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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
AS PARCERIAS PBLICO PRIVADAS: INSTRUMENTO
DE UMA NOVA GOVERNAO PBLICA
MARIA EDUARDA AZEVEDO
Tese Orientada pelo Professor Doutor EDUARDO PAZ FERREIRA
DOUTORAMENTO EM DIREITO RAMO: CINCIAS JURDICO-ECONMICAS
2008
1
Agradecimentos
A apresentao da presente dissertao de doutoramento animada pelo
propsito de oferecer uma sistemtica de anlise da abordagem de Parcerias
Pblico-Privadas, estruturada numa lgica de compreenso jurdico-econmica
dos elementos relevantes.
Trata-se de uma deciso com um cunho marcadamente pessoal, embora
influenciada de forma incontornvel por um leque de factores externos que
determinam positivamente o sentido da escolha e ajudam no s a superar os
aspectos mais complexos, mas tambm a atingir a elaborao final do estudo.
Neste quadro, no queremos deixar de salientar os factores que se nos
afiguram de maior relevo.
Em primeiro lugar, o significado de pertena comunidade acadmica,
enquanto espao de reflexo, investigao e expresso da liberdade de
pensamento, com uma responsabilidade mpar na educao dos cidados e do
capital intelectual da sociedade.
Em segundo lugar, o exemplo transmitido pelos Senhores Professores com
quem tivemos o privilgio e o prazer de aprender, em especial, como
mestranda, e de trabalhar, como assistente.
Nesta medida, as nossas palavras iniciais de agradecimento so devidas ao
Senhor Professor Paulo de Pitta e Cunha, com quem inicimos o nosso
percurso docente e de quem absorvemos o gosto por um permanente combate
de ideias e, bem assim, ao Senhor Professor Antnio de Sousa Franco, a quem
prestamos uma singela homenagem com o presente relatrio centrado em uma
rea relevante de Finanas Pblicas e Direito Financeiro, para cuja elaborao
foi precioso o muito e profundo saber que nos legou.
2
Em seguida, uma palavra especial de gratido , naturalmente, devida ao
Professor Eduardo Paz Ferreira, que aceitou orientar a tese e manteve uma
permanente disponibilidade para nos aconselhar e auxiliar, no deixando nunca
de corresponder a qualquer solicitao que fizemos.
Mas, ao finalizar a elaborao de uma dissertao de doutoramento, d-se por
concludo um perodo de investigao que nos confrontou com mltiplas
dificuldades e em que se contraram outras inmeras dvidas de gratido para
com quem, de modos diferentes, as tornou possvel superar.
Deste modo, no queremos deixar de salientar a ateno particular que
encontrmos no Senhor Professor Paul Lignires, bem como nos Senhores
Juzes Conselheiros Carlos Moreno e Jos Tavares e, atravs deles, no prprio
Tribunal de Contas.
Por outro lado, impe-se agradecer tambm o auxlio recebido quer da
Biblioteca do Centro de Estudos Fiscais, na pessoa do Dr. Joo Paiva Bolo e
dos restantes funcionrios, quer da Biblioteca da Faculdade de Direito, na
pessoa da Dr. Ana Martinho, quer, ainda, da Procuradoria Geral da
Repblica, da parte das senhoras funcionrias da Direco de Documentao,
cujas facilidades concedidas foram inestimveis no trabalho de investigao
empreendido.
Por fim, as nossas ltimas palavras de agradecimento vo para os dois pilares
fundamentais do equilbrio de um doutorando: a Famlia e os Amigos. Neste
particular, uma referncia especial ao Jorge, pelo afecto e sacrifcio com que
viveu trs anos de dedicao a este projecto e por nele termos encontrado um
apoio permanente e incondicional, bem como uma estimulante e sempre
esclarecida abordagem analtica do tema.
3
Principais Abreviaturas e Siglas
AAAJ Accounting, Auditing & Accountability Journal
ACB Anlise Custo-Benefcio
Administ. Law Rev. Administrative Law Review
AID Associao Financeira para o Desenvolvimento
AJDA Actualit Juridique-Droit Administratif
Am.Econ.Rev. American Economic Review
Australian Ec. Rev. Australian Economic Review
BEI Banco Europeu de Investimentos
BJCP Bulletin Juridique des Contrats Publics
BM Banco Mundial
BMJ Boletim do Ministrio da Justia
Bol. Cien. Ec. Boletim de Cincias Econmicas
BOO Build, Owen, Operate
BOT Build, Operate,Transfer
BTO Build, Transfer, Operate
CDE Cahiers de Droit Europen
CESE Conseil conomique et Social Europen
CIPE Comitato Interministeriale per la Programmazione Economica CNPF Conseil National du Patronat Franais
Col. J. Ec. Law Columbia, Journal of Economic Law
Col. J. Eur. Law Columbia Journal of European Law
CPA Cdigo de Procedimento Administrativo
CPC Custo Pblico Comparvel
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
4
CSP Comparador do Sector Pblico
DBFM Design, Build, Finance, Maintain
DBFO Design, Build, Finance, Operate
DCMF Design, Construct, Maintain, Finance
Dem. Dir. Democrazia e Diritto
EAR European Accounting Review
Ec. Journal Economic Journal
EFL External Financing Limits
ELRev. European Law Review
Ec. Persp. Economia e Perspectiva
ESA European System of Accounts
FAM Financial Accountability and Management
F&D Finance and Development
FDC Faculdade de Direito de Coimbra
FDUL Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
FDUCP Faculdade de Direito da Universidade Catlica Portuguesa FMI Fundo Monetrio Internacional
Harv. Bus. Rev. Harvard Business Review
Harv. L. Rev. Harvard Law Review
IFLR International Financial Law Review
IGC Institut de la Gestion Dlgue
IJEB International Journal of Economic Business
IJPM International Journal of Project Management
IJPP International Journal of Public Policy
IMF International Monetary Fund
Int. Labour Rev. International Labour Review
JAPA Journal of the American Planning Association
5
JCB Journal of Credit and Banking
JCMS Journal of Common Market Studies
JEL Journal of Economic Literature
JEP Journal of Economic Perspectives
JESP Journal of European Social Policy
JET Journal of Economic Theory
JF Journal of Finance
JFE Journal of Financial Economics
JLE Journal of Law and Economics
JLPEO Journal of Law and Political Economics & Organisation JME Journal of Management in Engineering
J.Mon.Ec. Journal of Monetary Economics
JPE Journal of Political Economy
J.Publ. Economics Journal of Public Economics
JPF Journal of Private Finance
JPSM Journal of Public Sector Management
JTEP Journal of Transport Economics and Policy
JTP Journal of Theoretical Politics
Law Rev. Law Review
LEO Lei de Enquadramento Oramental
LEOE Lei de Enquadramento do Oramento do Estado
LIFT Local Investment Finance Trust
MBI Market Based Instrument
METP March dEntreprise de Travaux Publics
Mod. Law Rev. Modern Law Review
MOP Matrise dOuvrage Publique
NAO National Audit Office
6
NTJ National Tax Journal
NYULRev. New York University Law Review
OE Oramento de Estado
OGC Office of Government Commerce
OREP Oxford Review of Economic Policy
Public. Adm. Rev. Public Administration Review
PSBR PSBR
PMM Public Money and Management
PO Plano Operacional da Economia
PMP Politiques et Management Public
Pol. Studies J. Political Studies Journal
PPP Parceria Pblico-Privada
Pub. Org. Rev. Public Organization Review
Publ. Pol. Adm. Public Policy and Administration
Publ. Pol. Rev. Public Policy Review
PwC PriceWaterhouseCoopers
QJE Quaterly Journal of Economics
RAE Revue des Affaires Europennes
RCP Revista de Cincia Poltica
RDCE Revista de Derecho Comunitrio Europeo
RDP Revista de Direito Pblico
RDPE Revista de Direito Pblico da Economia
RDPSP Revue de Droit Public et Science Politique
RDUE Revue du Droit de lUnion Europenne
RE Revue dconomie
REF Revista de Estdios Fiscales
REP Revue dconomie Politique
7
Rev. Adm. Pol. Publ. Revista de Administrao e Polticas Pblicas
Rev. Banca Revista da Banca
Rev. Banque Revue Banque
Rev.Dir. Ec. Revista de Direito e Economia
Rev. Dir. Publ. Ec. Revista de Direito Pblico e Economia
Rev. Ec. Dir. Revista de Economia e Direito
Rev. Econ. y Soc. Trabajo Revista de Economia y Sociologia del Trabajo
Rev. Intern. Droit. Ec. Revue Internationale de Droit conomique
Rev. Jur. Revista Jurdica
Rev. OA Revista da Ordem dos Advogados
RFDA Revue Franaise de Droit Administratif
RFECP Revue Franaise dtudes Constitutionnelles et Politiques RFFP Revue Franaise de Finances Publiques
RIDC Revue Internationale de Droit Compar
RIDE Revue Internationale de Droit conomique
RIDPC Rivista Italiana di Diritto Pubblico Comunitario
RISA Revue Internationale de Sciences Administratives
Riv.Sc. Giu. Rivista di Scienze Giuridiche
Riv.Trim.Dir.Proc.Civ. Rivista Trimestriale di Diritto e Procedura Civile
RLJ Revista de Legislao e Jurisprudncia
RMC et UE Revue du March Commun et de lUnion Europenne RMP Revista do Ministrio Pblico
RSF Revue de Science Financire
RSJ Revista de Scientia Jurdica
RTDC Revue Trimestrielle de Droit Civil
RTDE Revue Trimestrielle de Droit Europen
8
RTDP Rivista Trimestriale di Diritto Pubblico
RTE Redes Transeuropeias
SEBC Sistema Europeu de Bancos Centrais
SFI Sociedade Financeira Internacional
SNS Servio Nacional de Sade
SPV Special Purpose Vehicle
TC Tribunal de Contas
TIC Tecnologias da Informao e Comunicao
UE Unio Europeia
UEM Unio Econmica e Monetria
UNCITRAL United Nations Commission for International Trade Law UNECE United Nations Economic Commission for Europe
VfM Value for Money
9
Introduo
1. A escolha do presente tema para objecto de uma dissertao de
doutoramento em Cincias Jurdico-Econmicas foi feita com a conscincia de
que as Parcerias Pblico-Privadas (PPPs) so uma via alternativa de
realizao de iniciativas pblicas centradas no investimento infraestrutural e na
reestruturao dos modelos de prestao de servios pblicos, que reclama
ainda uma reflexo jurdica adequada.
Uma carncia e apatia devidas, porventura, raiz gentica da Private
Finance Initiative, enquanto epicentro do fenmeno PPP, que, como Phillipe
Cossalter e Bertrand du Marais1 assinalam de forma impressiva, se
desenvolveu originariamente num quadro de verdadeiro ascetismo legal sob o
mote make deals, not rules, contribuindo para afirmar a iniciativa britnica
conservadora num plano predominantemente econmico e retirando premncia
construo de uma dogmtica jurdica prpria.
Nesta perspectiva, uma parte da Doutrina defende mesmo que as PPPs
no constituem um objecto de direito2, encarando-as como um mero modo
pragmtico e prtico de concretizar projectos de investimento pblico.
Uma orfandade que no aceitamos uma vez que as Parcerias,
reguladas por um leque diversificado de normas jurdicas de direito pblico e
direito privado que assumem, de forma varivel, caractersticas com relevncia
econmica3, convocam uma abordagem de Direito da Economia que
entendemos, na linha de Sousa Franco4 como o ramo normativo do direito que
disciplina, segundo princpios especficos e autnomos, a organizao e a
actividade econmica.
1 Cf., Philippe Cossalter e Bernard du Marais, La Private Finance Initiative, Institut de la Gestion Dlgue, Paris, 2001. 2 Cf., Paul Lignires, Partenariats Public-Privs, Paris, LITEC, 2 ed., 2005, pp. XIII. 3 Esta constatao encontra-se, nomeadamente, em Jean-Bernard Auby, no Prefcio a Partenariats Public-Privs, de Paul Lignires, ob. cit., p. XI. 4 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito da Economia, Lisboa, AAFDL, vol. I, 1982-1983, p. 48.
10
No mesmo sentido, a concepo do Direito da Economia como o
sistema resultante da ordenao de normas e princpios jurdicos, em funo
da organizao e direco da economia5. De igual modo, as posies que, no
respeito do ncleo central da formulao de Sousa Franco, incorporam na
prpria definio os resultados da evoluo para uma sociedade em que o
Estado no tem o exclusivo da disciplina da actividade econmica,
respondendo assim o Direito Econmico s necessidades de uma sociedade
em transformao6.
Deste modo, o Direito da Economia, ao consubstanciar um sistema de
normas instrumentais de objectivos nitidamente definidos, que ultrapassam a
dicotomia tradicional direito pblico/direito privado e promovem a compreenso
das relaes fundamentais entre o direito e a economia no mbito de um
verdadeiro encontro interdisciplinar, tem conhecido, como fenmeno que se
manifestou no panorama jus cientfico da actualidade, uma evoluo alicerada
em dados da cultura jurdica contempornea7.
Com o liberalismo, os Estados burgueses, empenhados em garantir a
ordem social e a sociedade poltica, bem como a produo de bens colectivos,
viram-se obrigados a prosseguir uma actividade de regulao e ordenao
econmicas de modo a assegurar o respeito da regulamentao jurdica que
visava a promoo dos valores constitucionais no sentido da plena expanso
da autonomia privada, num ambiente de neutralidade, passividade e
supletividade do sector pblico8. Um contexto em que as codificaes
oitocentistas, com primazia para os Cdigos Civis, tiveram no sculo XIX
preocupaes jus econmicas mais ou menos ntidas, configurando um cenrio
fundamental para o emergir, em momento ulterior, do Direito da Economia.
Mais tarde, depois do intervencionismo estatal haver provocado a
desintegrao do substrato econmico, poltico e tico do Direito Civil,
5 Cf., Antnio Menezes Cordeiro, Direito da Economia, Lisboa, AAFDL, 1986, pp. 8 e ss. 6 Cf., Antnio Carlos Santos, Maria Eduarda Gonalves e Maria Manuel Leito Marques, Direito Econmico, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 17 e ss., na linha de Champaud, Contribution la Dfinition du Droit conomique, Paris, Recueil Dalloz, 1967, pp. 215 e ss. 7 Cf., Antnio Menezes Cordeiro, Direito da Economia, ob. cit., pp. 73 e ss. 8 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito da Economia, ob. cit., pp. 12 e ss.
11
arrastando na queda as estruturas formais que envolviam a sua implantao e
cristalizao nas codificaes civis9, o Direito da Economia afirma-se e
autonomiza-se como um direito da interveno econmica do Estado,
acompanhando a escalada da actuao pblica nos domnios econmico,
social e cultural10.
Ento, esta viso de um direito do intervencionismo estatal motivou
mltiplas crticas de Autores que, embora aceitando a existncia de um Direito
Econmico autnomo, insistem na sua ligao com a liberdade de empresa11
ou consideram que o acolhimento desta via seria limitativo ou condicionaria
este ramo do direito12.
E, uma vez desvanecido o mito da interveno pblica, o Estado
reposiciona-se, comprimindo a sua interveno directa e retomando, de forma
privilegiada, a fixao de quadros gerais para pautar o exerccio da actividade
econmica privada e o seu espao de autonomia, mas reservando-se agora o
poder de intervir afirmativamente como garante do respeito dos
enquadramentos estabelecidos.
Porm, esse exclusivo da interveno disciplinadora da actividade
econmica acaba por ceder, assistindo-se proliferao de formas mais
abstractas e indirectas de regulao social, que viabilizam um controlo jurdico-
poltico da auto-regulao social. Uma situao que reanima um debate antigo
sobre o reconhecimento da existncia de uma pluralidade de ordenamentos
jurdicos13.
9 Cf., Orlando de Carvalho e Antunes Varela, Direito Econmico, So Paulo, Edio Saraiva, 1977, pp. 23 e ss. 10 Cf., Andr de. Laubadre, Droit Public conomique, Paris, Dalloz, 1979, pp. 19 e ss.; Robert Savy, Droit Public conomique, Paris, Dalloz, 1972, pp. 5 e ss.; A. Jacquemin e G. Schrans, Direito Econmico, Lisboa, Vega, Universidade, 1979, pp. 53 e ss.; P. Benvenuti, Il Diritto dellEconomia, Rivista Scienza Giuridiche. n 1, Anno XXXIV, 1997, pp. 3 e ss.; Bruno Cavallo e Giampiero di Plinio, Manuale di Diritto Pubblico dell Economia, Milano, Giuffr, 1983, pp. 183 e ss. 11 Cf., Berthold Goldman, La Libert du Commerce dans les Pays Dvellops, in: Libert et Droit conomique, Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1992, pp. 87 e ss. 12 Cf., Laurent Cohen-Tanugi, Le Droit sans ltat. Sur la Dmocratie en France et en Amrique, Paris, PUF, 1985, pp. 41 e ss. 13 A este respeito, nomeadamente, Del Vecchio, Lies de Filosofia do Direito, Coimbra, Armnio Amado, Coleco Studium, 1974, pp.510 e ss. (traduo de Antnio Jos Brando)
12
Assim, nos ltimos anos, num contexto de desinterveno estatal na
economia e de reconfigurao do papel e das funes do sector pblico, bem
como de reforo da contribuio dos agentes privados para a governao
pblica, o novo relacionamento entre o Direito e a Economia volta a suscitar o
alargamento do campo de reflexo do Direito Econmico e a reviso dos seus
conceitos fundamentais.
No conjunto, trata-se de variaes no sentido do Direito Econmico que
levaram van Themaat14 a colocar a hiptese da existncia de ciclos,
semelhana dos ciclos da economia, e que so explicveis pelos trs modelos
explicitados por Farjat15.
Neste contexto, as PPPs, enquanto uma forma de actuao econmica
do Estado no actual panorama de globalizao de mercados, de comprovadas
falhas de interveno estatal e de mercado, bem como de retraco das
polticas pblicas, surgem na primeira linha da reafirmao do Direito
Econmico, evidenciando a grande versatilidade e capacidade de adaptao
deste ramo do direito s mutaes econmicas e sociais16, projectando-se
tambm no campo da disciplina das Finanas Pblicas e do Direito Financeiro,
chamada a absorver e regular o uso deste instrumento de vocao financeira.
Na verdade, as Parcerias emergem, sobretudo, como uma consequncia
da necessidade no s de reorientar e redimensionar o sector pblico, mas
tambm de favorecer a participao da iniciativa privada na esfera da
governao pblica17, tendo por base uma cooperao duradoura dos agentes
pblicos e privados na proviso de infraestruturas e na prestao de servios
14.Cf., P. ver Loren van Themaat, Les Rapports entre les Grandes Prncipes de 1978, Leur volution dans le Temps et dans lEspace, ob. cit., pp. 195 e ss. 15 Cf., G. Farjat, La Notion de Droit conomique, Archives de Philosophie du Droit, Tome 37, 1992, pp. 27 e ss. 16 Desafios configurados por Laurende Boy, Le dfi dmocratique de la mondialisation du droit conomique et le rle de la socit civile, Revue Internationale de Droit conomique ns 3-4, Numro spcial La Mondialisation du Droit conomique : vers un Nouvel Ordre Public conomique, 2003, pp. 471 e ss.; Gerard Farjat, La mmoire du Droit conomique, Rev. Intern. Droit Ec. ns 5-9, Numro Anniversaire Bilan et Perspectives du Droit conomique, 2002, pp. 5 e ss. 17 Cf., Pedro Gonalves, Entidades Pblicas com Poderes Privados, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 13 e ss.
13
pblicos mediante o recurso s capacidades de financiamento e gesto do
sector privado.
Deste modo, inscrevem-se no mbito de uma estratgia que, ao
conjugar a privatizao de responsabilidades pblicas com a activao de
responsabilidades privadas, associadas a uma redistribuio do papel e das
responsabilidades do Estado e da Sociedade18, aponta de modo indeclinvel
para o reforo da participao dos agentes privados na realizao do bem
comum e na criao de bem-estar.
Em termos gerais, as PPPs propem-se combinar os pontos fortes dos
sectores pblico e privado, partilhando riscos, em resposta s falhas de
mercado mas minimizando as falhas de Estado, assumindo-se como uma
terceira via que pretende superar a dupla lgica de predomnio do mercado
versus interveno pblica e de substituio pendular de umas imperfeies
por outras.
Logo, as PPPs representam tambm um instrumento pblico de ndole
econmico-financeira que permite manter ou incentivar um ritmo adequado de
investimento e modernizao dos servios pblicos, mesmo em condies de
restrio oramental, procurando articular, em formatos variveis, o
financiamento inicial e o pagamento final atravs do contribuinte ou do utente,
tendo como ncora o financiamento prvio privado de acordo com diferentes
matrizes de transferncia e partilha de riscos.
Nesta medida, a escolha pblica de prosseguir a via PPP ditada
frequentemente pelo imperativo de limitar ou reduzir a presso sobre a
despesa pblica de acordo com as polticas de conteno oramental que, por
vrias razes, obrigam a generalidade dos pases, mormente, os Estados
europeus sujeitos s exigncias decorrentes do Pacto de Estabilidade e
Crescimento.
18 Sobre as dimenses da nova correlao entre o Estado e a Sociedade no domnio da execuo de funes pblicas, Dolores Canais I. Ametler, El exerccio por particulares de fonctions de autoridad, Granada, Comares, 2003, pp. 72 e ss.
14
Por fim, as Parcerias, assentes na mobilizao do financiamento privado
e num relacionamento de longo prazo dos parceiros pblico e privado,
envolvem a partilha de riscos entre as partes e o estabelecimento de
compromissos financeiros que, quando implicam dispndio pblico, alteram o
perfil e as caractersticas da despesa pblica, condicionando os oramentos
futuros e requerendo do decisor pblico a avaliao dos custos e benefcios
respectivos, em toda a sua dimenso e amplitude19.
Na verdade, embora as Parcerias repousem no recurso ao financiamento
privado, tal no exclui que um amplo leque de esquemas contemple uma
participao financeira do Estado com repercusso plurianual nos oramentos
pblicos. Da que as parcerias devam suscitar um escrutnio particular em
matria de disciplina e transparncia oramental, de controlo da utilizao dos
dinheiros pblicos e, bem assim, de avaliao ex ante dos projectos, seja do
ponto de vista da comportabilidade oramental, seja do respectivo Value for
Money (VfM), tendo como pano de fundo a sustentabilidade das finanas
pblicas e a equidade intergeracional.
2. Em matria de Relevncia e Actualidade do tema, perfilhamos a viso
de que as PPPs constituem um fenmeno recente e em evoluo que, de h
uns anos a esta parte, tem ganho uma expresso multisectorial e mundial, ao
permitirem a prossecuo de polticas arrojadas de desenvolvimento
infraestrutural e modernizao da prestao de servios pblicos em condies
de restrio oramental, propondo uma abordagem alternativa s formas
convencionais de montagem e implementao deste tipo de iniciativas.
Ao reequacionarem e redefinirem o triplo vrtice proviso-financiamento-
prestao de infraestruturas e servios pblicos, hoje as PPPs so encaradas
como uma parte integrante das solues governamentais que visam responder
19 Como sublinha John Clarke, Scrutinity through inspection and audit, in: Public Management and Governance, London, Routedge, 2003, pp. 149 e ss., trata-se de um controlo a assegurar num quadro de boa governao. No mesmo sentido, Michael Power, The Audit Society, Oxford, Oxford University Press, 1997, pp. 24 e ss.
15
premncia de superar os significativos dfices infraestruturais que, escala
mundial, se observam na generalidade dos pases.
Em numerosos pases em desenvolvimento, as bases infraestruturais
so incipientes e dbeis, representando um entrave e uma sria condicionante
dos esforos gizados em prol do crescimento econmico. Por seu turno, nas
naes mais desenvolvidas assiste-se necessidade de redimensionamento e
renovao do parque infraestrutural, que mostram sinais de acentuada
deteriorao e declino fsico aps dcadas de subinvestimento nas
infraestruturas econmicas e sociais por parte das autoridades pblicas.
Num ambiente internacional em que a competitividade um factor
decisivo de crescimento, torna-se imperioso inverter esta tendncia e agir,
promovendo infraestruturas econmicas orientadas para o reforo das
capacidades competitivas. Ao mesmo tempo, acresce que o crescimento e
envelhecimento populacionais gerador, a par do consumismo, do aumento
das exigncias colocadas aos servios pblicos, tanto em termos quantitativos
como qualitativos, pretendendo-se satisfazer as expectativas crescentes, mas
fugindo ao incremento da carga fiscal.
Presses que reclamam quer respostas menos complacentes com as
imperfeies da gesto pblica, quer a procura de ganhos de eficincia e
qualidade, rompendo com as formas tradicionais de prestao dos servios
pblicos, cujo carcter monopolista, monoltico e burocrtico no assegura uma
soluo adequada.
Assim, as PPPs configuram uma via alternativa exequvel e abrangente
que, de forma paradigmtica, est ao dispor do decisor pblico para mobilizar
as capacidades de financiamento e gesto do sector privado e fomentar a
contestabilidade, franqueando a operadores privados a participao na esfera
da prestao pblica.
Assumindo uma variedade de arranjos de natureza puramente contratual
ou dando origem a formatos institucionalizados, o sector privado tem a
16
possibilidade de conceber, construir, financiar e explorar activos infraestruturais
ou operar e gerir servios pblicos, que eram financiados tradicionalmente
mediante recursos oramentais, com a execuo dos investimentos contratada
ao sector privado e a explorao ou gesto cometida ao sector pblico.
Em termos tpicos, as parcerias traduzem-se numa contratao global de
longo prazo baseada em tcnicas concessrias, sendo os servios contratados
prestados em nome do parceiro pblico directamente aos utilizadores ou ao
prprio ente pblico, e o parceiro privado remunerado ora pela cobrana de
tarifas aos utentes, ora por pagamentos pblicos em funo da prestao
efectiva dos servios estipulados.
Para alm da sua pertinncia, as PPPs contemplam ainda traos
inovadores que apelam anlise e compreenso do que h de novo,
destrinando o ncleo dos elementos caracterizadores em presena e
compaginando as respectivas implicaes nas sedes prprias.
Um aspecto inovatrio marcante o que se expressa no enunciado do
princpio basilar de afectao dos riscos entre as partes e os vrios
intervenientes, visando, no essencial, optimizar a matriz de alocao numa
perspectiva de transferncia e partilha de riscos, no proceder
necessariamente passagem, em quaisquer circunstncias, de toda a lea
financeira para o operador privado, conforme era apangio da noo pura de
concesso clssica.
Por outro lado, a introduo da abordagem PPP como uma poltica
transversal aplicvel aos vrios sectores da aco governativa sugere a anlise
das condies em que esta opo se pode revelar superior s prticas
tradicionais, cotejando as respectivas vantagens e desvantagens,
nomeadamente na ptica do errio pblico e, em especial, quando est em
causa optar por envolver recursos pblicos em uma ou outra via para
concretizar um projecto determinado.
17
Por fim, as PPPs inserem-se ainda na perspectiva geral de reforo da
contribuio da iniciativa privada para a governao pblica, incentivando a
colaborao entre os universos pblico e privado luz dos novos credos de
redesenho do papel e das funes do Estado e de activao de
responsabilidades privadas, configurando no s um instrumento privilegiado
ao servio das modernas finanas pblicas, mas tambm um veculo de
assimilao dos valores e das prticas que enformam o new public
management.
3. No presente estudo propomo-nos traar uma sistemtica de anlise da
abordagem em PPP, estruturada numa lgica de compreenso jurdico-
econmica dos elementos relevantes, no sentido mais exigente que esta
expresso pode comportar20.
Para tanto, tomamos como base, exclusivamente, as Parcerias de
natureza contratual, cuja raiz assenta na contratao de um projecto de
parceria por um ente pblico a um parceiro privado, centrada no fornecimento
de servios operacionais numa perspectiva de longo prazo, consubstanciando
uma contratao global que se pretende mais eficiente do ponto de vista
econmico21.
este o contributo que oferecemos, animados pelo propsito de tornar
mais compreensvel o alcance e a riqueza deste instrumento e, bem assim, as
suas possibilidades de explorao como um arranjo inovador entre os sectores
pblico e privado, susceptvel de promover uma nova governao pblica.
20 Sobre os sentidos que a qualificao jurdico-econmica susceptvel de encerrar, cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito da Economia, vol. I, ob. cit., pp. 7 e ss e 52 e ss. De qualquer forma, o estudo que empreendemos informado, naturalmente, por uma metodologia jurdica que, no sentido e na perspectiva, segue a orientao matricial traada por Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, Direito Econmico, AAFDL, 2001, p. 33, que, sem negar a utilidade do recurso anlise econmica do direito como cincia auxiliar, continua a sustentar a autonomia das normas jurdicas e a funo conformadora que o direito exerce em relao actividade econmica. 21 Cf., O. Hart, Incomplete Contracts and Public Ownership: Remarks and an Application to Public-Private Partnerships, Ec. Journal, vol.113, 2003, pp. 96 e ss.
18
4. Em termos Metodolgicos, o presente estudo apoia-se de forma clara
numa perspectiva interdisciplinar de investigao, como prprio, alis, da
abordagem de Direito da Economia.
Neste contexto, a especial nfase na anlise da dimenso econmica,
que constitui um elemento incontornvel do processo de compreenso e
apuramento da valia do fenmeno PPP, no significa, nem h-de significar,
uma forma de secundarizao dos processos de construo jurdica.
Na realidade, o relevo dado s especificidades do quadro econmico no
funcionamento do esquema das Parcerias no corresponde a uma qualquer
diminuio de importncia das molduras legais indispensveis para acomodar
os projectos, nem a uma desvalorizao dos cdigos inerentes a verdadeiras
proposies normativas, antes consubstancia a associao de elementos de
natureza econmica aos processos de base jurdica, tendo em vista a
conjugao dos aspectos decisivos de ambas as reas.
Demais, esta coexistncia complexa que possibilita o desenvolvimento
de um entendimento jurdico-econmico, tornando obrigatria a montagem de
projectos em parceria quer a identificao das molduras legais mais
adequadas, quer a busca das melhores solues econmicas consoante os
objectivos a atingir por cada um.
Justifica-se, pois, a perspectiva apontada, tanto mais que, ao no
questionar o peso muito significativo dos elementos econmicos na construo
legal das Parcerias, esta anlise no deixa de atender s operaes jurdicas e
problemtica que lhes est inerente.
Neste quadro, se a considerao dos modelos e objectivos das Parcerias
torna natural a nfase posta nos elementos econmicos, a verdade que se
impe considerar tambm o carcter decisivo seja das operaes jurdicas,
seja dos aspectos metodolgicos, at mesmo como condio prvia do
respectivo sucesso econmico, segundo defendem certos sectores do universo
das PPPs.
19
Deste modo, possvel que esteja em definio uma via passvel de
prevenir o predomnio dos conceitos econmicos no enquadramento das
PPPs, posio que encontra eco, alis, nas preocupaes, nas prticas e nos
apelos de vrias Organizaes Internacionais22.
5. Em termos de Sistemtica do Objecto de Investigao, propomo-nos
abordar as matrias relevantes segundo um encadeamento que estabelece
vrios planos de anlise ao longo de quatro partes fundamentais, conducentes
formulao de concluses.
A Parte I justifica-se pelo facto de as PPPs, ao inscreverem na agenda
poltica uma reordenao de funes dos sectores pblico e privado na
Economia e na Sociedade, tornarem de novo central a definio da amplitude
dos dois universos, bem como os critrios de recorte das respectivas esferas
de actuao.
Em causa est a questo do relacionamento entre ambos os sectores
que, seguindo o pndulo da histria, tem conhecido oscilaes cclicas,
inspiradas por razes de carcter filosfico-doutrinrio e motivaes polticas,
dependendo essencialmente da opo das sociedades humanas pelo recurso
actividade pblica ou privada para responder a necessidades concretas.
Da que, sendo diversas as satisfaes proporcionadas por cada um dos
universos, encontrar um princpio de equilbrio e conformar-lhe o sistema
econmico-social haja representado um dos problemas fundamentais de todos
os tempos. Afinal, com uma centralidade incontornvel, tais relaes no
deixam de influenciar o ncleo das questes levantadas pela actividade
econmica23.
22 A este propsito merecem referncia, designadamente, a Unio Europeia, com as Guidelines for Successful Public-Private Partnerships, e a ONU, atravs das suas Agncias, UNECE e UNCITRAL, como sublinha H. Goldsmith e Mateus Turr, El papel de las instituciones internatonales en el desarrollo de las asociaciones publico-privadas, The Wall Street Journal, 21 July 2003. 23 Perspectiva-se aqui o ncleo das questes levantadas pela actividade econmica do Estado, tal como sintetizadas por Stiglitz, Economics of the Public Sector, New York-London, W.W.Norton & Company, 3rd.ed., 2000, pp. 3-7, 11-22, 55-90 e 127-149. No mesmo sentido, Anthony Atkinson e Joseph Stiglitz, Lectures on Public Economics, New York, McGraw-Hill, 1987, pp. 322 e 482 e ss.; John F. Due,
20
Neste quadro, reclamando a janela de Proust, vamos percorrer a histria
econmica em busca do actual equilbrio entre os sectores pblico e privado,
comeando a anlise pelo Liberalismo econmico firmado numa lgica de
confrontao e clivagem entre os dois sectores, polarizando a privatizao da
economia e a primazia do mercado na crena da sua capacidade auto-
reguladora, face viso contrastante da absteno econmica do Estado e da
neutralidade das finanas pblicas.
Em seguida, o Intervencionismo estadual que, considerando que o
mercado no auto-regulado e reproduz desigualdades, reconhece ao Estado
um papel central na estabilizao macroeconmica e na redistribuio do
rendimento e dos servios. Ento, com esta inverso do paradigma, o Estado
adquire a faceta de produtor e, mesmo, promotor do bem-estar social,
passando a gozar de uma posio progressivamente crescente na economia e
na prpria sociedade.
Por fim, ocupamo-nos da realidade econmica e social das ltimas
dcadas, num ambiente em que o novo Estado mnimo no o apenas por
opo ideolgica, mas tambm pela crise do Estado Providncia e pela
acumulao de dfices pblicos, tornando imperativa uma reordenao de
papis dos dois sectores luz dos novos credos sobre a dimenso ptima do
sector pblico, baseada, sobretudo, em argumentos de sustentabilidade das
finanas pblicas e apoiada pelo new public management.
Na Parte II a dimenso mundial das PPPs que vamos analisar, tendo
presente que, para uma efectiva compreenso do fenmeno, se afigura
indispensvel o conhecimento seja das suas origens, at pelo papel
estruturante e enformador na conformao das polticas PPP, seja do fruto da
ampla difuso de que a abordagem tem sido alvo, uma vez que nela reside no
s uma importante fonte de inspirao e alimentao do esquema de
Government. Finance: Economics of the Public Sector, Illinois, 4th ed., 1968, pp. 22 e ss.; C. V. Brown e P. M. Jackson, Public Sector Economics, Oxford, Martin Robertson & Company, 1983, pp. 22 e ss.; Robin W. Broadway, Public Sector Economics, Cambridge, Massachusetts, Winthrop Publishers, 1979, pp. 34 e ss.; David N. Hyman, Public Finance. A Contemporary Application of Theory to Policy, New York, The Dreyden Press, pp. 4 e ss.
21
parceria, mas sobretudo a comprovao das suas potencialidades e da
capacidade de resposta quando confrontada com uma diversidade significativa
de cenrios em termos polticos, econmicos e jurdicos24.
S mesmo a impossibilidade, neste estudo, de dar testemunho das
experincias PPP worldwide que impe conteno ao arrojo de ir pelo
mundo ao encontro de uma metodologia espalhada de forma inequvoca pelos
cinco Continentes, ultrapassando barreiras polticas e jurdicas. Por isso,
seleccionamos alguns casos de referncia no tocante aos Pases e, em matria
de Organizaes Internacionais, as que tm granjeado mais crditos na
expanso e adopo da abordagem PPP.
Na Parte III considerada a experincia de Portugal, um dos pases
europeus com uma maior percentagem de PPPs quer em relao ao PIB, quer
em relao ao Oramento do Estado, onde a abordagem reconhecidamente
uma realidade relevante, controversa e actual25.
O lanamento de Parcerias constituiu o factor motivador de algumas
reformas legislativas importantes, cenrio em que sobressai a aprovao da Lei
de Enquadramento Oramental que, de mritos indiscutveis como uma boa
base de trabalho, no entanto no deixa de evidenciar algumas fragilidades de
implementao, graves e perturbadoras na perspectiva de uma s disciplina
oramental26.
Na Parte IV, com um carcter nuclear neste estudo, ocupamo-nos de um
leque de instrumentos relevantes, que abordamos em termos de anlise crtica.
24 Trata-se de uma ideia partilhada pelos estudiosos da abordagem PPP que reputam essencial, para uma compreenso to ampla e aprofundada quanto possvel, no s a apreenso do respectivo desenvolvimento, corporizado no conhecimento quer de experincias individualizadas e respectivas especificidades, quer da avaliao que sobre elas haja sido realizada, quer, ainda, da consolidao e inovao do adquiridoem matria de Boas Prticas. Cf., Frdric Marty, Sylvie Trosa e Arnaud Voisin, Les Partenariats Public-Priv, Paris, Collection Repres, La Dcouverte, 2006, pp.5 e ss. 25 Cf., Joaquim Pina Moura, Modelos de Gesto e de Participao Privada no Sector Pblico, in: O Estado no Sculo XXI: Redefinio das suas Funes?, INA, Oeiras, 2005, pp. 47 e ss. 26 Neste sentido o TC, nomeadamente, Auditoria aos Encargos do Estado com as Parcerias Pblico-Privadas Concesses Rodovirias e Ferrovirias, Relatrio n 04/2007/2 seco, Janeiro.2007, pp. 15 e 25-26, 34-35; Auditoria Gesto das Parcerias Pblico Privadas Concesses Rodovirias, Relatrio n 10/2008/2seco, Maro.2008, pp. 20-30, 40-46 e 65-66; Auditoria ao Projecto em PPP do Novo Hospital de Cascais, Relatrio n 06/2008/2seco, Janeiro. 2008, pp.12-17.
22
Neste contexto, damos prioridade ao Posicionamento das PPPs, entre as
privatizaes e a contratao pblica tradicional, identificando, em especial, os
aspectos inovadores que so responsveis pela originalidade da abordagem
em parceria.
Em seguida, relevamos a determinao do Conceito de PPP em virtude
do seu carcter polissmico e, bem assim, da ausncia de uma noo jurdica,
propondo a sua apreenso a partir de uma perspectiva stricto sensu, mediante
a conjugao de um leque de caractersticas e objectivos fundamentais,
enquanto critrios seguros e essenciais, quer de individualizao da
abordagem, quer de destrina em relao a outras formas de cooperao entre
as esferas pblica e privada, quer, ainda, de reconhecimento da respectiva
identidade escala mundial e de adopo pelos ordenamentos jurdicos
nacionais.
Em sede de Objectivos, introduzimos as Parcerias como o veiculo que
permite prosseguir polticas de desenvolvimento infraestrutural e de
modernizao e reestruturao das formas de prestao de servios pblicos,
no quadro da disciplina oramental dominante e da reequao e redefinio do
trinmio proviso-financiamento-prestao da interveno pblica no domnio
dos servios pblicos. Um cenrio em que a abordagem PPP visa dotar o
sector pblico de uma capacidade acrescida de realizao de projectos e gerar
ganhos de valor para o errio pblico.
No tocante Dimenso Jurdica, comeamos por introduzir a necessidade
quer de um enquadramento legal e institucional adequado ao lanamento e
aprofundamento de uma poltica PPP, quer, em termos operacionais, a
presena de Unidades Dedicadas e especializadas.
Em seguida, tendo o fenmeno PPP emergido num ciclo de ressurgimento
do contrato, justifica-se que discorramos sobre o contributo que as parcerias
tm emprestado revitalizao deste instituto atravs do seu dinamismo
contratual. E, na ausncia de um modelo contratual especfico de dimenso
universal para acomodar os projectos PPP, centramo-nos na concesso,
23
apurando a influncia da PFI na recente metamorfose deste instituto, sem
embargo de assumirmos que a realizao de parcerias admite a utilizao de
um leque de outras estruturas contratuais, desde que respeitam um ncleo
central de princpios que representam o cerne das parcerias.
Por sua vez, no tocante Vertente Econmica est em causa a afirmao
das Parcerias como um instrumento de interveno pblica com caractersticas
econmicas prprias, que visam mitigar falhas de mercado no mbito da
proviso de infraestruturas e servios pblicos, distinguindo-se tanto da
proviso pblica tradicional, como da proviso privada. Um quadro em que as
parcerias procuram conjugar a eficincia de afectao do sector pblico com a
eficincia produtiva do sector privado, pretendendo gerar uma combinao
mais virtuosa do que a proviso pblica tradicional.
Ento, o interesse microeconmico das PPPs resulta do valor
acrescentado aduzido pela participao privada em termos de ganhos de
produtividade e eficincia gerados na cadeia de produo e prestao dos
servios. Todavia, a par dos benefcios, importa relevar o reverso em termos de
custos, seja de custos de transaco, seja de o recurso ao financiamento
privado tender a ser mais caro do que o endividamento privado.
Por fim, indispensvel percorrer ainda a questo da Demonstrao de
VfM, uma vez que a via PPP enuncia uma nova proposta de valor para o errio
pblico com base numa frmula diferente de relacionamento entre os sectores
pblico e privado, pretendendo proporcionar acrscimos de valor para o sector
pblico face s linhas de montagem tradicionais.
Nesta medida, enquanto uma opo alternativa, a escolha da via PPP h-
de, em cada caso, passar um duplo teste: por um lado, revelar-se mais
suportvel em termos oramentais e, por outro, mostrar-se susceptvel de
proporcionar ganhos acrescidos de VfM.
24
PARTE I EM BUSCA DO EQUILBRIO
ENTRE OS SECTORES PBLICO E PRIVADO
27
Captulo I Estado e Sociedade: Pblico versus Privado
1. Enquadramento
Nos fins do sc. XVIII e durante o sc. XIX, nos pases que conheceram a
revoluo industrial nasceu o capitalismo liberal, que no plano filosfico-poltico
adoptou a prefigurao Indivduo Sociedade Estado, como sustenta
Rogrio Soares27, manifestada no pensamento dos enciclopedistas, mais
concretamente em Locke, Montesquieu e Rousseau, abrindo o caminho a uma
nova ordenao social28, e ao nvel econmico teve a teorizao nas obras dos
clssicos ingleses Adam Smith, Ricardo e Stuart Mill e do francs Jean-
Baptiste Say, defendendo a primazia do mercado e fazendo a apologia do
Estado mnimo29.
Ento, o jusnaturalismo, a soberania nacional, a ideia de liberdade, bem
como o princpio da igualdade, constituram o terreno ideolgico sobre que se
edificou o Estado a que as revolues liberais vieram dar origem30.
Revolues, cujas principais inovaes residiram no s na consagrao dos
27 Uma nova racionalidade que repousou no indivduo livre, isolado e igual; na sociedade enquanto somatrio de indivduos; na comunidade, como o rbitro dos comportamentos individuais; e no Estado, com um papel muito reduzido, que se limitava a promover a garantia e permanncia da ordem jurdica. Por isso Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, Coimbra, Ed. Biblioteca Jurdica, 1969, pp. 39 e ss, defende que os quadros poltico-jurdicos do Estado contemporneo foram criados principalmente para dar satisfao s necessidades da ascenso da burguesia na sua luta contra as formas monrquicas de governo, no como a decorrncia de uma espcie de direito natural. 28 Cf., Fernando Vallespin, Contrato Social y Orden Burgues, Rev. de Estudios Polticos, Centro de Estudios Constitucionales, Nueva Epoca n 38, 1994, pp. 147 e ss. 29 Como refere Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico. A Ordem Econmica Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 4 ed., 1994, pp. 42 e ss., se a nsia e libertao do indivduo e da sociedade em relao ao poder absolutista do Prncipe se sentiu em todos os campos, no subsistem dvidas de que foi ao nvel do econmico que adquiriu maior incidncia e relevo. 30 Cf., Maria da Glria Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justia Administrativa em Portugal, Lisboa, Universidade Catlica Editora, 1994, pp.271 e ss.; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, vol. I, 1986, pp. 75 e ss.
28
direitos dos cidados perante o poder, mas tambm na pretenso de os libertar
do Estado, colocando-os fora da respectiva rea de interveno31.
De facto, a primeira motivao dos movimentos revolucionrios radicou na
ruptura com certos privilgios de classe e, muito em especial, na eliminao
dos limites s actividades comercial e industrial de uma reivindicativa burguesia
em manifesta ascenso, que invocou a razo e o direito natural como
sustentculo das suas pretenses.
Alis, foi a necessidade de libertar a produo e o lucro dos poderes
intervencionistas do Estado absolutista que colocou esta classe na primeira
linha do combate pela libertao dos poderes do Prncipe, exigindo a
participao nos negcios estaduais e reclamando o reconhecimento e a
garantia dos Direitos do Homem, designadamente a liberdade e a propriedade
individual32.
2. O Primado do Mercado Auto-Regulado e a Absteno Econmica do Estado
Para concretizao dos propsitos fomentadores dos movimentos
revolucionrios, os clssicos promoveram a separao rgida entre as esferas
pblica e privada, realizando entre os dois sectores uma fractura radical que,
como a generalidade das instituies polticas do liberalismo, serviu a
burguesia ascendente na luta contra as formas de poder monrquico
absolutista33. Ao mesmo tempo, o binmio pblico-privado arrastou novas
dicotomias, como lei-contrato, sociedade de iguais-sociedade de desiguais,
justia comutativa-justia distributiva, enquanto expresso dos novos valores e
dos novos instrumentos ao servio da sociedade liberal34.
31 Cf., Jos Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais no mbito da Constituio Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1983, pp.57 e ss. 32 Cf., Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico, ob. cit., p. 51. 33 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares, Princpios da Legalidade e Administrao Constitutiva, FDC, Bol. vol. LVIII, 1981, pp. 169 e ss. 34 Deve-se a Norberto Bobbio, Stato, Governo, Societ, Enclopdia Einaudi, vol.14, Estado-Guerra, Lisboa, INCM (trad. port.) 1989, pp. 178 e ss., uma anlise especialmente clara de como a dicotomia pblico-privado, caracterstica nuclear da organizao do Estado liberal, acarretou todo um conjunto de dicotomias.
29
Desenhou-se um cenrio em que foi determinante a proclamao de um
omnipotente sector privado, com a contraposio em um diminudo, quase
inexistente, sector pblico, cuja dimenso no ultrapassou em regra nveis de
10 a 12% do PIB. E, uma vez assumida a supremacia da esfera privada, a
ortodoxia econmica liberal ocupou-se em moldar rigorosamente as reas de
aco e as funes de cada um dos universos, condicionando o respectivo
papel e articulao.
Ento, promoveu-se a separao rgida entre o Estado e a Sociedade35,
como pilar da construo poltica liberal, assente na dicotomia entre os
sectores pblico e privado e em relaes baseadas numa lgica de
confrontao e excluso, que teve implcito o monoplio do espao pblico pelo
Estado, e a actuao estadual determinada pelo interesse pblico,
representando a Sociedade, liberta de intromisses do poder poltico, o espao
de actuao privada, prosseguindo valores identificados exclusivamente com a
satisfao de interesses privados36.
Com o triunfo do iluminismo e a separao das esferas pblica e privada,
a nova ordem instalada e, bem assim, a ideologia que a promoveu e sustentou
trouxeram um sopro emancipatrio que alterou profundamente a imagem do
homem, como nota Barcellona37, enquanto senhor do seu destino, sujeito da
liberdade e da propriedade, titular, face ao Estado, de direitos e interesses
individuais que, em competio com os demais, podia satisfazer por iniciativa
prpria no quadro de leis universais38.
Neste contexto, dominado pela necessidade de consolidar o crescimento
com base na liberdade econmica das empresas, consumidores e detentores
dos factores de produo e na economia privada, a primeira fase do regime
35 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, Coimbra, Atlntica Editora, 1969, pp. 39 e ss. 36 Cf., Pedro Gonalves, Entidades Privadas com Poderes Pblicos, ob. cit., pp. 42-43 e 140-141. 37 Cf., Pietro de Barcellona, La metamorfose del soggetto e il principio proprietario, Dem. Dir., 1986, pp. 230 e ss. 38 Como defende, Fabrice Tricou, Le libralisme conomique consquentialistte et les conceptualisations du march, in : La lacit, Archives de Philosophie du Droit, Tome 48, Paris, Dalloz, 2004, pp.331 e ss., na rea da utilizao dos recursos e da movimentao de bens, o ideal da autodeterminao individual casou-se com o postulado bsico de que da livre manifestao de preferncias individuais era resultado do bem-estar colectivo.
30
capitalista correspondeu a um modelo econmico conforme com o lema
laissez-faire, laissez-passer le monde va de soit39, que assentou no mercado,
na livre concorrncia e respectiva capacidade para gerar equilbrios
automticos40; em comportamentos individuais que, apesar de ditados
exclusivamente pelo interesse pessoal, eram capazes de assegurar de forma
espontnea41 o equilbrio geral por via de uma mo invisvel42 e, ainda numa
ordem natural de origem metafsica e divina43.
Um esquema em que o consumidor se afirmou enquanto detentor do
poder econmico e o mercado como o instrumento de direco e controlo da
economia; tendo o contrato passado a constituir o instrumento jurdico por
excelncia para regular os negcios privados e devendo os agentes
econmicos aproveitar plenamente a amplitude concedida pelos princpios da
liberdade de contratar e da autonomia da vontade44.
Causa e efeito da construo liberal, a no interveno do Estado na vida
econmica representou um elemento nuclear porquanto, como sustentava
Adam Smith, o Estado era por natureza inadequado s funes
39 A este propsito, Adam Smith dizia que a poltica do laissez-faire assentava no princpio da identidade natural dos interesses privados e pblicos. Por isso, apontava a concorrncia para fazer baixar espontaneamente os preos ao nvel do custo de produo, a oferta para garantir a resposta procura por fora de um mecanismo automtico, e os capitais a orientarem-se naturalmente para as aplicaes melhor remuneradas. 40 Como sublinha Vital Moreira, Auto-Regulao Profissional e Administrao Pblica, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 20 e ss., o paradigma doutrinal clssico no se limitou a sustentar que a economia no carecia de ser regulada, prescrevendo antes que no devia ser hetero-regulada para no se desregular o seu funcionamento, visto que toda a regulao artificial implicaria a perturbao da regulao natural inerente ao sistema. 41 A ideia de espontaneidade das instituies econmicas foi uma daquelas em que Smith insistiu frequentemente. Para se organizar, o mundo no precisava de nenhum acordo prvio entre os homens. 42 A mo invisvel apareceu ligada frequentemente atribuio a Smith de posies favorecendo o egosmo (no que o confundem com Hobbes), ou advogando um liberalismo desregulado. Essas ideias nasceram sobretudo do facto de ter atribudo ao interesse pessoal um lugar de destaque na sua anlise do comportamento social do Homem. No entanto, defende Joo Csar das Neves, Uma Galeria de Arte. Visita guiada aos grandes marcos da histria da economia, Lisboa, Editorial Verbo, 1995, p. 24, que Smith colocou o conceito de interesse prprio no seu lugar adequado, isto , entre as virtudes humanas. No se tratou, pois, de um interesse egosta ou selvagem, mas antes de uma regra de comportamento em sociedade. 43 No sculo XVIII, considerava-se bom tudo que fosse natural e espontneo. Natural, justo, vantajoso eram termos que se empregavam frequentemente, como sinnimos. Adam Smith no escapou a esta associao de ideias. E assim, mostrando a origem natural das instituies econmicas, parecia-lhe provar, ao mesmo tempo, o seu carcter til e benfico. 44 A iniciativa privada concretizava-se numa srie de princpios, entre os quais assumiam particular destaque: a liberdade de contratar, a liberdade de trabalho e a liberdade de empresa. Cf., Antnio L. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, Coimbra, Almedina, 1992, 4 ed., vol. I., p.49, No mesmo sentido, Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, ob. cit., pp. 36 e ss.; Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico, ob. cit., p. 46.
31
econmicas45. Da que o liberalismo se haja pronunciado decidida e
vigorosamente contra o exerccio de funes produtivas do Estado que, ao
invs do papel desenvolvido durante o mercantilismo, devia no s demitir-se
de qualquer participao na actividade econmica e social para no falsear as
leis do mercado, mas tambm alienar o patrimnio e deixar agir livremente as
foras do mercado e a concorrncia, sem pretender modificar o livre
comportamento dos agentes econmicos privados46.
No quadro da proclamada absteno econmica pblica, uma vez que o
funcionamento dos mercados requeria a defesa da propriedade privada, da paz
e da estabilidade social para permitir relaes contratuais estveis e a livre
circulao de pessoas e bens, a actividade do Estado restringiu-se a assegurar
a proviso dos bens pblicos indispensveis: defesa e segurana interna, leis,
tribunais e administrao da justia, bem como um conjunto de infraestruturas
essenciais47. Nesta medida, o Estado mnimo viu-se reduzido a uma
dimenso meramente formal, confinado a um modelo terico, abstracto e
utpico, acatando pressupostos que se vieram, porm, a revelar falaciosos48.
Assim, o pensamento clssico foi preciso quer quanto ao papel e funo
da iniciativa privada e do mercado para atingir nveis mximos de bem-estar
social, entendido como o somatrio de satisfaes individuais, quer em relao
no actuao econmica do Estado, em si um factor perturbador das
condies de concorrncia, quer, ainda, no tocante despesa pblica, um mal
do ponto de vista financeiro49.
45 Como defendem Paulo Trigo Pereira, Antnio Afonso, Manuela Arcanjo e Jos Carlos Gomes Santos, Economia e Finanas Pblicas, Economia e Finanas Pblicas, Lisboa, Escolar Editora, 2005, Adam Smith considerava que existia um sistema de liberdade natural que passava por o Prncipe no interferir com as actividades produtivas da populao. Na mesma linha, Ricardo, parafraseando uma regra de ouro financeira enunciada por Jean-Baptiste Say, defendia que o melhor de todos os planos financeiros consistia em gastar pouco e o melhor de todos os impostos era o que proporcionava menores receitas. 46 Estas exigncias dirigiam-se contra o Estado que haveria de restringir-se a funes segundo o ideal do Estado jurdico kantiano, ou seja, garantir a cada indivduo a liberdade, a igualdade e a independncia. 47 Neste sentido Pedro Gonalves, A Concesso de Servios Pbicos, Coimbra, Almedina, 1999, p.101. 48 Cf., Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico, ob. cit., p. 49. 49 Foi por isso, como defende Paulo de Pitta e Cunha, Introduo Poltica Financeira, CCTF n 99, pp.25 e ss., que as finanas pblicas liberais tiveram na passividade, no isolamento e na simplicidade as trs caractersticas fundamentais. Afinal, com a total privatizao da economia e as restries levantadas aco do Estado, a doutrina clssica foi um verdadeiro bastio da liberdade econmica individual, representando uma clara rejeio da poltica mercantilista e do sistema econmico nela inspirado.
32
3. A Neutralidade das Finanas Pblicas
No plano financeiro, o rico e profundo pensamento da Escola clssica
defendeu a total autonomia das finanas pblicas em relao economia,
reas regidas por princpios especficos, tendo desenvolvido uma separao a
que se atribuiu no raras vezes um carcter axiomtico50.
O Estado, alm de improdutivo, porque incapaz de criar utilidades
superiores s que consumia, era tambm um mau gestor da coisa pblica, pelo
que a actividade financeira liberal foi andina, inspirou-se no ideal da
neutralidade e acabou reduzida simples satisfao das necessidades
financeiras. Nestes termos, como assinala Sousa Franco51, as instituies
pblicas estavam inibidas de propor-se alterar ou comandar, estimular ou
dissuadir a actividade econmica privada, devendo ainda, a par da estrita
neutralidade, rejeitar qualquer propenso para a definio de polticas
financeiras.
A boa gesto da coisa pblica constituiu, portanto, uma exigncia
primordial, sendo o equilbrio do oramento anual uma regra poltica sagrada
de escrupulosa observncia a regra de ouro das finanas clssicas. Assim,
como refere Pitta e Cunha52, o nivelamento anual entre as receitas normais e
as despesas totais foi a condio indispensvel para o exerccio da fiscalizao
correcta e eficiente do modo de obteno e aplicao dos dinheiros pblicos.
Os argumentos de ordem econmica invocados decorriam da viso
esttica e optimista da escola clssica inglesa, tendo o dogma liberal do
equilbrio do oramento representado uma barreira contra a interferncia do
50 A separao radical de que fala. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, vol. I, ob. cit., p.54: separao cientfico-administrativa; separao no plano dos princpios inspiradores; separao, ainda, entre gesto financeira e a actividade econmica. 51 Como sublinha Antnio L. de Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, vol. I, ob. cit., p. 58, a nica poltica financeira do liberalismo seria que no devia haver poltica financeira, no sentido intervencionista e voluntarista. Alis, a pretenso de ver os poderes pblicos fora da rbita do econmico correspondeu ao que poderia designar-se por dirigismo negativo (Huber) ou, como refere Mota Pinto, Direito Econmico Portugus. Desenvolvimentos Recentes, FDC, Separata do Bol. vol. LVII, 1982, p. 9, em que a forma de o Estado intervir ter decidido no intervir na vida econmica, retirando-se para uma posio de observador. 52 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, Equilbrio Oramental e Poltica Financeira Anticclica, CCTF n 3, 1962, pp. 27 e ss.
33
Estado na vida econmica. Alis, a experincia histrica mostrou que os
Governos propendiam para a realizao de gastos improdutivos, razo pela
qual o abuso do dfice oramental induzia inevitavelmente os Governos
realizao de despesas desregradas e sumpturias.
Por seu turno, os sistemas fiscais do liberalismo tributaram relativamente
pouco as actividades empresariais e o trabalho, incidindo em especial sobre a
riqueza das classes agrrias e dos consumidores. Nesta medida, rejeitada a
utilizao do imposto como um instrumento de realizao da justia e da
redistribuio da riqueza, para assegurar uma tributao justa bastava garantir
o respeito da igualdade formal perante a lei e manter um nvel moderado de
tributao, como sustenta Sousa Franco53, impondo-se o respeito do princpio
da legalidade financeira, traduzido desde logo na exigncia da aprovao
parlamentar dos impostos.
.
Idntico o procedimento em relao emisso de emprstimos pblicos
com a consequente inscrio oramental, que visou a publicidade e
transparncia das operaes de modo a tornar possvel a todos os cidados o
respectivo conhecimento54.
Configurou-se assim uma forma de conter o Estado dentro de limites e
evitar a imposio de sacrifcios excessivos aos cidados, reduzindo-os ao
mnimo possvel55. Ao mesmo tempo, procurou-se tambm que a autorizao
parlamentar permitisse assegurar a realizao da operao no efectivo
interesse da Nao que, por isso, assumiu as responsabilidades emergentes56.
53 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e Direito Financeiro, FDL, 1972, vol. I, p. 437. Assim, no estabelecimento dos impostos havia que observar as quatro regras de Adam Smith: regra de justia, como imperativo tico de acordo com o qual o sistema fiscal devia fazer impender sobre cada contribuinte um sacrifcio adequado s suas possibilidades; regras de comodidade e certeza, critrios facilitadores da vida dos contribuintes; e regra da igualdade de todos perante o imposto, resultado da a abolio liberal dos privilgios. Tanto a justia, como a igualdade impunham que o imposto fosse proporcional. 54 Cf., Pedro Soares Martinez, Actualidade das Regras Oramentais, Jornal do Foro, 1956, pp. 353 e ss. 55 Neste entido, Eduardo Paz Ferreira, Ensinar Finanas Pblicas numa Faculdade de Direito, Coimbra, Almedina, 2003, pp.175 e ss. 56 Como defende Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e Das Garantias dos Credores do Estado, Coimbra, Almedina, 1995, p. 314 e ss.
34
De facto, com os clssicos foi veemente a condenao quer da despesa
pblica, entendida como um mal, quer do emprstimo pblico, encarado como
um imposto diferido, como sustenta Paz Ferreira57. Na verdade, os financeiros
liberais conferiam j despesa pblica uma importncia decisiva, entendendo
que em matria de finanas pblicas as receitas deviam ser determinadas
pelas despesas, supondo estas a privao de poder de compra dos
particulares mediante a cobrana dos impostos58.
Deste modo, no s a despesa pblica conduzia diminuio da despesa
privada, como tambm o Estado, enquanto mau gestor e propenso ao
desperdcio, dava aos meios assim obtidos uma utilizao inevitavelmente
menos proveitosa.
Embora um mal, a despesa pblica no deixou, porm, de se mostrar
necessria na ptica clssica, devendo o Estado exercer a actividade
financeira em domnios que ou no eram atractivos para a iniciativa privada, ou
em que a sua aco era insubstituvel, apesar de semelhante carcter
economicamente nocivo exigir a reduo ao mnimo dos gastos com a
satisfao das necessidades pblicas, para cuja realizao no influam
quaisquer consideraes de ordem econmica.
Dada a viso axiomtica de que o consumo do Estado era
necessariamente menos vantajoso do que o dos particulares e desconhecendo
o efeito indutor da despesa pblica para repor os rendimentos obtidos no
circuito econmico, os clssicos postergaram necessariamente a contraco de
emprstimos, visto que limitados transferncia intergeracional de encargos.
57 Segundo Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e das Garantias dos Credores do Estado, ob. cit., pp.47 e ss., o primeiro bloco slido de doutrina contrria ao endividamento pblico foi formado pelos economistas clssicos, em particular por Adam Smith, Ricardo e Hume, que desenvolveram uma teoria particularmente pessimista sobre o recurso ao crdito pblico, pelas consequncias negativas, quer econmicas, quer polticas. 58 Os preconceitos liberais em matria econmica ditavam a ideia do Estado-conumidor, capaz de destruir riqueza atravs das despesas realizadas. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, Introduo Poltica Financeira, CCTF n 99, sendo o Estado encarado, na concepo clssica, como uma entidade que conseguia anular os rendimentos absorvidos aos particulares, que teriam tornado possvel a satisfao das necessidades individuais.
35
Nesta mesma perspectiva, o recurso criao da moeda foi tambm
energicamente rejeitado, uma vez que a moeda devia permanecer neutra para
evitar a ecloso de movimentos inflacionistas. A cobertura das despesas
pblicas pelo recurso a adiantamentos dos bancos centrais equivalia a um
imposto injusto e dissimulado.
No quadro de uma rgida separao entre os sectores pblico e privado, o
Estado liberal, dominado pelas regras do mnimo econmico e da neutralidade
financeira, dotou-se de um sector pblico de dimenso igualmente mnimo.
Alis, a imposio do equilbrio formal do oramento representou, s por si, um
poderoso argumento dissuasor, porventura um travo, a qualquer pretenso de
crescimento da dimenso do sector pblico.
A supremacia do universo privado sobre o pblico foi assegurada pelo
rigoroso respeito do princpio da legalidade, a pedra-angular da construo do
Estado liberal e do direito administrativo, garantindo a existncia de uma
Administrao pblica condicionada59 e com uma frgil autonomia em relao
ao poder legislativo Um princpio que, alm de exigir que os actos
administrativos no fossem contrrios lei, implicava tambm a actuao da
Administrao apenas para suportar a respectiva execuo, como defende a
melhor doutrina60, promovendo a certeza e a estabilidade to vitais
segurana e resposta aos anseios da burguesia.
Neste contexto, o paradigma clssico de separao Estado Sociedade
sups o monoplio estadual do poder poltico e da Administrao pblica, bem
como a excluso das foras sociais quanto realizao das tarefas
administrativas. O Estado foi o espao da titularidade e do imprio do interesse
geral, e a Sociedade, o espao da liberdade, da diversidade, da luta pelos
interesses particulares. Entre estes dois mundos no podia haver mistura.
59 Cf., Jos Marnoco e Sousa, Direito Poltico, Coimbra, Frana Amado, 1910, pp. 681 e ss. 60 Cf., Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 10 ed., vol. I, pp. 28 e ss; Srvulo Correia, Os Princpios Constitucionais da Administrao Pblica, in: Estudos sobre a Constituio, 3 vol. Lisboa, 1979, pp. 661 e ss.; Rogrio Ehrardt Soares, Direito Administrativo Apontamentos policopiados das lies proferidas no Curso de Direito do Porto da Universidade Catlica, 1980, p. 44; Massimo Severo Giannini, Tratato di Diritto Amministrativo, LAmministrazione Pubblica dello Stato Contemporaneo, vol. Primo, Padova, CEDAM, 1999, pp.27 e ss.
36
Conforme sustenta Figueiredo Dias, defendeu-se um Estado mnimo e uma
Sociedade mxima61.
Quando confrontado no s com a introduo das inovaes tecnolgicas
fruto da revoluo industrial, e a consequente aplicao em equipamentos de
uso colectivo, mas tambm com a existncia de falhas de mercado62, o Estado
liberal viu-se duplamente incapaz de realizar a proviso de infraestruturas
essenciais ao funcionamento e desenvolvimento dos mercados,
nomeadamente em matria de transportes e comunicaes. Tratou-se, por um
lado, de razes ideolgicas associadas proibio de envolvimento do poder
pblico na esfera econmica e, por outro, de limitaes oramentais e de
disciplina financeira.
Ento, viveram-se os anos gloriosos da concesso63, o instrumento
jurdico do capitalismo liberal, uma tcnica de gesto dos servios pblicos por
sujeitos privados ligada s iniciativas que visaram a implantao e explorao
de novas infraestruturas industriais destinadas a satisfazer necessidades
colectivas a cargo do Estado. Iniciativas em que as empresas privadas
financiaram e executaram as obras pblicas indispensveis, obrigadas a
comportarem-se como colaboradores da Administrao e ficando sujeitas,
enquanto tais, definio unilateral das exigncias do interesse pblico feita
por actos de autoridade da entidade concedente64.
61Cf., Jos Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Direito Administrativo, Coimbra, CEFA, 2003, pp. 18 e ss. 62 Cf., F. M. Batir, The Anatomy of Market Failure, QJE n 72, 1958, pp. 17 e ss; Paulo Trigo Pereira, Antnio Afonso, Manuela Arcanjo e Jos Carlos G. Santos, Economia e Finanas Pblicas, ob. cit., pp.46 e ss.; Fernando Arajo, Introduo Economia, vol. I, 2 ed., Coimbra, Almedina, pp. 84 e ss.; Joseph E. Stiglitz, Economics of the Public Sector, ob. cit., pp. 3 e ss.; David N. Hyman, Public Finance. A Contemporary Application of Theory to Policy, ob. cit., pp.21 e ss.; Anthony Atkinson e Joseph Stiglitz, Lectures on Public Economics, ob. cit., pp. 482 e ss. 63 Trata-se de uma anlise consagrada pela doutrina nacional e estrangeira. Por todos, Jos Maria Tello Magalhes Collao, Concesses de Servios Pblicos Sua natureza Jurdica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1914, pp.14 e ss.; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, ob. cit., p. 78; Maria Joo Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 1996, pp.43 e ss.; Pedro Gonalves, A Concesso de Servios Pblicos, ob. cit., pp. 7 e ss. 64 Como defende Pedro Gonalves, A Concesso de Servios Pblicos, ob. cit., pp. 101 e ss., data, a concesso deixou de ser um acto gracioso do Prncipe, criador de privilgios para os beneficirios, para constituir, na ptica da Administrao, um acto de organizao da execuo de tarefas pblicas e, na perspectiva do concessionrio, um acto constitutivo de direitos. Por isso, em um contexto especfico de absteno econmica e neutralidade financeira, a necessidade de garantir o bom funcionamento dos mercados ditou a expanso da utilizao deste instrumento, que passou a representar um fenmeno de substituio do Estado por particulares no desempenho das tarefas de servio pblico. Segundo o mesmo Autor, Entidades Privadas com Poderes Pblicos, ob. cit., p 43, o exerccio privado de tarefas pblicas na construo de obras pblicas e na explorao de servios pblicos passava a ser uma figura essencial da
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4. O Prenncio da Mudana
Mal-grado o dogmatismo em que assentou, na prtica a economia liberal
no foi o mero produto do funcionamento automtico das leis do mercado,
asseguradas pelas codificaes oitocentistas, civis e comerciais, afinal um
direito privado limitado a garantir a prosperidade privada e a possibilitar o
funcionamento da ordem econmica fundada na autonomia privada e na
liberdade contratual. Assim, ao longo do sculo XIX, com as transformaes
que afectaram a ordem liberal e ditaram o pensamento neoclssico,
apareceram tambm formas especficas de regulao pblica da economia65.
Nesta medida, foram surgindo normas, princpios e instituies regentes
da organizao e direco da actividade econmica ao nvel das suas vrias
manifestaes produo, circulao, distribuio e consumo , impondo
limites, condicionando ou incentivando os agentes econmicos e, mesmo,
alterando ou corrigindo algumas tendncias resultantes do livre funcionamento
do mercado.
Embora se haja tratado de uma mudana importante, mesmo assim no
permitiu que o Estado mnimo, manietado pela absteno econmica e
passividade financeira, reagisse adequadamente quando confrontado com
factores como a concentrao urbana, a mais ampla extenso e o peso poltico
das massas operrias, o trabalho infantil, o nmero excessivo de horas de
trabalho, o baixo nvel dos salrios, a ausncia de um servio social de sade e
de um sistema de reformas66.
No final, a falncia dos automatismos equilibrantes da terapia clssica foi
uma realidade que abalou o modelo e fez aumentar o clamor quer contra o
individualismo liberal, quer, em sinal contrrio, a favor dos valores sociais,
Administrao da poca liberal; J. Chevalier, Lassociation entre le public et le prive, RDPSP. 1981, pp. 893 e ss.; G. Leondini, Associazioni privati di interesse generale et liberta di associazione, vol. I, Milano, Giuffr, 1989, pp. 84 e ss. 65 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito da Economia, ob. cit., pp. 46 e ss. 66 Na anlise traada por Valentin Vasquez de Prada, Historia Economica Mundial, vol. II, Porto, Civilizao Editora, 1973, pp. 307 e ss.
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questionando os parmetros ticos abstractos e universais veiculados pelo
racionalismo.
Na verdade, o maior problema que se colocou organizao poltica do
mundo burgus, como defende Rogrio Soares67, foi claramente a
reivindicao de uma sociedade autnoma e separada do controlo do Estado,
mas que ao mesmo tempo, sem se comprometer, tinha procurado
gradualmente que o Estado se propusesse garantir essa autonomia.
Por isso, a partir de meados do sculo comearam a generalizar-se as
correntes cientfico-ideolgicas que impugnaram, total ou parcialmente, a
ideologia liberal e questionaram os mitos em que se fundou a matriz econmica
clssica.
Ento, as reaces antiliberais iniciaram-se com os economistas
alemes68 que, profundamente influenciados pela aspirao unidade nacional
e por uma filosofia idealista de tipo universalista, se situaram na primeira linha
da reaco s teses liberais69.
De igual modo, os socialistas que, rejeitando a ideologia liberal,
procuraram no s fundar um sistema econmico-social que reduzisse as
desigualdades resultantes do funcionamento dos princpios do mercado,
instaurando o primado de valores sociais sobre os individuais, mas tambm
reforar a solidariedade e a igualdade, embora em detrimento da liberdade7071.
67 Cf., Rogrio E. Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, ob. cit., p. 50. 68 Facilmente convertidos aos princpios do liberalismo, os economistas alemes cedo concluram pela inadequao do modelo liberal economia alem, ainda fundamentalmente agrcola, como defende Antnio L de Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e Direito Financeiro, ob. cit., pp. 226 ss. 69 Em Adam Mller, a ideia de que o Estado corresponde a um conceito econmico fundamental por representar a comunidade e a vida econmica da Nao, competindo-lhe assegurar a satisfao das necessidades; e, na linha directa deste Autor, o pensamento de List e a formulao terica para abandonar a ideia da actividade estadual como improdutiva, tpica dos clssicos, tendo encarado a actividade financeira como uma economia individual que tem por sujeito econmico o Estado e o Governo como rgo que representa a Administrao financeira. A escola histrica, por sua vez, operando com base em critrios histricos e pressupondo uma sucesso regular dos vrios sistemas ao longo dos sculos, forneceu uma viso segundo a qual seria uma tendncia histrica inevitvel o crescimento da actividade estadual, embora sem absorver ou suprimir a actividade privada. 70 As anlises de Engels e de Marx so, de facto, o contraponto do modelo econmico liberal. Porm, a abstraco e o formalismo que fazem da ideologia liberal uma utopia so igualmente responsveis pelo modelo utpico a que conduzem tais anlises. O Marxismo , em termos de sistemtica poltica, o reviver do Estado-Polcia, embora fundado numa outra dialctica. Todavia, como defende Cabral de Moncada, Problemas de Filosofia Poltica, Coleco Studium, Coimbra, Armnio Amado, Editor, 1963, pp.45 e ss.,
39
No conjunto, tratou-se de correntes que representaram o prenncio da
reviso do pensamento econmico liberal e tiveram uma inegvel projeco
nas futuras polticas intervencionistas e socialistas.
Mas a antinomia clssica, fruto de razes polticas, econmicas e sociais,
marcou o sistema social e econmico dos sculos XVIII e XIX, as respectivas
instituies e instrumentos, condicionando a fisionomia e o funcionamento das
actividades econmica e financeira e as relaes pblico-privadas72. E, aps
haver comeado com a glorificao da liberdade econmica e da iniciativa
individual, veio a acabar com apelos mais ou menos consistentes e explcitos
interveno do Estado, projectando-se alm do seu tempo ao inspirar ainda,
revisitado, uma leitura mais recente dos principais pressupostos econmicos.
Marx pretendeu reduzir o jogo de todas as manifestaes da vida, inclusivamente as de ordem espiritual, aos impulsos do factor econmico. 71 Conforme A. J. Avels Nunes, Os Sistemas Econmicos, FDC, Bol.Cien.Econ. vol. XVI, 1978, pp.79 e ss., neste quadro a interveno do Estado passou a assumir forma, contedo e objectivos qualitativamente diversos dos do sistema capitalista, passando a actividade produtiva a ser um exerccio fundamental. 72 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e Direito Financeiro, ob.cit., pp.432 e ss.
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Capitulo II O Estado Intervencionista
1. Enquadramento Aps as tendncias expressas no ltimo quartel do sculo XIX, o incio do
novo sculo foi particularmente propcio ao acolhimento, seno mesmo ao
fortalecimento, de um pensamento reformador quanto s relaes entre os
sectores pblico e privado, tendo as primeiras dcadas sido ricas em
ocorrncias histricas de inegvel relevncia e repercusso sobre a evoluo
econmica e social mundial que provaram a inadequao das solues da
doutrina econmica clssica.
Contabilizando as duas Grandes Guerras e subsequentes processos de
reconstruo, a instaurao do regime sovitico no antigo imprio russo e uma
importante crise econmica de dimenso internacional, estes marcos histricos
acabaram por representar verdadeiros desafios ao pensamento econmico
dominante73. Nesta medida, evidenciada a falcia do dogmatismo clssico e a
respectiva incapacidade para prover respostas apropriadas, a doutrina
econmica liberal acabou por sofrer roturas inevitveis e cada vez mais
profundas, ficando criadas as condies propcias para a busca de alternativas.
semelhana de outros tipos de contestao, as reaces dogmtica
clssica nasceram tambm de dois factores em larga medida convergentes:
por um lado, um sentido pragmtico que, face ao insucesso das propostas
oferecidas pelo liberalismo, fomentou a procura de novas solues capazes de
impedirem o vazio; e, por outro, uma elaborao cientfica, alis j em esboo,
que procedeu reviso dos conceitos econmicos do liberalismo e identificou
73 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, vol. I, ob. cit., 59 e ss.
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um leque de instrumentos prprios, moldados segundo novos pressupostos
filosficos e polticos.
Deste modo, com o abandono das principais premissas do liberalismo, o
Estado passou a desempenhar um papel central na vida da comunidade,
agindo sobre a economia e a prpria sociedade em virtude de se haver deixado
de acreditar nos equilbrios espontneos do mercado, consentindo-se, ao
invs, a sua presena na resoluo dos conflitos emergentes no seio da prpria
sociedade. Da que se haja assistido progressivamente afirmao do sentimento de uma efectiva necessidade de o Estado, luz de uma
determinada concepo econmica e social, procurar corrigir as falhas de
mercado74.
Uma aco acompanhada quer pela ampliao das reas de actuao do
Estado, quer pela diversificao dos tipos de interveno, acabando o sector pblico por adquirir um cunho marcadamente complexo e plural que justificou
no s o seu redimensionamento, mas tambm a definio dos objectivos a
prosseguir e das formas de levar a cabo a respectiva concretizao75.
Afinal, o apelo interveno do Estado trouxe ao sector pblico o
protagonismo negado pela doutrina clssica, reflectido no novo paradigma que
passou a pautar a relaes entre ambas as esferas, conduzindo tanto
respectiva redefinio funcional, como dos instrumentos de aco.
As fronteiras entre o Estado e a Sociedade esbatem-se: a lgica liberal de
confrontao e excluso substituda, ou pelo menos complementada, por
uma lgica de cooperao e de aco concertada76.
No entanto, as alteraes foram alm de um novo modelo de
relacionamento entre as duas esferas, projectando-se igualmente sobre a
repartio da titularidade das tarefas pblicas e privadas e respectiva natureza.
74 Uma situao abundantemente considerada pela Doutrina: ver nota n 36. 75 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, ob. cit., pp. 61 e ss. 76 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, ob. cit., pp.114 e ss.; Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, ob. cit., pp. 338 e ss.
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E, no final, o Estado perdeu o monoplio do pblico, tendo o incremento do
fenmeno das administraes autnomas demonstrado a existncia de um
espao pblico no estadual77.
Mutaes que tiveram uma expresso evidente na contraposio entre o
direito pblico e o direito privado, tal como havia sido talhada durante o
liberalismo, que sofreu modificaes profundas.
Neste quadro, a uma Administrao pblica que se havia limitado a
funes mnimas, em consonncia, alis, com o modelo do Estado liberal78,
sucedeu um novo tipo de Administrao com um papel central na gesto dos
recursos e forada a repensar os instrumentos de actuao79. Nesta medida,
passou a viver-se um perodo de responsabilidade mxima do Estado, que no
se limitou j a garantir a prossecuo de determinados fins de natureza
econmica, social e cultural, assumindo antes o encargo de realizar as tarefas
que os prosseguiam80.
Tratou-se de um novo modelo de relaes do Estado com a economia e a
sociedade, cuja compreenso requer que se percorram os marcos nucleares
do caminho encetado com a I Guerra Mundial, acompanhando as
transformaes econmicas e sociais mais impressivas da primeira metade do
sculo XX at ao dealbar dos anos setenta, destacando, naturalmente, a
respectiva projeco sobre o tandem pblico-privado.
77 Cf., Vital Moreira, Administrao Autnoma e Associaes Pblicas, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 89 e ss. 78 Cf., Maria Joo Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, ob., cit., pp.36 e ss. 79 Como bem defende Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e das Garantias dos Credores do Estado, ob. cit., pp. 325 e ss., a Administrao, com funes ampliadas e solicitaes e meios de aco muito diversos, passou a actuar num contexto em que deixou de se circunscrever simples execuo da lei, requerendo que tivesse em conta valores e condicionantes que tenderam a ganhar dignidade constitucional, como que para compensar a maior flexibilidade do princpio da legalidade. No mesmo sentido, Maria Joo Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, ob. cit., pp.36 e ss., e a referncia de que, progressivamente, o Estado assumiu funes de um verdadeiro aparelho prestador e a interveno tornou-se indispensvel. 80 Assim se explica a reduzida importncia, porventura nula, da concesso enquanto modelo de gesto dos servios pblicos. Cf., Pedro Gonalves, A Concesso de Servios Pblicos, ob. cit., p. 20; Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Administrativo Apontamentos policopiados das lies proferidas no Curso de Direito do Porto da Universidade Catlica, 1980, pp. 435 e ss.
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2. A I Guerra Mundial e o Fim da Absteno Econmica do Estado
A I Guerra Mundial quebrou a tradio abstencionista e neutral do
liberalismo econmico, obrigando o Estado a desempenhar o papel de primeiro
responsvel pela economia81. Contudo, com os problemas tpicos da transio
da economia de paz para a economia de guerra82 e um contexto econmico
problemtico83, I Guerra no bastou a estrita interveno pblica84. A
conjuntura de guerra exigiu muito mais.
Aps haver criado um verdadeiro e expectvel hiato no funcionamento da
economia liberal, a guerra obrigou as novas economias industrializadas a
adoptarem mtodos de actuao autoritria, sem oposio dada a situao
excepcional que se vivia, e a passarem a funcionar em regime de controlo
directo e, at, militar. A inflao, o desemprego e a carestia impeliram a tomada
de medidas dirigistas, visando a luta contra a alta de preos e a garantia da
repartio dos bens, com o firme propsito de colmatar as disfunes de
mercado, sequela da guerra.
Neste cenrio, a exigncia de armamento e aprovisionamento obrigaram o
Estado a assumir funes produtivas, tendo o clima de guerra evidenciado a
necessidade de um controlo efectivo da economia. Controlo que veio a
assumir-se no s como uma experincia concreta de total disciplina pblica da
81 Numa perspectiva econmica, como refere Spagnuolo Vigorita, LIniziativa Economica Privata nel Diritto Publico, Napoli, Novena, 1959, p.170, a Primeira Guerra quebrou a tradio do liberalismo e acelerou violentamente a aco dos factores desagregadores. 82 Tratava-se, como ilustra Joo Pinto da. Costa Leite (Lumbrales), A Economia de Guerra, Porto, 1943, pp. 15 e ss., por um lado, da correco das perturbaes econmicas que acompanharam a ecloso do conflito e, po
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