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O Carnaval das Aruendas: memória, história e cultura popular em Goiana - Pernambuco.
BRUNO AUGUSTO DORNELAS CÂMARA.
Em 1949, a população da pequena cidade de Goiana, no Litoral Norte do Estado de
Pernambuco, assistia, pela derradeira vez, nas principais ruas do centro urbano, o desfile da
última aruenda em atividade, a Nação Iaiá Pequena. Esse grupo, formado em sua grande maioria
pela comunidade afrodescendente do lugar, desfilava em forma de um cortejo, com rei, rainha,
lanceiros e a figura de uma dama-da-corte, que segurava em uma das mãos uma calunga
denominada “Dona Erundina”. Além desses personagens centrais, o desfile ainda contava com a
participação de mulheres que dançavam, cantavam e tocavam maracás/ganzás de latão.
Acompanhando o grupo, havia uma “batucada” formada por homens que tocavam bombos. À
frente do cortejo, abrindo o desfile, vinha a figura de um leão esculpido em madeira, com juba de
lã ou cordão grosso, sobre uma pequena carroça, que seguia empurrada pelos próprios
integrantes. Muita gente acompanhava o desfile da aruenda durante o carnaval.
Assim, resumidamente, configurava-se o último grupo representante desse tipo de
manifestação cultural. Desaparecida há mais de sessenta anos, a aruenda ainda atrai a atenção de
estudiosos que vêm na sua celebração objeto de interesse (ARAÚJO, 1967; TRIGUEIRO e
BENJAMIN, 1978; LIMA, 2005 e 2006). Complexa e cheia de peculiaridade, a aruenda é um dos
mais enigmáticos bens culturais em memória daquela região. Afinal, não há muitos registros
sobre essa manifestação, o que eleva o grau de dificuldade da pesquisa.
Além de um interessante artigo publicado pela Revista Contratempo, em 1949 (escrito a
partir de relatos de dois informantes), e de pouquíssimas notas espalhadas em jornais locais que
não tiveram a preocupação de registrar maiores detalhes, muito pouco foi publicado sobre o
assunto na época de sua existência. Grande parte do que se sabe sobre a aruenda ainda é
preservado graças à tradição oral e a memória de algumas pessoas já em avançada idade1.
Doutor em História pela UFPE e Professor Adjunto da UPE – Campus Garanhuns. 1 Na época que iniciei essa pesquisa para uma instituição particular do Recife havia apenas a necessidade de fazer
uma sucinta descrição de alguns “bens culturais” do município de Goiana. Um desses bens que foram identificados
foi justamente aruenda. Confesso que no princípio, não houve nenhum critério de seleção em relação aos
entrevistados. Apenas procurei pessoas que poderiam dar qualquer informação sobre esse bem cultural “inativo” ou
“em memória”. Só no final, após transcrever e analisar esse material, foi que percebi que as entrevistas estavam
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Trabalhadas de forma adequada, essas memórias se transformam em interessantes documentos
que retratam não só essa manifestação no seu tempo, mas também a insere na história da própria
cidade de Goiana, ressaltando conflitos e tensões no lazer e divertimentos dos grupos populares.
Outro ponto que nos motivou a empreender uma pesquisa sobre essa manifestação cultural é a
sua “antiguidade”. A aruenda foi “do tempo da monarquia”, da vigência do regime escravista,
passando pela proclamação da República, em 1889, e chegando até meados do século XX. O
presente artigo pretende contar um pouco da história dessa manifestação cultural, situando,
principalmente, a trajetória do grupo Nação Iaiá Pequena.
Quem nos forneceu as primeiras informações sobre a aruenda foi o artista plástico e
memorialista Luiz Gomes Correia (entrevista concedida em 26 de outubro de 2002). Assim, ele
comenta como ouviu falar do seu surgimento: “No final dos anos de 1890... umas pessoas (...) se
ajuntaram aqui pra fazer... na véspera de ano novo... tinham tomado umas cachaças... ficaram
animados... ficaram cheios de espírito de vinho, espírito de cachaça... começaram a sambar (...)
fizeram um batuque... uma zoada somente... então dali surgiu a lembrança de que aquele grupo
de vinte e poucas pessoas... se ajuntassem novamente no carnaval para dar continuação aquela
brincadeira criada ali. Quando foi no carnaval de 1890... eles se ajuntaram e fizeram a
brincadeira somente a base de lata... poucas fantasias... poucos enfeites. No carnaval de 1891...
já estavam melhores arrumados... então deram o nome de Aruenda... Maracatu de Aruenda Iaiá
Menina (sic)... porque na época havia outros maracatus por aqui... havia o Cambinda de Ouro...
não era maracatu de lança não... era maracatu autentico”. Seria a “Iaiá Pequena” e a “Iaiá
Menina” o mesmo grupo de aruenda?
Boa parte das informações colhidas por Seu Luiz Gomes foi cedida por Severino de
Aquino, um dos últimos participantes da brincadeira: “era um preto que vivia aqui e fazia parte
da aruenda... ele era o príncipe, porque o pai dele foi o rei da Aruenda”, lembra Luiz Gomes,
reconstituindo um pouco a descendência real de seu informante.
relacionadas com pessoas de determinada faixa etária. Agradeço a todos os entrevistados que me concederam esses
valiosos relatos. Sem essas histórias boa parte dessa pesquisa não teria sido possível. Essas entrevistas, que foram
concedidas entre 2002 e 2006, eram mais fragmentos sobre a aruenda do que relatos específicos sobre essa
manifestação cultural.
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Cruzando outras informações, é possível constatar que Severino de Aquino vinha de uma
longa linhagem na aruenda. Segundo o artigo “Outro bailado típico de Goiana: a Aruenda”
publicado na Revista Contraponto (Acervo da Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco,
Contraponto, Recife, ano IV, n. 11, dezembro de 1949), a aruenda da qual nos fala Luiz Gomes
era dirigida pelo avô de Severino de Aquino, chamado de Chico Cata Gia, que participava da
brincadeira como rei. Na companhia de Chico Cata Gia brincava Antônia Ana Seca, que era a
rainha, e o preto Felipe Caiador, que era “o” dama do passo. Com o falecimento de Chico Cata
Gia, em data incerta, muitos achavam que a brincadeira não ia sair novamente no carnaval.
Porém, Tomás de Aquino, pai de Severino de Aquino, assumiu as funções de rei e líder do grupo.
Nesse ano, a aruenda cantava os seguintes versos: “O povo todo dizia/ Que Iaiá Pequena não
saía/ Iaiá Pequena está na rua/ Dando viva a quem dizia”.
Ao que tudo indica, o reinado de Tomás de Aquino durou alguns anos. Segundo o relato
de Seu Luiz Gomes, Tomás de Aquino veio a falecer no ano de 1928, na “véspera de São
Pedro”, e “no ano seguinte a aruenda não saiu”. Seu Luiz Gomes acrescenta que: “quando
Tomás morreu quem ficou no lugar foi Severino de Aquino... [mas] ele nunca chegou a se vestir
de rei”. Aqui é importante ressaltar a estrutura de parentesco que compunha essa aruenda passada
de Chico Cata Gia para o filho Tomás de Aquino, que posteriormente repassou para Severino de
Aquino. Foi dessa forma que a aruenda Nação Iaiá Pequena prosseguiu por cerca de cinqüenta
anos. Segundo o artigo da Contraponto, com o falecimento de Tomás de Aquino, a direção do
grupo passou ao senhor José Martins. Ele conduziu a aruenda até 1945, quando veio a falecer,
com cerca de oitenta anos. Aqui, no entanto, não foi possível saber o grau de parentesco de José
Martins com a família dos anteriores reis da aruenda.
Porém, as histórias contadas se desencontram. Ao que parece, pelo menos até o Carnaval
de 1935, Tomás de Aquino estava ainda no comando. É o que se conclui de uma série de versos
em homenagem ao Carnaval, publicados em um periódico local: “Zé Martins e seu Tomaz,/dois
bicho serra de fogo,/ vão mostrar breve o seu jogo/ com seus bombos e ganzás./A barulhada que
faz/ o zabumbar insistente/ ensurdece de repente/ um triste e pobre mortal,/ porém, pelo
Carnaval/ o zabumba é bom pr’a gente (sic)” (APEJE, O Goianense, 03.03.1935, n.227). Não é
possível saber ao certo se ocorreu um engano de quem fez esses versos ou se realmente Tomás de
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Aquino ainda estava vivo (ou mesmo se não confundiram Tomás de Aquino, falecido em 1928,
com o seu filho Severino de Aquino). Provavelmente, o equívoco foi do jornal, pois as
informações colhidas por Luiz Gomes foram dadas pelo filho de Tomás de Aquino, o que, a
princípio, demonstra mais precisão. O fato é que, pelo menos nesse período, a direção do grupo
estava dividida entre dois integrantes do grupo.
Na época em que saiu o artigo da Contraponto, em 1949, era a Nação Iaiá Pequena a
única aruenda que ainda se apresentava no lugar. Através do depoimento da viúva de José
Martins (cujo nome não foi revelado no texto), o jornalista que fez a matéria ficou sabendo que
no “tempo da monarquia” existia em Goiana, cinco grupos de aruenda com os seguintes nomes:
Dois de Ouro (do engenho Bujarí), Cambinda Brilhante (do engenho Boa Vista), Centro
Pequeno, Iaiá Menina e Iaiá Pequena. Aqui se evidencia que a manifestação teve, antes de
declinar, um certo apogeu, chegando a existir outros grupos classificados como similares. Outro
informante da Contraponto, Francisco Roxo, acrescenta outros grupos além dos já citados. São
eles: Cambinda do Porto, Oriente Pequeno e Lagoa em França. Esse informante,
provavelmente na época da matéria já estaria em idade avançada, pois é chamado no primeiro
momento de o “velho Francisco Roxo”. Ele relatava também que havia participado da aruenda
desde 1890 e teria sido dama do passo da Iaiá Pequena.
Confrontando os relatos publicados nessa revista e as histórias contadas por Seu Luiz
Gomes, é possível perceber que a “Iaiá Menina” e a “Iaiá Pequena” eram o mesmo grupo. Isso
porque as histórias de suas fundações têm o mesmo protagonista, Chico Cata Gia (o pai de Tomás
de Aquino). Até onde se sabe, não houve cisão no grupo. Além disso, segundo o relato da viúva
de José Martins, a Iaiá Pequena teria sido fundada em 1880 e não em 1890 como teria revelado
Severino de Aquino a Luiz Gomes Correia. O nome dessa manifestação e a sua data de fundação
são apenas algumas das divergências encontradas nos relatos.
Comparando esses relatos, vemos que outra divergência persiste. Essa diz respeito ao
autor da escultura do leão de madeira. Seu Luiz Gomes relembra a história que ouviu sobre a
confecção dessa peça: “Anastácio, um negro que havia aqui [em Goiana]... arranjou um pedaço
de madeira... a madeira é mulungu... é uma madeira de muita pouca resistência... madeira
branca que dá para esculpir (...) e ele fez um leão, o Leão da Aruenda... e naquela época de
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carnaval o leão foi recebido festivamente”. Já segundo a publicação de 1949, teriam “um tal de
Rogério Caiador” que esculpiu o leão e colocar uma coroa sobre a cabeça da representação do
animal. Ainda, segundo a publicação, daí teria surgido o nome “Leão Coroado”. Tanto a
escultura do leão como também a carreta que a transportava fazem hoje parte do acervo de
Museu de Artes Sacras de Goiana. Essa peça foi o único bem material que sobrou dessa
manifestação cultural.
Ainda sobre esse “Leão Coroado”, novamente encontramos informações que divergem.
Segundo Jonas de Albuquerque, responsável pelo Museu de Artes Sacras (entrevista concedida
em 20 de maio de 2006), o leão teria sido coroado rei por causa de um problema entre o grupo e
uma autoridade de polícia local. Segundo ouviu dizer, em um desfile da Nação Iaiá Pequena, ao
passar pela frente de uma delegacia, o cortejo chamou a atenção do delegado. Já que era um
monarquista convicto, essa autoridade mandou o rei tirar a coroa, porque não admitia “um negro
coroado”. Após a saída desse delegado, a coroa foi posta sobre a cabeça do leão, que, daí por
diante, passou a desfilar com aquele adorno real.
Outra fonte revela que a destituição do rei estava relacionada diretamente aos problemas
causados pela proclamação do regime republicano. A Revista Contraponto diz que “depois da
Proclamação da República, as aruendas, conhecidas também como nações, só tiveram rei e
rainha até o ano de 1895, quando a polícia interveio com uma proibição drástica”. Ao que tudo
indica, a coroação, símbolo maior de qualquer regime monárquico, era severamente reprimida,
principalmente nos primeiros anos da instauração do Regime Republicano (1889).
Aqui é importante ressaltar o contexto da proclamação da República na cidade de Goiana.
Segundo Octavio Pinto, de todos os movimentos que agitaram o Brasil e Pernambuco, em
particular, o que mais empolgou a população de Goiana foi o movimento republicano. Foi lá onde
mais se lutou pelo advento da República, tanto em praça pública, como na imprensa. Ainda,
segundo o autor, na cidade tramava-se abertamente pela implantação do novo regime de governo.
A maçonaria da cidade também pendia em favor dos ideais republicanos. Era tamanho o
entusiasmo da população de Goiana que, quando Silva Jardim, o grande fomentador desse
movimento político, esteve em Pernambuco, logo se dirigiu para Goiana, onde foi recebido com
estrondosas manifestações de apoio (PINTO, 1968, p. 151).
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A visita de Antônio da Silva Jardim, um dos maiores propagandistas da república, ocorreu
em 30 de junho de 1889. A cidade o recebeu em grande festa com direito até a execução da
Marselhesa, hino da República da França, tocada pela Curica, uma das tradicionais bandas de
música do lugar. Silva Jardim tinha como compromisso na cidade proferir uma conferência em
prol das aspirações republicanas. Segundo o Analecto Goianense, de Mário Santiago, houve
várias passeatas para receber o conferencista, que, naquele dia, discursaria no pátio do Carmo.
Porém, na hora marcada, um senhor de nome Manuel Carneiro (nas palavras do autor, “um
maníaco aqui residente”) resolveu impedir a qualquer custo a realização do evento. Mesmo
depois da intervenção de um delegado, o evento não pode ser realizado e o local da conferência
foi transferido para um dos salões da Sociedade Terpsícore (SANTIAGO, 1946, pp. 228-229). O
relato é simples e sem maiores detalhes. Mas, ao que tudo leva a crer, Manuel Carneiro, o senhor
que chegou a tumultuar o discurso de Silva Jardim, era um monarquista e ferrenho opositor das
idéias republicanas. Provavelmente, teria algum prestígio e até amigos importantes que o
apoiaram naquela decisão, pois ele conseguiu, pelo menos no pátio do Carmo, proibir aquela
conferência, mesmo com a intervenção do delegado local. Aqui vale lembrar que Goiana foi um
dos lugares visitados pelo imperador Dom Pedro II, na viagem que fez às “províncias do Norte”,
em 1859. Além de fazer alguns admiradores, o imperador nobilitou posteriormente alguns
membros da elite local, como o Major Antônio Francisco Pereira – Barão de Bujarí, na época
presidente da Câmara e proprietário do Engenho Bujarí (aquele mesmo de onde saía a aruenda
Dois de Ouro).
Mas nenhuma reação monarquista foi capaz de conter de fato a Proclamação da
República, a qual foi recebida com grande festa em Goiana e com direito a seção solene na
Câmara. No campo da imprensa, nove meses após a instauração do novo regime, em 27 de julho
de 1890, era lançada em Goiana “A Plebe”, um jornal de forte apelo à propaganda republicana. O
intuito desse periódico era desfazer boatos tendenciosos que os monarquistas ainda propalavam.
Só em 1892, cerca de três anos depois da proclamação, no município de Goiana instalou-se de
fato a primeira administração republicana. É importante destacar que logo os antigos logradouros
públicos ganharam novas denominações: a Rua do Meio, onde se estabelecia um forte comércio,
ganhou a alcunha de “15 de novembro”; já a Rua Direita, principal via mais importante da
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cidade, onde ocorreram as festividades em homenagem a Pedro II, em 1859, e onde também
desfilou tantas vezes a Nação Iaiá Pequena, passou a se chamar “Avenida Marechal Deodoro da
Fonseca”. A nova toponímia estreitava ainda mais os laços com o regime estabelecido. Como
sobrevivente do tempo da visita do imperador, a Rua do Poço do Rei não teve seu nome alterado.
Por coincidência, era lá que durante alguns anos a aruenda ensaiava para o carnaval.
Eram muitos os defensores da República e isso contribuiu para a intervenção direta na
estrutura da aruenda, que deixou de ter reis coroados. Era através desse tipo de proibição que os
dirigentes republicanos tentaram impor suas novas representações. Assim, essa manifestação
cultural que fazia expressa referência à monarquia não estava em sintonia com a nova ordem
política, mesmo dentro do seu curto reinado durante a tríade momesca. A coroação, mesmo no
carnaval, simbolizava a “velha ordem” restabelecida.
Comparando a informação sobre a proibição de reis coroados nos primeiros anos da
República e o relato de Jonas de Albuquerque sobre a destituição de um rei e a coroação do leão,
não é possível saber ao certo qual dos fatos realmente aconteceu. Mesmo porque, ao que tudo
indica, a escultura do leão deve ter sido concebida já com o real apetrecho. Isso porque, alguns
indícios apontam que o uso dessa representação teve inspiração em outra manifestação cultural, o
Maracatu Centro Grande Leão Coroado, fundado em 1863, no Recife, que também carregava
em uma carroça um leão coroado. Pode-se dizer que a polêmica coroação do leão é um assunto
recorrente na fala de alguns entrevistados. Esse fato contado e recontado acabou por reconstruir
uma memória bastante peculiar: a coroação do animal passou a ser visto como uma estratégia
utilizada pelos participantes para poder prosseguir com seu desfile. A coroação é um ato cheio de
significados, um deles o de emitir poder e autonomia.
Ainda remontando a algumas características estruturais, a aruenda, assim como os
maracatus desfilavam com alguns objetos. Lembra Seu Luiz Gomes: “havia também duas
bonecas... uma boneca preta chamada Erundina... e uma branca que eu não sei [o nome]... a
preta desapareceu do Instituto Histórico [de Goiana]... e a branca foi roubada”. Tinha uma
bandeira “encarnada e branca... somente com letra... Nação Iaiá Menina”. Nas fotos em preto e
branco que ilustram a matéria da Contratempo, é possível notar numa delas a bandeira bicolor
com as iniciais “N. I. P.” (Nação Iaiá Pequena).
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Segundo as informações de Francisco Roxo para a publicação de 1949, a primeira sede da
aruenda era na Camboa de São Luís, no sítio Limeira. Depois, foi para a Rua Gravatá. A viúva de
José Martins relatou que, em 1893, os ensaios da Aruenda Iaiá Pequena ocorriam na Rua do
Poço do Rei, mas durante o carnaval “tomava por sede uma casa situada à Rua da Conceição,
pertencente a uma dona Terezinha, professora particular. Nessa casa, armavam-se um trono,(...)
no qual era colocada uma boneca que tinha o nome de dona Erundina”. A Rua Gravatá, a Rua
do Poço do Rei, a Rua da Conceição são bem próximas a igreja de Nossa Senhora da Conceição
(edificação do início do século XIX, pertencente a uma irmandade de homens pardos até a sua
extinção em 1933). Essa igreja era o local obrigatório de peregrinação da Nação Iaiá Pequena no
carnaval.
Dessas informações, conclui-se que as atividades da aruenda não se resumiam apenas aos
três dias de folia. Eram realizados ensaios periódicos que antecediam a chegada do carnaval. Um
bom exemplo dessa organização pode ser percebido em um pequeno relato de jornal que
noticiava os preparativos da festa de Momo. Segundo dizia o articulista, “a ‘negrada’ há muitas
semanas vem sendo ‘pé de boi’ no passo da Aruenda e no ‘acalento menino’ [outra agremiação
carnavalesca], que tem feito chorar toda a meninada da cidade com os seus foguetes e os seus
bombos tonitruantes” (APEJE, O Goyannense, 07.02.1932, n. 74). A aruenda possuía certo grau
de organização. Além dos detalhes da batucada que precisavam ser ensaiados, havia também a
definição de papéis encenados por cada participante. Essas representações de papéis sociais como
rei, rainha e de uma corte real, que segundo alguns folcloristas, eram próprios das inversões
sazonais que o carnaval ainda hoje propicia, demandavam trabalho do grupo até mesmo pelo
simples fato de que as roupas e adereços teriam que ser confeccionadas para o desfile.
Seu Luiz Gomes lembra também que havia todo um ritual pré-carnavalesco que anunciava
a toda população de Goiana que a aruenda sairia naquele ano. Nesse ritual, um integrante do
grupo saía, às quatro da manhã, tocando um bombo pelas ruas ainda desertas. Esse era o aviso
que anunciava a sua presença no carnaval. De acordo com o nosso entrevistado, a aruenda era
mantida através de “cotas” feitas entre os participantes, o que também denota a organização do
grupo. Não há informações suficientes sobre o processo de arrecadação dessas “cotas”, se era
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apenas a contribuição dos seus integrantes, ou se de alguma forma recebiam a colaboração
financeira de alguns comerciantes, de pessoas abastadas e de políticos do lugar.
Alguns dos nossos entrevistados presenciaram os desfiles da aruenda. Dona Maria de
Lurdes Correia de Oliveira, antiga moradora do lugar, que aos 67 anos de idade toma conta do
Clube Carnavalesco Lenhadores, (entrevista concedida em 03 de junho de 2006) viu a aruenda
ainda menina, quando tinha oito anos. Segundo conta, o cortejo costumava passar na casa do seu
pai: “eu me lembro da aruenda... porque ia pra casa do meu pai... a aruenda... a pretinha
[Pretinhas do Congo]. A aruenda tinha um leão bonito... que não está mais aqui... está lá no
museu. Tinha o leão... e tinha um toque assim... o toque de aruenda não era instrumento de
sopro... era bombo... gonguê... essas coisas assim... esses toques diferentes (...) é como negócio
de macumba... de candomblé (...) era bonito”. Ela lembra que era costume dos participantes da
aruenda entrar na casa e dançar um pouco: “eles entravam tudo dentro de casa... saia da sede e
ia pra casa de meu pai... na Rua Nova... ia dançar dentro da casa”. Embora muita gente
acompanhasse a aruenda, apenas os membros do grupo adentravam no recinto: “era muita
gente... [mas] não entrava todo mundo (...) só os componentes”. A música e a dança eram um
dos elementos de destaque, e que a corte da aruenda, nessas visitas, faziam pequenas evoluções.
Além do mais, o grupo atraía a atenção de muita gente, participantes indiretos, que acompanhava
as suas andanças pela cidade.
Esse tipo de apresentação em que o grupo fica em frente às portas ou adentra nas casas,
cantando e dançando, com a anuência dos proprietários, ainda pode ser vista em manifestações
como a Pretinha do Congo de Carne de Vaca, região praieira do Município de Goiana. Em seu
desfile, esse grupo pára em algumas casas e se apresenta aos moradores cantando suas jornadas e
dançando. O dono da casa sempre retribui a reverência com uma contribuição em dinheiro. No
caso da aruenda, não foi possível saber se ela arrecadava algum dinheiro nesses desfiles.
Sobre as vestimentas do grupo, Dona Lurdes lembra que os integrantes “eram vestidos
como... eu acho... como xangô”. Aqui, não se sabe qual era a rotatividade e a variedade das
vestimentas que o grupo utilizava a cada desfile. Porém, fazendo uma aproximação entre a data
da última aparição do grupo e a da idade da nossa entrevistada (na época em que presenciou a
brincadeira), tudo leva a crer que ela viu no desfile a predominância das cores branca e vermelha.
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Para essa suposição, tem-se alguns indícios. Observando algumas fotos publicadas na
Contratempo, podemos dizer que o grupo desfilava com as vestes inferiores brancas (calças e
saias) e os sapatos da mesma cor. Na cabeça das mulheres há lenços brancos e na dos homens há
chapéus ou boinas brancas. Como essas fotos são em preto e branco, não foi possível identificar
com maior certeza a cor das blusas dos integrantes, mas tudo leva a crer que eram vermelhas (as
camisas dos homens que faziam parte da “batucada” eram listradas). Além do mais, Seu Luiz
Gomes afirma que a cor da bandeira era vermelha e branca. As cores do orixá Xangô são
vermelha e branca (outra variação para o mesmo orixá seria também o marrom e o branco).
Quem também presenciou os desfiles da aruenda foi José Galdino Figueiredo, mais
conhecido como Mestre Preá, de 76 anos de idade (entrevista concedida em abril de 2006). Ele
lembra até da música que era entoada nesses desfiles: “Somos dois leões valentes... Rainha de
coroou... Coroa Dona Erundina... Coroa e se coroou”. Segundo Mestre Preá, nos desfiles de
carnaval havia uma rivalidade entre os outros clubes e a aruenda: “todo clube abria pra eles...
todo clube de Goiana abria pra ele... abria ou morria no cacete”. Não se sabe ao certo o tipo de
rivalidade que se criava entre esses clubes e a aruenda. Mas não deve ser difícil de imaginar até
onde elas chegavam. Uma boa referência dessas rivalidades afloradas no carnaval pode ser
observada nos grupos de maracatus rurais da Mata e Litoral Norte de Pernambuco. No passado,
esses grupos viviam em eterna querela, ou mesmo em guerras de fato, com gente ferida e vítimas
até mortais. Essas manifestações passaram a sofrer constante intervenção das autoridades
policiais. Em uma circular publicada em O Goianense, o delegado Zacarias de Albuquerque e
Silva fazia ciente a “todos os clubes, cocos, maracatus, aruendas e demais diversões desses
gêneros” que esses deveriam ser registrados na delegacia, para obter “a necessária licença, para
exibirem-se, sem outros ônus além de 2$200 dos selos do requerimento”. Como lembra essa
autoridade, a intenção desse procedimento era apenas o de garantir a “boa ordem do
policiamento do carnaval” (APEJE, O Goianense, 27.01.1935, n. 222). Esses registros e pedidos
de licença fazem parte de um violento processo de normatização do carnaval.
É importante ressaltar que o jornalista da Contratempo já registrava que havia uma
“acentuada” rivalidade entre as aruendas e que “muitos de seus versos significavam verdadeiros
desafios às competidoras”. Segundo a matéria, com o desaparecimento das outras aruendas, a
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Nação Iaiá Pequena incorporou no seu repertório os seguintes versos: “Nação Iaiá Pequena/
Cinco batalhões venceu/ No meio de tanta luta/ O cachorro não comeu”. Essa rivalidade aparece
também nos poucos versos cantados por Francisco Roxo e registrados também na publicação de
1949. Um deles dizia: “Lanceiros sentido/ Com sua lança na mão/ Erundina não deve a coroa/ E
nem respeito a outra Nação”. O repórter da Contratempo também registrou outros versos que
tinham o mesmo tom: “Ou! sai! Ou! sai!/ Leão Coroado/ Com seus lanceiros na frente/ E o seu
Estado formado. Não respeita baile/ Clube nem nação/ Para a nossa defesa/ Trazemos um leão”.
Alceu Maynard Araújo, conjeturando sobre o que teria levado ao fim as aruendas em Goiana,
argumenta que as rivalidades e brigas entre esses grupos, que viviam em “grande animosidade
(...) ao invés de facilitar a perpetuação (...) trouxe o aniquilamento, desaparecimento”
(ARAÚJO, 1967, pp. 303-304).
Esse respeito a aruenda não se devia apenas a violência, mesmo sendo essa a imagem que
mais ficou registrada para a posteridade na memória de alguns entrevistados e pela pena de
alguns intelectuais. Pelo menos uma voz destoa. Segundo Edvaldo Ramos da Silva (entrevista
concedida em 20 de maio de 2006), principal responsável pelo grupo Pretinhas do Congo do
Baldo do Rio, sempre quando os caboclinhos da cidade encontravam com a Nação Iaiá Pequena
e seu pomposo leão, eles passavam agachados, de “cócoras” (na expressão do entrevistado) em
respeito. Perguntado o porquê dessa reverência, ele afirmou: “O leão é o rei da selva”. Na base
da violência ou do respeito e da reverência, essa aruenda foi construindo o seu espaço dentro do
carnaval da cidade.
Segundo o artigo da Contratempo, cada aruenda “tinha por obrigação dançar em
primeiro lugar em frente de um templo religioso, tal qual faziam, em épocas distantes, os
maracatus. Com o correr dos tempos, organizaram-se várias aruendas, escolhendo, cada uma
delas, uma igreja da cidade”. Como foi ressaltado anteriormente, a Nação Iaiá Pequena tinha
como igreja escolhida a de Nossa Senhora da Conceição. A referência a essa santa está presente
em pelo menos umas de suas loas: “[Dona] Erundina na coroação/ Com os seus vassalos de
cetro na mão/ Viva Senhora da Conceição”.
Vale lembrar que o uso do pátio externo das igrejas, como espaços de lazer e
sociabilidade, era um costume antigo na cidade de Goiana. Esse uso também era feito por
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manifestações culturais promovidas por afrodescendentes. Mário Rodrigues, um cronista local,
relatando a história do movimento abolicionista em Goiana, faz referência a um antigo jornal da
cidade, que teria circulado no ano de 1871, chamado “O Mercantil”. Esse jornal trazia
“interessantes notícias sobre o comportamento dos escravos em Goiana”, inclusive detalhes de
uma manifestação chamada “dança dos Congos”, que se exibia nas festas de São Benedito, “ora
em frente à igreja do Rosário dos Pretos, sem o consentimento do vigário capitular”, ora nos
seus arredores, principalmente na Estrada de Cima, onde se encenava o “santo brinquedo”.
Ainda segundo esse cronista, a “dança dos Congos” era “uma espécie de auto do qual
participavam alegres escravos, que em tablado enfeitado, entre cantos e danças, coroavam um
rei do Congo. Essa representação de origem africana, realizada com a presença do povo nas
ruas de Goiana, quase sempre terminavam em briga, arruaça com intervenção da polícia”
(RODRIGUES, 1969, pp. 42-43). Vale lembrar que Pereira da Costa chegou a registrar a
existência de um auto de Congo que se apresentava em frente da Matriz de Tejucupapo, em
Goiana, na festa de São Lourenço. Ele fez uma interessante descrição, mostrando que se tratava
de um auto de característica guerreira, com rei, secretário, embaixadas e etc. O autor recolheu
alguns versos em que via a mistura da língua portuguesa com vocabulários africanos (COSTA,
1974 [1908], pp. 276-281). Mesmo pela sucinta descrição de suas práticas, tudo leva a crer que
essa “dança dos Congos” e esses “autos do Congo” eram a mesma manifestação cultural,
praticada por grupos distintos, em lugares variados e, provavelmente, com suas respectivas
variações. O fato é que ambas foram contemporâneas as aruendas. Aqui fica a pergunta: Seria a
aruenda também uma variação de uma dessas práticas, ligada apenas aos festejos do carnaval?
Será que seus integrantes também participavam dessas danças e autos do Congo?
Um ponto interessante que merece destaque diz respeito ao possível uso de um
vocabulário africano nessas manifestações. Pereira da Costa já havia observado isso em um auto
do Congo de Tejucupapo. Porém, em se tratando das aruendas, nada se sabe (nada foi revelado
pelos nossos informantes). Apenas, o que chama a nossa atenção é o próprio termo “aruenda”. Ao
que parece, “aruenda”, grafada com a vogal “e” no centro da palavra, seria uma variante de
“Aruanda”, que na linguagem das religiões afro-brasileiras seria uma espécie de “terra da
promissão”, localizada nos confins da África, onde a paz e a tranqüilidade reinariam (um lugar,
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por assim dizer, mítico, uma espécie de paraíso terreal). Especulando ainda mais sobre essa
palavra encontramos outra interessante referência: Para Câmara Cascudo, “aruanda” seria uma
corruptela de “Luanda” (São Paulo de Luanda), um porto de embarque de escravos de língua
bantú (CASCUDO, 2001, pp. 93-98). O jornalista da Contratempo afirma que os escravos que
participavam da aruenda seriam “naturais de Luanda”. Pare ele, no começo da aruenda, faziam
parte dela vários pretos cativos “importados da África”, que “imaginaram um brinquedo do tipo
do maracatu” e “semelhantes a outros existentes em sua terra natal”.
Não se sabe até que ponto essas afirmativas são procedentes. Mas é interessante perceber
que o termo “aruenda”, “aruanda” e outras corruptelas vão aparecer nos versos cantados por
diferentes manifestações, sendo que até a estrutura de alguns versos são muito próximas, para não
dizer idênticas. Pereira da Costa, escrevendo sobre os maracatus do Recife, registrou um verso
que pode ser usado como exemplo: “Aruenda aqui tenda, tenda/ Aruenda aqui tenda, tenda/
Aruenda de totororó” (COSTA, 1974 [1908], p. 208). Trigueiro e Benjamin também
encontraram um semelhante, cantado pela Cambinda Brilhante de Lucena, litoral da Paraíba:
“Aruanda que tá na tenda/ Na tenda Aruanda que tá no mundo/ No mundo no mundo tararará”.
Os mesmos pesquisadores encontraram também outra versão cantada pelas Pretinhas do Congo
de Goiana: “As pretinhas lê lê/ As pretinhas lá lá/ Aruanda que tenda, tenda/ Qui tenda, tenda/
Qui tendedô” (TRIGUEIRO e BENJAMIN, 1978, pp. 14 e 23). Ascenso Ferreira, nas suas
pesquisas para um artigo sobre o maracatu, colheu do “mestiço” Manoel Germano, tirador de loas
do Maracatu de Palmares, e do “preto” José Luiz, sacristão da Igreja do Rosário, no Recife e
presidente do Maracatu Leão Coroado, os seguintes versos: “O Zaluanda qui tenda, tenda,/Qui
tenda tenda, ô qui tem tororó” (FERREIRA, 1991, pp. 58-59). Essas semelhanças demonstram,
pelo menos, uma grande circularidade de saberes entre essas manifestações.
* * *
Para concluir esse artigo, é necessário um retorno ao carnaval de 1949, aquele que marca
o fim da Nação Iaiá Pequena. Segundo o relato de Seu Luiz Gomes, naquele ano teria ocorrido
uma grande confusão dentro do grupo. O nosso entrevistado não deu maiores detalhes do
episódio, ou mesmo os motivos que teriam levado os seus integrantes se desentenderem. Ele
apenas relata que “o doutor Otávio Pinto comprou os apetrechos da aruenda... e nesse ano
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saiu... mas já desconforme... saiu com algumas pessoas brancas... foi a última vez que a aruenda
saiu... no carnaval”. O “doutor Otávio Pinto”, referenciado na fala do nosso informante, foi o
mesmo que escreveu o livro Velhas Histórias de Goiana, algumas vezes citado nesse artigo.
Com o fim da Nação Iaiá Pequena, os apetrechos e adereços que ornavam aquela
manifestação cultural receberam vários destinos. Pela Contratempo, sabemos que naquele mesmo
ano de 1949, o “leão coroado” se encontrava em “poder da Prefeitura, para figurar no Museu
Regional Municipal”, ainda em organização. A frente da prefeitura e empenhado na criação de
um museu estava o então prefeito Lauro Raposo, que, conforme a mesma publicação, vinha
“realizando uma tarefa meritória de divulgação das manifestações mais puras da alma
popular”, entre elas, a aruenda. Já a calunga “Dona Erundina” encontrava-se sobre a guarda do
Instituto Histórico de Goiana até desaparecer junto com o espólio dessa instituição, segundo
informações de um de nossos entrevistados. Nessa mesma época, tanto Lauro Raposo como
Otávio Pinto faziam parte dessa instituição que iniciava um trabalho de preservação da memória
histórica da cidade. Esse trabalho não teve segmento.
Não é possível dizer até que ponto a prefeitura e outros agentes intervieram ou
interferiram de alguma forma no funcionamento e na desagregação da aruenda. Mas fica claro
que tanto a prefeitura como o Instituto Histórico de Goiana tinham relativa atuação e ingerência
sobre os integrantes da aruenda, a ponto de ficarem com a parte mais referenciada de seu espólio:
o leão coroado e a calunga Dona Erundina.
O fato é que ambos os objetos tornaram-se colecionáveis. Néstor Canclini, em Culturas
Híbridas, lembra que o folclore nasceu do colecionismo (CANCLINI, 2000, p. 303). Esse
processo pode ser percebido em Goiana. Afinal, as aruendas, em geral, bem como a sua última
representante que acabava de encerrar suas atividades, já eram vistas como “antiguidades”, como
resíduos e reminiscências do passado que remontavam à época da monarquia e da escravidão. O
próprio fato de se pensar em confinar essas peças em um museu ou instituição que cuidava da
memória local já é um ato de “folclorização”. Não se deve tirar conclusões precipitadas, mas ao
que parece, a última aruenda de Goiana vinha passando por um intenso processo de
“folclorização” de suas práticas, talvez por parte da intervenção da prefeitura e até de membros
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da elite (um deles tentou até “salvar” aquela manifestação comprando seus “apetrechos” e pondo
por um ano na rua).
E. P. Thompson, em um detalhado estudo sobre os costumes dos trabalhadores da
Inglaterra nos séculos XVIII e parte do XIX (feito com base principalmente nos registros dos
folcloristas), lembra que muitos desses relatos acabaram por separar os resíduos culturais do seu
contexto. Isso fez perder o sentido do costume como contexto, como mentalité, como ambiência
(THOMPSON, 1998, pp. 14-15). No caso das aruendas e de muitas outras manifestações de
Goiana, não foi possível compartilhar da mesma sorte do historiador inglês: nenhum folclorista
deixou relatos tão minuciosos. Seu único registro documental extenso pode ser considerado o
texto da Contratempo, tantas vezes citado no presente artigo. Porém, mesmo considerando o
esforço do jornalista em relatar com detalhes essa manifestação, pode-se dizer que o resultado
final acabou por folclorizar as suas práticas culturais, pois não conseguiu ver maiores sentidos
nos gestos e atos daqueles que faziam essa manifestação. Esse jornalista considera a aruenda uma
antiguidade, uma reminiscência de um passado africano em terras pernambucanas.
Provavelmente, para os seus antigos integrantes, a aruenda, seus ensaios, seus desfiles e seus
adereços tinham outros sentidos. Mas, depois do carnaval de 1949, essa manifestação cultural
havia perdido a capacidade de conferir significado aos seus próprios integrantes, não mais
estando inserida num campo simbólico que lhes permitisse pensar o mundo e suas relações de
poder. Já não valia mais a pena sair atrás de um simples leão de madeira durante o carnaval.
Bibliografia.
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Melhoramentos, 1967.
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Modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
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COSTA, F. A. Pereira da. Folk - lore pernambucano. Subsídios para a história da poesia
popular em Pernambuco. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974 [1908].
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FERREIRA, Ascenso. “O Maracatu”. In. Antologia do Carnaval do Recife. SOUTO MAIOR,
Mário; DANTAS SILVA, Leonardo (org). Recife: Editora Massangana, 1991.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira e BENJAMIN, Roberto. Cambindas da Paraíba. Cadernos de
Folclore n. 26, Rio de Janeiro, FUNARTE, 1978.
LIMA, Ivaldo Marciano de França. Maracatus-nação: ressignificando velhas histórias. Recife:
Bagaço, 2005.
LIMA, Ivaldo Marciano de França. Maracatus e Maracatuzeiros: desconstruindo certezas,
batendo afayas e fazendo histórias. Recife, 1930-1945. Dissertação de Mestrado apresentada
no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife: 2006.
PINTO, Otávio. Velhas Histórias de Goiana. Rio de Janeiro: Ed. Vecchio, 1968.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
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SANTIAGO, Mário. Analecto Goianense. Goiana: Tipografia Violeta, 1946 (Tomo I).
RODRIGUES, Mário. Crônicas Goianenses. Goiana: Editor Carlos Eduardo de Carvalho dos
Santos, 1996.
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