Artigo Sobre o Mal Em Ricoeur

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Ricœur e a Vis�o �tica do Mal

Marcio de Lima Pacheco1

omartelodezeus@hotmail.com

RESUMO

A obra de Paul Ricœur tem como ponto de partida a reflex�o �tica: o homem fal�vel, da culpa e do mal. Pretendemos nesse artigo abordar o que Ricœur chama de vis�o �tica do mal. Para isso, � necess�rio analisar dois autores que habitualmente n�o se associam, Santo Agostinho e Kant. O primeiro ao lutar contra a concep��o manique�sta do mal e o segundo, ao pensar o mal como uma heteronomia da vontade, um mal radical, isto �, o formalismo em moral. Para Ricœur, a clarifica��o do que seja o mal por esses dois filos�fos se traduz por uma perda de profundidade, pois o pre�o da clareza � a perda da profundidade, da profundidade que corresponde � tenebrosa experi�ncia do mal que aflora nos mitos e nos s�mbolos prim�rios. Ricœur ent�o encontra o que n�o � admitido na vis�o �tica do mal: a tenebrosa experi�ncia que aflora de modo diverso na simb�lica do mal, e que constitui o “tr�gico” da reflex�o. Por conseguinte, o que na teodic�ia era apenas um falso saber como conceito � tornado setor da esperan�a. A necessidade do mal �, pois, ent�o, o mais alto s�mbolo racional que a intelig�ncia da esperan�a forma.

Palavras-Chaves: Paul Ricœur, S�mbolo, Pecado, Mal, �tica

RESUM�

Le travail de Paul Ricœur a comme point de d�part la r�flexion �thique: l'homme faillible, de la faute et du mal. Nous avons projet� dans cett’article pour approcher que Ricœur tirent de vision �thique du mal. Pour cela, c'est n�cessaire analyser deux auteurs qui habituellement n'associent pas, Saint Agustin et Kant. Le premier quand lutter contre le manique�sta de la conception du mal et la seconde, quand penser le mal comme un heteronomia de la volont�, un mal radical, c'est, le formalisme dans morale. Pour Ricœur, l'�claircissement de ce qui est le mal pour ces deux filos�fos la traduit pour une perte de la profondeur, parce que le prix de la clart� est la perte de la profondeur, de la profondeur qui correspond � l'exp�rience sombre du mal qu'il glace dans les mythes et dans les embl�mes fondamentaux. Ricœur trouve ce qui n'est pas admis dans la vision �thique du mal alors: l'exp�rience sombre qui glace dans une plusieurs entr�e le symbolique du mal, et qu'il constitue le " tragique " de la r�flexion. Par cons�quent qui �tait juste une fausse connaissance comme section du concept de l'espoir dans le teodic�ia est tourn�. Le besoin du mal est, par cons�quent, alors, le plus haut embl�me rationnel qui l'intelligence des formes de l'espoir.

Mots Cl�s: Paul Ricœur, Symbole, P�ch�, Mal, �thique

1- INTRODU��O

1 Mestrado em Filosofia pela UFRN, Licenciado em Filosofia (UERN), Pedagogia (FASE) e em Ci�ncias Biol�gicas e Bacharel em Teologia (FPA e pelo Instituto Nossa Senhora da Assun��o); Professor da Faculdade de Filosofia Ci�ncias e Letras de Cajazeiras- FAFIC e da Faculdade do Serid�-FAS; Professor do Ensino M�dio no Estado do Rio Grande do Norte.

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Em que se torna a investiga��o filos�fica sobre o mal, quando a no��o de pecado

original deixa de ser visada como conceito, falso, e passa a ser tomada como s�mbolo

verdadeiro? Responder a esta quest�o � apreender o alcance da vis�o �tica do mal. A

vis�o �tica do mal, para Ricœur, � inaugurada, em parte, por dois grandes nomes que, de

um modo habitual, n�o associamos: Santo Agostinho e Kant. O m�todo utilizado ser� o

da pesquisa bibliogr�fica e o objetivo � mostrar como Ricoeur chega a uma filosofia da

esperan�a a partir de uma vis�o �tica do mal. Para isso, desenvolver-se-�, ao longo do

artigo, as vis�es de Agostinho e Kant, que culminar� por analisar, tamb�m, algumas

filosofias da totalidade como a de: Plotino, Spinoza e Hegel e vermos que essas cont�m

um modelo explicativo da entrada do mal no mundo, mas que n�o o explica. �

necess�rio, portanto, sondar no conceito de pecado original, “n�o a sua falsa clareza,

mas sua tenebrosa riqueza anal�gica. Sua for�a est� em remeter intencionalmente �quilo

que h� de mais radical na confiss�o dos pecados, a saber que o mal precede minha

tomada de consci�ncia, que ele � n�o-analis�vel em faltas individuais, que � a minha

impot�ncia preliminar” (CI,1978,p.258). A fim de tentar vislumbrar o pensamento a

uma filosofia da esperan�a em meio a vis�o �tica do mal.

2 -A VISÃO ÉTICA DO MAL

Santo Agostinho, ao lutar contra a doutrina dos manique�stas2, afirma que o mal

n�o � uma coisa, n�o � mat�ria, n�o � mundo3. Em suma, n�o podemos responder �

pergunta malum esse (o mal existe?), visto que n�o se pode perguntar quid malum (o

que � o mal?) somente podemos perguntar: unde malum faciamus? (de onde adv�m que

fa�amos o mal?)4. O mal, ent�o, � um nada quanto a sua subst�ncia e a sua natureza. As

2 Ver: AGUST�N, San. De Moribus Ecclesiæ et de Moribus Manichæorum. Madrid: B.A.C., 1968. E AGUST�N, San. De gratia Christi et de peccato originali. Madrid: B.A.C, 1968.3 “Em absoluto, o mal n�o existe nem para V�s [Deus] nem para as vossas criaturas” (cf. AGOSTINHO, Santo. Confiss�es, in: Os Pensadores. S�o Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 188). Martinez comenta que: “O mal no mundo � real, � ineg�vel: assim nos parece o mundo. Para descobrir este segredo, temos de precisar o que � o mal. Evidentemente, n�o � uma subst�ncia, n�o � um ser; porque neste caso a subst�ncia do mal seria incorrupt�vel ou corrupt�vel; se o primeiro, ele � uma subst�ncia sumamente boa; se o segundo, ele seria em si uma subst�ncia boa, posto que, de outro modo, n�o poderia viciar-se ou ser corrompida. Que �, afinal, o mal? Onde ele se encontra? (cf. MART�NEZ, Agust�n. San Agustín: ideario: selección y estudio. 2�ed. Buenos Aires: Espasa Calpe, 1946, p. 50).

4 “Buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente. E, ainda mesmo nessa indaga��o, n�o enxergava o mal que nela havia. Obrigava a passar, ante o olhar do meu esp�rito, todas as criaturas, tudo o

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quest�es chegam a extremos doutrin�rios: de um lado, os manique�stas afirmam o mal

como natureza; de outro, Santo Agostinho cria um conceito negativo do mal, que se

oporia ao ser5.

Ricœur mostra que Santo Agostinho coloca-se em contato direto, se � que se

pode dizer o poder do nada que est� contido no mal, e a liberdade a operar na vontade;

coloca-se em contato direto com o problema, e esse contato � comprovado pelo pr�prio

Agostinho no Contra Secundinum (Contra Secundinio), quando diz: o mal � a

“inclina��o do que tem mais ser para o que tem menos ser” (CONFLITO DAS

INTERPRETAÇÕES6,p. 231); e no Contra Felicem (Contra F�lix), quando diz que se h�

penit�ncia, � que h� culpabilidade; se h� culpabilidade, � que h� vontade; se h� vontade

no pecado, n�o � a natureza que nos coage. De forma a opor no Contra Felicem

vontade-m� e natureza-m�, contudo sem sucesso, pois n�o tinha nenhum meio de

tematizar tais conceitos, n�o tinha um aparelho conceitual adequado para deles se

aproximar e estabilizar a oposi��o entre natureza e vontade. Somente poder� dispor a

remodelar certos conceitos recebidos do neo-platonismo e tomados na gama dos graus

do ser a tal ponto de fazer da liberdade poder origin�rio de dizer n�o ao ser, o poder de

“faltar” (deficere), de “declinar” (declinare), de tender para o nada (a non esse) de um

afastamento da criatura para com o Criador.

que nelas podemos ver, como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as �rvores e os animais sujeitos a morte, bem como aquilo que n�o vemos nela, como o firmamento do c�u, todos os anjos e todos os esp�ritos celestes (...). Qual a origem do mal, se Deus que � bom, fez todas as coisas? Sendo o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que Ele; mas enfim, o Criador e as criaturas todas s�o bons. Donde, pois, vem o mal? [unde est malum?]” (cf. AGOSTINHO, Santo,Confissões,S�o Paulo: Paulus.1998. p. 176-177).5 “Afirmo que Deus todo-poderoso n�o produz de si nada que seja mal e o que � seu permanece incorrupto por haver sido engendrado de uma fonte inviol�vel. Com respeito �s demais coisas que se manifestam como contrarias neste mundo, afirmo que n�o derivam de Deus nem apareceram neste mundo como obra sua, quer dizer, que n�o t�m sua origem Nele. Isto � o que aceitamos em nossa f�: o mal � alheio a Deus” (cf. AGUSTIN, Actas del debate con Fortunato, in: Obras completas de San Agustín. Madrid: B.A.C., 1986, art. 19). E ainda, “Vi claramente que todas as coisas que se corrompem s�o boas: n�o se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se n�o fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorrupt�veis, e se n�o tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. De fato, a corrup��o � nociva, e, se n�o diminu�sse o bem n�o seria nociva. Portanto - ou todas as coisas que se corrompem s�o privadas de algum bem. Isto n�o admite d�vida. Se, por�m, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e j� n�o pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorrupt�veis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo bem?” (cf. Confissões, 1999, p. 288).6 Cf. RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. (Citaremos esta obra como CI).

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Agostinho � um homem que est� em constante busca por Deus, o que o coloca

em situa��o de conflito, de cora��o inquieto (Cordis inquieti), pelo qual o homem

conhece seu ser e procura a Deus e, n�o obstante, sente que foi feito para a vida no

mundo, mas n�o para este mundo7. Isto �, deve-se aspirar ao amor de Deus, pois, este �

a �nica fonte de felicidade. Entretanto, a d�vida de Agostinho era de como o homem

poderia usufruir os bens terrenos aspirando aos bens eternos8. Para resolver este

problema Agostinho se funda no eudemonismo, na finalidade �ltima que h� no homem,

que � a busca da felicidade, que para Santo Agostinho se encontra em Deus; e que a

livre vontade do homem � o sujeito da obriga��o moral. Ora, para Agostinho a vida

moral se constitui de uma seq��ncia for�osa de atos individuais de escolha, de forma

que o problema do livre arb�trio n�o est� nos bens temporais, que s�o bons, pois foram

criados por Deus, mas na forma como s�o utilizados pelo homem. Assim o problema do

mal est� no ato de liberdade do homem que prefere amar as coisas criadas (criaturas) do

que o pr�prio Deus (Criador). A isso Santo Agostinho chama de m� vontade, pecado9.

Para Agostinho o mal moral (pecado) est� na submiss�o da raz�o �s paix�es

fr�volas, ao mau desejo, pois, para o bispo de Hipona, quando a raz�o domina os

movimentos da alma, o homem � perfeitamente ordenado. Porque a submiss�o de coisas

melhores �s coisas menos boas n�o podem ser chamadas de justa ou de ordem. Isto �,

7 “Criastes-nos para V�s e o nosso cora��o vive inquieto, enquanto n�o repousar em V�s” (cf. Confiss�es, 1999, p. 37). Conforme Sciacca: “O homem est� no mundo feito para ele, por�m ele � feito para Deus, que n�o � deste mundo; � uma condi��o incomoda: n�o h� adequa��o entre ser em e o seu ser para” (cf. SCIACCA, Michele Federico. San Agust�n. Barcelona: Luis Miracle Editor, 1955, p. 394).

8 Esta tamb�m era a condi��o de d�vida do primeiro homem com diz Agostinho: “O que pode mover a vontade de nossos primeiros pais? Mas a vontade n�o fica solicitada a um determinado ato, a n�o ser por meio de algum objeto, o qual vem a perceber. E se cada pessoa tem o poder de escolher o que vai a aceitar ou rejeitar, ningu�m possui o poder de escolher ou rejeitar. Ningu�m pode determinar qual o objeto cuja vista o impressionar�. Ora, � preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E ser� conforme o m�rito dessa escolha que se seguir� para ela o infort�nio ou a felicidade. Assim no para�so terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugest�o da serpente. Pois nem o que o Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do homem. Contudo ele estava certamente livre de resistir a vista das sedu��es inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. Podemos compreender isso pelo fato de os pr�prios insensatos chegarem a vencer-se e se elevarem at� � sabedoria, ainda que lhes seja penoso renunciar as do�uras envenenadas de seus h�bitos funestos” (O Livre-Arb�trio, 1995, p.237- 238).

9 Santo Agostinho mostra que n�o existe nada mau em si, e que o mal se segue sempre do mau uso das criaturas. “� por isso que o problema, cada vez mais circunscrito, nos conduz a reconhecer que o mal n�o se encontra nas coisas sen�o na atividade daquele que usa das coisas. Do mal moral merece propriamente o nome de mal” (cf. JOLIVET, Regis. Le probl�me du mal d’apr�s Saint Augustin, Paris: Grabriel Beauchesne et Ses Fils �diteurs, 1936, p. 63).

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quando a raz�o governa os movimentos irracionais da alma � que domina o que

verdadeiramente deve dominar, devido � virtude da lei eterna de Deus10. Neste ponto,

Agostinho se afasta do manique�smo e do neoplatonismo, que colocavam a origem do

mal na mat�ria. A primeira afirmava que o mal n�o s� existe, mas que � uma subst�ncia

corp�rea, mat�ria. O neoplatonismo nega que o mal seja em si ou que a mat�ria seja o

mal em si, j� que para o neoplatonismo tudo derivaria de um �nico Ser, o Uno. Desta

forma o mal n�o � mais que um acidente, uma defici�ncia de bem que acontece na

mat�ria. O mal, desta maneira, n�o forma um ser, mas um n�o-ser causado pela

degrada��o do bem nas sucessivas emana��es do Uno. Agostinho sugere uma resposta

na qual, submiss�o da raz�o �s paix�es propriamente, o pecado � a fonte �nica do mal, e

de si mesmo, pois o pecado resulta da m� vontade que � a soberba (tamb�m pecado) 11.

Dessa forma, o pecado � ao mesmo tempo causa e efeito do mal.

Isto significa antes de tudo que, para Agostinho, o mal � moral, pois se traduz

pela a��o culposa do homem, o pecado. Ora esse mal para o Bispo de Hipona n�o �

positivo, n�o forma uma coisa, n�o � mat�ria, mas tem causa e natureza negativa. Ora, a

causa das coisas boas � Deus, enquanto a causa do mal � a vontade criada, que escolhe

livremente afastar-se do Bem que � imut�vel e infindo. O mal � um contr�rio da ordem

estabelecida por Deus, que � buscar a Ele, para tender para o n�o-ser, para a desordem

que n�o parte sen�o de uma vontade livre12. Assim, o mal, para Agostinho, tem sua

causa na vontade. Ora, Agostinho chega, no Contra Felicem, a opor vontade m� e

10 “Por conseguinte, s� quando a raz�o domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. Porque n�o se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores est�o subordinadas �s menos boas (...). Ent�o, quando a raz�o a mente ou o esp�rito governa os movimento irracionais da alma, � que est� a dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 47).

11 “Se Deus n�o tivesse outorgado o livre-arb�trio ao homem, n�o poderia existir nenhum ju�zo justo que o castigasse, nem m�rito ao bem obrar, assim como tampouco o preceito divino de fazer penitencia pelos pecados, nem mesmo perd�o dos pecados que Deus nos tem dado por Jesus Cristo nosso senhor. Com efeito quem n�o peca livremente, n�o peca” (cf. Actas del debate con Fortunato, 1986, p. 256)12 “� bem como dizes e eu concordo em que todos os pecados encontrem-se nessa �nica categoria, a saber: cada um, ao pecar, afasta-se das coisas divinas e realmente dur�veis para se apegar as coisas mut�veis e incertas ainda que estas se encontrem perfeitamente dispostas, cada uma em sua ordem,e realizem a beleza que lhes corresponde. Contudo, � pr�prio de uma alma pervertida e desordenada escravizar-se a elas. A raz�o � que, por ordem e direito divinos, foi a alma posta � frente das coisas inferiores, para conduzir conforme o seu benepl�cito. Ao mesmo tempo, o outro problema que os nos t�nhamos proposto, ap�s a primeira quest�o: o que � proceder mal?,parece-se que j� temos resolvido com clareza, a saber: de onde vem praticarmos o mal? Se n�o me engano tal como a nossa argumenta��o mostrou, o mal moral [pecado] tem sua origem no livre-arb�trio de nossa vontade” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 68-69).

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natureza m�, entretanto, sem sucesso, visto que, o quadro conceitual que tinha diante de

si n�o favorecia a estabilizar e inscrever a oposi��o “natureza versus vontade” numa

concep��o coerente. Para Ricœur seria necess�rio uma filosofia do agir e uma filosofia

da conting�ncia na qual estaria dito que o mal surge como um acontecimento, um salto

qualitativo. Mas o pecado configura, de fato, o salto entre o bem e o mal, uma ruptura

entre a comunidade boa e a prefer�ncia solit�ria. Nesta condi��o h� um hiato entre a

finitude e o mal n�o pode ser vencido13.

Ricœur mostra que um caminho paralelo foi posteriormente seguido por Kant no

Ensaio sobre o mal Radical, no qual elabora o quadro conceitual14 que faltou a

Agostinho. Inicialmente, leva em conta a especificidade os conceitos pr�ticos como:

vontade, arb�trio, m�xima da vontade. Kant realiza uma oposi��o entre a vontade e a

natureza esbo�ada por Agostinho. Para Kant o mal, � pensado nesse primeiro momento

como uma heteronomia da vontade15. Mais ainda, elabora a condi��o principal de uma

conceitualiza��o do mal como mal radical16, uma formaliza��o moral no Ensaio sobre o

mal radical. O mal, para Kant, n�o reside mais na sensibilidade17. Uma vez afirmado,

13 “O hiato entre a finitude e o mal seria injustific�vel por excel�ncia” (cf. RICŒUR, Paul. Lectures 2. Contrée des philosophes, Paris: Seuil,1991, p. 249).

14 “Por conseguinte, o fundamento do mal n�o poder� ser encontrado em nenhum objeto determinante do arb�trio por ina��o, nem num instinto natural, mas somente numa regra, que o arb�trio fornece a si mesmo para o uso de sua liberdade, isto �, numa m�xima” (cf. KANT, Emmanuel. A religi�o dentro dos limites da simples Raz�o. In: Os Pensadores, S�o Paulo: Editor Victor Civita, 1980, p. 274). 15 “A vontade � essencialmente boa vontade, sua lei � a pr�pria lei moral e, inversamente, a lei moral pode e n�o pode ser a lei de uma vontade livre. O mal � ent�o heteronomia, sen�o o m�ximo feito de uma vontade livre que se determina pelos movimentos sens�veis, estranhos a raz�o” (cf. REBOUL. O., Kant et le problème du mal. Montreal: Press de l’Universit� de Montr�al, 1971, p. 65).

16 A propens�o do homem para o mal “deve ser considerada como moralmente m�, por conseguinte, n�o como disposi��o da natureza, mas como algo que pode ser imputado ao homem, deve consistir, conseq�entemente, em m�ximas do arb�trio contr�rias � lei; estas, por�m, por causa da liberdade, devem ser consideradas contingentes, o que, por sua vez, n�o estaria de acordo com a universalidade deste mal se seu fundamento supremo subjetivo de todas as m�ximas n�o estivesse, de uma maneira qualquer, entrela�ado com a pr�pria humanidade e como que enraizado nela; poderemos denominar esta propens�o uma propens�o natural para o mal, e como deve ser sempre ele mesmo [o homem] culpado, um mal radical, inato natureza humana” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 282).

17 O fundamento do mal radical n�o pode “ser colocado, como comumente se faz, na sensibilidade do homem e nas inclina��es naturais da� derivadas. Pois n�o s� por que elas n�o t�m uma rela��o direta com o mal (muito antes com o que a inten��o moral pode provar em sua for�a, d�o ocasi�o para a virtude); assim n�o devemos ser respons�veis por sua exist�ncia (nem o podemos; por serem inatas, n�o somos n�s os autores), mas sim a propens�o para o mal, que num ente que a moralidade do sujeito, por conseguinte, � encontrado nele, como num ente que age livremente, deve poder ser-lhe imputado como sendo sua pr�pria culpa; malgrado a raiz profunda da mesma no arb�trio, contra a qual deve-se dizer que

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por Kant, que “as inclina��es naturais que resultam da sensibilidade n�o t�m rela��o

direta com o mal” (CI, p.255), este, o mal, reside em uma rela��o, ou melhor, na

subvers�o de uma rela��o. O mal, por conseguinte, � a subordi��o e aliena��o pelo

homem do puro motivo do respeito aos motivos sens�veis. Uma vez que “Kant afirma

que as inclina��es naturais que resultam da sensibilidade nem se quer tem rela��o direta

com o mal” (CI, p. 255). O mal � o que acontece quando o homem subordina e aliena o

puro motivo do respeito aos motivos sens�veis. No momento em que me imputo a

responsabilidade de um ato como se dissesse: “n�o poderia ter feito isso assim, mas de

outra maneira”, indica um ato pelo qual me responsabilizo por uma a��o passada. Essa

consci�ncia de ter podido fazer de outra maneira, entretanto, est� ligada � consci�ncia

de ter devido fazer de outra maneira: �, todavia, o reconhecimento dever ter feito de

outro modo que reconhe�o o poder fazer de outro modo o dever serve como um

detector: se me sinto, ou ao menos me creio obrigado, � porque sou um ser que pode

agir n�o somente sob o impulso, ou constrangimento do desejo, mas que posso agir sob

a condi��o de uma lei que se me apresenta. Assim Kant tem raz�o em dizer que agir

segundo uma representa��o de uma lei � diferente de agir segundo leis. E tal poder de

agir conforme a representa��o de uma lei � a vontade.

No seguimento de uma lei posso tamb�m descobrir o poder de agir contra. A

experi�ncia da confiss�o, da declara��o do mal, do pecado cometido, da culpa nos leva

a uma experi�ncia, a experi�ncia do remorso – uma experi�ncia da rela��o da liberdade

� obriga��o na qual: primeiro, reconhe�o para mim um dever, ou melhor, um poder que

corresponde a esse dever. E segundo, declaro ter agido contra a lei que me parece

obrigat�ria. � uma transgress�o. A liberdade, assim, � o poder de agir conforme a

representa��o de uma lei e de passar � obriga��o. Est� a� o que deveria ter sido feito e,

que, portanto, poderia ter feito, e a� est� o que foi feito. A imputa��o do ato �, desta

forma, qualificada moralmente pela sua rela��o ao dever e ao poder.

se encontra, por natureza, no homem (...). Para dar portanto, um fundamento do moralmente mau no homem, a sensibilidade cont�m muito pouco; pois ela torna o homem meramente bestial, ao retirar os motivos que se podem originar na liberdade; mas uma raz�o, que libera da lei moral, mas ao mesmo tempo maligna (uma vontade absolutamente maligna), conv�m, ao contr�rio, demais, porque mediante isto a o posi��o � pr�pria lei ser� elevada a motivo (pois sem qualquer motivo n�o pode ser determinado o arb�trio) e o sujeito tornar-se-ia um ente diab�lico. Nenhum dos dois � aplic�vel ao homem” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 283).

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Para Ricœur, em Kant aparece como uma determina��o do mal como uma

determina��o da liberdade. A determina��o do mal pode ser expressa como a invers�o

da rela��o entre m�vel e a lei no interior da m�xima de minha a��o. Desta forma, a

defini��o kantiana pode ser compreendida de maneira que: se se chama m�xima ao

enunciado pr�tico daquilo que algu�m se p�e a fazer, o mal n�o � nada em si, nem na

natureza nem na consci�ncia; sen�o uma certa rela��o invertida, ou seja, uma rela��o e

n�o uma coisa, e uma rela��o invertida, em aten��o a uma ordem de prefer�ncia e de

subordina��o indicada pela obriga��o. Esta ideia de Kant, por assim dizer, tira toda a

natureza do mal, desenraiza-o: o mal n�o s� existe apenas pelo ato de o tomar sobre si,

de o assumir, mas aquilo que o caracteriza, do ponto de vista moral, � a ordem pela qual

um agente disp�e as suas m�ximas; � uma prefer�ncia que n�o deveria existir, aquilo a

que n�s chamamos uma rela��o invertida.

Assim, a ideia kantiana da subvers�o da m�xima m� � o equivalente do esquema

b�blico do desvio. Tal como temos no mito ad�mico – oposto ao esquema �rfico da

exterioridade. Desta forma, encontra-se o equivalente racional desse esquema na id�ia

da subvers�o da m�xima, que o formaliza.

Esse formalismo, conforme Ricœur, traz consigo o beneficio de “construir o

conceito da m�xima m� como regra que o livre arb�trio forja para si pr�prio” (CI,p.

255). O mal n�o mais reside na sensibilidade na qual o mal n�o � mais aquela inclina��o

para o sens�vel e aos prazeres do ser finito, acaba-se, assim, a confus�o entre o mal e o

efetivo, o passional. O mal, por conseguinte, n�o � mais “a infra��o grosseira do dever,

mas a mal�cia que faz passar por virtude o que � a sua trai��o” (CI, p.256). O mal, por

assim dizer, do mal � a ratifica��o enganosa da m�xima pela conformidade. A

liberdade, agora, � o poder do desvio, poder de uma subvers�o da ordem; o mal para

Kant n�o � algo, mas a subvers�o da rela��o entre os motivos da a��o. O mal para Kant,

ao contr�rio de Agostinho, situa-se, n�o no sens�vel, mas no solo da raz�o. Desfazendo-

se como “algo”, como, ali�s, j� tentara, por outro lado, fazer Agostinho, o mal se torna,

em Kant, “subvers�o de uma rela��o” (CI, p.256), e isto implica que a liberdade �, por

conseguinte, esse poder de afastamento, por uma impostura, da boa m�xima. O mal n�o

� qualquer coisa, mas a subvers�o da ordem.

Para Ricœur, a clarifica��o disso se traduz por uma perda de profundidade, pois

“o pre�o da clareza � a perda da profundidade” (CI, p.256), da profundidade que

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corresponde � tenebrosa experi�ncia do mal que aflora nos mitos e nos s�mbolos

prim�rios. Ricœur ent�o encontra o que n�o � admitido na vis�o �tica do mal: a

tenebrosa experi�ncia que aflora de modo diverso na simb�lica do mal, e que constitui o

“tr�gico” da reflex�o. Sen�o, vejamos: a) ao n�vel dos s�mbolos prim�rios, Ricœur

mostrou que por meio da confiss�o dos pecados que o homem declara o mal, como j�-

a�, no qual nas�o e no qual se encontra o mal, por assim dizer, n�o analis�vel em

culpabilidades individuais e atuais; b) a experi�ncia do mal j�-a�, que suscita o ciclo dos

mitos distintos do mito ad�mico por um esquema de exterioridade, o mal � exterior ao

homem, este o j� encontra na face da terra. Esse o ciclo m�tico n�o � exclu�do no mito

ad�mico, mas como mostrou Ricœur: Ad�o � o mais velho dos homens e n�o somente o

homem exemplar, mas o anterior do mal a todos os homens, Ad�o � o primeiro a

praticar o mal. Contudo, Ad�o tem seu outro, uma figura anterior a ele, a serpente a qual

j� se encontrava a�, e bastante ardilosa. c)diante da anterioridade do mal por Ad�o e pela

serpente, “a vis�o �tica do mal s� tematizar apenas o s�mbolo do mal atual, o

‘afastamento’, o desvio ‘contingente’ (CI,p. 256). Ad�o � ent�o o arqu�tipo, o exemplar

do mal presente que repetimos e imitamos cada vez que come�amos o mal. Logo, se

continuamos o mal � necess�rio tentar dizer o mal como tradi��o, como encadeamento

hist�rico, com reino j�-a� .

Diante, ent�o, destes tr�s pontos, Ricœur nota o perigo de voltar a cair no

tenebroso la�o da gnose, pois ao introduzir um esquema de “heran�a” (de Agostinho) e

tent�-lo coordenar com o do “afastamento” (de Kant) num conceito plaus�vel, podemos

voltar a uma mitologia dogm�tica, reificando o mal numa “natureza”. Ora, foi

justamente o conceito de natureza (reifica��o do mal) posta para compensar a

contingência do mal, isto �, que os pecados s�o apenas acidentes ocorridos na vontade,

causa da liberdade do homem, portanto, n�o necess�ria, que regulou o primeiro

movimento do pensamento. Cabe agora, portanto, para Ricœur, sair deste esquema

gn�stico e pensar alguma coisa como “uma natureza do mal, uma natureza que n�o seria

natureza das coisas, mas natureza originaria do homem, mas natureza da liberdade, logo

habitus contra�do, maneira advinda de ser da liberdade” (CI, p.257). Neste ponto, �

preciso retomar Santo Agostinho e Kant, o primeiro “quando passa do mal atual ao

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pecado original”18; o segundo, quando remonta da m�xima m� do livre-arb�trio ao

fundamento de todas as m�ximas m�s.

No que diz respeito a Kant, � sabido que tentou elaborar uma dedu��o

transcendental a partir da qual o mal de natureza apresenta-se como fundamento

(possibilidade) das m�ximas m�s, de forma que a inclina��o para o mal � de car�ter

intelig�vel, e n�o sens�vel. Para mostrar isso, Ricœur utiliza-se de uma cita��o de um

trecho de A Religião nos limites da simples Razão: “Se o Dasein desse pendor pode ser

mostrado (dargetan) por meio de provas emp�ricas do conflito no tempo, a natureza

(Beschaffenheit) e o fundamento (Grund) desse pendor devem ser reconhecido a priori,

pois se trata de uma rela��o da liberdade � lei cujo conceito � sempre n�o emp�rico”

(CI,p.259). Desta forma, podemos compreender donde proceda o mal, mas “jamais

descobrir a raiz do mal na m�xima suprema do livre-arb�trio como rela��o � lei, pois se

trata de uma a��o intelig�vel que precede toda a experi�ncia ” (CI,p.259). Toda a

natureza do mal pode ser dada como nascimento, mas n�o � o nascimento sua causa. O

mal se torna advindo de uma maneira da liberdade. O mal est� a�, � anterior a mim, n�o

o podemos conhecer, somente podemos faz�-lo; � um “h�bito contra�do”, algo que ao

longo da vida o tomo para mim19. Ora, se esse “h�bito contra�do” do livre-arb�trio faz,

ou antes, fornece o s�mbolo da concilia��o da conting�ncia e da anterioridade do mal;

todavia, diferentemente da gnose, que pretende sondar a origem desse mal, Kant

reconhece que no que faz referencia a origem dessa inclina��o para o mal, “ela

permanece para n�s impenetr�vel porque deve ser imputada a n�s e porque, em

conseq��ncia, esse fundamento supremo de todas as m�ximas exigiria por sua vez a

admiss�o de uma m�xima m�” (CI,p. 259), n�o existi, assim, raz�o compreensiva para a

origem do mal. Portanto, reconhece-se que o filos�fo vai ao encontro do inescrut�vel,

do insond�vel no qual o mal come�a sempre pela liberdade j�-a�; est� para a liberdade,

em h�bito, come�o e anteced�ncia. Deste modo, em Kant h� uma transposi��o da figura

m�tica da serpente que representa o sempre a� do mal, desse mal que � come�o, isto �

determina��o da liberdade por si mesma. Ao fazer isso, Kant, como assinala Ricœur,

18 “As m�s a��es que cometemos por ignor�ncia e as boas que n�o conseguimos praticar, apesar da boa vontade, denominam-se ‘pecados’, visto tirarem sua origem daquele primeiro pecado cometido por livre vontade por Ad�o: estes n�o s�o mais que conseq��ncia daquele” (cf. O Livre-Arbítrio, 1995, p. 56).

19 “Por Propens�o (propensio) entendo o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclina��o (apetite habitual, concupisc�ncia) enquanto contingente para a humanidade em geral” (cf. A religião dentro dos limites da simples Razão, 1980, p. 279).

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completa Agostinho, “ao destruir o envolt�rio gn�stico do conceito de pecado original”

e ao tentar uma “dedu��o transcendental do fundamento das m�ximas m�s” (CI, p. 259).

Mas, por conseguinte, “mergulha de novo no n�o saber a investiga��o de um

fundamento do fundamento” (CI,p.259). Isto �, h� um duplo movimento, no qual, ao

mesmo tempo, eleva-se o pensamento e o faz de novo cair. Por um lado, entra-se na luz,

na claridade do formalismo kantiano; por outro, perde-se na escurid�o inescrut�vel do

n�o-conhecimento, ao retomar a natureza do mal como fundamento das m�ximas m�s.

No que diz respeito a Santo Agostinho, ao elaborar o conceito de pecado

original, no �ltimo livro do De Libero Arb�trio (O Livre Arb�trio), Agostinho re�ne, em

uma no��o, como vimos, inconsistente, categorias jur�dicas e biol�gicas. Com efeito, ao

mesmo tempo em que o primeiro homem transgride uma regra (vontade20), e � julgado e

condenado; essa falta � transmitida a toda a sua gera��o. O mal n�o se torna somente

pecado de Ad�o, mas � implica uma pena imposta aos homens, seus descendentes, pelo

ato cometido21. Com isso, n�o mais seria contra Mani22 que teria que lutar, mas contra

Pel�gio H� agora, n�o mais uma id�ia do mal natureza, mas uma id�ia de “culpabilidade

de natureza”, em Santo Agostinho, pois esta � “efetiva como ato, pun�vel como um

20 “Assim Agostinho elabora uma vis�o puramente �tica do mal onde o homem � integralmente respons�vel, ele extrai de uma vis�o tr�gica onde o homem n�o � mais autor, mas v�tima de um Deus capaz de sofrer, mesmo que n�o seja cruel” (CI, p. 231).

21 “Apesar de afirmar categoricamente que o homem n�o foi programado deterministicamente nem para o bem, nem para o mal, essa parece ser uma situa��o v�lida unicamente para o primeiro homem, Ad�o, antes da queda (pecado original), momento em que gozava de perfeita ou plena liberdade. Depois da queda, perdeu tal condi��o. E mais do que isso, ele transmitiu sua natureza deca�da a seus descendentes, de modo que, quanto s�o demais homens, descendentes de Ad�o, Agostinho, admite que n�o gozam plenamente da liberdade, mas sofrem ou, pelo menos � primeira vista, parecem sofrer de uma ‘certa dose de necessitarismo’, por trazerem em si as manchas do pecado original. Nesse caso, fechando o ciclo de sua explica��o, quando, num primeiro momento, ao colocar o pecado (soberba) como causa do mal no homem, o mal aparecia como culpa (malum culp�), agora ele aparece, tamb�m, como efeito ou pena imposta aos homens descendentes de Ad�o, pelo primeiro pecado cometido por este (malum pœn�) (cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema do mal na pol�mica antimaniqu�ia de Santo Agostinho, Porto Alegre: EDIPUCRS,2002. p. 345).

22 “Comparava-os [os escritos dos s�bios gregos] com os escritos de Mani, que sobre estas coisas escreveu muito, delirando sem rumo, e n�o falava em nenhuma parte sobre a raz�o dos solst�cios e dos equin�cios, nem dos eclipses das estrelas nem de outras coisas que havia lido nos livros da sabedoria deste s�culo. Contudo, ali mandavam que eu acreditasse, ainda que n�o me davam explica��o alguma daquelas doutrinas, que eu tinha bem averiguadas pelos n�meros e o testemunho de meus olhos; antes eram muito diferentes (cf. Confiss�es, 1999, p. 200). “Qual a origem do mal, se Deus, que � bom, fez todas as coisas? Sendo o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que Ele; mas enfim, o Criador e as criaturas todas s�o bons. Donde, pois, vem o mal?” (cf. O Livre- Arb�trio,1995, p. 28). Destas duas cita��es, cf. SCIACCA, 1955, p. 1, nos diz: “Agora que ele [Agostinho] abandonou as care�as maniqu�ias, os problemas que ele herdou do manique�smo e que ele n�o tinha ainda resolvido –impossibilidade de conceber um Deus sem extens�o e uma subst�ncia corporal, explica��o da origem do mal – se p�em para ele agora em termos filos�ficos”.

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crime, embora herdado como doen�a” (CI, p. 258). A id�ia deste mal que � transmitido

� intelig�vel, mas n�o cognosc�vel. Pode a intelig�ncia criar argumentos v�lidos, mas

que s�o imposs�veis de se conhecer. Trata-se de uma racionaliza��o do tema Paulino, na

qual Deus, em seu mist�rio, escolhe uns e rejeita outros, isto faz com que a perdi��o,

mesmo da criancinha no ventre materno, seja por direito. Direito advindo da falta de

Ad�o por via de gera��o. E que a salva��o seja dada por gra�a, pela bel vontade de

Deus. Ora, a id�ia de pecado elaborado pelo Doutor da Gra�a � inconsistente, logo se

v�, enquanto mistura dois universos de discursos – o da �tica ou do direito, e o da

biologia. � tamb�m uma id�ia escandalosa enquanto � outra a id�ia de retribui��o e de

inculpa��o em massa dos homens. E id�ia irris�ria, enquanto relan�a a eterna teodic�ia ,

e seu processo de justificar Deus.

Entretanto, o que � preciso sondar no conceito de pecado original, para Ricœur,

“n�o � a sua falsa clareza, mas sua tenebrosa riqueza anal�gica. Sua for�a est� em

remeter intencionalmente �quilo que h� de mais radical na confiss�o dos pecados, a

saber que o mal precede minha tomada de consci�ncia, que ele � n�o-analis�vel em

faltas individuais, que � a minha impot�ncia preliminar” (CI,p. 258). Ora, desta forma, o

mal est� para minha liberdade, como meu nascimento est� pra minha consci�ncia atual,

a saber, sempre j� a�, de maneira que natureza e nascimento sejam conceitos anal�gicos,

e n�o te�ricos. A� est� a fun��o simb�lica do conceito: integrar o esquema de heran�a,

herdado na disputa como os maniqueus e de uma quase-natureza elaborado contra os

pelagianos. D�-se, assim, a fun��o simb�lica, por assim dizer, insubstitu�vel, do

conceito, que � integrar o esquema da heran�a ao da conting�ncia do mal. O mal a� “�

uma esp�cie de involunt�rio no seio mesmo do volunt�rio, n�o mais em face dele, mas

nele” (CI, p. 258). A confiss�o do mal � dada em outro n�vel, profundo e diferente do

arrepender-se, simplesmente, dos pecados. O mal est� em um simbolismo, e n�o na

gera��o de fato. A regenera��o �, assim, convers�o.

� neste contexto que, com Ricœur, pode-se perguntar: ser� que “toda

possibilidade de pensar estar� ent�o extinta com o n�o-saber concernente � origem do

fundamento das m�ximas m�s?” (CI, p.261) Ou, ainda, a peleja do “rigor reflexivo e a

riqueza simb�lica se findar� com a volta ao s�mbolo impenetr�vel da queda?”

(CI,p.261). Para Ricœur n�o. Contudo, abre-se um “intervalo” entre a natureza essencial

do homem e a confiss�o da conting�ncia do mal. Cabe, ent�o, perguntar se � poss�vel

13

deixar lado a lado a necessidade da falibilidade, isto �, de que o homem pode ser fal�vel

e a conting�ncia do mal. � primeira vista, foi deixada de lado a dimens�o do mundo dos

s�mbolos m�ticos na qual os s�mbolos do come�o s� adquirem seu significado pleno em

rela��o aos s�mbolos do fim, isto �, purifica��o da m�cula, remiss�o dos pecados,

justifica��o do culpado, por meio de algum ritual, ou pela vinda do rei-salvador.

Conseq�entemente, os grandes mitos, conforme Ricœur, s�o mitos do come�o e do fim

(Philosophie de la Volonté 23,p. 318-321), por exemplo: o mito da cria��o babil�nico, o

Enuma Elish, que relata a vit�ria de Marduk, o mito tr�gico do Prometeu Agrilhoado,

que faz uma reconcilia��o do tr�gico pelo tr�gico, no qual Deus tentador e enganador

participa da indistin��o primordial entre o bem o mal, como o testemunha a imagem de

Zeus; os mitos �rficos que narram o p�riplo e a volta da alma exilada num corpo mau,

sendo esse ex�lio anterior a toda a apresenta��o do mal por um homem respons�vel e

livre, por fim o relato b�blico, o mito ad�mico que � balizado pela figuras do fim como:

o rei dos �ltimos tempos, o filho do homem, o segundo Ad�o de quem fala S�o Paulo,

s�o tipos do homem que “h� por vir”.

Em todos s�mbolos de ordem m�tica o sentido procede do fim para o come�o,

mas o que esse encadeamento de sentido retr�grado d� a pensar? Porventura, n�o

convidar� a passar da conting�ncia do mal a uma certa “necessidade” do mal? Para

Ricœur essa � a maior tarefa e a mais perigosa, visto que, o pensamento avan�a sobre

dois abismos: o do pensamento reflexivo sobre a alegoria e o do pensamento

especulativo sobre a gnose, como visto. Ali�s, � uma tarefa enorme porque “o

pensamento simb�lico, vai do come�o do mal ao seu fim, parece efetivamente supor a

ideia de que tudo isso tem, afinal, um sentido, de que uma figura significante desenha-se

imperiosamente atrav�s da conting�ncia do mal, em suma, de que o mal pertence a uma

certa totalidade do real. Uma certa necessidade... Uma certa totalidade.... Mas n�o

qualquer necessidade, n�o qualquer totalidade” (CI,p.261). N�o importa que

necessidade, n�o importa que totalidade o caso � que nos esquemas de necessidade,

como, por exemplo, no mito ad�mico, o necess�rio s� aparece depois, visto do fim, e,

todavia apesar da conting�ncia do mal. Um texto b�blico que demonstra isso para

Ricœur � o de S�o Paulo aos Romanos onde diz:

23 RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté. Tome II: 1.Finitude et Culpabilité 2. La Symbolique du mal, Paris: Aubier, 1988. (Citaremos esta obra como SM).

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Se pela falta de um s� todos morreram, com quanta maior profus�o a gra�a de Deus e o dom gratuito de um s� homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos (...). Por conseguinte, assim como pela falta de um s� resultou a condena��o de todos os homens, do mesmo modo, a obra da justi�a de um s� resultou para todos os homens justifica��o que traz a vida (...) onde avultou o pecado, a gra�a superabundou, para que, como imperou o pecado na morte, assim tamb�m imperasse a gra�a por meio da justi�a, para a vida eterna, atrav�s de Jesus Cristo, nosso senhor 24.(Rm. 5, 15;18; 20)

O pecado habita o homem. Ora a morte, castigo do pecado, entrou no mundo a

partir da falta de Ad�o. Disso Paulo conclui que o pr�prio pecado entrou na humanidade

por meio desta falta inicial, � a doutrina do pecado original. O que interessa aqui, ao

apostolo dos gentios n�o � a compara��o entre as figuras do velho Ad�o e do novo

Ad�o, tampouco a oposi��o destas, mas o paralelo e a grada��o, o progresso, a escalada

do homem em busca da justifica��o, que oferece entre a obra nefasta do primeiro ad�o e

a repara��o superabundante do segundo Ad�o, na qualidade de um novo chefe da

Humanidade, imagem pela qual Deus restaura a cria��o. Essa “superabund�ncia”

paulina se constitui uma grande tarefa ao pensamento. Ricœur diz que nenhuma grande

“filosofia da totalidade” p�de dar raz�es � inclus�o da conting�ncia do mal em um

esquema significativo e totalizador. Com efeito, ou o pensamento da necessidade do

mal deixa cair para fora a conting�ncia, como � o caso dos sistemas n�o dial�ticos de

Plotino25 e Spinoza, ou a inclui t�o bem que elimina por inteiro tanto a passagem da

inoc�ncia ao conhecimento do mal, quanto o tr�gico do mal que se precede a ele

pr�prio, como, por exemplo, o sistema dial�tico de Hegel.

No primeiro caso, onde a necessidade deixa cair para fora a conting�ncia,

Plotino e Spinoza conheceram algum dos problemas de dar raz�o a conting�ncia do mal

num plano significante, contudo sem sucesso. Para Ricœur, Plotino, “tentou, at� os seus

�ltimos tratados, dar a raz�o da ‘declina��o’ das almas fascinadas por sua pr�pria

imagem nos corpos com a necessidade de processão” (CI,p.262). A possess�o n�o �

24 Tanto o texto grego como a vers�o latina s�o bem claros quando falam de um �nico homem

25 Segundo Giovanni Reale: Plotino, fil�sofo neoplat�nico nasceu em Lic�polis em 205 d.C e faleceu em 270. Foi disc�pulo de Armonio Sardes que fundou o neoplatonismo em Alexandria. Plotino teve grande influencia sobre Agostinho de Hipona, como em outros padres da Igreja (cf.REALE, Giovanni. História da Filosofia v. I, S�o Paulo: Paulus, 1990, p. 238-250; 455)

15

sen�o um desdobramento interno das riquezas “virtuais” do primeiro Princ�pio, o Uno.

A luminosidade do Uno, perpassa tudo, at� o grau mais �nfimo que � a mat�ria que n�o

� outra coisa que o oposto do Uno. H�, assim, uma hierarquia pela qual tudo deriva do

Uno que � o princ�pio de tudo. Desse princ�pio, emana uma possess�o, um segundo

estado, que � Inteligência do mundo, que nada mais � sen�o uma c�pia do uno e com ela

marca o in�cio de v�rias possess�es. Ora, a terceira possess�o para Plotino � a Alma do

mundo, o principio animador que d� vida a todos os corpos. Desta forma, o Uno, a

Inteligência e Alma do mundo correspondem a tr�s realidades transcendentais nas quais

o mal n�o tem lugar.

Entretanto, seguindo as emana��es que se dar�o pela Alma, n�o por capricho ou

vontade seus, ele engendra o ser ou a mat�ria que � o �ltimo grau de possess�o, lugar da

multiplicidade e, portanto, princ�pio, ou melhor, possibilidade do mal. Assim, a Alma,

ao se relacionar com o mundo por ela produzido, ao dar forma aos corpos, recebem

algumas de suas caracter�sticas dos seres corp�reos, como se tornar divis�vel, n�o no

sentido corp�reo, mas no sentido em que a alma que est� nos corpos ao serem divididos

tamb�m se divide, entretanto permanecendo inteira em cada um das partes divididas. De

maneira que a Alma, terceira emana��o do Uno, embora seja espiritual, est� sujeita a

corromper-se. A alma � atingida pela mat�ria, que � o mal em pot�ncia26. No sistema

plotiniano, no qual a Alma universal d� origem a mat�ria, que d� origem ao seres

corporais, sendo a ultima possess�o do Uno e, como tal, � eterna e necess�ria27, a

mat�ria sendo necess�ria e o mal provindo desta mat�ria, o mal � necess�rio28. Da� que

o mal n�o vem de n�s, mas � anterior a n�s e nos possui apesar dele. Enfim, para

Ricœur, Plotino nos velhos tratados sobre a Provid�ncia “reanima o velho tema do

logos” o qual “proclama que ordem nasce da disson�ncia e at� mesmo, que a ordem � a

raz�o da desordem” (CI,p. 262); de forma que a Provid�ncia se serve dos males que ela

26 “A mat�ria � em si m� e � o primeiro mal: a alma [...], em sua uni�o com ela torna-se m�” (cf. PLOTINO, Eneadas I, in: Colletion des Universités de France: Paris: Soci�y� d’edition “Les Belles lettres” 1932, art., 8 vers. 14).Sendo que: “Por estar sempre ligada a um corpo, isto �, � mat�ria, a alma n�o fica imune de impurezas e desordens, nesse sentido, a alma est� envolta por aquilo que vulgarmente chamamos de ‘mal’” (cf. BUSSOLA, Carlo. Plotino: A alma no tempo. Vit�ria: UFES / FCAA, 1990, p. 43). A mat�ria �, ent�o, a causa da defici�ncia da alma, ou seja, o mal.

27 “A mat�ria � necess�ria por que o Universo consta de contr�rios, e n�o poderia haver contr�rios se n�o existisse a mat�ria” (cf. FRAILE. Guillermo. História da Filosofia: Grécia y Roma. Madrid: B.A.C., 1956, p. 719).

28 “Parece que ela (a mat�ria) � movida e carregada por um poder m�gico que deu uma atra��o irresist�vel” (CI, 262).

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n�o produz. Apesar da desordem h� harm�nia. Apesar do mal, o bem prevalece. Quem

n�o v� que isso n�o � mais que uma teodic�ia?

Contudo, Ricœur diz que “a teodic�ia jamais ultrapassa o n�vel de uma ret�rica

argumentadora e persuasiva” (CI,p. 262) a qual recorre “a tantos argumentos, quanto

mais abundantes que carecem, cada um deles, de for�a” (CI,p.262). Com isso, o

pensamento chegado a tal ponto pode dizer que por que existe ordem existe desordem e,

assim, reduzir a problem�tica do mal a um jogo de luzes e de sombra, por assim dizer

uma “est�tica da discord�ncia”. “Tal � a m� f� da teodic�ia: ela n�o triunfa sobre o mal

real, mas somente sobre seu fantasma est�tico” (CI,p.261), numa ordem de harm�nicos

de ordem e desordem.

Tal argumenta��o suspeita da teodic�ia � renunciada, mais tarde, por Spinoza.

Conforme Ricœur, em uma filosofia n�o dial�tica da necessidade, como a de Spinoza,

“h� lugar para os modos infinitos, certamente, mas n�o para o mal que � uma ilus�o que

procede da ignor�ncia de todos” (CI,p.263). Os modos infinitos s�o sensa��es da

subst�ncia, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual � concebido. Para

Spinoza os modos n�o existem sem os atributos, isto �, o que o intelecto percebe da

substancia (Deus = Subst�ncia). De forma que tudo quanto existe � determinado pela

natureza de Deus, que � necess�rio29 e nada pode existir sem que venha desse ser

necess�rio; portanto, tudo mais � contingente. O mal s� pode ser contingente, portanto

s� poder� ser reconhecido dentro de uma vis�o �tica do mal. Todavia, n�o � conservada

nessa mais � dissipada como ilus�o de n�o poder conhecer a sua causa.

Por conseguinte, Ricœur pergunta: “uma filosofia da dial�tica da necessidade

far� mais justi�a, se podemos dizer assim, ao tr�gico do mal?” (CI,p. 263). Sem d�vida,

responde ele. Entretanto, � esse “sem d�vida” e pela mesma raz�o que uma filosofia

como a de Hegel representa ao mesmo tempo a maior tentativa de explicar o tr�gico do

mal, como a maior tenta��o. Porque o mal se instala ao mesmo tempo em que a hist�ria

das figuras do Esp�rito30. Ora, em Hegel o mal � tanto conservado como ultrapassado.

Conservado no momento em que reside no reconhecimento das consci�ncias.

29 “Esse � o ponto fundamental a considerar para se compreender Spinoza: a ‘necessidade’ � apresentada como solu��o de todos os problemas” (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia, v. II, S�o Paulo: Paulus,1990, p. 417).

30 Cf. HEGEL,G.W.F., A boa consci�ncia A bela alma, o mal e o seu perd�o, in: Fenomenologia do Espírito. Parte II. Petr�polis: Editora Vozes, 1988, p. 119-142.

17

Ultrapassado no �mbito que � por essa luta de consci�ncias que posso ter a cis�o entre

consci�ncia julgadora e consci�ncia culpada. H� de se notar que o mal ao ser integrado

na Fenomenologia do Esp�rito n�o o � mais como mal, por�m como contradi��o, a

negatividade hegeliana. Essa negatividade, diz Ricœur citando Kierkegaard, � o maître

Jacques do hegelianismo, pois “a negatividade significa ao mesmo tempo a invers�o do

singular no universal” (CI,p. 263), isto �, oposi��o entre interior e exterior na for�a, na

morte, na falta. Todas as negatividades, por assim dizer, est�o atadas na negatividade.

Em um cap�tulo da Fenomenologia do Espírito intitulado, “O mal e seu perd�o”, Hegel,

diz Ricœur, n�o deixa d�vida de que a “remiss�o j� � reconcilia��o no saber absoluto

pela passagem de um contr�rio a outro, da singularidade � universalidade da consci�ncia

julgada e reciprocamente31” (CI,p. 263). O perd�o, a saber, � a pr�pria destrui��o do

ju�zo32. Um certo esquema significativo, que adquire um saber absoluto sem restos, com

o pre�o de eliminar o hiato entre o mal que se p�e e o tr�gico do mal que j� est� a�, e

assim liquidar o injustific�vel do mal e a gratuidade da reconcilia��o por meio de uma

dissolu��o do perd�o dos pecados em uma reconcilia��o filos�fica. O perd�o � tal que

destr�i o ju�zo o qual � uma categoria do mal e n�o da salva��o. Como em S�o Paulo,

diz Ricœur “a pr�pria lei � julgada. Mas ao mesmo tempo, o s�mbolo da remiss�o dos

pecados � perdido, pois o mal � menos ‘perdoado’ do que ‘superado’” (CI,p.263); ele

desaparece nesta reconcilia��o33. Ao mesmo tempo, o que podemos chamar de acento

31 “O mal se confessa, de fato, como mal pela afirma��o de que opera segundo sua interior lei e boa-consci�ncia, em oposi��o ao universal reconhecido. Com efeito, se essa lei e boa-consci�ncia n�o fosse a lei de sua singularidade e arbitrariedade, n�o seria algo de interior, de pr�prio; mas o universalmente reconhecido, portanto, quem diz de fato que age contra os outros segundo sua lei e boa-consci�ncia, diz de fato que os maltrata. Contudo, a boa-consci�ncia efetiva n�o � esse persistir no saber-e-querer, que se op�e ao universal; mas o universal � o elemento de seu ser a� e sua linguagem exprime seu agir com o dever reconhecido” (Fenomenologia do Espírito, 1988, p. 136).

32 “O perd�o, que concede � primeira [consci�ncia], � a ren�ncia a si mesma, - � sua ess�ncia inefetiva, � qual equipara a outra consci�ncia que era o agir efetivo. [Agora] reconhece com bem o que era chamado mal, pela determina��o que o agir recebia no pensamento; ou melhor dito, abandona [tanto] essa diferen�a do pensamento determinado como seu ju�zo determinante para-si-essente, assim como a outra consci�ncia abandona o determinar, para-si-essente, da a��o. A palavra da reconcilia��o � o esp�rito a�-essente, que contempla o puro saber de si mesmo, como da ess�ncia universal em seu contr�rio, - no puro saber de si como singularidade absolutamente essente dentro de si: um rec�proco reconhecer, que � o esp�rito absoluto” (cf. Fenomenologia do Espírito, 1988, p. 141).

33 “El paso Del pecado a la justicia lo describe asi ela apostol, contraponiendo a justificacion a la condenacion fulminada por el pecado de Ad�n: Y no como por uno que pecó así fué el don; porque la sentencia, arrancando de no solo, remata en condenación; mas el don, partiendo de muchas ofensas, se resuelve en justificación (5,16). M�s comprensica es esta outra formula: La ley del Espiritu [que lo es de la justicia y] de la vida, en Cristo Jesús, me libertó de la ley [de la carne, que lo es] del pecado y de la muerte (8,2)” (cf. BOVER. J. M., Teologia de San Pablo. Madrid: B.A.C., 1956. p. 731).

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tr�gico se desloca do mal moral para o movimento de exterioriza��o, de elocu��o

(aliena��o) do pr�prio Esp�rito, visto que acontece na totalidade da hist�ria humana, que

� uma revela��o de Deus, que o infinito assume o mal da finitude, como esclarece

Ricœur, com uma nota de J.Hyppolite: “Toda essa longa hist�ria de erros que o

desenvolvimento humano exibe e que a fenomenologia reconstr�i � efetivamente uma

queda, mas � preciso aprender que essa queda faz parte do pr�prio absoluto, que ela �

um momento da verdade total”34 (CI, 263-264). Essa maneira de ver a queda por parte

de Hegel � apelidado por Ricœur de “pantragicismo”, isto �, replica da dissolu��o da

vis�o �tica do mundo consumada em saber absoluto, vista a transposi��o da remiss�o

dos pecados em reconcilia��o filos�fica. Nada restando da gratuidade da reconcilia��o,

tampouco do injustific�vel do mal.

3- CONCLUSÃO

Fracassadas as necessidades n�o-dial�tica do mal de Plotino e Spinoza e da

dial�tica de Hegel, Ricœur pergunta se a resposta, inteligibilidade simb�lica, n�o estar�

do lado de uma hist�ria dotada de sentido de prefer�ncia a busc�-la numa l�gica do ser?

Pois n�o ser� exclusiva, do movimento que vai da queda � perfei��o, uma l�gica, seja

dial�tica ou n�o? Ou mais, ser� poss�vel “conceber um vir-a-ser do ser onde o tr�gico do

mal” seria ao mesmo tempo reconhecido e superado? Ricœur, depois de colocadas essas

quest�es, diz n�o estar em estado de respond�-las. Entretanto, antev� a dire��o para a

poss�vel medita��o delas: Primeiro, “a reconcilia��o � aguardada a despeito do mal”

(CI,p. 264), isto �, a reconcilia��o � atingida apesar do mal. Ora, o apesar do mal �,

todavia, uma verdadeira categoria da esperan�a, do desmentido. Contudo, n�o h�

provas disso, mas somente sinais no quais o meio ou lugar de implanta��o desta

categoria �, sem d�vida, a hist�ria e n�o um sistema ou uma l�gica, uma escatologia.

Segundo, esse “apesar de” � um “gra�as a”; com o mal, o Princ�pio das coisas faz o

bem. Ora o desmentido � tal pedagogia escondida que faz Agostinho dizer etiam pecata,

por�m pecado. Todavia, n�o h� saber absoluto nem “apesar de”, nem tampouco “gra�as

a”. Terceiro e �ltimo, a hist�ria dotada de sentido da superabund�ncia paulina engloba o

“apesar de” e o “gra�as a” e � justamente o que constitui o milagre do cosmo, donde

procede um movimento retr�grado em busca do verdadeiro, no qual da maravilha “onde

abundou o pecado...” nasce a necessidade que coloca o mal na luz do ser. Por

34 Esse trecho � do livro citado por Ricœur no texto em o Conflito das Interpreta��es, 1978, p. 255: HYPPOLITE,J.,G�nese et Struture de la Ph�nom�nologie de l’esprit, p. 509.

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conseguinte, o que na teodic�ia era apenas um falso saber � tornado setor da esperan�a.

A necessidade do mal �, pois, ent�o, o mais alto s�mbolo racional que a intelig�ncia da

esperan�a forma35.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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35 Registra-se um coment�rio oral do professor Abrah�o Costa Andrade: “Logo se percebe que a rela��o entre s�mbolo e pensamento n�o � puramente te�rica, mas diz respeito a uma filosofia que, ao aproxim�-los, prepara-se para ir al�m de si e cingir o mundo com a possibilidade de transform�-lo, tanto quanto aos homens que nele habitam”.