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UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE DIREITO
PEDRO CRESPO CORRÊA
O FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Niterói
2016
UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE DIREITO
PEDRO CRESPO CORRÊA
O FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel
em Direito.
Orientador: Prof. Manoel Martins
Niterói
2016
O FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Pedro Crespo Corrêa1
RESUMO
O trabalho aborda o fenômeno da constitucionalização do direito, dando
ênfase aos seus reflexos no âmbito do Direito Administrativo. O tema insere-se
no contexto do Estado Democrático de Direito e no advento da Carta de 1988,
que representou, no Brasil, uma nova visão acerca do Direito Constitucional,
reconhecendo-se a sua força de influenciar as mudanças na realidade social.
O primeiro capítulo propõe um panorama geral sobre o objeto de estudo,
traçando um breve visão histórica acerca das transformações causadas pelo 2º
Pós-Guerra, considerado um ponto de inflexão no Direito Constitucional. De
uma posição minimalista, com base no positivismo jurídico, passou-se a uma
perspectiva reforçada das Cartas, a partir do reconhecimento de sua força
vinculante e de seu caráter central para a interpretação jurídica.
No segundo tópico, o fenômeno é abordado do ponto de vista do Direito
Administrativo, no qual se assistiu a uma revisão geral dos dogmas tradicionais
e ao surgimento de novas temáticas que aproximaram este ramo jurídico do
apoio à efetividade dos direitos fundamentais. Alguns temas são colocados em
relevo, como o dever de proporcionalidade, a processualidade administrativa e
a participação.
Por fim, no terceiro e último segmento, dá-se ênfase à análise sobre a
emergência do princípio da juridicidade, como reforço dogmático ao princípio
da legalidade, além do instituto da discricionariedade vinculada. Essa segunda,
1 Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense.
no Estado Democrático, passa a estar ligada às escolhas constitucionais, sob
pena de se converter em arbitrariedade.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalização; Direito Administrativo; Paradigmas.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a partir da promulgação da Constituição de 1988, consagrou-
se o Estado Democrático de Direito, inaugurando-se um modelo estatal limitado
pelo direito e com o poder político exercido pelos cidadãos. As ideias básicas
de direitos fundamentais e de democracia tornam-se expressões dos valores
basilares da sociedade, aparecendo, simultaneamente, como fundamentos de
legitimidade e elementos estruturantes neste novo pacto social.
Atualmente, discute-se a constitucionalização do Direito Administrativo, a
qual se caracteriza pela submissão da interpretação dos institutos deste ramo
do direito aos valores constitucionais. Em outras palavras, é a compreensão da
força normativa dos princípios presentes na Carta Magna e de sua capacidade
de direcionar a exegese dos fenômenos jurídico-administrativos.
O objetivo do presente estudo é o de apontar a relevância do processo
de constitucionalização do Direito Administrativo e seus efeitos, abordando os
novos paradigmas que se surgiram nesta área do conhecimento jurídico, como
o dever de proporcionalidade, o princípio da juridicidade e a discricionariedade
administrativa vinculada. Nas argutas palavras de Paulo Bonavides, "se o velho
Estado de Direito do liberalismo fazia o culto da lei, o novo Estado de Direito do
nosso tempo, faz o culto da Constituição"2.
1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Durante séculos ao longo da História, prevaleceu no continente europeu
e nos demais países que sofreram sua influência direta, uma cultura jurídica
2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 344.
essencialmente legalista, que tratava as normas editadas pelos Parlamentos
como fonte principal do Direito, e não atribuía força normativa às Constituições.
Estas eram vistas basicamente como programas políticos que deveriam
inspirar a atuação do legislador, mas que não podiam ser invocados perante o
Poder Judiciário pelos cidadãos, na defesa de seus interesses. De outro lado,
os direitos fundamentais valiam apenas na medida em que fossem protegidos
pelas leis, e não envolviam, em geral, garantias contra o arbítrio ou descaso
das maiorias políticas instaladas nos Parlamentos (MOREIRA NETO, 2006).
Esta ordem de pensamento começou a sofrer mudanças, na Alemanha e
na Itália, e algumas décadas mais tarde, na Espanha e em Portugal, a partir de
1945, com o fim da 2ª Guerra. Nestes países, a percepção coletiva de que as
maiorias políticas podem vir a perpetrar as maiores barbáries, como o nazismo
alemão, levou as novas constituições a fortalecerem a jurisdição constitucional,
instituindo mecanismos de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face
do legislador, vinculado o Estado em maior grau que nos modelos anteriores.
Tal transformação do eixo do constitucionalismo, que ainda encontra-se
em curso, é marcada pela transição da modernidade para a pós-modernidade,
sendo produzida por grandes mudanças na História pelo impacto das grandes
calamidades, que assolaram o mundo todo por quase todo o século XX, como
o horror das duas Guerras Mundiais e da Guerra Fria, de 1914 até 1991, com a
dissolução formal da União Soviética.
Essa foi a época de acirramento da ideia de soberania dos Estados, em
que se assistiu a deturpação dos interesses estatais e a subversão dos valores
vagarosamente assentados pelo humanismo renascentista, com o aviltamento
da vida e dignidade humanas, a pretexto de uma suposta superioridade dos
interesses do Estado sobre os das pessoas, para a satisfação dos quais foram
brutalmente ceifadas milhões de vidas.
Deu-se, portanto, esta nova visão do Direito como uma justa reação dos
povos que mais sofreram os efeitos da antigo modelo estatocêntrico, do qual se
seguiu a mutação constitucional mais importante ocorrida desde 1787, quando
foi proclamada a Carta pioneira dos Estados Unidos, partindo dos exemplos da
Constituição da Itália de 1947 e da Lei Fundamental da Alemanha de 1949.
Com efeito, aponta-se como antecedentes o movimento de aproximação
entre constitucionalismo e democracia, a força normativa das Constituições e a
difusão da jurisdição constitucional. É certo que o percurso não se desenvolveu
de maneira simultânea e uniforme em todos os sistemas jurídicos, sem prejuízo
do mapeamento de suas origens (BARROSO, 2011).
No tocante à Inglaterra, os conceitos não se aplicam. Embora tenha sido
precursor do modelo de Estado Liberal, enquanto limitação do poder absoluto e
afirmação do rule of law, falta-lhe uma constituição escrita e rígida, elemento
que é pressuposto da constitucionalização do direito. Acrescente-se a este fato,
a inexistência do controle de constitucionalidade e, mais propriamente, de uma
jurisdição constitucional no sistema inglês. Isto é, no modelo britânico vigora a
supremacia do Parlamento, e não da Constituição.
No que concerne aos Estados Unido, a situação é oposta. País berço do
constitucionalismo escrito e do controle de constitucionalidade, a constituição
americana teve, desde o seu advento no ano de 1787, o caráter de juridicidade,
passível de aplicação direta e imediata pelo Poder Judiciário.
De fato, a normatividade ampla, bem como a judicialização das questões
constitucionais têm base doutrinária em precedente firmado no julgamento do
caso Marbury vs. Madison pela Suprema Corte. Por esta razão, a interpretação
de todo o direito posto à luz da Carta é característica histórica da experiência
americana, e não uma singularidade contemporânea naquele país.
A par da peculiaridade desses dois países, há razoável consenso de que
o marco inicial do processo de constitucionalização do direito foi estabelecido
na Alemanha, sob o regime da Lei Fundamental de 1949. Naquela ocasião, o
Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de
sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham
uma outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores.
O novo entendimento judicial era o de que o sistema jurídico deveria
proteger determinados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito
que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da
sociedade na sua satisfação. As normas de índole constitucional condicionam a
interpretação de todos os ramos do direito, público ou privado, e vinculam os
Poderes. O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth.
A partir dele, o Tribunal Constitucional Alemão, baseando-se no catálogo
de direitos fundamentais da Constituição, promoveu uma verdadeira revolução
de idéias, especialmente no Direito Civil. Ao longo dos anos, a Corte invalidou
dispositivos do BGB, impôs a interpretação de suas normas de acordo com a
Constituição e determinou a elaboração de novas leis.
Na Itália, a Constituição entrou em vigor no ano de 1948. O processo de
constitucionalização do direito, todavia, iniciou-se apenas na década de 1960,
consumando-se nos anos 70. A Corte Constitucional italiana somente veio a se
instalar em 1956, sendo que o controle de constitucionalidade foi exercido, até
então, pela jurisdição ordinária, que não lhe deu vitalidade.
Assim, pelos primeiros anos de vigência, a Carta italiana e os direitos
fundamentais nela previstos não repercutiam na aplicação do direito ordinário.
Apenas com a instalação da Corte Maior, as normas constitucionais de direitos
fundamentais passaram a ser diretamente aplicáveis, sem intermediação do
legislador. Esta desenvolveu diversas técnicas de decisão, tendo enfrentado a
arraigada resistência das instâncias ordinárias.
Da mesma maneira como na Alemanha, a influência do fenômeno da
constitucionalização do direito e da própria Corte Constitucional se manifestou
em decisões de inconstitucionalidade, em convocações à atuação do legislador
e na reinterpretação das normas infraconstitucionais em vigor.
Sob esta nova perspectiva, a concepção de Constituição, no continente
europeu, aproximou-se daquela existente nos Estados Unidos, onde, desde os
primórdios do constitucionalismo, mormente após o julgamento do famoso caso
Marbury versus Madison, entende-se que a Carta Política é uma norma jurídica
autêntica, que limita o exercício dos Poderes constituídos, podendo justificar a
invalidação de leis e o controle de atos administrativos.
Tem-se, então, que os anos que seguiram ao fim da 2ª Guerra Mundial
ficaram marcados não só pelo fim de regimes autoritários, mas, principalmente,
pelo surgimento do chamado Estado Constitucional. Neste momento, os textos
constitucionais, em uma reviravolta do Direito em nível global, passam a ocupar
o centro dos ordenamentos jurídicos, pautando e legitimando a aplicação dos
demais ramos que gravitam ao seu redor. A lei deixa, hodiernamente, de
ocupar o ponto mais nobre da ordem jurídica para dar lugar à Constituição.
Certo é que esse modelo de constitucionalismo substituiu o paradigma então
vigente, passando a vigorar o Estado Democrático de Direito. Nesse sistema de
organização política, consolida-se a idéia de supremacia da Constituição. Além
disso, os direitos fundamentais passam a ter eficácia plena e irradiante, sendo
o Judiciário aquele que concede a palavra final sobre a própria interpretação
constitucional. O ordenamento jurídico unifica-se não apenas hierarquicamente,
mas também no sentido material e valorativo (SARMENTO, 2004).
Este processo, decorrente da redefinição do lugar das Cartas Magnas
na ordem jurídica, desencadeou uma série de profundas transformações,
inclusive o movimento denominado de constitucionalização do direito. Este se
expressa, basicamente, de duas formas: o acolhimento pelas Constituições de
institutos e regras antes relegadas ao campo infraconstitucional; e a releitura
dos institutos previstos na legislação por meio dos princípios fundamentais.
Na primeira dimensão, o constituinte originário alberga normas jurídicas
destinadas a proteger institutos dotados de grande relevância para o interesse
público. Particularmente, as normas de direitos fundamentais previstas no art.
5º, da Constituição Federal. Além da proteção desses institutos jurídicos, esse
fenômeno manifesta-se também pelo acolhimento de regras tipicamente legais,
tal como se dá, por exemplo, pela previsão da impenhorabilidade da pequena
propriedade rural (art. 5°, XXVI, CF) e da dissolução do casamento por meio do
divórcio (art. 226, § 6º, CF).
Entretanto, o mais relevante aspecto da constitucionalização consiste
na releitura de toda a ordem infraconstitucional à luz da Constituição. O Direito
Civil, o Direito Penal ou Administrativo sofrem intensas mutações em seus mais
elementares institutos e categorias jurídicas, os quais são remodelados pela
doutrina, pela jurisprudência e pelo legislador ordinário com vistas a adequá-los
à Constituição, em especial, ao princípio da dignidade humana.
No Brasil, a Carta Política de 1988 teve a virtude suprema de simbolizar
a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a
consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do país.
Por força dela, todos os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram
aspectos seus, de maior ou menor relevância, tratados na Constituição.
Em verdade, a idéia de constitucionalização do direito está associada a
um efeito expansivo das normas constitucionais, as quais têm o seu conteúdo
material e axiológico se irradiando, com força normativa, por todo o sistema
jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos
princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido
de todas as normas do direito infraconstitucional (MORAES, 2009).
Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três
Poderes, notadamente nas suas relações com os particulares e também nas
relações entre particulares. Quanto ao Poder Legislativo, a constitucionalização
limita sua discricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das
leis em geral e impõe-lhe determinados deveres de atuação para realização de
direitos e programas constitucionais.
No tocante à Administração Pública, além de limitar a discricionariedade
e impor a ela deveres de atuação, ainda fornece fundamento de validade para
a prática de atos de aplicação direta da Constituição, independentemente da
interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário, este serve de
parâmetro para o controle de constitucionalidade e condiciona a interpretação
de todas as normas do sistema.
Para os particulares , estabelece limitações à sua autonomia da vontade,
em domínios como a liberdade de contratar ou o uso da propriedade privada,
subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais.
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em
si, mas também um modo de interpretar todos os demais ramos do direito. Este
fenômeno é identificado como filtragem constitucional e consiste em que toda a
ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo
a realizar os valores nela consagrados.
À luz dessa premissa, toda interpretação jurídica é também interpretação
constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação
direta ou indireta da Lei Maior. Isto é, aplica-se a Carta diretamente, quando
uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto, ou indiretamente,
quando se fundar em norma infraconstitucional (BARROSO, 2011).
Nesta última hipótese, o intérprete deve verificar se a regra é compatível
com a Constituição, afastando-a em caso de vislumbrar uma desconformidade.
Tal operação está sempre presente no raciocínio do operador do direito, ainda
que não seja por ele explicitada. Além disso, ao aplicar a norma, o intérprete
deve orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.
Em resumo, a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de
onde irradia a sua força normativa, dotada de supremacia formal e material.
Funciona não só como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional,
mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.
2 A PERSONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
Do mesmo modo como ocorreu com outros ramos jurídicos, é possível
dizer que a marcha do Direito Administrativo reflete a transição do autoritarismo
para a democracia, a partir da consolidação do constitucionalismo. Passa-se ao
modelo de maior controle da atividade administrativa do Estado, em que ganha
relevo a constatação de que nenhum poder político pode ser legitimado sem
respeito à soberania popular e aos direitos fundamentais.
Como já enunciado, o Estado Democrático de Direito caracteriza-se não
só pela supremacia da Carta Maior e incidência do princípio da legalidade, mas
pelo respeito aos direitos fundamentais e pela soberania popular. Também não
deixa de envolver o reconhecimento da condição do cidadão como sujeito de
direito, com a realização plena da dignidade da pessoa humana.
Acontece que o instrumental teórico do Direito Administrativo se reporta,
essencialmente, ao século XIX, como se vê nos conceitos de Estado de Direito,
legalidade, discricionariedade administrativa e poder de polícia. A organização
do aparato administrativo se modela a partir de concepções napoleônicas, que
traduzem uma rígida hierarquia de feição militar (JUSTEN FILHO, 2010).
Obviamente, com a evolução social e política que se sucedeu no mundo,
radicais transformações se deram nas instituições e nas concepções vigentes.
O conteúdo da Constituição foi impregnado por valores democráticos, o que se
afirmou com ainda maior relevância no Brasil, a partir de 1988. Desse modo, é
imperiosa uma releitura deste ramo do Direito à luz de novos paradigmas.
Com efeito, essas modificações não ingressam de modo imediato e em
termos integrais no Direito Administrativo. Em diversos temas, o conteúdo e as
interpretações deste ramo permaneceram vinculados a uma realidade social e
política que há muito não mais existem. Assim, é necessário constitucionalizar
o Direito Administrativo, elevando-o ao nível das instituições constitucionais.
Trata-se de impregnar a atividade administrativa com o espírito da Carta
Magna, com vistas a propiciar a realização efetiva dos direitos fundamentais e
dos valores ali consagrados. A transformação concreta da realidade social e a
adequação das instituições ao projeto desenhado pela constituição dependem,
primordialmente, do desenvolvimento de intervenções estatais democráticas.
A supremacia da Constituição não pode mais representar mero discurso
político, devendo constituir o núcleo concreto e real da atividade administrativa.
Para tanto, é crucial a rejeição do enfoque tradicional, que inviabiliza o controle
dos atos administrativos por meio de soluções de pouca legitimidade. Dogmas
devem ser relidos, restringindo-se à dimensão compatível com a Lei Maior.
No Brasil, em especial, é imperioso destacar a necessidade de revisão
do Direito Administrativo, que ainda encontra-se impregnado de concepções
não democráticas, herdadas do passado. Isto porque a Constituição de 1988
coroou um demorado processo de aperfeiçoamento democrático, consagrando
um Estado Social e Democrático de Direito.
Apesar disto, a atividade administrativa no país continua a refletir ideais
de mera personalização de poder, em que o governante pretende imprimir sua
vontade pessoal como critério de validade de atos e invocar projetos individuais
como fundamento de legitimação para a dominação exercida. Para muitos, esta
é a face patrimonialista do Estado brasileiro, que precisa incorporar uma visão
constitucionalizante, revisando o regime jurídico-administrativo.
Partindo-se dessa necessidade, chega-se a se falar atualmente em uma
verdadeira personalização do Direito Administrativo. Ora, a pessoa, a dignidade
humana e os direitos fundamentais foram assumidos como valores supremos
da Carta Política de 1988. Em períodos anteriores, concepções neste sentido
jamais foram acompanhadas de efeito concreto, que se prolongasse para além
do discurso eleitoral no país.
A disciplina constitucional impõe o reconhecimento no sentido de que a
Administração Pública não é tutelada em si mesma. A democracia e o respeito
aos direitos fundamentais são finalidades norteadoras da atividade estatal, de
modo que a Administração deve se guiar pela realização de tais valores. Não
se admite que os titulares do poder político legitimem suas decisões invocando
a conveniência do interesse público em detrimento de direitos individuais.
Neste contexto, é usada pela doutrina a expressão Direito Administrativo
pós-moderno, indicando a necessidade de tomar em vista as alterações sociais
e políticas atuais. Cuida-se de admitir a impossibilidade de se compreender a
realidade contemporânea com olhos de cem ou duzentos anos atrás, quando
fórmulas teóricas tentavam explicar o Estado e o Direito daquela época.
Ou seja, o Direito, ao refletir as vicissitudes e características do universo
político, exige do seu doutrinador a atualização de suas propostas, sob pena de
revoltar-se contra os próprios fatos, expondo à sociedade em geral um quadro
que já deixou de existir, ante a evolução civilizatória.
Impõe, também, que as novas necessidades sociais sejam identificadas
e expostas, especialmente para que o poder público neutralize os excessos e
se valha de seu poder como instrumento de controle e adequação da atuação
privada. O Direito Administrativo, no contexto da pós-modernidade, envolve a
convocação do Estado para a defesa dos valores essenciais e a repressão de
abusos propiciados pelas mais diversas formas de concentração de poder.
O núcleo essencial do regime jurídico-administrativo não mais reside na
concepção clássica de interesse público, muitas vezes desvirtuada por noções
meramente personalistas ou estatocêntricas. Na verdade, o seu cerne se dá na
promoção dos direitos fundamentais indisponíveis. O poder público é investido
do dever de promover tais direitos quando for inviável sua concretização pelos
particulares, segundo o regime de direito privado.
Esta orientação coaduna-se com o entendimento prevalecente no Direito
Constitucional, que reconhece que todas as posições jurídicas são delimitadas
e ordenadas conforme os direitos fundamentais. Nenhuma faculdade, proibição
ou comando jurídico pode ser interpretado de forma dissociada de tais direitos
previstos na Constituição da República (MEDAUAR, 2003).
Tal se dá em razão da ordem jurídica pátria consagrar e proteger uma
pluralidade de direitos, decorrendo a impossibilidade de se adotar uma solução
predeterminada e abstrata para eventuais conflitos, como poderia se pensar a
partir da ideia de interesse público. O processo de concretização de direitos, a
partir da análise de caso, conduz a prevalência de um interesse em jogo, sem
que se possa adotar solução pura e simples de sobreposição de um deles.
O critério da indisponibilidade do interesse público apresenta reduzida
utilidade, uma vez que não há interesse único a ser reputado como supremo no
atual contexto constitucional. Além disto, ele não permite solucionar de modo
satisfatório os conflitos, nem fornece fundamento consistente para as decisões
administrativas. Depende-se sempre de uma ponderação entre princípios, a fim
de se aferir a prevalência de um direito sobre outro.
O resultado prático da adoção de tal critério é a atribuição ao governante
de uma margem de autonomia indeterminada e contrária à ordem democrática
para impor suas escolhas individuais. Ou seja, a autoridade acaba por escolher
a solução que melhor lhe beneficie, justificando-a pela expressão lacônica de
prevalência do interesse público. Claramente, tal modelo é incompatível com a
Constituição e com a concepção de Estado Democrático de Direito.
A solução de prestígio ao interesse público é tão perigosa à democracia
quanto todas as fórmulas semelhantes adotadas em regimes totalitários. Não
por outra razão, os regimes democráticos atuais vão além da ideia de interesse
público, que se mantém como norteador das escolhas, mas reconhecendo-se a
existência de critérios de outra natureza que se impõem como parâmetro de
controle das decisões administrativas (FREITAS, 2014).
Pelo exposto até aqui, é conveniente lembrar expressão consagrada na
doutrina estrangeira de que o Direito Administrativo representa a concretização
do Direito Constitucional. O primeiro seria, então, o detalhamento do segundo,
regulando minúcias, a organização e o funcionamento dos poderes do Estado.
Este adágio ilustra a subordinação do Direito Administrativo aos ditames da Lei
Maior, sendo certo que os dois ramos encontram-se intimamente interligados.
Após concepção da Administração detentora do monopólio do interesse
público, emerge entendimento de que esta deve compartilhar tal atribuição com
a sociedade. Isto porque já não é o Estado que assume o controle e o perfil do
que se deva entender por interesse público, mas são as pessoas que indicam a
política a desenvolver e estabelecem a ordem das prioridades coletivas. Diante
disto, fala-se atualmente mais em dever de proporcionalidade da Administração
em relação aos diversos interesses da sociedade do que em um supremacia, a
priori, do interesse público (BINENBOJM, 2014).
Sem dúvidas, as mudanças do quadro institucional e científico do Direito
Administrativo não exaurem as consequências da revisão doutrinária levada a
efeito na dogmática clássica. Esta propicia, da mesma forma, o surgimento de
novos tópicos ou novos focos de interesse, ressaltando itens até então pouco
estudados pelos autores. A própria atuação da Administração Pública, ao longo
do tempo, levou à preocupação com aspectos novos da temática originária.
Na atual reflexão, uma das maiores atenções passou às relações entre a
Administração e os administrados. Este novo ângulo não se refere a um vínculo
específico do indivíduo com o Estado, referindo-se ao comportamento geral da
Administração em relação aos cidadãos e grupos da sociedade. Tal tópico se
justifica, entre outras causas, pela tradição administrativa de comportamento
fechado e refratário ao contraditório e pela visão do indivíduo como súdito.
No intuito de alterar essa perspectiva, vem se direcionando o foco para o
estudo das relações Administração-administrado, que também é item crucial no
tema da democracia administrativa, ou no aspecto não conflitual das relações
entre o Estado e o indivíduo. Alguns tópicos atuais mantêm vínculos fortes com
essa preocupação, como é o caso do processo administrativo, da participação
e da transparência na Administração Pública (MIRAGEM, 2013).
O tema do processo administrativo não se inclui nas matrizes elaboradas
do Direito Administrativo no início do século XIX, entendida a processualidade,
à época, como limitada ao âmbito judicial. Apenas aos poucos o entendimento
majoritário vai se alterando, quando restou assentada a extensão processual a
outras atuações estatais. Hodiernamente, processo é conceito que transcende
o direito processual, sendo instrumento de legítimo exercício de poder.
Admitida a processualidade, passou-se ao problema da denominação de
processo ou procedimento no âmbito administrativo, sendo certo, todavia, que
a Constituição de 1988 adotou a primeira das expressões. Deixando de lado a
controvérsia doutrinária, entende-se o processo como procedimento realizado
mediante a relação entre seus sujeitos, estando presente o contraditório.
Pouco a pouco, o processo administrativo passa a ser aceito como meio
de atendimento a requisitos de validade do ato administrativo, além de propiciar
o conhecimento do que ocorre antes que o ato faça repercutir os seus efeitos
sobre os indivíduos, permitindo verificar como se realiza a tomada de decisões
administrativas. Esta mudança reflete a funcionalização do ato administrativo,
compreendido não mais como episódio isolado de decisão.
Na Administração Pública pós-moderna, inserida na sociedade e Estado
caracterizados pela complexidade e multiplicidade de interesses envolvidos, o
procedimento também é meio para que os diversos pleitos aflorem antes da
tomada de decisões, permitindo o confronto objetivo e até a coexistência de
interesses. Da mesma forma, aprofunda-se o controle dos indivíduos e grupos
sobre a atividade estatal, aumento a legitimidade das intervenções públicas.
O conjunto dos aspectos mencionados induz à ideia de uma democracia
pelo procedimento, ao lado e complementar da democracia representativa e da
democracia resultante de mecanismos descentralizadores, e permite vislumbrar
o processo como ferramenta jurídica idônea na disciplina das relações entre os
governantes e os cidadãos, detentores legítimos do poder popular.
Na mesma linha, a presença dos indivíduos, das formações sociais e de
interesses coletivos no interior da Administração, sob o nome de participação,
constitui uma das tendências do Direito Administrativo atual. Esta se apresenta
como expressão e efeito da moderna ideia da relação Estado e sociedade, em
que se nota não rigorosa separação, nem fusão, mas recíproca coordenação.
Vincula-se ao pluralismo, incluindo-se entre os vários meios capazes de
alterar o modelo de atuação dos complexos burocráticos estatais, junto com a
simplificação, a descentralização, o incentivo à colaboração e a coexistência
pacífica entre o regime privado e o público. Elabora-se, assim, novo paradigma
em relação ao antigo, no qual dominava a centralização dos poderes.
Ocorre ruptura na imagem clássica de dualidade entre poder público e
sociedade e decréscimo da oposição entre autoridade e liberdade. Nessa nova
ordem, os cidadãos não mais aceitam a condição de sujeitos passivos, pedindo
mais consenso e participação nas questões públicas. Ressalte-se as tentativas
de fazer coincidir a realidade e as decisões administrativas, a fim de se obter
mais facilmente a adesão dos administrados (LEAL, 2006).
Neste contexto, diversos mecanismos participativos foram incorporados
pela Carta de 1988 e aprofundados em diversos diplomas, podendo ser citados
os conselhos, as audiências e consultas públicas, o orçamento participativo,
debates públicos, o direito de petição e as parcerias da iniciativa privada com o
Estado, seja por meio de contratos, termos ou acordos.
Por fim, associado ao tema da democracia administrativa, encontra-se o
tema da transparência, também entendido como publicidade da atuação estatal
ou visibilidade do exercício do poder político no contexto democrático.
A partir do término da 2ª Guerra Mundial, surge o interesse em se alterar
a tradição do secreto e do invisível, predominante na atividade administrativa,
mesmo em Estados considerados democráticos. Tal característica passa a ser
entendida como contrária à democracia, sendo certo que só a publicidade dos
atos estatais poderia garantir efetivamente os direitos dos cidadãos.
Com efeito, apenas pela transparência da gestão pública é assegurado o
conjunto de condições para a legalidade objetiva, pois se atribui à população o
direito de conhecer o modo como a Administração Pública atua e toma suas
decisões, possibilitando o controle permanente sobre as suas atuações.
A Constituição brasileira insere-se na tendência à publicidade ampla da
Administração. Entre os princípios norteadores da atividade administrativa, em
todos os setores, inclui-se o da publicidade. Este abrange todas as atividades
estatais, não só sob o aspecto da divulgação oficial de atos, como também no
sentido de propiciar conhecimento acerca da conduta interna dos agentes.
Outros preceitos constitucionais reforçam a concepção de transparência,
como o direito reconhecido a todas as pessoas de receber dos órgãos públicos
informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo, e o instituto do
habeas data, enquanto instrumento jurisdicional de garantia de dados pessoais
constantes de registros de órgãos públicos (MARTINS JÚNIOR, 2010).
A verdade é que a transparência administrativa tornou-se uma das ideias
de fundo das reformas promovidas na Administração Pública, incluído o Brasil.
Atualmente, a regra é o livre acesso às informações e documentos de natureza
pública, além da ampla publicidade da gestão pública fiscal e orçamentária, das
licitações e das contratações realizadas pelos entes políticos.
Como se pode ver, o fenômeno da constitucionalização do Direito é e foi
sentido pelo Direito Administrativo de forma peculiar, promovendo uma série de
transformações de seus institutos a fim de adequá-los ao projeto constitucional.
O ser humano é levado ao centro do ordenamento jurídico e o poder público
passa a ter o dever de garantir a efetivação dos direitos fundamentais, tudo isto
a partir de uma Administração Pública justa e democrática.
3 NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO PÓS-MODERNO
O debate sobre a constitucionalização do Direito Administrativo poderia
resultar em um sem número de tópicos referentes à atualização de princípios e
institutos deste ramo jurídico. Até aqui, foram ressaltados alguns desses novos
paradigmas, quais sejam, o dever de proporcionalidade, a processualidade, a
participação, a transparência, entre outros.
Neste último capítulo, pretende-se aprofundar a análise sobre o princípio
da juridicidade, como substituto pós-moderno do princípio da legalidade estrita,
e a discricionariedade administrativa vinculada, como nova face da reserva de
mérito da Administração no contexto do constitucionalismo democrático.
A crise da lei, hoje, é um fenômeno quase tão universal quanto a própria
proclamação do princípio da legalidade como grande instrumento de regulação
da vida nas sociedades modernas. Estruturalmente, a crise da lei confunde-se
com a crise da representação política, expressada pela queda do prestígio dos
parlamentos. Não mais se cultua a lei como reflexo da vontade geral, nem mais
se a tem como principal padrão de comportamento da vida pública.
A promessa da modernidade de racionalização do mundo, não realizada
completamente, decorre exatamente do fracasso da lei formal como projeto de
regulação jurídica e política. Tal fenômeno se observa em diversos países, em
especial daqueles ligados a tradição romano-germânica, e seus efeitos podem
ser observados em diversas searas da vida em sociedade.
Especial ênfase deve-se dar sobre as repercussões da crise da lei sobre
o princípio da vinculação administrativa à legalidade, entendido classicamente
como vinculação positiva à lei, e das transformações ocorridas sob a égide do
Estado Democrático, no contexto de respeito aos direitos fundamentais.
A lei, no pensamento liberal iluminista, era entendida como um produto
da razão, emanada dos representantes da sociedade e capaz de regular todo e
qualquer assunto relevante ao Estado, constituindo-se na mais importante fonte
do direito, principalmente na Europa, onde o constitucionalismo do pós-guerra
demorou mais para se consolidar no cenário jurídico.
Naquele momento, desenvolvia-se um positivismo legalista que conduziu
a uma quase divinização da lei, não havendo quaisquer limites para a atuação
do legislador, enquanto os juízes e administradores eram meros repetidores do
texto legal. A função administrativa, neste ambiente, era resumida pela máxima
secular de que administrar é aplicar a lei de ofício (BINENBOJM, 2014).
De fato, o legicentrismo significou a centralidade das leis formais, sendo
que o século XIX representou a era das grandes codificações, com a edição de
monumentos legislativos com milhares de artigos regulando minuciosamente
as relações jurídicas entre os cidadãos. No ápice, chegou-se a crer no dogma
da completude do código e na sua capacidade para prever soluções de todos
os problemas sociais.
Esta visão liberal sucumbiu nos últimos séculos. Enquanto manifestação
da vontade geral, a lei deixou de conter a solução para as grandes questões do
Estado e dos indivíduos. Com efeito, a lei não foi sequer capaz de atender às
demandas de que ela própria poderia tratar, sendo ainda mais ineficiente para
suprir os desejos lançados no contexto do Estado Social.
Diversas razões podem sem apontadas para a eclosão dessa crise. Uma
primeira é a inflação legislativa típica dos Estados contemporâneos. O excesso
de leis fez com que esvaziassem o seu sentido de respeito, evidenciando-se a
falácia do mito de completude do ordenamento jurídico. Uma segunda é o fato
de que nem sempre o texto legal está de acordo com aquilo que se entende
como justo, evidência histórica do século XX.
Uma terceira é a de que o constitucionalismo sagrou-se vitorioso ante o
colapso do legalismo, passando a ser a mais importante forma de manifestação
da vontade popular. A lei perde importância diante do largo desenvolvimento do
controle de constitucionalidade e da emergência dos princípios constitucionais
como normas vinculantes. Uma quarta decorre da deslegalização, enquanto a
criação de uma série de atos normativos infraconstitucionais capazes de, por
si, servirem de fundamento à atuação administrativa (BAPTISTA, 2003).
A solução para a crise da lei que vem sendo apontada pela doutrina está
na substituição do fundamento da atividade da Administração pelos princípios e
regras inseridos no texto constitucional, especialmente aqueles que consagram
os direitos fundamentais. Certamente, permitir que a Administração paute-se
pela normatividade constitucional pode atuar como mecanismo de redução do
déficit de operatividade do princípio da legalidade.
Daí decorre o denominado princípio da juridicidade, típico do século XXI,
que confere ao administrador público, como parâmetro de atuação, não apenas
a lei, mas também a própria Constituição, com todas suas normas e princípios,
subvertendo o dogma convencional sobre o tema.
O fundamento deste princípio pode ser extraído de dois outros princípios
constitucionais, a saber, o princípio da supremacia da constituição, que impõe
a diferenciação hierárquica entre os princípios e regras de índole constitucional
e os que não estão nesta categoria. E também o princípio da efetividade da
constituição, que exige a concretização do texto constitucional, ou seja, a sua
realização no mundo dos fatos.
Evidentemente, o princípio da legalidade não encontra-se simplesmente
ultrapassado, já que a lei segue como instrumento de controle administrativo,
mas o reconhecimento da sua incapacidade impõe sua imediata releitura. A
legalidade pura e simples retrata conceito jurídico oitocentista, que já não serve
mais para explicar a intensa e complexa função administrativa.
A primeira vantagem da adoção da juridicidade cuida-se exatamente de
se poder pautar a ação administrativa por um critério efetivo, e não meramente
fantasioso. A subsunção da atividade administrativa em toda a sua extensão à
lei simplesmente não ocorre no mundo dos fatos, como reclama o princípio da
legalidade. Isto porque as demandas que recaem sobre o Estado atual estão
muito além da capacidade normativa do legislador ordinário.
Em segundo lugar, a adoção da juridicidade consiste no fornecimento de
um novo parâmetro de legitimidade material para a Administração Pública, que
poderá ser aplicado em conjunto com os parâmetros procedimentais. A Carta
Magna pode exercer a necessária junção entre a participação e o controle de
conteúdo, conferindo legitimidade e justiça às decisões administrativas.
O princípio da juridicidade permite que a Administração negue vigência à
lei inconstitucional, já que toda aplicação do direito envolve, como pressuposto
lógico, um juízo de compatibilidade entre a norma e o texto constitucional. Daí
se dizer que toda interpretação é uma interpretação conforme a Constituição.
Em outras palavras, é admitida atividades administrativas contra legem, desde
que fundadas em norma constitucional (MEDAUAR, 2003).
Além disto, há possibilidade de exercício de atividades da Administração
praeter legem, quando não houver lei permissiva, mediante vinculação direta à
Lei Maior, bem como podem ser utilizados métodos e técnicas de interpretação
tipicamente constitucionais, como a ponderação de interesses para a resolução
de problemas administrativos.
Com efeito, a defesa do princípio da juridicidade parte do pressuposto de
que é inadmissível tornar o administrador refém de metodologias anacrônicas,
incapazes de atender às necessidades para as quais deveria servir, ou de uma
constitucionalização deficiente, que consagra os direitos sem dar ao indivíduo
os meios necessários ao seu exercício.
Parte-se, agora, para o exame da discricionariedade administrativa sob a
égide do Estado Democrático de Direito. O tema envolve o complexo meandro
das escolhas da Administração Pública e parece haver sinalização de mudança
doutrinária de suas bases nas últimas décadas, com o fito de atualizá-lo à nova
roupagem constitucional.
De acordo com aquilo que já foi discutido, a obra revolucionária francesa
visou edificar uma Administração racional, uniforme e coerente, formulando os
princípios da filosofia política que permaneceram incólumes até pouco tempo: o
primado da lei, a separação de poderes, o liberalismo e a igualdade formal.
O governo das leis seria o grande instrumento e meio para se alcançar a
ordem e a justiça na sociedade. Em vista disto, sustentava-se que todas as
carências humanas deveriam ser supridas pelo contido nos textos legais, e que
a liberdade consistia no direito a fazer tudo que as leis permitiam.
O iluminismo, como sabido, defendeu a ideia de que deveria ser possível
estabelecer uma clareza e uma segurança jurídica jurídicas absolutas por meio
de normas rigorosamente elaboradas e, especialmente, assegurar a garantia
de uma univocidade incondicional a todas as decisões judiciais e a todos os
atos administrativos (GUERRA, 2008).
Nesta fase, pouco espaço havia para o Poder Executivo, que limitava-se
a faculdade de vetar os projetos legislativos. À Administração Pública, não era
assegurada margem de escolha, uma vez que não poderia atuar pela própria
autoridade. Amparava-se ela na lei, encontrando aí o único critério de decisão.
Com o decorrer do anos, e com o advento do Estado Social, a situação
se transformou. Neste novo contexto, emergiu uma Administração poderosa e
autônoma, mitigando-se a ideia rígida de separação de poderes. Com maiores
atribuições, vieram também maiores instrumentos de ação e maior autonomia,
com alargamento do âmbito da regulação infralegal.
O administrador público passa a exercer escolhas não absolutamente
vinculadas à lei, pela impossibilidade do texto legal alcançar todos os aspectos
a serem ordenados pela Administração Pública. O âmbito do chamado mérito
administrativo é aumentado, surgindo a ideia de discricionariedade.
Com a valorização das constituições como eixos normativos principais
do intervencionismo estatal, e considerado que as cartas abriram espaço para
uma forte atuação do Poder Executivo, por um processo natural e crescente foi
ampliado o campo de escolha administrativa por meio de aberturas concedidas,
inclusive, pelo legislador primário.
Ocorre que a consolidação da necessidade de se respeitar os direitos
fundamentais e assegurar a supremacia da Constituição trouxe também forte
carga de vinculação à Administração Pública, reduzindo-se, nesta perspectiva,
o seu âmbito de escolha legítima, que não mais pode reduzir-se ao previsto na
legislação infraconstitucional (JUSTEN FILHO, 2010).
O ponto nodal é, assim, saber o correto enquadramento pós-moderno da
discricionariedade administrativa, sabendo que esta não mais se reduz a uma
cega vinculação à lei, porém que esta deve guardar consonância com o projeto
desenhado pela Constituição Federal, sob pena de frustrar-se os princípios
fundamentais da República.
Daí decorre a concepção de que a discricionariedade administrativa seja
a competência da Administração, não mera faculdade, de avaliar e de escolher,
no plano concreto, as melhores soluções, por meio de justificativas válidas e
coerentes, respeitados os requisitos formais e substanciais da efetividade de
um direito fundamental à boa Administração Pública (FREITAS, 2014).
A vontade do sistema constitucional, mais que da lei, requer motivação
consistente, coerente e proporcional, haja vista que a discrição conferida é uma
competência, e não mera faculdade. Com efeito, os princípios constitucionais
vinculam direta e imediatamente a margem de escolha posta ao administrador
público, que deve obediência aos ditames da Carta Magna.
Não por outros motivos, não se tolera a figura da decisão administrativa
completamente insindicável, pois a motivação deve indicar, de modo suficiente,
os fundamentos de juridicidade da escolha realizada. Nessa linha, o controle do
mérito administrativo deve ir além da teoria do legislador negativo, passando a
ativação dos direitos fundamentais das gerações presentes e futuras.
Em conclusão, tem-se que a discricionariedade, no Estado Democrático
de Direito, deve estar vinculada às prioridades e escolhas constitucionais, sob
pena de se converter em arbitrariedade, por ação ou por omissão, solapando
as bases racionais de conformação de políticas públicas. A autoridade jamais
desfruta de liberdade pura para escolher as suas ações, devendo observância
ao ordenamento jurídico como um todo, com a Lei Maior como norte principal e
fonte primária de valoração de condutas.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo.
3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2014.
FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração. 3ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2014.
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e participação popular. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
MEDAUAR, Odete. O Direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.
MIRAGEM, Bruno. A nova administração pública e o direito administrativo.
2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24ª ed. São Paulo: Atlas,
2009.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A constitucionalização do direito administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade
administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004.
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.
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