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3º Nas Nuvens... Congresso de Música – de 01 a 08 de dezembro de 2017 – ANAIS Artigo
NasNuvens...<http://musicanasnuvens.weebly.com/>
152
AspectosdacolonialidadenaAméricaLatina:reflexõesteóricaseimplicaçõesnocampodamúsica
GisleneMarino1
Categoria:Comunicação
Resumo: Este artigo tem como principal objetivo trazer reflexões sobre acolonialidade a partir de referenciais teóricos. Os estudos do GrupoModernidad/Colonialidad,quedesenvolveumpensamentocríticosobreasrelaçõesdepoderinstaladasnaAméricaLatina,desdeseudescobrimento,fundamentamestetrabalho. O texto também apresenta exemplos de situações de subalternidade, depredomíniodopensamentoeurocêntricoedeoutrosaspectosda colonialidadenocampo da música, em contextos latino-americanos. Finalmente, expõe algumasperspectivasparaaáreademúsica,apoiadasnopensamentodecolonial.Palavras-chave:Colonialidade.Decolonialidade.MúsicanaAméricaLatina.Aspects of coloniality in Latin America: theoretical reflections andimplicationsinthefieldofmusicAbstract:This article has as main objective to bring reflections about colonialityfrom theoretical references. The studies of the Modernidad/Colonialidad Group,which develops critical thinking about power relations located in Latin America,since itsdiscovery,basethiswork.Thetextalsopresentsexamplesofsubalternitysituations,predominanceofEurocentricthinkingandotheraspectsofcolonialityinthefieldofmusic, inLatinAmericancontexts.Finally,exposessomeperspectivetothemusicarea,supportedondecolonialthought.Keywords:Coloniality.Decoloniality.MusicinLatinAmerica.
Introdução
Lacolonialidadeselladooscurodelamodernidad.(Mignolo)
Este artigo temcomoprincipalobjetivo trazer reflexões sobrea colonialidade
naAméricaLatina.Eletambémapresentaexemplosdesituaçõesdesubalternidade,de
predomínio do pensamento eurocêntrico e de outros aspectos da colonialidade no
campo da música, em contextos latino-americanos. O texto inicia-se com algumas
questõescolocadasporDelgado(2007):
1MestreemEducação,UniversidadedoEstadodeMinasGerais,EscoladeMúsica,gislene.marino@uemg.br.
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[...] como se aproximar das lógicas próprias das tradiçõesmusicais dooutro?;comoapreenderprocessosdeensinoeaprendizagem,baseadosna transmissão oral e na linguagem corporal?; como ensinar a nossosestudantesqueapartituraéapenasumarepresentação incompletadoevento musical, e o que chamamos de ‘música’ é um acontecimentomuitomaisricoecomplexo?;comoconseguirqueoaparatoacadêmicoacolhaeintegreoutrostiposdeconhecimento?(DELGADO,2007,p.213,traduçãonossa).
Podem-se acrescentar outras perguntas às primeiras: Por que o repertório
musical erudito europeu ainda predomina nos conservatórios e universidades
brasileiras?Porqueasculturasdospovoslatino-americanossãoconsideradasmenores
peranteaeuropeia?
Alguns esclarecimentos e talvez até respostas possam ser encontrados para
essas questões nos estudos sobre o colonialismo, a modernidade/colonialidade, o
eurocentrismoeadecolonialidade–categoriasdesenvolvidasdesdeofinaldoséculoXX
pelo Grupo Modernidad/Colonialidad2. Segundo seus pesquisadores, é necessário
“transcender a suposição de certos discursos acadêmicos e políticos, segundo a qual,
com o fim das administrações coloniais e a formação dos estados-nação na periferia,
vivemos agora em um mundo descolonizado e pós-colonial” (CASTRO-GÓMEZ e
GROSFOGUEL, 2007, p. 13). Eles acreditam que não houve transformações na divisão
internacional do trabalho entre centros e periferias3, nem na hierarquização étnico-
racial das populações. O que se vê é uma “transição do colonialismo moderno à
colonialidadeglobal”(CASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007,p.13).
O conceito modernidade/colonialidade considera que há um vínculo
inseparável entre o fenômeno modernidade e os efeitos da colonialidade nos povos
subalternizados. Quijano (2007) afirma que o eurocentrismo, que foi constituído do
século XVI ao XIX, marca também, o nascimento da modernidade. “Os europeus
ocidentaisimaginaramseraculminaçãodeumatrajetóriacivilizatóriadesdeumestado
denatureza”(QUIJANO,2008,p.122),considerando-secomoportadoresexclusivosda
2OGrupoModernidad/Colonialidaddistingue-sedosEstudosCulturaisePós-coloniais,poisestesanalisamo sistema-mundo sob uma perspectiva culturalista, sem integrá-la aos aspectos da economia política(CASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007).3 O “centro” refere-se aos países desenvolvidos do Atlântico Norte, cuja economia é considerada comohomogêneaeintegrada.Emcontrapartida,a“periferia”sãoospaíseslatino-americanos,quetêm“vocaçãoagrícola”eeconomiaheterogêneaedesintegrada(RICUPERO,2011,p.95).
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modernidade, além de serem seus criadores e protagonistas. Ademais, eles “foram
capazesdedifundir ede estabelecer essaperspectivahistóricahegemônicadentrodo
novo universo intersubjetivo do padrãomundial do poder” (QUIJANO, 2008, p. 122).
Portanto, faz-se necessário criticar o paradigma europeu da
racionalidade/modernidade,poisfoiainstrumentalizaçãodarazãopelopodercolonial
queproduziuparadigmasdistorcidosdeconhecimento.
1ColonialismoeColonialidade
Colonialismo e colonialidade são conceitos distintos. Colonialismo refere-se a
umarelaçãopolíticaeeconômica,naqualumpovoounaçãoexerceasoberaniasobre
outro/a,constituindo-seemumimpério.Colonialidadeestárelacionadaaumpadrãode
poderqueemergiucomoresultadodocolonialismomodernoesobreviveaeste;refere-
seà“formacomootrabalho,oconhecimento,aautoridadeeasrelaçõesintersubjetivas
articulam-se entre si, através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça”
(MALDONADO-TORRES,2007,p.131).Sobesseprisma,ahistóriapodeserreconstruída
a partir do descobrimento da América, quando nascem, simultaneamente, a
modernidade, o capitalismo e a América Latina. O emergente poder capitalista
mundializa-se, sendo que seus eixos centrais hegemônicos – a colonialidade e a
modernidade–localizadosnaEuropa,estabelecemumnovopadrãodedominação.
Aconjugaçãoentreocapitalismo–relaçãoeconômicaesocialjáexistente–eas
diversas formas de dominação e subordinação foram primordiais para se manter e
justificar o controle sobreos sujeitos colonizadosnasAméricas (QUIJANO,1991apud
QUIJANO,2007).Estabelecem-sedois eixosdepoderquedefinemamatrizdoque foi
chamadoAmérica:a ideiaderaçaeocontroledo trabalho.A ideiaderaçacodificaas
diferenças entre conquistadores e conquistados, e naturaliza uma situação de
inferioridade de uns em relação a outros. As novas identidades criadas – europeu,
branco, índio, negro, mestiço – estabeleceram uma relação vertical entre os sujeitos
(QUIJANO, 1992, apud MALDONADO-TORRES, 2007). O etnocentrismo, desenvolvido
entreoseuropeusdominadorescoloniaisapartirdaconcepçãodeEuropacomocentro
do mundo moderno, era fundamentado e justificado pela classificação racial da
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população do mundo, depois da conquista da América, naturalizando as categorias
sociaisqueidentificampapeiselugaresnasrelaçõesdepoder.
O segundo eixo refere-se à constituição de uma nova estrutura de controle e
exploraçãodotrabalhoedeseusrecursoseprodutos,naqualseincluíamaescravidão,a
servidão,apequenaproduçãomercantil,areciprocidadeeosalário.Todasestasformas
existiamdemaneirasimultâneanomesmoespaço/tempo,articulando-secomocapitale
o mercado mundial, e estabelecendo-se “uma nova, original e singular estrutura de
relações de produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial”
(QUIJANO, 2007, p. 118). Surge, deste modo, a diferença colonial, que emerge do
conceitoderaça, criadanoséculoXVIparaclassificarapopulaçãomundialedefinira
divisão do trabalho (DELGADO, 2007). A diferença colonial pode ser expressa em
diversasformas,configurando-seemprodutosdacolonialidadedopoder,dosaberedo
ser(MALDONADO-TORRES,2007).
A colonialidade do poder refere-se à interrelação entre formas modernas de
exploração e dominação e parte do princípio de que omundonão foi completamente
descolonizado,poisasmetrópoleslimitaram-seadarapenasaindependênciajurídico-
política às colônias, deixando intactas as hierarquias das relações raciais, étnicas,
sexuais,epistêmicas,econômicasedegênero(CASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007).
A descrição de uma pessoa como índio, branco ou negro servia como princípio para
definir a sua posição na divisão social do trabalho, sendo que esta diferença
racial/colonialaindasemantém,mesmoquerearticuladaemoutrostermosediscursos
(DELGADO,2007).
Opontoéque,alémdasbasessocioeconômicasdaideiaderaça,estaéuma categoria epistêmica e de controle do conhecimento e daintersubjetividade:acolonialidadedopodernãosóclassificaaossereshumanosemescaladeinferiorasuperiordeacordocomsuaraça,masordena os conhecimentos e as maneiras de saber daqueles a quemclassifica.Destamaneira,oconhecimentoqueproduzohomembrancoégeralmente qualificado como “científico”, “objetivo” e “racional”,enquanto aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é“mágico”,“subjetivo”e“irracional”(DELGADO,2007,p.199).
A colonialidade do saber relaciona-se com a epistemologia e as atividades de
produçãodeconhecimento,visandoareproduçãoderegimesdepensamentocoloniais.
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Ela refere-se ao processo no qual o pensamento moderno subalterniza todo o
conhecimento produzido fora dos parâmetros de sua racionalidade, o que engloba as
epistemes tradicionais e ancestrais das colônias (MIGNOLO, 2000 apud FLORES-
FLORES,2007).Acolonialidadedoservemresponderasperguntassobreosefeitosda
colonialidadenasexperiênciasvividasedeseuimpactonalinguagem,nãosónamente
dos sujeitos subalternos (MALDONADO-TORRES, 2007). Portanto, a diferença colonial
refere-se à colonialidade do saber quando se relaciona a aspectos epistêmicos, e à
colonialidade do ser quando trata de aspectos ontológicos. Em ambos os casos,
relaciona-se com o poder por meio da exploração, dominação e controle (QUIJANO,
2007).
2Eurocentrismo
OdescobrimentodaAmérica,em1492,permitiuqueaEuropaseconvertesse
nocentrodomundo,pois,atéentão,elaeraapenasoextremoocidentedoimportante
núcleolideradopelaÍndia,ÁsiacentraleMediterrâneooriental(DUSSEL,1998,p.51-52
apud QUIJANO, 2007). Daí surge o eurocentrismo de uma cultura que pretendeu
constituir-seumamatrizeseruniversalizada.
O conjunto de práticas e valores dessa matriz será conhecido comoeurocentrismo,palavra-chavequedesignaomodelocivilizatórioqueseimpôsaorestodascivilizaçõesnosplanosmateriale filosófico,ecomopráticas em conformidade com as hierarquias de privilégio dohomemheterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu(GROSFOGUEL,2010apudURQUIDI,2013).
A cultura dos dominadores fez-se impor sobre os dominados em todos os
aspectos nos quais isso fosse útil para reproduzir a dominação, nos campos de
atividadesmateriais,tecnológicas,subjetivase,especialmente,religiosas,configurando-
se,portanto,emumacolonizaçãodacultura.Houverepressãoàs“formasdeprodução
deconhecimentodoscolonizados,seuspadrõesdeproduçãodesentidos,seuuniverso
simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade” (QUIJANO,
2008,p.121).
O conhecimentoeuropeu revestiu-sedeuma superioridadequeafetoumuitas
áreas da vida; os conhecimentos subalternos foram excluídos, omitidos e ignorados,
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constituindo um silenciamento legitimado sobre a ideia de que “tais conhecimentos
representavam uma etapa mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do
conhecimentohumano”(CASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007,p.20).
Oeurocentrismonãoéapenasumaperspectivacognitivadeeuropeus,masde
todas aquelas pessoas que foram educadas sob sua hegemonia, naturalizando as
experiênciasdossujeitosnessepadrãodepoder.
Consolidou-seassim,juntocomessaideia,outrodosnúcleosprincipaisda colonialidade/modernidade eurocêntricas: uma concepção dehumanidade, segundo a qual a população domundo se diferencia eminferiorese superiores, irracionaise racionais,primitivose civilizados,tradicionaisemodernos(QUIJANO,2007,p.94-95).
Essedualismotambémafetaasrelaçõesentreocorpoeonão-corponasquestões
relativas à produção de conhecimento e nos discursos e experiências sobre raça e
gênero.Oeurocentrismopodeserentendido,então,tantocomo“umprocessohistórico
como uma forma de operar intelectualmente e de construir nossa realidade social”
(GARCÉS, 2007, p. 219). Ele enraizou-se de tal maneira nas experiências históricas
latino-americanas que “a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um
espelhoquedistorceoquereflete”(QUIJANO,2008,p.129-130).
Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todoquimérica, jáquepossuímostantose tão importantes traçoshistóricoseuropeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, aomesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quandoolhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos sejanecessariamenteparcialedistorcida(QUIJANO,2008,p.129-130).
Essa afirmação é um convite à desconstrução desse paradigma que tem feito
parteintrínsecadasvidasdossujeitoslatino-americanos,cujasculturasesubjetividades
têmsidooprimidas,invisibilizadasesubjugadasduranteséculos.
O texto prossegue trazendo algumas situações que evidenciam as relações de
poderesubalternidadenocampodamúsica,emcontextoslatino-americanos.
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3OcasodoBambuco4:acolonialidadedopodernosestudosmusicais
Aevoluçãoeodesenvolvimentododiscursosobreobambucocolombiano,de
meadosdoséc.XIXameadosdoséc.XX,foramestudadosporCarolinaDelgado(2007)e
ilustra o problema da inacessibilidade epistêmica dos saberesmestiços e sua relação
conflitivacomomundoacadêmico.
O bambuco originou-se, provavelmente, nos grupos de sopros e percussão de
indígenasenegrosnaprovínciadeGranCauca(MIÑANA,1997apudDELGADO,2007),
sendo transmitidode formaoral, eao finaldoséculoXIX, ele jáera tocadonossalões
aristocráticos de Bogotá. Popularizou-se entre artesãos como uma forma urbana de
bambuco-canção,acompanhadaporinstrumentosdecorda,tornando-seumsímboloda
jovemnaçãocolombiana.Aospoucos,instrumentossinfônicoseuropeus,comoviolinos,
violoncelos e flautas, foram associados aos instrumentos de cordas autóctones, e a
tradição oral passa a tradição escrita, o que facilitou a difusão desta música local e
possibilitouasprimeiras gravações.Entretanto, algumaspessoas creditavamaorigem
do bambuco a uma práticamusical própria de escravos negros, e outras defendiam a
origemespanholadogênero,poisobambucosópoderiatornar-sesímbolonacionalse
fosse totalmenteeuropeizado,negandosuasraízesnativas.Pretendeu-se“purificar”5o
bambucoparaqueelepudesserepresentaronovocidadãorepublicano:homem,branco,
letrado, demonstrando-se a discriminação sobre a origem nativa do gênero e a
desvalorizaçãodaculturadenegroseindígenas.
A prática do bambuco e outros gênerosmusicais andinos também encontrou
oposições dentro domundo acadêmicomusical. O ConservatórioNacional adotou, em
1905,omodelodoconservatóriofrancês,excluindoapráticadequalquertipodemúsica
nãoacadêmicadentrodainstituição,comoumareaçãodasclassessuperiorescontrao
avançosocialdasclassessubordinadasesuamúsica.“Amúsicatradicionalestavafora
dosobjetivosartísticos,estéticoseintelectuaisdaacademia”(DELGADO,2007,p.203),
ratificandoahierarquizaçãodossaberes,avalorizaçãoexclusivadorepertóriomusical4http://www.todacolombia.com/folclor-colombia/musica-colombiana/canciones/cuatro-preguntas.html.5“Purezadesangue”:refere-seaosistemataxonômicodeclassificaçãoétnica,quedefiniaolugarquecadapessoaocupavana estruturada sociedade colonial, dependendodaquantidadede seu sangue “branco”espanhol.Omestiço(paiespanhol/mãeindígena)poderialimparseusanguedepoisdeduasgerações,seseusfilhos/assecasassemcomespanhóis.Estemecanismotambémfoiusadonoséc.XIXpara“purificar”práticas sociais de maneira simbólica, entre elas a música, associadas a diferentes grupos étnicos(DELGADO,2007).
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europeu em contextos formais de ensino e os dualismos erudito/popular,
acadêmico/nãoacadêmico,dentreoutros.
Outracontrovérsiasobreobambuco foiemrelaçãoasua transcrição,poisele
não se encaixava bem dentro de nenhuma métrica, fazendo com que muitos o
considerassem “defeituoso”. O ritmo do bambuco caracteriza-se pelo uso das seis
colcheias,comumaoutrospadrõesrítmicoslatinoamericanos,quepodeserescritonos
compassos 3/4 ou 6/8. A dificuldade surgiu na coexistência dos dois sistemas de
acentuação,quesepercebequandoos finaisde fraseedearticulaçãodamelodia(que
coincidemcomosacentosdotexto)raramentecoincidemcomosacentosdobaixoedas
mudanças harmônicas.Nomomento da execução, é habitual que as duas acentuações
coexistam,sendoqueosmúsicossaltamdeumaacentuaçãoparaoutra,oquefazparte
do jogo de destreza para manter a síncope. O problema estava na tentativa de
transcreverumamúsicatradicionaloraldentrodosistemaeuropeudeescritamusical,
cuja métrica funciona com temporalidades simétricas que choca com maneiras não
simétricas de contar e subdividir o tempo, encontradas na música tropical de raízes
africanas.
NoiníciodoséculoXXI,concluiu-sequeofatodeobambuconãoseencaixarna
métricaeuropeiaeraconsequênciadesteparadigmaserinsuficiente,limitadoeincapaz
de traduzir de maneira escrita o que se expressa de maneira performática. Seria
necessáriorompercomahegemoniadasmodosescritosdeconhecer, sobreosmodos
orais, intrínseca ao academicismo do séc. XIX, que quis fixar tudo no papel,
menosprezandoatransmissãooralprofessor-alunoeinvalidandoaexperiênciacorporal
comomeio de adquirir conhecimento. “Isto demonstra as profundas raízes que ainda
tem a colonialidade em nossas maneiras de saber, entender e assimilar tradições
musicaisquenãocorrespondemdetodoaparâmetrosmusicaiseuropeus”(DELGADO,
2007,p.212).
Osfatosocorridosemtornodobambucolevantamquestõesimportantesparaa
discussãosobreaspráticasmusicais,aaprendizagemformaleinformal,eaaceitaçãode
um gênero tradicional pela academia que afetam as concepções de ensino
instrumental/vocal, ainda impregnadas de pressupostos inculcados pela colonialidade
dosaber.
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4 Eurocentrismo e colonialidade do saber nas práticasmusicais e no ensino de
música
Tomando-se o Brasil como referência, podem-se destacar alguns fatos e
características das práticasmusicais e do ensino demúsica, desde o período colonial,
queevidenciamoeurocentrismoeacolonialidadedosaber.
Quandooprocessodecolonização foi instauradonoBrasil,aqui jáaconteciam
práticasmusicais sob formas ritualísticasde cantoedançavivenciadaspelosdiversos
povosameríndios.Comachegadadosjesuítas,em1549,começa-seacatequizaçãodos
indígenas, na qual a música teve papel preponderante. “Justamente em um cenário
religioso é que se trouxeram as primeiras informações da tradição musical erudita
europeia” (FUCCI-AMATO,2012, p. 22).Durante o séculoXVI, a Igreja foi responsável
portodaaeducaçãomusicalformal,desenvolvidapormeiodepráticassistemáticasao
modoeuropeu.JánoséculoXVII,oensinodemúsicacomeçouaatenderaeliteeocorria
nasresidências,conservatóriosouescolasdemúsica.Comavindadafamíliarealparao
Brasil, houve uma expansão das atividades artísticas, a importação de músicos, a
construçãodeteatros,sempreemfunçãodamúsicaeruditaeuropeia.Emcontrapartida,
aproduçãomusicalindígenaeafricanapermaneceucomopráticadetransmissãoorale
assistemática, excluída do ensino musical formal; sendo que chegou-se até a proibir
expressõespúblicasdamúsicadeorigemafricana(FUCCI-AMATO,2012).
Um antagonismo permaneceu comomarca doBrasil desde o início daColôniaatémeadosdaRepúblicanoséculoXX:adicotomiaentre,deumlado, a música de origem e cultivo popular e a educação musicalinformal, notadamente nas camadas populares – nas quais as culturasameríndiaenegrapodiampenetraresedifundir–,e,deoutro,amúsicaerudita e a educação musical formal para os mais abastados, estaspraticadas e transmitidas pela Igreja Católica, no ensino particular emdomicílioe,depois,nosconservatórios(FUCCI-AMATO,2012,p.24).
Acatequizaçãodosindígenas,naqualamúsicaestevepresente,foi,certamente,
um processo de imposição cultural e religiosa da metrópole sobre os colonizados.
Percebe-sequeasmúsicasdosnegroseindígenasalémdeseremconsideradasmenores
e excluídas do ensino formal, foram proibidas de serem executadas publicamente em
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diversas circunstâncias, evidenciando-se, mais uma vez, aspectos inerentes à
colonialidadedosaber.
Osconservatóriostambémexerceramumpapelfundamentalnareproduçãoda
músicaeuropeianoBrasil.OsprimeirosaseremcriadosforamoConservatóriodoRio
deJaneiro,em1841,eem1906,oConservatórioDramáticoeMusicaldeSãoPaulo,“que
iria consolidar-se como grande matriz brasileira do modelo europeu de formação
musical”(FUCCI-AMATO,2012,p.27).Havianãosóapretensãodeseimplantaraquio
ensino musical aos moldes europeus, como também uma crença de que este era o
melhoreúnicomodeloaserseguido,reiterando-seahegemoniaculturaleuropeia.
Fucci-Amato (2006) relata em estudos sobre os conservatórios musicais
brasileiros,quesemantémumgranderigorpedagógico,eaênfaseaovirtuosismoeà
performancederepertóriosmusicaisdosséculosXVIIIeXIX.Aautoradestacaque,aose
optar por um repertório dos períodos barroco, clássico e romântico, demonstra-se
desconhecimento e desinteresse pela produção musical contemporânea. Ela aponta,
também,acategorizaçãodegrupossociaisapartirdofatodeserounãoseralunodeum
conservatório, sendoque adisciplina e o estudo comafincodiferemos estudantesde
conservatóriosdaquelesqueestudammúsicapopular, cujosestudos sãoconsiderados
como amadores, por não utilizarem a leitura musical, tocarem “de ouvido” e
improvisarem, “princípios abomináveis dentro da culturamusical dos conservatórios”
(FUCCI-AMATO,2005apudFUCCI-AMATO,2006,p.10).Todosessesfatoresrevelama
visão eurocêntrica na formação musical oferecida pelos conservatórios, que
incorporaramereproduziramomodeloeuropeu.
A tradição dos conservatórios foi levada a instituições de ensino superior,
devidoaofatodegrandepartedoscursosdebachareladoemmúsicatersidocriadaa
partir da absorção de conservatórios por universidades (CERQUEIRA, 2010). Assim
sendo,aformaçãomusicaldebacharéisestabelece-senoscentrosdeformaçãomusical
em nível superior, reiterando a hegemonia da música erudita europeia. Este
pensamento, que sustentou a educação musical formal no Brasil, ainda apresenta
reflexos em instituições formadoras, tanto no nível básico quanto superior. Muitos
conservatórios e cursos de bacharelado em música mantêm em seus currículos um
repertório essencialmente europeu, demonstrando o predomínio do pensamento
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eurocêntriconaformaçãomusicalformal,nopaís.Damesmamaneira,afetaaformação
deprofessoresemalgunspaísesdaAméricaLatina,comoArgentinaeMéxico,pelofato
deestasedartantoemconservatórioscomoemuniversidades.
Segundo Cáceres (2001), a educação sistemática domúsico nos países latino-
americanos mantém-se fundamentalmente centrada nos Conservatórios de Música e
esta concepção encontra-se tão arraigada que o próprio nome carrega o sentido de
conservaramúsicaemseuestadooriginal.“Estapalabrahatenidotalfuerza,sobretodo
en nuestra Latinoamérica, que removermínimamente aquello que con tanto esmero ‘se
conserva’esrealmenteunatareadetitanes.Alparecer,loscolonizadosnopuedencambiar
lo que inventaron los colonizadores” (p. 1). O autor critica os intérpretes de música
clássica, cuja ambição é tocar muito bem os compositores eruditos e viajar para a
Europaparaaperfeiçoar-seemumaescolaalemãoufrancesa.Cáceresargumentaqueos
própriosmúsicoseuropeusjáestãoabertosanovostiposdemúsicaeafirma,deforma
irônica,quenosúltimoscemanos tambémnasceramcompositoresnaÁfrica,América
LatinaeÁsia.Eledenunciaopersistentepredomíniodopensamentoeuropeu sobreo
ensino e as práticasmusicais latino-americanas, visando despertar os sujeitos para a
valorizaçãodaproduçãomusicaldeseuspaíses,aindasubalternizados.
Deacordocomoexposto,pode-seperceberqueoeurocentrismoinfluenciaas
práticas musicais e fundamenta as concepções de ensino musical, afetando tanto o
conteúdo (ênfaseno repertório europeu, desprestígiodaproduçãomusical local) e as
estratégiaspedagógicas(rigortécnico, foconovirtuosismo),quantoasrelaçõessociais
(distinções e hierarquias entre o músico erudito e o popular). Ainda hoje, ensino e
práticasmusicaisencontram-seimpregnadosporconcepçõeseurocêntricas,apesardejá
sevislumbrarmovimentoscontráriosaesseparadigma.
5Oprocessodedecolonização:contribuiçõeseperspectivas
O GrupoModernidad/Colonialidad acredita que é necessário encontrar novos
conceitos e linguagens que deem conta das hierarquias de gênero, raça, classe,
sexualidadeeconhecimentoconsolidadasemtodoomundo,foradosparadigmasatuais,
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paraquesealcanceumpensamentoheterárquico6(GROSFOGUEL,2005apudCASTRO-
GÓMEZeGROSFOGUEL,2007).Adecolonialidade,então,éconcebidacomoaaberturae
a liberdade de pensamento e “de formas de vida-outras (economias-outras, teorias
políticas-outras);alimpezadacolonialidadedoseredosaber;orompimentodaretórica
damodernidadeedeseuimaginárioimperialarticuladocomaretóricadademocracia”
(MIGNOLO,2007,p.29).
Naperspectivadecolonial,“aculturaestásempreentrelaçada(enãoderivada)
aos processos da economia-política” (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2007, p. 16);
sendo assim, reconhece-se que há uma estreita relação entre capitalismo e cultura.
Mignolo(2007)afirmaqueadecolonialidadeéaenergiaquenãosedeixamanejarpela
lógica da colonialidade, e que o pensamento decolonial emergiu desde a fundação da
modernidade/colonialidade, como sua contrapartida. Portanto, a proposta do Grupo
Modernidad/Colonialidad é dar visibilidade aos conhecimentos “outros”, colocando a
diferença colonial no centro do processo de produção de conhecimentos (MIGNOLO,
2000apudCASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007).
Castro-Gómez (2007) propõe decolonizar la universidad, envolvendo o
favorecimentodedoisaspectos:a)datransdisciplinaridade,quetrocaalógicaexclusiva
(istoouaquilo)pela lógica inclusiva(istoeaquilo);b)da transculturalidade,queabre
diálogos e práticas articuladoras com conhecimentos que foram excluídos do mapa
modernodasepistemesporseremconsideradosmíticos,supersticiososepré-racionais,
e submetidos ao domínio colonial europeu. O autor atenta para o sentido da palavra
“trans”quetemamesmaraizetimológicadapalavra“três”esignificaatransgressãodo
dois, quer dizer, “aquele que vai alémdospares binários quemarcaramodevenir do
pensamentoocidentaldamodernidade:natureza/cultura,mente/corpo,sujeito/objeto,
matéria/espírito,razão/sensação,unidade/diversidade,civilização/barbárie”(CASTRO-
GÓMEZ,2007,p.90).Eleenfatizaquenãosetratadeircontraaciênciamoderna,masir
alémdascategoriasdeanáliseedasdisciplinasmodernas,semnegá-lasoutrocá-laspor
algomelhor.
6Opensamentoheterárquicoéumatentativadeconceituarasestruturassociaiscomumanovalinguagemque transbordaoparadigmada ciência social eurocêntricaherdadado séculoXIX (GROSFOGUEL,2005apudCASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007,p.18).
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Delgado (2007) acredita que é possível encontrar novos caminhos
metodológicos, se consideramos as abordagens de Mignolo (MIGNOLO, 2000 apud
DELGADO,2007)sobreaproduçãodeconhecimentos fronteiriços. “Pensarapartirda
fronteira significa refletir e construir a partir da consciência de nossa posição
intermediária,entreoeurocentrismoacadêmicoeasculturastradicionaisoupopulares”
(DELGADO,2007,p.213).
Pode-se considerar, comoum exemplo, o trabalho que tem sido desenvolvido
peloFLADEM7–FórumLatino-americanodeEducaçãoMusical, que éuma instituição
autônomaeindependente,formadaporeducadoresmusicaisdedezoitopaíses,quevisa
ofortalecimentodaEducaçãoMusicallatino-americana.Suacriaçãofoiumarespostaà
imposiçãodemodelosevaloresculturaisdecorrentesdoneoliberalismoeglobalização,
reagindo à dominação de pressupostos pedagógicos eurocêntricos e/ou
norteamericanos “que marcaram e que seguem influenciando o pensamento e as
trajetóriasdaeducaçãomusicalnaAméricaLatina”(BRITO,2012,p.105).Osprincípios
doFLADEM“trazemaEducaçãoMusicalcomoumdireitodoserhumano,detentorade
elementosculturais latino-americanos, representantedasdiversas identidades locaise
da identidade do povo latino-americano como um todo”8, acreditando-se que se deve
quebrarestereótiposebuscarapreservaçãodasraízesmusicaisdospovosqueformam
aAméricaLatina.
Contudo,hápelafrenteosdesafiosdereinterpretar-seahistória,
[...]paraencontraracolonialidadesubjacente[econseguirque]acríticaà diferença colonial vá além da dimensão política, e comece a afetarrealmente a maneira como as escolas de música se enfrentam com apesquisa e o ensino de músicas não acadêmicas (DELGADO, 2007, p.212-213).
Portanto,“acumplicidadedasciênciassociaiscomacolonialidadedopoderexige
aemergênciadenovoslugaresinstitucionaisenãoinstitucionaisdeondeossubalternos
possamfalareserescutados”(CASTRO-GÓMEZeGROSFOGUEL,2007,p.21).Torna-se
imprescindível amudançadeparadigmas, apartir da conscientizaçãodas implicações
7FLADEM:http://www.fladem.info8Disponívelem:http://www.fladembrasil.com.br
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que a modernidade trouxe para a constituição da identidade dos sujeitos latino-
americanos.
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