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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
MARIANE MELLO LIMA
CAÇADAS DE PEDRINHO: REPRESENTAÇÃO RACIAL DO NEGRO NA OBRA DE
MONTEIRO LOBATO
Campos dos Goytacazes-RJ
2017
RESUMO
O trabalho tem como abordagem a representação do negro na obra Caçadas de Pedrinho e
como a diversidade cultural de uma sociedade tão heterogênea como a que estamos inseridos
reforçam as diferenças em âmbito social e político. Objetivamos aqui, entender como as
diferenças estão cada vez mais presentes nas relações sociais para assim demonstrar que
através de estereótipos a caracterização dos indivíduos poderá ser racista, desta forma
embasados na obra de Monteiro Lobato iremos identificar como se deu a representação do
negro, e analisar um de seus livros o qual foi tema de um grande debate na literatura infantil
brasileira acusada de conter características de cunho racista. A pesquisa é de cunho
qualitativo. Foi realizado um levantamento e feita a revisão bibliográfica pertinente ao tema
em questão, como, a construção de estereótipos para caracterização dos negros, e o
reconhecimento das diversas culturas que permeiam a sociedade no que tange a representação
do negro de forma racista na obra infantil Caçadas de Pedrinho de Monteiro Lobato.
Concluímos que, ao passo que uma obra de reconhecimento mundial se vê acusada de conter
certos trechos racistas, é de suma importância que entendamos que falar sobre diferentes
culturas é falar sobre estereótipos criados ao longo dos anos através do reconhecimento racial
das características dos indivíduos. Contudo observamos que o negro vem sofrendo
preconceitos há séculos, e que mesmo um ícone da literatura infantil brasileira pode cometer
racismo em suas obras, através da caracterização e representação de seus personagens.
Palavras-chaves: Racismo, caçadas de Pedrinho, representação.
ABSTRACT
The work has as an approach the representation of the Negro in the work Caçada de Pedrinho
and how the cultural diversity of a society as heterogeneous as the one that we are inserted
reinforce the differences in social and political scope. We aim here to understand how
differences are increasingly present in social relations to demonstrate that through stereotypes
the characterization of individuals may be racist, so based on the work of Monteiro Lobato we
will identify how the representation of the black was given, and analyze One of his books
which was the subject of a great debate in Brazilian children's literature accused of containing
characteristics of a racist nature. The research is qualitative. A survey was carried out and the
bibliographic review pertinent to the subject in question was made, such as the construction of
stereotypes for the characterization of blacks and the recognition of the diverse cultures that
permeate society in what concerns the representation of the black in a racist way in the
children's work Hunting By Pedrinho de Monteiro Lobato. We conclude that while a work of
world recognition is accused of containing certain racist passages, it is of the utmost
importance that we understand that talking about different cultures is talking about
stereotypes created over the years through racial recognition of the characteristics of
individuals. However we note that black people have been prejudiced for centuries, and that
even an icon of Brazilian children's literature can commit racism in their works, through the
characterization and representation of their characters.
Keywords: Racism, Pedrinho hunts, representation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6
1. O JOGO DA DIFERENÇA É FATO ........................................................................ 8
1.1 A Diferença em âmbito social .............................................................................. 12
1.2 Representações do negro em Monteiro Lobato .................................................. 14
2. ANALISANDO O LIVRO "CAÇADAS DE PEDRINHO" ....................................... 17
2.1 Principais descrições raciais no livro ................................................................... 19
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 23
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios dos anos 1500, o negro era considerado feio, sujo, piada, ou
ainda, algo insignificante. Esta interpretação ainda se repercute até os dias atuais.
Quando passamos por uma situação ruim/difícil, costumamos usar a expressão “a
situação está preta”. Por quê? Somos nós seres racistas?
O estudo aprofundado sobre a diversidade cultural de uma sociedade é de
extrema importância para o meio acadêmico, uma vez que, aborda e enfatiza questões
como o jogo das diferenças, que são estabelecidas a partir de lutas e relações sociais
entre os atores sociais, e retrata a discriminação e preconceito que indivíduos
experimentam dentro da sociedade em que estão incorporados.
Discutir acerca dos processos excludentes é extremamente importante, visto que
é uma temática complexa onde as necessidades de conexão entre os métodos de
globalização e articulação entre as lutas pelo direito à diferença beiram elevar as
desigualdades e consequentemente fazer com que os indivíduos que já estão a mercê da
sociedade sejam cada vez mais excluídos. A partir daí faz-se necessário saber e
questionar quais processos levarão a inclusão e exclusão de um grupo por meio dos
contextos de sua interação com a sociedade. Sobre a experiência vivida do negro, Fanon
(2008) nos diz: “‘Preto sujo!’ Ou simplesmente: ‘Olhe, um preto!’ [...] O preto é um
animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto!” (p. 103 e
106). E ainda: “O branco quer o mundo; ele o quer só para si. Ele se considera o senhor
predestinado deste mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e o mundo uma
relação de apropriação.” (p.117).
O negro não mais é incluído, ele apenas faz parte de uma sociedade que quer a
qualquer custo embranquecer.
Em uma sociedade tão heterogênea da qual nós fazemos parte, é imprescindível
falar sobre a diversidade cultural, e as relações sociais que a permeiam. Este campo vem
reforçar as diferenças existentes no âmbito social e político em que estamos inseridos.
Além de grande contribuição para a prática pedagógica, o debate sobre a temática
cultural é essencial para compreender as práticas sociais e de seus agentes sociais, em
uma sociedade tão diversificada como a nossa.
Neste sentido Hall (2002) nos fala sobre o debate da questão multicultural:
“Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e
os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na
qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida
em comum [...] Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou
administrar problemas e multiplicidade gerados pelas sociedades múltiplas”
(2002, p. 52).
Em uma sociedade com tantos costumes culturais, a diversidade é um pretexto
para a imposição de valores. A diferença e identidade assombra a mentalidade do ser
humano, pois as diferenças culturais não podem ser vistas e entendidas separadamente
das relações de poder.
O homem nada mais quer do que dominar. Cada pessoa age de acordo com os
conhecimentos que carrega consigo. Por dentro de suas experiências ao longo da vida, o
ser humano baseado em sua cultura, constrói um pensamento onde irá expressar suas
particularidades culturais e práticas sociais.
Através da literatura infantil é possível observar traços da cultura do racismo,
onde a representação do negro será efetivada através de seus estereótipos. Em O Sítio
do Pica Pau Amarelo Monteiro Lobato definiu onde e qual era o lugar do negro.
Tomemos como exemplo os personagens Saci Pererê, Tia Nastácia e Tio Barnabé ambos
negros. O primeiro vive na floresta com seu cachimbo e sem uma perna. A segunda vive
na "casa grande", porém na cozinha e, sua função é servir aos brancos; e, o terceiro, um
velho, que ajuda nas tarefas diversas do sítio e vive fumando seu cachimbo e sabe tudo
sobre a floresta e seu poder de cura. As relações sociais destes com os que vivem na
casa grande podem ser identificadas ora como apenas prestação de serviços, ora
amigável, com suas longas histórias recitadas aos moradores da casa. Tais personagens
[negros] são caracterizados como inferiores em relação aos brancos.
Em 2010, o Conselho Nacional de Educação, considerou o livro Caçadas de
Pedrinho pertencente a obra O Sitio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato como
racista, e muito se repercutiu sobre o tema, até mesmo a retirada do livro das escolas.
Para o CNE a forma de tratamento dos personagens negros e esse tipo de pensamento
não deveria ser vinculado nas escolas para não alimentar o racismo no Brasil.
Por meio de cartas de Lobato para defensores da eugenia, o escritor foi acusado
de defender veementemente uma organização norte americana conhecida por Ku Klux
Klan. Essa organização fundada nos anos 1865 tinha como objetivo principal impedir a
integração dos negros recém-libertos na sociedade, assassinando-os como forma de
estabelecer uma purificação racial.
Entre as principais características para a compreensão da representação do negro
em nossa sociedade está a identidade e diferença, pois é a partir da identidade de cada
um que notamos a diferença perante outros podendo levar a uma segregação. Sobre a
temática da exclusão e inclusão, Thadeu(2000) nos diz que:
“A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as
operações de incluir e de excluir [...] afirmar a identidade significa demarcar
fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’”
[...] (p. 82).
Ao passo que o branco é incluído na sociedade sem qualquer esforço, o negro é
excluído.O negro busca fazer parte de uma sociedade em que ele se sente inferior,
enquanto o branco busca sempre a sua superioridade.“O preto escravizado por sua
inferioridade, o branco escravizado por sua superioridade, ambos se comportam de
acordo com uma orientação neurótica.”Fanon (1998). E nesta guerra de relações de
poder, de inferioridade e superioridade há a separação entre duas raças. O negro busca
sair de sua inferioridade e o branco quer a qualquer custo manter sua superioridade.
Caçadas de Pedrinho, livro que faz parte do Programa Nacional Biblioteca da
Escola, do Ministério da Educação, pertence à grandiosa história do Sitio do Pica Pau
Amarelo, escrito por Monteiro Lobato e publicado em 1933. Porém, em 2014 foi
discutida a retirada do livro das escolas públicas por ter sido reconhecido conteúdos
racistas através de um mandado de segurança que foi levado ao Supremo Tribunal
Federal.
Buscamos com este trabalho traçar de que forma a representação dos
personagens negros, bem como os seus estereótipos os condicionam a serem retratados
com certa diferença perante a outros indivíduos.
1. O JOGO DA DIFERENÇA É FATO
Pensar na diferença e sua complexidade valorizá-la seja ela étnica ou cultural,
vivenciar a diversidade e construir debates tanto no âmbito político, social e educacional
nada mais é do que respeitar a pluralidade cultural, e para isso faz-se necessário romper
com o imaginário de superioridade de determinada classe propiciando e levando a não
só respeitar, mas entender a diferença social e cultural de cada grupo. Neste sentido,
Assis (2004), nos mostra que pensar nas múltiplas culturas valoriza a diversidade
cultural, elimina preconceitos e estereótipos construídos historicamente, o que pode
levar a formar uma sociedade alicerçada no respeito e dignidade do outro com suas
diferenças.
Observar, vivenciar, experimentar essa diferença é o que nos torna indivíduos
culturalmente diversos que estamos alocados em um mundo mestiço. Compreender o
sentido verdadeiro da palavra diversidade, precisar corretamente o que ela quer dizer
não é tarefa fácil se não formos capazes de observar e quiçá descrever as diferenças
culturais.
Em um mundo tão heterogêneo como o nosso é praticamente impossível não
falar sobre a identidade de cada indivíduo e sua diferença e, essas questões tornam-se
temas centrais na área da educação. Para isso Silva (2000) nos explica:
“[...] identidade e diferença estão em uma relação de estreita dependência. A
forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa
relação. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as
pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não
fariam sentido” (p.74-75).
Identidade e diferença constituem uma relação de dependência e, afirmar a
identidade da forma como fazemos tende a camuflar essa relação. Ao afirmar que “sou
alto” leva a uma referência de identidade que parece se esgotar a somente isso, porém só
me é necessário fazer tal afirmativa porque existem outros indivíduos que não são altos.
Neste sentido, se vivêssemos em uma sociedade totalmente homogênea, onde os
indivíduos possuíssem a mesma identidade, tais afirmações de identidade não fariam
sentido.
Desta forma, identidade e diferença são termos opostos, entretanto estão
vinculados entre si. Identidade é o que se é – sou mulher, sou negra, sou alta, sou
brasileira – já a diferença é o que se vê no outro – ela é mulher, ela é negra, ela é alta,
ela é brasileira. O reconhecimento que temos de nós mesmos é a nossa identidade, o que
nós somos perante a outrem, já a diferença é o que se vê no outro, o que o outro é, o que
ele é perante a nós.
Um conceito muito usado e atualmente bastante discutido para tratar sobre o
jogo das diferenças é o multiculturalismo. Bem como diz Gonçalves (2001), ele é uma
ideologia cultural, uma estratégia para integração social e também uma produção de
conhecimento. Seguindo essa ideia, Gonçalves vai mais além quando diz que
articulando essas concepções, notamos que o multiculturalismo é um:“fenômeno
globalizado que tem início em países onde a diversidade cultural é vista como um
problema” (p.14-15).
Falar sobre a valorização das culturas diversas é falar sobre o multiculturalismo,
pois trata de seus costumes, sua ideologia, sua identidade cultural e são essas diferenças
que causam conflitos.
Pode ser entendido como estudos que apontam para as diferentes culturas que
estão espalhadas ao redor do mundo, que tem como um de seus objetivos evitar os
conflitos sociais a partir do conhecimento de cada cultura. Apresenta também um cunho
político, uma vez que, grupos sociais culturalmente dominados lutam e reivindicam seus
direitos, para serem reconhecidos em uma sociedade que os oprime. É válido salientar o
quão importante é observar a eficácia das questões culturais para a diversidade cultural.
Vivemos em uma sociedade que se apresenta de forma heterogênea, portanto,
para compreensão das diferenças é necessário que se faça uma análise das mudanças
sociais ocorridas e das relações sociais existentes entre os indivíduos. Por ser um
conceito amplo pode ser entendido como pluralidades culturais, onde prevalecerá a
proteção da diversidade cultural. Desta forma, Hall (2002) nos diz sobre a “produção de
novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural” (p.
337, 338).
A partir de grupos que já obtinham uma identidade cultural definida, foram se
difundindo grupos sociais com culturas distintas, ora por conta de seus credos, religiões
e costumes, ora por suas biológicas diferenças, tais como os seus estereótipos. Para
demonstrar, tomemos o Brasil como exemplo. Por volta dos anos 1500, com o seu
descobrimento, houve uma grande expansão cultural em nosso país por conta da
miscigenação dos grupos sociais que eram distintos. Ao passo que novas identidades
culturais surgiam, um grande número de pessoas eram discriminadas e como
consequência ocorria uma fragmentação cultural.
As diferenças tratam das relações e lutas sociais, onde os indivíduos sentem o
preconceito e a discriminação dentro da sociedade em que vivem e das relações que
mantem. Isto porque ao passo que a sociedade percebe as diferenças e
consequentemente sua diversa cultura, ela separa aqueles indivíduos que não fazem
parte de um padrão imposto por ela mesma. Tão comumente observamos certa
estranheza ao outro e ao que ele carrega consigo, basta lembrar se algum dia não rimos
de uma dança típica, culinária, ou vestimenta de um determinado grupo social. A
cultura, a tradição, ou seja, a diferença tem o poder de causar estranheza.
Observamos esse processo também nos estereótipos de um indivíduo, fato
altamente observado na obra de Monteiro Lobato, como ele descreve a diferença dos
personagens negros: Narinas achatadas, cabelo crespo e volumoso, lábios carnudos,
estatura corpulenta, de cor negra, todos são exemplos clássicos de como observamos e
até julgamos o outro diferente. Entretanto é diferente do que? Qual padrão seria o
considerado correto? Branco, alto, magro, poucas linhas de expressão, lábios e narinas
finos e discretos? Vivemos em uma sociedade de padrões definidos, se você foge a eles
certamente será caracterizado como inferior, podendo ser até excluído.
Esses padrões não foram criados/impostos nem são pertencentes apenas no
século em que estamos encarnados – século XXI – eles surgiram junto com a
humanidade. Exemplo disso foi a escravidão, a moça de traços brutos é inferior e
escravizada e a de traços suaves é superior e obtém o poder. Muito se fala sobre a
diferença e o respeito a ela, porém na prática não há existência disso. O ser humano
aproveita a diferença, levando em consideração a sua identidade, para segregar,
discriminar e até inferiorizar o outro.
Capaz até de provocar atitudes racistas, a diferença nos mostra claramente o que
pensamos sobre o outro. Convivemos com atitudes racistas há muito tempo. Caçadas de
Pedrinho, livro de Monteiro Lobato que permeia o imaginário de muitas crianças e com
certeza, em algum momento de nossa infância, também esteve em nossa imaginação e
nos mostra claramente como o racismo e preconceito eram corriqueiros entre os
personagens da história. Dia desses em uma novela destinada ao público jovem de um
canal famoso apresentou uma cena de puro preconceito. O mocinho diz para a
protagonista que ela não pode engordar, pois ficará feia. Os estereótipos impostos por
uma parte da sociedade segregam um grupo que será inferiorizado.
Em nossa convivência é visivelmente grande o número de grupos sociais
excluídos, seja por sua crença, opção sexual, raça ou cor, e associar igualdade perante
estes grupos é senão o maior, um dos maiores desafios da atualidade. A construção de
reflexões sobre as diferenças diminuiria os conflitos sociais. Cada individuo possui sua
bagagem cultural própria e pensar, entender e aceitar as diferenças é um meio de ajuda
para que haja uma percepção sobre sua cultura e a do outro.
Essa exclusão, discriminação, racismo e desigualdade permeiam em nossa
sociedade livremente. Assim Silva (2003) nos diz que deve-se buscar formar uma
sociedade embasada no respeito as diferenças, valorizando a diversidade cultural sem
preconceitos. Neste sentido, nossa identidade será construída através de nossa
diversidade e, devemos viver essas diferenças valorizando as culturas. Portanto, não
podemos identificar a cultura como homogênea, cada individuo concilia e percebe as
coisas de seu modo, ao passo que é parte de outras culturas.
No que se refere a entender e respeitar a cultura do outro faz-se necessário,
primeiramente, identificar a desigualdade existente entre os indivíduos para somente
após buscar a igualdade. É de suma importância que se dirija para a compreensão e
conhecimento das diferenças, das diversidades culturais, da aceitação de que cada ser
possui seu próprio estereótipo, para que se construa o respeito entre os atores sociais e
suas relações.
1.1. A DIFERENÇA EM ÂMBITO SOCIAL
Diante a globalização, facilidade a informações e conhecimentos, culturas
múltiplas e seus significados, a ação humana vem se mostrando cada vez mais intensa
em praticamente todos os lugares. As ações e intervenções humanas modificam toda a
dinâmica existente no espaço, neste sentido, observamos o espaço como:
“[...] algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana.
O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou
fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A cada época, novos
objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto
formal quanto substancialmente.” (SANTOS, 2008, p. 46).
Portanto percebe-se que todas as ações humanas, culturais ou não interferem na
dinâmica e transformação presentes no espaço. As diferenças contribuem para a
produtividade existente entre as ações humanas, e até em seus conflitos.
Para que se entenda esse embate da sociedade, é preciso que ao se falar em
diferença, fale-se também na relação entre tempo e espaço, pois várias questões tratadas
pelas diferentes culturas, como exemplo etnia e raça, vêm sendo estudadas ao longo de
muito tempo, e acompanhando modificações no espaço representadas por
transformações sociais e histórico-geográficas.
Um termo frequente nas relações sociais é o conceito de raça, utilizado para
indicar determinadas características físicas, como cor da pele. Segundo o Mini
Dicionário Aurélio (2010), Raça refere-se ao:
“Conjunto dos ascendentes e de descendentes duma família, tribo ou
povo com origens comuns. Divisão de uma espécie original, provinda
do cruzamento de indivíduos selecionados para manter ou aprimorar
determinados caracteres” (p. 635).
Neste sentido, o conceito do termo raça é frequentemente utilizado nas relações
sociais a fim de informar que determinadas características físicas, como tipo de cabelo,
cor da pele, formato do crânio e do rosto determinam e influenciam o lugar e o destino
dos atores sociais dentro de uma sociedade.
Caracterizar os indivíduos embasados em somente seus estereótipos segrega-los
por não concordar com suas diferenças sociais, culturais e raciais e não respeitar os
valores e sentimentos que esses trazem dentro de si, nada mais é do que reduzir o
individuo a somente o que ele aparenta ser e não reconhecer e aceitar as diferenças.
Outro termo muito utilizado nas relações sociais é o conceito de etnia, que marca
as tensas relações por conta das diferenças na cor da pele e traços físicos e, é essencial
para explicar que o individuo pode apresentar o mesmo tipo de cabelo, a mesma cor da
pele que o outro embora tenha características sociais e culturais que os difere. Assim o
Mini Dicionário Aurélio (2010) nos diz sobre o conceito de etnia: “População ou grupo
social que apresenta homogeneidade cultural, compartilhando histórias e origens
comuns.(p. 325)”
Da mesma forma como a internet leva a novas possibilidades de transformação
social, a discussão sobre as diferenças gera uma nova ferramenta de discussão que,
embasada a debates críticos e conhecimentos prévios e/ou adquiridos com o tempo,
levam a concepção de uma sociedade nova, onde o embate sobre múltiplas culturas não
ocorrerá no mesmo tempo para todos.
No que se refere às ações humanas, observa-se que a aceitação do diferente pode
gerar duas perspectivas, a do estranhamento e a do aceitamento. Na primeira perspectiva
há conflitos entre os atores sociais e embates sociais, já na segunda há entendimento
sem conflitos. Tudo o que é novo ou diferente para nós causa certa estranheza, podendo
acarretar uma demora na aceitação ou até mesmo a negação completa.
A diferença existente entre os grupos sociais no traz a tona cenas e lembranças
de pura intolerância e radicalismo com aqueles que são julgados diferentes. A tentativa
de acabar com os conflitos oriundos dessa não aceitação surge para romper com a ideia
de que a cultura é homogênea e, busca com a ajuda de espaços de múltiplas culturas
inserir essa pluralidade cultural em nossa sociedade, principalmente na educação, onde
busca-se a construção de identidade e reconhecimento da diferença sem que haja
discriminação ou preconceitos.
O processo de globalização e a luta pelo direito à diferença acarreta um estágio
bem complexo, onde a tendência é de aumentar cada vez mais as desigualdades e
exclusão daqueles que já estão à mercê da sociedade. Surgem então os questionamentos
no que diz respeito à inclusão das minorias que lutam por suas diferenças. Aqueles que
são oprimidos, nada mais querem que do que reconhecimento e respeito, assim
valorizando sua diferença e afirmando sua identidade.
1.2. REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM MONTEIRO LOBATO
Nascido no ano de 1882 em São Paulo no Brasil, o escritor José Bento Renato
Monteiro Lobato autor da grandiosa obra infantil O Sítio do Pica Pau Amarelo tem seu
nome ligado ao racismo, e essa é uma questão que sempre permeia a vida cultural
brasileira.
Além de grandioso escritor, Lobato também era um entusiasta da eugenia. Ideia
surgida em meados do século XIX na França e sistematizada pelo médico Francis
Galton (1822) onde ele define como: “O estudo dos agentes sob o controle social que
podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou
mentalmente”. (Biblioteca UFRGS)
Ideia esta considerada na prática como racista, pois representava também um
engrandecimento da superioridade da raça branca sobre as demais.
No Brasil, um dos principais estudiosos sobre a eugenia foi Renato Kehl que em
suas obras adotava ideias como a esterilização de pessoas que apresentassem problemas
físicos ou mentais. Monteiro Lobato o considerava como um “espírito brilhante” por
defender a proibição de imigrantes que não fossem brancos no Brasil.
Além desses fatos, em 2011 surge uma nova repercussão sobre o assunto onde
Lobato é acusado de racista. Neste ano, mas precisamente em maio é publicada uma
matéria na Revista Bravo! onde se tornaram públicas cartas de Monteiro Lobato que
reforçam seu racismo e seu entusiasmo com a eugenia.
Uma destas cartas datada de 10 de abril de 1928 foi endereçada a Arthur Neiva -
etnógrafo, cientista e político brasileiro – onde Lobato defendia as ideias da Ku Klux
Klan, organização que tinha como objetivo principal impedir a integração dos negros
recém-libertos na sociedade, assassinando-os como forma de estabelecer uma
purificação racial, e rejeitava a formação do povo de seu país de origem. Segue o trecho
da carta na íntegra como publicado na revista BRAVO!:
“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan
(sic), é país perdido para altos destinos. [...] Um dia se fará justiça ao Ku-
Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em
seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho
fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro
destrói a capacidade construtiva.” (NIGRINI p24 – 33)
As cartas enviadas por Lobato estão guardadas na Fundação Oswaldo Cruz e
Fundações Getúlio Vargas, ambas no Rio de Janeiro.
Seu livro intitulado Caçadas de Pedrinho, publicado em 1933 faz parte do
Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação. Porém em 2014
foi levado ao Supremo Tribunal Federal um mandado de segurança onde era discutida a
retirada do livro da lista de leituras das escolas públicas por apresentar conteúdo racista.
Em um trecho da obra a personagem Tia Nastácia que é negra, é comparada a “uma
macaca de carvão”.
O mandado de segurança contra o livro foi vetado pelo Ministério da Educação,
porém alguns Estados brasileiros chegaram a retirar o livro de Lobato do currículo
escolar, caso ocorrido na Paraíba e Mato Grosso.
A representação do negro no livro Caçadas de Pedrinho da obra O Sítio do Pica
Pau Amarelo tornou-se referência por ser conteúdo da literatura infantil. O público alvo
de suas criações são crianças e adolescentes, e compreender de forma saudável a
representação do negro não é uma tarefa das mais fáceis, visto que, essa mesma criança
que leu já vai ser apresentada a temática do racismo, pois na obra vemos que o autor
define onde é o lugar do negro.
Falar em lugar é falar sobre as ligações afetivas do indivíduo, como nos mostra
(LEITE 1998): “Sua linha de pensamento caracteriza-se principalmente pela valorização
das relações de afetividade desenvolvidas pelos indivíduos em relação ao seu
ambiente.”
Partindo deste pensamento podemos observar na obra de Lobato que ele delimita
qual é o lugar dos personagens. Os personagens criam laços afetivos com o espaço
ocupado por eles no território, fazendo dele o seu lugar. Tia Nastácia cria um laço com a
cozinha e o Saci Pererê com a floresta, logo, são os seus lugares representados na obra.
Caçadas de Pedrinho alcança cunho ideológico bastante relevante, pois é uma
obra artística que produz nos leitores presunções sociais, políticas e culturais remetendo
certa crítica ao se deparar com a representação do negro observada na mesma.
As características físicas do negro tais como seu estereotipo são postas em
evidência por Lobato. Isto é claramente visível em um trecho do diálogo da personagem
Emília com a Tia Nastácia: “- Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem ao menos
filosofia, esta diaba”.
Fanon (2008) relata que o negro simboliza o biológico. Ao se deparar com um
negro observamos suas características físicas e biológicas como lábios carnudos e
narinas avantajadas. Os personagens negros são estereotipados mediante as suas
características físicas descritas. Comentários como o da boneca Emília em relação à Tia
Nastácia formam estereótipos, podendo ser entendido como estabelecer uma
generalização a respeito de um indivíduo, na maioria dos casos – como o nosso – quem
o profere sente-se superior ao outro.
O Sítio do Pica Pau Amarelo é uma obra que ficou marcada no coração e mente
das pessoas que a leram, seja por sua beleza ao narrar a história de pequenos grandes
desbravadores e caçadores de aventuras ou por sua afeição emocional ao fazer ligação
com suas memórias afetivas. Mas esta obra também ficou marcada por Lobato ter sido
inovador quando exibiu claramente às crianças e jovens o racismo, o preconceito racial.
Em uma passagem do livro Reinações de Narizinho (1969) há um diálogo onde pode-se
ler o seguinte: “- Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.
[...]Não reparem ser preta. É preta por fora, e não de nascença. [...]”.
A representação de Tia Nastácia nos remete muito aos dias atuais, onde o negro é
retratado como um malfeitor e exerce apenas as suas funções perante a sociedade, assim
como o exemplo da personagem que é uma senhora de pouca instrução, supersticiosa e
ótima cozinheira.
Em sua obra, Lobato apresentava a realidade brasileira que ainda hoje apresenta
cunho racista, por conseguinte, muitos consideravam o autor racista, porém há alguns
pontos que nos chamam atenção no que se refere às relações sociais entre alguns
personagens.
Partiremos da relação entre uma simples cozinheira negra, amável, dedicada aos
moradores do sitio e, a dona do sitio, uma senhora branca preocupada com seus netos e
que a primeira a chama de amiga. Observamos também essas feições de amizade nas
relações sociais entre os atores sociais Pedrinho e Tio Barnabé, branco e negro
respectivamente.
É justamente por isto, que alguns tentam provar que suas obras não são racistas,
partindo desde ideal, Ziraldo – cartunista, pintor, escritor, jornalista brasileiro – criador
de um dos personagens infantis mais conhecidos, o Menino Maluquinho, elaborou um
desenho para a camisa de um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro chamado “Que m* é
essa?” onde aparece Monteiro Lobato abraçado a uma mulata corpulenta.
Este bloco aborda a cada ano um tema polêmico visto no cenário político do
Brasil, e em 2012 foi a vez de retratar a polêmica a cerca do racismo que caía sobre
Lobato como tentativa de critica à censura de suas obras. Sobre o bloco e o seu desenho,
Ziraldo explica “Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando
com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma negrinha que é uma maravilha. Racismo
tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de
achar que a gente é racista.”.
Em sua obra Lobato descreve os personagens, principalmente os negros, com
inúmeras características baseadas no estereótipo de cada um. Veremos estas descrições
mais adiante.
2. ANALISANDO O LIVRO “CAÇADAS DE PEDRINHO”
Há 83 anos foi publicada a obra de Monteiro Lobato intitulada Caçadas de
Pedrinho – faz parte da história intitulada Reinações de Narizinho. A história narra a
descoberta, pelo personagem Marquês de Rabicó, de uma onça que esta rondando as
proximidades do Sítio do Pica Pau Amarelo. A partir disso, os personagens Narizinho e
Pedrinho decidem organizar uma expedição, mas sem avisar a avó Dona Benta, para
caçar o animal. Durante a caçada à onça, eles encontram um rinoceronte falante
chamado Quindim e decidem leva-lo para morar no sítio.
Esta obra foi duramente criticada por conter conteúdos considerados racistas
pelo Supremo Tribunal Federal que chegou até a emitir um mandado proibindo a
circulação e leitura desse livro nas escolas públicas. Em um trecho do livro, a
personagem Emília diz: “-É guerra das boas. Não vai escapar ninguém, nem Tia
Nastácia que tem carne preta.” (p. 171)
Na história observamos que a personagem negra – Tia Nastácia – é retratada
com termos que menosprezam o negro, assim acentuando a ideia de racismo.
Fanon(2008) faz um relato onde ele diz que: “O mundo branco, o único honesto,
rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim,
uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto.” (p.107).
E é exatamente o que encontramos na obra de Lobato. Os demais personagens
esperam da Tia Nastácia uma conduta inferior, uma conduta de pessoa negra, assim
como quando ela ficou com medo da onça que Pedrinho estava caçando.
Este trecho polêmico da obra é visto na passagem em que Tia Nastácia, com
medo, tenta fugir dos animais da floresta: “[...] Esquecida de seus numerosos
reumatismos, trepou na árvore que nem uma macaca de carvão [...]”. (p.178)
A representação racial de Tia Nastácia também aparece por conta de seus
estereótipos tais como lábios carnudos. Em uma passagem da história onde é narrado
uma pescaria, a personagem se assusta com o peixe que surgiu e assim é retratada: “[...]
A negra pendurou o beiço. – Credo! Até parece feitiçaria! – resmungou .” (p. 29)
Porém um pouco adiante na história há uma conversa entre as personagens
Emilia e Narizinho onde a boneca diz para a menina que ela gostou tanto da comida que
até lambeu os beiços. Prontamente ela é repreendida com a seguinte frase: “- Lábios,
aliás. Beiço é de boi.” Notamos que a inferioridade da personagem negra pode ser
comparada a um animal.
A personagem que mais criticava a Tia Nastácia era a Emília, porém as demais
crianças do sítio amavam a singela senhora, principalmente por ela juntamente com os
personagens Tio Barnabé e Saci Pererê volta e meia proporcionarem às crianças muito
da sabedoria popular brasileira e nossa cultura.
A representação racial na obra também é vista quando o intuito é integrar a
personagem negra na convivência dos demais. Em sua última parte, o Rinoceronte que
se juntou a pouco aos demais integrantes do sítio brinca com as crianças carregando-as
em um carrinho. Tia Nastácia também participa da brincadeira e diz a Dona Benta: “-
Tenha paciência – dizia a boa criatura. - Agora chegou a minha vez. Negro também é
gente, sinhá...” (p.198)
Lobato talvez tenha buscado uma forma de mostrar como o negro era retratado
naquela época e com o uso de sua personagem mostrou que todos são iguais,
independente de sua raça e cor. Na Constituição de 1934, mesma época em que o livro
Caçadas de Pedrinho foi publicado, era feita uma busca pelo melhoramento racial
através do processo de branqueamento e da eugenia, como podemos ver no Artigo 138
da Constituição: “Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos
das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica; [...] g) cuidar da higiene mental
e incentivar a luta contra os venenos sociais”.
Naquela época buscava-se a eugenia como educação, porém hoje muito se fala e
é debatido sobre os estudos das relações étnico-raciais, e a ideia de racista deveria ser
descontruída da mente dos indivíduos para que pudesse ser corrigido este ideal e levado
como pauta para dentro das escolas. As informações que temos acesso hoje sobre o
passado e com elas fazer uma relação com as informações atuais é um dos melhores
métodos para se abordar a questão racial e com ela procurar a tão sonhada e esperançosa
igualdade.
É evidente que os livros e suas histórias passam por nós e nos deixam suas
marcas, e se serão positivas ou não depende do contexto histórico em que estamos
vivendo naquele momento e da interpretação do leitor.
Não é necessário esconder a obra de Lobato, privar nossas crianças de ter acesso
a ela, o que importa é mostrar como o seu sentido e interpretação mudou nesses mais de
80 anos de sua publicação, e para isto faz-se necessário compreender as relações sociais
entre os atores sociais, e principalmente entender que os estereótipos estarão sempre
presentes em nossa sociedade, pois cada indivíduo é diferente do outro e possui sua
própria identidade. (Re) conhecer as diferenças e entende-las em uma sociedade tão
miscigenada como a que estamos inseridos talvez seja um dos maiores desafios da
atualidade.
2.1. PRINCIPAIS DESCRIÇÕES RACIAIS DO LIVRO
Discorremos aqui alguns dos trechos da história Reinações de Narizinho, que
engloba “Caçada de Pedrinho”, onde mais nota-se a representação racial do negro de
forma a inferioriza-los perante aos demais personagens. Notamos que tais
representações são feitas através do estereótipo de cada individuo para sua
caracterização.
Nas primeiras linhas da obra, Lobato descreve os personagens que vivem no
sitio, e enquanto Dona Benta é descrita como a mais feliz das vovós, Tia Nastácia é
apresentada como “negra de estimação com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá
em cima que é ver uma bruxa.” Nota-se a presença de elementos descritivos para
inferiorizar a personagem.
Em sua obra, Lobato discorre sobre duas senhoras já idosas: Dona Benta e Tia
Nastácia. É comum e extremamente normal pensarmos que o tratamento destinado às
duas personagens seria igual ou parecido, afinal o que teriam elas de tão diferente a
ponto de haver mudanças em seu comportamento? Cor da pele.
A cor da pele passa a ser um pretexto para a segregação e preconceito. Fanon
(2008) nos mostra:
“Qualquer descrição deve se situar no plano do fenômeno mas, mesmo lá,
somos levados a perspectivas infinitas. Há uma ambiguidade na situação
universal do preto, que contudo se resolve na sua existência concreta. [...] onde
quer que vá, o preto permanece um preto.” (p.149)
É exatamente o que acontece na obra, Tia Nastácia pode ser integrante da
família, mas será desvalorizada por conta de sua cor. Ao ler a fantástica história do Sitio
do Pica Pau Amarelo observamos que a todo tempo esta personagem é tratada como
“velha preta” e “a boa preta” enquanto Dona Benta, outra senhora da história – dona do
sitio e de cor branca – é tratada apenas como “senhora”.
A forma que o autor usa para afirmar a todo tempo que Tia Nastácia é negra
muito chama atenção. Além disso, Lobato também retrata a personagem como a única
que não sabe falar corretamente, não sabe ler nem escrever, tem medo das aventuras
protagonizadas por Narizinho e Pedrinho e de positivo ela só tem a questão de saber
muito bem fazer os serviços da cozinha.
Embora Tia Nastácia seja muito amada por todos do sitio, Monteiro Lobato não
deixa que o leitor se esqueça de que ela é negra e inferior aos demais. Isso fica claro
numa passagem da obra na história intitulada Reinações de Narizinho, no subtítulo O
Sitio do Picapau Amarelo no capítulo 5 – Pedrinho, onde é narrado o dia em que
Pedrinho chega ao sítio, e ao chegar ele leva presentes para todos da casa menos para
Tia Nastácia. Ou seja, a personagem é negra e trabalha para os moradores da casa então
não ganha presente.
As características físicas de Tia Nastácia são usadas para compara-la a termos
que irão enaltecer sua inferioridade. Duas passagens na obra deixam em evidência esta
intenção, a primeira quando ela foi comparada a uma galinha e a segunda a um doce
típico da região centro oeste do Brasil de gosto duvidoso: “[...] E me virou a mim em
passarinho, virou vovó em tartaruga e tia Nastácia em galinha preta...[...]” (p. 46) Mais
adiante: “[...] O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo
que não aguenta mais e vai descer [...]” (p. 180)
Após todas análises feitas podemos considerar que muitos termos foram usados
propositalmente para inferiorizar a imagem da personagem negra – Tia Nastácia – o que
ainda é comumente observado em nossa sociedade mesmo após passado mais de 70
anos de sua publicação.
Os estereótipos estão presentes não somente apenas para os indivíduos de cor
negra, mas para todos aqueles que apresentam características que fuja a identidade da
grande maioria da população. As diferenças se tornaram motivo ou pretexto para
estereotipar e diminuir os indivíduos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando como referencial o levantamento teórico que utilizamos para
relacionar a diversidade cultural com uma fábula infantil, é possível concluir que a
caracterização do negro tanto em uma obra publicada há mais de 80 anos quanto nos
dias atuais é bem semelhante. Através de seus estereótipos o negro é expresso como
inferior em uma sociedade branca que busca de qualquer maneira se manter superior.
No que se refere à educação, é de grande importância que a representatividade
do negro não seja mais somente aquela inferior ou que leve a pensamentos negativos
embasados em suas características físicas. As relações sociais entre as diversas culturas
e nossa sociedade devem se manter sempre em destaque, para que um grupo social não
seja menosprezado por uma parte que não entende muito menos reconhece que vivemos
e construímos nossas raízes em um país mestiço. Portanto devemos buscar romper esse
pensamento de superioridade para que seja posto em prática o respeito e entendimento à
diferença.
Uma educação democrática que inclua a diversidade cultural precisa ser aplicada
em nosso país e, para que isso aconteça é necessário o convívio diário com outras
culturas gerando respeito ao outro e diálogo com seus valores. Projetos e ideias
pedagógicas como espaços multiculturais são necessários, para que aja incentivo ao
respeito e aceitamento do outro.
Cada vez mais observa-se que o respeito à diferença do outro e o processo de
globalização andam um ao lado do outro, pois a propensão é de aumento da exclusão
dos que já estão à mercê de uma sociedade de desigualdades. A afirmação de sua
identidade, a valorização da diferença parte daqueles que são oprimidos, que buscam
apenas respeito e reconhecimento de sua cultura.
Reconhecer e assumir a pluralidade cultural da sociedade que fazemos parte
implica a existência de outros modos de vida tais como outras línguas, outras raças,
outros grupos sociais e outras religiões. O desrespeito perante outros indivíduos é um
erro, pois vivemos em uma sociedade híbrida. É de suma importância o respeito pelas
culturas diversas, precisamos compreender que não há um padrão de cultura dito como
o correto ou mais aceito
No que tange à relação entre raça e sociedade fica explicito através,
principalmente, da personagem Tia Nastácia conceitos bem delimitados sobre o negro
no sitio. Forma-se uma profunda ligação entre a raça negra e os que dependem dela com
sua mentalidade conservadora, onde atribuem sua amizade a troca de favores.
As características físicas e estereótipos dos indivíduos são usados para excluir,
para se diferenciar daquilo que não reconhecemos em nós mesmos, e que por isso
acreditamos que seja desagradável ou pior do que possuímos e somos. Infelizmente,
vemos constantemente o negro ser atribuído ao o que é feio ou ruim, basta pensarmos
nas expressões que cotidianamente utilizamos para enfatizar coisas que não deram certo
ou estão difíceis em nossas vidas.
Fazemos uso de expressões tais como: Dia negro, lista negra, mercado negro,
magia negra, fome negra, nuvem negra e passado negro, ou seja, tudo o que é negro é
relacionado ao o que é ruim, a coisas negativas e dessa forma vamos construindo
estereótipos que cada vez mais inferiorizam os negros que os submetem a serem
comparados com certas coisas que não são boas para nós.
Precisamos mudar nossas expressões para que as crianças de hoje não se tornem
adultos racistas e formadores de estereótipos que menosprezam parte de uma sociedade.
Na obra de Lobato o maior conflito racial ocorre entre as crianças, incluindo a boneca
Emília, e Tia Nastácia enquanto Dona Benta a reconhece como uma boa negra. Tia
Nastácia é reconhecida pelo restante da família como a negra de estimação, que tudo faz
para agradá-los e ainda é tratada com expressões racistas. O autor deixa bem aparente a
inferioridade da personagem negra comparada aos demais.
A representação do negro que Monteiro Lobato nos apresenta é se assemelha
muito ao que observamos no mundo hoje, principalmente por vivermos em uma
sociedade capitalista, onde Tia Nastácia é apresentada com profunda ignorância e
menosprezo, que tentava sobreviver como podia.
Assim, se configura cada vez mais a importância do entendimento e
reconhecimento das múltiplas culturas e respeito à diferença, pois é a partir daí que
fatores como raça, etnia e cultura se fundaram na formação da identidade de indivíduos
e grupos sociais, que merecem aceitação, sobretudo respeito buscando tolerância no
sentido de aceitar o outro independente de suas caraterísticas físicas ou sociais. Faz-se
necessário que entendamos que não existe uma única cultura ou raça detentora da
verdade sublime, mas sim, que a sociedade é formada por diferentes culturas, como num
mosaico, e que essa diversidade deve ser preservada.
Papel importante para que os grupos excluídos acreditem no seu potencial e em
sua importância enquanto indivíduos de uma mesma sociedade é a construção da
identidade através do reconhecimento da diferença. É na identidade que está a
experiência e significado de cada grupo ou individuo embasado em sua história,
práticas, crenças e em todas suas manifestações culturais. A identidade é capaz de unir
pessoas em nome de suas lutas e crenças comuns. Para que se tenha de fato a proteção
da diversidade cultural é imprescindível o respeito e valorização entre as culturas
diferenciadas. É direito de cada individuo ser tratado como sujeito e ter seus direitos
humanos respeitados e acima de tudo respeitar o direito dos outros.
Monteiro Lobato acusado ou não de ser um escritor racista não nos tira o prazer
de ler sua obra. Suas histórias demonstram personagens negros tratados com um viés
excludente, apenas exercendo sua função para os brancos, mas também nos mostra a
intensa relação de amizade e respeito entre grupos sociais, cada qual com sua diferença.
Sua obra se caracteriza como uma referência para que possamos entender a
representação do negro na literatura, principalmente, infantil brasileira.
Se tomássemos sua obra como um auxilio para o ensino das múltiplas culturas,
estaríamos levando o jogo da diferença e identidade às futuras gerações, e desta forma
seria possível que houvesse mais respeito e reconhecimento dos que estão sujeitos a
uma sociedade que em sua maioria os excluem.
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