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Guiné-Bissau - Da Luta Armada à Construção Nacional - Conexões Entre o Discurso de Unidade Nacional e Diversidade Étnica (1959-1994)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
ARTEMISA ODILA CAND MONTEIRO
GUIN-BISSAU: DA LUTA ARMADA CONSTRUO DO ESTADO NACIONAL -
CONEXES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E
DIVERSIDADE TNICA (1959-1994)
Salvador
2013
17
ARTEMISA ODILA CAND MONTEIRO
GUIN-BISSAU: DA LUTA ARMADA CONSTRUO DO ESTADO NACIONAL -
CONEXES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E
DIVERSIDADE TNICA (1959-1994)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias
Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Doutora em Cincias Sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Victria Espieira
Salvador
2013
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Cand Monteiro, Artemisa Odila
C216 Guin-Bissau: da luta armada construo do estado nacional: conexes
entre o discurso de unidade nacional e diversidade tnica (1959-1994) /
Artemisa Odila Cand Monteiro. Salvador, 2013. 318f.: il.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Victria Espieira
Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2013.
1. Guin-Bissau - Independncia. 2. Identidade nacional. 3. Pluralismo cultural. 4. Colonialismo. 5. Cabo-Verde - Independncia. I. Espieira, Maria Victria.
II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.
III. Ttulo.
CDD 966.5703
_____________________________________________________________________________
17
17
AGRADECIMENTOS
J no me lembro quantas vezes fui interpelada em Bissau pelo meus familiares e
amigos, que me perguntavam o que tanto estudava e que estudo era esse que nunca mais
terminava? Meus colegas todos j estudaram, se formaram e casaram, e, eu ainda estudando
no Brasil. Diziam-me que eu no tinha marido nem filhos. Perguntavam quando que iria me
casar e ter filhos? Para que tanto estudo? Mulher que estuda demais assusta homem!,
diziam.
No adiantava explicar que eu estava cursando doutorado, j que muitos dos meus
colegas que retornaram ao pas eram denominados de doutores. Para que adiantava os meus
anos de demora de estudo? Entendo que eu no teria como convencer muitos nesse debate.
Ento, s me restava acreditar que eu estava no caminho certo, e que eu era uma das
pessoas privilegiadas no universo feminino na Guin-Bissau, por ter conseguido seguir e
cumprir as etapas acadmicas e chegar ao nvel do doutorado, num pas em que a educao
superior ainda constitui o privilgio de poucos, e nesse universo de privilgios, as mulheres
ainda constituem a minoria.
Por isso, ser doutora significa mais que uma vitria para mim, uma conspirao
POSITIVA dos deuses, e ainda mais, ser a primeira doutora da famlia pra mim uma honra
que compartilho com uma das mulheres mais sbias de Bolama, nha Senab.
Apesar dessa mulher no ter sido alfabetizada e no ter passado pela escola oficial,
apostou, quando no nos prprios filhos, nos sobrinhos de criao e at nos netos e netas.
Aproveito para agradecer nha Senab pela perseverana e sabedoria na minha socializao
primria e na conduo da minha educao, me ensinando os mais caros valores sociais e
culturais de uma sociedade onde o sucesso passa prioritariamente pela educao escolar.
Registro aqui os meus mais sinceros agradecimentos essa mulher guerreira, que nos
momentos mais difceis soube, com amor, carinho, compreenso, ser a referncia da famlia e
reerguer todos com muita determinao.
Assim comeo agradecendo aos meus comuns: minha tia Ftima Cand e meu tio
Bubacar Cand, que tm sido como pais para mim, que mesmo distantes com toda a
dificuldade do pas, acompanharam o meu percurso acadmico no Brasil, incentivando e
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auxiliando dentro das suas possibilidades. Por falar em famlia, devo adiantar de logo os
agradecimentos tia Rita Monteiro Vieira, tia Tchumtcha (que subitamente nos deixou no
decorrer desse trabalho), a tio Carlos Bamba,a meus irmos, Mauro Monteiro, Baciro Bald,
Nordine Monteiro, Samory Monteiro, s minhas manas Fanta, Odete, Zita, Nequinha Vieira,
que a todo momento me incentivaram para que eu chegasse a este fim.
Devo gratido tambm minha tia Odete Semedo, que desde os momentos iniciais
da construo desse trabalho esteve presente e me incentivou, quando no contribuiu
diretamente para que este sonho se concretizasse.
Aos meus primos e primas, Gorky de Medina, Anglo Adelino dos Reis I, Idrissa,
Aminata, Djenab, Demba Bald, Tnia, Mazarine e Harrison Cand Lopes; Alfa Cand,
Wiliam Mendes, Solange e Juscelino Vieira, Cintya Semedo e Isis Semedo, os meus sinceros
agradecimentos pelo apoio e amizade.
Agradeo ainda Me Lcia (Mameto Kamuricy) e ao Terreiro So Jorge Filho da
Gmeia, a quem devo muito pelo acolhimento e estadia em Salvador, pela amizade de
sempre, carinho e cuidado. Dona Gildete Santana, Antonio das Neves e Raimundo Neves
(Kasutemy), que subitamente nos deixaram e no presenciaram o final desse trabalho apesar
de ausncia fsica sei que vocs esto presentes, sou grata por tudo o que fizeram por mim!
Por falar em amigos de sempre, no deixaria de agradecer ao Arnaldo Sucuma,
Domingos Semedo, Jaime Sodr, Carla Georgia,Cadidjat Cand(tia Guerra), Claudia Santos,
Fernando Pedro, Juliana Bruno, Las Santos, Adinelson Filho, Jusciele Oliveira, Iara
Nascimento, Edmundo Jnior, Adriana Cerqueira, Dona Lourdes, Juvenal Carvalho, Fabio
Baqueiro, Dionaldo Almeida, Miguel de Barros, Djimmy Fonseca,Suazilene Fernandes,
Ricardo Ossag, Csar Ferrage, Tony Ferrage, Fumy Ferrage, Ramalho Namaba, Ordela
Carvalho,Olvio Albino, Carolina Zulmira, Ivaldira Biagu, Tcherno Ndjai, Detoubab Ndiaye,
Vagner Bijag, Patricia Gomes,Orlando Santos, Simo Jaime, Inussa Gomes, Tamine Lima,
Adulai Bald, Goia Biagu,Umaro Embal, Eduardo Mendes, Corca Djal. Agradeo a todos
pela f depositada em mim.
Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal da
Bahia, ao Professor Clvis Zimmermann, aos funcionrios da secretaria (Dra e Alberto), e
aos professores Miriam Rabelo, Muniz Ferreira e Carlos Lbano.
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Estendo esse agradecimento aos meus colegas de turma de doutorado (Rubenilda
Sodr, Ana Anglica, Nbia Ramos e Antonio Mateus), e aos meus colegas africanos. todos
que de forma direta ou indireta contriburam para que este trabalho se tornasse realidade, devo
gratido.
Agradeo a leitura atenta do professor Claudio Furtado que de forma incansvel,
cautelosa, compreensvel, disponibilizou-se dos seus inmeros compromissos, e soube dar
acertos precisos que foram imprescindveis no desenvolvimento deste trabalho. Muito me
ensinou. Os dividendos so preciosos: amizade, gratido e admirao. Valeu!
A gratuita disponibilidade e inegvel colaborao do professor Muniz Ferreira, que
desde a banca de qualificao apontou os caminhos serem explorados e disponibilizou a
bibliografia que contribuiu para o andamento deste trabalho.Nunca ser suficientemente
compensado pela minha imensa gratido.
Ao meu sempre amigo Adinelson Filho, pela leitura e correo desta tese. Mais uma
vez, valeu amigo!
minha orientadora, Victria Espieira, pelo carinho, amizade e disponibilidade de
me orientar, meu muito obrigada!
Importantssima para este trabalho foi a impagvel contribuio no auxilio pesquisa
de campo de Tio Issa Bald, Inerida Mendona e Indira Fernandes, que me acolheram em
Lisboa e tornaram menos difcil o meu caminho. Carlos Lopes, Carlos Cardoso,Tcherno
Ndjai,Policiano Gomes, Rui Jorge Semedo, Osris Ferreira, e Adex da Silva na viabilizao
dos materiais de pesquisa. Como no podia esquecer de Midana na Fantchama (secretrio do
PAIGC), Odete Semedo e Flora Gomes, que prontamente me auxiliaram na organizao das
entrevistas com os combatentes da liberdade da ptria, em Bissau.
E com amor Lote, meu esteio, pelo apoio nos momentos cruciais na elaborao
desta tese e no auxilio da transcrio das entrevistas. Minha eterna gratido!
Aos Combatentes da Liberdade da Ptria e aos membros do PAIGC, que passo a
descrever: Carmem Pereira, Francisca Pereira, Sat Camar Pinto, Ana Maria Soares, Jos
Lopes, Manuel Saturnino Costa, Elise Turpin, Lcio Soares, Augusto Olivaz, Adriano
Ferreira, Carlos Correia, Teodora Incia Gomes, Manecas dos Santos, que aceitaram partilhar
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suas memrias de luta, nostalgias, mgoas e frustraes do que no se concretizou. Meu
obrigado!
Por fim, registro a minha eterna gratido Capes pela concesso da bolsa, sem a qual
seria mais difcil prosseguir.
HOMENAGEM SENAB BALD (DJENAB)
Um dia voc se foi, deixando para trs um imenso vazio onde antes contvamos com
uma presena marcante, firme e segura. As saudades ainda so grandes, marcam a falta fsica
de um sorriso, um afago, uma palavra. Foi, contudo, no meio dessa ausncia que
compreendemos a dimenso do ser eterno, da poro que fica e que, apesar de invisvel,
sensvel e vive dentro de ns. Por isso, mesmo que hoje algumas lgrimas se vertam ante a
falta de seu abrao, essas no sero suficientes para apagar a certeza de estarmos juntos e
dividir toda a emoo deste momento. Hoje, neste dia to importante, sinto-a presente, dentro
de mim, feliz por nossa vitria. Sempre vou te amar...
Nesses anos todos, sob suas asas
Eu enriqueci
E tive a luz da vida
E os passos pra seguir
E como o vento, o tempo passa to depressa
Eu cresci tambm
Eu no sou mais de vocs, agora a minha vez
De ser algum
Vou viajar sem bagagem
Deixo o amor, mas levo a coragem
Eu vou seguir, de mos vazias
No peito trago a lio
Sei que um dia com meus filhos
Eu vou abrir meu corao
E falar dos meus pais
Quando a noite era um mar de pesadelos
Vinham me abraar
E num sorriso aberto,
Com prazer de amar
Fui mimado, amado, nunca vi motivos
Pra me preocupar
Mas meu dia chegou, eu tenho a chance de tentar
De ser algum!
Roupa Nova
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No fazemos a guerra para conquistar Portugal. Fizemo-la porque somos obrigados a isso para conquistar os nossos direitos humanos, os nossos
direitos de Nao, de povo africano que quer a sua independncia, isto , a
libertao total do nosso povo da Guin e de Cabo Verde, a conquista da
nossa independncia nacional e da nossa soberania.
Amilcar Cabral (1974, p.61).
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RESUMO
Este estudo busca analisar o processo de construo da identidade nacional na Guin-Bissau,
observando a mediao das diversidades tnicas existentes no pas, tendo como referncia o
perodo de 1959 a 1994. Constatamos que a construo da nao ou identidade nacional em
vrios pases africanos, teve seu incio com a ocupao europeia. A resposta dada a essa
invaso em diversos pases africanos foi o desencadeamento da resistncia cultural e poltica
contra essa ocupao. No caso particular da Guin dita Portuguesa, a intensa organizao para
a descolonizao teve seu marco a partir do Massacre de Pindjiguiti, em 1959, que
impulsionou a via armada contra o regime colonial, tendo como dois grandes protagonistas
Rafael Barbosa e Amlcar Cabral. O projeto de Cabral para a viabilizao da independncia
nacional seria a unidade entre as, ento, colnias portuguesas (Guin-Bissau e Cabo Verde), o
elo principal desta mediao Rafael Barbosa, considerado nesse trabalho como um dos
protagonistas do itinerrio nacionalista bissau-guineense. Amlcar Cabral defendeu o seu
projeto de unidade entre Guin-Bissau e Cabo Verde com base na ligao histrica entre os
povos. Mas, apesar de tais laos histricos, esses dois povos no se reconheciam mutuamente
como um s povo. A concepo de nao de Cabral tambm postulava a unificao de todas
as etnias de Guin-Bissau, sem distino cultural, num programa de conscincia nacional para
a liquidao do colonialismo, criando assim uma contra sociedade em oposio a sociedade
colonial. Esta seria a concepo dada nao num pas cuja diversidade cultural teria
identidade unificada sob interesses polticos nacionais. O objetivo desta tese analisar o
processo de construo da identidade nacional na Guin-Bissau, observando como aparece o
discurso de Amlcar Cabral de unidade nacional no contexto do discurso da identidade tnica,
no perodo de luta de libertao nacional. Pudemos verificar que a concepo de nao de
Amilcar est alicerada na tradio ocidental, entretanto gravitando entre os conceitos de
unidade e cultura, como alicerces principais da nao concebido como estratgia do
enfrentamento. Finalmente, faz se um experimento de leitura crtica do projeto de unidade
Guin-Bissau e Cabo Verde, que tinha pouca viabilidade poltica de se concretizar, e
constatamos que foram as contradies desenvolvidas durante a luta de libertao nacional no
tocante unidade binacional que permearam os bastidores da morte de Amilcar Cabral. Ainda
observamos que tais contradies assombraram sobremaneira o perodo ps-independncia
que vai culminar com o golpe de Estado de novembro de 1980, que marca a ruptura da
unidade binacional. Os contornos de abertura poltica multipartidria em 1994 tambm
mereceram anlise e seu desdobramento desenhou uma nova configurao poltica na nao
bissau-guineense de Amilcar Cabral, quando as narrativas tnicas ganham nova roupagem
diante das narrativas dos discursos nacionalistas no cenrio poltico, originando a perda de
prestgio da referida unidade nacional na poltica contempornea bissau-guineense.
Palavras-chave: Guin-Bissau. Bissau-guineense. Identidade nacional. Identidade tnica. Luta
de libertao nacional. Colonialismo. Unidade tnica. Unidade Guin-Bissau/Cabo Verde.
Independncia.
17
RESUM
Cette tude vise analyser le processus de construction de l'identit nationale en Guine -
Bissau, au regard de la diversit ethnique existante dans le pays, et en prenant comme
rfrence la priode allant de 1959 1994. Nous constatons que la construction de la Nation
ou de l'identit nationale dans beaucoup de pays africains a commenc avec l'occupation
europenne. La rponse cette invasion dans plusieurs pays africains a t le dveloppement
de la rsistance culturelle et politique. Dans le cas particulier de la Guine dite portugaise,
l'organisation intense pour la dcolonisation a commenc avec le massacre de Pindjiguiti en
1959, vnement qui a dclench la lutte arme contre la domination coloniale, avec Rafael
Barbosa et Amilcar Cabral comme deux principaux protagonistes. Le projet de Cabral qui
tait de conqurir l'indpendance nationale aurait comme condition l'unit entre les deux
colonies portugaises (Guine-Bissau et Cabo Verde). Le principal lien de cette mdiation est
Rafael Barbosa, considr dans ce travail comme l'un des protagonistes de la revendication
nationaliste bissau-guinenne. Amilcar Cabral a dfendu son projet d'unit entre la Guine-
Bissau et le Cabo Verde sur la base du lien historique entre les peuples. Mais en dpit de ces
faits historiques, ces deux peuples ne se voyaient pas comme un seul peuple. La conception
de la Nation chez Cabral avait aussi postul l'unification de tous les groupes ethniques de la
Guine- Bissau, sans aucune distinction culturelle, dans un programme qui va au del dune prise de conscience nationale et visait la liquidation du colonialisme. Ce qui cre ainsi une
contre-socit par opposition la socit coloniale. Telle est la signification donne la
Nation dans un pays dont la diversit culturelle cache une identit unifie sur la base
dintrts politiques nationaux. L'objectif de cette thse est d'analyser le processus de construction de l'identit nationale en Guine-Bissau, en observant comment le discours
dAmilcar Cabral de l'unit nationale apparat dans le contexte du discours de l'identit ethnique pendant la lutte de libration nationale. Nous avons vu que la conception de la
Nation chez Amilcar est base sur la tradition occidentale, mais tourne autour des concepts de
l'unit et de la culture en tant que fondements essentiels de la nation conue comme une
stratgie dadaptation. Enfin, nous essayons de faire une lecture critique du projet de l'unit entre la Guine-Bissau et le Cabo Verde qui avait peu de viabilit politique. Nous nous
sommes rendu compte que ce sont de telles contradictions dveloppes au cours de la lutte de
libration nationale, en ce qui concerne l'unit binationale, qui imprgnait les coulisses de la
mort d'Amilcar Cabral. Nous avons galement observ que ces contradictions qui ont
grandement hant la priode post-indpendance et qui ont dbouch sur le coup d'tat de
Novembre 1980, marquent la rupture de l'unit binationale. Les contours de l'ouverture
politique multipartite en 1994 ont aussi mrit un examen et son droulement a dessin une
nouvelle configuration politique de la Nation bissau-guinenne dAmilcar Cabral, au moment o les rcits ethniques gagnent de nouveaux vtements avec les rcits des discours
nationalistes dans le paysage politique, entranant la perte de prestige de ladite unit nationale
dans la politique contemporaine Guine-Bissau.
Mots-cls: Guine-Bissau, Guine-Bissau, Identit nationale, Identit ethnique, lutte de
libration nationale, colonialisme, unit ethnique, unit de Guine-Bissau et Cabo Verde,
Indpendance.
17
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Mapa demonstrativo de pases da UEMOA.......................................... 61
Figura 2 Mapa ilustrativo da frica antes da diviso da Conferncia de
Berlim.....................................................................................................93
Figura 3 Mapa ilustrativo da diviso da frica Conferncia de Berlim (1884-
1885)...................................................................................................... 96
Figura 4 Mapa Guin-Bissau - esboo de regies administrativa.........................97
Figura 5 Mapa da localizao espacial das principais etnias da Guin Bissau.....98
17
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANP Assembleia Nacional Popular
AP Armazns do Povo
BCGP Boletim Cultural da Guin Portuguesa
BM Banco Mundial
BP Bureau Poltico
CEA Centro de Estudos Africanos
CC Comit Central
CCE Conselho dos Comissrios de Estado
CE Conselho de Estado
CEI Casa dos Estudantes de Imprio
CEL Conselho Executivo de Luta
CIDAC Centro de Informao e Documentao Amilcar Cabral em Lisboa
CONCP Conferncia das Organizaes Nacionais das Colnias Portuguesas
CR Conselho da Revoluo
CSL Conselho Superior de Luta
CNCV Conselho Nacional de Cabo Verde
FARP Foras Armadas Revolucionrias do Povo
FD Frente Democrtica
FNLA Frente Nacional de Libertao de Angola
FLGC Frente de Libertao da Guin e Cabo Verde
FLING Frente de Libertao e Independncia Nacional da Guin
17
FRAIN Frente Revolucionria Africana para a Independncia das Colnias
Portuguesas
FLING Frente de Libertao Nacional da Guin
FMI Fundo Monetrio Internacional
FRELIMO Frente de Libertao de Moambique
FUL Frente Unida da Libertao da Guin e Cabo Verde
GUN Governo de Unidade Nacional
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
ISA Instituto Superior de Agronomia
ISCTE Instituto Superior das Cincias do Trabalho e Emprego
LIGA Liga Bissau-guineense
MAC Movimento Anticolonial
MING Movimento para a Independncia da Guin
MLG Movimento da Libertao da Guin
MLGCV Movimento da Libertao da Guin e Cabo Verde
MLICV Movimento de Libertao das Ilhas de Cabo Verde
MLSTP Movimento de Libertao So Tom e Prncipe
MPLA Movimento popular de Libertao de Angola
MPD Movimento para Democracia
MR Movimento Reajustador
MUDE Movimento de Unidade para Democracia
OUA Organizao Unidade Africana
ONU Organizao das Naes Unidas
PAI Partido Africano para a Independncia
PAICV Partido Africano para a Independncia de Cabo Verde
17
PAIGC Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde
PDA Partido Democrtico de Angola
PDP Partido Democrtico para o Progresso
PCD Partido de Convergncia Democrtica
PIDE/DGS Policia Internacional de Defesa de Estado/Direo Geral de Segurana
PRD Partido de Renovao e Desenvolvimento
PRS Partido de Renovao Social
PUSD Partido Unido Social Democrata
SOCOMI Sociedade Comercial Mista
UA Unio Africana
UDEMU Unio Democrtica das Mulheres
UNITA Unio Nacional da Independncia Total de Angola
UNTG Unio Nacional da Independncia da Guin
UPA Unio dos Povos de Angola
UPANG Unio Patritica Anticolonialista da Guin-Bissau
UPG Unio Patritica da Guin
UPICV Unio do povo das Ilhas de Cabo Verde
UNGP Guin Unio dos Naturais da Guin Portuguesa
UPLG Unio da Populao Libertada da Guin
RDAG Reunio Democrtica Africana da Guin
RDN Rdio Difuso Nacional
RENAMO Resistncia Nacional de Moambique
RGB/MB Resistncia da Guin-Bissau/Movimento Ba-fat
17
SUMRIO
INTRODUO.................................................................................................................. 16
1 CAPTULO I O PROCESSO FUNDANTE DO ESTADO NAO:.......................
NACIONALISMO COMO INSTRUMENTO DE LIBERTAO
28
1.1 BREVE HISTRICO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA NAO........... 28
1.2 A GNESE DO NACIONALISMO AFRICANO.............................................................. 38
1.3 UNIDADE AFRICANA COMO FATOR DE LIBERTAO.......................................... 45
1.4 A IMPORTNCIA DOS PARTIDOS POLTICOS NA CONSTRUO DO ESTADO
NAO EM FRICA.........................................................................................................
58
2 CAPTULO II - DA GUIN PORTUGUESA GUIN-BISSAU: DA CHEGADA.
DOS PORTUGUESES COSTA AFRICANA AOS PROCESSOS DE
RESISTNCIAS ANTICOLONIAIS..............................................................................
75
2.1 O CONTEXTO DA CHEGADA DOS PORTUGUESES NA COSTA OCIDENTAL
AFRICANA E A CONJUNTURA DA ESCRAVIDO ATLNTICA.............................
75
2.2 A COLONIZAO DA GUIN COMO DESDOBRAMENTO DA FORMAO DO
IMPRIO PORTUGUS....................................................................................................
90
2.3 IDENTIDADES E RESISTNCIAS ESCRAVIDO NA GUIN: A LUTA PELA
SOBERANIA NACIONAL.................................................................................................
100
2.4 A CRIAO DOS PRIMEIROS PARTIDOS POLTICOS E MOVIMENTOS
CONTESTATRIOS..........................................................................................................
113
3 CAPTULO III -AMLCAR CABRAL E O CONTEXTO DO PS-GUERRA: OS
ACONTECIMENTOS QUE IMPULSIONARAM A VIA ARMADA NA GUIN-
BISSAU...............................................................................................................................
123
17
3.1 O RESSURGIMENTO DE AMILCAR CABRAL NA GUIN-BISSAU NO
CONTEXTO DO MASSACRE DE PINDJIGUITI............................................................
136
3.2 UMA LUTA, DOIS PASES: A CRIAO DE UMA NICA FRENTE PARA
LIBERTAO DA GUIN-BISSAU E CABO VERDE E A INSERO DOS
CAMPONESES NAS FILEIRAS DE LUTA.....................................................................
148
4 CAPTULO IV - A LUTA ARMADA DE LIBERTAO NACIONAL E A
CONSCINCIA NACIONAL: UMA ANLISE DA CONJUNTURA
INTERNACIONAL...........................................................................................................
157
4.1 A LUTA ARMADA DE LIBERTAO DA GUIN-BISSAU E CABO-VERDE: O
CONGRESSO DE CASSAC E A CRIAO DO PARTIDO ESTADO........................
168
4.2 OS REFLEXOS DA EVOLUO DA LUTA NO CONTEXTO
INTERNACIONAL..............................................................................................................
4.3 4.3
4.3 O ASSASSINATO DE UM LDER AFRICANO E OS DESDOBRAMENTOS
D DO II CONGRESSO DE BO............................................................................................
4.4 AS MULHERES NO CENRIO DA LUTA DE LIBERTAO NACIONAL.........
5 CAPTULO V - A GUIN-BISSAU NO CONTEXTO DAS INDEPENDNCIAS
AFRICANAS E O NASCIMENTO DE UM ESTADO AFRICANO: LIMITES E
POSSIBILIDADES............................................................................................................
5.1 NACIONALISMO BISSAU-GUINEENSE E CONEXES COM A CULTURA:
UNIDADE TNICA E UNIDADE GUIN-BISSAU/CABOVERDE............................
5.2 O MOVIMENTO REAJUSTADOR 14 DE NOVEMBRO E A RUPTURA DO
LEGADO DE AMLCAR CABRAL..................................................................................
5.3 A ABERTURA MULTIPARTIDRIA DE 1993 E A EMERGNCIA DA
POLTICA TNICA NO ESTADO BISSAU-GUINEENSE.............................................
180
190
201
208
208
225
242
6 CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................252
REFERNCIAS............................................................................................................260
ANEXOS........................................................................................................................270
2
7
1
17
ANEXO I Os simbolos da nao bissau-guineense
ANEXO II Mapa da Repblica de Guin-Bissau e alguns dados relevantes do pas
ANEXO III Informaes sobre o processo de Luta de Libertao Nacional
ANEXO IV Perodo de transio de governo portugus para governo do PAIGC
ANEXO V Correspondncia entre Nino Vieira e Aristides Pereira sobre o Movimento Reajustador 14 de Novembro
ANEXO VI Quadro Analtico de Guin-Bissau 1886 a 2012
16
INTRODUO
Este trabalho, intitulado Guin-Bissau: da luta armada construo do Estado
Nacional: conexes entre o discurso de unidade nacional e da diversidade tnica, tem
como proposta analisar a construo do Estado Nacional na Guin-Bissau durante o contexto
de luta de libertao nacional de 1959 a 1994, visando refletir sobre as narrativas a respeito da
identidade nacional em articulao com os conceitos de cultura, unidade nacional e
diversidade tnica, alegorias referenciais no discurso fundacional do lder revolucionrio
Amlcar Cabral1.
Este estudo se inscreve numa tradio de abordagem terica que procura
compreender as matrizes discursivas da identidade nacional, que vo desde 1959 - massacre
de Pindjiguiti - at 1994 - perodo do chamado pluralismo poltico na Guin-Bissau. A baliza
cronolgica de 1959 a 1994 justifica-se por ser o ano de 1959 um marco nos movimentos de
reivindicaes que visavam luta pela independncia, tendo como base o massacre de
Pindjiguiti que impulsionou novos contornos nos movimentos nacionalistas bissau-guineense,
forjando uma Frente nica de Libertao com o intuito de unir dois pases para uma luta de
libertao nacional, representado atravs do Partido Africano da Independncia da Guin-
Bissau e Cabo Verde (PAIGC) com carter binacional.
O ano de 1959 marca ainda o ressurgimento2 de Amlcar Cabral na vida poltica da
Guin-Bissau, o que mais tarde lhe conferiu o cargo de representante poltico dos interesses
dos filhos da Guin-Bissau e de Cabo Verde com vistas descolonizao. Por sua vez, o
ano de 1994 se constitui num marco com o trmino do regime do partido nico,
caracterizando o novo perodo no Estado bissau-guineense, inclusive no mbito das mudanas
discursivas no tocante as novas alegorias fundantes do Estado nacional bissau-guineense. Ou
seja, o ano marco do renascimento da nao bissau-guineense, com adeso democracia
1Um dos fundadores de PAIGC (Partido Africano da Independncia da Guin- Bissau e Cabo Verde) e lder de
luta de libertao nacional, Cabral nasceu na Guin-Bissau-Bissau na cidade de Bafat a 12 de Setembro de
1924. Muda-se para Cabo Verde com seus pais em 1936, onde fez seus estudos secundrios. Em 1945, Amlcar
Cabral obtm a bolsa de estudo e comea seus estudos universitrios em Lisboa. Em 1952 formou-se no Instituto
Superior de Economia da Universidade Tcnica de Lisboa e, como agrnomo, trabalhou em Portugal, Guin-
Bissau e na Angola, onde, em 1953, procedeu ao primeiro recenseamento agrcola do pas. Morreu a 20 de
Janeiro de 1973, assassinado na Guin-Bissau Conakry (LOPES, 1998). 2 oportuno esclarecer que em 1952 Amlcar Cabral nomeado pela administrao colonial portuguesa como
engenheiro agrnomo na Granja de Pessub na Guin. E no ano seguinte em 1953 realiza o primeiro
recenseamento agrcola da Guin-Bissau. Na tentativa de criao de uma Associao Desportiva de recreao
com cunho nacionalista em Bissau, Cabral obrigado a abandonar o pas em 1954 e regressa aps o massacre de
Pindjiguiti em 1959.
17
liberal, revestida de novos discursos que se direcionam para uma poltica tnica no Estado
bissau-guineense.
Igualmente, 1994 o ano marcado pela reviso constitucional que levou ao que ficou
conhecido como a queda do artigo 4 da Constituio da Repblica que preconizava o PAIGC
como partido nico e legtimo dirigente e representante poltico da sociedade bissau-
guineense3. Este artigo da Constituio atribuiu ao PAIGC o poder absoluto e legtimo desde
a independncia em 1973 at 1993, completando 20 anos de exerccio do poder.
Priorizei, para anlise nesta pesquisa, os grandes eventos desencadeados durante o
processo colonial na Guin-Bissau, desde os primrdios da colonizao e o perodo da
independncia, que compreende a I Repblica (Proclamao de Independncia, 1973) que se
estende at a abertura poltica partidria de 1994, considerada nesta pesquisa como o
nascimento do novo Estado bissau-guineense.
Justifica-se esta escolha pelo fato de que o territrio conhecido hoje como Guin-
Bissau provm de fortes vnculos histricos e culturais entre os povos da Guin, da regio de
Cassamance, no Senegal, e da Gmbia atual, conhecido como Senegmbia naquele perodo, e
que veio a se desintegrar, devido presso externa de potncias coloniais europeias (LOPES,
2012). Portanto, os primeiros ideais da nao na Guin-Bissau no fugiram regra da unidade
histrica e cultural entre povos, baseada em um vnculo de pertencimento nacional dos povos.
Nesse ensejo, constri-se uma identidade unida pelos laos histricos, impulsionando
a criao do partido Estado conduzido pelo PAIGC (Partido Africano para Independncia de
Guin-Bissau e Cabo Verde) sob a liderana de Amlcar Cabral.
Diante do objetivo da pesquisa, que analisar o processo de construo da identidade
nacional na Guin-Bissau, observando os registros de discursos de Amlcar Cabral de unidade
nacional no contexto da construo da nao, iremos considerar as configuraes tnicas
dessa nao e suas diferenas culturais.
Neste processo, interessa-me tambm, enquanto objeto de pesquisa, entender como
se concebeu inicialmente o sentido da nao na gnese do Estado colonial. E como os bissau-
guineenses transitam e se percebem como pertencentes a duas identidades, nacional e tnica,4
e qual a relevncia destas identidades no cotidiano do pas.
3 Disponvel na Primeira Constituio da Repblica de Guin-Bissau-Bissau de 1974.
4 Importante ressaltar que, entre os bissau-guineenses, existem duas formas de identificao social, uma que se
refere identidade coletiva (nacional) e outra representao especifica, isto , aquela que remete o individuo
sua tradio cultural, neste caso a origem tnica de cada sujeito. Mas h que se levar em conta uma terceira via
de afirmao identitria no que se refere aos assimilados, isto , os cristons de praa que tambm so resultantes
de cruzamento de origens tnicas diversas mas que no contexto urbano se identificam como crioulos, e usufruem
da dimenso tnica como estratgia para a sua manuteno no poder poltico.
18
Interessa ainda compreender como o discurso de unidade nacional proposto por
Amlcar Cabral, validado num determinado contexto histrico de luta de libertao, ganhou,
no cenrio bissau-guineense, uma destacada importncia na autoafirmao de guinendade.5
Diante dessa perspectiva, constru algumas questes que visam mapear a gnese do
Estado nacional bissau-guineense e seu colapso na contemporaneidade, analisando a
fragilidade do discurso fundacional da nao bissau-guineense, observado principalmente no
campo poltico. A fim de alcanar esse objetivo, estruturei este estudo em torno das seguintes
questes:
1) Quais os mecanismos discursivos utilizados para unificar a diversidade tnica em meio
aos interesses da poltica nacional? Ainda perduram as narrativas discursivas do
Estado nacional usadas por Cabral para unificar as diversidades contra a colonizao
portuguesa entre as lideranas polticas bissau-guineenses na contemporaneidade?
2) Em que medida os signos identitrios e tnicos, na contemporaneidade na Guin-
Bissau, so relevantes e se afirmam em detrimento dos signos que professam
elementos nacionais, tais como: unidade nacional e unidade entre Guin-Bissau e
Cabo Verde?
3) Qual a intensidade da questo tnica no iderio de unidade nacional e como a ela se
recorre no campo poltico e social do pas?
Em resposta a estas questes, analisamos que a construo do Estado nacional
bissau-guineense se deu no bojo de uma emergncia nacional de luta contra a ocupao
europeia, e como a articulao do discurso nacionalista de Amlcar Cabral serviu de modelo
para a unificao das identidades em meio s diferenas tnico-culturais.
A noo de nacionalismo bissau-guineense est intrinsecamente ligada noo de
identidades tnicas neste trabalho. O discurso fundacional da nao bissau-guineense de
Amlcar Cabral justaps as duas formas de pertencimento em meio aos smbolos
decodificadores da nao bissau-guineense. Realmente, no s como um dado emprico, a
etnicidade um elemento sancionador para adeso ao discurso de Cabral, como tambm ele
mediador das relaes sociais bissau-guineenses.
5 Incorporo o uso dessa expresso, nesta pesquisa, para designar as diversas formas de ser bissau-guineense em
meio s diversidades tnicas existentes no pas.
19
Diante do exposto, a nossa hiptese aponta para uma nova configurao sociocultural
na Guin-Bissau, isto , de que a identidade tnica ganhou um contorno expressivo na
afirmao e na autoafirmao da pertena em meio identidade nacional.
Esse fato tornou-se evidente a partir da abertura poltica no pas em 1994, no tocante
s manifestaes de interesses partidrios e que prevalece at a atualidade. Desta forma,
apresenta-se tambm uma mudana nos propsitos iniciais da unidade nacional concebida por
Amlcar Cabral, na medida em que as questes tnicas ganham peso no delineamento das
relaes sociais e polticas num pas em que a unidade nacional, historicamente, teve um
significado simblico e expressivo no processo que conduziu independncia nacional.
Esta pesquisa foi impulsionada pelo interesse em analisar as mediaes identitrias
na Guin-Bissau, resultantes de um nacionalismo com acentuado carter cultural, tendo como
um dos protagonistas Amlcar Cabral. A proposta de pesquisar a construo da identidade
nacional na Guin-Bissau e seus reflexos na contemporaneidade faz parte de um sonho
almejado para melhor compreender as especificidades do projeto de Cabral em termos de
unidade tnica e seu desdobramento.
Cabral nasceu em Bafat, ento Guin Portuguesa, em 24 de setembro de 1924. Filho
de emigrantes caboverdianos, viveu na Guin-Bissau at aos oito anos de idade com os pais.
Deixou Bissau em 1936 e foi para Cabo Verde com seus pais; passou a viver na Ilha de So
Vicente, onde completou seus estudos primrios e secundrios. O ano de 1945 marca o inicio
da sua carreira poltica na Casa de Estudantes de Imprio (CEI), sob forte influncia das
teorias marxista e pan-africanista. Essa experincia poltica foi adquirida na CEI quando era
estudante no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa.
A discriminao racial com que eram interpelados por serem considerados
assimilados os faz serem vistos como portugueses de segunda classe, obrigando-lhes a criar
um mecanismo de defesa atravs do sentimento nacionalista, pautado na reconverso
identitria, tendo como influncia a corrente ideolgica pan-africanista, que reivindicava a
frica para os africanos. Essa articulao poltica contou com a influncia dos pan-
africanistas William Du Bois e Marcus Garvey, que lutavam para a reintegrao maior dos
africanos fora do continente.6
6 O pan-africanismo uma ideologia poltica criada fora do continente africano pelos grandes pensadores da
dispora, dentre os quais William Du Bois, Marcus Garvey, Aim Csaire, Frantz Fanon, e predicava que a
dispora e a frica tinham um destino comum, que a emancipao dos afroamericanos, que no podia ser
desvinculada da emancipao dos povos do continente ancestral, e vice-versa (MOORE, 2008, p.34).
20
Estes grupos de estudantes africanos em Lisboa, que mais tarde seriam denominados
de Gerao Cabral, desempenharam o papel imprescindvel na formatao do nacionalismo
africano fora do continente e que, mais tarde, seriam referncias estratgicas no desenrolar
dos movimentos de reivindicaes nas colnias africanas ainda sob o domnio colonial.
nesta senda que se insere Amlcar Cabral como lder dos movimentos nacionalistas
dos pases africanos sob a dominao portuguesa. Cabral foi portavoz dos anseios no apenas
dos povos da Guin-Bissau e Cabo Verde como tambm da frica de um modo geral. Nos
fruns de debates, preconizava a libertao dos africanos contra a subjugao colonial em prol
da independncia nacional.
Nesta pesquisa no pretendo realizar um estudo biogrfico de Amlcar Cabral, por se
tratar de uma temtica exaustiva no mbito da literatura bissau-guineense. Outrossim, no
minha inteno me debruar sobre a dinmica da luta em Cabo Verde.
No entanto, ao analisar a questo da construo do Estado nacional na Guin-Bissau,
engendrada atravs da luta de libertao nacional, inevitvel trazer para o centro deste
debate alguns excertos sobre os nacionalistas caboverdianos e os bastidores que nortearam o
projeto comum de libertao nacional destes dois pases.
Desta forma, usei os testemunhos de Lus Cabral (1984), Aristides Pereira (2003) e
por fim o trabalho de Jos Vicente Lopes (1996), sobre os bastidores da independncia que
compem parte de uma reflexo dos caboverdianos sobre o processo de luta de libertao na
Guin-Bissau.
Neste mbito, busco centrar a minha preocupao na anlise das ideias de Cabral ao
nvel de construo do Estado nacional, entrelaando-as com as questes culturais, da unidade
nacional e unidade entre Guin-Bissau e Cabo Verde, tendo como leitmotiv a libertao
nacional nos dois pases.
O desenvolvimento desta tese est centrado em duas perspectivas, que se entrelaam
e se completam: a sociopoltica e a histrica. A primeira delas identifica a formao das
correntes nacionalistas no mbito da luta de libertao em frica, particularmente na Guin-
Bissau, o pensamento de Amlcar Cabral e de outros nacionalistas africanos na concepo da
nao como comunidade de destino, e tambm como estratgia do enfrentamento. O papel
dos partidos polticos na formao poltica dos Estados nao e o arranjo do projeto de
unidade africana completam a abordagem dessa perspectiva.
Atrelada primeira, a segunda perspectiva busca a compreenso da estrutura
organizativa do sistema colonial, baseada em formas de trabalho forado, na subjugao de
povos e suas culturas e em estratgias de monetarizao da economia africana. Sob essa
21
perspectiva, tracei as balizas para analisar, atravs da ordem cronolgica, desde a chegada dos
europeus na costa africana e posteriormente na Guin-Bissau, as resistncias ocupao
colonial, as relaes de submisso e dominao estabelecidas pela sociedade colonial e o
desdobramento da formao do imprio portugus que impulsionou a criao dos movimentos
urbanos de descolonizao.
Recorri aos perodos anteriores (a exemplo de ano de 1445) a fim de melhor
compreender como se deu em frica a primeira concretizao da implementao do
entreposto comercial em Arguim (a sul do Cabo Branco), e as demais feitorias que permitiram
a legalizao de trocas comerciais com o interior do continente africano, o que mais tarde
expandiu o comrcio transatlntico de escravos.
Ademais, o ano de 1945 tambm mereceu destaque por ser decisivo na formatao
dos movimentos de autodeterminao e na concesso das independncias africanas. Foi o
contexto aps a Segunda Guerra Mundial que deu alento aos pases que estavam sob o
domnio colonial, legitimando as suas lutas pela independncia com vistas construo dos
Estados nao.
A dcada de 1950 marca o epicentro de reafricanizao dos espritos, ou seja, do
renascimento dos novos africanos que sentiram a necessidade de se libertar da alienao
colonial, isto , da assimilao imposta pelo ensino colonial, centrada na manifestao da
conscincia nacionalista.
Assim, os cinco captulos da tese foram estruturados de modo a abordar no primeiro
captulo, O processo fundante do Estado nao e nacionalismo: instrumento de libertao.
Realizo nessa parte do texto uma breve reflexo acerca das principais contribuies tericas
sobre a concepo da nao e do processo da identidade nacional, representadas nos
diferentes contextos sociais.
Este captulo est divido em quatro itens. O item 1 aborda o processo de construo
da nao e tem como fio condutor as premissas dos nacionalistas africanos e suas relaes
com as tradies ocidentais de conceber a nao como comunidade de destino partilhada
atravs da unidade poltica. No item 2, procurei destacar a origem do nacionalismo africano,
analisar as primeiras manifestaes de cunho nacionalista dos estudantes africanos em Lisboa,
dando nfase Casa de Estudantes do Imprio (CEI), na formao das conscincias
nacionalistas dos jovens estudantes africanos.
Tambm minha inteno conhecer quais eram as fontes referenciais destes
estudantes africanos Amlcar Cabral, Mrio de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos
Santos, Agostinho Neto e quem eram seus interlocutores, qual era o impacto dessas
22
manifestaes estudantis em Portugal e nas disporas africanas. No item 3, sobre a unidade
africana como fator de libertao, me debrucei acerca da viabilidade da ideia de unidade
africana no contexto colonial como forma de solidariedade no enfrentamento do sistema
colonial, tendo como protagonista o gans Kwame Nkrumah, culminando com a criao da
Organizao da Unidade Africana (OUA) em 1963.
Por fim, no item 4, abordo a importncia dos partidos polticos na construo do
Estado nao na frica, procurando analisar o surgimento dos partidos polticos e
movimentos de libertao nacional e sua importncia na representao de interesses comuns
na edificao da nao.
O segundo captulo - Da Guin portuguesa a Guin-Bissau: da chegada dos
portugueses costa africana aos processos de resistncias anticoloniais - centra-se na
montagem da administrao colonial, bem como nos vrios processos de resistncias
desencadeados pelos povos nativos. luz da cronologia histrica, descreve-se a emergncia
anticolonial mais contempornea, mais precisamente nos meados do sculo XX, focalizando a
criao do Movimento de Libertao da Guin-Bissau (MLG), liderado por Rafael Barbosa e,
em 1959, a criao do Partido Africano para a Independncia (PAI), liderado por Amlcar
Cabral, cuja tese central passava por um projeto de unidade entre a Guin-Bissau e Cabo
Verde, tendo como pressuposto primordial a unidade intertnica entre os bissau-guineenses.
Este captulo tambm est dividido em quatro itens que se recortam cronologicamente.
Por sua vez, o terceiro captulo - intitulado Amlcar Cabral e o contexto do ps-
guerra: os acontecimentos que impulsionaram a via armada na Guin-Bissau - composto de
trs itens. Na parte introdutria procuro destacar os principais fruns de debates registrados
atravs de vozes coletivas que condenaram o sistema colonial na frica. Enfatizo o contexto
do ps-guerra que legitimou, sobremaneira, os movimentos de autodeterminao dos povos
africanos. No item 1, analiso a sada de Amlcar Cabral de Lisboa e a sua entrada na vida
poltica de Guin-Bissau no contexto da sua nomeao pelo servio colonial como o primeiro
engenheiro agrnomo negro na granja de Pessub.
nesse mbito que Amlcar Cabral se inseriu como nacionalista com olhar atento s
estratificaes sociais determinadas pela administrao colonial na Guin-Bissau. Neste item,
destaque dado para o ressurgimento de Amlcar Cabral no cenrio do massacre de
Pindjiguiti. No item 2 - que tem o ttulo Uma luta, dois pases: a criao de uma nica frente
para libertao da Guin-Bissau e Cabo Verde - analiso a constituio de uma frente
nacionalista para a luta de libertao nacional, tendo como protagonistas dois dos principais
movimentos de libertao: PAI e MLG.
23
A proposta surge de Amlcar Cabral, que enxergava na unidade entre a Guin-Bissau
e Cabo Verde a nica via possvel para a liquidao do colonialismo portugus, objetivando a
independncia. O elo principal desta unidade era Rafael Barbosa, bissau-guineense de etnia
manjaca, e que serviria de smbolo de mobilizao dos bissau-guineenses para a unidade com
os caboverdianos. Vale registrar que o contexto do massacre de Pindjiguiti de 1959 trouxe
uma reviravolta na verdadeira data da fundao do PAI em Bissau. Mais especificamente, o
contexto do massacre de Pindjiguiti forja a remodelao na estrutura organizativa de
mobilizao de luta, seguindo assim para a segunda fase mais expansiva, que marca a
insero dos camponeses no cenrio de luta de libertao nacional.
Os contornos da concretizao da Frente de Libertao, da criao do partido Estado,
da viabilizao da luta armada, foram tratados no quarto captulo, intitulado A luta armada
de libertao nacional e a conscincia nacional: uma anlise da conjuntura internacional.
Nele procuro destacar os principais desdobramentos que culminaram na via armada para a
independncia da Guin-Bissau.
A internacionalizao7 da luta de libertao, as denncias de aes colonialistas
feitas atravs de Amlcar Cabral, sob o pseudnimo de Abel Djassi, que advoga os interesses
dos dois pases, e sua atuao nas conferncias internacionais merecem destaque neste
captulo.
Sem dvida, a criao da Frente Revolucionria Africana para a Independncia
Nacional (FRAIN) e da Conferncia das Organizaes Nacionalistas das Colnias
Portuguesas (CONCP), que objetivavam coordenar as lutas de libertao das colnias, as
participaes nas conferncias afroasiticas de Belgrado e na Tricontinental de Havana,
deram Cabral uma dimenso internacional.
Assim, ganharam destaque neste captulo os contornos do Congresso de Cassac, de
1964, a Batalha de Como, a diviso territorial do pas em frentes de luta e o processo poltico
e militar que foi engendrando a conscincia da nao e reformatando a ideia do Estado nos
limites territoriais da Provncia colonial. Tambm, o reconhecimento em nvel internacional
da luta do PAIGC foi decisivo para os anos que se seguiram independncia da Guin-
Bissau. Os bastidores do assassinato de Amlcar Cabral, e o papel das mulheres na luta de
libertao nacional, fecham a anlise desse captulo.
7 A partir da Conferncia de Bandung, na sia, em 1955, a luta de libertao na frica em geral passou a ser
inscrita como luta contra o imperialismo, tendo apoio dos pases asiticos e alguns pases europeus em torno de
uma solidariedade contra o colonialismo.
24
O quinto e ltimo captulo - intitulado A Guin-Bissau no contexto das
independncias africanas e o nascimento de um Estado africano: desafios e possibilidades -
composto de trs itens. Nele me dedico a discorrer sobre a falncia do legado de Cabral na
poltica contempornea bissau-guineense. Me debrucei sobre os desafios da construo do
Estado nacional ps-independncia e os dilemas que nortearam o nacionalismo bissau-
guineense.
Vale salientar que o projeto de Cabral de unidade resultante de trs eixos: a
etnicidade como forma de se engendrar a conscincia nacional entre os combatentes da
liberdade da ptria na Guin-Bissau; a unidade Guin-Bissau e Cabo Verde, inspirada nos
laos histricos que ligam estes dois pases; e por fim a unidade entre os movimentos pela
independncia nas colnias portuguesas do Movimento Anticolonialista (MAC), FRAIN e
CONCP, com vistas concretizao da ideologia nacionalista proposta pela unidade africana.
Os eixos cultura e unidade articulam-se fortemente com a questo do nacionalismo
no projeto de Cabral. atravs da cultura que o movimento de libertao vai procurar o seu
fundamento para a modelao da identidade nacional. Cabral atribuiu uma nova dimenso
cultura no processo de luta de libertao nacional de modo a revolucionar as relaes sociais
pautando-se na insubmisso aos preceitos coloniais.
Merecem destaque neste captulo o perodo ps-independncia, marcado pela
ausncia de sinais de desenvolvimento e as contradies ideolgicas do PAIGC que
culminaro com o Movimento Reajustador de 1980, liderado por Joo Bernardo Vieira (Nino)
e as sucessivas tenses de cunho tnico no interior do PAIGC, seguidas dos tensionamentos
da primeira abertura multipartidria de 1994, geradora da II Repblica bissau-guineense; o
referencial da mudana democrtica de 1994 como um marco na (re)construo e afirmao
da pertena tnica identitria e, provavelmente, no nascimento do novo Estado; a
reformatao da unidade tnica como o novo iderio da soberania nacional.
Esta pesquisa foi desenvolvida em duas fases interdependentes. Na primeira fase foi
realizado um trabalho de pesquisa documental e bibliogrfica em Portugal, com o intuito de
compreender a gnese do Estado nacional na Guin-Bissau e sua conexo com diversidades
tnicas, alm de se analisar o discurso cabralista acerca da unidade Guin-Bissau e Cabo
Verde. A escolha por Portugal como rea de pesquisa resulta fundamentalmente da
constatao de uma quantidade expressiva de produes sobre o perodo colonial na Guin-
Bissau, alm de ser, nos ltimos tempos, um espao de vrias publicaes acerca da poltica
contempornea dos pases africanos de lngua oficial portuguesa (PALOPs).
25
O contato com a Fundao Mrio Soares e o acesso aos arquivos sobre a luta de
libertao na Guin-Bissau me possibilitaram um leque de conhecimentos sobre as questes
que nortearam os bastidores do movimento de libertao. Tive acesso s trocas de
correspondncias entre Amlcar Cabral e seus interlocutores nacionalistas africanos, em
particular o seu homlogo angolano Mrio Pinto de Andrade, com quem ele dividia aflies e
as estratgias para a organizao da luta e do combate ao colonialismo, sobretudo na criao
das frentes unidas de libertao nacional.
Os materiais sobre o processo de organizao e desenvolvimento da luta de
libertao, a questo da unidade Guin-Bissau e Cabo Verde, o assassinato de Amlcar
Cabral, a independncia, assim como a ruptura da unidade binacional, em 1980, com o golpe
de Estado, denominado Movimento Reajustador de 14 de Novembro, trouxeram
particularidades a essa pesquisa e deixaram evidentes as possveis dvidas de escassez de
materiais, que at ento constitua a grande dificuldade para viabilizao desta tese.
Ainda em Lisboa tive contatos com o Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da
Empresa (ISCTE), onde encontrei uma enorme biblioteca de estudos africanos, e o apoio
Adex da Silva que ajudou sobremaneira no prosseguimento dessa pesquisa. No Centro de
Estudos Sociais (CES) em Coimbra, encontrei colegas que facilitaram o meu acesso
biblioteca central, aos quais expresso o meu reconhecimento.
As atividades de pesquisa na primeira fase permitiram catalogar as fontes
bibliogrficas acerca do tema, bem como avaliar como o projeto de unidade tnica defendida
e propostada por Cabral foi consolidado num determinado contexto histrico e os motivos que
esto atrs do atual colapso do Estado nacional na contemporaneidade na Guin-Bissau.
Uma vez que so escassas as fontes histricas e memorialistas referentes ao perodo
colonial, escritas pelos intervenientes no processo, grande parte do trabalho para a
compreenso deste passado passa pelas entrevistas. Entretanto, as entrevistas no so neutras,
e natural que a histria se transforme no domnio de recriao e de manipulao. A memria
torna-se, deste modo, um instrumento para se reivindicar a participao no movimento de
independncia e, assim, apelar ao reconhecimento pblico e a todas as regalias que da
possam advir (TOMS, 2010).
Desta forma, a segunda parte da pesquisa foi desenvolvida em Bissau, como centro
de referncia da temtica, e no s como espao ideal para interlocuo com os protagonistas
da luta de libertao nacional, a fim de partilhar as suas memrias sobre os tempos da guerra
colonial e da construo do Estado nacional. Concretamente, centrei as minhas entrevistas nos
membros do PAIGC, partido que liderou a luta pela independncia e que, na poca, se
26
encontrava no exerccio do poder no pas. Tambm coletei algumas informaes no Jornal N
Pintcha8, de 1980, sobretudo no que refere ruptura entre Guin-Bissau e Cabo Verde.
importante ressaltar que desenvolver a pesquisa sobre Guin-Bissau em todos os
seus aspectos constitui uma dificuldade para qualquer pesquisador(a), visto que na Guin-
Bissau existe uma nica instituio que gerencia arquivos e mesmo assim em condies
limitadas. Quando se trata do perodo da luta de libertao nacional, e anos posteriores a esse
perodo, fica evidente a ausncia de catalogao dos arquivos. As referncias existentes
acerca da questo podem ser encontradas de forma dispersa e isolada, na sua maioria nas
minibibliotecas e arquivos pessoais dos militantes do PAIGC e dos ex-combatentes da
liberdade da ptria.
Outro aspecto que merece ser destacado nesse cenrio tenebroso da vida do(a)
pesquisador(a) bissau-guineense diz respeito ao clima de medo em testemunhar sobre o
processo que engendrou a nao forjada na luta, como tambm os bastidores que permearam o
golpe de Estado de 1980 e a abertura poltica de 1994. Essa obstruo dos fatos histricos em
parte se deve s incontveis instabilidades polticas geradas por golpes de Estado que
assombram o pas. O silncio constitui um dos grandes empecilhos na compreenso dos fatos
histricos e de algumas transformaes polticas e sociais na contemporaneidade. Devido a
estes fatores, optei pela no identificao de alguns entrevistados no tocante abordagem de
assuntos mais delicados, visto que a situao poltica do pas ainda continua imprpria.
Para realizao das entrevistas tive que contar com uma articulao imprescindvel
que estabelecia pontes com os meus entrevistados, o que foi indispensvel para o andamento
das pesquisas. Nesse momento, no posso esquecer de registrar a grande contribuio de
Odete Semedo, participante ativa do PAIGC, ex-Ministra da Educao e atual Reitora da
Universidade Amlcar Cabral que, em alguns momentos, me acompanhou para o encontro
com os entrevistados, tornando a minha caminhada menos difcil.
Por se tratar de uma histria oral e tendo em conta os sujeitos que priorizei como
referncias na pesquisa, os antigos combatentes da liberdade da ptria, na maioria analfabetos,
no pude seguir o roteiro da entrevista como esperado. Desta forma, os depoimentos eram
inicialmente histrias de vida destes sujeitos vinculados luta de libertao nacional, j que a
maioria passou sua juventude na luta.
8 Chamado No Pintcha, em portugus Avante, era um chamada para a guerra, para a marcha, para a comida,
talvez, at, para o amor. Mais tarde foi atribudo como nome de um importante jornal criado pelo PAIGC para
publicar os assuntos relacionados com o partido e o pas (CABRAL, 1984).
27
A dinmica do campo me obrigou a alterar algumas prioridades no tocante aos
sujeitos primrios e secundrios. Alguns entrevistados que eram considerados inicialmente
como sujeitos primrios passaram a ser considerados secundrios pelos contedos dos seus
depoimentos que, por alguma razo, obstruam informaes principais e no colaboravam
com a pesquisa. Contudo, os depoimentos no mudaram a minha hiptese inicial sobre a
configurao tnica no Estado bissau-guineense delineado no campo poltico, como fator
preponderante.
oportuno frisar que abordar esta temtica extremamente difcil, visto que existem
poucas obras acadmicas que referenciam os fatos polticos de forma objetiva, citando fatos
acontecidos. Este dficit de informaes acadmicas referentes s questes polticas se deve
onda de intimidao e tortura que acontece no pas, protagonizada pelos polticos, com o
apoio dos militares e polcias.
Por fim, ressalto que esta pesquisa pode contribuir para a compreenso poltica da
frica contempornea e para debates que assumem um lugar relevante nas Cincias Sociais
na atualidade, que o papel das identidades tnicas e das soberanias nacionais na
conformao da democracia.
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Captulo I - O processo fundante do Estado nao: nacionalismo como
instrumento de libertao
A luta da libertao , sobretudo tanto uma luta
para a conservao e a sobrevivncia dos
valores dos povos como para a harmonizao
e o desenvolvimento destes valores
no contexto nacional.
(CABRAL, 1974, p. 61).
1.1 Breve histrico sobre o processo de construo da nao
Este captulo objetiva realizar uma breve anlise acerca das principais contribuies
tericas sobre a concepo da nao e do processo da identidade nacional representados nos
diferentes contextos sociais. Ao longo do texto, procurarei expor algumas premissas que
possibilitam pensar o processo fundante da nao como comunidade de destino, tendo como
referncia os movimentos de libertao em diversos pases africanos, que engendraram a
construo de Estados nao.
O pensamento de Amlcar Cabral e de outros nacionalistas africanos, inspirados nas
reflexes das tradies ocidentais que concebem a nao como comunidade de destino
partilhada atravs da unidade poltica, ser o fio condutor da anlise neste captulo.
Nas ltimas dcadas, a anlise de nao enquanto construo terica vem ganhando
uma maior visibilidade no campo das Cincias Sociais. As principais razes que contriburam
para esse desenvolvimento so tanto de ordem poltica, quanto scio-histrica. Entretanto, a
sua concepo difere nas vrias correntes de pensamentos defendidas por seus estudiosos.
Do ponto de vista poltico, destacam-se as mudanas ocorridas na Europa dita
Iluminista nos finais do sculo XVIII e durante o sculo XIX, que conduziram formao
de Estados nacionais. O conceito de nao - expressando um cenrio em que certo sentido de
comunidade (de lngua e cultura, por exemplo) identificvel que contribuiu para a formao
de identidade nacional - se alastrou rapidamente entre os quatros cantos do mundo, gravitando
em torno de uma verdade atemporal e inquestionada, analisada em contextos diferentes
(RENAN, 1997). no sculo XVIII que nao foi conferida, respectivamente, uma
29
dimenso de homogeneidade histrica e cultural herdada (concentrada na ideia alem de
Volksgeist) e uma dimenso de lao poltico livremente consentido (expressa pelo termo
francs volont gnrale) (FIGUEIREDO, 2012, p. 39).
Importante salientar que, no que tange ao conceito de nao, suas formas de
construo so sui generis, dependendo da insero social e cultural dos indivduos numa
determinada realidade culturalmente construda. Por outro lado, o ponto de vista poltico
desse perodo do sculo XVIII apresenta um liame com as transformaes ocorridas no
cenrio social e poltico mundial pautado numa condio de vida na qual a nao era tida
como algo necessrio para potencializar a soberania.
Esse perodo do sculo XVIII nos traz desafios para a compreenso do que veio a ser
nao na contemporaneidade, no tocante s novas reflexes sobre o papel do Estado
redesenhado no processo de colonizao e produzidas no perodo ps-independncia em
vrios pases africanos, que reconfiguraram a concepo da nao, propondo novos ditames
na sua configurao.
A partir do sculo XIX, vai surgir uma reformulao conceitual centrada na
compreenso do nacionalismo e das pretenses nacionalistas. O nacionalismo que emergiu no
sculo XIX na Europa estava descrito em quatro eixos chave: povo-estado-nao-governo.
Estes eixos eram claramente moldados pelos fins polticos. Segundo Hobsbawm (2002 p.
113),
Os movimentos nacionalistas neste perodo tornaram-se movimentos de
massa (). Entretanto, como j vimos, uma grande parte do povo comum, como os camponeses, ainda no havia sido atingida pelo nacionalismo,
mesmo em pases onde sua participao em poltica era levada a srio,
enquanto outras, principalmente as novas classes trabalhadoras, eram
praticamente requisitadas para seguir movimentos que, pelo menos em
teoria, punha um interesse de classe internacional acima de filiaes
nacionais.
Do ponto de vista scio-histrico, concretamente na primeira metade do sculo XX,
a abordagem do nacionalismo estava atrelada a uma comunho de destino, a um territrio e
cultura comum, a uma unidade com forte nfase nos conceitos de liberdade, integridade,
cidadania. tambm nesse perodo que vrios pases africanos se organizaram para a
emancipao poltica.
a partir deste perodo que o conceito do nacionalismo foi associado noo da
cultura, estabelecendo laos entre aqueles considerados como tendo, em comum, uma
30
etnicidade, uma linguagem, uma cultura e passado histrico (Hobsbawm, 1990, p. 204),
constituindo assim o fator principal para engendrar a nao em alguns pases africanos.
Como indaga Ernest Renan (1990): mas o que uma nao?. Para introduzir tal
discusso, os autores que fundamentam esse trabalho traam uma reflexo a partir de
perspectivas diversas, estabelecendo assim os mecanismos que desenham antigas e novas
configuraes do que conhecemos como nao.
Definir precisamente o conceito de nao parece-nos tarefa difcil frente ao
emaranhado de definies peculiares que povoam a literatura sobre o tema, levando em conta
as agitaes e inconstncias que as naes vm enfrentando na atualidade, comparadas com
a fora e a estabilidade dos sentimentos de identidade nacional reivindicados anteriormente
pelos nacionalistas (HOBSBAWM, 1990, p. 211). Ainda assim, possvel delinear alguns
aspectos que ajudam a compreender tanto a nao quanto os elementos que a compem na
contemporaneidade.
Alguns autores definem a nao com foco no pertencimento, outros enfatizam uma
relao com a gnese do Estado colonial. Por esta via, a ideia de nao traz no seu bojo, de
um lado, o carter de um construto baseado no reconhecimento, constitudo pelas narrativas
de lealdade, e, de outro lado, o aspecto histrico, uma ligao atravs de eventos simbolizados
na conquista dos ideais comuns, como a independncia no caso das metrpoles.
Por fim, discute-se como este campo do conhecimento pode ser um instrumento
valioso para problematizar a complexidade da relao entre Estado e nao, observando a
questo de que o conceito de nao uma construo especfica e que sua formatao
depende dos contextos histricos, culturais, sociais e econmicos de cada sociedade,
impactados diretamente na experincia poltica. Cabe assinalar que em muitas experincias
histricas deparamo-nos com a existncia do Estado sem nao, ou vice-versa.
Tal contexto nos impele a questionar, como prope Bauer (2000): ser a conscincia
de uma insero comum num grupo que compe a nao? A partir desta questo
descreveremos de uma forma reflexiva as diversas concepes de nao presentes nos
trabalhos de alguns estudiosos.
Por outro lado, tambm nos interessa analisar nesse mbito o que viria a ser nao e
identidade nacional na concepo dos seguintes autores: Otto Bauer (2000), Ernest Renan
(1997), Homi Bhabha (1998), Benetict Anderson (1989), Partha Catterjee (2000), Stuart Hall
(2003), Anthony Smith (2000), Katherine Verdey (2000), Eric J. Hobsbawm (1990), Frantz
Fanon (2005), Amlcar Cabral (1982) e outros nacionalistas africanos.
31
Dos estudos em questo, depreende-se que a concepo de nao oscila entre duas
grandes vertentes. A primeira definio fornece uma narrativa da nao como comunidade
imaginada, defendida por autores como Benedict Anderson (1989), Anthony Shmith (2000),
Stuart Hall (2005), Katherine Verdey (2000), Max Weber (1999), entre outros. Smith (2000),
Weber (1999) e Anderson (1989) compartilham da concepo da nao como uma categoria
imaginada e equiparada ao sentimento nacional, em que a nao a comunidade que tende a
produzir seu prprio Estado. Para Benedict Anderson, a nacionalidade ou nacionalismo so
artefatos culturais de um tipo peculiar.
Portanto, para compreender tal conceito - nao - necessrio observar como se
tornaram entidades histricas, e de que modo seus significados se alteraram com o decorrer
do tempo e porque hoje inspiram uma legitimidade emocional to profunda, que tambm ,
como quer Schwarcz (2008, p. 2), pautada pela ideia de que preciso fazer do novo, antigo,
bem como encontrar naturalidade num passado que, na maioria das vezes, alm de recente
no passa de uma seleo com frequncia consciente.
Para Anderson (1989), a nao uma comunidade poltica imaginada implicitamente
limitada e soberana. Ela imaginada porque nenhum dos seus membros conhecero a maioria
dos seus compatriotas, embora esteja viva a imagem de comunho. Apesar das desigualdades
e explorao, a relao entre as pessoas na nao concebida como um companheirismo
profundo. Limitada, porque possui fronteiras finitas, ainda que elsticas, e nenhuma nao
coextensiva com a humanidade.
Anderson traz uma concepo de nao pautada por uma linha de continuidade
histrica, mediada entre a lembrana e o esquecimento. Lembrana das contribuies
histricas, e esquecimento de diferenas identitrias anteriores dos povos em conflito.
Para este autor, a nao um conceito transitrio em constante transformao, isto ,
transformao dos interesses ancestrais substitudos pelos interesses comuns da nova nao.
Mais que inventadas, as naes so imaginadas, no sentido de que fazem sentido para a alma
e constituem objetos de desejos e projees. (ANDERSON, 1989, p. 20).
Para Anthony Shmith (2000, p. 199), por exemplo, as naes so criadas na
imaginao histrica e sociolgica, atravs da identificao com os heris comunitrios, pois
uma nao seria a mediao entre o passado histrico e um presente ancorado no anseio das
conquistas de soberania estabelecido pela rede de solidariedade criada pelo sentimento dos
resultados dos sacrifcios dessa conquista.
Segundo este autor, a nao tambm um instrumento de legitimao e mobilizao
atravs do qual os lderes despertam o apoio das massas para a sua luta competitiva pelo
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poder. J para Weber (1999), a nao tende a incluir a ideia da origem comum e de uma
semelhana no modo de ser. Para ele, a nao um sentimento da comunidade tnica
alimentado por fontes diversas.
Tanto Smith quanto Anderson propem que a nao um construto da imaginao,
uma comunidade que se imagina soberana e delimitada. Por outro lado, a nao seria tambm,
na concepo de Katherine Verdey (2000), uma comunidade simblica poltica e ideolgica,
circunscrita numa interao social dos seus membros. Entretanto, a nao na concepo da
autora um construto ideolgico que une seus membros distinguindo-os dos de outras naes,
pelo sentimento de pertencer mesma histria, ou seja, pela questo de compartilhar os
mesmos smbolos nacionais.
Katharine Verdey (2000) ainda assinala que a nao tornou-se um smbolo potente
de classificao internacional de Estados nacionais. Pois, alm de ser um construto ideolgico
preponderante para conferir ordens nos espaos geopolticos, a nao uma alegoria que
traduz a legitimidade a inmeras representaes polticas no campo de contestao de poder.
Vale ressaltar que a questo simblica de uma nao est intimamente ligada aos
aspectos de uma herana histrica comum, baseada na luta e conquista de signos que
expressam o mrito de um Estado soberano e independente. Portanto, estes signos esto
imbricados na conscincia nacional destes membros da nao, e legitimados como
identidade social que une os componentes desta nao atravs do pertencimento a uma
comunidade com sentimento de partilha.
Esta reflexo nos remete s formulaes de Stuart Hall, que define a nao no
apenas como uma entidade poltica, mas como algo que produz sentido, isto , um sistema de
representaes culturais reconhecidas pelos seus membros. Ao fazerem parte deste sistema de
representao cultural, os membros da nao compartilham, atravs da cultura, uma cultura
nacional que explica o poder da nao e gera um sentimento de identidade e lealdade
(HALL, 2005, p. 49).
Para Hall (2005, p. 50), uma cultura nacional um discurso, ou seja, um modo de
construir sentidos que influencia e organiza nossas aes e as concepes que temos de ns
mesmos, para que possamos nos identificar e construir identidades. Ainda sobre os discursos
fundacionais, Stuart Hall argumenta que muitas naes fornecem narrativas baseadas no mito
ou estria que localiza a origem da nao, do povo e do carter nacional num passado
distante, no de tempo real, mas de um tempo mtico (HALL, 2005, p. 55).
A segunda vertente, defendida por autores como Otto Bauer (2000), Amlcar Cabral
(1982), Frantz Fanon (2005), Homi Bhabha (1998), Ernest Renan (1997), Eric J. Hobsbawm
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(1990), dentre outros, de uma nao concebida como comunidade de destino baseada na
experincia comum dos seus membros e de uma constante interao mtua, renovada atravs
dos valores culturais das geraes anteriores.
Segundo Otto Bauer (2000), a nao seria comunho de destino, que implicaria uma
experincia comum de mesmo destino em uma interao mtua entre os membros. Para o
autor, a questo principal que caracteriza a nao como comunidade de destino a herana
natural, ou seja, a descendncia e a transmisso dos valores culturais atravs da lngua vista
como um instrumento da comunidade humana. Para este autor:
O fato de a nao no ser produto de mera semelhana de destino, mas brotar
da comunho de destino e consistir nela, na constante interao dos que
partilham esse destino, o que a distingue de todas as outras comunhes de
carter. Assim a nao pode ser definida como uma comunho de carter que
brota de uma comunho de destino, e no de uma mera semelhana de
destino (p. 57-58).
Nesta mesma linha, Amlcar Cabral chama a ateno para a concepo da nao
como resultado da reao de um grupo de homens e mulheres face ao meio social e aos
problemas existentes, e da sua ao conjunta para enfrentar esses problemas, na medida em
que tenham uma aspirao comum, nesse caso a conquista da independncia e a soberania
nacional.
O conceito de nao idealizada por Amlcar Cabral foi determinante na engenharia
social do povo bissau-guineense, ao pretender uniformizar os interesses tnicos em interesses
coletivos, gravitando numa nova identidade unificada, que transmite aos sujeitos o significado
homogneo de representao de seus interesses atravs de discurso de construo da nao.
Outrossim, a concepo da nao em Amlcar Cabral estava associada questo da
libertao, do nascimento do homem novo, de uma nova cultura nacional, uma conscincia
de pertencer a uma comunidade ligada a um territrio, para a sua afirmao na luta de
libertao. Nesse sentido, afirma Cabral (1974, p. 114) que:
atravs da luta que estamos forjando a nossa Nao Africana, que como
sabem no estava bem definida, com todos os problemas de grupos tnicos,
com todas as divises criadas pelo prprio colonialista, por exemplo,
indgenas e assimilados, gente dos campos, etc., etc. Estamos forjando a
nossa Nao Africana que cada dia mais consciente de si mesma.
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O que enfatizado na concepo de Amlcar Cabral a nao como herana do
passado (continuidade histrica), baseada na narrativa de uma forte e unificada identidade
continental. No obstante, no existe continuidade sem ajustes de valores culturais, de normas
polticas, etc. Desta forma, toda a continuidade requer um processo de ajustes do novo
contexto e das novas normas especficas de cada sociedade.
Em linhas gerais, a nao no seria uma concepo simblica, baseada no discurso
da fundao eminentemente com retorno ao passado, mas sim de um passado conjugado com
o presente recheado de diferenas tnico-culturais dos seus membros.
Seguindo a mesma abordagem terica da nao como estratgia do enfrentamento,
destacamos o nacionalista martiniquense Frantz Fanon, para quem a nao nasce da ao
organizada do povo, que encarna as aspiraes reais do povo, e essa nao influi
fundamentalmente na cultura. Ainda para Frantz Fanon (2005, p. 279), a cultura primeira
expresso de uma nao, de suas preferncias, de seus interditos, de seus modelos. Ele
adverte:
A nao no apenas condio da cultura, da sua efervescncia, da sua
renovao contnua, do seu aprofundamento. Ela tambm uma exigncia.
primeiro o combate pela existncia nacional que desbloqueia a cultura, abre-
lhe as portas da criao (FANON, 2005, p. 280).
A centralizao da concepo da nao pelos nacionalistas africanos atravs da via
da cultura deve-se ao fato da administrao colonial centrada na poltica de assimilao
cultural europeia tentar eliminar todas as possibilidades que vislumbre uma demonstrao
cultural autnoma dos colonizados. A alienao colonial propunha a recusa das tradies
culturais e das subjetividades identitrias.
Nesse sentido, a proposta da construo de uma unidade nacional preconizada tanto
por Cabral quanto por Fanon e outros nacionalistas a de que os africanos teriam que passar
necessariamente pelo processo de desalienao a que foram submetidos, com vistas
valorizao cultural, como condio fundamental para a conscincia poltica e reabilitao das
suas identidades.
A conscincia nacional constitua - no entendimento de Cabral, de Fanon, bem como
de outros nacionalistas africanos - fator determinante para a luta de libertao nacional, que
vai engendrar a construo da nao africana livre de dominao e submisso cultural;
atravs da cultura que o colonizado conquistar a sua liberdade.
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Assim, tanto Cabral quanto Fanon viam na construo da nao o fator
revolucionrio de mudana cultural, da desalienao dos povos africanos na tomada de
conscincia, que visava libertao do continente, forjando um sujeito humano novo livre do
fardo da raa. Pois, para Fanon (2005, p. 283), a libertao nacional que torna a nao
presente no palco da histria.
Por sua vez, Homi Bhabha percebe que a nao no mais o signo de modernidade
sob o qual diferenas culturais so homogeneizadas, pois a nao revela em sua
representao ambivalente uma etnografia de sua prpria afirmao de ser a norma da
contemporaneidade social (BHABHA, 1998, p.212). A conjuntura liminar de uma
modernidade cultural colocou a nao como explicao central para a composio de uma
srie cultural que se queria mimese da sociedade. (BHABHA, 2005, p. 200). Bhabha ainda
chama a ateno para o sentido ambguo da nao, por um lado o conforto de se pertencer a
uma sociedade, os costumes, o gosto, e por outro as injustias ocultas da classe e o senso
comum da injustia. (p. 52).
O contexto etnogrfico proposto por Bhabha - no tocante ambiguidade em perceber
a nao enquanto construto - facilita compreender a configurao das naes africanas, que
tonifica a unidade sobre as diversidades tnicas num determinado contexto histrico, mantida
sob o discurso de lealdade e solidariedade, que posteriormente veio a projetar-se na
exasperao do poder e no depauperamento dos membros fundadores desta narrativa
discursiva, compartilhada pelos smbolos de conquistas das independncias.
Nestas condies, o discurso nacional tende a se esgotar mediante as prticas de
poder que lhe so agregadas prticas estas conflitantes entre si e que disputam a
apropriao do smbolo da nao, o que torna a nao seno a encruzilhada ou o conjunto
movedio dos discursos concernentes identidade nacional (MICHEL & DEBRUN, 1990).
Para Ernest Renan (apud FOREST, 1970), a nao um princpio espiritual, que
resulta das profundas complicaes da histria, constituda por um legado comum de
lembranas, da vontade de fazer valer esta lembrana, isto , na vontade de permanecer
juntos. Portanto, para ele:
O que distingue as naes no nem raa, nem a lngua. Os homens sentem
no corao que so um mesmo povo quando tm uma comunho de ideias,
de interesses, afetos, lembranas e esperanas. Eis do que feita da ptria.
Eis por que os homens querem caminhar juntos, trabalhar juntos, combater
juntos, viver e morrer uns para os outros. A ptria o que amamos. (RENAN
apud FOREST, 1970).
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Neste contexto, o sofrimento destacado pelo autor como marca preponderante nas
recordaes nacionais, pois uma nao o esprito de solidariedade baseado nas lembranas
do passado sofrido, que estimula o desejo de estar juntos. Assim, para Renan, O sofrimento
em comum une mais que a alegria, isto , os lutos valem mais do que os triunfos. (p. 40). Ele
afirma:
Uma nao uma grande solidariedade, criada pelo sentimento dos
sacrifcios que foram feitos e daqueles que se est disposto a fazer no futuro.
Ela pressupe um passado, mas resume-se no presente num fato tangvel, no
consentimento, no desejo claramente expresso de continuar a viver em
comum. A existncia de uma nao um plebiscito realizado em cada dia,
assim como a existncia do individuo uma perpetua afirmao da vida.
(2000, p. 188).
Articulando o esforo terico de Anthony Smith (2000) assertiva de Ernest Renan
(apud SMITH, 2000), possvel verificar um investimento poltico num discurso baseado no
passado histrico comum que nos remete compreenso da configurao das naes
modernas. A nao uma grande solidariedade ligada pelos sentimentos de sacrifcios. Isto ,
pressupe um passado baseado na vontade expressiva de viver em comunidade que promove
a partilha de signos e de smbolos identitrios que d sentido existncia da nao.
Por sua vez, Eric J. Hobsbawm (1990, p. 28) define a nao como a comunidade de
cidados de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo e tendo uma comunho de
interesses, a coletividade de habitantes de um territrio com tradies, aspiraes e interesses
comuns subordinados a um poder central que se encarregue de manter a unidade do grupo.
De modo geral, as concepes de nao residem nas formas como so pensadas ou
imaginadas, pois muitas naes africanas, por exemplo, foram pensadas de forma diferente de
algumas naes ocidentais, devido ao contexto histrico em que surgiram.9 Por exemplo, na
Guin-Bissau, como em outras colnias portuguesas, a nao foi forjada na luta de libertao.
Neste sentido, o Estado nao na concepo ocidental tem uma funo homogeneizadora e
unificadora, porm este modelo de Estado ope-se organizao, s normas, s instituies e
aos valores das sociedades africanas pr-coloniais que so majoritariamente plurinacionais
(VAN DNEM, 1997, p. 32).
Deste modo, no continente africano, a concepo baseada numa nao englobando
vrias comunidades tnicas diferentes, o que deve relativizar a concepo recorrente da nao
como a comunidade homognea, ou seja, unificada. Em outras palavras, o processo de
9Faz-se necessrio esclarecer que a emergncia do Estado nao em alguns pases da Europa, como Frana,
Itlia, Alemanha etc., se d num quadro de multiplicidade tnica, que em alguns casos culminou com a
integrao na etnia dominante.
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formao da identidade nacional em frica caracterizada pela permanncia da etnicidade.
Como refora Hobsbawm (1990, p. 191),
[...] enquanto esses movimentos de libertao nacional no terceiro mundo
foram teoricamente modelados no nacionalismo do ocidente, na prtica, os
estados que geralmente intentaram construir foram o oposto das entidades
lingusticas e etnicamente homogneas que vieram a ser encaradas como
forma padro do estado-nao no ocidente.
Outro aspecto relevante a ser considerado na anlise da nao e na construo da
identidade nacional que a percepo simblica na construo da identidade nacional no
universal; ela muda de acordo com as especificidades de cada sociedade. Assim sendo, ao
mesmo tempo em que a nao se configura no discurso homogeneizador, tambm
diferenciador representado atravs de ideologias nacionais. A nao produz e reproduz ideias,
construtos e lutas polticas.
Cabe assinalar que a relao entre poder poltico e democracia na Guin-Bissau
trouxe consigo uma srie de desafios para o Estado nao, no tocante s formas de conciliar
interesses coletivos (nao) e grupais (partidos polticos), pois os interesses individuais tm
moldado a configurao da nao bissau-guineense atravs da disputa pelo poder poltico.
Analisar a dinmica de formao do Estado nao na Guin-Bissau requer a
compreenso do processo complexo de transformao poltica, social, cultural e econmica
que impactou durante dcadas o pas, tendo por marco os anos de 1959 a 1994. Entretanto,
para melhor entender essa complexa trajetria, seria interessante atentar para as caractersticas
histricas que impulsionaram o processo desta formao. Estas abordagens sero analisadas
com mais pertinncia nos prximos captulos.
A centralizao da minha anlise na concepo de nao em frica incidir sobre
Amlcar Cabral e no em outros nacionalistas africanos deve-se ao fato de se tratar de um
lder nacionalista bissau-guineense e um dos principais protagonistas na idealizao da nao
bissau-guineense.
Um segundo fator a ser considerado a proximidade ideolgica e da organizao
estrutural do movimento de libertao na Guin-Bissau e das outras organizaes das colnias
portuguesas. Alm de constiturem uma nica frente para contestar a presena colonial em
frica, estes nacionalistas comungavam dos mesmos ideais. Assim, Cabral passou a ser uma
espcie de portavoz e representante principal dos anseios das colnias portuguesas em frica.
nesse ensejo que se justifica a sua escolha em meio aos tericos das tradies ocidentais.
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Em linhas gerais, as duas abordagens acerca da concepo de nao - tanto
comunidade imaginada quanto comunidade de destino - so imprescindveis para a
compreenso das transformaes as quais as naes vm enfrentando. Todavia para os
propsitos desta pesquisa a nossa anlise recai sobre a segunda vertente de nao - o da
comunidade de destino - sendo o conceito que mais se aproxima do discurso dos nacionalistas
africanos, da nao como construo coletiva de destino, que visa elevao da conscincia
nacional com fins unidade poltica.
1.2 A gnese do nacionalismo africano
A afirmao de Anthony D. Smith de que a base legal do nacionalismo para a sia,
a frica e Amrica Latina uma autorreproduo do modelo ocidental de nao, adaptado
pelas elites e, sobretudo, intelectuais destes espaos geopolticos um ponto de partida para
a anlise de concepo de nao nos pases africanos de lngua oficial portuguesa, que teve
sua inspirao nesse modelo ocidental, e, contudo, atentou para suas especificidades que
gravitam entre a concepo de nao e de cultura.
Por isso Mrio de Andrade (1997, p. 13) confirma essa caracterstica do
nacionalismo, defendido por Smith, no obstante assinalar a singularidade africana no
entendimento desta anlise e da particular
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