR 2000 Cap II e III)
Quando Galton propotildeem uma alternativa rival a pangecircnese de Da-rwin a condiccedilatildeo imprescindiacutevel para que ele fosse levado a seacuterio eacute a de que ele reunisse tantos recursos (naturais e sociais) quanto Darwin reu-niu isto eacute aleacutem dos experimentos Galton precisa mobilizar instituiccedilotildees e outros pesquisadores tanto quanto Darwin os mobilizou Agora comeccedila a ficar claro o preccedilo da que o discordante precisa pagar para iniciar a controveacutersia
Ao analisarmos a alternativa de Galton parece-nos que ele conse-guiu reunir recursos e apresentar uma seacuteria alternativa a Darwin Isso pode ser verificado no fato de que ele conseguiu realizar experimentos que problematizaram seriamente a pangecircnese e produziu trecircs artigos que foram publicados em umas das mais respeitadas instituiccedilotildees cientiacutefi-cas que perpetua esse status ateacute os dias de hoje a Royal Society Ainda fa-zem parte de sua produccedilatildeo mais trecircs trabalhos13 pela revista Macmillanrsquos importante perioacutedico do seacuteculo XIX O prestiacutegio dos perioacutedicos onde se publica os trabalhos as referecircncias usadas nos artigos e ateacute mesmo a cre-dibilidade do autor enquanto pesquisadores iratildeo pesam a favor ou contra o discordante
Mesmo sendo relevante epistemologicamente e de um ponto de vista da dinacircmica interna da comunidade a alternativa de Galton natildeo foi levada a seacuterio por Darwin Mas por quecirc A resposta dessa pergunta natildeo pode ser dada de um ponto de vista epistemoloacutegico visto que a teoria de Galton possuia esses meacuteritos A resposta soacute pode ser praacutegmatica Darwin natildeo considerou a alternativa de Galton porque ele tomou a decisatildeo de natildeo aceita-la Natildeo eacute possiacutevel a partir do trabalho de Stanford rastrear
12 Para Latour a ciecircncia eacute um empreendimento hiacutebrido da natureza e da sociedade Nesse sen-tido a proacutepria constituiccedilatildeo da ciecircncia precisa ser compreendida pela oacutetica desses dois niacuteveis de modo simeacutetrico pois no processo de construccedilatildeo dos fatos ambos os niacuteveis satildeo mobilizados igualmente (LATOUR 2013 p 8)
13 Tanto os trabalhos publicados pela Royal Society quanto os trabalhos publicados pela revista Macmillanrsquos satildeo citados por Stanford (2006)
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uma justificaccedilatildeo epistemoloacutegica para a atitute de Darwin As razotildees pelas quais Darwin natildeo considerou a alternativa de Galton natildeo podem ser ditas o que podemos dizer eacute apenas que a decisatildeo tomada por ele natildeo retira-ria (como natildeo retirou) a sua respeitabilidade e confianccedila na comunidade cientiacutefica de sua eacutepoca O naturalista continuou a ser o grande cientista de seu tempo Isso se deu por uma razatildeo muito simples Darwin eacute o grande Darwin Aqui estamos recorrendo ao argumento de autoridade Em filoso-fia e mais ainda na ciecircncia esse tipo de recurso retoacuterico eacute motivo de riso contudo talvez natildeo haja um empreendimento que mais o utilize do que a proacutepria ciecircncia basta que vejamos como se datildeo as discussotildees e como grandes autoridades como Darwin satildeo acionadas para dirimir essas con-troveacutersias (LATOUR 2000 pp 56-58)
Ainda jaacute enfatizamos os meacuteritos epistemoloacutegicos (consistecircncia e teste empirico) e socioloacutegicos da alternativa de Galton (aceitaccedilatildeo comu-nitaria atestada pela publicaccedilatildeo em importantes perioacutedicos) contudo esses recursos mobilizados por Galton natildeo sao acessiacuteveis a qualquer in-dividuo que queira produzir uma alternativa Galton era um cientista de renome e com recursos financeiros a sua disposiccedilatildeo (2006 pp 60-65) o que propiciou a ele condiccedilotildees de propor sua alternativa Mas satildeo todos os cientistas que dispotildee dessas condiccedilotildees A resposta claramente eacute natildeo Os recursos teacutecnicos e financeiros que precisam ser mobilizados para o desenvolvimento e o teste de hipoacuteteses satildeo acessiacuteveis apenas para uma pequena parte da comunidade cientiacutefica Ainda mesmo que o dicordan-te possa manter a controveacutersia por algum tempo por meio da publica-ccedilatildeo de artigos referenciados a partir de trabalhos anteriores haveraacute um momento em que ele precisaraacute ir para um laboratoacuterio para continuar a controveacutersia (2000 Cap II) Cientistas como Galton Darwin Lavoiser Watson Crick e outros possuem acesso a esse recurso mas estes satildeo a execessatildeo e natildeo a regra na maior parte da comunidade o trabalho reali-zado eacute puramente teacutecnico e natildeo destinado ao desenvolvimento de alter-nativas (KUHN 2011 Cap II) Deste modo as condiccedilotildees de desenvolvi-mento de alternativas rivais eacute algo demasiadamente trabalhoso e pouco acessiacutevel quando consideramos a praacutetica cientiacutefica Nesse sentido nos parece que a partir da concepccedilatildeo socioacutelogica de Latour e Kuhn eacute pos-sivel problematizar o argumento de IBE visto que a forma simplista na qual o argumeto supotildee a comparaccedilatildeo com hipoacuteteses rivais natildeo exprime
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Criacutetica ao realismo cientiacutefico de um ponto de vista epistemoloacutegico e pragmaacutetico
a complexidade da dinacircmica cientiacutefica na comparaccedilatildeo e na proacutepria pro-duccedilatildeo dessas alternativas
Consideraccedilotildees finais
Com o intuito a reforccedilar como o trabalho de Bruno Latour (2000) pode dialogar com o debate realismoantirrealismo apresentaremos brevemente nessas consideraccedilotildees finais como na perspectiva de Latour surge a concepccedilatildeo realista e antirrealista enquanto posturas intelectais a respeito da ciecircncia
Para Latour os cientistas se comportam tanto como realistas quan-to como antirrealistas e isso pode ser constatado a partir da anaacutelise das duas faces de Jano citadas na seccedilatildeo anterior (2000 p 161) Na ciecircncia em construccedilatildeo os cientistas disputam negociam usam da retoacuterica arre-gimentam aliados tudo como parte da construccedilatildeo dos fatos cientiacuteficos A expressatildeo ldquoconstruccedilatildeo dos fatos cientiacuteficosrdquo recorrente na uacuteltima seccedilatildeo de nosso trabalho supotildee que os fatos cientiacuteficos natildeo estatildeo dados eles precisam ser construiacutedos Isto eacute um fato soacute seraacute um fato se o cientista conseguir transforma-lo em fato Nesse momento da ciecircncia os cientistas precisam fazer uso de todos os recursos mencionados acima recursos que natildeo satildeo comumente associados com a ciecircncia contudo na perspecti-va de Latour eacute justamente a partir da articulaccedilatildeo desses elementos que os fatos se tornam fatos Nesse sentido nesse periacuteodo do desenvolvimento da ciecircncia os cientistas se comportam como relativistas ou antirrealistas fazendo uso de todos os resursos naturais e sociai possiacuteveis para cons-tuir os fatos pressupondo justamente que fatos natildeo satildeo dados mas que podem ser moldados Contudo argumenta Latour quando os fatos estatildeo prontos o comportamento e o discurso dos cientistas se transforma se antes eles concebiam os fatos como construccedilotildees uma vez construiacutedos eles passam a ter autonomia em realaccedilatildeo a todos os recursos que foram necessaacuterios para que eles fossem considerados fatos assim agora desli-gados de suas condiccedilotildees de produccedilatildeo os fatos satildeo interpretados de ma-neira realista Deste modo a postura dos cientistas depende do proacuteprio momento do desenvolvimento da ciecircncia isto eacute eles seratildeo antirrealistas enquanto estiverem construindo esses fatos e realistas quando estes fa-tos estiverem consolidados na comunidade e suas condiccedilotildees de produccedilatildeo forem suprimidas (2000 pp 162-163)
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Os impactos dessas consideraccedilotildees no debate realismoantirrealis-mo seratildeo desenvolvidos por noacutes em trabalhos futuros
Referecircncias
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Criacutetica ao realismo cientiacutefico de um ponto de vista epistemoloacutegico e pragmaacutetico
SILVA Marcos R da E CASTILHO Daiane C Inferecircncias eliminativas e o proble-ma das alternativas natildeo consideradas Filosofia Unisinos 16(3) 241-255 sepdec 2015
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VAN FRAASSEN Bas A imagem cientiacutefica Traduccedilatildeo Luiz Henrique Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo UNESP 2007
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Progresso cientiacutefico e especializaccedilatildeo no pensamento de Kuhn
Elizabeth de Assis Dias(UFPA)
Introduccedilatildeo
Muito embora Kuhn considere a especializaccedilatildeo como fundamental para compreendermos o progresso cientiacutefico ele natildeo dedicou nenhum de seus escritos para tratar desta temaacutetica Em sua principal obra A Estru-tura das revoluccedilotildees cientiacuteficas1 e em seus escritos poacutes-Estrutura encon-tramos alguns paraacutegrafos e observaccedilotildees esparsas sobre o assunto Aleacutem de natildeo tratar de forma sistemaacutetica tal temaacutetica seus pontos de vista natildeo se apresentam de uma perspectiva uacutenica e Kuhn mostra-se muito caute-loso ao expor suas ideias Na Estrutura a pesquisa especializada eacute vista como a mola propulsora do progresso cientiacutefico emergindo da tomada de posse de um paradigma pelo grupo cientiacutefico A partir dos escritos poacutes--Estrutura Kuhn de forma relutante e a contragosto passa a afirmar que o progresso conduz ao surgimento de novas especialidades cientiacuteficas Essa nova maneira de conceber a especializaccedilatildeo do conhecimento ao que parece eacute fruto de sua mudanccedila de posiccedilatildeo acerca do desenvolvimento cientiacutefico pois nos seus uacuteltimos escritos passa a conceber o progresso em termos evolutivos tendo como referecircncia o fenocircmeno da especiaccedilatildeo na evoluccedilatildeo bioloacutegica Assim essa sua relutacircncia e os ldquosentimentos confli-tantesrdquo (KUHN 2000 p 125) que vivencia podem ser atribuiacutedos a incon-gruecircncia dessa nova posiccedilatildeo com sua concepccedilatildeo de progresso revolucio-naacuterio que se caracteriza pela ruptura e consequente substituiccedilatildeo de um paradigma uacutenico por outro ou melhor na substituiccedilatildeo de uma pesquisa especializada unificada em torno de um paradigma por outra O progres-so evolutivo natildeo implica propriamente em ruptura entre duas unidades especializadas como Kuhn expocircs na Estrutura mas em fragmentaccedilatildeo do
1 Passarei daqui por diante a me referir a esta obra apenas como Estrutura
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 164-177 2017
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Progresso cientiacutefico e especializaccedilatildeo no pensamento de Kuhn
conhecimento em diversas especialidades Acrescente-se o fato de que ele tem consciecircncia de que a especializaccedilatildeo natildeo eacute vista com bons olhos pelos filoacutesofos da ciecircncia na medida em que valorizam teorias unificadoras que possibilitam a reuniatildeo em uma mesma unidade os diversos fenocircmenos e por meio dela uma compreensatildeo mais aprofundada destes Assim como Popper por exemplo que vecirc o aumento da especializaccedilatildeo como um gran-de perigo para ciecircncia (POPPER1979 p 66)
O presente trabalho pretende analisar o fenocircmeno da especializa-ccedilatildeo e suas nuances no pensamento de Kuhn de modo a esclarecer como surgem as especialidades e como estas se relacionam com o progresso cientiacutefico Alguns estudiosos da obra do filoacutesofo norte-americano relacio-nam o surgimento de tais especialidades com as mudanccedilas conceituais Mas encontramos nos seus escritos trechos nos quais ele relaciona o sur-gimento dessas especialidades tanto agraves mudanccedilas conceituais (mudanccedilas lexicais) provocadas pelo avanccedilo do conhecimento como agraves reestrutura-ccedilotildees do grupo cientiacutefico No nosso entender a abordagem de Kuhn de tal temaacutetica natildeo eacute apenas epistecircmica fruto de mudanccedilas de leacutexicos mas tem tambeacutem uma dimensatildeo social na medida em que haacute fatores inerentes ao grupo que levam a sua divisatildeo e consequentemente ao aparecimento de uma nova especialidade
O presente trabalho estaacute dividido em duas partes na primeira par-te iremos apresentar como Kuhn trata do fenocircmeno da especializaccedilatildeo do conhecimento no acircmbito da Estrutura e de que forma ele impulsiona o progresso Na segunda parte abordaremos a especializaccedilatildeo nos escritos poacutes-Estrutura procurando esclarecer como o avanccedilo cientiacutefico produz as mudanccedilas conceituais e a consequente divisatildeo do conhecimento em es-pecialidades e tambeacutem como ocorrem as reestruturaccedilotildees no grupo que levam ao surgimento de novas especialidades Muito embora a especiali-zaccedilatildeo seja tratada de forma fragmentada por Kuhn e seus pontos de vista denotem uma certa incongruecircncia pretendemos mostrar a existecircncia de um fio condutor que une as peccedilas do seu quebra-cabeccedila acerca da espe-cializaccedilatildeo Esse fio condutor eacute a ideia de progresso visto de uma perspec-tiva evolucionaacuteria que ele passou a desenvolver em seus poacutes-escritos
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Elizabeth de Assis Dias
I Progresso e especializaccedilatildeo na Estrutura aprofundamento e ampliaccedilatildeo do conhecimento
Na Estrutura encontramos os esboccedilos das primeiras ideias de Kuhn sobre a especializaccedilatildeo do conhecimento quando define a natureza das pesquisas de ciecircncia normal que se desenvolvem a luz de um uacutenico paradigma aceito consensualmente pelo grupo cientiacutefico Tais pesquisas incidem sobre um mesmo domiacutenio de fenocircmenos que podem ser enqua-drados nos limites riacutegidos definidos pelo paradigma Em outras palavras trata-se de uma investigaccedilatildeo que tem seu foco sobre uma parcela da natureza limitada pelo paradigma Essas restriccedilotildees mostram-se funda-mentais para o desenvolvimento cientiacutefico pois o paradigma ao definir os problemas a serem investigados e as soluccedilotildees a serem alcanccediladas e os procedimentos adequados de investigaccedilatildeo forccedila os cientistas a con-centrarem suas pesquisas sobre aspectos da natureza de maneira mais detalhada e profunda Ou seja eles se dedicam ao estudo dos ldquofenocircmenos mais esoteacutericos e sutis que lhes interessamrdquo (KUHN 1975 p 206)
Kuhn resume os problemas estudados pela ciecircncia normal em trecircs classes ldquodeterminaccedilatildeo do fato significativo harmonizaccedilatildeo dos fatos com a teoria e articulaccedilatildeo da teoriardquo (KUHN 1975 p 55) Trata-se de proble-mas que tem um padratildeo de soluccedilatildeo assegurado pelo paradigma e que soacute a falta de habilidade dos cientistas os impedem de solucionaacute-los O paradig-ma ao direcionar e delimitar o acircmbito das pesquisas de ciecircncia normal possibilita ao grupo cientiacutefico o aumento da sua competecircncia e da eficaacutecia na soluccedilatildeo de problemas tornando-se assim um especialista no estudo de um determinado campo de fenocircmenos
Mas aleacutem do paradigma restringir o campo dos fenocircmenos a serem estudados haacute ainda outros fatores que contribuem para a especializaccedilatildeo do grupo cientiacutefico a saber o seu isolamento face agraves exigecircncias de natildeo especialistas e da sociedade O trabalho produzido pelos cientistas nor-mais eacute dirigido a outros membros do grupo que compartilham os mesmos valores e crenccedilas Por isso eles podem pressupor um conjunto especifico de criteacuterios para a soluccedilatildeo dos problemas aos quais se dedicam e poderatildeo resolvecirc-los mais rapidamente do que os que trabalham em grupos hete-rodoxos Por outro lado o isolamento do grupo cientiacutefico face agraves deman-das da sociedade e da vida cotidiana possibilita a concentraccedilatildeo das pes-
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Progresso cientiacutefico e especializaccedilatildeo no pensamento de Kuhn
quisas nos problemas que os cientistas se julgam capazes de solucionar ou seja os que podem ser resolvidos com os instrumentos e as teacutecnicas conceituais asseguradas pelo paradigma O cientista que busca resolver um problema recorrendo aos conhecimentos e teacutecnicas existentes sabe qual eacute seu objetivo e procura selecionar seus instrumentos e nortear seus pensamentos tendo em vista esse alvo Natildeo haacute nesse acircmbito a busca por novidades por novas descobertas jaacute que estas fogem dos propoacutesitos da pesquisa desenvolvida pela ciecircncia normal Dadas essas condiccedilotildees o gru-po cientiacutefico mostra-se extremamente eficaz na soluccedilatildeo dos problemas definidos pelo paradigma Podemos dizer entatildeo que a ciecircncia normal ao explorar todas as possibilidades do paradigma configura-se em uma pesquisa altamente especializada que possibilita o progresso do conheci-mento na medida em que contribui para aumentar o alcance e a precisatildeo do paradigma
Fica claro assim que nas passagens em que Kuhn trata da especia-lizaccedilatildeo na Estrutura esta se torna uma espeacutecie de mola propulsora do progresso A ciecircncia normal enquanto pesquisa especializada de um gru-po cientiacutefico eacute a responsaacutevel por esse progresso na medida em que suas pesquisas incidem sobre uma mesma gama de fenocircmenos tendo por base um mesmo padratildeo para seus estudos Nesse sentido diz Kuhn ldquoA pesquisa normal que eacute cumulativa deve seu sucesso agrave habilidade dos cientistas para selecionar regularmente fenocircmenos que podem ser solucionados atraveacutes de teacutecnicas conceituais e instrumentais semelhantes agraves jaacute existentesrdquo (KUHN 1975 p 130) Trata-se portanto de um progresso em termos de aprofun-damento dos conhecimentos em torno de um mesmo paradigma
Mas Kuhn considera tambeacutem que esse processo linear e cumula-tivo de pesquisa da ciecircncia normal que gera um progresso intraparadig-maacutetica sofre rupturas quando enfrenta problemas graves ndash fenocircmenos anocircmalos ndash que natildeo podem ser enquadrados no mesmo domiacutenio dos fe-nocircmenos que estatildeo sendo estudados agrave luz do paradigma aceito e que para investigaacute-los necessita de uma nova praacutetica de pesquisa incompatiacutevel com a anterior Esses problemas anocircmalos satildeo os grandes responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de uma nova especialidade pois quando o grupo cientiacutefico em seu campo de estudos defronta-se com estes e se mostra inaacutebil para solucionaacute-los com os recursos fornecidos pelo paradigma natildeo tem outra saiacuteda a natildeo ser buscar soluccedilotildees alternativas fora dos paracircmetros estabe-
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lecidos pelo paradigma em questatildeo Desse modo Kuhn admite que haacute um outro tipo de progresso o revolucionaacuterio que se daacute de forma interpara-digmaacutetica marcado por rupturas natildeo-cumulativas no qual uma velha tra-diccedilatildeo paradigmaacutetica eacute substituiacuteda por uma nova Compreende-se entatildeo porque essa nova forma de se praticar a ciecircncia eacute incomensuraacutevel com a anterior O que significa dizer que quando ocorre uma mudanccedila para-digmaacutetica haacute alteraccedilotildees da rede teoacuterico-conceitual por meio da qual os cientistas interpretam os fenocircmenos como tambeacutem mudam os padrotildees de soluccedilatildeo aceitos os problemas a serem estudados os meacutetodos a serem utilizados e a proacutepria natureza das entidades investigadas se altera Kuhn relaciona assim incomensurabilidade com progresso cientiacutefico sendo este entendido agora em termos de ampliaccedilatildeo do conhecimento
A tese da incomensurabilidade tambeacutem traacutes agrave tona a questatildeo da especializaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo do conhecimento pois indica que a ciecircncia perdeu o seu caraacuteter de unidade e de universalidade tatildeo caro a epistemo-logia tradicional Com a revoluccedilatildeo ocorre uma diminuiccedilatildeo no acircmbito dos interesses profissionais do grupo um aumento do seu grau de especia-lizaccedilatildeo bem como um decreacutescimo na comunicaccedilatildeo com outros grupos cientiacuteficos e com leigos (KUHN 1975 p 212) Essa perda da unidade natildeo significa que a ciecircncia estaraacute fadada ao insucesso pois pelo contraacuterio ela poderaacute alcanccedilar ateacute mesmo um maior ecircxito Nesse sentido Kuhn enfatiza repetidas vezes que a substituiccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo de pesquisa por outra em decorrecircncia de uma revoluccedilatildeo tem como resultado o progresso cien-tiacutefico uma vez que apoacutes a ocorrecircncia de uma revoluccedilatildeo cientiacutefica surge uma nova especialidade que ampliaraacute a relaccedilatildeo dos problemas solucio-nados pela ciecircncia bem como a precisatildeo das soluccedilotildees
Podemos dizer que na Estrutura o tema da especializaccedilatildeo e suas imbricaccedilotildees ainda eacute tratado de forma incipiente pois ao que parece Kuhn ainda natildeo tinha percebido todas as implicaccedilotildees do processo de especia-lizaccedilatildeo do conhecimento Eacute somente nos escritos poacutes-Estrutura que o tema da especializaccedilatildeo e de suas relaccedilotildees com o progresso torna-se mais evidente ganhando maior envergadura apesar dos ldquosentimentos confli-tantesrdquo de Kuhn para expor suas ideias Nesses escritos dois pontos de vistas que expressam as relaccedilotildees entre progresso e especializaccedilatildeo satildeo constantemente evidenciados soando ateacute mesmo como um clichecirc o nu-mero limitado de parceiros em um grupo cientiacutefico como preacute-condiccedilatildeo
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para o progresso cientiacutefico e a ideia de que este leva agrave proliferaccedilatildeo de especialidades e sub-especialidades
Mas a forma como Kuhn definiu as revoluccedilotildees na Estrutura soacute lhe possibilita explicar como se daacute o surgimento de uma nova especialidade na medida em que sua anaacutelise tem como foco a mudanccedila de uma estrutu-ra paradigmaacutetica por outra incomensuraacuteveis entre si mas natildeo a prolife-raccedilatildeo de ramos de conhecimentos a partir de uma estrutura Para explicar como o progresso conduz cada vez mais a especializaccedilatildeo e ramificaccedilatildeo do conhecimento Kuhn revisa sua concepccedilatildeo de progresso revolucionaacuterio e reformula alguns de seus passos passando a defender uma concepccedilatildeo mais nuanccedilada tendo como referecircncia o fenocircmeno da especiaccedilatildeo na evo-luccedilatildeo bioloacutegica
II Progresso e especializaccedilatildeo nos escritos poacutes-Estrutura a proliferaccedilatildeo de novas especialidades
e estreitamento do acircmbito de competecircncia
Nos escritos poacutes-Estrutura o tema da especializaccedilatildeo passa a ser tra-tado pelo vieacutes do ldquoestreitamento do acircmbito de competecircnciardquo do grupo cientiacutefico e das divisotildees do conhecimento em novos campos ou sub-es-pecialidades Para esclarecer esse seu novo olhar sobre a especializaccedilatildeo Kuhn desenvolve um paralelo entre a evoluccedilatildeo darwiniana e a evoluccedilatildeo do conhecimento de uma perspectiva sincrocircnica contrariamente a sua abordagem diacrocircnica da Estrutura na qual o desenvolvimento cientiacutefi-co eacute marcado por rupturas ocasionadas por revoluccedilotildees cientiacuteficas en-tre ldquoas crenccedilas cientiacuteficas mais antigas e as mais recentes sobre o mesmo domiacutenio ou domiacutenios comuns de fenocircmenos naturaisrdquo (KUHN 2006 p 123) Essas rupturas separam dois estaacutegios do desenvolvimento de uma ciecircncia que satildeo norteados por dois paradigmas diferentes ou seja duas especialidades distintas que tratam da mesma gama de fenocircmenos inco-mensuraacuteveis entre si Mas entatildeo uma nova questatildeo se impotildee como se daacute a transiccedilatildeo de uma especialidade para outra considerando-se que satildeo praacuteticas incomensuraacuteveis
Kuhn reconhece que ao escrever a Estrutura natildeo tinha muita clareza de como se daria a transiccedilatildeo entre estaacutegios ou melhor entre as especialidades e que somente nos poacutes-escritos encontrou as condiccedilotildees
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necessaacuterias para o esclarecimento do assunto (KUHN 2006 p 279) uma vez que eacute justamente por meio da perspectiva sincrocircnica que seraacute possiacute-vel explicar como se daacute essa transiccedilatildeo entre especialidades e suas rela-ccedilotildees com o progresso cientiacutefico O desenvolvimento cientiacutefico sincrocircnico gera o corte de ldquouma fatia atraveacutes das ciecircncias ao inveacutes de uma fatia dia-crocircnica contendo uma delasrdquo (KUHN 2006 p 123) Dessa forma Kuhn passa a dar uma significaccedilatildeo mais nuanccedilada do que ocorre durante uma revoluccedilatildeo cientiacutefica ao inveacutes de ela provocar uma ruptura total dando origem a uma uacutenica especialidade distinta da anterior ocorre agora que apoacutes uma revoluccedilatildeo ocorre uma divisatildeo do conhecimento que gera mais especialidades ou campos de estudos do que existiam antes Esse proces-so tem por paralelo o episoacutedio da especiaccedilatildeo que ocorre na evoluccedilatildeo dos organismos e natildeo o fenocircmeno da mutaccedilatildeo conforme Kuhn defendeu na Estrutura Eacute assim que os problemas suscitados pela especiaccedilatildeo no que diz respeito agrave dificuldade de se identificar um episoacutedio dessa natureza apoacutes algum tempo de sua ocorrecircncia e a proacutepria impossibilidade de dataacute--los satildeo similares aos apresentados pelo surgimento e individualizaccedilatildeo de especialidades resultante de uma revoluccedilatildeo cientiacutefica Mas apesar de chamar a atenccedilatildeo para essas dificuldades Kuhn reconhece dois tipos de divisatildeo do conhecimento ocasionados por uma revoluccedilatildeo cientiacutefica que produzem o surgimento de novas especialidades O primeiro estaacute relacionado agrave apariccedilatildeo de um novo ramo do conhecimento separado do tronco originaacuterio Tal situaccedilatildeo pode ser ilustrada com o que ocorreu no passado com a Filosofia natural a Matemaacutetica e a Medicina quando as especialidades cientiacuteficas separaram-se desses conhecimentos que lhes deram origem Assim eacute que na Antiguidade a Matemaacutetica incluiacutea tanto a astronomia quanto a oacuteptica a mecacircnica a geografia e a muacutesica Mas no final do seacuteculo XVII observa-se que esses vaacuterios ramos do conheci-mento que faziam parte de um mesmo tronco separaram-se tanto de sua origem quanto uns dos outros Simultaneamente ocorreu o mesmo pro-cesso de divisatildeo e ramificaccedilatildeo de especialidades no acircmbito da Filosofia natural da qual se separaram a quiacutemica e a fiacutesica E por fim reconhece-se que o mesmo tipo de ramificaccedilatildeo ocorreu no acircmbito da medicina dando origem agraves primeiras ciecircncias bioloacutegicas (KUHN 2006 p 146) O segun-do tipo de divisatildeo que provocou o surgimento uma nova especialidade cientiacutefica apresentou-se em uma aacuterea em que aparentemente haacute uma
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Progresso cientiacutefico e especializaccedilatildeo no pensamento de Kuhn
superposiccedilatildeo entre duas especialidades existentes como eacute o caso da fiacute-sico-quiacutemica ou bioquiacutemica que cresceram como campos de pesquisas distintos Este segundo tipo de divisatildeo muitas vezes eacute interpretado como uma reunificaccedilatildeo das ciecircncias Somente com o passar do tempo eacute que se percebeu que o novo ramo do conhecimento nunca eacute assimilado por seus ancestrais tornando-se ao contraacuterio uma especialidade nova que vai pouco a pouco conquistando seu espaccedilo
Esse processo evolutivo que gera a divisatildeo do conhecimento em novos campos de estudos e especialidades cientiacuteficas Kuhn compara com ldquouma aacutervore evolutiva bioloacutegicardquo
O que estou assim sugerindo de maneira bastante concisa eacute que as praacuteticas humanas em geral e as praacuteticas cientiacuteficas em particular evoluiacuteram no decurso de um longo periacuteodo de tempo e seu desen-volvimento forma algo que em linhas bem gerais assemelha-se a uma aacutervore evolutiva (KUHN 2006 p 147)
Esse modelo da aacutervore evolutiva explicaria como o progresso cien-tiacutefico provoca um estreitamento de foco e a divisatildeo dos campos de estu-dos dando lugar ao surgimento cada vez maior de novas especialidades e sub-especialidades Mas natildeo fica claro o que as mantecircm separadas e o que ocasiona esse tipo de evoluccedilatildeo das praacuteticas cientiacuteficas no decorrer da histoacuteria Soacute podemos compreender como o progresso conduz a esse esfa-celamento crescente do conhecimento em disciplinas especializadas e o que as separa como especialidades distintas se analisarmos o que ocorre no acircmbito da unidade que sofre a especiaccedilatildeo
Cada uma das disciplinas especializadas que surge da divisatildeo de um campo de estudo eacute constituiacuteda por um grupo de cientistas que com-partilha um leacutexico natildeo mais um paradigma conforme Kuhn definiu na Estrutura que fornece as ferramentas conceituais para que eles possam conduzir e avaliar suas pesquisas Entre os praticantes das diferentes es-pecialidades haacute divergecircncias lexicais ou taxonocircmicas que muito embora sejam pontuais ou ocorram apenas em determinados aspectos limitam a comunicaccedilatildeo entre eles e impossibilitam a existecircncia de uma liacutengua uni-versal capaz de expressar em sua totalidade o conteuacutedo de todas as es-pecialidades ou mesmo de algum par delas Em outras palavras haacute uma incomensurabilidade local ou linguiacutestica que separa os grupos de espe-
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cialistas entre si Assim a incomensurabilidade assume um novo papel nos escritos poacutes-Estrutura ela natildeo eacute apenas o elemento que impede a tra-duccedilatildeo entre os leacutexicos das diferentes especialidades impondo limitaccedilotildees agrave comunicaccedilatildeo eacute tambeacutem o mecanismo isolador necessaacuterio para que o conhecimento avance e gere novas especialidades
Essas especialidades e sub-especialidades tem por responsabili-dade ldquoaperfeiccediloar incrementalmente a exatidatildeo a consistecircncia a ampli-tude de aplicaccedilatildeo e a simplicidaderdquo dos conhecimentos produzidos em seu acircmbito (KUHN 2006 p 147) Esse conhecimento aperfeiccediloado eacute transmitido aos seus sucessores que por sua vez vatildeo introduzindo no-vas modificaccedilotildees ao cabedal de conhecimentos existentes na medida em que prosseguem com suas pesquisas Mas algumas vezes esse processo entrava devido agraves ferramentas conceituais disponiacuteveis natildeo se mostra-rem eficazes para explicar os fenocircmenos receacutem-descobertos Nessas situaccedilotildees faz-se necessaacuterio o recurso agraves ldquoferramentas cognitivas mais poderosasrdquo (KUHN 2006 p 124) ou seja a uma nova estrutura lexical que lhes possibilite lidar com os novos fenocircmenos Muitas vezes essas dificuldades natildeo afetam o antigo leacutexico como um todo mas apenas um fragmento Entatildeo uma parcela deste eacute mantida por se mostrar eficaz na explicaccedilatildeo de um domiacutenio restrito de fenocircmenos e a outra parte modificada e detalhada e daraacute origem a uma nova praacutetica de pesqui-sa mais aprofundada e especializada do que a anterior Assim surgem duas praacuteticas cientiacuteficas diferentes que se caracterizam por utilizarem ferramentas conceituais distintas
Mas a mudanccedila conceitual natildeo parece ser o uacutenico fator que possi-bilita o surgimento de novas especialidades Haacute fatores sociais que con-tribuem para que essa nova especialidade se estabeleccedila A nova discipli-na precisa ser institucionalizada uma vez que para sobreviver torna-se necessaacuterio que instituiccedilotildees se dediquem ao estudo dos novos problemas que reconheccedilam sua relevacircncia e que deem visibilidade ao que produ-zem Para tal faz-se necessaacuterio assim que a nova disciplina conquiste suas revistas especializadas que iratildeo publicar os resultados das pesquisas acerca dos novos problemas estudados ao mesmo tempo em que sejam criadas sociedades de profissionais dedicadas agraves pesquisas para soluccedilotildees desses problemas e tambeacutem que novas caacutetedras laboratoacuterios e depar-tamentos universitaacuterios sejam criados para dar o apoio e a visibilidade
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necessaacuteria a essas pesquisas Estabelecidas essas condiccedilotildees o novo ramo do conhecimento estaraacute consolidado
Mas haacute tambeacutem outros fatores que somados aos expostos levam a divisatildeo do grupo e ao surgimento de uma nova especialidade como a ruptura com os compromissos assumidos coletivamente Em alguns mo-mentos os cientistas que se aglutinavam em uma mesma comunidade es-pecializada mantendo um contato regular uns com os outros e desenvol-vendo pesquisas sobre problemas comuns comeccedilam a perceber que natildeo haacute mais razatildeo para manterem-se juntos na medida em que alguns deles passam a natildeo comungar mais os mesmos interesses pelos problemas es-tudados pelo grupo com a mesma estrutura conceitual que dispotildeem para solucionaacute-los e com os valores que elegeram como relevantes Essa rup-tura com os compromissos assumidos pode ser percebida tambeacutem na natildeo participaccedilatildeo nos mesmos eventos cientiacuteficos organizados pelo grupo e na natildeo publicaccedilatildeo de seus artigos nas mesmas revistas especializadas A proacutepria comunicaccedilatildeo entre eles torna-se assim cada vez mais difiacutecil Es-sas situaccedilotildees que natildeo satildeo apenas conceituais satildeo tambeacutem responsaacuteveis pelo surgimento de uma nova especialidade ou sub-especilidades que iraacute contemplar os interesses dos cientistas dissidentes
Aleacutem desses fatores sociais inerente ao grupo cientiacutefico Kuhn considera outros que ele denomina de ldquocaracteriacutesticas lsquopoliticasrsquordquo como o poder a autoridade e os interesses que interferem desde cedo nesse processo evolutivo e satildeo compartilhadas pelas diferentes praacuteticas cien-tiacuteficas Apesar de considerar que os cientistas natildeo estatildeo imunes a esses fatores ele natildeo aprofunda essas ideias no acircmbito dos seus poacutes-escritos pois passa a assumir nesses escritos uma posiccedilatildeo mais cautelosa do que a que outrora defendia no final dos anos 60 quando chamou a atenccedilatildeo para os fatores psicossociais inerentes ao grupo cientiacutefico que de certa forma influenciam suas escolhas
A esses fatores assinalados por Kuhn poderiacuteamos acrescentar a competiccedilatildeo a disputa por reconhecimento e por financiamento o aumen-to do nuacutemero de membros do grupo bem como a dificuldade de uma con-vivecircncia amistosa como geradores da divisatildeo do grupo e responsaacuteveis em parte pelo surgimento de uma nova sub-especialidade
O surgimento de uma nova especialidade ao que parece eacute um pro-cesso complexo que envolve uma gama de fatores cognitivos instrumen-
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tais sociais e poliacuteticos Esses fatores natildeo devem ser visto de forma isolada mas sim interligada ao analisarmos como o progresso cientiacutefico conduz a reorganizaccedilatildeo e proliferaccedilatildeo de novas especialidades A questatildeo que se co-loca entatildeo eacute se podemos considerar que as divisotildees do grupo em especia-lidades envolvendo todos esses fatores iratildeo possibilitar o progresso do co-nhecimento Parece-nos que nem sempre podemos dizer que o surgimento de uma nova sub-especialidade iraacute possibilitar o progresso cientiacutefico De-pende muito de como o novo grupo iraacute se estruturar de modo a direcionar seus trabalhos para obter soluccedilotildees mais eficazes para os problemas que pretendem enfrentar Mas essas soluccedilotildees seratildeo sempre parciais na medida em que a fragmentaccedilatildeo leva a perda da unidade do conhecimento dificul-tando assim a mensurabilidade do avanccedilo multifacetado
Consideraccedilotildees finais
A nova concepccedilatildeo de progresso cientiacutefico em termos evolutivos que emerge dos escritos poacutes-Estrutura de Kuhn completa sua abordagem do tema que se apresenta na Estrutura e daacute uma maior consistecircncia agraves suas ideias Assim a histoacuteria de uma ciecircncia consiste de periacuteodos de ciecircn-cia normal nos quais se desenvolve uma pesquisa especializada orienta-da por um paradigma ou por um leacutexico pontuados por revoluccedilotildees que provocam ou a ruptura entre duas especialidades distintas ou episoacutedios de proliferaccedilatildeo de novas especialidades quando um novo ramo do conhe-cimento se desvincula do tronco que lhe deu origem
Haacute assim duas formas distintas sob as quais Kuhn aborda o tema do progresso e o relaciona a especializaccedilatildeo uma que diz respeito agrave pro-fundidade fruto do trabalho especializado de um grupo de cientistas que de posse de um paradigma ou de um leacutexico desenvolve suas pesquisas sobre um acircmbito limitado de problemas conquistando uma maior eficaacute-cia nas soluccedilotildees Nesse sentido o especialista eacute uma espeacutecie de perito em um determinado domiacutenio de fenocircmenos que com suas pesquisas pro-duz acreacutescimos ao cabedal de conhecimentos existentes tendo em vista o progresso do conhecimento A outra em termos de ampliaccedilatildeo do conhe-cimento fruto das revoluccedilotildees cientiacuteficas Nessa perspectiva o progresso gera uma nova especialidade sob um mesmo domiacutenio de fenocircmenos que eacute totalmente incomensuraacutevel com a anterior ou faz surgir novos ramos
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de especialidades e sub-especialidades que se mantem isoladas entre si devido a uma incomensurabilidade de caraacuteter linguiacutestico Aleacutem do leacutexi-co conforme ressaltamos anteriormente haacute vaacuterios outros fatores de natureza instrumental social e politica que contribuem para que ocorra a divisatildeo do conhecimento em especialidades O que se pode perceber na anaacutelise de Kuhn eacute que essas duas formas de conceber a especializaccedilatildeo do conhecimento se completam e estatildeo intimamente relacionadas com o progresso As disciplinas cientiacuteficas isoladas possibilitam o avanccedilo em termos de profundidade do conhecimento e as disciplinas cientiacuteficas como um todo possibilitam o avanccedilo em termos de amplitude na medida em que com a proliferaccedilatildeo de especialidades mais aacutereas do conhecimen-to tornam-se objeto de investigaccedilatildeo em busca de soluccedilotildees precisas e efi-cazes para os problemas
Um outro aspecto digno de nota dessa nova perspectiva acerca do progresso eacute que com a crescente especializaccedilatildeo o conhecimento sobre um determinado domiacutenio de fenocircmenos vai se tornando cada vez mais fragmentado pormenorizado e delimitado Esse seria o preccedilo a pagar para termos ldquoferramentas cognitivasrdquo mais poderosas que aumentem a profundidade e a precisatildeo no estudo dos fenocircmenos Em consequecircncia a ciecircncia perde sua unidade condiccedilatildeo deplorada pela maioria dos filoacute-sofos da ciecircncia mas no entender de Kuhn ldquotal unidade pode ser em principio um objetivo inatingiacutevel e buscaacute-la com obstinaccedilatildeo pode muito bem colocar em risco o crescimento do conhecimentordquo (KUHN 2006 p 125) Assim ao inveacutes de conceber a ciecircncia como um ldquoempreendimento monoliacutetico uacutenico limitado por um meacutetodo uacutenicordquo (KUHN 2006 p 146) como a epistemologia tradicional fez Kuhn entende que a ciecircncia deve ser vista como uma estrutura complexa constituiacuteda de especialidades e sub-especialidades distintas cada qual desenvolvendo pesquisas sobre um domiacutenio de fenocircmenos distintos e disposta a mudar os paracircmetros que dispotildee tendo em vista o aumento da eficaacutecia e precisatildeo na soluccedilatildeo dos problemas O progresso cientiacutefico soacute pode ser medido se analisarmos o conjunto das ciecircncias ou melhor o conjunto das especialidades na me-dida que a partir das anaacutelises de Kuhn acerca da especializaccedilatildeo do co-nhecimento a ciecircncia deve ser vista no plural Podemos dizer assim que as ciecircncias em seu conjunto contribuem muito mais para a ampliaccedilatildeo do conhecimento do que uma uacutenica e enquanto conhecimentos especia-
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lizados representam uma grande autoridade Esse progresso cientiacutefico eacute medido em termos de eficaacutecia na soluccedilatildeo dos problemas e nesse sentido a especializaccedilatildeo do conhecimento tem muito a contribuir para seu avan-ccedilo Como diz Kuhn o numero limitado de parceiros ldquopara um intercurso frutiacuteferordquo parece ser a precondiccedilatildeo essencial para que o conhecimento progrida Mas para que esse progresso se efetive faz-se necessaacuterio que o grupo cientiacutefico seja coeso e trabalhe seguindo os paracircmetros aceitos conjuntamente
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O ldquooportunismordquo e os argumentos contra a padronizaccedilatildeo na ciecircncia
Bruno Camilo de Oliveira(UFERSAUFC)
I - Introduccedilatildeo
O objetivo desse artigo eacute apontar os problemas que norteiam a de-fesa de uma visatildeo padronizada da ciecircncia principalmente se levarmos em consideraccedilatildeo o significado do termo ldquooportunismordquo proposto por Feyera-bend (1975) sustentando apoacutes a exposiccedilatildeo dos problemas uma criacutetica agrave visatildeo de ciecircncia padronizada
A criacutetica seraacute realizada com base no argumento contra o monismo metodoloacutegico argumento identificado por Feyerabend contra o raciona-lismo preponderante de um sistema autoritaacuterio de regras sobre as demais formas de investigaccedilatildeo cientiacutefica A preponderacircncia de teorias e meacutetodos eacute um empecilho ao progresso da ciecircncia tanto no que diz respeito a rea-lizaccedilatildeo da liberdade da individualidade do cientista sob uma perspectiva humanista quanto no que diz respeito ao estiacutemulo agrave criatividade e ao sur-gimento do novo numa perspectiva cientiacutefica
Os argumentos de Feyerabend sugerem o rompimento com a pers-pectiva predominantemente racionalista e a defesa de uma perspectiva anarquista em ciecircncia tendo em vista o significado dos termos ldquoindivi-dualismordquo ldquooportunismordquo e ldquoprogressordquo no seu pensamento Assim apoacutes a exposiccedilatildeo dos argumentos de Feyerabend seraacute pertinente concluir que a ciecircncia padronizada natildeo estimula a inovaccedilatildeo cientiacutefica nem promove a liberdade para que haja afirmaccedilatildeo da individualidade dos estudantes ou cientistas
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 178-192 2017
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O ldquooportunismordquo e os argumentos contra a padronizaccedilatildeo na ciecircncia
II - Os argumentos de Feyerabend o rompimento com a perspectiva predominantemente racionalista e a defesa de
uma perspectiva anarquista em ciecircncia
O problema em torna da padronizaccedilatildeo cientiacutefica torna-se evidente se aceitarmos a tese de Feyerabend (1975) de que o cientista anarquista eacute mais ldquohumanitaacuteriordquo e mais apto a estimular o ldquoprogressordquo do que o cien-tista que sugere padratildeo e ordem na investigaccedilatildeo cientiacutefica Os argumen-tos de Feyerabend sobre o desenvolvimento do conhecimento cientiacutefico defendem uma criacutetica agrave visatildeo de ciecircncia padronizada dizendo quais se-riam os incocircmodos que um procedimento unificado e padronizado de re-gras pode gerar para o desenvolvimento do conhecimento cientiacutefico Para ele o desenvolvimento cientiacutefico se torna mais estimulante quando temos uma atitude pluralista e anarquista sobre as teorias e meacutetodos cientiacuteficos e tal atitude eacute o que permite caracterizar um cientista como ldquooportunistardquo Enumeremos a seguir os argumentos que sustentam essa tese
1 O argumento humanista ou a favor do individualismoEm Feyerabend (1975) encontramos a convicccedilatildeo de que o signifi-
cado da expressatildeo ldquoprogresso do conhecimento cientiacuteficordquo estaacute atrelado a afirmaccedilatildeo da individualidade do cientista (ldquoindividualismordquo) e agrave mudan-ccedila e agrave inovaccedilatildeo (ldquoprogressordquo) Essa eacute a tese principal de sua epistemologia
Para ele o argumento humanista ou a favor da individualidade do cientista estaacute condizente com que a histoacuteria da ciecircncia mostra ou seja que toda vez em que houve mudanccedila inovaccedilatildeo e estiacutemulo a criatividade houve porque algueacutem confrontou alguma metodologia ou teoria conheci-da exatamente por afirmar sua individualidade frente aos padrotildees e nor-mas estabelecidos por determinada tradiccedilatildeo A histoacuteria das revoluccedilotildees cientiacuteficas eacute mais que o resultado final mais que variaccedilotildees exclusivamen-te racionais e loacutegicas mais conflitante mais criativa mais estonteante mais condizente com a complexidade da individualidade humana e com o caraacuteter imprevisiacutevel do conhecimento cientiacutefico do que sugere o modelo fechado e padronizado como por exemplo o experimento como corro-boraccedilatildeo de Newton o positivismo dos membros do Ciacuterculo de Viena o racionalismo criacutetico de Popper e todo procedimento que apresente a loacutegi-ca e a razoabilidade como os uacutenicos ideais da praacutetica cientiacutefica O modelo
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exclusivamente loacutegico e padronizado de ciecircncia natildeo consegue dar conta da complexidade que envolve a histoacuteria da ciecircncia a qual conforme em Hegel ldquocada eacutepoca se encontra em circunstacircncias tatildeo peculiares repre-senta uma situaccedilatildeo tatildeo individual que nela e dela mesma deve e pode pender a decisatildeordquo (1999 p 15)
Se levarmos em consideraccedilatildeo o significado da expressatildeo ldquopluralis-mo teoacutericordquo em ciecircncia veremos que a individualidade do cientista eacute uma parte indispensaacutevel que compotildee o resultado ou o momento total da cria-tividade cientiacutefica A totalidade eacute afirmada a partir da afirmaccedilatildeo das par-tes que a compotildee Quer dizer que ningueacutem constroacutei uma visatildeo cientiacutefica independentemente de suas idiossincrasias e ningueacutem eacute mais ou menos cientista do que outro por ter vivido antes ou depois ou por ter realizado descobertas mais famosas ou natildeo mas que todos os cientistas satildeo igual-mente cientistas se souberam afirmar suas individualidades no processo de criaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Posiccedilotildees diferentes sobre explicaccedilotildees ou meacutetodos satildeo igualmente importantes para a conjectura atual da ciecircncia porque cada postura individual eacute indispensaacutevel para o conflito e para que se tenham as partes que compotildeem a totalidade da histoacuteria do conheci-mento cientiacutefico
Assim a participaccedilatildeo bem-sucedida do cientista na histoacuteria da ciecircncia soacute eacute possiacutevel se houver uma afirmaccedilatildeo desse ldquocaraacuteter do processo histoacutericordquo como argumenta Lenin (1967) ele diz o seguinte
Duas conclusotildees praacuteticas muito importantes decorrem desse [ca-raacuteter do processo histoacuterico] Primeiro que a fim de cumprir sua ta-refa a classe revolucionaacuteria [isto eacute a classe daqueles que desejam mudar quer uma parte da sociedade como a ciecircncia quer a socie-dade como um todo] tem de ser capaz de dominar sem exceccedilatildeo todas as formas ou aspectos da atividade social [tem de ser capaz de entender e aplicar natildeo apenas uma metodologia particular mas qualquer metodologia e qualquer variaccedilatildeo dela que se possa imagi-nar] segundo tem de estar preparada para passar de uma agrave ou-tra da maneira mais raacutepida e mais inesperada [Os colchetes satildeo de Feyerabend] (LENNIN 1967 p 401 In FEYERABEND 2007 p 32)
A histoacuteria da ciecircncia e a histoacuteria da revoluccedilatildeo em particular natildeo se resume a apenas a observaccedilatildeo e conclusotildees extraiacutedas de fatos mas tambeacutem ideias interpretaccedilatildeo de ideias problemas resultantes das in-
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terpretaccedilotildees conflitantes erros idiossincrasias e outros aspectos subje-tivos e individualistas Quanto mais plural divergente ou conflitante for as partes determinantes de um processo revolucionaacuterio como ideolo-gias diferentes meacutetodos diferentes e outros fatores internos diferentes maior seraacute a possibilidade do conflito necessaacuterio para haver mudanccedila e inovaccedilatildeo Eacute preciso tambeacutem haver disponibilidade e liberdade para que as diferentes visotildees e procedimentos possam naturalmente convergir es-timulando ainda mais o conflito e consequentemente a inovaccedilatildeo Essa perspectiva pluralista da individualidade para o favorecimento da mu-danccedila nos processos de revoluccedilatildeo estaacute presente em todas as instituiccedilotildees inclusive na ciecircncia A ciecircncia natildeo conhece fatos nus como se houvesse uma linguagem neutra e universal independente de opiniotildees crenccedilas ou outras particularidades subjetivas e internas mas ldquofatosrdquo que de certo modo satildeo essencialmente sociais ideacionais e idiossincraacuteticos Por isso a histoacuteria da ciecircncia eacute complexa pluralista desordenada cheia de enga-nos e interessante quanto agraves ideias sobre os fatos e a mente daqueles que as inventaram
Em Feyerabend (1981) em torno da chamada tese da ldquoincomen-surabilidaderdquo temos que o cientista natildeo escolhe uma determinada teoria apenas pela sua adequaccedilatildeo empiacuterica mas tambeacutem por uma dependecircncia histoacuterica e cultural a que esse cientista se encontra tambeacutem sua intuiccedilatildeo pessoal suas crenccedilas metafiacutesicas e outras preferecircncias pessoais1
Entretanto essa liberdade [de construccedilatildeo de teorias] cuja experiecircn-cia garante que o teoacuterico estaacute quase sempre restrito por condiccedilotildees de um caraacuteter todo diferente Essas condiccedilotildees adicionais natildeo satildeo nem universalmente vaacutelidas nem objetivas Elas estatildeo conectadas parcialmente com a tradiccedilatildeo na qual o cientista trabalha com as crenccedilas e preconceitos caracteriacutesticos daquela tradiccedilatildeo e estatildeo co-nectados parcialmente com suas proacuteprias idiossincrasias pessoais O aparto formal disponiacutevel e a estrutura da linguagem que ele fala tambeacutem iratildeo influenciar fortemente a atividade do cientista () Outro fator que influencia fortemente a teorizaccedilatildeo satildeo as crenccedilas metafiacutesicas [Traduccedilatildeo nossa Os colchetes satildeo do autor] (FEYERA-BEND 1981 pp 59-60)
1 Algumas boas fontes de pesquisa sobre a tese da ldquoincomensurabilidaderdquo no pensamento de Feyerabend bem como o significado do mesmo termo no pensamento de Kuhn satildeo Suppe 1977 Abrahatildeo 2008 e Hoyningen-Huene 2014
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A epistemologia tal como defende Feyerabend sugere dentre ou-tras coisas a necessidade de uma linguagem empiacuterica compromissada com uma visatildeo de mundo que eacute capaz de criar ou modificar as teorias de acordo com a visatildeo que temos sobre o mundo As teorias cientiacuteficas assim como os meacutetodos representam de certo modo tanto as visotildees indi-viduais sobre o mundo quanto a convenccedilatildeo estabelecida socialmente em comunidades dessas visotildees A tese sugere tambeacutem uma rejeiccedilatildeo agrave chama-da tese da ldquoestabilidaderdquo ou da ldquoinvariacircncia semacircnticardquo sustentada pelos positivistas para os termos cientiacuteficos de que as teorias cientiacuteficas apre-sentam uma linguagem neutra
O cientista que eacute tambeacutem um indiviacuteduo como Lenin Feyerabend Abrahatildeo ou qualquer outro natildeo pode estar preso a um padratildeo repassado pela tradiccedilatildeo com seus pensamentos intimidados por uma ideologia de uma profissatildeo particular de forma a negar sua proacutepria individualidade Em Mill (1859) encontramos a defesa da liberdade e do pluralismo de opiniotildees na atitude do homem em afirmar a si e ao mundo Ele diz que a ciecircncia deve estar conciliada com uma atitude ldquohumanistardquo para natildeo estar em conflito com a individualidade a uacutenica coisa ldquoque produz ou pode pro-duzir seres humanos bem desenvolvidosrdquo [Traduccedilatildeo nossa] (MILL 1859 p 59) Ainda conforme Mill
Caso uma opiniatildeo constituiacutesse um bem pessoal sem qualquer valor exceto para quem a tem e se ser impedido de usufruir desse bem constituiacutesse apenas um dano privado faria alguma diferenccedila se o dano estava a ser infligido apenas sobre algumas pessoas ou sobre muitas Mas o mal particular em silenciar a expressatildeo de uma opi-niatildeo eacute o de que constitui um roubo agrave humanidade agrave posteridade bem como agrave geraccedilatildeo atual agravequeles que discordam da opiniatildeo mais ainda do que agravequeles que a sustentam Se a opiniatildeo estiver certa fica-ratildeo privados da oportunidade de trocar erro por verdade se estiver errada perdem uma impressatildeo mais clara e viva da verdade produ-zida pela sua confrontaccedilatildeo com o erro ndash o que constitui um benefiacutecio quase igualmente grande [Traduccedilatildeo nossa] (MILL 1859 pp 18-19)
Esse trecho sugere um modelo de pluralismo ligado a uma atitude ldquohumanistardquo o fato de que a epistemologia deve ser desenvolvida dentro de um quadro geral do ser humano
Portanto devemos concluir que um sistema aberto e sem puniccedilatildeo
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que permanece livre pela tradiccedilatildeo tende a fazer que certa pessoa tenha um perfil pessoal marcadamente diferente dos ideais de racionalidade que es-tejam em voga na ciecircncia Somente com o favorecimento da liberdade a vida do indiviacuteduo na sociedade pode ser afirmadora de si e plena Assim tambeacutem eacute a tentativa correspondente de conhecer a natureza a qual re-quer a rejeiccedilatildeo de todos os padrotildees e tradiccedilotildees riacutegidas para que ciecircncia possa se desenvolver de forma afirmadora e humana
2 O argumento a favor da histoacuteria e do ldquooportunismordquoDizemos que um cientista eacute um ldquooportunistardquo natildeo no sentido pejo-
rativo da expressatildeo como se algueacutem estivesse sempre apto a se dar bem em cima de todos a qualquer custo num sentido imoral O cientista eacute um ldquooportunistardquo quando eacute capaz de realizar descobertas e ao mesmo tempo afirmar a sua conjuntura histoacuterico-cultural Existem diversos exemplos de cientistas conscientes do ldquocaraacuteter do processo histoacutericordquo (cf HEGEL 1999) o que eacute bem promissor Um processo complexo como a histoacuteria da ciecircncia sugere uma postura complexa e desafiante em relaccedilatildeo as re-gras que tenham sido instituiacutedas como padratildeo as quais natildeo levam em consideraccedilatildeo o ldquocaraacuteter do processo histoacutericordquo em ciecircncia Essa postu-ra eacute o que Feyerabend chama de ldquooportunismordquo em ciecircncia Ele diz um processo dessa espeacutecie soacute eacute possiacutevel para um oportunista impiedoso que natildeo esteja ligado a nenhuma filosofia especiacutefica e adote o procedimento seja laacute qual for que pareccedila mais adequado para a ocasiatildeo (FEYERABEND 2007 p 32)
Esse argumento pode ser muito bem sustentado a partir da anaacute-lise de exemplos da histoacuteria do conhecimento ocidental em que podemos dizer que houve criatividade e inovaccedilatildeo cientiacutefica graccedilas a uma postura ldquooportunistardquo O desenvolvimento da perspectiva copernicana especifica-mente no periacuteodo de Galileu no seacutec XVII eacute um exemplo perfeito de um oportunismo bem-sucedido nesse sentido O que temos nesse periacuteodo eacute uma firme convicccedilatildeo contraacuteria agrave razatildeo e ao procedimento cientiacutefico da eacutepoca de que a Terra natildeo estaacute em repouso e outras convicccedilotildees igualmen-te desarrazoadas (lei da ineacutercia utilizaccedilatildeo do meacutetodo matemaacutetico a lu-neta etc) pelo modelo padratildeo da comunidade cientiacutefica reforccedilado pela Igreja catoacutelica e por alguns aristoteacutelicos (cf KOYREgrave 1957) A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute com Galileu creditada de maneira diferente novos tipos de
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instrumentos satildeo criados a ldquoevidecircnciardquo passa a ser relacionada agrave teoria em novas maneiras ateacute que se torna viaacutevel o surgimento de uma nova ideologia suficientemente rica ao ponto de fornecer argumentos inde-pendentes em defesa de suas partes especiacuteficas mas mutaacutevel o suficiente para encontrar novos argumentos sempre que necessaacuterio
A perspectiva predominante da eacutepoca sabemos condenava a visatildeo heliocecircntrica o uso da matemaacutetica e o uso da luneta que dentre outras razotildees acreditava-se se tratar de um instrumento do diabo Podemos di-zer hoje que Galileu foi um ldquooportunistardquo pois foi exatamente sua atitude persistente de algo que em certo momento histoacuterico apresentou-se como uma cosmologia ridiacutecula veio nesse caso a criar as condiccedilotildees necessaacuterias para defendecirc-la contra todos aqueles que soacute aceitam e confiam em um ponto de vista somente se for expresso de certa maneira conforme os padrotildees A postura de Galileu eacute o caso normal e natildeo o estranho porque houve afirmaccedilatildeo do momento histoacuterico e da individualidade isto eacute Gali-leu soube aproveitar todas as ferramentas teoacutericas e metoacutedicas que o seu momento histoacuterico dispunha mesmo aquelas que tenham sido conside-radas pela tradiccedilatildeo como ldquoproibidasrdquo Ele permitiu assim uma atitude afirmadora de sua individualidade As teorias puderam se tornar claras e ldquorazoaacuteveisrdquo apenas depois que partes incoerentes delas tenham sido usa-das por longo tempo Esse aspecto desarrazoado insensato e contraacuterio ao procedimento padratildeo da investigaccedilatildeo cientiacutefica revela-se assim ser um preacute-requisito de clareza e ecircxito empiacuterico
Cada momento da histoacuteria possui a disponibilidade do uso de de-terminados procedimentos que estejam disponiacuteveis de acordo com a tec-nologia e possibilidades vigente Poreacutem eacute inevitaacutevel a natildeo influecircncia dos interesses econocircmicos ou outras formas de autoridade na comunidade cientiacutefica Galileu esse grande ldquooportunistardquo usufruiu mesmo arriscando sua vida dos vaacuterios meacutetodos e teorias que a sua conjuntura histoacuterica lhe possibilitava Do contraacuterio seria como se fosse permitido a algueacutem ao construir uma casa utilizar a paacute a serra a trena e algumas teorias da fiacute-sica mas fosse proibido utilizar o martelo a escada e algumas teorias da matemaacutetica por serem ferramentas ou crenccedilas proibidas e condenadas pelas tradiccedilotildees e padrotildees da construccedilatildeo civil Galileu foi um ldquooportunistardquo porque afirmou sua individualidade sua convicccedilatildeo livre para aproveitar todas os meacutetodos e crenccedilas que a sua situaccedilatildeo histoacuterica lhe dispunha na-
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quele momento Graccedilas a essa postura oportunista de Galileu que o con-flito pocircde ser promovido sem haver a negaccedilatildeo da individualidade e da histoacuteria e consequentemente o desenvolvimento da fiacutesica e da astrono-mia no seacutec XVII
Portanto assim como no caso de Galileu a participaccedilatildeo bem-sucedi-da por parte dos cientistas na histoacuteria do conhecimento soacute seraacute possiacutevel se o cientista for um ldquooportunistardquo Em Feyerabend (1978) o termo ldquooportunis-tardquo serve exatamente para representar tal postura do cientista que afirma o seu momento histoacuterico e sua individualidade na medida em que natildeo rejeita essa ou aquela regra por simples aceitaccedilatildeo a um padratildeo estabelecido pela co-munidade padratildeo que combate todas as formas de regras que natildeo estejam condizentes com o modelo amplamente aceito e ainda corrompe a dignida-de pessoal O ldquooportunistardquo aproveita sua capacidade em ser autocircnomo e livre na utilizaccedilatildeo de qualquer regra que quiser e que lhe for acessiacutevel Essa mesma funccedilatildeo atribuiacuteda a uma forma de anarquismo pode ser encontrada em Lenin (1983) quando ele apresenta a definiccedilatildeo de anarquismo proposta por Marx e Engels como ldquoa forma revolucionaacuteria e passageira do Estado necessaacuteria ao proletariadordquo (LENNIN 1983 p 75) Um argumento parecido pode ser encontrado em Einstein (1951) ele diz o seguinte
As condiccedilotildees externas que satildeo colocadas para [o cientista] pelos fatos da experiecircncia natildeo lhe permitem deixar-se restringir em de-masia na construccedilatildeo de seu mundo conceitual pelo apego a um sistema epistemoloacutegico Portanto ele deve afigurar-se ao episte-moacutelogo sistemaacutetico como um tipo de oportunista inescrupuloso [os colchetes satildeo de Feyerabend] (EINSTEIN 1951 pp 683-84 In FEYERABEND 2007 p 33)
A histoacuteria da ciecircncia se casa com uma histoacuteria do surgimento de ferramentas teoacutericas e praacuteticas cabe a um ldquooportunista inescrupulosordquo aproveitar tais ferramentas afirmar sua individualidade e usufruir dos frutos da histoacuteria
3 O argumento anarquista a favor do ldquoprogressordquoPoliacutetica e metodologia satildeo ambos meios de passar de um estaacutegio
histoacuterico a outro Assim os processos revolucionaacuterios da poliacutetica apre-sentam a mesma liccedilatildeo para a ciecircncia nesse sentido Por isso que na aber-
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tura de Against method Feyerabend diz o seguinte ldquoo anarquismo ain-da que talvez natildeo seja a mais atraente filosofia poliacutetica eacute com certeza um excelente remeacutedio para a epistemologia e para a filosofia da ciecircnciardquo (FEYERABEND 2007 p 31)
A expressatildeo ldquoanarquistas profissionaisrdquo (FEYERABEND 2007 p 35 e seguintes) aparece diversas vezes para se referir aos cientistas que se opotildeem a qualquer tipo de restriccedilatildeo em que o indiviacuteduo natildeo possa se desenvolver livremente quando se estaacute preso a leis deveres ou obriga-ccedilotildees que a comunidade cientiacutefica lhes impotildee O exame de episoacutedios his-toacutericos como o caso do atomismo moderno e da revoluccedilatildeo copernicana assim como a anaacutelise abstrata entre ideia e praacutetica cientiacutefica demonstra que o uacutenico princiacutepio que natildeo inibe o ldquoprogressordquo eacute o princiacutepio de ldquotudo--valerdquo em que comporta o ldquopluralismo teoacutericordquo de Boltzmann Um meacutetodo que permanece com princiacutepios firmes com regras inalteraacuteveis e indis-pensaacuteveis para que se tenha uma atividade considerada genuinamente cientiacutefica depara-se com uma grande dificuldade em modificar-se ou ser substituiacutedo assim como um meacutetodo sem bases firmes sem uma quanti-dade miacutenima de conservadorismo natildeo seria capaz de construir nenhum conhecimento Eacute preciso ter certo equiliacutebrio entre o conservadorismo e a criticidade e eacute isso que o ldquopluralismo teoacutericordquo comporta Pois com uma anaacutelise de casos histoacutericos percebe-se que natildeo existe uma uacutenica regra ainda que consolidada de maneira convincente pela epistemologia que natildeo tenha sofrido conflito com outras ou violada em algum momento Eacute nesse sentido que o anarquismo eacute um santo remeacutedio para a epistemologia
Os confrontos na ciecircncia natildeo satildeo eventos acidentais ou infortuacutenios como se fossem o resultado de um conhecimento insuficiente ou de lapso que poderia ser evitado mas um evento necessaacuterio para o ldquoprogressordquo (entendido por Feyerabend como mudanccedila e inovaccedilatildeo) Validamente as revoluccedilotildees da ciecircncia ocorrem porque alguns ldquooportunistasrdquo natildeo se con-formam com certas regras oacutebvias que estejam em voga na ciecircncia ou por-que as violaram inadvertidamente Portanto o anarquismo tem tudo a ver com a ciecircncia e bem que poderia ser mais considerado pela mesma
Incidentalmente cabe assinalar que o uso frequente de palavras como ldquoprogressordquo ldquoavanccedilordquo ldquoaperfeiccediloamentordquo etc natildeo significa que eu afirme estar de posse de conhecimento especial acerca do que seja bom ou do que seja ruim nas ciecircncias nem que queira
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impor esse conhecimento a meus leitores Cada um pode interpre-tar os termos agrave sua proacutepria maneira e de acordo com a tradiccedilatildeo a que pertenccedila Assim para um empirista ldquoprogressordquo significaraacute a transiccedilatildeo a uma teoria que permite testes empiacutericos diretos da maioria de seus pressupostos baacutesicos Algumas pessoas acreditam que a Teoria quacircntica seja uma teoria dessa espeacutecie Para outros ldquoprogressordquo pode significar unificaccedilatildeo e harmonia talvez mesmo agrave custa da adequaccedilatildeo empiacuterica Eacute assim que Einstein encarava a Teoria geral da relatividade E minha tese eacute a de que o anarquismo contribui para que se obtenha progresso em qualquer dos sentidos que se escolha atribuir ao termo Mesmo uma ciecircncia pautada por lei e ordem soacute teraacute ecircxito se se permitir que ocasionalmente te-nham lugar procedimentos anaacuterquicos [as aspas e o itaacutelico satildeo do autor] (FEYERABEND 2007 p 42)
Liberdade eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para o ldquoanarquista profissio-nalrdquo Sua atitude livre eacute fundamentalmente afirmadora da ldquoindividualida-derdquo (ou da vida) da histoacuteria e do ldquoprogressordquo A liberdade natildeo eacute apenas um elemento importante para o desenvolvimento da ciecircncia mas tam-beacutem para o desenvolvimento da sociedade como um todo que a partir do confronto de ideias divergentes eacute capaz de promover discussotildees e conse-quentemente estimular a mudanccedila e a inovaccedilatildeo Uma sociedade que natildeo permite haver liberdade para o confronto com o que eacute estabelecido como padratildeo correto ou intocaacutevel permanece firme em suas ideologias leis e tradiccedilotildees o que a faz uma sociedade estagnada sem conflito e reproduto-ra do que jaacute existe Essa eacute uma perspectiva que encontramos desde Platatildeo passando por Nietzsche Mill e tantos outros pensadores que trabalham a questatildeo da liberdade como um preacute-requisito de criacutetica e afirmaccedilatildeo de si O mesmo raciociacutenio pode ser considerado necessaacuterio se quisermos o de-senvolvimento progressivo do conhecimento cientiacutefico isto eacute mesmo que uma determinada regra pareccedila ser ldquofundamentalrdquo ou ldquoracionalrdquo sempre haveraacute circunstancias em que seraacute necessaacuterio ignoraacute-la ou adotar uma regra oposta como por exemplo circunstacircncias em que eacute recomendado colocar construir e defender hipoacuteteses ad hoc ou hipoacuteteses que natildeo es-tatildeo de acordo com as observaccedilotildees presente ou hipoacuteteses contraacuterias ao resultado de experimentos em geral bem aceito ou hipoacuteteses inconsis-tentes etc Cientistas que compreendem o ldquocaraacuteter do processo histoacutericordquo (cf HEGEL 1999) do desenvolvimento do conhecimento cientiacutefico natildeo
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desenham um quadro fechado mas percorrem minuciosamente todas as fases do desenvolvimento de um problema partindo de um paradoxo ateacute chegar gradualmente a sua elucidaccedilatildeo Eles consideram um resultado ob-tido como um ponto de partida para novas pesquisas natildeo admitem uma explicaccedilatildeo ou procedimento antes de protestar todos os padrotildees rigoro-sos que a ciecircncia e a loacutegica impotildeem agrave pesquisa e qualquer outra atividade capaz de modificar o conhecimento Para eles a ciecircncia natildeo eacute um proces-so concluiacutedo mas um processo que estaacute sempre se renovando e conse-quentemente simplicidade elegacircncia ou consistecircncia natildeo satildeo condiccedilotildees necessaacuterias da investigaccedilatildeo e da praacutetica cientiacutefica
Uma criacutetica a essa perspectiva de uma ciecircncia aberta e complexa eacute a de que uma ldquocontradiccedilatildeordquo acarreta tudo inclusive uma forma de ldquorela-tivismordquo e nesse caso o anarquismo natildeo seria uma boa alternativa para a ciecircncia (cf TONET 1995) Mas se as pessoas utilizarem apenas as contradi-ccedilotildees cientiacuteficas isto eacute se aceitarem algumas regras de derivaccedilatildeo cientiacutefica veratildeo que as contradiccedilotildees natildeo acarretam tudo Muitos cientistas acabam propondo teorias contendo falhas loacutegicas e no entanto acabam obtendo resultados interessantes exatamente por isso ndash por exemplo as prediccedilotildees da Teoria atocircmica mais antiga e as formas de Teoria atocircmica moderna e contemporacircnea a Teoria quacircntica e as primeiras formas de Teoria quacircntica da radiaccedilatildeo e outros casos ndash evidentemente se desenvolveram de acordo com regras distintas que foram propositalmente criadas para possibilitar a proacutepria reconstruccedilatildeo das mesmas Em tais casos a criacutetica sempre retorna aos autores que consequentemente passam a obter melhores resultados Ateacute mesmo versotildees consideradas logicamente perfeitas ndash se eacute que realmen-te existem ndash em geral surgem apenas depois de as versotildees imperfeitas te-rem enriquecido a discussatildeo com suas contribuiccedilotildees
Ademais o que caracteriza uma metodologia anarquista e uma ciecircncia anarquista correspondente eacute a reduccedilatildeo de leis e ordens o que natildeo quer dizer que esse tipo de anarquismo vaacute levar ao caos Natildeo se trata de uma metodologia sem demarcaccedilatildeo como se natildeo existissem regras ou leis que caracterizassem o que eacute metodologia e o que natildeo eacute como se qualquer atitude pudesse ser considerada um meacutetodo Trata-se de uma metodolo-gia que combate a preponderacircncia e a autoridade de alguns meacutetodos so-bre outros a epistemologia anarquista natildeo eacute um ldquotudo-valerdquo desenfreado mas um ldquotudo-valerdquo de meacutetodos e teorias A induccedilatildeo a deduccedilatildeo a mate-
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maacutetica o experimento o positivismo o racionalismo a metafiacutesica e qual-quer outra forma de epistemologia obviamente se distinguem pelos seus modos e objetos mas natildeo significa dizer que uma eacute mais especial ou su-pervalorizada do que a outra Eacute preciso haver o equiliacutebrio proposto pelo ldquopluralismo teoacutericordquo para que uma tradiccedilatildeo natildeo se perca em estagnaccedilatildeo e em profunda desordem Mesmo em situaccedilotildees indeterminadas e ambiacute-guas como satildeo os momentos de crise que abalam as estruturas da ciecircncia ou da sociedade logo se alcanccedila uma uniformidade de accedilatildeo e adere-se a uma estagnaccedilatildeo por um momento (cf KUHN 1962)
Por todos esses motivos Feyerabend considera que ldquoa ciecircncia eacute um empreendimento essencialmente anaacuterquico o anarquismo teoacuterico eacute mais humanitaacuterio e mais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordemrdquo (2007 p 31) Mais humanitaacuterio porque per-mite ao indiviacuteduo liberdade para afirmar sua proacutepria individualidade na praacutetica cientiacutefica Mais apto a estimular o ldquoprogressordquo porque o indiviacuteduo eacute livre para ser um ldquooportunistardquo e assim estimular a mudanccedila Por natildeo estar apegado a nenhum sistema de regras e puniccedilatildeo o ldquoanarquista pro-fissionalrdquo eacute parte integrante do processo de criaccedilatildeo dos padrotildees que por ventura estejam em moda na ciecircncia assim como em alguns casos as leis do meacutetodo cientiacutefico satildeo ateacute mesmo integradas ao proacuteprio anarquismo
Dessa forma o rompimento de filoacutesofos como Feyerabend com o racionalismo cientiacutefico (principalmente o racionalismo de Carnap Laka-tos e Popper) natildeo significa que sejam adeptos de um natildeo-racionalismo Representa apenas a atitude do cientista ldquoanarquistardquo que natildeo estaacute preso ou apegado agraves ldquoleis da razatildeordquo ou da praacutetica cientiacutefica
Kuhn (1962) como Feyerabend e outros apresentam a visatildeo de que a ciecircncia progride por uma substituiccedilatildeo portanto natildeo cumulativa das teo-rias que porventura estejam em voga na ciecircncia Segundo eles eacute uma ideia errocircnea a ideia de acumulaccedilatildeo do conhecimento que deixa subentendido que as velhas teorias natildeo satildeo abandonadas mas apenas aperfeiccediloadas de modo que elas continuam a ter certa credibilidade embora bem melhor delimitada e mais restrita Segundo a tradiccedilatildeo positivista as ciecircncias empiacute-ricas se desenvolvem linearmente haacute uma acumulaccedilatildeo de conhecimento agrave medida que a ciecircncia evoluciona Kuhn diz as ldquorevoluccedilotildees cientiacuteficas satildeo [] episoacutedios natildeo cumulativos de desenvolvimento em que um paradigma se vecirc substituiacutedo completa ou parcialmente por paradigma novo incompatiacute-
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vel com o anteriorrdquo (KUHN 1998 p 125) Kuhn assim como Feyerabend apresentam uma ideia bastante problemaacutetica para a visatildeo de ldquoprogressordquo que defende uma ciecircncia cumulativista
Se a ciecircncia natildeo apresenta uma linguagem neutra se ela natildeo eacute ldquocumu-lativistardquo e se o ldquoprogressordquo estaacute atrelado a ideia de afirmaccedilatildeo da indivi-dualidade criatividade e inovaccedilatildeo entatildeo significa que ldquoos cientistas natildeo satildeo melhores que ningueacutem nesses assuntos eles apenas conhecem mais detalhesrdquo (FEYERABEND 2007 p 21) Em outras palavras quer dizer que o senso comum pode participar das discussotildees cientiacuteficas sem perturbar os ditos ldquocaminhos mais coerentes do sucessordquo porque natildeo existem tais caminhos Assim o discurso de Lenin (1983) eacute sugestivo para querermos uma ciecircncia anarquista natildeo porque pressupotildee um modelo que a ciecircncia deva seguir para que desta maneira haja efetivamente uma atividade ge-nuinamente cientiacutefica mas porque esses discursos incentivam a mente do cientista e a praacutetica cientiacutefica a ser aacutegil criadora e livre capaz de inventar e inovar modos de pesquisa cientiacutefica Eacute nesse sentido que Mach (1980) diz que natildeo se pode ensinar a pesquisa mas que cada regra deve ser tomada no miacutenimo como sugestiva na investigaccedilatildeo de novas regras 2
Diz-se com frequecircncia que natildeo se pode ensinar a pesquisa Isso eacute inteiramente correto em certo sentido Os esquemas da loacutegica formal e da loacutegica indutiva pouco adiantam pois as situaccedilotildees in-telectuais nunca satildeo exatamente as mesmas Mas os exemplos de grandes cientistas satildeo muito sugestivos (MACH 1980 p 200 In FEYERABEND 2007 p 32)
Podemos concluir portanto que a ideia amplamente aceita de um meacutetodo fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade natildeo pode estar condi-zente com a verdadeira imagem do desenvolvimento cientiacutefico Um exa-me da histoacuteria nos convence de que haacute apenas um princiacutepio que pode ser defendido em todas as circunstacircncias e em todos os estaacutegios do desenvolvi-mento do conhecimento cientiacutefico isto eacute o princiacutepio pluralista e anarquista de que ldquotudo-valerdquo no que diz respeito aos meacutetodos e teorias cientiacuteficas
2 Para mais informaccedilotildees sobre a filosofia de Mach ver Feyerabend (1987)
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III - Conclusatildeo
Portanto de tudo o que vimos sobre o pensamento de Feyerabend podemos concluir que natildeo existem elementos exclusivos da investigaccedilatildeo da praacutetica e dos resultados cientiacuteficos de modo a sugerir um padratildeo de ciecircncia O argumento principal eacute que uma ciecircncia entendida a maneira padronizada natildeo pode estimular agrave inovaccedilatildeo cientiacutefica e a afirmaccedilatildeo da in-dividualidade do cientista porque as teorias que pressupotildeem um padratildeo ou ordem natildeo admitem em grande maioria a quebra de seus princiacutepios e portanto natildeo estimulam a inovaccedilatildeo
Ademais eacute evidentemente possiacutevel simplificar o meio que um cien-tista trabalha pela simplificaccedilatildeo de seus atores principais Isso quer dizer que quando natildeo haacute liberdade para que o cientista seja um ldquooportunistardquo a sua individualidade eacute negada em prol de uma ideologia instituiacuteda o que resulta na negaccedilatildeo da individualidade e na falta de estiacutemulo agrave mudanccedila de explicaccedilotildees e meacutetodos jaacute existentes e aceitos como uacutenicos e mais cor-retos Por isso que uma ciecircncia padronizada tal como propagada pelas instituiccedilotildees de ensino iraacute produzir cientistas apegados a um modelo pa-dratildeo o que resultaraacute na simplificaccedilatildeo do ldquocaraacuteter do processo histoacutericordquo (cf HEGEL 1999) e da proacutepria ciecircncia
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Desfamiliarizaccedilatildeo e filosofia da ciecircncia a luz enquanto objeto cotidiano cientiacutefico e ficcional
Caroline Elisa Murr(UFPR)
Introduccedilatildeo
A desfamiliarizaccedilatildeo jaacute eacute conceito consagrado nas anaacutelises literaacuterias e tambeacutem em reflexotildees sobre alguns movimentos artiacutesticos O tema eacute tra-tado pelo menos desde o iniacutecio do seacuteculo XX e continua sendo revisitado ateacute mais recentemente como mostram os trabalhos de Shklovsky Art as device de 1917 e Banes ldquoGulliverrsquos Hamburguer Defamiliarization and the Ordinary in the 1960s Avant-Garderdquo de 2003 A discussatildeo no entan-to parece natildeo ter sido explorada na filosofia da ciecircncia A proposta deste artigo eacute refletir sobre a aplicabilidade do conceito neste ramo da filosofia sugerindo explicar o uso de objetos cotidianos como a luz por exemplo na ciecircncia atraveacutes da desfamiliarizaccedilatildeo em algum sentido
Nas artes a desfamiliarizaccedilatildeo eacute vista como uma maneira de trans-formar objetos agrave percepccedilatildeo do sujeito que interage com eles seja atraveacutes de leitura ou outras formas de apreciaccedilatildeo artiacutestica O uso de certos ter-mos no discurso literaacuterio e o deslocamento de certos objetos ou situaccedilotildees para o palco na danccedila ou no teatro por exemplo podem operar mudan-ccedilas nos objetos e nas suas relaccedilotildees com os sujeitos Pode-se dizer que essas entidades passam entatildeo por uma transformaccedilatildeo ontoloacutegica isto eacute tornam-se ainda que momentaneamente outras cumprindo outra fun-ccedilatildeo No caso da literatura e das artes em geral essa funccedilatildeo pode ser por exemplo a de motivar certas emoccedilotildees as quais natildeo eram despertas pela natureza familiar do objeto Pretendemos neste artigo investigar uma possiacutevel desfamiliarizaccedilatildeo de objetos cotidianos em cientiacuteficos a qual operaria uma transformaccedilatildeo cujo objetivo eacute incluir tais objetos no acircmbito cientiacutefico e utilizaacute-los em experimentos e anaacutelises proacuteprias das ciecircncias Os mesmos objetos podem tambeacutem tomar um papel na literatura Nossa
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 193-206 2017
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anaacutelise teraacute como foco particular o caso da luz no cotidiano na ciecircncia e na ficccedilatildeo cientiacutefica explorando principalmente o livro de H G Wells ldquoThe Invisible Manrdquo de 1897
Desfamiliarizaccedilatildeo
Tanto artistas quanto apreciadores de arte podem testemunhar que quando um ser humano estaacute no palco ele eacute diferente Sente-se e eacute visto de forma diferente causa e tem sensaccedilotildees diferentes O mesmo ocorre com objetos quando retirados de uma condiccedilatildeo cotidiana e le-vados ao status de obras de arte Eacute comum nesses casos encontrarmos exemplos de objetos pessoas ou comportamentos comuns sendo levados ao foco de atenccedilatildeo do artista ou do apreciador Tais elementos passam a provocar reaccedilotildees que antes quando se tinha familiaridade com eles natildeo provocavam Essa eacute a ideia central do conceito de desfamiliarizaccedilatildeo tornar estranho o que eacute familiar provocando a atenccedilatildeo na sua direccedilatildeo (cf BANES 2003 pp 3-5 e ELGIN 2011 p 403) Segundo Schroumldinger o comportamento que eacute automatizado e o objeto com que temos profunda familiaridade natildeo nos despertam mais a consciecircncia sugerimos em Murr 2014 que ideia semelhante aparece em Russell (MURR 2014 pp 164 e 174 SCHROumlDINGER [1956] pp 98-9 e RUSSELL [1921] p 214) Somen-te o que eacute novo participa da vida consciente em uma interpretaccedilatildeo desses dois autores Pode-se dizer entatildeo que a desfamiliarizaccedilatildeo traz de volta agrave consciecircncia elementos que jaacute haviam sido lanccedilados ao inconsciente em certo sentido No entanto eles natildeo satildeo mais vistos da mesma forma natildeo tendo mais a mesma caracterizaccedilatildeo nem categorizaccedilatildeo Em certos casos esses elementos passam a ter o status de obras de arte despertando ex-pectativas relacionadas agrave apreciaccedilatildeo e agrave relaccedilatildeo dos sujeitos com objetos no contexto artiacutestico
Catherine Elgin discute o conceito de desfamiliarizaccedilatildeo em um de seus artigos citando e discutindo o texto de Banes 2003 o qual aborda a desfamiliarizaccedilatildeo na vanguarda da danccedila dos anos 1960 A desfamilia-rizaccedilatildeo ajuda a explicar a valorizaccedilatildeo da arte por parte do ser humano segundo Elgin pois caso contraacuterio tantas pessoas natildeo pagariam ou natildeo gastariam tempo indo assistir aos espetaacuteculos mais variados (ver ELGIN 2011) Natildeo fosse pelo teor de novidade trazido pela mudanccedila de contexto
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Desfamiliarizaccedilatildeo e filosofia da ciecircncia a luz enquanto objeto cotidiano cientiacutefico e ficcional
talvez a arte natildeo fosse tatildeo atraente De fato em um espetaacuteculo de dan-ccedila por exemplo um sujeito cotidiano torna-se um bailarino o que gera expectativas diferentes com relaccedilatildeo a ele e emoccedilotildees diversas despertas pelas suas performances De forma semelhante comportamentos como um abraccedilo vistos em uma peccedila de teatro encontram-se em foco e tecircm ou-tro estatuto para quem os vecirc Pensando dessa forma pode-se dizer que a desfamiliarizaccedilatildeo sempre teria existido em certa medida nas artes Mas certas tendecircncias artiacutesticas acentuam mais essa caracteriacutestica colocando em foco como obras de arte objetos perfeitamente cotidianos como uma lata de sopa (eacute o caso da Sopa Campbell de Andy Warhol) Essa tendecircncia filosoficamente ligada ao ldquomaravilhamentordquo grego leva o puacuteblico de arte a refletir cada vez mais sobre o seu entorno Quanto mais a arte desper-tar para a estranheza do que eacute familiar mais se poderaacute refletir com olhar novo sobre o cotidiano
Em seu artigo de 2011 o objetivo principal de Elgin eacute atentar para a importacircncia do uso de outro conceito presente na filosofia da arte o da ldquoexemplificaccedilatildeordquo apresentado por Nelson Goodman Segundo ela esse conceito serve bem agrave ciecircncia em certos casos natildeo devendo ser negligen-ciado (ELGIN 2011 pp 399-400) O projeto do qual este artigo eacute apenas o passo inicial propotildee fazer algo parecido com relaccedilatildeo agrave desfamiliariza-ccedilatildeo em uma tentativa de adaptar o conceito proveniente da esteacutetica ao acircmbito da filosofia da ciecircncia
Uma abordagem que seraacute especialmente uacutetil nesse processo de adaptaccedilatildeo do conceito ao contexto filosoacutefico eacute a aproximaccedilatildeo com a fic-ccedilatildeo cientiacutefica Para isso eacute preciso analisar a conexatildeo da desfamiliarizaccedilatildeo conforme idealizada e explicada por Shklovsky (autor que propotildee o termo nos estudos literaacuterios) com alguma caracterizaccedilatildeo que possa ser extraiacuteda do estudo de obras de ficccedilatildeo cientiacutefica enquanto transmissoras de ideias filosoacuteficas com discurso desfamiliarizado Eacute possiacutevel analisar essas obras tambeacutem quanto agrave presenccedila de objetos cientiacuteficos que podem estar sendo usados para despertar atenccedilatildeo especial na narrativa de modo a provocar certas reaccedilotildees Assim como os objetos cotidianos podem ser vistos como cientiacuteficos pode-se dizer que os objetos cientiacuteficos podem ser desfamilia-rizados e aproveitados na literatura A caracterizaccedilatildeo de Schroumldinger que considera o objeto cientiacutefico como ldquopura configuraccedilatildeordquo natildeo sendo equiva-lente a nenhum objeto cotidiano facilita essa interpretaccedilatildeo uma vez que
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natildeo tendo configuraccedilatildeo de realidade concreta e cotidiana esses objetos podem ser mais facilmente apropriados pela ficccedilatildeo
Objetos e Desfamiliarizaccedilatildeo
O primeiro caso a ser analisado eacute o dos objetos cotidianos que satildeo ldquoemprestadosrdquo de certa forma agrave ciecircncia O Sol uma barra de ferro etc satildeo exemplos de objetos que a fiacutesica empresta do cotidiano Esses obje-tos passariam segundo uma interpretaccedilatildeo que leva em conta a desfami-liarizaccedilatildeo a ser vistos como cientiacuteficos perdendo a sua caracteriacutestica de familiaridade do senso comum De fato na ciecircncia o comportamento de tais objetos deve seguir as leis cientiacuteficas e servir ao intuito de cientistas e teorias Por vezes em experimentos algumas ocorrecircncias satildeo conside-radas despreziacuteveis a fim de se manter o comportamento esperado para o objeto dentro da teoria Se considerarmos que eacute possiacutevel identificar no mundo objetivado duas esferas de objetos vistas como separadas e mes-mo antagocircnicas a saber a dos objetos cotidianos e a dos cientiacuteficos esse caso de desfamiliarizaccedilatildeo gera uma confluecircncia momentacircnea das duas esferas Pode-se dizer que a fronteira entre essas duas esferas se desloca nesse momento Isto eacute a desfamiliarizaccedilatildeo sofrida pelo objeto cotidiano tem a capacidade de desfazer a rigidez das fronteiras dessas esferas re-velando a sua maleabilidade
Um exemplo a ser explorado eacute o caso da luz Conceitos e caracteri-zaccedilotildees da luz foram alvo de muitas controveacutersias ao longo da histoacuteria da ciecircncia especialmente no iniacutecio do desenvolvimento da fiacutesica quacircntica podendo revelar muito sobre a relaccedilatildeo entre objetos cotidianos e cientiacute-ficos Por exemplo pode ser uacutetil comparar a relaccedilatildeo cotidiana que temos com a luz com sua conceituaccedilatildeo cientiacutefica aleacutem disso eacute possiacutevel explorar casos de discussatildeo sobre a luz na literatura de ficccedilatildeo cientiacutefica como no livro ldquoThe Invisible Manrdquo de H G Wells
A partir do caso particular da luz seraacute possiacutevel ampliar essa anaacutelise para os objetos construiacutedos e classificados como cientiacuteficos Vale inves-tigar se a proacutepria formaccedilatildeo desses objetos com base em construccedilotildees e invariantes cotidianos pode ser vista como um tipo de desfamiliarizaccedilatildeo
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Desfamiliarizaccedilatildeo e filosofia da ciecircncia a luz enquanto objeto cotidiano cientiacutefico e ficcional
A luz do cotidiano agrave revoluccedilatildeo quacircntica
Um dos exemplos dados na seccedilatildeo anterior o Sol parece ter sido a causa das duacutevidas que permitiram as primeiras investigaccedilotildees sobre a luz na histoacuteria da fiacutesica A accedilatildeo agrave distacircncia preocupa haacute muito de modo que o problema de explicaacute-la permaneceu sem soluccedilatildeo pelo menos ateacute o seacuteculo XIX (ASIMOV [1966] pp 3-6) Na era Newtoniana a controveacutersia apareceu na forma da questatildeo sobre como a luz do Sol alcanccedila a Terra Pe-los dois seacuteculos seguintes duas teorias compartilharam alternadamente a hegemonia a esse respeito a teoria ondulatoacuteria e a corpuscular Como Newton era partidaacuterio desta uacuteltima seu prestiacutegio ajudou a tornaacute-la quase unanimidade entre os fiacutesicos ateacute o seacuteculo XIX (ASIMOV [1966] p 65)
Por outro lado como a luz era concebida de um ponto de vista coti-diano Certamente natildeo da mesma maneira que na ciecircncia Enquanto a luz estava sendo cientificamente investigada em sua composiccedilatildeo essa anaacutelise natildeo era tatildeo importante na vida cotidiana A luz de um ponto de vista coti-diano seguindo uma interpretaccedilatildeo Schroumldingeriana eacute construiacuteda a partir de dois componentes sensaccedilotildees ndash o que vemos e o que sentimos por exemplo ndash e expectativas ndash as quais expressam em uacuteltima instacircncia suas funccedilotildees na vida cotidiana A luz cotidiana significa calor seguranccedila (em oposiccedilatildeo agrave escuridatildeo) possibilidade de realizar tarefas do dia-a-dia etc Pode tambeacutem significar sofrimento (pensemos na forccedila da luz e calor do sol em desertos e outros locais em que o Sol tanto castiga o ser humano) De qualquer forma parece que a luz ou qualquer outro objeto cotidiano eacute valorado (positiva ou negativamente) mais por suas consequecircncias ou pelas tarefas que nos permite ou natildeo concluir ldquoVerrdquo por exemplo parece ser a mais importante atividade que a luz nos permite realizar Por outro lado pode ser difiacutecil ateacute mesmo atravessar a rua sob o sol escaldante do nordeste brasileiro ao meio-dia no veratildeo
Ao mesmo tempo as investigaccedilotildees cientiacuteficas sobre a luz contribuiacute-ram para a invenccedilatildeo de vaacuterios instrumentos que passaram a fazer parte do cotidiano como espelhos lentes e o telescoacutepio Por sua vez esses ar-tefatos levaram a mais e mais descobertas sobre a luz cientiacutefica Apesar do intuito dessas explicaccedilotildees cientiacuteficas envolver mais precisamente o es-tabelecimento de uma definiccedilatildeo de luz em termos fiacutesicos a luz cientiacutefica eacute construiacuteda apenas por meio de percepccedilotildees virtuais ou expectativas de
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uma perspectiva Schroumldingeriana A partir de uma teoria sobre a luz os fiacutesicos experimentam com um objeto ldquoconstruiacutedo como luzrdquo esperando certos resultados Pode-se dizer que seguindo a abordagem de Schroumldin-ger expectativas satildeo os verdadeiros objetos da ciecircncia ou ao menos satildeo o material de que estes satildeo constituiacutedos Vale a pena notar no entanto que estas natildeo satildeo as mesmas expectativas que temos na vida cotidiana sobre a luz Eacute razoaacutevel concluir que a luz cotidiana e a cientiacutefica natildeo satildeo o mesmo objeto de acordo com a argumentaccedilatildeo acima
Embora os dois conceitos permaneccedilam distantes ontologicamen-te os desenvolvimentos tecnoloacutegicos proporcionados pela luz cientiacutefica acabaram tomando parte na vida cotidiana como no caso de espelhos e oacuteculos Nesses casos eacute faacutecil ver como as construccedilotildees das duas esferas cotidiana e cientiacutefica dependem mutuamente embora se possa defender que natildeo coincidem
No iniacutecio do seacuteculo XIX Thomas Young levou a cabo um experi-mento que contribuiu para a prevalecircncia natildeo por muito tempo da teo-ria ondulatoacuteria da luz na fiacutesica Mais tarde o mesmo experimento serviu de base para se conceber uma terceira abordagem sobre a luz respon-saacutevel pelo entendimento que se tem de sua definiccedilatildeo na teoria quacircntica Trata-se do experimento da dupla fenda o qual descreveremos breve-mente a seguir
A luz e o quantum
O experimento da dupla fenda introduziu uma maneira de pensar cientificamente a luz como onda Agrave medida que as descobertas na aacuterea avanccedilavam o mesmo experimento era repetido com novas tecnologias tambeacutem levando em conta novas abordagens teoacutericas O experimento de Young mostrou apenas que depois de passar por uma fenda seguida de duas fendas e entatildeo tocando um anteparo um raio de luz apresenta-va um padratildeo tiacutepico de interferecircncia de ondas Quase um seacuteculo depois cientistas usaram uma placa fotograacutefica substituindo o simples anteparo Surpreendentemente cada fase consecutiva de detecccedilatildeo mostrava mar-cas pontuais na placa como se a luz a alcanccedilasse ldquoem pequenos pacotesrdquo gradualmente formando o padratildeo tiacutepico de interferecircncia de ondas (PES-SOA 2003 pp 3-4)
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Esse problema eacute conhecido na fiacutesica quacircntica como ldquodualidade on-da-partiacuteculardquo os experimentos mostram que a luz natildeo eacute nem apenas onda nem apenas partiacutecula mas exibe caracteriacutesticas de ambas Vale notar a mudanccedila na interpretaccedilatildeo das descobertas cientiacuteficas que passou a vigo-rar apoacutes a constataccedilatildeo de resultados trazidos pelos experimentos quacircnti-cos A perspectiva da ciecircncia como sendo capaz de explicar todos os mis-teacuterios do universo estava perdendo forccedila assim como a visatildeo de acordo com a qual a ciecircncia tem por meta explicar e analisar o mesmo mundo no qual vivemos nossas vidas cotidianas Por exemplo o experimento da dupla fenda pode ser explicado por pelo menos quatro interpretaccedilotildees di-ferentes cada uma delas condizente com o nuacutecleo matemaacutetico uacutenico da teoria quacircntica De fato essas explicaccedilotildees eram relegadas ao campo da especulaccedilatildeo metafiacutesica por muitos como Heisenberg e outros adeptos da ldquoInterpretaccedilatildeo de Copenhagenrdquo bem aceita pela maioria dos cientistas na eacutepoca (ver PESSOA 2003 pp 96-97) Conforme apresentado em Murr (2010 pp 108-110) eles discordavam em diversos aspectos A interpre-taccedilatildeo ldquoOrtodoxardquo desse grupo natildeo visava a adicionar explicaccedilotildees consi-deradas metafiacutesicas aos resultados dos experimentos ou agrave proacutepria teoria Seu lema era natildeo dizer nada aleacutem do que podia ser observado
Nesse ponto a luz era uma noccedilatildeo confusa de uma perspectiva cientiacutefica Natildeo considerando a luz como onda nem como partiacutecula a fiacute-sica quacircntica perturbou o proacuteprio padratildeo de racionalidade cientiacutefica vi-gente a mesma atitude de ruptura era necessaacuteria para explicar outros eventos subatocircmicos Se esse tipo de raciociacutenio estava longe dos padrotildees cientiacuteficos de racionalidade estava anda mais longe do modo de pensar cotidiano De um ponto de vista Schroumldingeriano no entanto esse salto deve ser compreendido com respeito agrave visatildeo construiacuteda da realidade Eacute o condicionamento para pensar em termos de invariantes fixos que leva agrave dificuldade em aceitar os resultados quacircnticos
Como pudemos ver a luz cotidiana e a cientiacutefica eram muito dis-tantes na eacutepoca da revoluccedilatildeo quacircntica ainda que mudanccedilas cientiacuteficas tenham tambeacutem alterado a concepccedilatildeo de senso comum da luz A evoluccedilatildeo temporal dos dois conceitos a saber de luz cotidiana e cientiacutefica sugere que invariantes em ambas as esferas devem ser tomados como mutaacuteveis e mutuamente dependentes Na proacutexima seccedilatildeo exploramos a possibilidade de pensar em uma terceira subesfera de objetos a saber os objetos ficcio-
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nais pertencentes ao campo da ficccedilatildeo Pretendemos analisar os objetos da ficccedilatildeo cientiacutefica um tipo particular dentro dessa esfera Essa anaacutelise ajudaraacute a examinar alguns casos em que a luz figura nas histoacuterias de fic-ccedilatildeo cientiacutefica permitindo a comparaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas e signifi-cados em outras esferas
A esfera dos objetos da ficccedilatildeo cientiacutefica
Se dividirmos a realidade em esferas a esfera da ficccedilatildeo tem um sta-tus similar agravequele da ciecircncia considerando o modo de construccedilatildeo de seus objetos Eles satildeo similares com respeito agrave conexatildeo feita com a realidade cotidiana podemos dizer que os objetos da ficccedilatildeo dependem de constru-ccedilotildees cotidianas para serem formados Mas natildeo apenas isso eles podem tambeacutem depender de objetos cientiacuteficos especialmente se restringirmos a anaacutelise agrave ficccedilatildeo cientiacutefica A luz da ficccedilatildeo depende da luz cotidiana a leitura de um trecho que envolva o Sol em um romance por exemplo res-gata a imagem cotidiana do Sol (seu invariante) junto com suas caracte-riacutesticas cotidianas importantes Exceto que elas natildeo satildeo necessariamente as mesmas na vida cotidiana e na ficccedilatildeo O Sol na ficccedilatildeo eacute capaz de se comportar de maneiras estranhas como nunca se pondo ou natildeo nascen-do em um determinado dia Tambeacutem pode se tratar de um sol de outra galaacutexia ou sistema planetaacuterio consequentemente tendo caracteriacutesticas distintas do Sol cotidiano da Terra Nesse ponto soacuteis ficcionais criam uma independecircncia do invariante do Sol da vida cotidiana Isto eacute o invariante cotidiano ajuda a construir ldquoum solrdquo aquele especiacutefico necessaacuterio para uma certa ficccedilatildeo No entanto este uacuteltimo cria independecircncia do primeiro sendo parte da esfera de objetos ficcionais Natildeo tem a intenccedilatildeo de repre-sentar necessariamente o Sol do planeta Terra mas quando o faz eacute soacute uma representaccedilatildeo natildeo o mesmo Sol
Pode-se dizer que um processo semelhante ao que acabamos de descrever ocorre com os objetos cientiacuteficos Mesmo quando os cientistas esperam que estes representem objetos cotidianos a ciecircncia estaria de fato os reconstruindo isto eacute fabricando uma nova esfera de objetos os quais satildeo conectados aos primeiros de alguma forma Isso poderia ser representado pela interseccedilatildeo da projeccedilatildeo da esfera cientiacutefica no plano cotidiano Como no caso da ficccedilatildeo inicialmente o Sol da Ciecircncia depende
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do Sol cotidiano para ser construiacutedo mas posteriormente ele cria uma independecircncia em relaccedilatildeo ao primeiro
Seguindo essa abordagem a luz na ficccedilatildeo cientiacutefica seria em pri-meiro lugar uma construccedilatildeo diferente a cada contexto dentro do qual aparece Tomemos por exemplo O Homem Invisiacutevel de H G Wells em que um conceito cientiacutefico adaptado de luz serve de base no contexto da fabricaccedilatildeo da foacutermula da invisibilidade Em 1897 ano em que o livro foi publicado a fiacutesica estava mudando ainda que se mantivesse predo-minantemente Newtoniana Grande parte dessas mudanccedilas diziam res-peito agrave luz conforme vimos na seccedilatildeo sobre a sua histoacuteria No entanto natildeo poderiacuteamos dizer que o conceito da luz apresentado por Wells era o mesmo que em qualquer outra concepccedilatildeo prevalecente agrave eacutepoca De fato natildeo satildeo as mesmas noccedilotildees considerando que o conceito de luz presente no livro de Wells permite que um cientista se torne invisiacutevel poder que a luz natildeo tem na fiacutesica natildeo ficcional Consequentemente a mesma luz natildeo pode pertencer a ambas as esferas ao mesmo tempo
Por outro lado para aleacutem do ponto de vista estritamente schroumldin-geriano pode-se dizer que a ciecircncia toma o mesmo objeto por exemplo o Sol e traz uma maneira diferente de olhar para ele como que transfor-mando-o temporariamente em um objeto cientiacutefico Essa visatildeo pode ser apoiada pelos desenvolvimentos de Russell como explicamos em Murr (2014 p 247) De acordo com Russell objetos em diferentes campos da ciecircncia por exemplo poderiam ser vistos como tendo o mesmo estofo baacutesico apenas arranjado de forma diferente (RUSSELL 1917a p 144) Essa visatildeo eacute consequecircncia de seu monismo de sensaccedilotildees de acordo com o qual colocando brevemente sensaccedilotildees satildeo o estofo a partir do qual o mundo eacute construiacutedo originando tanto construtos mentais quanto mate-riais Russell afirma que objetos cotidianos satildeo tambeacutem um tipo de ficccedilatildeo e o que chamamos de mundo fictiacutecio (natildeo ficcional) eacute composto das coi-sas ilusoacuterias Ele natildeo desenvolveu no entanto uma discussatildeo especiacutefica sobre o status dos objetos ficcionais nesse ponto Segue dessa posiccedilatildeo russelliana que a esfera da ficccedilatildeo tambeacutem eacute uma construccedilatildeo baseada no mesmo estofo a partir do qual os objetos cotidianos satildeo feitos arranjados de forma diferente Portanto a luz do livro de Wells pode ser entendida como um rearranjo das mesmas sensaccedilotildees usadas para a construccedilatildeo da luz cotidiana e posteriormente a cientiacutefica da eacutepoca Pode-se dizer que
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esse rearranjo guarda um certo padratildeo comum a todos os objetos ficcio-nais que explica porque a luz ficcional pode apresentar certas caracteriacutes-ticas ausentes no mundo cientiacutefico ou no cotidiano
De acordo com a abordagem schroumldingeriana apenas os objetos co-tidianos isto eacute aqueles pertencentes agrave esfera que chamamos de ldquoprimeira ordemrdquo tecircm uma ligaccedilatildeo com as sensaccedilotildees no sentido de serem ldquopercep-ccedilotildees reaisrdquo Nos objetos cientiacuteficos ldquode segunda ordemrdquo essa ligaccedilatildeo de-saparece uma vez que apenas o invariante de uma coisa cotidiana eacute sufi-ciente para construiacute-los Por sua vez objetos da ficccedilatildeo cientiacutefica poderiam ser considerados de ldquoterceira ordemrdquo pois dependem de um invariante da ciecircncia para serem construiacutedos Resumindo objetos de terceira ordem dependeriam de objetos de segunda ordem os quais por sua vez depen-dem daqueles pertencentes agrave esfera de primeira ordem Diferentemente a ocorrecircncia do Sol ficcional em um livro por exemplo representando o Sol cotidiano pode ser considerado de segunda ordem uma vez que de-pende de invariantes da vida cotidiana Sob uma abordagem russelliana no entanto os objetos da ficccedilatildeo cientiacutefica natildeo satildeo essencialmente dife-rentes dos cotidianos ou dos cientiacuteficos constituindo apenas outra forma de arranjar as sensaccedilotildees Entatildeo esses objetos satildeo diretamente ligados agraves sensaccedilotildees contrariamente ao que defenderia Schroumldinger
Eacute importante notar a diferenccedila entre o conceito de ldquosensaccedilatildeordquo nos dois autores Para Schroumldinger conforme mencionado acima sensaccedilotildees satildeo ldquopercepccedilotildees reaisrdquo em nossa interpretaccedilatildeo ldquoo resultado da afecccedilatildeo dos sentidosrdquo Mas Schroumldinger nunca foi suficientemente claro sobre esse ponto Russell por outro lado lidou com cuidado com o termo A pa-lavra ldquosensaccedilatildeordquo passou por uma mudanccedila de significado na filosofia de Russell nos seus primeiros escritos que ainda conservavam a noccedilatildeo de dados dos sentidos como fundamental ldquosensaccedilotildeesrdquo referiam-se agrave cons-ciecircncia da percepccedilatildeo Em seus trabalhos mais tardios as sensaccedilotildees ad-quiriram um sentido do que eacute alcanccedilado apoacutes ldquoanaacuteliserdquo de ambas mateacuteria e mente Nessa abordagem tardia os dados dos sentidos satildeo vistos como posteriores agraves sensaccedilotildees em uma cadeia de siacutentese que leva agrave construccedilatildeo do objeto como ficccedilatildeo Entatildeo uma anaacutelise russelliana comeccedila no objeto e chega agraves sensaccedilotildees enquanto uma siacutentese igualmente embasada faz o percurso contraacuterio
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Seja qual for o conceito de sensaccedilatildeo usado ambos os autores a co-locam em um estaacutegio primitivo da construccedilatildeo de objetos A diferenccedila con-cerne a conexatildeo dos objetos cientiacuteficos a esse ldquoniacutevelrdquo em que as sensaccedilotildees satildeo descritas Para Schroumldinger os objetos cientiacuteficos perdem essa cone-xatildeo enquanto ela ainda vale de acordo com Russell
A abordagem russell-schroumldingeriana consideraccedilotildees finais
A fim de encontrar uma noccedilatildeo adequada a respeito da construccedilatildeo dos objetos ficcionais propomos uma abordagem intermediaacuteria russell--schroumldingeriana procurando unir partes interessantes de cada visatildeo Combinamos a ideia de inspiraccedilatildeo russelliana de acordo com a qual a luz da ficccedilatildeo cientiacutefica seria apenas um rearranjo de sensaccedilotildees com o pensamento de base schroumldingeriana de que natildeo eacute necessaacuterio reiniciar das sensaccedilotildees toda vez que a luz ou o Sol ou qualquer outro objeto tem uma ocorrecircncia ficcional Um invariante eacute usado para retomar o acesso a objetos cotidianos conforme o tratamento de Schroumldinger ao inveacutes de se retornar ao ponto de partida das sensaccedilotildees No entanto como o inva-riante eacute construiacutedo a partir de sensaccedilotildees ainda haacute uma ligaccedilatildeo primitiva com elas pensando em uma continuidade entre esses objetos (e conse-quentemente entre as esferas que os contecircm) Michel Bitbol afirma que nas propostas de Schroumldinger quanto mais familiar eacute um objeto mais longe da ldquofonterdquo de sensaccedilotildees ele fica (BITBOL 1992 p 51 ver tambeacutem SCHROumlDINGER 1957 p 204) Em outras palavras muita familiaridade com um objeto cotidiano traria para Schroumldinger uma falta de sensaccedilotildees que se aproxima do niacutevel dos objetos cientiacuteficos os quais satildeo inteiramen-te baseados em expectativas
Objetos ficcionais diferentemente dos estritamente cientiacuteficos combinam familiaridade e surpresa Novos eventos quebram a familiari-dade e as sensaccedilotildees tendem a reaparecer especialmente quando a litera-tura nos acorda do automatismo das experiecircncias mecanicamente repe-tidas Ler uma obra de ficccedilatildeo ldquodesfamiliarizardquo as coisas no sentido de que traz novas experiecircncias O retorno ao estofo baacutesico eacute constante mesmo tendo iniciado com um invariante jaacute construiacutedo Quando o Sol em uma obra de ficccedilatildeo deixa de nascer a familiaridade com o Sol da vida cotidiana
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eacute quebrada com a surpresa repentinamente somos levados a modificar esse invariante Essa falta de familiaridade inesperada eacute responsaacutevel pelo retorno agraves sensaccedilotildees como na primeira vez em que o Sol foi construiacutedo na experiecircncia do sujeito
Aqui a motivaccedilatildeo russelliana de nosso ponto de vista parece ade-quada permitindo trabalhar diretamente com a ligaccedilatildeo com as sensaccedilotildees ligaccedilatildeo que estaria perdida seguindo-se apenas a parte schroumldingeriana de nossa abordagem Ao mesmo tempo a noccedilatildeo schroumldingeriana de in-variante eacute tomada como o ponto de partida para a construccedilatildeo do objeto ficcional No caso da luz da ficccedilatildeo cientiacutefica o invariante o qual eacute o con-ceito cientiacutefico de luz jaacute estaacute formado e serve de ponto de partida para a construccedilatildeo da luz fictiacutecia que permeia o enredo do livro de H G Wells
Finalmente a proposta russell-schroumldingeriana manteacutem o conceito de invariante como uma espeacutecie de base para a construccedilatildeo dos objetos ficcionais assim como no caso cientiacutefico Ao mesmo tempo adicionar a abordagem russelliana nos permite explicar o retorno agraves sensaccedilotildees no processo de construir um objeto ficcional como proposto na abordagem da desfamiliarizaccedilatildeo Mas como essa abordagem responde agrave questatildeo sobre se a luz por exemplo faz parte de mais de uma esfera ao mesmo tempo Uma soluccedilatildeo razoaacutevel eacute dizer que do ponto de vista do objeto construiacutedo natildeo haacute identidade O que natildeo implica no entanto que obje-tos ficcionais sejam criaccedilotildees totalmente independentes Usamos o termo ldquoconstruccedilatildeordquo justamente porque este parece mais adequado do que ldquocria-ccedilatildeordquo nesse caso uma vez que sua fabricaccedilatildeo depende de um invariante baacutesico da vida cotidiana ou da ciecircncia ou ambos (ou de outras esferas natildeo mencionadas aqui no contexto deste artigo estamos lidando somen-te com essas duas) Aleacutem disso de acordo com uma abordagem monista a luz em todas as suas formas seria constituiacuteda em uacuteltima anaacutelise do mes-mo material
Pode-se dizer que Russell e Schroumldinger concordam que a filosofia nos permite alcanccedilar tal niacutevel de profundidade pois o mundo dividido nas esferas objetiva e subjetiva parece ser uma maneira inevitaacutevel de or-ganizar a experiecircncia para ambos Consequentemente a filosofia pode ajudar a modificar a maneira como conceitualizamos e mesmo experien-ciamos alguns aspectos de nossas construccedilotildees A abordagem que apre-sentamos neste artigo ajuda a ver as esferas natildeo como construccedilotildees fixas
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mas que mudam constantemente Uma divisatildeo em esferas ainda pode ser defendida embora elas sofram constantes metamorfoses caracterizan-do uma distinccedilatildeo muito mais flexiacutevel entre elas A luz como um objeto pode ser considerada como parte das trecircs esferas ao mesmo tempo mas em cada uma delas assume um papel diferente aleacutem de criar uma certa independecircncia enquanto objeto em cada caso O que sofre transforma-ccedilotildees repetidamente a fim de construir essas diferentes ldquoluzesrdquo eacute o estofo baacutesico a partir do qual a luz cotidiana cientiacutefica e da ficccedilatildeo cientiacutefica satildeo construiacutedas apresentando relaccedilotildees diferentes em cada caso
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La tecnologiacutea desde la praxiologiacutea ontologiacutea y epistemologiacutea de las praacutecticas tecnoloacutegicas
Diego Lawler(Instituto de investigaciones Filosoacuteficas de la Sociedad Argentina de Anaacutelisis FilosoacuteficoCONICET)
Introduccioacuten
La recuperacioacuten y elaboracioacuten para la filosofiacutea de la tecnologiacutea del marco conceptual de la praxiologiacutea (KOTARBINSKI 1965) permite aprehender las dimensiones ontoloacutegica y epistemoloacutegica desde un nuevo punto de vista las praacutecticas tecnoloacutegicas propiamente dichas y sus ladri-llos baacutesicos a saber la accioacuten humana
iquestCuaacutel es el aacutembito de estudio de la praxiologiacutea El aacutembito propio de la praxiologiacutea es la totalidad de la experiencia praacutectica de la humanidad Desde este punto de vista la praxiologiacutea recoge para siacute por una parte el sentido ordinario que daban los griegos al teacutermino praxis y por otra la ela-boracioacuten posterior de su significado por parte del pensamiento marxista Los griegos empleaban usualmente el teacutermino praxis para referirse de ma-nera general a la accioacuten de hacer o llevar a cabo algo Luego con Aristoacutete-les este hacer o actividad praacutectica perdioacute su caraacutecter nominal monoliacutetico Aristoacuteteles (1930) reservoacute el teacutermino praxis para las actividades que no se extinguen en un producto externo independiente del agente esto es para las actividades cuyos fines residen en siacute mismas como las actividades pre-dominantes en la vida eacutetica y poliacutetica del hombre Y designoacute con el teacutermino poiesis a las actividades ligadas a la produccioacuten de un artefacto esto es a las actividades cuyos fines estaacuten orientados a la fabricacioacuten de algo Sin embar-go su empleo de estos dos teacuterminos no siempre estaacute suficientemente claro De hecho a veces Aristoacuteteles parece incluir la poiesis en la praxis y otras veces dejarla de lado como algo irrelevante (LOBKOWICZ 1967) Muchos siglos maacutes tarde la filosofiacutea marxista relanza el teacutermino praxis y emplea como nuacutecleo de su significado lo que Aristoacuteteles baacutesicamente entendiacutea por poiesis La praxis pasa a significar la actividad productiva del hombre a tra-
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 207-223 2017
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veacutes de la cual transforma el mundo y se moldea a siacute mismo (KOSIacuteK 1965) En este sentido la praxis no soacutelo abarca la actividad praacutectica del hombre sino que tambieacuten contiene los diferentes aspectos de una teoriacutea del hom-bre y de su mundo que aspira a resolverse en accioacuten poliacutetica (BERNSTEIN 1979 SAacuteNCHEZ VAacuteZQUEZ 1967) Este boceto resultado de las sucesivas elaboraciones del significado de la nocioacuten de praxis configura el trasfondo histoacuterico de la praxiologiacutea
La praxiologiacutea estudia sistemaacuteticamente las condiciones de la ac-cioacuten humana y las normas que rigen su desarrollo racional con el fin de elaborar orientaciones para evaluar esas acciones tanto interna como ex-ternamente y sugerencias para aumentar su eficiencia (KOTARBINSKI 1965 SKOLIMOWSKI 1966 y 1967) Sin embargo el anaacutelisis praxioloacutegico de las condiciones y normas de la accioacuten humana no se limita a los facto-res que favorecen la accioacuten por el contrario tambieacuten incluye los factores que la limitan Esto es particularmente importante porque entre estos uacuteltimos se encuentran los estaacutendares eacuteticos Ellos pueden limitar la pla-nificacioacuten o realizacioacuten de ciertas acciones humanas por contravenir los valores morales baacutesicos de una comunidad Por consiguiente la praxiolo-giacutea enfoca en toda su complejidad y riqueza el aacutembito de las actividades praacutecticas del hombre
La pertinencia de la praxiologiacutea para la filosofiacutea de la tecnologiacutea es casi obvia La filosofiacutea de la tecnologiacutea de orientacioacuten analiacutetica estaacute arti-culada alrededor de un supuesto normativo baacutesico la accioacuten tecnoloacutegica constituye la forma maacutes valiosa de intervencioacuten modificacioacuten y control de la realidad con el fin de adecuarla a las necesidades y deseos humanos (QUINTANILLA 1988 1989a y 1989b BRONCANO 2000 2006) Por con-siguiente no se puede analizar adecuadamente la tecnologiacutea sin haber construido una teoriacutea bien fundada de la accioacuten humana Y no es posible lograr esto uacuteltimo sin contar con la praxiologiacutea para analizar y evaluar desde los mismos valores praxioloacutegicos (eficiencia eficacia productivi-dad etc) los objetivos de la accioacuten sus resultados y las acciones mismas Es maacutes se obtiene la clave teoacuterica y praacutectica necesaria para investigar la tecnologiacutea el conocimiento implicado en ella y sus productos cuando se la enfoca desde la praxiologiacutea Esta es la intuicioacuten filosoacutefica clave Por tanto la perspectiva de la praxiologiacutea otorga un acceso privilegiado a la reflexioacuten sobre la accioacuten en el contexto de las praacutecticas tecnoloacutegicas
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La tecnologiacutea desde la praxiologiacutea ontologiacutea y epistemologiacutea de las praacutecticas tecnoloacutegicas
Desde este punto de vista la tecnologiacutea consiste en un tipo especial de accioacuten humana la accioacuten tecnoloacutegica que constituye el aspecto maacutes baacutesico de las praacutecticas tecnoloacutegicas En tanto que accioacuten humana pro-ductiva la accioacuten tecnoloacutegica estaacute guiada por una descripcioacuten precisa del objeto evento o estado deseado como resultado y por un determinado conocimiento aprendido ejecutaacutendose dicha accioacuten para la satisfaccioacuten de unos objetivos previamente asumidos Asiacute el agente intenta producir un objeto evento o estado de una cierta clase a traveacutes de un disentildeo y ayudado por un corpus aprendido de conocimientos con un propoacutesito decidido de antemano
Este retrato de la accioacuten tecnoloacutegica puede analizarse de muchas maneras Sin embargo quisiera destacar aquiacute aquello que es especiacutefico de la accioacuten tecnoloacutegica en su condicioacuten de accioacuten humana productiva intencional por un lado que es una accioacuten realizada por un agente que se representa tanto la accioacuten misma como sus resultados a traveacutes de un disentildeo y por otro que estas representaciones pueden o no adecuarse a la accioacuten efectiva y sus resultados concretos Este aacutembito de cuestiones plantea los problemas praxioloacutegicos maacutes relevantes sobre la accioacuten tec-noloacutegica en su naturaleza de accioacuten intencional humana y sobre sus pro-ductos los artefactos (BUNGE 1985 1989 y 2002 KOTARBINSKI 1965 QUINTANILLA 1988 QUINTANILLA y LAWLER 2000) y la naturaleza del conocimiento que acompantildea el desarrollo de la accioacuten sea este conoci-miento cientiacutefico yo conocimiento propiamente tecnoloacutegico En las dos secciones que siguen quisiera echar mano del enfoque praxioloacutegico para trazar algunas distinciones y problemas baacutesicos relacionados a las dimen-siones ontoloacutegica y epistemoloacutegica de nuestras praacutecticas tecnoloacutegicas
2 La praxiologiacutea enfoca la ontologiacutea
Los productos o efectos intencionales de las acciones tecnoloacutegi-cas configuran el aacutembito de los artefactos Este aacutembito no es un aacutembi-to homogeacuteneo puesto que lo artificial existe en eacutel de modos diferentes (BUNGE 1985 DIPERT 1993 y 1995 HILPINEN 1993 MITCHAM 1994 QUINTANILLA 1988) No obstante estos modos pueden aprehenderse en funcioacuten del grado con que exhiben la cualidad general de ser productos de la accioacuten tecnoloacutegica esto es la cualidad de ser resultados de la deli-
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beracioacuten y decisioacuten humanas Desde esta perspectiva es posible hablar de instrumentos y artefactos teacutecnicos En este apartado se desarrollan las caracteriacutesticas elementales de esta cartografiacutea1
Un instrumento es un objeto que ha sido intencionalmente conside-rado y utilizado por un agente como un medio para la satisfaccioacuten de un fin determinado en el transcurso de una actividad tecnoloacutegica intencio-nal Que un objeto constituya un instrumento implica que exhibe un ca-raacutecter relacional caraacutecter propio de la instrumentalidad (peculiaridad de la propiedad de lsquoser instrumentorsquo) Un objeto exhibe este caraacutecter cuando satisface dos condiciones la condicioacuten de consideracioacuten y la condicioacuten de uso La primera de ellas significa que un agente contempla e interpreta un objeto como instrumento cuando cree que es un medio lo suficiente-mente eficaz como para alcanzar un fin determinado Esta condicioacuten es el producto de un acto judicativo del agente acto que enlaza un fin del agente con un objeto juzgado como medio idoacuteneo para alcanzar ese fin La segunda condicioacuten la condicioacuten de uso significa que sobre la base de esa creencia el objeto es usado como instrumento por el agente para sa-tisfacer un fin dado de antemano Ambas condiciones implican que un ob-jeto para ser considerado y usado como un medio eficaz para un fin debe realizar efectivamente una contribucioacuten causal positiva para alcanzar ese fin debe satisfacer su condicioacuten de medio efectivo (DIPERT 1986 1993 1995 KOTARBINSKI 1965) La condicioacuten de consideracioacuten es loacutegicamen-te previa a la condicioacuten de uso Es perfectamente posible considerar un objeto como un instrumento para un fin dado esto es considerarlo en su instrumentalidad y sin embargo no usarlo en modo alguno No obs-tante la condicioacuten de uso supone la condicioacuten de consideracioacuten Siempre que usamos un objeto como instrumento es porque lo hemos considera-do como tal Una nota particularmente relevante de la condicioacuten de uso consiste en que a traveacutes de su satisfaccioacuten se prueba en la realidad la efi-cacia del instrumento eficacia meramente concebida y por consiguiente conjeturada en la condicioacuten de consideracioacuten Los casos de instrumentos maacutes simples son los denominados ldquoinstrumentos naturalesrdquo esto es obje-
1 La idea de lo artificial que aquiacute interesa se aplica a todos los productos intencionales de la ac-cioacuten tecnoloacutegica sean objetos estados procesos o propiedades de ellos Sin embargo en este apartado se hablaraacute soacutelo de los objetos y sus propiedades Se espera que esta delimitacioacuten con-tribuya a la comprensioacuten de la cartografiacutea presentada
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tos que no han sido intencionalmente modificados aunque siacute concebidos como medios eficaces y usados intencionalmente como tales Un ejemplo de instrumento natural es un pequentildeo tronco que usamos como palanca una piedra que consideramos y usamos como pisapapeles etceacutetera Pero hay tambieacuten obviamente instrumentos maacutes complejos
Asimismo este esquema presentado para el caso de un objeto puede aplicarse a sus propiedades Entonces no soacutelo nos referiremos a objetos como instrumentos sino ademaacutes a sus propiedades como pro-piedades instrumentales Las propiedades instrumentales son propieda-des consideradas y atribuidas por un agente a un objeto que motivan el uso de ese objeto como instrumento (en virtud de esas propiedades) para satisfacer un fin En esta aplicacioacuten un objeto es un instrumento para un agente con ciertos fines si se dan las siguientes condiciones el objeto po-see un conjunto de propiedades el agente considera esas propiedades y cree que el objeto las posee las propiedades del objeto son propiedades instrumentales (un medio eficaz para lograr un fin determinado) el agen-te cree que son un medio efectivo para ese fin finalmente el agente usa instrumentalmente ese objeto en virtud de que cree que ese conjunto de propiedades son propiedades eficaces como medio (instrumental) para el logro de su fin El grado de complejidad de un instrumento se asociariacutea con la presencia de varios conjuntos de propiedades instrumentales lo cual por otra parte contribuiriacutea a la versatilidad instrumental del objeto
Cuando se consideran las propiedades de un objeto como propie-dades instrumentales resulta patente que entidades artificiales comple-jas como por ejemplo un lavarropas o un ordenador personal pueden ser consideradas y usadas por un agente como meros instrumentos (por ejemplo considerar y usar la lavadora como un depoacutesito de juguetes etc) Cuando este es el caso el objeto material es considerado y usado como un mero instrumento sin que al agente le importe la historia cultu-ral cognitiva o deliberativa (en el sentido de que incorpora intenciones y planes de acciones teacutecnicas) que pueda contener esa entidad artificial En consecuencia la conclusioacuten que podemos extraer de esta historia consis-te en lo siguiente el conjunto de propiedades que un agente considera y usa como instrumento efectivo para alcanzar el fin propuesto es el de las propiedades materiales que exhibe sin maacutes el objeto esto es sin que el agente necesite estar en ninguacuten sentido familiarizado con los contenidos
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de la historia cognitiva deliberativa o cultural de esas propiedades o del objeto que las porta
Los artefactos tecnoloacutegicos son los productos intencionales par excellence de las acciones tecnoloacutegicas de un agente Estos productos pueden ser un nuevo objeto (ie objetos hechos por el hombre) evento o proceso (ie cambios resultados de acciones sobre alguna cosa) o un estado (ie estado que alcanza una cosa en virtud de las acciones ejecuta-das) Un artefacto teacutecnico presenta dos caracteriacutesticas relevantes Por un lado es el producto de la realizacioacuten de planes de acciones teacutecnicas esto es acciones guiadas por conocimientos fiables para intervenir y transfor-mar productivamente (de manera eficiente y controlada) la realidad con el propoacutesito de satisfacer deseos y necesidades humanas Por otro lado comunica con mayor o menor eacutexito su condicioacuten de artefacto teacutecnico O dicho con mayor precisioacuten los artefactos propiamente teacutecnicos son her-ramientas que comunican con distinto grado de eacutexito su condicioacuten de productos de un disentildeo o plan de accioacuten tecnoloacutegica
Qua herramientas son objetos en los cuales se han introducido in-tencionalmente funciones y modificaciones materiales o formales con el propoacutesito de que sirvan como medio para un fin o de que satisfagan de manera maacutes efectiva un fin que anteriormente ya satisfaciacutean (DIPERT 1993) Asiacute a diferencia de los instrumentos y debido a su condicioacuten de herramientas los artefactos teacutecnicos son producidos seguacuten un disentildeo o conjunto de planes de accioacuten (VINCENTI 1990) Sin embargo deben ademaacutes exhibir y comunicar con alguacuten grado de eacutexito su condicioacuten de herramientas Esto se percibe faacutecilmente si se advierte que los artefactos teacutecnicos son disentildeados producidos y usados Incluso maacutes dado que sa-tisfacen metas o deseos humanos resultariacutea difiacutecil explicar coacutemo es que funcionan si previamente no se supiera para queacute sirven De esto se sigue que los artefactos son disentildeados y producidos con alguacuten propoacutesito y que por ende tienen que estar en condiciones de comunicar con relativo eacutexito ese propoacutesito
En los artefactos tecnoloacutegicos por tanto hay una relacioacuten entre la presencia de funciones oacuteptimas desempentildeadas por el artefacto y la comunicacioacuten de esas funciones Obviamente las propiedades que co-munican con eacutexito la condicioacuten de herramienta del artefacto pueden ser las mismas propiedades encargadas de exhibir esa condicioacuten u otras dis-
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tintas Cuando se trata de dos conjuntos diferentes de propiedades las propiedades comunicativas no forman efectivamente parte de las propie-dades intencionalmente modificadas con el propoacutesito de que la entidad artificial incorpore ciertas funciones En estos casos las propiedades co-municativas estaacuten al servicio de que el artefacto pueda ser reconocido como tal esto es en sus funciones particulares Imaginemos queacute suce-deriacutea si un artefacto teacutecnico que ejecuta oacuteptimamente ciertas funciones no fuese reconocido como artefacto teacutecnico sencillamente no seriacutea usa-do puesto que no podriacutea superar entre otras cosas las dificultades de su proceso de comercializacioacuten Esta no es una situacioacuten difiacutecil de imagi-nar Basta pensar en artefactos cuya forma externa no es una buena guiacutea para inferir sus funciones o en aquellos artefactos que por su mal disentildeo ocultan sus usos potenciales o actuales En consecuencia las propiedades comunicacionales inciden sobre un aspecto no menor de los artefactos (NORMAN 1990 y 2000)
Este uacuteltimo aspecto merece ser resaltado porque de otra manera el problema de los artefactos teacutecnicos opacos corre el riesgo de pasar de-sapercibido Dicho problema estaacute inextricablemente relacionado con las propiedades comunicacionales de los artefactos teacutecnicos No obstante tambieacuten entronca con el toacutepico maacutes amplio y complejo de la cultura teacutec-nica Las propiedades comunicacionales de los artefactos teacutecnicos comu-nican baacutesicamente el queacute del artefacto y en muchas ocasiones tambieacuten el coacutemo Sin embargo el proceso por el cual un artefacto exhibe su con-dicioacuten de herramienta y la comunica con eacutexito a un agente es un proceso que ocurre en correlacioacuten con la presencia o ausencia de ciertos patrones y contenidos culturales en el agente patrones y contenidos que configu-ran la manera en que eacuteste considera (inferencias sobre funciones origen del artefacto relaciones que mantiene con otros artefactos herramientas o instrumentos lugar en la cultura etc) y usa la entidad artificial Por consiguiente la evaluacioacuten de las propiedades comunicacionales de un artefacto tecnoloacutegico y a traveacutes de ellas la percepcioacuten de su opacidad o transparencia no son independientes de la cultura teacutecnica en la que se encuentra incorporado En definitiva esas propiedades constituyen el gozne que relaciona al usuario con el disentildeador rescatan la historia deli-berativa del artefacto teacutecnico e indirectamente lo situacutean en el contexto de su historia cognitiva y cultural En consecuencia el acoplamiento entre el
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uso del artefacto teacutecnico que hace un usuario y las funciones para la que fue disentildeado dicho artefacto es una buena guiacutea para pensar y referirnos a la condicioacuten comunicativa Cuando ese acoplamiento tiene lugar enton-ces decimos que la condicioacuten comunicativa se satisface con eacutexito y que ese artefacto es un artefacto tecnoloacutegico relativamente transparente
En este apartado presenteacute los rasgos de los productos del mundo artificial cuando los percibimos desde las contribuciones de la praxiolo-giacutea En el apartado siguiente abordareacute la dimensioacuten epistemoloacutegica enfo-cada desde la praxiologiacutea
3 La praxiologiacutea enfoca la epistemologiacutea
Las acciones tecnoloacutegicas entrantildean modos de actuacioacuten al inte-rior de la realidad por medio de artefactos con el propoacutesito de producir prevenir o cambiar un conjunto de eventos o su curso en funcioacuten de re-presentaciones previas En la mayoriacutea de los casos estas acciones instru-mentales de segundo orden (mediadas por artefactos) son prescritas por reglas asentadas en el mejor conocimiento disponible No hay una inter-pretacioacuten uniacutevoca de la expresioacuten ldquoel mejor conocimiento disponiblerdquo Si a esta expresioacuten le atribuyeacuteramos un sentido monoliacutetico la comprensioacuten de la dimensioacuten epistemoloacutegica se veriacutea reducida y de alguacuten modo trun-cado su completo significado
Hay dos maneras atribuir sentido a la expresioacuten ldquoel mejor cono-cimiento disponiblerdquo en el contexto de las praacutecticas tecnoloacutegicas Por una parte esa expresioacuten puede significar ldquoel conocimiento cientiacutefico de la realidad sobre la que se actuacuteardquo Una interpretacioacuten de esta naturaleza presupone la tesis de que nuestras praacutecticas tecnoloacutegicas y sus unidades baacutesicas (ie las acciones tecnoloacutegicas) pueden reducirse a la aplicacioacuten del conocimiento producto de las praacutecticas cientiacuteficas La tecnologiacutea seriacutea vista como mera ciencia aplicada Por otra parte la expresioacuten ldquoel mejor conocimiento disponiblerdquo pueden tener como referencia el conocimiento ingenieril resultado de actividades de nuestras ciencias artificiales En esta interpretacioacuten la dimensioacuten epistemoloacutegica no se reduce al conoci-miento cientiacutefico sino que recoge el conocimiento resultante de las praacutec-ticas ingenieriles un conocimiento fiable producto de generalizaciones empiacutericas asentado en nuestras formas de transformacioacuten del mundo y
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con caracteriacutesticas diferentes al conocimiento cientiacutefico Mi sugerencia es que el enfoque praxioloacutegico cobija ambas atribuciones de significado sin tener que auspiciar una lectura reduccionista de la dimensioacuten epistemo-loacutegica de nuestras praacutecticas tecnoloacutegicas En los paacuterrafos siguientes pre-sentareacute cada una de estas atribuciones con el propoacutesito de presentar sus caracteriacutesticas
La interpretacioacuten de la dimensioacuten epistemoloacutegica de la tecnologiacutea como ciencia aplicada se debe principalmente a Mario Bunge (1966 1985 y 1989) que es quien mejor ha analizado esta relacioacuten seguacuten el marco teoacuterico de la praxiologiacutea De acuerdo con su propuesta las reglas que prescriben las acciones tecnoloacutegicas se articulan seguacuten una relacioacuten de presuposicioacuten con los enunciados nomoloacutegicos de la ciencia a traveacutes de enunciados nomopragmaacuteticos Una ley cientiacutefica se formula como un enunciado nomoloacutegico que establece una regularidad o relacioacuten objetiva entre eventos de distinta clase en situaciones especiacuteficas por ejemplo ldquoen situaciones d a eventos del tipo a siguen siempre eventos del tipo brdquo Este enunciado nomoloacutegico constituye la base del siguiente enunciado nomopragmaacutetico ldquoen las circunstancias adecuadas d si se produce un evento del tipo a entonces se obtiene un evento del tipo brdquo Si en situacio-nes de tipo d podemos controlar o producir eventos del tipo a estamos en condiciones de formular bajo la forma de reglas de accioacuten la siguiente propuesta ldquopara obtener o producir b hacer a en situaciones drdquo o ldquopara evitar producir b no hacer a en circunstancias drdquo
La relacioacuten de presuposicioacuten entre enunciados de leyes cientiacutefi-cas enunciados nomopragmaacuteticos y reglas de accioacuten no es una relacioacuten loacutegica sino pragmaacutetica El contenido proposicional del antecedente del enunciado de la ley cientiacutefica expresa un hecho objetivo por el contra-rio el contenido proposicional del antecedente del enunciado pragmaacuteti-co indica una operacioacuten humana ndashldquosi se produce (o realiza) determinado eventordquo Las reglas de accioacuten no se infieren de las leyes cientiacuteficas a traveacutes de enunciados nomopragmaacuteticos De las leyes cientiacuteficas predicamos su verdad o falsedad De las reglas de accioacuten que en tanto reglas no son ni verdaderas ni falsas decimos si son o no efectivas De esto se sigue que la efectividad de una norma de accioacuten no estaacute garantizada por la verdad de una ley cientiacutefica (BUNGE 1972) La efectividad no puede ser inferida de la verdad Tampoco la falsedad de una ley da lugar de modo concluyente
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a una regla no efectiva Las reglas pueden ser adecuadas o inadecuadas esto es estar bien fundadas o carecer de fundamento La relacioacuten prag-maacutetica de presuposicioacuten permite fundar con consistencia las normas de accioacuten Y lo hace explicando por queacute una regla es efectiva exponiendo su modus operandi De esta manera el eacutexito praacutectico de una norma de accioacuten es una condicioacuten necesaria de la efectividad de una regla pero de ninguacuten modo una condicioacuten suficiente Una regla de accioacuten puede deber su eficacia praacutectica a meras coincidencias insospechadas ademaacutes tam-poco se puede afirmar que es efectiva porque ha funcionado con eacutexito en un nuacutemero alto de casos ya que no es posible garantizar por induccioacuten su eacutexito futuro Para que la condicioacuten de suficiencia se cumpla se requiere saber coacutemo es que realmente funciona y por queacute Y esto tiene lugar cuan-do se explicita la relacioacuten de presuposicioacuten entre enunciados de leyes cientiacuteficas y reglas de accioacuten De otro modo resultariacutea extremadamente difiacutecil por ejemplo formarnos un juicio sobre la efectividad de una regla antes de su puesta en praacutectica o mejorarla o llegado el caso reemplazar-la por otra maacutes efectiva
En consecuencia la relacioacuten de presuposicioacuten no soacutelo compete al origen de la accioacuten tecnoloacutegica sino que tambieacuten estaacute en el centro del problema de la validez de las reglas de accioacuten tecnoloacutegica Ambas cuestio-nes estaacuten vinculadas Seguacuten esta interpretacioacuten una accioacuten tecnoloacutegica con valor praxioloacutegico (eficaz eficiente con pocas consecuencias inde-seadas etc) es una accioacuten predicada por una regla adecuada esto es una regla establecida por la satisfaccioacuten de una relacioacuten de presuposicioacuten De esta manera las acciones tecnoloacutegicas se basan indirectamente ndash esto es a traveacutes de reglas de accioacuten y enunciados nomopragmaacuteticos ndash en un conjunto de leyes cientiacuteficas bien fundadas El esquema argumentativo que subyace a esta intuicioacuten puede retratarse del siguiente modo La tec-nologiacutea es una praacutectica que conlleva una esfera especiacutefica de actividad humana produccioacuten de mundos artificiales que estaacute estructurada por un sistema de reglas particulares las reglas de accioacuten tecnoloacutegica Por otro lado existen valores praxioloacutegicos que caracterizan dicha esfera La comprensioacuten de estos valores tiene lugar por referencia al anaacutelisis de las reglas que articulan la accioacuten tecnoloacutegica En concreto los valores tecno-loacutegicos son valores que funcionan como predicados de las reglas tecno-loacutegicas ndash esto es de las acciones tecnoloacutegicas prescritas por las reglas
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Entre estos valores hay uno de especial intereacutes para la tecnologiacutea desde el punto de vista de la praxiologiacutea el valor geneacuterico de eficiencia Se trata de un valor nuclear que refiere a la validez de las reglas de accioacuten tecno-loacutegica La validez de estas reglas se establece en relacioacuten con la eficiencia de las acciones que prescribe Y la eficiencia de eacutestas depende de que la regla que las prescribe esteacute fundada en el mejor conocimiento disponible leacutease en este caso conocimiento cientiacutefico En consecuencia la validez de las reglas de accioacuten tecnoloacutegica proviene de las leyes o del conjunto de foacutermulas cientiacuteficas que proporcionan un suelo firme para conjeturar explicar y mejorar la eficacia de las acciones tecnoloacutegicas prescritas por la regla Por lo tanto la relacioacuten de presuposicioacuten es una pieza clave de la cuestioacuten de la validez de las reglas de accioacuten En realidad cuando ella estaacute bien engarzada las reglas de accioacuten tecnoloacutegica que conforman la estructura de un plan de accioacuten encuentran una justificacioacuten soacutelida De esta manera las acciones tecnoloacutegicas se basan indirectamente ndash esto es a traveacutes de reglas de accioacuten y enunciados nomopragmaacuteticos ndash en un con-junto de leyes cientiacuteficas bien fundadas
En la segunda atribucioacuten de significado a la expresioacuten ldquoel mejor conocimiento disponiblerdquo las reglas de accioacuten tecnoloacutegica que estruc-turan nuestras praacutecticas tecnoloacutegicas encuentran un fundamento desde abajo Como indica Niiniluoto (1995) no siempre se dispone una teoriacutea cientiacutefica baacutesica desde la cual obtener reglas tecnoloacutegicas Cuando esto ocurre ldquo[E]l investigador emplea tiacutepicamente informacioacuten teoreacutetica que se encuentra en el trasfondo y construye un modelo matemaacutetico con va-riables manipulables y dependientes al mismo tiempo trata de obtener informacioacuten empiacuterica relevante a traveacutes de la experimentacioacuten y la simu-lacioacuten computacionalrdquo (p 129) Por consiguiente las reglas tecnoloacutegicas pueden ademaacutes asegurarse a traveacutes de lo que se ha denominado sopor-te ldquodesde abajordquo (MERTENS 1992 NIINILUOTO 1993 1995) El soporte desde abajo supone ver a las reglas como el producto de la modelizacioacuten de las praacutecticas tecnoloacutegicas reales a traveacutes de procedimientos de ensayo y error y praacutecticas experimentales amplias en las que se investigan las dependencias que mantienen variables relevantes del disentildeo de un arte-facto con el fin de encontrar los procedimientos oacuteptimos para lograr los efectos deseados Este tipo de reglas que se origina por generalizacioacuten en la praacutectica tecnoloacutegica concreta y que se funda empiacutericamente en ella
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no tiene lugar en el enfoque que trata exclusivamente de la relacioacuten de presuposicioacuten (VEGA 1996 2000 2001a 2001b 2011)
La defensa del soporte desde abajo como segunda interpretacioacuten de la expresioacuten ldquoel mejor conocimiento disponiblerdquo puede llevarse a cabo argumentando a favor de una relativa independencia del caraacutecter episteacutemico de las tecnologiacuteas respecto de los conocimientos cientiacuteficos provenientes de teoriacuteas baacutesicas o aplicadas Esto supone argumentar que no todo el conocimiento tecnoloacutegico tiene su fuente en el conocimiento derivado de la aplicacioacuten de la ciencia En uacuteltima instancia el argumento a favor de esta clase de soporte es un argumento que intenta acotar una tradicioacuten que como ha sentildealado recientemente Vega (2002 2011) cuen-ta en sus filas con filoacutesofos importantes como Kant y Mill Los andamios sobre los que se asienta esta tradicioacuten podriacutean retratarse de la siguiente manera (a) las reglas tecnoloacutegicas son en cierto sentido conclusiones derivadas del conocimiento cientiacutefico de la naturaleza Desde esta pers-pectiva resultariacutea difiacutecil encontrar proposiciones tecnoloacutegicas que no es-tuviesen relacionadas con alguna disciplina cientiacutefica Entonces (b) tanto la posibilidad como la validez de la regla tecnoloacutegica se fundamentariacutean en el conocimiento de los nexos causales presentes en el mundo natural Claro estaacute a este conocimiento lo proveeriacutean las teoriacuteas de las ciencias naturales Asiacute las reglas tecnoloacutegicas prescribiriacutean las acciones respecti-vas en funcioacuten de proposiciones cientiacuteficas generadas por la ciencia Aho-ra bien si interpretaacutesemos que la validez de todas las reglas y actuaciones tecnoloacutegicas se aseguran de esta manera podriacuteamos afirmar en el plano epistemoloacutegico que el conocimiento empiacuterico natural es todo lo que hay dentro del conocimiento tecnoloacutegico Sin embargo el conocimiento tec-noloacutegico no se reduce al conocimiento cientiacutefico Por consiguiente existe una fuente alternativa para las reglas tecnoloacutegicas las praacutecticas tecnoloacute-gicas concretas y contingentes y en eacutestas la construccioacuten de modelos de simulacioacuten desempentildea un papel episteacutemico clave
Esto conduce en cualquier caso a abogar por la presencia conjunta de ambas fuentes episteacutemicas cuando se analizan las reglas tecnoloacutegicas desde la praxiologiacutea Asiacute si se tienen en cuenta las dos fuentes retratadas de las reglas tecnoloacutegicas eacutestas pueden asentarse fiablemente tanto en el conocimiento cientiacutefico de la realidad en la que se actuacutea asiacute como en el conocimiento tecnoloacutegico emergido de las praacutecticas tecnoloacutegicas par-
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ticulares contingentes y circunscriptas a problemas reales En definiti-va la existencia de estas dos fuentes indica ostensiblemente que hay que preservar tanto la relacioacuten de las reglas tecnoloacutegicas con los enunciados de leyes cientiacuteficas a traveacutes de los enunciados nomopragmaacuteticos como la relacioacuten de las reglas con las praacutecticas tecnoloacutegicas reales Lo cual condu-ce a aprehender adecuadamente la naturaleza de las relaciones y el modo propio de engarce entre la clase de las acciones tecnoloacutegicas y las reglas respectivas
Esta interpretacioacuten sobre la dimensioacuten epistemoloacutegica desde la praxiologiacutea como faacutecilmente se advierte promueve una interesante in-tuicioacuten filosoacutefica para elaborar una axiologiacutea propia de las acciones tec-noloacutegicas El contenido de esa intuicioacuten podriacutea formularse del siguiente modo los valores tecnoloacutegicos seriacutean valores que funcionan como pre-dicados de las reglas tecnoloacutegicas ndash esto es de las acciones tecnoloacutegicas prescritas por las reglas Asiacute los valores praxioloacutegicos baacutesicos predicados que recogeriacutean las lsquovirtudesrsquo de las acciones tecnoloacutegicas se refeririacutean a la validez de las reglas de accioacuten tecnoloacutegica Una valoracioacuten praxioloacutegica alta de las acciones tecnoloacutegicas dependeriacutea de que las reglas que las ri-gen estuvieran fundadas en el mejor conocimiento disponible donde esta expresioacuten es entendida en los dos sentidos mencionados maacutes arriba Las dos fuentes episteacutemicas referidas conocimiento cientiacutefico y conocimien-to de lo artificial o ingenieril seriacutean una pieza clave en la cuestioacuten de la validez de las reglas de accioacuten y sus correspondientes valores praxioloacutegi-cos baacutesicos 2
4 A modo de conclusioacuten
Una praacutectica tecnoloacutegica estaacute compuesta por sofisticados planes de accioacuten de transformacioacuten y control de la realidad reglas y normas que regulan la realizacioacuten de esas acciones medios tecnoloacutegicos (ie artefac-tos) que son resultados de praacutecticas tecnoloacutegicas anteriores habilidades
2 Por otra parte se realizariacutea en el plano de la gramaacutetica de la accioacuten tecnoloacutegica un movimiento anaacutelogo al que se produce en el anaacutelisis epistemoloacutegico de la naturaleza del conocimiento que acompantildea a la accioacuten tecnoloacutegica Asiacute como en este uacuteltimo caso el conocimiento tecnoloacutegico se comprende por referencia al saber praacutectico y al conocimiento cientiacutefico aplicado las reglas tecnoloacutegicas han de interpretarse en el contexto tanto del corpus de leyes cientiacuteficas bien esta-blecidas como de las praacutecticas tecnoloacutegicas que explotan las regularidades del mundo
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teacutecnicas y tecnoloacutegicas conocimientos propoacutesitos deseos concepciones sobre queacute es conceptualmente posible queacute es fiacutesicamente realizable queacute es tecnoloacutegicamente factible queacute es eacuteticamente legiacutetimo perseguir imaacute-genes de los desaciertos e imaacutegenes de los logros tecnoloacutegicos valores tecnoloacutegicos promovidos y desmerecidos siacutembolos relatos del futuro (a saber hacia doacutende se quiere ir) y relatos de lo que se huye (del pasado perseguidor) e identidades praacutecticas hibridizadas por la praacutectica tecno-loacutegica entre otros elementos Una praacutectica tecnoloacutegica humana determi-nada constituye un mundo donde nosotros los seres humanos actuamos y experimentamos con alguacuten sentido la vida Esta praacutectica corporiza una forma de vida que todos constituimos al transformar intencionalmente la realidad para imaginar desear y producir en ella lo que no hay
La praxiologiacutea es la clave del anaacutelisis de estas praacutecticas tecnoloacutegicas Por una parte nos permite diagnosticar lo que hay al interior de estas praacutec-ticas -responder la cuestioacuten ontoloacutegica rescatando la pluralidad de los pro-ductos artificiales por otra parte nos permite comprender las dos fuentes epistemoloacutegicas baacutesicas que guiacutean la praacutectica tecnoloacutegica como praacutectica de transformacioacuten y control del mundo Este asunto es especialmente relevan-te puesto que descarta la sugerencia muy difundida de tratar la tecnolo-giacutea seguacuten el modelo de la ciencia aplicada Entre otras cosas esta uacuteltima interpretacioacuten no considera la posibilidad de que exista un conocimiento tecnoloacutegico que organice las praacutecticas tecnoloacutegicas Por lo tanto descarta a priori que los contenidos no cientiacuteficos presentes en la praacutectica tecnoloacute-gica puedan adquirir ldquorasgos normativos en su fundamentacioacuten mediante la postulacioacuten de virtudes episteacutemicos-praacutecticasrdquo (VEGA 1996 p 57) Asiacute se dejan de lado erroacuteneamente las reglas que tiene su origen en la praacutectica tecnoloacutegica de transformacioacuten del mundo por oposicioacuten a aquellas que se derivan de teoriacuteas cientiacuteficas bien establecidas La praxiologiacutea supone un esfuerzo filosoacutefico significativo para recoger todas las dimensiones presen-tes en el fenoacutemeno tecnoloacutegico El secreto residen en mirar la tecnologiacutea desde una teoriacutea de la accioacuten humana
BibliografiacuteaARISTOacuteTELES (1930) The Works of Aristotle II Ross y Hon (eds y traductores) Oxford Oxford University Press
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La tecnologiacutea desde la praxiologiacutea ontologiacutea y epistemologiacutea de las praacutecticas tecnoloacutegicas
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Desenvolvimento teacutecnico utopia e seus desdobramentos eacuteticos
Gabriel Valim Alcoba Ruiz(UFABC)
A sobrevivecircncia e ascensatildeo da humanidade estaacute vinculada agrave sua ca-pacidade de controlar a natureza mediante o uso de ferramentas e apli-caccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico na resoluccedilatildeo de problemas praacuteticos O domiacutenio sobre as demais espeacutecies macroscoacutepicas e os avanccedilos no manejo das microscoacutepicas depende cada vez mais da continuidade das investiga-ccedilotildees cientiacuteficas e da cumulatividade do conhecimento proveniente dessas pesquisas O sucesso do conhecimento cientiacutefico em desenvolver novas teacutecnicas gradativamente passou a se converter na crenccedila de que todos os males humanos podem ser superados pelo domiacutenio da teacutecnica Nes-sa acepccedilatildeo a ciecircncia fogo de Prometeu seria a grande responsaacutevel pela posiccedilatildeo privilegiada da humanidade em relaccedilatildeo natildeo apenas agraves outras es-peacutecies mas tambeacutem em relaccedilatildeo aos fenocircmenos naturais de modo geral Mas assim como no mito grego natildeo estaria o ser humano ameaccedilado por sua proacutepria curiosidade e ambiccedilatildeo prestes a abrir a caixa de Pandora e trazer para si mesmo os males que o atormentaratildeo
O primeiro aspecto da produccedilatildeo da teacutecnica contemporacircnea eacute sua fusatildeo com a racionalidade econocircmica O sucesso pragmaacutetico da ciecircncia a tornou particularmente atrativa para o investimento de capitais A busca pelo lucro aliou a ciecircncia agrave forma de produccedilatildeo capitalista visando obter vantagens comparativas para as empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento Nesse novo modo de produccedilatildeo cientiacutefica como uma tendecircncia geral os grandes centros de pesquisa contemporacircneos natildeo po-dem mais ndash se eacute que de fato algum dia puderam ndash ser vistos como um mero exerciacutecio da curiosidade humana desinteressada mas respondem a interesses financeiros A figura do cientista que pesquisa de forma desin-teressada em sua casa utilizando-se de recursos proacuteprios e do oacutecio como possibilitador do exerciacutecio intelectual daacute lugar a outra figura o cientista integrante de um complexo industrial submetido a meacutetricas de avalia-
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 224-229 2017
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Desenvolvimento teacutecnico utopia e seus desdobramentos eacuteticos
ccedilatildeo e cada vez mais dependente de investimentos crescentes de recursos para suas pesquisas
Buscando maximizar seu lucro pessoal os agentes dessa nova for-ma de produccedilatildeo teacutecnico-cientiacutefica tiveram historicamente pouca preo-cupaccedilatildeo com os malefiacutecios que poderiam provocar ao ambiente em geral Um dos aspectos que contribuiacuteram para esse tipo de postura foi a visatildeo da natureza como inexauriacutevel Nessa compreensatildeo a accedilatildeo humana teria ape-nas efeitos local e temporalmente limitados natildeo sendo capaz de abalar de forma duradoura e significativa a homeostase natural A amplificaccedilatildeo da accedilatildeo humana causada pelo avanccedilo da teacutecnica poreacutem elevou de maneira significativa natildeo apenas a produtividade e capacidade transformadora em favor da vida humana mas tambeacutem o potencial destrutivo dos fatores necessaacuterios para a vida Da constataccedilatildeo da extinguibilidade dos recursos naturais surgem diversas respostas algumas das quais veremos a seguir
Uma das possiacuteveis visotildees mais sombria eacute da inevitabilidade da destruiccedilatildeo global pela busca do auto-interesse Nela os agentes todos buscando maximizar seus proacuteprios interesses levariam ao pior resulta-do possiacutevel para todos Um caso particular deste problema eacute conhecido na literatura como Trageacutedia dos Comuns popularizado pelo economista Hardin (1968) Em seu exemplo o autor supotildee um pasto comunal de faacutecil acesso que por ser muito feacutertil levaria todos os pastores a colocarem o maacuteximo de gado no terreno resultando na exaustatildeo dos recursos do pas-to e podemos concluir na morte do gado Nesse problema cabe observar que os valores dos agentes os levou a preferir o uso imediato do pasto aos valores de natildeo-uso como por exemplo o valor da existecircncia futura do pasto Ao mesmo tempo caso um uacutenico pastor decidisse por natildeo utilizar o pasto mas natildeo os demais a decisatildeo natildeo influenciaria a exaustatildeo do pasto Assim essa visatildeo nos evidencia o problema natildeo apenas de valoraccedilatildeo eacutetica dos agentes mas tambeacutem a limitaccedilatildeo do impacto da tomada de decisatildeo de um uacutenico agente sobre o resultado do agregado de agentes
Uma segunda visatildeo mais otimista posiciona os problemas ecoloacutegi-cos como problemas essencialmente de ordem teacutecnica que poderiam ser resolvidos pela manipulaccedilatildeo de fenocircmenos naturais e dos processos pro-dutivos Em nosso exemplo anterior o problema seria solucionado pela investigaccedilatildeo de novas formas que permitam uma maior produtividade do pasto para que esse comporte uma quantidade elevada de gado Ainda
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Gabriel Valim Alcoba Ruiz
que essa posiccedilatildeo possa ser defendida com o uso de exemplos histoacutericos eacute possiacutevel igualmente nos questionarmos se devemos esperar que todos os problemas sejam resolvidos pelo aprimoramento teacutecnico Nesse sentido podemos citar como exemplo notoacuterio o uso de energia nuclear e armaze-namento por tempo indefinido de seus rejeitos que nos traz desafios cuja soluccedilatildeo se encontra ainda apenas no terreno da especulaccedilatildeo Aleacutem des-se problema eacutetico e epistemoloacutegico da decisatildeo por seguir certo rumo de accedilatildeo para o qual natildeo somos capazes de prospectar com clareza uma saiacuteda satisfatoacuteria podemos acrescentar um problema socioloacutegico e econocircmico aceitar que certos problemas sejam em princiacutepio solucionaacuteveis natildeo im-plica acreditar que a comunidade de cientistas buscaraacute de fato soluccedilotildees Um dos fatores que podemos apontar eacute o de que a ciecircncia submetida agrave loacutegica econocircmica dependeraacute de uma projeccedilatildeo dos ganhos financeiros para investir no desenvolvimento de tais soluccedilotildees Ainda que o desenvol-vimento de teacutecnicas que permitam lidar com tais problemas ambientais represente uma oportunidade de prestaccedilatildeo de serviccedilos ambientais e con-sequente lucro para acionistas o custo e o risco financeiro de tais pesqui-sas podem levar tais empresas a investimentos mais conservadores que podem apresentar um lucro meacutedio mais elevado
Dos problemas identificados entre as duas visotildees buscarei agora esboccedilar algumas soluccedilotildees O problema mais imediatamente de interesse filosoacutefico talvez seja o dos valores eacuteticos no qual os indiviacuteduos satildeo leva-dos a buscar interesses proacuteprios que provocam a aniquilaccedilatildeo geral dos bens Cabe aqui resgatar Aristoacuteteles Na Eacutetica a Nicocircmaco o pensador nos lembra que a virtude eacute uma potecircncia humana mas que natildeo estaacute a princiacutepio plenamente desenvolvida Podemos pensar assim no papel da educaccedilatildeo como forma de desenvolvimento da virtude e assim em seu papel para a formaccedilatildeo de valores que permitam a muacutetua convivecircncia e o zelo pelas condiccedilotildees necessaacuterias para a continuidade da vida Natildeo basta poreacutem apenas garantir a continuidade da vida em seu aspecto puramen-te bioloacutegico O filoacutesofo Hans Jonas observa corretamente que devemos tambeacutem zelar pela dignidade da vida futura dignidade essa que pode-mos acrescentar torna-se condiccedilatildeo necessaacuteria para o desenvolvimento da virtude tambeacutem nas proacuteximas geraccedilotildees Observemos poreacutem que tal condiccedilatildeo natildeo se daacute como um estudo da essecircncia humana mas sim eacute cons-truiacuteda de forma existencial como uma autopoiesis motivo pelo qual natildeo
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Desenvolvimento teacutecnico utopia e seus desdobramentos eacuteticos
cabe agrave humanidade presente impor uma forma de vida especiacutefica mas permitir agraves geraccedilotildees futuras o desenvolvimento de uma vida digna Por isso podemos concordar com o autor alematildeo que natildeo cabe desenvolver uma utopia que justifique grandes sacrifiacutecios de geraccedilotildees em favor de um futuro distante mas que os ocircnus das empreitadas humanas devem tanto quanto possiacutevel ser distribuiacutedas entre as geraccedilotildees as quais devem con-tinuamente refletir acerca das condiccedilotildees das geraccedilotildees que as sucederatildeo
No acircmbito dos problemas ecoloacutegicos nossa soluccedilatildeo ao problema do potencial destrutivo da tecnologia se daacute pela promoccedilatildeo de alguns valores que hoje se consolidam nas anaacutelises de economia ambiental os valores de existecircncia e de legado dos bens ecoloacutegicos (cf MOTTA 1998) Isso implica cultivar socialmente a valorizaccedilatildeo da diversidade natural atribuindo va-lor agrave existecircncia das diversas espeacutecies e sensibilizar a respeito da impor-tacircncia de sua preservaccedilatildeo para que possa ser desfrutada pelas geraccedilotildees futuras Poderiacuteamos como um breve parecircnteses salientar que o cultivo e conservaccedilatildeo das artes eacute igualmente justificaacutevel por argumento anaacutelogo Em ambos os casos isso implica fomentar as geraccedilotildees futuras com pa-trimocircnios ecoloacutegicos e culturais diversificados as quais podem subsidiar as investigaccedilotildees futuras quer de acircmbito praacutetico quer de acircmbito teoacuterico onde se encontram tambeacutem as investigaccedilotildees pelas condiccedilotildees do desen-volvimento das potencialidades humanas
Finalmente a fusatildeo da produccedilatildeo cientiacutefica com a loacutegica econocircmica nos traz novos desafios epistemoloacutegicos Talvez o mais difiacutecil seja o surgi-mento da limitaccedilatildeo do escopo da ciecircncia agravequilo que possa trazer ganhos financeiros agraves instituiccedilotildees de fomento Natildeo rejeito aqui os avanccedilos incre-mentais e por vezes desruptivos da ciecircncia e teacutecnica fomentados por ma-trizes de produccedilatildeo capitalistas Todavia uma vez que a junccedilatildeo da ciecircncia agrave anaacutelise econocircmica se converte em uma limitaccedilatildeo epistecircmica limitando assim aquilo que podemos conhecer defendo aqui que a produccedilatildeo cientiacute-fica possa ser fomentada de maneira mista de forma a abranger projetos que ficariam marginalizados caso natildeo tivessem investimento puacuteblico O subsiacutedio puacuteblico agraves pesquisas deve aleacutem disso estimular o ethos da ciecircn-cia moderna desinteressada em busca da verdade e com contribuiccedilatildeo e verificaccedilatildeo por muacuteltiplos pesquisadores
Discutimos aqui a interface entre ciecircncia desenvolvimento teacutecnico economia e eacutetica A soluccedilatildeo para o problema da tecnologia e seu poten-
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Gabriel Valim Alcoba Ruiz
cial destrutivo vemos passa por uma reflexatildeo interdisciplinar e que alia diferentes aspectos da realidade humana Mesmo diante das dificuldades que um debate com tal complexidade natildeo devemos abandonar o diaacutelogo Cabe a noacutes refletir desde jaacute que futuro desejamos para a humanidade para que haja algum futuro
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Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
Lilian S Godoy Fonseca(UFVJMUFMG)
Introduccedilatildeo
A ideia de uma ldquocriacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnicardquo surgiu haacute algum tempo em uma conversa com o Prof Jelson Oliveira e inicialmente a pro-posta era a de escrevermos um ensaio a quatro matildeos Em funccedilatildeo da dis-tacircncia e das inuacutemeras atividades com que cada um de noacutes eacute envolvido natildeo foi possiacutevel ateacute o momento concretizar em conjunto o projeto Insti-gada poreacutem pela criaccedilatildeo do GT de Filosofia da Tecnologia e da Teacutecnica e pela ocasiatildeo do primeiro encontro do grupo no contexto do XVII Encontro da ANPOF decidi arriscar e apresentar um primeiro esboccedilo para talvez em momentos posteriores poder juntamente com o Jelson e outros inte-ressados aperfeiccediloar a concepccedilatildeo tornando-a mais consistente do ponto de vista teoacuterico e relevante do ponto de vista praacutetico
Esse artigo eacute portanto o resultado de uma reflexatildeo ainda incipiente e em processo e tem o objetivo de incitar uma reflexatildeo e dar iniacutecio a uma discussatildeo Ele estaacute dividido em dois momentos1 1) Das reflexotildees filosoacutefi-cas sobre a teacutecnica agrave reflexatildeo sobre a razatildeo teacutecnica e 2) Esboccedilo para uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
1) Das reflexotildees filosoacuteficas sobre a teacutecnica agrave reflexatildeo sobre a razatildeo teacutecnica
A teacutecnica sempre esteve presente na vida do homem mesmo nos tempos mais remotos Mas sabemos que a primeira abordagem filosoacutefica
1 O presente texto eacute o que foi apresentado no GT Filosofia e da Tecnologia e da Teacutecnica adaptado ao tempo para a exposiccedilatildeo sendo portanto uma versatildeo reduzida Oportunamente pretende-se publicar o texto completo com as trecircs partes previstas inicialmente a saber 1) Das reflexotildees filosoacuteficas sobre a teacutecnica agrave reflexatildeo sobre a razatildeo teacutecnica 2) A razatildeo teacutecnica como objeto da criacutetica e 3) Esboccedilo para uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 230-238 2017
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Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
conferida agrave teacutecnica eacute devida a Aristoacuteteles que compreendendo a Filosofia como a siacutentese de todo o saber humano racional a divide em trecircs aacutereas - se assim podemos dizer - cabe lembrar teoreacutetica praacutetica e poeacutetica Cada uma delas por sua vez teria suas proacuteprias divisotildees a teoreacutetica divide-se em fiacutesica matemaacutetica e filosofia primeira (metafiacutesica e teologia) a praacutetica em eacutetica e poliacutetica e a poeacutetica em esteacutetica e teacutecnica A teacutecnica eacute portanto na perspectiva aristoteacutelica uma subdivisatildeo da poeacutetica que por seu turno eacute compreendida como uma das trecircs aacutereas da Filosofia
Em sua ceacutelebre obra Eacutetica a Nicocircmaco o Estagirita menciona a teacutec-nica apresentando-a como umas das cinco virtudes essenciais para que o ser humano possa alcanccedilar a verdade Essas cinco virtudes satildeo a Episteacuteme ou o conhecimento verdadeiro que eacute imutaacutevel e passiacutevel de ser demons-trado e comunicado por meio do ensino a Phroneacutesis traduzida como prudecircncia que eacute a virtude praacutetica do bem agir o Nouacutes ou entendimento responsaacutevel pela capacidade humana de aprender os primeiros princiacute-pios do conhecimento verdadeiro a Sophia ou sabedoria que como nos lembra Juliaacuten Mariacuteas2 eacute ldquoepisteme kai noucircs ciecircncia e visatildeo visatildeo noeacutetica3 com o que se chega ao cume ao saber supremo ao saber por excelecircnciardquo e por fim a Teacutechne ou teacutecnica que Aristoacuteteles define como a virtude do ldquoreto saber fazerrdquo
Cabe assinalar poreacutem que o termo grego teacutechne eacute usado com ou-tros diferentes significados tais como arte habilidade periacutecia e profi-ciecircncia E que Aristoacuteteles natildeo reduz a teacutecnica agraves coisas que existem ou que possam vir existir seja por necessidade ou por natureza A teacutecnica eacute segundo ele uma sabedoria produtiva ou uma capacidade de produzir algo de maneira raciocinada Assim a teacutecnica natildeo pode ser compreendida como algo meramente mecacircnico jaacute que pressupotildee necessariamente o uso da capacidade intelectual Precisamente essa caracteriacutestica da teacutecni-ca tornaraacute possiacutevel falar mais adiante de uma razatildeo teacutecnica
Nos periacuteodos seguintes da Histoacuteria da Filosofia a questatildeo da teacutec-nica ficou agrave margem das reflexotildees principais dado que cada diferente contexto exigiu do olhar filosoacutefico outros focos como a questatildeo eacutetica no
2 Na Conferecircncia do curso intitulado ldquoLos estilos de la Filosofiacuteardquo Madrid 19992000 Disponiacutevel em httpwwwhottoposcomharvard3jmaristhtm
3 Poderiacuteamos dizer conforme as definiccedilotildees anteriores ldquociecircncia e entendimentordquo ou ainda ldquoco-nhecimento noeacuteticordquo
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Lilian S Godoy Fonseca
Periacuteodo Heleniacutestico e as questotildees religiosa e metafiacutesica no Periacuteodo Me-dieval No Periacuteodo Moderno com o advento da Ciecircncia Moderna a teacutecnica voltou agrave cena mas nesse momento ainda natildeo como tema relevante da reflexatildeo filosoacutefica mas como a aliada da ciecircncia que impulsionou as gran-des transformaccedilotildees que projetaram a humanidade no mundo atual
Assim somente no Periacuteodo Contemporacircneo4 a teacutecnica retorna efetivamente como tema de destaque da reflexatildeo filosoacutefica Nomes como Oswald Spengler (1880-1936) Ortega y Gasset (1883-1955) Martin Hei-degger (1889-1976) Herbert Marcuse (1898-1979) Jacques Ellul (1912-1994) Hans Jonas (1903-1993) Juumlrgen Habermas (1909-) Gilbert Simon-don (1924-1989) e mais recentemente Andrew Feenberg (1943-) satildeo apenas alguns certamente os principais entre aqueles que se ocuparam e estatildeo se ocupando de uma profunda reflexatildeo filosoacutefica sobre a teacutecnica em nossa civilizaccedilatildeo atual
A emergecircncia de toda essa reflexatildeo motivou inclusive o surgimen-to de um novo campo precisamente a Filosofia da Teacutecnica e da Tecnolo-gia ao qual nosso GT que fez sua estreia no XVII Encontro da ANPOF visa se dedicar
Todo esse esforccedilo para pensar a teacutecnica tem entretanto uma moti-vaccedilatildeo preocupante pois jaacute em 1931 em sua obra lapidar O Homem e a teacutecnica Spengler utiliza a expressatildeo ldquocultura Faacuteusticardquo (SPENGLER 1993 p 97) para se referir agrave atual civilizaccedilatildeo teacutecnica cuja origem re-monta a ldquotempos imemoriaisrdquo ldquoultrapassa o acircmbito da vida do ho-mem atinge a esfera da vida animalrdquo (SPENGLER 1993 p 39) e jaacute agrave sua eacutepoca e ainda mais em nossos dias tornou-se um problema de assombrosas proporccedilotildees Por isso Spengler no limiar da terceira deacutecada do seacuteculo passado declarava ldquoque agora nem as lsquoMatildeosrsquo nem os lsquoCeacuterebrosrsquo podem alterar em nada o desenvolvimento da teacutecnica mecanicista que tendo nascido por necessidade interior por neces-sidade da alma caminha para a sua plenitude para o seu teacuterminordquo (SPENGLER 1993 p 107)
De fato embora ele defina a teacutecnica como ldquotaacutetica vitalrdquo (SPENGLER 1993 p 33) mais adiante faz uma declaraccedilatildeo que num certo sentido ilustra e justifica essa reflexatildeo vale citar ldquodurante o segundo milecircnio da
4 Segundo O Spengler ldquoSomente no seacutec XIX surgiu o problema da teacutecnica e da sua relaccedilatildeo com a Cultura e a Histoacuteriardquo O Homem e a teacutecnica 1993 p 35
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Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
nossa era nas regiotildees do norte desenvolveu-se a cultura Faacuteustica que re-presenta o triunfo do pensamento puramente teacutecnico sobre os grandes problemasrdquo (SPENGLER 1993 p 97 Grifos nossos)
Portanto natildeo eacute soacute a teacutecnica em si que eacute alvo de preocupaccedilatildeo ou mes-mo de criacuteticas mas o fato de se ter produzido a partir dela esse ldquopensa-mento puramente teacutecnicordquo uma forma de agir e de pensar que reduz toda a percepccedilatildeo da realidade e dos problemas ao crivo da teacutecnica Logo embora a teacutecnica tenha surgido como forma de responder aos desafios da sobre-vivecircncia de vaacuterias espeacutecies entre as quais a humana paradoxalmente ela tem sido reconhecida como a origem de muitos dos problemas atuais Mas ainda assim eacute vista como a uacutenica via capaz de resolvecirc-los tornando-se portanto fonte mas tambeacutem uma espeacutecie de panaceia ou ldquoelixirrdquo capaz de trazer a cura para todos os males do mundo hodierno O que demonstra uma hipertrofia dessa razatildeo que se tornou puramente teacutecnica
Precisamente essa espeacutecie de ldquoinvasatildeo5rdquo de todos os setores e as-pectos da vida humana e natildeo humana pela racionalidade teacutecnica foi o que ensejou uma reflexatildeo criacutetica acerca da chamada razatildeo teacutecnica jaacute com lon-go percurso na tradiccedilatildeo filosoacutefica6
2) Esboccedilo para uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
Apoacutes as breves consideraccedilotildees anteriores torna-se mais plausiacutevel sustentar a necessidade de uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica que por ora pretende-se apenas esboccedilar
Tomando como inspiraccedilatildeo a Criacutetica da razatildeo pura de Imannuel Kant agrave qual nosso tiacutetulo faz expliacutecita alusatildeo nosso esboccedilo propotildee um percurso dividido em 3 partes levando em conta natildeo a divisatildeo da ldquoDou-trina transcendental dos elementosrdquo cuja Primeira Parte apresenta a Es-teacutetica transcendental dividida em duas seccedilotildees a primeira que trata ldquoDo espaccedilordquo e a segunda que trata ldquoDo tempordquo e sua Segunda Parte a ldquoLoacutegica transcendentalrdquo que apresenta duas grandes e importantes divisotildees a primeira que expotildee a ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo e a segunda a ldquoDialeacutetica transcendentalrdquo cada uma delas com suas respectivas subdivisotildees Mas precisamente a divisatildeo da ldquoDoutrina transcendental do meacutetodordquo com-
5 Que em termos habermasianos poderia ser descrita como a ldquocolonizaccedilatildeo do mundo da vidardquo6 Como jaacute anunciado no texto completo seraacute apresentada uma parte intermediaacuterias (entre as
aqui expostas) focalizando precisamente as principais criacuteticas elaboradas por filoacutesofos agrave razatildeo teacutecnica
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Lilian S Godoy Fonseca
posta em trecircs capiacutetulos o Capiacutetulo I que apresenta a ldquoDisciplina da razatildeo purardquo o Capiacutetulo II que apresenta o ldquoCacircnone da razatildeo purardquo e o Capiacutetulo III que apresenta a ldquoHistoacuteria da razatildeo purardquo
Quatro pontos cabem poreacutem esclarecer a) essa opccedilatildeo natildeo eacute ar-bitraacuteria mas baseada na seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoEntendo () por doutrina transcendental do meacutetodo a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees for-mais de um sistema completo da razatildeo purardquo (CrRPu p 587) b) busca-se aqui natildeo uma ldquodoutrina transcendental do meacutetodordquo mas um meacutetodo de base fenomenoloacutegica Pois nossa intenccedilatildeo natildeo eacute propor algo tatildeo sofisti-cado quanto ldquoum sistema completo da razatildeo purardquo c) O que se aplica ao nosso caso eacute o fato de essa parte buscar estabelecer ldquoa determinaccedilatildeo das condiccedilotildees formaisrdquo necessaacuterias aqui para a elaboraccedilatildeo dessa proposta d) Seraacute preciso fazer adaptaccedilotildees indispensaacuteveis agrave sua aplicaccedilatildeo ao objeto em foco De saiacuteda apontaremos duas
A primeira adaptaccedilatildeo exigida eacute quanto agrave ordem adotada Como satildeo trecircs ldquoetapasrdquo basicamente as extremidades seratildeo trocadas entre si e a intermediaacuteria permaneceraacute em seu lugar Desse modo Kant finaliza com a ldquoHistoacuteria da razatildeo purardquo declarando que
Este tiacutetulo encontra-se aqui colocado apenas para indicar uma lacu-na que se manteacutem no sistema e que futuramente deveraacute ser preen-chida Contentar-me-ei com lanccedilar uma raacutepida vista de olhos sobre o conjunto dos trabalhos realizados ateacute aqui pela razatildeo e que eacute cer-ta que me representam edifiacutecios mas apenas edifiacutecios em ruiacutenas (CrRPu p 683)
De fato essa eacute uma parte visivelmente inacabada que Kant apenas menciona ao final em poucas paacuteginas reconhecendo-a por isso como uma lacuna de seu sistema No nosso caso uma ldquoHistoacuteria da Razatildeo pura-mente teacutecnicardquo seraacute como de fato jaacute foi aqui nesse breve esboccedilo o ponto de partida que mereceraacute no futuro um desenvolvimento mais detalhado
A segunda adaptaccedilatildeo essencial refere-se agrave nomenclatura das duas outras partes Sustentando-se a inversatildeo proposta em que a etapa inter-mediaacuteria eacute mantida caberia lembrar que a segunda parte de Kant eacute por ele denominada de ldquoCacircnone da razatildeo purardquo que eacute definido do seguinte modo ldquoEntendo por cacircnone o conjunto dos princiacutepios a priori do uso le-giacutetimo de certas faculdades cognitivas em geralrdquo (CrRPu p 646)
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Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
No caso da criacutetica da razatildeo puramente teacutecnica no contexto em que estaacute sendo aqui pensada natildeo caberia falar de ldquoconjunto dos princiacutepios a priori do uso legiacutetimo de certas faculdades cognitivas em geralrdquo Por isso a adequaccedilatildeo que entatildeo se propotildee eacute no sentido de avaliar as circunstacircn-cias gerais (causas e consequecircncias) do uso da razatildeo puramente teacutecnica e os problemas a ele (uso) concernidos Motivo pelo qual essa etapa seria denominada de ldquoProblemaacutetica da razatildeo puramente teacutecnicardquo
Por fim considerando aquela que em Kant seria a primeira mas aqui constituiria a nossa terceira e uacuteltima parte que ele chamou vale lembrar de lsquoDisciplina da razatildeo purarsquo seria importante buscar a definiccedilatildeo que o filoacutesofo propotildee para o termo no seguinte trecho
Mas onde os limites do nosso conhecimento possiacutevel satildeo muito es-treitos grande a inclinaccedilatildeo para julgar a aparecircncia que se oferece muito enganadora e consideraacutevel o dano proveniente do erro o ca-raacutecter negativo de uma instruccedilatildeo que unicamente serve para nos preservar do erro tem ainda mais importacircncia que muito ensina-mento positivo pelo qual o nosso conhecimento poderia aumentar A coaccedilatildeo graccedilas agrave qual a tendecircncia permanente que nos leva a des-viar-nos de certas regras eacute limitada e finalmente extirpada chama-se disciplina Distingue-se da cultura que deve simplesmente propor-cionar uma aptidatildeo sem com isso destruir uma outra jaacute existente (CrRPu p 589)
O termo disciplina portanto eacute aqui empregado por Kant no sentido de uma ldquocoaccedilatildeordquo que limita e no extremo erradica essa tendecircncia cons-tante a nos desviar de certas regras Como no caso da razatildeo puramente teacutecnica eacute precisamente essa a parte mais necessaacuteria e por esse motivo que deve ser mais cuidadosamente pensada e meticulosamente conce-bida quer nos parecer que o termo lsquodisciplinarsquo embora possa ser com-preendido nesse sentido de coaccedilatildeo ressaltado por Kant deixa margem a ambiguidades quando pode ser entendido tambeacutem como ldquo5 aacuterea do conhecimento que eacute objeto de estudo ou de ensino escolar = CADEIRA ou mesmo 6 Instruccedilatildeo educaccedilatildeo ou ensinordquo 7
Desse modo ao inveacutes de propor uma ldquoDisciplina da Razatildeo puramente teacutecnicardquo embora concordando com Kant quanto ao seu objetivo julgamos
7 ldquodisciplinardquo in Dicionaacuterio Priberam da Liacutengua Portuguesa [em linha] 2008-2013 httpwwwpriberamptdlpodisciplina [consultado em 13-10-2016]
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Lilian S Godoy Fonseca
mais adequado sugerir uma ldquoDeocircntica da Razatildeo puramente teacutecnicardquo dentro da qual pode ser pensado todo o conjunto de questotildees de ordem normativa (eacutetica juriacutedica e ateacute moral) referentes agrave aplicaccedilatildeo da teacutecnica
Assim levando em conta essas adaptaccedilotildees a seguir apresenta-mos um quadro com as definiccedilotildees das partes da Doutrina transcenden-tal do meacutetodo elaboradas por Kant e aquelas do Meacutetodo sugerido por nossa proposta
Quadro sinoacuteptico e comparativo entre as duas CriacuteticasCriacutetica da razatildeo pura Criacutetica da razatildeo puramente teacutecnica
Doutrina transcendental do meacute-todo
Meacutetodo de base fenomenoloacutegica
1 Disciplina da razatildeo pura
A coaccedilatildeo que limitada e extirpa nossa tendecircncia per-manente de nos desviar de certas regras
1 Histoacuteria da razatildeo puramente teacutecnica
Retrospectiva do surgi-mento e da hipertrofia da razatildeo puramente teacutecnica
2 Cacircnone da razatildeo pura
Conjunto dos princiacutepios a priori do uso legiacutetimo de certas faculda-des cognitivas em geral
2 Problemaacutetica da razatildeo pura-mente teacutecnica
Avaliaccedilatildeo das circuns-tacircncias gerais do uso da razatildeo puramente teacutecnica e os problemas a ele (uso) concernidos
3 Histoacuteria da razatildeo pura
Consideraccedilatildeo dos trabalhos ateacute aqui rea-lizado pela razatildeo
3 Deocircntica da Razatildeo puramente teacutecnica
Conjunto de questotildees de ordem normativa concernentes agrave razatildeo puramente teacutecnica
Cabe destacar que o modelo acima proposto segue em linhas ge-rais aquele da abordagem meacutedica tatildeo caro agrave Filosofia desde Soacutecrates Assim o primeiro momento propotildee uma espeacutecie de ldquoanamneserdquo ou seja um resgate da Histoacuteria da razatildeo puramente teacutecnica indispensaacutevel para que no segundo momento seja feito o ldquodiagnoacutesticordquo isto eacute a avaliaccedilatildeo da
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Por uma criacutetica agrave razatildeo puramente teacutecnica
Problemaacutetica da razatildeo puramente teacutecnica para enfim no terceiro mo-mento ser possiacutevel um prognoacutestico ou ldquoterapecircuticardquo atraveacutes da Deocircntica da razatildeo puramente teacutecnica
Embora suspeitando das inuacutemeras dificuldades teoacutericas e praacuteticas da presente proposta dado o limite passamos a seguir agraves
Consideraccedilotildees ldquofinaisrdquo
Obviamente natildeo foi possiacutevel apresentar no curto tempo de uma comunicaccedilatildeo todas as mediaccedilotildees teoacutericas necessaacuterias para sustentar consistentemente uma formulaccedilatildeo como essa Por esse motivo cabem sinceras desculpas aos leitores pelo incipiente esboccedilo apresentado com o firme compromisso de numa publicaccedilatildeo posterior oferecer um texto um pouco mais completo
Contudo como foi dito jaacute no comeccedilo tratava-se mesmo de uma ten-tativa preliminar de suscitar um debate e mesmo criacuteticas que venham contribuir para fortalecer a proposta ou no pior dos casos apontar a sua inviabilidade
Razatildeo pela qual eacute preciso encerrar sem conclusotildees ou considera-ccedilotildees finais mas simplesmente com um convite para que todos os que se sentirem motivados faccedilam seus comentaacuterios e observaccedilotildees que seratildeo todos muito bem vindos
Agradeccedilo pela atenccedilatildeo e desde jaacute por todas as eventuais criacuteticas e contribuiccedilotildees
Referecircncias
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SPENGLER Oswald O Homem e a Teacutecnica Traduccedilatildeo do alematildeo de Joatildeo Botelho
238 AT
Lilian S Godoy Fonseca
Lisboa Guimaratildees Editores (1931) 1993
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AT 239
Convergecircncia tecnoloacutegica e design1
Jairo Dias Carvalho(UFU)
O tiacutetulo ldquoDesign e Convergecircncia Tecnoloacutegicardquo expressa uma pro-posta de pesquisa e intervenccedilatildeo para a Filosofia da Tecnologia no Brasil ldquoConvergecircncia Tecnoloacutegicardquo eacute o nome de uma narrativa que daacute sentido ao que ocorre hoje no acircmbito das agendas dos vaacuterios grupamentos de pesquisa de ponta dos grandes players tecnoloacutegicos globais Ela eacute uma metodologia de resoluccedilatildeo de problemas a partir da projetaccedilatildeo de disposi-tivos advindos da sinergia entre as Nanotecnologias as Biotecnologias as Tecnologias da Informaccedilatildeo e Comunicaccedilatildeo e as Ciecircncias Cognitivas Trata--se de um movimento de induccedilatildeo de interaccedilatildeo entre tecnologias com alta capacidade de potencializaccedilatildeo reciacuteproca para a resoluccedilatildeo de problemas para a produccedilatildeo de saltos tecnoloacutegicos qualitativos para a obtenccedilatildeo de um novo ciclo de acumulaccedilatildeo do Capital
As agendas de pesquisa que se formam em torno dessa metodolo-gia constituem estabelece de maneira geral uma polaridade em relaccedilatildeo aos seus objetivos uacuteltimos de um lado temos a perseguiccedilatildeo do aprimora-mento humano e de outro a constituiccedilatildeo do que podemos chamar de so-ciedade de conhecimento O aperfeiccediloamento do desempenho eacute um foco que aglutina inuacutemeros esforccedilos de pesquisa e ateacute mesmo uma corrente filosoacutefica que se autodenomina ldquoTranshumanistardquo O outro polo aglutina-dor pode ser definido pelo que podemos chamar de objetivos sociais A metodologia de convergir tecnologias matriciais e reciprocamente poten-ciadoras constitui um procedimento definidor da sociedade do amanhatilde Como seraacute que a Filosofia poderia participar desse processo
Eacute preciso construir uma pauta de pesquisa mais integrada para a Filosofia da Tecnologia no Brasil e um dos seus componentes passa pela criaccedilatildeo de um instrumental de estudo e anaacutelise dos designs dos objetos
1 Pesquisa financiada ndash FAPEMIG APQ 00297-14
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 239-247 2017
Jairo Dias Carvalho
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teacutecnicos advindos do processo de Convergecircncia Tecnoloacutegica Para que tecnologias possam convergir alguns requisitos satildeo necessaacuterios tem que haver interdisciplinaridade a constituiccedilatildeo de paradigmas intertecnoloacute-gicos que formulem linguagens operacionais comuns entre diferentes campos o uso de instrumentos e ferramentas de um domiacutenio tecnoloacutegico pelo outro a formulaccedilatildeo de agendas de pesquisa comuns e integradas e fundamentalmente como processo e resultado a projetaccedilatildeo de novos funcionamentos dos objetos teacutecnicos aptos a cumprir diferentes funcio-nalidades Este parece ser o sentido mais importante da Convergecircncia Os funcionamentos desenhados por determinada tecnologia como por exemplo dos objetos nano tecnoloacutegicos se conectam a funcionamentos desenhados por outros princiacutepios tecnoloacutegicos os funcionamentos dos objetos teacutecnicos advindos das tecnologias da informaccedilatildeo dando origem a novo campo do conhecimento a Nanorroboacutetica Os nanorrobocircs consti-tuem um novo design teacutecnico que adveacutem desse processo de convergecircncia tecnoloacutegica A questatildeo seria saber o que implica multidimensionalmente a concretizaccedilatildeo deste novo design
Design eacute o processo de concepccedilatildeo e formataccedilatildeo atual de um ob-jeto teacutecnico Eacute tanto o projeto quanto o desenho atual O desenho atual de um objeto sua configuraccedilatildeo eacute o resultado de um projeto Design tem dois sentidos Ele tem a ver com a atualizaccedilatildeo de uma figura ndash forma a partir de um planejamento ndash concepccedilatildeo de uma funcionalidade (finalida-de propoacutesito) e de um funcionamento operatoacuterio enquanto execuccedilatildeo de procedimentos para cumprir uma funccedilatildeo O Design de um objeto eacute tanto o projeto conceito plano para a soluccedilatildeo de um problema determinado quanto a atualizaccedilatildeo desse plano o que se chama de ldquoformataccedilatildeordquo ou ldquomoldagemrdquo Haacute diferentes metodologias de concepccedilatildeo e de realizaccedilatildeo de projetos de objetos teacutecnicos A tentativa de resoluccedilatildeo de um problema gera um projeto de um objeto e sua concretizaccedilatildeo ou desenho atual Dese-nhar projetar formatar e atualizar um objeto teacutecnico significa constituir um funcionamento e uma funcionalidade
Para Feenberg o Design eacute um ldquoprocesso consciente de moldagem (formataccedilatildeo) de um artefato para adaptaacute-lo a fins e ambientes especiacutefi-cos Trata-se de um processo pelo qual consideraccedilotildees sociais e teacutecnicas convergem para produzir dispositivos concretos (atualizados e realiza-dos) adequados a contextos especiacuteficosrdquo O Design de um objeto eacute seu pro-
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jeto ndash formataccedilatildeo ndash concretizaccedilatildeo (adequaccedilatildeo a um meio determinado e integraccedilatildeo interna) O Design de um objeto eacute uma atualizaccedilatildeo figural de um projeto que estabelece a configuraccedilatildeo material de um determinado funcionamento e funcionalidade O Design de um objeto eacute o projeto e con-figuraccedilatildeo atual de um funcionamento-funcionalidade
A dimensatildeo teacutecnica de um objeto reside na existecircncia nele de uma funcionalidade e um funcionamento Eacute teacutecnico o que funciona Toda rea-lidade teacutecnica implica um funcionamento projetado em um sistema dis-positivo ferramenta instrumento maacutequina para que possa executar de-terminadas funccedilotildees A tecnicidade de um objeto reside na presenccedila nele de esquemas operatoacuterios constituiacutedos a partir do conhecimento em geral da realidade para a realizaccedilatildeo de determinadas funccedilotildees Toda e qualquer funcionalidade depende de um funcionamento Eacute o modo como funciona algo que permite que cumpra determinada funccedilatildeo Haacute uma relaccedilatildeo de de-pendecircncia e determinaccedilatildeo entre a funccedilatildeo do objeto e a natureza do seu funcionamento A funcionalidade de algo estaacute determinada por um leque de funcionamentos determinados
Pode haver pluralidade de funcionamentos para uma e mesma fun-cionalidade e uma pluralidade de funcionalidades para um mesmo fun-cionamento Funcionamentos um pouco diferentes podem cumprir as mesmas funccedilotildees e um mesmo funcionamento pode cumprir diferentes funccedilotildees Um funcionamento pode executar diferentes funccedilotildees dentro de certo limiar e uma funccedilatildeo pode ser realizada a partir do limiar de outro funcionamento Determinada funccedilatildeo pode ser realizada por muacuteltiplos funcionamentos e um e mesmo funcionamento pode realizar diferentes funccedilotildees Uma funccedilatildeo pode ser executada por diferentes objetos ou funcio-namentos e um e mesmo objeto ou funcionamento pode executar muitas funccedilotildees diferentes Tudo isso dentro de certos limites Haacute sempre muacutel-tipla realizabilidade de funccedilotildees por meio de um mesmo funcionamento e realizabilidade de uma mesma funccedilatildeo por diferentes funcionamentos Diferentes funcionamentos ou complexos operacionais dentro de certa escala podem dar origem a funccedilotildees idecircnticas e um mesmo funcionamen-to pode dar origem a uma multiplicidade de funccedilotildees tambeacutem dentro de certa escala Mas natildeo haacute funcionalidade sem funcionamentos e esses defi-nem a dimensatildeo teacutecnica de um objeto
Haveraacute sempre pluralidade de Designs alternativos na origem dos objetos teacutecnicos Pode haver diferentes configuraccedilotildees ndash desenhos pos-
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siacuteveis de dispositivos tanto capazes de executarem as mesmas funccedilotildees quanto de executarem uma multiplicidade de funccedilotildees Haacute diversos in-teresses presentes entre os vaacuterios agentes envolvidos nos processos de projetaccedilatildeo que se apresentam em diferenccedilas sutis sobre quais funciona-mentos devem ser constituiacutedos para realizarem as funccedilotildees pretendidas Haacute sempre diversas soluccedilotildees para os problemas teacutecnicos e vaacuterias opccedilotildees viaacuteveis que competem no desenvolvimento de um objeto teacutecnico e que natildeo dependem apenas da eficiecircncia ou eficaacutecia do cumprimento de suas funccedilotildees mas de inuacutemeros fatores A formataccedilatildeo ndash desenho de um fun-cionamento-funcionalidade eacute sempre decisatildeo social A determinaccedilatildeo do conjunto de operaccedilotildees que seratildeo disponibilizadas e projetadas e depois atualizadas para realizarem determinadas funccedilotildees eacute uma decisatildeo social e teacutecnica As funcionalidades de um objeto satildeo determinadas socialmente assim como os funcionamentos determinados para o cumprimento da-quelas funccedilotildees A existecircncia de uma funcionalidade ndash funcionamento eacute socialmente determinado entre um conjunto de possiacuteveis
O uso e o design de determinada tecnologia possui implicaccedilotildees multidimensionais Adotar um objeto teacutecnico um programa de operaccedilotildees determinada significa imediatamente modificar um conjunto de relaccedilotildees sociais por exemplo Seria preciso estabelecer um quadro de variaacuteveis para podermos determinar os impactos da adoccedilatildeo de determinadas op-ccedilotildees operacionais O que propomos como agenda de pesquisa para a Fi-losofia da Tecnologia no Brasil eacute a anaacutelise dos Designs Tecnoloacutegicos de um conjunto de tecnologias que precisariacuteamos escolher e que teriam alto impacto multidimensional Trata-se de estudar a ldquorelaccedilatildeo de determi-naccedilatildeordquo que um objeto teacutecnico impotildee ao mundo quando passa a existir Quais determinaccedilotildees multifacetadas uma determinada tecnologia impotildee ao mundo quando passa a existir Para fazer isso seraacute necessaacuterio pen-sar o caraacuteter dos meios ndash funcionamentos desenhados a partir dos fins ou funcionalidades pretendidos Como eacute o funcionamento que determi-na a funcionalidade seraacute necessaacuterio compreendecirc-lo para ver menos os fins perseguidos que as ldquoconsequecircncias necessariamente implicadas pelo proacuteprio jogo dos meios empregadosrdquo
A anaacutelise do funcionamento das operaccedilotildees internas que realiza para atingir determinado fim eacute prioritaacuteria em relaccedilatildeo agrave anaacutelise das fun-ccedilotildees que um objeto realiza Em vez de fazer um juiacutezo moral sobre o uso eacute
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preciso ldquocomeccedilar a desmontar o mecanismordquo O funcionamento determi-na o uso e eacute ele que deve ser analisado Eacute preciso ldquover as armas estudar suas especificidades fazer-se portanto de certa maneira teacutecnicordquo Seraacute preciso ver os objetos estudar em cada seu modus operandi Mas trata--se tambeacutem de obter certo saber poliacutetico a partir deste conhecimento teacutecnico ldquoMais do que apreender o funcionamento do meio importa de-terminar com base em suas caracteriacutesticas proacuteprias quais seratildeo as suas implicaccedilotildees para a accedilatildeo de que eacute o meiordquo Os meios usados os objetos teacutecnicos satildeo sempre restritivos em si mesmos e a cada tipo de objeto e de meio satildeo associados conjuntos de ldquorestriccedilotildees especiacuteficasrdquo Um objeto teacutecnico natildeo implica apenas um determinado tipo de operaccedilatildeo no mundo mas determina uma forma de operaccedilatildeo Devemos indagar o que a escolha desses meios desses objetos teacutecnicos por si mesma tende a impor Eacute pre-ciso uma analiacutetica teacutecnica e poliacutetica dos objetos teacutecnicos
Propomos que devamos constituir uma teoria filosoacutefica do design de um objeto teacutecnico Ela consistiria em expor o que implica adotaacute-lo em procurar saber quais efeitos ele tende a produzir sobre seus usuaacuterios sobre aquilo ao qual visa operar e sobre o meio ou ambiente em geral Trata-se de ver a forma de relaccedilotildees que tal objeto sendo desenhado vai impor ao mundo Eacute preciso uma anaacutelise das ldquoimplicaccedilotildees tendenciais en-tremescladas que se delineiam como esboccedilos dinacircmicos mais do que se deduzem como resultados uniacutevocosrdquo Eacute preciso desmontar o mecanismo do objeto analisando estrategicamente as relaccedilotildees sociais que ele envol-ve Trata-se de estudar a ldquorelaccedilatildeo de determinaccedilatildeordquo multidimensional que um objeto teacutecnico impotildee ao mundo quando passa a existir
Existem escolhas e projetos estrateacutegicos que comandam as esco-lhas teacutecnicas e que por sua vez tambeacutem satildeo determinados por elas ldquoO meio mais seguro para garantir a perenidade de uma escolha estrateacutegica eacute optar por meios que a materializem a ponto de fazer dela em rigor a uacutenica opccedilatildeo praticaacutevelrdquo Por isso eacute que ao escolher um design as alternati-vas a ele satildeo esquecidas Eacute preciso fornecer instrumentos de anaacutelise para quem quiser se opor agrave poliacutetica que quer fazer existir um ou outro design teacutecnico como o uacutenico possiacutevel Tal seria nossa proposta de pesquisa para a Filosofia da Tecnologia
Os artefatos natildeo satildeo neutros e podem sofrer transformaccedilotildees O De-sign de um objeto deve poder ser objeto de consideraccedilatildeo pela sociedade
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em geral Funcionamentos e funcionalidades expressam ou traduzem va-lores Todas as tecnologias incorporam ldquocontextos mais amplos de neces-sidade humanas e ambientaisrdquo em suas estruturas Talvez seja o papel da Filosofia traduzir valores em conceitos teacutecnicos Quais valores estatildeo im-plicados nos diferentes funcionamentos ndash funcionalidades concretizados
Trata-se de explicitar os diferentes valores embutidos nos objeto e talvez a formulaccedilatildeo de outros e sua interpretaccedilatildeo em termos de esque-mas teacutecnicos conjuntamente com os ldquoperitosrdquo Funcionamentos e fun-cionalidades sempre expressam ou traduzem valores Para intervirmos nesse processo seraacute necessaacuterio pensar valores em termos da tecnicidade ndash operacionalidade e funcionamento dos objetos teacutecnicos
Esta proposta implica a participaccedilatildeo nas especificaccedilotildees e formula-ccedilotildees dos projetos dos objetos teacutecnicos e a configuraccedilatildeo de equipes inter-disciplinares Implica tambeacutem a formaccedilatildeo de competecircncias tecnoloacutegicas precisas como por exemplo a capacidade de compreensatildeo do funciona-mento dos objetos teacutecnicos em geral e de como se estruturam Aleacutem disso seraacute precisa a construccedilatildeo de espaccedilos para se ouvir as necessidades que impelem as configuraccedilotildees dos objetos teacutecnicos Haacute sempre escolhas entre designs diferentes e a sociedade deve participar da escolha entre alterna-tivas de projetaccedilatildeo
A Convergecircncia Tecnoloacutegica produz novas relaccedilotildees de funciona-mento entre e de diferentes dispositivos Trata-se da integraccedilatildeo de di-ferentes funcionamentos e a constituiccedilatildeo de novos Devemos falar em tecnologias convergentes quando dispositivos satildeo projetados integrando multifuncionalidades e funcionamentos advindos daquelas quatro matri-zes tecnoloacutegicas Por exemplo muito se fala em nanorrobocircs com inteli-gecircncia artificial e que teriam poder para manipular genes A prospecccedilatildeo de um dispositivo como este potildee novos desafios para a reflexatildeo filosoacutefica
Imagine um exeacutercito de robocircs com proporccedilotildees microscoacutepicas en-trando em seu corpo para atacar ceacutelulas canceriacutegenas destruir bacteacuterias e viacuterus inserir medicamentos em ceacutelulas especiacuteficas desobstruir arteacuterias e realizar cirurgias minimamente invasivas A nanotecnologia ndash aacuterea que desenvolve partiacuteculas e dispositivos que medem poucos nanocircmetros (milioneacutesimos de miliacutemetro) ndash aplicada agrave medicina ou nanomedicina como eacute chamada eacute a grande aposta da ciecircncia para os diagnoacutesticos e tratamentos de diversas doenccedilas dentro de 5 a 20 anos lsquoA era da nanomedicina iraacute nos per-
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mitir editar o corpo humano e seu genoma assim como um pro-cessador de texto nos possibilita escrever um documento (httpcuriosidades-mundocuriosoblogspotcombr201006nanorobo-ticahtmlview=classic acessado 17112016)
Os nanorrobocircs fazem parte dos novos designs da Convergecircncia E estes designs precisam ser analisados Faccedilamos uma anaacutelise de um orga-nograma de um time de pesquisa ligado ao Instituto de Conceitos Avanccedila-dos da NASA ele pode ser encontrado no seguinte endereccedilo httpwwwniacusraedufileslibrarymeetingsannualoct04914Mavroidispdf
A agenda de pesquisa tem como objeto as ldquoNano bio maacutequinas para aplicaccedilotildees espaciaisrdquo O time tem uma estrutura com formaccedilotildees comple-mentares e competecircncias articuladas A pesquisa Sistemas Bio Nano para aplicaccedilotildees espaciais eacute composto de uma equipe de design estrateacutegico e cru-cial arquitetura e design um grupo computacional de modelizaccedilatildeo mole-cular de modelizaccedilatildeo de sistema para o espaccedilo de engenharia de proteiacutena de design de bio sistemas de experimentaccedilatildeo e etc Os grupos possuem competecircncias ligadas agrave Convergecircncia Tecnoloacutegica A pesquisa possui os seguintes objetivos 1- Estudar e identificar computacionalmente e expe-rimentalmente configuraccedilotildees de proteiacutenas e de DNA para serem usadas como componentes para a montagem de bio nano maacutequinas 2- projetar dois dispositivos de macroescala com importante aplicaccedilatildeo espacial para serem usados como uma rede de exploraccedilatildeo espacial e para bio nano en-grenagens Os nanorrobocircs constituiriam pequenas estruturas capazes de agir como atuadores sensores sinalizadores processadores de informa-ccedilatildeo de serem inteligentes de manipulaccedilatildeo e de comportamento de enxame em nanoescala Os bionanorrobocircs satildeo nanorrobocircs projetados e inspirados pelo aproveitamento de propriedades e materiais bioloacutegicos Seus designs e funcionalidades satildeo inspirados natildeo somente pela natureza mas tambeacutem por maacutequinas As propriedades bioloacutegicas como autorreplicaccedilatildeo cura adaptabilidade e outras satildeo desejaacuteveis de serem projetadas
A cooperaccedilatildeo transdisciplinar acontece por meio de ferramentas computacionais experimentais por um campo de conhecimento que inclui as leis da natureza e por uma loacutegica e filosofia de design e por um conhe-cimento sistecircmico entre a biologia molecular bioquiacutemica neurociecircncia Eacute montado um quadro de equivalecircncias e analogias A montagem e estabi-lizaccedilatildeo de bio componentes estaacuteveis funcionais Haacute uma metodologia de
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montagem de bio componentes ldquoPor isso estudaremos vaacuterios microrganis-mos que existem em condiccedilotildees extremas para o isolamento de vaacuterios bio-componentes para serem usados como sensores atuadores processamen-to de informaccedilotildeesrdquo Estes microrganismos satildeo chamados de extremoacutefilos
O Extremoacutefilo eacute o organismo que consegue sobreviver ou ateacute neces-sita fisicamente de condiccedilotildees geoquiacutemicas extremas prejudiciais e hostis agrave maioria das outras formas de vida na Terra Descobriu-se a alguns anos que a vida microscoacutepica tem uma incriacutevel capacidade de sobrevivecircncia em ambientes extremos ndash nichos extraordinariamente quentes ou aacuteci-dos como lugares inoacutespitos para organismos complexos O extremoacutefilo eacute amigo do extremo Eles vivem em ambientes inoacutespitos onde outros seres vivos natildeo teriam hipoacutetese de manter-se A palavra extremoacutefilo foi usada pela primeira vez por MacElroy em 1974 para classificar os microrganis-mos que se reproduzem e proliferam ldquoem ambientes extremos e inoacutespi-tosrdquo Os ambientes extremos em que vivem satildeo bastante diversificados podemos encontrar extremoacutefilos que vivem e se reproduzem sobre ca-madas de gelo e que se desenvolvem em ambientes frios (psicroacutefilos) em situaccedilotildees de hipersalinidade (haloacutefilos) em ambientes de elevada tem-peratura como as fontes termais (termoacutefilos) outros que suportam va-lores extremos de pH muito aacutecidos (acidoacutefilos) ou baacutesicos (alcaloacutefilos) Outro aspecto interessante encontrado nestes organismos eacute a adaptaccedilatildeo do seu metabolismo e de sua maquinaria molecular para sobreviver a es-tes ambientes A temperatura eacute um dos principais fatores ambientais que influenciam o desenvolvimento de bacteacuterias Existe a bacteacuteria Thermus aquaticus e a archaea Pyrococcus furiosus que vivem em altas temperatu-ras Organismos como a bacteacuteria Deinococcus radiodurans extremamente resistentes agrave radiaccedilatildeo vaacutecuo frio e aacutecido satildeo chamados de poliextremoacutefi-los Haacute tambeacutem organismos que vivem em situaccedilotildees de extrema salinida-de Em nosso mundo a capacidade de adaptaccedilatildeo a alteraccedilotildees ambientais eacute uma das caracteriacutesticas mais impressionantes da vida A adaptaccedilatildeo de organismos em condiccedilotildees ambientais extremas obrigou-os a desenvolver componentes celulares e estrateacutegias bioquiacutemicas para esse efeito
As perguntas a serem feitas seriam Quais seriam as consequecircncias multidimensionais da criaccedilatildeo de nanorrobocircs que possuiriam funciona-mentos de extremoacutefilos E funcionando como extremoacutefilos ldquointeligen-tesrdquo Quais seriam os riscos de concretizarmos tal funcionamento Have-
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ria alternativas de funcionamentos para se atingir os fins desejados Tais perguntas fazem parte de um instrumental de anaacutelise que estamos desen-volvendo na pesquisa financiada pela FAPEMIG acerca dos paradigmas bioacutetico e ciberneacutetico enquanto conjunto de formulaccedilotildees que informam a pesquisa orientada pela Convergecircncia Tecnoloacutegica
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O design e a natureza dual dos artefatostecnoloacutegicos
Gilmar Evandro Szczepanik(UNICENTRO)
A natureza do programa
O programa internacional de pesquisa The Dual Nature of Techni-cal Artifacts desponta no meio acadecircmico como uma das principais re-ferecircncias no que se refere a discussatildeo filosoacutefica sobre a tecnologia A sua importacircncia vai muito aleacutem do prestiacutegio internacional obtido e deve-se acima de tudo a forma de lidar com agraves questotildees filosoacuteficas levantadas pela tecnologia como tambeacutem a coesatildeo da equipe que desenvolveu e ain-da desenvolve frutiacuteferas investigaccedilotildees sobre o tema O projeto inicial foi mantido pela Netherlands Organisation of Scientific Research (NWO) e foi conduzido pelo departamento de filosofia da Universidade de Tecnologia de Delft em colaboraccedilatildeo com o departamento de filosofia da Universida-de de Buffalo Instituto de Tecnologia de Massachusetts Virginia Tech e Universidade de Tecnologia de Eindhoven Fizeram parte deste progra-ma de pesquisa autores como Jeroen de Ridder Randall Dipert Maarten Franssen Wybo Houkes Peter Kroes Anthonie Meijers Marcel Scheele Pieter Vermaas Keess Dorst Louis Bucciarelli Davis Baird Ann Johnson Joe Pitt e Sven Ove Hansson Todos esses membros tecircm vaacuterios artigos e livros publicados a respeito desse assunto
De certo modo todo programa de investigaccedilatildeo fundamenta-se na seguinte questatildeo qual eacute a natureza dos artefatos teacutecnicos Para tal ques-tionamento foi fornecida aparentemente uma resposta simples a saber uma natureza dual (fiacutesica e funcional) mas com desdobramentos interes-santiacutessimos Praticamente nenhum assunto em filosofia da tecnologia foi estudado tatildeo sistematicamente nas uacuteltimas deacutecadas quanto agrave natureza dos artefatos tecnoloacutegicos Os membros do programa The Dual Nature of Technical Artifacts sustentam que um artefato tecnoloacutegico eacute ao mesmo tempo uma construccedilatildeo fiacutesica e uma construccedilatildeo social possuindo assim uma natureza dual (KROES e MEIJERS 2002 pp 4-8)
Carvalho J D Correia A Simon S Tossato C R Filosofia da natureza da ciecircncia da tecnologia e da teacutecnica Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF ANPOF p 248-262 2017
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O design e a natureza dual dos artefatos tecnoloacutegicos
Conforme Kroes
Um objeto tecnoloacutegico como um aparelho de televisatildeo ou uma chave de fenda tem uma natureza dual Por um lado ele eacute um objeto fiacutesico com uma estrutura fiacutesica especiacutefica (propriedades fiacutesicas) e o com-portamento do mesmo eacute governado pelas leis da natureza Por outro lado um aspecto essencial de um objeto tecnoloacutegico eacute sua funccedilatildeo Um objeto tecnoloacutegico tem uma funccedilatildeo que dentro de um contexto da accedilatildeo humana pode ser usada como um meio para um fim Um ob-jeto fiacutesico eacute portador de uma funccedilatildeo e eacute em virtude de sua funccedilatildeo que um objeto eacute um objeto tecnoloacutegico Usualmente um objeto tecnoloacutegi-co envolve a materializaccedilatildeo de um design humano e eacute feito especial-mente para realizar certa funccedilatildeo A funccedilatildeo e o suporte fiacutesico juntos constituem um objeto tecnoloacutegico A funccedilatildeo natildeo pode ser isolada de um contexto de uso de um objeto tecnoloacutegico ela eacute definida dentro do contexto Como o contexto eacute um contexto de accedilatildeo noacutes chamare-mos a funccedilatildeo uma construccedilatildeo humana (ou social) Assim um objeto tecnoloacutegico eacute uma construccedilatildeo fiacutesica tanto quanto uma construccedilatildeo humanosocial (KROES 1998 p 1 grifos do autor)
De acordo com essa abordagem o conhecimento da natureza dos ar-tefatos tecnoloacutegicos natildeo eacute adquirido exclusivamente atraveacutes da descriccedilatildeo de suas propriedades fiacutesicas e estruturais pois estas natildeo contemplam de forma satisfatoacuteria os elementos funcionais De um modo muito semelhan-te a linguagem da fiacutesica moderna natildeo pode ser utilizada automaticamente para explicar a atividade tecnoloacutegica pois ela natildeo tem lugar para funccedilotildees (projetadas) objetivos ou intenccedilotildees Mais amplamente a linguagem cien-tiacutefica em geral natildeo consegue explicar de forma satisfatoacuteria a natureza dos artefatos tecnoloacutegicos Do mesmo modo a tentativa de compreender os ar-tefatos teacutecnicos somente a partir de seus usos eou de suas funcionalidades parece deixar de lado toda a estrutura fiacutesica e material que possibilita com-preender os procedimentos internos que satildeo ativados para a realizaccedilatildeo de determinada atividade Nesse sentido pelo fato dos artefatos teacutecnicos esta-rem sujeitos agraves leis da natureza pode-se dizer que a ciecircncia se faz presente nas aacutereas tecnoloacutegicas mas a tecnologia natildeo se reduz meramente agrave ciecircncia aplicada pois haacute elementos caracteriacutesticos das aacutereas tecnoloacutegicas que natildeo satildeo adequadamente capturados pelas aacutereas cientiacuteficas1
1 Sobre a irredutibilidade da tecnologia em relaccedilatildeo agrave ciecircncia ver Szczepanik (2015)