View
15
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
CAMILOCASTELOBRANCO
AmordePERDIÇÃO
Sumário
Carta
Introdução
CapítuloI
CapítuloII
CapítuloIII
CapítuloIV
CapítuloV
CapítuloVI
CapítuloVII
CapítuloVIII
CapítuloIX
CapítuloX
CapítuloXI
CapítuloXII
CapítuloXIII
CapítuloXIV
CapítuloXV
CapítuloXVI
CapítuloXVII
CapítuloXVIII
CapítuloXIX
CapítuloXX
Conclusão
Momentohistórico
Momentoliterário
Créditos
AoIlustríssimoeExcelentíssimoSr.AntônioMariadeFontesPereiradeMeloDedicaoautorIlustríssimoeExcelentíssimoSr.Há de pensarmuita gente que vossa excelência não dá valor algum a este livro que aminha
gratidãolhededica.PorquemuitagenteestápersuadidaqueministrosdoEstadonãoleemnovelas.ÉumcolegadeVossaExcelênciaadiscorrernoparlamentoacercadecaminhosdeferro–comtantoengenhoofazia,detantasfloresmatizaraaquelamatéria,quemedeleitououvi-lo.Nanoitedessedia, encontrei o colega de vossa excelência a ler “Fanny”, aquela “Fanny” que sabia tanto decaminhosdeferrocomoeu.Quevossaexcelênciatemromancesnasuabibliotecaéconvicçãominha.Quelátemalgunsque
nãoleu,porqueotempolhefalece,eoutrosporquenãomerecemtempo,tambémocreio.Dêvossaexcelência,no lotedos segundos,um lugaraeste livro, e teráassimvossaexcelência significadoqueorecebeeaprecia,por levaremsionomedomaisagradecidoerespeitadorcriadodevossaexcelência.NacadeiadaRelaçãodoPorto,aos24desetembrode1861.CamiloCasteloBranco.
Introdução
FolheandooslivrosdeantigosassentamentosnocartóriodascadeiasdaRelaçãodoPorto,li,nodasentradasdospresosdesde1803a1805,afolhas232,oseguinte:SimãoAntônioBotelho,queassimdissechamar-se,sersolteiro,eestudantenaUniversidadede
Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade deViseu,idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa CaldeirãoCastelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestidocomjaquetadebaetãoazul,coletedefustãopintadoecalçadepanopedrês.Efizesteassento,queassinei—FilipeMoreiraDias.
Àmargemesquerdadesteassentoestáescrito:FoiparaaÍndiaem17demarçode1807.Nãoseriafiardemasiadamentenasensibilidadedoleitor,secuidoqueodegredodeummoçode
dezoitoanoslhehádefazerdó.Dezoitoanos!Oarreboldouradoeescarlatedamanhãdavida!Aslouçaniasdocoraçãoqueainda
nãosonhaem frutos,e todoseembalsamanoperfumedas flores!Dezoitoanos!Oamordaquela
idade!Apassagemdoseiodafamília,dosbraçosdamãe,dosbeijosdasirmãsparaascaríciasmaisdoces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor damesma sazão e dosmesmos aromas, e àmesmahoradavida!Dezoitoanos!...Edegredadodapátria,doamoredafamília!Nuncamaisocéude Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem umamigo!...Étriste!Oleitordecertosecompungiria;ealeitora,selhedissessememmenosdeumalinhaahistória
daquelesdezoitoanos,choraria!Amou,perdeu-se,emorreuamando.É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem-
formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divinamisericórdia?!Essa,aminha leitora,a carinhosaamigade todosos infelizes,nãochoraria se lhedissessemqueopobremoçoperderahonra,reabilitação,pátria,liberdade,irmãs,mãe,vida,tudo,poramordaprimeiramulherqueodespertoudoseudormirdeinocentesdesejos?!Chorava,chorava!Assimeulhesoubessedizerodolorososobressaltoquemecausaramaquelas
linhas,depropósitoprocuradas,e lidascomamarguraerespeitoe,aomesmotempo,ódio.Ódio,sim.Atempoverãoseéperdoáveloódio,ouseantesmenãoforamelhorabrirmãodesdejádeumahistóriaquemepodeacarearenojosdosfrios julgadoresdocoração,edassentençasqueeuaquilavrarcontraafalsavirtudedehomens,feitosbárbaros,emnomedasuahonra.
CapítuloI
Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos maisantigossolarengosdeVilaRealdeTrás-os-Montes,era,em1779, juizdeforadeCascais,enessemesmoanocasaracomumadamadopaço,D.RitaTeresaMargaridaPreciosadaVeigaCaldeirãoCasteloBranco,filhadeumcapitãodecavalos,netadeoutro,AntôniodeAzevedoCasteloBrancoPereiradaSilva,tãonotávelporsuajerarquia,comoporum,naqueletempo,preciosolivroacercadaArtedaGuerra.Dezanosdeenamorado,malsucedido,consumiraemLisboaobacharelprovinciano.Parafazer-se
amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho eraextremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhebensdefortuna:oshaveresdelenãoexcediamatrintamilcruzadosempropriedadesnoDouro.Osdotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjearaentre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de “brocas”, com que ainda hoje os seusdescendentesemVilaRealsãoconhecidos.Bemoumalderivado,oepíteto“Brocas”vemde“broa”.Entenderamosacadêmicosquearudezadoseucondiscípuloprocediademuitopãodemilhoqueeledigerianasuaterra.
DomingosBotelhodeviaterumavocaçãoqualquer,etinha:eraexcelenteflautista;foiaprimeiraflautadoseutempo;eatocarflautasesustentoudoisanosemCoimbra,duranteosquaisseupai
lhesuspendeuasmesadas,porqueosrendimentosdacasanãobastavamalivraroutrofilhodeumcrimedemorte.
Formara-seDomingosBotelho em1767, e fora a Lisboa ler noDesembargo do Paço, iniciaçãobanaldosqueaspiravamàcarreiradamagistratura.JáFernãoBotelho,paidobacharel,forabemaceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, natentativa regicida de 1758. O provinciano saiu dasmasmorras da Junqueira ilibado da infamantenódoa,eatébenquistodocondedeOeiras,porquetomarapartenaprovaqueestefizeradoprimorde sua genealogia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bonjardim do Porto: pleito ridículo, masestrondoso,movidopelarecusaqueofidalgoportuensefizeradesuafilhaaofilhodeSebastiãoJosédeCarvalho.Asartescomqueobacharelflautistavingouinsinuar-senaestimadeD.MariaIePedroIIInãoas
seieu.Étradiçãoqueohomemfaziarirarainhacomassuasfacécias,eporventuracomostrejeitosde que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o paço, erecebiadobolsinhodasoberanaumafartapensãocomaqualoaspiranteajuizdeforaseesqueceudesi,dofuturoedoministrodajustiça,que,muitorogado,fiaradassuasletrasoencargodejuizdeforadeCascais.Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como Luís de Camões ou
BernardimRibeiro;masnamorandonasuaprosaprovinciana,ecaptandoabenquerençadarainhaparaamolecerasdurezasdadama.Deviade ser,afinal, feliz “doutorbexiga” –queassimeranacorte conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e afelicidade.DomingosBotelhocasoucomD.RitaPreciosa.Ritaerauma formosura,queaindaaoscinquenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série deavoengos,unsbispos,outrosgenerais,eentreestesoquemorrerafrigidoemcaldeirãodenãoseique terra da mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente, mas de tal monta que osdescendentesdogeneralfritoseassinaramCaldeirões.Adamadopaçonãofoiditosacomomarido.Molestavam-nasaudadesdacorte,daspompasdas
câmaras reais, e dos amores de sua feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Estedesgostosoviver,porém,nãoempeceuquesereproduzissememdoisfilhosetrêsmeninas.OmaisvelhoeraManuel,osegundoSimão;dasmeninasumaeraMaria,asegundaAnaeaúltimatinhaonomedesuamãe,ealgunstraçosdabelezadela.
O juiz de fora deCascais, solicitando lugar demais graduado banco, demorava emLisboa, nafreguesiadaAjuda,em1784.NesteanoéquenasceuSimão,openúltimodosseusfilhos.Conseguiuele,semprebalanceadodafortuna,transferênciaparaVilaReal,suaambiçãosuprema.ÀdistânciadumaléguadeVilaRealestavaanobrezadavilaesperandooseuconterrâneo.Cada
famíliatinhaasualiteiracomobrasãodacasa.AdosCorreiasdeMesquitaeraamaisantiquadanofeitio,easlibrésdoscriadosasmaissurradasetraçadasquefiguravamnacomitiva.D.Rita,avistandoopréstitodas liteiras,ajustouaoolhodireitoasuagrande lunetadeouro,e
disse:—ÓMeneses,aquiloqueé?—Sãoosnossosamigoseparentesquevêmesperar-nos.—Emqueséculoestamosnósnestamontanha?—tornouadamadopaço.—Emqueséculo?!OséculotantoédezoitoaquicomoemLisboa.—Ah!Sim?Cuideiqueotempopararaaquinoséculodoze...Omaridoachouquedeviarir-sedochiste,queonãolisonjearagrandemente.FernãoBotelho,paidojuizdefora,saiuàfrentedopréstitoparadaramãoànora,queapeavada
liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olhoarmadoasfivelasdeaço,eabolsadorabicho.DiziaeladepoisqueosfidalgosdeVilaRealerammuitomenoslimposqueoscarvoeirosdeLisboa.Antesdeentrarnaavoengaliteiradeseumarido,perguntou,comamaisrefalsadaseriedade,senãohaveriariscoemirdentrodaquelaantiguidade.FernãoBotelhoasseverouasuanoraqueasualiteiranãotinhaaindacemanos,equeosmachosnãoexcediamatrinta.
Omodoaltivocomoelarecebeuascortesiasdanobreza—velhanobreza,queparaalivieraemtempodeD.Diniz,fundadordavila—fezqueomaisnovodopréstito,queaindaviviahaviadozeanos,medissesseamim:“SabíamosqueelaeradamadaSenhoraD.MariaI;porém,dasoberbacomquenostratouficamospensandoqueseriaelaaprópriarainha”.Repicaramossinosdaterraquandoa comitivaassomouàSenhoradeAlmudena.D.Ritadisseaomaridoquea recepçãodossinoseraamaisestrondosaebarata.ApearamàportadavelhacasadeFernãoBotelho.Aaiadopaçorelanceouosolhospelafachada
doedifício,edissedesiparasi:“ÉumabonitavivendaparaquemfoicriadaemMafraeSintra,naBempostaeQueluz”.Decorridosalgunsdias,D.Ritadisseaomaridoquetinhamedodeserdevoradapelasratazanas;
que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a desabar; que as paredes nãoresistiriamaoinverno;queospreceitosdeuniformidadeconjugalnãoobrigavamamorrerdefrioumaesposadelicadaeafeitaàsalmofadasdopaláciodosreis.DomingosBotelhoconformou-secomaestremecidaconsorte,ecomeçouafábricadumpalacete.Escassamentelhechegavamosrecursospara os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. Asvarandasdasjanelasforamaúltimadádivaquearealviúvafezàsuadama.Quer-nosparecerqueadádivaéumtestemunho,atéagorainédito,dademênciadaSenhoraD.MariaI.DomingosBotelhomandaraesculpiremLisboaapedradearmas;D.Rita,porém,teimaraqueno
escudoseesquartejassemtambémassuas;maseratarde,porquejáaobratinhavindodoescultor,eomagistradonãopodiacomsegundadespesa,nemqueriadesgostar seupai, orgulhosode seubrasão.ResultoudaquificaracasasemarmaseD.Ritavitoriosa.O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da
província,ouanteshouveporbemlevantá-losatéela.D.Ritatinhaumacortedeprimos,unsquesecontentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso nãoousava fitá-laderosto,quandoelaoremiravacoma luneta,em jeitodetantaaltivezezombaria,quenãoseráestranhafiguradizerquealunetadeRitaPreciosaeraamaisvigilantesentineladasuavirtude.DomingosBotelhodesconfiavadaeficáciadosmerecimentosprópriosparacabalmenteenchero
coraçãodesuamulher.Inquietava-oociúme;massufocavaossuspiros,receandoqueRitasedessepor injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frigido no caldeirãosarracenoriadosprimos,que,poramordela,eriçavameempoavamascabeleirascomdesgraciosoesmero, e cavaleavamestrepitosamentena calçadaos seusginetes, fingindoqueospicadoresdaprovíncianãodesconheciamasgraçashípicasdomarquêsdeMarialva.Nãoocuidavaassim,porém,ojuizdefora.Ointriguistaquelhetraziaoespíritoemânsiaserao
seuespelho.Via-sesinceramente feio,econheciaRitacadavezmaisemflor,emaisenfadadanotrato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposodisformeeaesposalinda,lheocorria.Umsólhemortificavaamemória,eesse,conquantofossedafábula,era-lheavesso,evinhaaserocasamentodeVênuseVulcano.Lembravam-lheasredesqueoferreiro coxo fabricava para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquelemarido.Entresi,diziaeleque,erguidoovéudaperfídia,nemsequeixariaaJúpiter,nemarmariaratoeirasaosprimos.ApardobacamartedeLuísBotelho,quevararaemterraoalferes,estavaumafileira debacamartes emque o juiz de fora era entendido commuito superior inteligência à querevelavanacompreensãodoDigestoedasOrdenaçõesdoReino.Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus
amigosnatransferência,econseguiumaisdoqueambicionava:foinomeadoprovedorparaLamego.Rita Preciosa deixou saudades em Vila Real, e duradouramemória da sua soberba, formosura egraçadeespírito.Omarido tambémdeixouanedotasqueaindaagora se repetem.Duas contareisomenteparanãoenfadar.Aconteceraum lavradormandar-lheopresentedumavitela,emandarcomelaavaca,parasenãodesgarrarafilha.DomingosBotelhomandourecolheràlojaavitelaeavaca,dizendoquequemdavaa filhadavaamãe.Outravez,deu-seo casode lhemandaremumpresente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, emandouguardarasalva,dizendoquereceberiacomoescárnioumpresentededoces,quevaliamdezpatacões,sendoquenaturalmenteospastéistinhamvindocomoornatodabandeja.Eassiméque, aindahoje, emVilaReal, quando sedáumcaso análogode ficar alguémcomo conteúdo econtinente,dizagentedaterra:“AqueleécomoodoutorBrocas”.Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me emmiudezas da vida do provedor em
Lamego.EscassamenteseiqueD.Ritaaborreciaacomarca,eameaçavaomaridode ircomseuscinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra. Parece que a fidalguia deLamego,emtodootempoorgulhosadeumaantiguidadequeprincipianaaclamaçãodeAlmacave,desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dosBotelhosCorreiasdeMesquita,desprimorando-lheassãscomofatodeeletervividodoisanosemCoimbratocandoflauta.Em1801,achamosDomingosJoséCorreiaBotelhodeMesquitacorregedoremViseu.
Manuel,omaisvelhodeseusfilhos, temvinteedoisanos,e frequentaosegundoano jurídico.Simão,quetemquinze,estudahumanidadesemCoimbra.Asmeninassãooprazereavidatodadocoraçãodesuamãe.Ofilhomaisvelhoescreveuaseupaiqueixando-sedenãopodervivercomseuirmão,temeroso
dogêniosanguináriodele.Contaqueacadapassosevêameaçadonavida,porqueSimãoempregaempistolasodinheirodoslivros,convivecomosmaisfamososperturbadoresdaacademia,ecorredenoiteasruasinsultandooshabitanteseprovocando-osàlutacomassuadas.OcorregedoradmiraabravuradeseufilhoSimão,edizàconsternadamãequeorapazéafiguraeogêniodeseubisavôPauloBotelhoCorreia,omaisvalentefidalgoquederaTrás-os-Montes.
Manuel,cadavezmaisaterradodasarremetidasdeSimão,saideCoimbraantesdefériasevaiaViseuqueixar-seepedirquelhedêseupaioutrodestino.D.Ritaquerqueseufilhosejacadetedecavalaria.DeViseuparteparaBragançaManuelBotelho,e justifica-senobredosquatrocostadosparasercadete.Noentanto,SimãorecolheaViseucomosseusexamesfeitoseaprovados.Opaimaravilhava-se
dotalentodofilho,edesculpa-odaextravagânciaporamordotalento.Pede-lheexplicaçõesdoseumauvivercomManuel,eelerespondequeseuirmãooquerforçaravivermonasticamente.OsquinzeanosdeSimão têmaparênciasde vinte.É fortede compleição;belohomemcomas
feiçõesdesuamãe,eacorpulênciadela;masdetodoavessoemgênio.NaplebedeViseuéqueeleescolheamigosecompanheiros.SeD.Ritalhecensuraaindignaeleiçãoquefaz,Simãozombadasgenealogias, emormente do general Caldeirão quemorreu frito. Isto bastou para ele granjear amalquerençadesuamãe.Ocorregedorviaascoisaspelosolhosdesuamulher,etomoupartenodesgostodelaenaaversãoaofilho.As irmãstemiam-no, tiranteRita,amaisnova,comquemelebrincava puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe pedia, commeiguices de criança, que nãoandassecompessoasmecânicas.Finalizavamasférias,quandoocorregedorteveumgravedissabor.Umdosseuscriadostinhaido
levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas queestavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado;espancaram-no.Simãopassavanesseensejo;e,armadodeumfueiroquedescravoudeumcarro,partiumuitascabeças,erematouotrágicoespetáculopela farsadequebrartodososcântaros.Opovoléuintactofugiraespavorido,queninguémseatreviaaofilhodocorregedor;osferidos,porém,incorporaram-seeforamclamarjustiçaàportadomagistrado.Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava aomeirinho-geral que o prendesse à sua
ordem.D.Rita,nãomenosirritada,masirritadacomomãe,mandou,porportastravessas,dinheiroaofilhoparaque,semdetença,fugisseparaCoimbra,eesperasseláoperdãodopai.O corregedor, quando soubeo expedientede suamulher, fingiu-se zangadoeprometeu fazê-lo
capturaremCoimbra.Como,porém,D.Ritalhechamassebrutalnassuasvingançaseestúpidojuizdeumarapaziada,omagistradodesenrugouaseveridadepostiçadatesta,econfessoutacitamentequeerabrutaleestúpidojuiz.
CapítuloII
SimãoBotelholevoudeViseuparaCoimbraarrogantesconvicçõesdasuavalentia.Serecordavaoschibantespormenoresdaderrotaemquepuseratrintaaguadeiros,osomcavodaspancadas,aquedaatordoadadeste,olevantar-sedaquele,ensanguentado,abordoadaqueabrangiatrêsaumtempo,aqueafocinhavadois,agritariadetodos,eoestrépitodoscântarosafinal,Simãodeliciava-se nestas lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhasrelembraoslourosdecadauma,eesmorece,afinal,estafadodeespantar,quandonãoédeestafar,osouvintes.
Oacadêmico,porém,comosseusentusiasmos,eraincomparavelmentemuitomaisprejudicialeperigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, enaquele tempoa academiadava azo a elas.Amocidade estudiosa, emgrandeparte, simpatizavacomasbalbuciantesteoriasdaliberdade,maisporpressentimento,queporestudo.OsapóstolosdaRevolução Francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto domundo;masoslivrosdosenciclopedistas,asfontesondeageraçãoseguintebeberaapeçonhaquesaiunosanguedenoventaetrês,nãoeramdetodoignorados.AsdoutrinasdaregeneraçãosocialpelaguilhotinatinhamalgunstímidossectáriosemPortugal,eessesdeveréquedeviampertencerà geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classesmanufatureiras, eodesprender-sedo jugoaviltadordeestranhos, apertado,desdeoprincípiodoséculo anterior, comas sogasde ruinosos e pérfidos tratados, estavano ânimodemuitos e bonsportuguesesquesequeriamantesaliançadoscomaFrança.Esteseramospensadoresreflexivos;ossectáriosdaacademia,porém,exprimiammaisapaixãodanovidadequeasdoutrinasdoraciocínio.
Noanoanteriorde1800,saíraAntôniodeAraújodeAzevedo,depoiscondedaBarca,anegociarem Madri e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potências aliadas às propostas,tendo-lheemcontadenadaosdezesseismilhõesqueodiplomataofereciaaoprimeirocônsul.Semdelongas,foioterritórioportuguêsinfestadopelosexércitosdeEspanhaeFrança.Asnossastropas,comandadaspeloduquedeLafões,nãochegaramatravaralutadesigual,porqueaessetempoLuísPinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominiosa paz em Badajoz, comcedência deOlivença àEspanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de algunsmilhõesàFrança.
EstessucessostinhamirritadocontraNapoleãoosânimosdaquelesqueodiavamoaventureiro,epara outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os destaparcialidade,naconvulsivaeirrequietaacademia,eravotodegrandemontaSimãoBotelho,apesardos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outrosalgozesemártiresdograndeaçougue,eramnomesdesoadamusicalaosouvidosdeSimão.Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara dodifamador.OfilhodocorregedordeViseudefendiaquePortugaldeviaregenerar-senumbatismodesangue,paraqueahidradostiranosnãoerguessemaisumadassuasmilcabeçassobaclavadoHérculespopular.
Estesdiscursos,arremedodealgumaclandestinaobjurgatóriadeSaint-Just,afugentavamdasuacomunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais racionais princípios de liberdade.SimãoBotelhotornou-seodiosoaoscondiscípulos,que,parasesalvarempelainfâmia,odelataramaobispo-condeeaoreitordaUniversidade.
Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que lherestaram fiéis,unspormedo,outrosporanalogiadebossas.Odiscurso ianomaisacrisoladodaideiaregicida,quandoumaescoltadeverdeaislheaguouaescandescência.Quisooradorresistir,aperrandoaspistolas,masdesobrasabiamosbraçosmusculososdacortedoreitorcomquemashaviam. O jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcereacadêmico,dondesaiuseismesesdepois,agrandesinstânciasdosamigosdeseupaiedosparentesdeD.RitaPreciosa.
Perdidooanoletivo,foiparaViseuSimão.Ocorregedorrepeliu-odasuapresençacomameaçasde o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração, intercedeu pelo filho econseguiusentá-loàmesacomum.
Noespaçodetrêsmesesfez-semaravilhosamudançanoscostumesdeSimão.Ascompanhiasdaralédesprezou-as.Saíadecasararasvezes,ousó,oucomairmãmaisnova,suapredileta.Ocampo,as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estiodemorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o arcismadoreorecolhimentoqueosequestravadavidavulgar.Emcasaencerrava-senoseuquarto,esaíaquandoochamavamparaamesa.
D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela ao fim de cinco meses,consentiuqueseufilholhedirigisseapalavra.
SimãoBotelhoamava.Aíestáumapalavraúnica,explicandooquepareciaabsurdareformaaos
dezesseteanos.AmavaSimãoumasuavizinha,meninadequinzeanos,ricaherdeira,regularmentebonitaebem-
nascida.Dajaneladoseuquartoéqueeleavirapelaprimeiravez,paraamá-lasempre.Nãoficaraelaincólumedaferidaquefizeranocoraçãodovizinho:amou-otambém,ecommaisseriedadequeausualnosseusanos.
Ospoetas cansam-nosapaciência a falaremdoamordamulher aosquinzeanos, comopaixãoperigosa,únicaeinflexível.Algunsprosadoresderomancesdizemomesmo.Enganam-seambos.Oamordosquinzeanoséumabrincadeira;éaúltimamanifestaçãodoamoràsbonecas;éatentativadaavezinhaqueensaiaovooforadoninho,semprecomosolhosfitosnaave-mãe,queaestádefrontepróximachamando:tantosabeaprimeiraoqueéamarmuito,comoasegundaoqueévoarparalonge.
TeresadeAlbuquerquedeviaser,porventura,umaexceçãonoseuamor.
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios, em queDomingosBotelholhedeusentençascontra.Aforaisso,aindanoanoanteriordoiscriadosdeTadeudeAlbuquerquetinhamsidoferidosnacelebradapancadariadafonte.É,pois,evidentequeoamordeTeresa,declinandodesiodeverdeobtemperaresacrificar-seaojustoazedumedeseupai,eraverdadeiroeforte.
Eesteamorerasingularmentediscretoecauteloso.Viram-seefalaram-setrêsmeses,semdaremrebateàvizinhançaenemsequersuspeitasàsduasfamílias.Odestinoqueambosseprometiamerao mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela
esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grandepatrimônio.EspantadiscriçãotamanhanaíndoledeSimãoBotelho,enapresumívelignorânciadeTeresaemcoisasmateriaisdavida,comosãoumpatrimônio!
NavésperadasuaidaparaCoimbra,estavaSimãoBotelhodespedindo-sedasuspirosamenina,quandosubitamenteelafoiarrancadadajanela.Oalucinadomoçoouviugemidosdaquelavozque,ummomentoantes, soluçavacomovidapor lágrimasde saudade.Ferveu-lheo sanguenacabeça;contorceu-senoseuquartocomootigrecontraasgradesinflexíveisdajaula.Tevetentaçõesdesematar,naimpotênciadesocorrê-la.Asrestanteshorasdaquelanoitepassou-asemraivaseprojetosdevingança.Comoamanheceresfriou-lheosangue,erenasceuaesperançacomoscálculos.
QuandoochamaramparapartirparaCoimbra, lançou-sedo leitodetalmododesfigurado,quesua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de irenquanto assim estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir paraCoimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamentediscorreraele;queasuademoraagravariaasituaçãodeTeresa.
Desceraoacadêmicoaopátio,depoisdeabraçaramãeeas irmãs,ebeijaramãodopai,quepara esta hora reservara uma admoestação severa, a ponto de lhe asseverar que de todo oabandonariaseelecaísseemnovasextravagâncias.Quandometiaopénoestribo,viuaseu ladoumavelhamendiga,estendendo-lheamãoabertacomoquempedeesmola,e,napalmadamão,umpequenopapel.Sobressaltou-seomoço;e,apoucospassosdistantedesuacasa,leuestaslinhas:
Meupaidizquemevaiencerrarnumconventoportuacausa.Sofrereitudoporamordeti.Não
meesqueçastu,eachar-me-ásnoconvento,ounocéu,sempretuadocoração,esempreleal.ParteparaCoimbra.Láirãodarasminhascartas;enaprimeiratedireiemquenomehásderesponderàtuapobreTeresa.
Amudançadoestudantemaravilhouaacademia.Seonãoviamnasaulas,empartenenhumao
viam.Dasantigasrelaçõesrestavam-lheapenasasdoscondiscípulossensatosqueoaconselhavamparabem,eovisitaramnocárceredeseismeses,dando-lhealentoserecursos,queseupailhenãodava,esuamãeescassamentesupria.Estudavacomfervor,comoquemjádaliformavaasbasesdofuturorenomeedaposiçãoporelemerecida,bastanteasustentardignamenteaesposa.Aninguémconfiava o seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que folgava oespíritodatarefadaciência.Aapaixonadameninaescrevia-lheamiúdo,ejádiziaqueaameaçadoconventoforameroterrordequejánãotinhamedo,porqueseupainãopodiaviversemela.
Istoafervorou-lheparamaisoamoraoestudo.Simão,chamadoempontosdifíceisdasmatériasdoprimeiroano, tal contadeudesi,queos lenteseoscondiscípulosohouveramcomoprimeiropremiado.
A este tempo, Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto, licenciou-se paraestudar naUniversidade asmatemáticas. Animou-o a notícia do reviramento que se dera em seuirmão. Foi viver com ele; achou-o quieto, mas alheado numa ideia que o tornava misantropo eintratável noutro gênero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da separação um desgraçadoamordeManuelBotelhoaumaaçorianacasadacomumacadêmico.Aesposaapaixonadaperdeu-senasilusõesdocegoamante.DeixouomaridoefugiucomeleparaLisboa,edaíparaEspanha.Emoutrorelançodestanarrativadareicontadorematedesteepisódio.
Nomêsdefevereirode1803recebeuSimãoBotelhoumacartadeTeresa.NoseguintecapítulosedizminuciosamenteaperipéciaqueforçaraafilhadeTadeudeAlbuquerqueaescreveraquelacartadepungentíssimasurpresaparaoacadêmico,convertidoaosdeveres,àhonra,àsociedadeeaDeuspeloamor.
CapítuloIII
OpaideTeresanãoembicarianaimpurezadosanguedocorregedor,seoajustarem-seosdoisfilhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistradomofavadorancordoseuvizinho,eovizinhomalsinavadevenalidadeareputaçãodomagistrado.Estesabiadainjuriosavingançaemqueooutroseiadespicando;fingia-seinvulnerávelàdetração;masdediaparadiaselheazedavaabílis;eédecrerque,seonãocontivessemconsideraçõesdafamília, sofreriamenos, desabafandopela bocadumbacamarte, armadapredileçãodosBotelhosCorreiasdeMesquita.Seriaimpossíveloreconciliarem-se.Rita,afilhamaisnova,estavaumdianajaneladoquartodeSimão,eviuavizinharentecomos
vidros e a testa apoiada nasmãos. Sabia Teresa que era aquelamenina amais querida irmã deSimão, e a que mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial indiferença, erespondeu ao reparo deRita, fazendo-lhe comamãoumgesto e sorrindo.A filha do corregedorsorriutambém,masfugiulogodajanela,porquesuamãetinhaproibidoàsfilhasdetrocaremvistascompessoadaquelacasa.
No dia seguinte, àmesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de amizade,tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando.Sorriram-secomresguardo,afastando-seaumpoucodopeitorildasjanelas;eassim,ambasdepé,nointeriordosquartos,seestavamcontemplando.Comoaruaeraestreita,podiamouvir-se,falando
baixo.Teresa,maispelomovimentodoslábiosqueporpalavras,perguntouaRitaseerasuaamiga.A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidosinstantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas,ousaramdemorar-seempalestrasameiavoz.Teresa falavadeSimão, contavaàmeninadeonzeanos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser ainda sua irmã, recomendando-lhemuitoquenãodissessenadaàsuafamília.Numadessasconversações,Ritadescuidara-se,elevantoudemodoavozquefoiouvidadeuma
irmã,queafoilogoacusaraopai.OcorregedorchamouRita,eforçou-apeloterroracontartudoque ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que vieraespavoridadosgritos,correuaoquartodeSimão,eviuaindaTeresaàjanela.—Olé!—disseeleàpálidamenina.—Nãotenhaaconfiançadepôrolhosempessoademinha
casa.Sequercasar,casecomumsapateiro,queéumdignogenrodeseupai.Teresa não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Porém,
comoodesabridoministroficassebramindonoquarto,eTadeudeAlbuquerquesaísseaumajanela,acóleradodoutor redobrou,ea torrentedas injúrias, longo tempo represada,bateuno rostodovizinho,quenãoousoureplicar-lhe.Tadeu interrogousua filha,eacreditouque foicausaàsanhadeDomingosBotelhoestaremas
duasmeninaspraticandoinocentemente,portrejeitos,emcoisasdesuaidade.DesculpouovelhoacriancicedeTeresa,admoestando-aquenãovoltasseàquelajanela.
Estamansidãodofidalgo,cujonaturalerabravio, temasuaexplicaçãonoprojetodecasarembreveafilhacomseuprimoBaltasarCoutinho,deCastroDaire,senhordecasa,eigualmentenobreda mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que abranduraseriaomaisseguroexpedienteparalevarafilhaaoesquecimentodaquelepuerilamoraSimão.Eramáximasuaqueoamor,aosquinzeanos,carecedeconsistênciaparasobreviveraumaausênciadeseismeses.Nãopensavaerradoofidalgo,masoerroexistia.Asexceçõestêmsidooludíbriodosmaisassisadospensadores,tantonoespeculativocomonoexperimental.NãoeramuitoqueTadeudeAlbuquerquefosseenganadoemcoisasdeamorecoraçãodemulher,cujasvariantessãotantasetãocaprichosas,queeunãoseisealgumamáximapodeser-nosguia,anãoseresta:“Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão dedesmentirumasàsoutras”.Istoéomaisseguro;masnãoéinfalível.AíestáTeresaquepareceserúnicaemsi.Dir-se-áqueastrêsdaconta,quedizasentença,nãopodemcoexistircomaquartaaosquinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda emcausa independentedocoração:éporqueTeresanãovaià sociedade,não temumaltaremcadanoitenasala,nãoprovouoincensodoutrosgalãs,nemteveaindaumahoradecompararaimagem
amada, desluzidapela ausência, coma imagemamante, amornos olhosque a fitam, e amornaspalavrasqueaconvencemdequeháumcoraçãoparacadahomem,eumasómocidadeparacadamulher.QuemmedizamimqueTeresateriaemsiasquatromulheresdamáxima,seovapordequatroincensórioslheestonteasseoespírito?Nãoéfácil,nemprecisodecidir.Evamosaoconto.AcercadeSimãoBotelho,nuncadiantedesuafilhaTadeudeAlbuquerqueproferiupalavra,nem
antesnemdepoisdodisparatedocorregedor.OqueelefezlogofoichamaraViseuosobrinhodeCastro Daire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse comoconvinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspiciosofuturoaocasamento.PorpartedeBaltasarCoutinhoapaixãoinflamou-setãodepressa,quantoocoraçãodeTeresase
congeloudeterrorerepugnância.OmorgadodeCastroDaire,atribuindoafriezadesuaprimaamodéstia,inocênciaeacanhamento,lisonjeou-sedovirginalmelindredaquelaalma,esaboreoudeantemãooprazerdeumalenta,masseguraconquista.VerdadeéqueBaltasarnuncaseexplicarademodo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se oditosonoivoafalarassimàmelancólicamenina:—Étempodelheabriromeucoração,prima.Estábem-dispostaaouvir-me?—Euestousemprebem-dispostaaouvi-lo,primoBaltasar.Odesdémaborrecidodestarespostaabaloualgumtantoasconvicçõesdofidalgo,comrespeitoà
inocência,modéstiaeacanhamentodesuaprima.Aindaassim,quiselenomomentopersuadir-sequeaboavontadenãopoderiaexprimir-sedoutromodo,econtinuou:—Osnossoscoraçõespensoeuqueestãounidos;agoraéprecisoqueasnossascasasseunam.Teresaempalideceu,ebaixouosolhos.— Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! — prosseguiu Baltasar, rebatido pela
desfiguraçãodeTeresa.—Disse-meoqueéimpossívelfazer-se—respondeuelasemturvação.—Oprimoengana-se:os
nossoscoraçõesnãoestãounidos.Soumuitosuaamiga,masnuncapenseiemsersuaesposa,nemmelembrouqueoprimopensasseemtal.—Querdizerquemeaborrece,primaTeresa?—atalhou,corrido,omorgado.—Não, senhor: já lhedissequeoestimavamuito,epor issomesmonãodevoseresposadum
amigoaquemnãopossoamar.Ainfelicidadenãoseriasóminha...—Muitobem...Possoeusaber—tornoucomrefalsadosorrisooprimo—queméquemedisputa
ocoraçãodeminhaprima?
—Quelucraemosaber?—Lucrosaber,pelomenos,queaminhaprimaamaoutrohomem...Éexato?—É.—Ecomtamanhapaixãoquedesobedeceaseupai?—Nãodesobedeço:ocoraçãoémaisfortequeasubmissavontadedumafilha.Desobedeceria,se
casasse contra a vontade demeu pai;mas eu não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lheunicamentequeamava.— Sabe a prima que eu estou espantado do seumodo de falar!... Quem pensaria que os seus
dezesseisanosestavamtãoabundantesdepalavras!...— Não são só palavras, primo — retorquiu Teresa com gravidade —, são sentimentos que
merecemasuaestima,porseremverdadeiros.Seeu lhementisse, ficariamaisbem-vistademeuprimo?—Não,primaTeresa; fezbememdizeraverdade,edeadizeremtudo.Oraolhe:nãoduvida
declararqueméoditosomortaldasuapreferência?—Quelhefazsaberisso?—Muito,prima:todostemosanossavaidade,eeufolgariamuitodemevervencidoporquem
tivessemerecimentosqueeunãotenhoaosseusolhos.Temabondadedemedizeroseusegredo,comoodiriaaseuprimoBaltasar,seotivesseemcontadeseuamigoíntimo?—Nessacontaéqueeuonãopossojáter...—respondeuTeresa,sorrindoepausando,comoele,
assílabasdaspalavras.—Poisnemparaamigomequer?!
—Oprimonãomeperdoaasinceridadequeeutive,eserádehojeemdiantemeuinimigo.— Pelo contrário... — tornou ele com mal rebuçada ironia — muito pelo contrário... Eu lhe
provareiquesouseuamigo,sealgumavezavircasadacomalgummiserávelindignodesi.—Casada!...—interrompeuela.MasBaltasarcortou-lhelogoaréplicadestemodo:—Casadacomalgumfamosoébriooujogadordepau,valentãodeaguadeiros,distintocavalheiro,
quepassaosanosletivosencarceradosnascadeiasdeCoimbra...Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente, lhe
comunicaraacriancicedaprima,talvezantesdedestinar-lheaesposa.OuviraTeresaotomsarcásticodaquelaspalavras,eerguera-serespondendocomaltivez:—Nãotemmaisquemediga,primoBaltasar?—Tenho, prima; queira sentar-se algum tempomais.Não cuide agora que está falando como
namoradoinfeliz:convença-sedequefalacomoseumaispróximoparente,maissinceroamigo,emais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia queminha prima, contra a expressavontadedeseupai,umaououtravezconversavadajanelacomofilhodocorregedor.Nãodeivaloraosucesso,etomei-ocomobrincadeiraprópriadasuaidade.ComoeufrequentasseomeuúltimoanoemCoimbra,hádoisanos,conhecidesobraSimãoBotelho.Quandovoltei,emecontaramasuaafeição ao acadêmico, pasmei da boa-fé da priminha; depois entendi que a suamesma inocênciadeviaseroseuanjodaguarda.Agora,comoseuamigo,compunjo-medeaveraindafascinadapelaperversidade do seu vizinho. Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfimavilanagem desta terra?!Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor defeiras?Nãolheconstouqueele,emCoimbra,abarrotadodevinho,andavapelasruasarmadocomoumsalteadordeestradas,proclamandoà canalhaaguerraaosnobreseaos reis, e à religiãodenossospais?Aprimaignorariaistoporventura?—Ignoravapartedissoenãomeafligeosabê-lo.DesdequeconheciSimão,nãomeconstaque
eletenhadadoomenordesgostoàsuafamília,nemouçofalarmaldele.—EestáporissopersuadidadequeSimãodeveaoseuamorareformadecostume?—Nãosei,nempensonisso—replicoucomenfadoTeresa.—Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer asminhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver,
trabalharporsalvá-ladasgarrasdeSimãoBotelho.Seseupai lhe faltar, ficoeu.Seas leisanãodefenderemdosataquesdoseudemônio,eufareiveraovalentãoqueavitóriasobreosaguadeirosnão o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu deAlbuquerque.—Entãooprimoquermegovernar!?—atalhouelacomdesabridairritação.—Quero-adirigirenquantoasuarazãoprecisardeauxílio.Tenhajuízoeeusereiindiferenteao
seudestino.Nãoaenfadomais,primaTeresa.BaltasarCoutinhofoidaliprocurarseutio,econtou-lheoessencialdodiálogo.Tadeu,atônitoda
coragem da filha e ferido no coração e nos direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto aespancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicariamuito a crise, sendocoisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois,chamousuafilha,mandou-asentaraopédesi,emtermosserenosegestobem-composto,lhedissequeerasuavontadecasá-lacomoprimo;porém,queelejásabiaqueavontadedesuafilhanãoeraessa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés opundonordeseupai, sedessedecoraçãoao filhodoseumaior inimigo.Dissemaisqueestavaaresvalar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele jáconsiderava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e aesperarqueseupaimorresse,paradepoisserdesgraçadaàsuavontade.Teresarespondeu,chorando,queentrarianumconvento,seessaeraavontadedeseupai;porém,
quesenãoprivasseeledeateremsuacompanhianemaprivasseaeladosseusafetos,pormedodequesuafilhapraticassealgumaaçãoindigna,oulhedesobedecessenoqueeravirtudeobedecer.Prometeu-lhejulgar-semortaparatodososhomens,menosparaseupai.Tadeuouviu-a,enãolhereplicou.
CapítuloIV
OcoraçãodeTeresaestavamentindo.Vãopedirsinceridadeaocoração!Parafinosentendedores,odiálogodoanteriorcapítulodefiniuafilhadeTadeudeAlbuquerque.É
mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgaresapreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes ecaprichosasvontadesdeseupai.Dizboagentequenão,eeuabundosemprenovotodagenteboa.Nãoseráaleiveatribuir-lheumapoucadeastúcia,ouhipocrisia,sequiserem;perspicáciaseriamaiscorretodizer.Teresaadivinhaquealealdadetropeçaacadapassonaestradarealdavida,equeosmelhoresfinsseatingemporatalhosondenãocabemafranquezaeasinceridade.EstesardissãorarosnaidadeinexpertadeTeresa;masamulherdoromancequasenuncaétrivial,eestadequerezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, acelebridadequeelaveioaganharàcontadadesgraça.DacartaqueelaescreveuaSimãoBotelho,contandoascenasdescritas,acríticadeduzquea
meninadeViseucontemporizavacomopai,pondoamirano futuro,sempassarpelodissabordoconvento,nemrompercomovelhoemmanifestadesobediência.NanarrativaquefezaoacadêmicoomitiuelaasameaçasdoprimoBaltasar,cláusulaque,asertransmitida,arrebatariadeCoimbraomoço,emquemsobejavambriosebravuraparamantê-los.MasnãoéestaaindaacartaquesurpreendeuSimãoBotelho.
PareciabonançosoocéudeTeresa.Seupainãofalavaemclaustronememcasamento.BaltasarCoutinhovoltaraaoseusolardeCastroDaire.Atranquilameninadavasemanalmenteestasboasnovas a Simão, que, aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudavaincessantemente,edesvelavaasnoitesarquitetandooseuedifíciodefuturaglória.Ao romper d’alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai à
primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho naantecâmaraarecebê-lacommuitoagrado,perguntando-lheseelaseerguiadebonshumoresparadaraoautordeseusdiasumrestodevelhicefeliz.OsilênciodeTeresaerainterrogador.— Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes
cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua
felicidadeédaquelasqueprecisam ser impostaspela violência.Mas repara,minhaquerida filha,queaviolênciadumpaiésempreamor.Amortemsidoaminhacondescendênciaebranduraparacontigo.Outroteriasubjugadoatuadesobediênciacommaustratos,comosrigoresdoconvento,etalvezcomodesfalquedoteugrandepatrimônio.Eu,não.Espereiqueotempoteaclarasseojuízo,e felicito-me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teuinocentecoração.Nãoteconsulteioutravezsobreestecasamento,portemerqueareflexãofizessemalaozelodeboafilhacomquetuvaisabraçarteupai,eagradecer-lheaprudênciacomqueelerespeitouoteugênio,velandosempreahonradeteencontrardignadoseuamor.Teresa não desfitou os olhos do pai;mas tão abstraída estava, que escassamente lhe ouviu as
primeiraspalavras,enadadasúltimas.—Nãomerespondes,Teresa?!—tornouTadeu,tomando-lhecariciosamenteasmãos.—Queheideeuresponder-lhe,meupai?—balbuciouela.—Dá-meoquetepeço?Enchesdecontentamentoospoucosdiasquemerestam?—Eseráopaifelizcomomeusacrifício?—Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua
alma.Teuprimoéumcompostodetodasasvirtudes;nemaqualidadedeserumgentilmoçolhefalta,comoseariqueza,aciênciaeasvirtudesnãobastassemaformarummaridoexcelente.—Eelequer-medepoisdeeumeternegado?—disseelacomamargurairônica.—Seeleestáapaixonado,filha!...etembastanteconfiançaemsiparacrerquetuhásdeamá-lo
muito!...—Enãoserámaiscertoodiá-loeusempre?!Euagoramesmooabominocomonuncapenseique
sepudesseabominar!Meupai...—continuouela,chorando,comasmãoserguidas—mate-me;masnãomeforceacasarcommeuprimo!Éescusadaaviolência,porqueeunãocaso!Tadeumudoudeaspecto,edisseirado:—Hásdecasar!Queroquecases!Quero!...Quandonão,amaldiçoadaserásparasempre,Teresa!
Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr pé nasalcatifasdemeusavós.Seésumaalmavil,nãomepertences,nãoésminhafilha,nãopodesherdarapelidoshonrosos,que forampelaprimeiravez insultadospelopaidessemiserávelque tuamas!Malditasejas!Entranessequarto,eesperaquedaí tearranquemparaoutro,ondenãoverásumraiodeSol.Teresaergueu-sesemlágrimas,eentrouserenamentenoseuquarto.TadeudeAlbuquerquefoi
encontrarseusobrinho,edisse-lhe:—Nãotepossodarminhafilha,porque jánãotenhofilha.Amiserável,aquemdeiestenome,
perdeu-separanóseparaela.Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas uma quebra; a
absolutacarênciadebrios.Malogradaatentativadoseuamordeemboscada,tornouparaaterraoprimodeTeresa,dizendoaovelhoqueeleo livrariadoassédioemqueSimãoBotelholhetinhaocoraçãoda filha.Nãoaprovouareclusãonoconvento,discorrendosobreashipóteses infamantesqueaopiniãopúblicainventaria.Aconselhouqueadeixasseestaremcasa,eesperassequeofilhodocorregedorviessedeCoimbra.Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação
inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu dosucedido;nemasameaçasdeBaltasarpordelicadezasuprimiu.Rematavacomunicando-lheassuassuspeitasdealgumplanodeviolência.Oacadêmico,chegandoaoperíododasameaças,jánãotinhaclaraluznosolhosparadecifraro
restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais arfavam-lhe intumescidas. Não erasobressalto do coração apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali aCastroDaireeapunhalaroprimodeTeresanasuaprópriacasa, foioprimeiroconselhoque lhesegredouafúriadoódio.Nestepropósitosaiu,alugoucavalo,erecolheuavestir-sedejornada.Jápreparado,acadaminutodeesperaassomava-seemfrenesis.Ocavalodemorou-semeiahora,eoseubomanjo,nesteespaço,vestidocomasgalascomqueelevestianaimaginaçãoTeresa,deu-lherebates de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava nafelicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho e da honra.Contemplouosseuslivroscomtantoafeto,comoseemcadaumestivesseumapáginadahistóriadoseucoração.Nenhumadaquelaspáginastinhaelelido,semqueaimagemdeTeresalheaparecessea fortalecê-loparavenceros tédiosdacontinuadaaplicação,eos ímpetosdumnatural inquietoeansiosodecomoçõesdesusadas.“Ehádetudoacabarassim?—pensavaele,comafaceentreasmãos,encostadoàsuabancadeestudo.—Aindahápoucoeueratãofeliz!...—Feliz!—repetiuele,erguendo-sedegolpe.—Quempodeserfelizcomadesonradumaameaçaimpune?Maseuperco-a!Nuncamaisheidevê-la!...Fugireicomoumassassino,emeupaiseráomeuprimeiroinimigo,eelamesmo há de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sidoaviltadonoconceitodeTeresapelosinsultosdomiserável,talvezqueelaosnãorepetisse.”
SimãoBotelhoreleuacartaduasvezes,eàterceiraleituraachoumenosafrontosasasbravatasdofidalgocioso.Aslinhasfinaisdesmentiamformalmenteasuspeitadoaviltamento,comqueoseuorgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dospassados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, esentidasfrasesdesaudade.Quandooarreeirobateuàporta,SimãoBotelho jánãopensavaemmatarohomemdeCastro
Daire;masresolverairaViseu,entrardenoite,esconder-seeverTeresa.Faltava-lhe,porém,casade confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro seconheciaalgumacasaemViseuondeelepudesseestarescondidoumanoiteouduas,semreceiodeserdenunciado.Oarreeirorespondeuquetinha,aumquartodeléguadeViseu,umprimoferrador;enãoconheciaemViseusenãoosestalajadeiros.Simãoachouaproveitáveloparentescodohomem,elogodaíopresenteoucomumajaquetadepeleseumafaixadesedaescarlate,àcontademaioresvaloresprometidos,seeleobemservissenumaempresaamorosa.Nodiaseguinte,chegouoacadêmicoàcasadoferrador.Oarreeirodeucontaaoseuparentedo
quevinhatratadocomoestudante.FoiSimãoBotelhocautelosamentehospedado,eoarreeiroabalounomesmopontoparaViseu,
com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco da terra. Amendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar ocaminheiro.Poucodepois,voltouelacomaresposta,eoarreeiropartiuagalope.Eraarespostaumgritodealegria.Teresanãorefletiu,respondendoaSimãoquenaquelanoitese
festejavamosseusanos,esereuniamemcasaosparentes.Disse-lhequeàsonzehorasempontoelairiaaoquintalelheabririaaporta.Nãoesperavatantooacadêmico.Oqueelepediaerafalar-lhedaruaparaajaneladoseuquarto,
ereceavaimpossívelesteprazer,queeleavaliavaomáximo.Apertar-lheamão,sentir-lheohálito,abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suasmodestas ehonestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que seestreiamnacomédiahumanasãosentimentoscongeniais.À hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os
encantosdavida,osmaisangélicosmomentosdaalma,sãoesseslancesdemisteriosoalvoroçoqueaosmaisserôdiosdecoraçãosucedememtodasasrazõesdavida,eatodososhomens,umavezaomenos.ÀsonzehorasempontoestavaSimãoencostadoàportadoquintal,eadistânciaconvencionadao
arreeirocomocavaloàrédea.Atoadadamúsica,quevinhadassalasremotas,alvoroçava-o,porqueafestaemcasadeTadeudeAlbuquerqueosurpreendera.Nolongotermodetrêsanosnuncaeleouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos daestranha alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginoudesvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia
apaixonada.Nãohábalizaracionalparaasbelas,nemparaashorrorosasilusões,quandooamorasinventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e aspancadasdocoraçãosobressaltado.
CapítuloV
Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs dofidalgoeademaisparenteladacasanãodeixavamrespirarTeresa.Moçasevelhas,todasàuma,serepetiam,aconselhando-aareconciliar-secomseuprimo,edaraseupaiaalegriaqueopobrevelhotantorogavaaDeus,antesde fecharosolhos.ReplicavaTeresaquenãoqueriamalaseuprimo,nemsequerestavasentidadele;queerasuaamiga,esê-lo-iasempreenquantoelelhedeixasselivreocoração.Ovelhoesperavamuitodaquelanoitadadefesta.Algunsparentes,presumidosdecircunspectos,
lhetinhamditoqueseriaproveitosoregalarafilhacomosprazerescongruentesàsuaidade,dando-lheensejoaqueelarepartisseoespírito,concentradonumsóponto,pordiversõesemqueanaturalvaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando.Aconselharam-lheasreuniõesamiúdas, jáemsuacasa, jánadosseusparentes,paradestemodoTeresasemostraramuitos,sercortejadadetodos,eteremopiniãodemenosvaliaoúnicohomemcomquemfalava,eaquemjulgavasuperioratodos.Ofidalgoacedeu,mascomdificuldade:équetinhaláumsistemaseudeajuizardasmulheres,viveratrintaanosdevidalibertinaedispendiosa,eseestavaagorasaboreandonaeconomiaenaquietação.OsanosdeTeresaerampelaprimeiravezfestejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos deprendascomqueos intervalosnaqueles tempossealigeiravamemdelícias, sem fadigadocorpo,nemdesagradodamoral.Mas,deagitadaqueestava,Teresanãocompartiadogozodosseushóspedes.Desdequesoaram
asdezhorasdaquelanoite,arainhadafestapareciatãoalienadadasfinezascomquesenhorasehomens à competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de suaprima, e teve amodéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele. Generoso até aoperdão,omorgadodeCastroDaire,compondoorostocomgestograveemelancólico,dirigiu-seaTeresa,epediu-lhedesculpadafriezaqueeledissesercomoadasmontanhas,quetêmvulcõespordentroeneveporfora.Teresateveasinceridadederesponderquenãotinhareparadonafriezadeseu primo, e chamou para junto dela umamenina, para evitar que a montanha se fendesse emvulcões.Poucodepoisergueu-seesaiudasala.Eramdezhorasetrêsquartos.Teresacorreraao fundodoquintal,abriraaporta,e,comonão
vissealguém, tornoudecorridaparaasala.Nomomento,porém,desubiraescadaque ligavaojardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma dasjanelassobreojardim,bemlongedeimaginarqueavia.Retirou-se,eentroucomTeresanasala,aomesmo tempo, por diversa porta. Decorridos algunsminutos, amenina saiu outra vez e o primotambém.Teresaouviu,àdistância,oestrépitodumcavalo,quandopassouaopatamardaescada.Baltasartambémoouviu,enotouquesuaprima,receosadeservistaeconhecidapelaalvuradovestido,levavaumacapaouxalequeaenvolviatoda.OdeCastroDairefezpéatrásparanãoservisto.Teresa,porém,numrelancedeolhartemeroso,aindaviraumvultoretirar-se.Tevemedo,eretrocedeualargaracapa,eentrounasala,ofegantedecansaçoepálidademedo.
—Quetens,minhafilha?—disse-lheopai.—Jáduasvezessaístedasala,evenstãoalvoraçada!
Tensalgumincômodo,Teresa?—Tenhoumador:precisodeirrespirardevezemquando...Nadaé,meupai.Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; só o não disse a seu
sobrinho,porqueonãoencontrou,esoubequeeletinhasaído.TambémTeresaderapelaausênciadoprimo,efingiuqueoiaprocurar,resoluçãodequeovelho
gostoumuito.Desceuelaao jardim,correuàportaondeaesperavaSimão,abriu-a,e,comavozcortadapelaansiedade,apenasdisse:—Vai-teembora;vemamanhãàsmesmashoras...Vai,vai!Simão, quando isto ouvia, tinha os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o
murodoquintal.Oarreeiro,queprimeiroovira,deraumsinal,eentalaraasrédeasdocavaloentreumaspedras,paraficardesembaraçado,seoestudantesenãopudessehavercomoinimigo.SimãoBotelhonãosemoveudolocal,eBaltasarCoutinhoparounadistânciadeseispassos.O
arreeiro tinha lentamenteavançadoameio caminhodopatrão,quandoeste lhedissequenão seaproximasse.E,caminhandoparaovulto,aperrouduaspistolas,edisse-lhe:—Istoaquinãoécaminho.Quequer?Ofidalgonãorespondeu.—Parece-mequelheabroabocacomumabala—tornouSimão.—Que lhe importao senhorquemestá?!—disseBaltasar.—Seeu tiverumsegredo, comoo
senhorparecequetemoseunestessítios,souobrigadoaconfessar-lho!?Simãorefletiu,ereplicou.—Estemuropertenceaumacasaondemoraumasófamília,eumasómulher.—Estãonessacasamaisdequarentamulheresestanoite—redarguiuoprimodeTeresa.—Seo
cavalheiroesperauma,eupossoesperaroutra.—Queméosenhor?—tornoucomarrogânciaofilhodocorregedor.—Nãoconheçoapessoaquemeinterroga,nemqueroconhecer.Fiquemoscadaumcomonosso
incógnito.Boasnoites.BaltasarCoutinhoretrocedeu,dizendoentresi:—“Quepartidotemumaespadacontradoishomenseduaspistolas?”SimãoBotelhocavalgou,epartiuparacasadohospitaleiroferrador.O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente alteração de
ânimo.ViuqueTeresaoobservavaderevés,esoubedissimular-sedemodoqueasossegou.Apobremenina,ansiosaporseversozinha,viucomprazererguer-separasairaprimeirafamília,quedeurebateàsoutras,menosaodeCastroDaireesuasirmãs,queficaramhospedadosemcasadeseutio,comtençãodesedemoraremoitodiasemViseu.Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores, e
pedindo-lheperdãodeoelanãoteradvertidodobaile,porficardoidadealegriacomasuavinda.No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Istoespantouoacadêmico.Aseuver,ovultoeraBaltasarCoutinho,eopaideTeresadeviaseravisadonaquelamesmanoite.Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém, assustar
Teresaeprivar-sedaentrevista,escreveunovacartaemquenãotransluziamedodeseratacado,nemsequerreceiodemarear-lheafama.QuispareceraSimãoBotelhoqueesteeraodignoportedeumamantecorajoso.Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos
resultadosquepodiaterasuatemeráriaida,seBaltasarCoutinhoeraaquelehomemquereservaraparamelhorrelanceavingançadaprovocaçãoinsolente.Masdesiparasitinhaelequepensaremquetaleramaiscovardiaqueprudência.Oferradortinhaumafilha,moçadevinteequatroanos,formasbonitas,umrostobeloetriste.
NotouSimãoosreparosemqueelasedemoravaacontemplá-lo,eperguntou-lheacausadaqueleolharmelancólicocomqueelaofitava.Marianacorou,abriuumsorrisotriste,erespondeu:—Nãoseioquemeadivinhaocoraçãoarespeitodevossasenhoria.Algumadesgraçaestápara
lhesuceder...
—Ameninanãodiziaisso—replicouSimão—semsaberalgumacoisadaminhavida.—Algumacoisasei...—tornouela.—Ouviucontaraoarreeiro?—Não,senhor.Équemeupaiconheceopaizinhodevossasenhoria,etambémconheceosenhor.
Ehábocadinhoqueeuouviestarmeupaiadizerameutio,queéoarreeiroqueveiocomvossasenhoria,quetinhasuasrazõesparasaberquealgumadesgraçalheestavaparaacontecer...—Porquê?—PoramordumafidalgadeViseu,quetemumprimoemCastroDaire.Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele julgava
mistério entre duas famílias, quando omestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde oprecedentediálogosepassara.Amoça,comoouvisseospassosdopai,saíralentamenteporoutraporta.—Comsualicença—dissemestreJoão.Dizendo,fechoupordentroambasasportas,esentou-sesobreumaarca.—Ora,meufidalgo—continuouele,descendoasmangasarregaçadasdacamisa,eapertando-as
comdificuldadenosgrossospulsos,comoquemsabeasetiquetasdasmangas—,hádedesculparqueeuviesseassimemmangasdecamisa;masnãodeicomajaqueta...
—Estámuitobem,senhorJoão—atalhouoacadêmico.—Pois,senhor,eudevoumfavoraseupai,eumfavordaquelacasta.Umavezarmou-seaquià
minhaportaumadesordem,atrocodeumcoicequeummachodumalmocrevedeunumaégua,queeuestavaferrando,e,emtãoboahorafoi,quelhepartiurenteojarreteporaqui,salvotallugar.JoãodaCruzmostrounasuapernaopontoporondeforafraturadaadaégua,econtinuou:—Eutinhaaliàmãoomartelo,enãometivequenãopregassecomelenacabeçadomacho,que
foi logopraterra.OrecoveirodeCarção,queerachibante,deitouasunhasaumbacamarte,quetraziaentreumacarga,edesfechoucomigo,semmaistir-tenemguar-te.“Óalmadanada!—disse-lheeu—poistuvêsqueoteumachomealeijouestaégua,quecustouvintepeçasaseudono,equeeutenhodepagar,edás-meumtiroporeuteatordoaromacho!?”—Eotiroacertou-lhe?—atalhouSimão.—Acertou;massaberávossasenhoriaquemenãomatou;deu-meaquiporestebraçoesquerdo
com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, edesfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu.Prenderam-me,efuiparaViseuejáláestavahátrêsanos,noanoqueopaizinhodevossasenhoriaveiocorregedor.Andavamuitagenteatrabalharcontramim,etodosmediziamqueeuiapernearna forca.Estava lánaenxoviacomigoumpresoacumprirsentença,edisse-meelequeosenhorcorregedortinhamuitadevoçãocomassetedoresdeNossaSenhora.Umavezqueeleiapassandocom a família para amissa, disse-lhe eu: “Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas setedoresdeMariaSantíssima,quememandeiràsuapresençaparaeuexplicaraminhaculpaavossasenhoria”.Opaizinhodevossasenhoriachamouomeirinho-geral,emandoutomaromeunome.Ao
outrodiafuichamadoaosenhorcorregedor,econtei-lhetudo,mostrando-lheaindaascicatrizesdobraço. Seu pai ouviu-me, e disse-me: “Vai-te embora, que eu farei o que puder”. O caso é, meufidalgo,queeusaíabsolvido,quandomuitagentediziaqueeuhaviadeserenforcadoàminhaporta.Fazfavordemedizerseeunãodevoandarcomacaraondeoseupaizinhopõeospés?!—TemosenhorJoãomotivoparalhesergrato,nãohádúvidanenhuma.— Agora faz favor de ouvir omais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do
fidalgodeCastroDaire,queéosenhorBaltasar.Conhece-ovossasenhoria?Ora,seconhece...—Conheçodenome.— Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas, Deus
louvado.HádehaverseismesesqueelememandouchamaraViseu,emedissequetinhatrintapeçasparamedar,seeu lhe fizesseumserviço.“Oquevossasenhoriaquiser, fidalgo.”Evaieledisse-mequequeriaqueeutirasseavidaaumhomem.Istobuliucápordentrocomigo,porque,afalar a verdade, umhomemquemata outronumapertonão ématadorde ofício, acho eu, não éassim?—Decerto...—respondeuSimão,adivinhandoorematedahistória.—Quemeraohomemque
elequeriamorto?— Era vossa senhoria... O homem!— disse o ferrador com espanto. — O senhor nem sequer
mudoudecor!—Eunãomudonuncadecor,senhorJoão—disseoacadêmico.—Estoupasmado!—Evosmecênãoaceitouaincumbência,peloquevejo—tornouSimão.—Não,senhor;e,então,logoqueelemedissequemera,aminhavontadeerapregar-lhecoma
cabeçanumaesquina.—Eeledisse-lhearazãoporquememandavamatar?—Não,meufidalgo;eulheconto:nasemanaadiante,quandosoubequeosenhorBaltasar(raios
o partam!) tinha saído de Viseu, fui falar com o senhor corregedor, e contei-lhe tudo como sepassara.O senhor corregedorestevea cismarumpouquinho, edisse-me, e vossa senhoriahádeperdoarporeulhedizeroqueseupaimedisse,talequal.—Diga.—Seupaicomeçouaesfregaronariz,edisse-me:“Euseioqueéisso.Seaquelebrejeirodemeu
filhoSimãotivessehonra,nãoolhariaparaaprimadesseassassino.CuidaopatifequeeuconsentiaquemeufilhoseligasseaumafilhadeTadeudeAlbuquerque”.Aindadissemaiscoisasquemenãolembram;maseu fiquei sabendo tudo.Oraaqui temoquehouve.Agoraapareceu-meaqui vossasenhoria, eanoitepassada foiaViseu.Perdoaráaminhaconfiança:masvossa senhoria foi falarcomatalmenina;eeuestivevainãovaiasegui-lo;mas,comoiameucunhado,queéhomemparatrês,fiqueidescansado.Elecontou-meumencontroquevossasenhoriateveàportadoquintaldamenina.Selátorna,senhorSimão,vápreparadoparaalgumacoisademaior.Eubemseiquevossasenhorianãoémedroso;masdumatraiçãoninguémselivra.Sequerqueeuvátambém,estouàssuasordens; e a clavinaquedeupolícia aoalmocreveaindaali está, edá fogodebaixodeágua,comodizooutro.Mas,sevossasenhoriadálicençaqueeulhedigaaminhaopinião,omelhorénãoandarnessasencamisadas.Sequercasarcomela,vápediraseupailicença,edeixeorestocáporminhaconta;pontoéqueelaqueriaqueeu,numabrirefechardeolhos,atirocomelaparacimadumaéguadechupetaquealitenho,eopaiemaisoprimoficamavernavios.—Obrigado,meu amigo – disseSimão. –Aproveitarei os seus bons serviços quandome forem
necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu. Se houver novidade, entãoveremosoquesehádefazer.Contocomvosmecê,ecreiaquetememmimumamigo.MestreJoãodaCruznãoreplicou.Dalifoiexaminarmudamenteafechariadaclavina,eentender-
secomocunhadosobrecautelasnecessárias,enquantodescarregavaaarma,eacarregavadenovocomunszagalotesespeciais,queeledenominava“amêndoasdepimpões”.Neste intervalo,Mariana,a filhadoferrador,entrounosobrado,edissecommeiguiceaSimão
Botelho:—Entãosempreécertoir?—Vou;porquenãoheideir?!—PoisNossaSenhoravánasuacompanhia—tornouela,saindologoparaesconderaslágrimas.
CapítuloVI
Àsdezhorasemeiadanoitedaqueledia,trêsvultosconvergiramparaolocal,rarofrequentado,em que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutosdiscutindoegesticulando.Dostrêsvultoshaviaum,cujaspalavraseramouvidasemsilêncioesemréplicapelosoutros.Diziaeleaumdosdois:
—Nãoconvémqueestejaspertodestaporta.Seohomemaparecesseaquimorto,assuspeitascaiamlogosobremimoumeutio.Afastem-sevocêsumdooutro,tenhamoouvidoaplicadoaotropeldo cavalo.Depois apressemopasso até o encontrarem, demodoque os tiros sejamdados longedaqui.
—Mas...—atalhouum—quemnosdizqueeleveioontemacavalo,ehojevemapé?—Éverdade!—acrescentouooutro.—Seelevierapé,eu lhesdareiavisoparaoseguiremdepoisatéo terema jeitode tiro,mas
longedaqui,percebemvocês?—disseBaltasarCoutinho.—Sim,senhor:masseelesaidecasadopai,eentrasemnosdartempo?— Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lho disse. Basta de palavreado. Vão
esconder-seatrásdaigreja,enãoadormeçam.
Debandouogrupo,eBaltasarficoualgunsmomentosencostadoaomuro.Soaramostrêsquartosdepoisdasdez.OdeCastroDairecolocouoouvidoàporta,eretirou-seaceleradamente,ouvindoorumordafolhagemsecaqueTeresavinhapisando.
Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a passorápido.Nãoparou:foidireitoatodosospontosondeumasombrapodiafigurarumhomem.Rodeoua igreja,queestavaaduzentospassosdedistância.Viuosdoisvultosdireitoscomorecantoqueformavaajunçãodacapela-mor,esobreoqualcaíramassombrasdatorre.Fitou-osdepassagem,esuspeitou;nãoosconheceu,maselesdisseramentresi,depoisqueeledesaparecera:
—ÉoJoãodaCruz,ferrador,ouodiaboporele!...—Quefaráaestahoraporaqui?!—Eusei!—Nãodesconfiasqueeleentrenisto?—Agora!Seentrasse,erapornós.Nãosabesqueelefoimochiladonossoamo?—Poisentãoquemedotens?—Nãohámedo;mastambémseiquefoiocorregedorqueolivroudaforca...—Issoquetem!Ocorregedornãoseimportacomisso,nemsabequeofilhocáestá...—Assimserá;masnãoestoumuitocontente...Eleéhomemdosdiabos...—Deixá-loser...Tantoentramasbalasnelecomonoutro...A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa era
certíssima:serovultooJoãodaCruz,ferrador.Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel da
cavalgadura.
Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro. Simãoaperrouaspistolas,eoarreeiroumaclavina.
—Nãohánovidade—disseoferrador—massaibavossasenhoriaquejápodiaestarembaixodocavalocomquatrozagalotesnopeito.
Oarreeiroreconheceuocunhado,edisse:—Éstu,João?—Soueu.Vimprimeiroquetu.Simãoestendeuamãoaoferrador,edisse,comovido.—Dêcáasuamão;querosentirnaminhaamãodumhomemhonrado.—Nasocasiõeséqueseconhecemoshomens—redarguiuo ferrador.—Oravamos...nãohá
tempoparafalatórios.Osenhordoutortemumaespera.—Tenho?–disseSimão.—Atrásdaigrejaestãodoishomensqueeunãopudeconhecer;masnãosemedavadejurarque
sãocriadosdoSr.Baltasar.Salteabaixodocavalo,quehádehavermostarda.Eudisse-lhequenãoviesse;masvossasenhoriaveio,eagoraéandarcomacaraparafrente.
—Olhequeeunãotremo,mestreJoão!—disseofilhodocorregedor.—Bemseiquenão;mas,àvistadoinimigo,veremos.Simão tinhaapeado.O ferrador tomouas rédeasdocavalo, recuoualgunspassosna rua,e foi
prendê-loàargoladaparededumaestalagem.Voltou,edisseaSimãoqueoseguisseaeleeaocunhadonadistânciadevintepassos;eque,se
osvissepararpertodoquintaldeAlbuquerque,nãopassassedopontodondeosvisse.Quisoacadêmicoprotestarcontraumplanoqueohumilhavacomoprotegidopeladefesadosdois
homens;oferrador,porém,nãoadmitiuaréplica:—Façaoqueeulhedigo,fidalgo—disseelecomenergia.JoãodaCruzeocunhado,espiandotodasasesquinas,chegaramdefrontedoquintaldeTeresa,e
viramumvultoasumir-senoângulodaparede.— Vamos sobre eles — disse o ferrador — que lá passaram para o adro da igreja; neste
entrementes,odoutorchegaàportadoquintaleentra;depoisvoltaremosparalheguardarasaída.Nestepropósito,moveram-seapressados,eSimãoBotelhocaminhoucomaspistolasaperradas
nadireçãodaporta.
EmfrentedomurodojardimdeTeresahaviaumacascalheiraescarpadaqueseesplainavadepoisnumaalamedasombria.
OsdoiscriadosdeBaltasar,quandootropeldocavaloparou,recordaramasordensdoamo,nocasodevirapéSimão.Buscaramsítioazadoparaoespreitaremnasaída,eentraramnaalamedaquandooacadêmicochegaraàportadoquintal.
—Agoraestáseguro—disseum.—Selánãoficardentro...—respondeuooutro,vendo-oentrar,efechar-seaporta.— Mas além vêm dois homens... — disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da
alameda.—Evêmdireitosanós...Aperraláaclavina...—Omelhoréretirarmos.Nósestamosàesperadooutro,enãodestes.Vamosemboradaqui...Estenãoesperouconvencero companheiro:desceua ribanceiradocascalho.Omais intrépido
tevetambémaprudênciadetodososassassinosassalariados:seguiuoassustadiço,edeu-lherazão,quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quandodobravamaesquinadoquintal,edisse-lhes:
—Vocêsaquefogem,seuspoltrões?Oshomenspararamdeenvergonhados,aperrandoosbacamartes.JoãodaCruzeoarreeiroapareceram,eBaltasarcaminhouparaeles,bradando:—Altoaí!Oferradordisseaocunhado:—Fala-lhetu,queeunãoqueroqueelemeconheça.—Quemmandafazeralto?—disseoarreeiro.—Sãotrêsclavinas—respondeuBaltasar.—Olhaseosdemorasadartempoqueodoutorsaia—disseJoãodaCruzaoouvidodoarreeiro.—Poisnóscáestamosparados—replicouocriadodeSimão.—Quenosqueremvocês?—Querosaberoquetêmquefazernestesítio.—Evocêsoquefazemporcá?—Nãoadmitoperguntas—disseodeCastroDaire,aventurandoalgunspassosvacilantesparaa
frente.—Querosaberquemsão.MestreJoãodisseaoouvidodocunhado:—Diz-lheque,sedámaisumpasso,queoarrebentas.Oarreeirorepetiuacláusula,eBaltasarparou.Umdoscriadosdestechamou-oaoladoparalhedizerqueaqueledosdoisquenãofalavaparecia
seroJoãodaCruz.Omorgadoduvidou,equisesclarecer-se;masoferradorouviraaspalavrasdocriado,edisseaocunhado:
—Vemcomigo,queelesconhecem-me.Dizendo,voltouascostasaogrupo,ecaminhouaolongodoquintaldeTadeudeAlbuquerque.Os
criadosdeBaltasar,gloriososdaretirada,comodeumaderrotacerta,apressaramopasso,nacoladossupostosfugitivos.Omorgadoaindalhesdissequeosnãoseguissem;maseles,momentosantescovardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugidoantes.
SimãoBotelhoouvirapassosligeiros,e,compelidopelosustodeTeresa,abriraaportadoquintal,sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando osperseguidoresseviam,disseaofilhodocorregedorseestavaajustadoocasamento,quenãohaviapanoparamangas.
Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se. Queria elereconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom imperioso de quemobrigaàsubmissão,disseaofilhodocorregedor:
—Váporondeveio,enãoolheparatrás.Simão foi indo até encontrar o cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o
seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, erecearam-sedealgumaesperaforadacidade.Oferradorconheciaoatalhoquepodialevarosdaemboscadaaocaminho,erevelouoseureceioaSimão,dizendo-lhequepicasseatodaabrida,queeleeocunhadoláiriamter.Oacadêmicorecebeucomenfadoaadvertência,admoestando-osaqueo não tivessem em tal vil preço. E acintemente sofreou as rédeas para não forçar os homens aaligeiraropasso.
—Vácomoquiser—dissemestreJoão—quenósvamosporforadocaminho.E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de giesta,
cosendo-seaostorcicolosdumaparedeparalelacomaestrada.—Oatalhovaiacoláondeaserrafazaquelecotovelo—disseoferradoraocunhado—,hãodeali
passar,oujápassaram.Aestradavaimesmonaquebradadaqueleouteirinho.Oshomensédaliquevãoatirar,encobertospelossobreiros.Vamosdepressa...
Eumpoucodescobertos,eoutrocurvadosàsombradasdevesas,chegaramaumvaladodondeouviramospassosdosdoishomensqueatravessavamopontilhãodeumcórrego.
— Já não vamos a tempo—disse aflito o João daCruz,— os homens vão atirar-lhe, porque ocavalotrotacámuitoatrás.
Ecorriamjásemtemordeseremvistos,porqueosoutrostinhamdobradooouteiro,emcujovalecorriaaestrada.
—Oshomensvãoatirar-lhe...—disseoferrador.—Gritemosdaquiaodoutorquenãováparadiante.—Jánãoétempo...Ouomatemounãomatem,quandovoltaremsãonossos.Tinhamjápassadoopontilhão,esubiamaladeiraquandoouviramdoistiros.—Arriba!—exclamouJoãodaCruz—Quenãovãometer-seàestrada,semataramofidalgo.Tinhamvencidoachã,esbofadoseansiados,comasclavinasaperradas.OscriadosdeBaltasar,
aoinvésdaconjeturadoferrador,retrocediampelomesmoatalho,supondoqueoscompanheirosdeSimãoiamadiantebatendoospontosazadosàemboscada,ousetinhamretardado.
—Elesaívêm!—disseoarreeiro.— Nós cá estamos — respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. — Senta-te
também,queeunãoestouparacorreratrásdeles.Osassassinos,adezpassos, viramde frenteerguerem-seosdois vultos, e ladearamcadaqual
paraseulado,umgalgandoossocalcosdumavinhaeoutroatirando-seaunssilveirais.—Atiraaodaesquerda!—disseJoãodaCruz.Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os balotes do
arreeironãoestremaramooutroentreocarrascalondeseembrenhara.AestetempoassomavaSimãonotesodondelhetinhamatirado,ecorriaaopontoondeouvirao
segundotiro.—Évossasenhoria,fidalgo?—bradouoferrador.—Sou.—Nãoomataram?—Creioquenão—respondeuSimão.—Estedesalmadodeixoufugiromelro—tornouJoãodaCruz—masomeuláestáapernearna
vinha.Semprelhequeroverastrombas...Oferradordesceuostrêssocalcosdavinha,ecurvou-sesobreocadáver,dizendo:—Almadecântaro,seeutivesseduasclavinas,nãoiassozinhoparaoinferno.—Andadaí!—disseoarreeiro—deixaláessediabo,queosenhordoutorestáferidonumombro.
Vamosdepressa,queestáosangueaescorrer-lhe.—Euviduascabeçasaespreitarem-medecimadaribanceira,ecuideiqueeramvocês—disse
Simão, enquanto o ferrador, comadestrezadehábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços obraçoferido.—Pareiocavalo,edisse:“Olé!Hánovidade?”Logoquemenãoresponderam,salteiparaterra;masaindaeutinhaumpénoestriboquandomefizeramfogo.Quissaltaràribanceira,masnãopuderomperomato.Deiumavoltagrandeparaacharsubida,efoientãoquedeifédeestarferido.
—Istoéumaarranhadura—disseJoãodaCruz—olhequeeuseidisto,fidalgo!Estouafeitoacurarmuitasferidas.
—Nosburros,mestreJoão?—disseoferido,sorrindo.— E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não queria
outromédicosenãoumalveitar.Heidemostrar-lheomeucorpo,queestáumarededefacadas,enuncafuiaocirurgião.Comcerotoevinagresoucapazdeirressuscitaraquelaalmadodiaboquealiestáaescutaracavalaria.
Nistoouviu-seumleverumordefolhagemnomatagalparaondetinhasaltadoocompanheirodomorto.
JoãodaCruz,comogalgodefinoolfato,fitouaorelhaeresmungou:—Queremvocêsverqueelassearmam!Dar-se-ácasoqueooutroaindaestejaporaliatremer
maleitas?Orumorcontinuou,elogoumbandodepássarosrompeudentreafolhagem,chilreando.
—Ohomemestáali!—tornouoferrador.—Passe-mecáumapistola,senhorSimão!CorreumestreJoão,eaomesmotempoumagranderestolhadasefezentreasmoitasdecodessos
eurzes.—Eleestrinçalenhacomoumporco-do-monte!—exclamouoferrador.—Ócunhado,bateeste
matocomalgunspenedos;queroversairojavalidamoita!Paraooutroladodabouçaestavaumplainocultivado.Simão,rodeandoasebe,conseguirasaltar
aocampoporsobreapedradumagueiro.—Tenhalámão,mestre;nãovávocêatirar-me!—bradouSimãoaoferrador.—Poiso fidalgo jáaíanda!?Entãoestáfechadoocerco.Eucávoufazerdefurão.Seestenos
escapa,nãohánadaseguronestemundo!Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutinho, quando se atirara desamparado à brenha,
deslocaraumjoelho,ecaíraatordoado.Oarreeironãoexaminouoefeitodotiro,porqueatiraraàventura,eachavanaturalqueofugitivosenãomolestasse.Quandovolveuasidoaturdimentodaqueda,ohomemarrastou-seatéencontrarumcerradodeárvoressilvestres,emquepernoitavaapassarinhada.Comoosmelros cacarejassem,esvoaçando, o criadodeBaltasar retrocedeuparaomato,cuidandoqueaíescaparia;masoarreeiro jogavaenormescalhausem todasasdireções,ealgunsacertavammaisqueasbalasdoseubacamarte.JoãodaCruztiroudobolsodajaquetaumpodão,ecomeçouacortaraselvadecarvalhasnovasegiestasqueseemaranhavamemredordoesconderijo.Jácansado,porém,evendoopoucofrutodotrabalho,disseaoarreeiro:
—Petisca lume,vaialidentrobuscarumpoucoderestolhoseco,evamospegar fogoaomato,queesteladrãohádemorrerassado.
Operseguido,quandotalouviu,tiroudomaiorperigocoragemparafugir,rompendoaespessuraesaltandoaparededatapadaparaocampodorestolhoemqueoarreeiroandavaapanhandopalhaeSimãoesperavaodesfechodamontaria.Correramaumtempooarreeiroeoacadêmicosobreele.Ofugitivo,sentindo-sealcançado,lançou-sedejoelhosemãoserguidas,pedindoperdão,edizendoqueoamooobrigaraàqueladesgraça.Jáacoronhadobacamartedoarreeirolheiadireitaaopeito,quandoSimãolhereteveobraço.
—Nãosebatenumhomemajoelhado!—disseomoço.—Levanta-te,rapaz!—Eunãoposso,senhor.Tenhoumapernaquebradaeestoualeijadoparaaminhavida!Nestecomenoschegouoferrador,eexclamou:—Poisessetratanteaindaestávivo!?Ecorreusobreelecomopodão.—Nãomateohomem,senhorJoão!—disseofilhodocorregedor.—Queonãomate!Essaédecabodeesquadra!Comqueentãoofidalgoquerpagar-mecoma
forcaofavordeoacompanhar...hein?—Comaforca?!—atalhouSimão.— Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito? Lá vossa
senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar quedestaveztenhoobaraçonopescoço.Nãomefazjeitoonegócio.Deixe-mecácomohomem...
—Nãoomate,senhorJoão;peço-lheeuqueodeixeir.Umatestemunhanãonospodefazermal.—Oquê!—redarguiuoferrador.—Vossasenhoriaédoutor,saberámuito,masde justiçanão
sabenada,ehádeperdoaromeuatrevimento.Bastaumasó testemunhaparaguiara justiçanadevassa.Àsduasportrês,umatestemunhadevista,equatrodeouvirdizer,comofidalgodeCastroDaireamexerospauzinhos,éforcacerta,comodoisedoisseremquatro.
— Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro Daire – exclamou ohomem.
—Deixe-oficar,JoãodaCruz...Vamosembora...—Isso!—acudiuoferrador.—Chame-meJoãodaCruz...Paraestemarotoficarbemcertodeque
souoJoãodaCruz!...Comefeito,nãoseioquemeparecevossasenhoriaquererdeixarcomvidaumaalmadodiaboquelhedeuumtiroparaomatar.
—Poissim,temvocêrazão;maseunãoseicastigarmiseráveisquenãoresistem.—E,seeleotivessematado,castigava-o?Respondaaisto,senhordoutor.—Vamosembora—tornouSimão—deixemosparaaíessemiserável.MestreJoãocismoualgunsmomentos,coçandoacabeça,eresmungoucomdescontentamento:—Vamoslá.Quemoseuinimigopoupa,nasmãoslhemorre.Tinhamjásaídodoplanoesaltadoatapada,eiamdescendoparaaestrada,quandooferrador
exclamou:—Lámeficouaminhaclavinaencostadaàsebe...Vãoindoqueeuvenhojá.Oarreeiroconduziaocavalo,quepacificamenteestiveratosandoarelvadasparedesmarginais
daestrada,quandoSimãoouviugritos.Conjeturoucomcertezaoqueera.—OJoãoláestáafazerjustiça!—disseoarreeiro.—Deixá-lolá,meuamo,queeleéhomemque
sabeoquefaz.JoãodaCruzapareceudaíapouco,limpandocomfentosopodãoensanguentado.
—Vocêécruel,sr.João—disseoacadêmico.—Não soucruel—disseo ferrador—o fidalgoestáenganadocomigo; éque,diz láoditado,
morrerpormorrer,morrameupai,queémaisvelho.Tantofazmatarumcomodois.Quandoseestácomamãonamassa,tantofazamassarumalqueirecomotrês.Asobrasdevemseracabadas,ouentãoomelhorénãosemeteragentenelas.Agoralevoaminhaconsciênciasossegada.Ajustiçaqueprove,sequiser;masnãohádeserporquelhodigamaquelesdoisqueeumandeidepresenteaodiabo.
Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com talhomem.
CapítuloVII
OferimentodeSimãoBotelhoeramelindrosodemaisparaobedecerprontamenteaocurativodoferrador,enfronhadoemaforismosdealveitaria.Abalapassara-lhederevésaporçãomusculardobraçoesquerdo;masalgumvasoimportanterompera,quenãobastavamcompressasavedar-lheosangue.Horasdepoisdeferido,oacadêmicodeitou-sefebril,deixando-semedicarpeloferrador.Oarreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto SimãoBotelho.Maisqueasdoreseoreceiodaamputação,omortificavaaânsiadesabernovasdeTeresa.João
daCruzestavasempredesobrerrolda,precavidocontraalgumprocedimentojudicialporsuspeitasdele.Aspessoasquevinhamdefeirarnacidadecontavamtodasquedoishomenstinhamaparecidomortos,econstavaseremcriadosdumfidalgodeCastroDaire.Ninguém,porém,ouviraimputaroassassínioadeterminadaspessoas.NatardedessediarecebeuSimãoaseguintecartadeTeresa:Deuspermitaquetenhaschegadosemperigoàcasadessaboagente.Eunãoseioquesepassa,
mashácoisamisteriosaqueeunãopossoadivinhar.Meupaitemestadotodaamanhãfechadocomoprimo,eamimnãomedeixasairdoquarto.Mandou-metirarotinteiro;maseufelizmenteestavaprevenidacomoutro.NossaSenhoraquisqueapobreviessepediresmoladebaixodajaneladomeuquarto;senão,eunemtinhamododelhedarsinalparaelaesperarestacarta.Nãoseioqueelamedisse.Falou-meemcriadosmortos;maseunãopudeentender...TuamanaRitaestá-meacenandoportrásdosvidrosdoteuquarto...
Disse-meagoratuamanaqueosmoçosdemeuprimotinhamaparecidomortospertodaestrada.Agorajáseitudo.Estiveparalhedizerquetuaíestás,masnãomederamtempo.Meupaidehoraahoradápasseiosnocorredor,esoltaunsaismuitoaltos.
ÓmeuqueridoSimão,queseráfeitodeti?...Estásferido?Sereieuacausadatuamorte?Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai para
Coimbra,eesperaqueotempomelhoreanossasituação.Temconfiançanestadesgraçada,queédignada tuadedicação...Chegaapobre:nãoquerodemorá-lamais...Perguntei-lhe sediziade tialgumacoisa,eelarespondeuquenão.Deusoqueira.Respondeu Simão a querer tranquilizar o ânimo de Teresa. Do seu sofrimento falava tão de
passagem,quedavaasuporquenemocurativoeranecessário.PrometiapartirparaCoimbralogoqueopudessefazersemreceiodeTeresasofrernasuaausência.Animava-aachamá-loassimqueasameaçasdoconventopassassemaserrealizadas.Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa
instaurada, respondeuqueefetivamenteoshomensmortoseramseuscriados,dequemeleesuafamíliaseacompanharadeCastroDaire.AcrescentouquenãosabiaqueelestivesseminimigosemViseu,nemtinhacontraalguémasmaislevespresunções.Osmaispróximosvizinhosdalocalidadeondeoscadáverestinhamaparecidoapenasdepunham
que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenasadiantavacoisaquenãopodiaalumiarajustiça,evinhaaserqueomato,nasvizinhançasdolocal,forachapotado.Nestaescuridadeajustiçanãopodiadarpassoalgum.Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu o
alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas frequentes de Teresa na noite do baile.Tantoaovelhocomoaomorgadoconvinhaapagaralgumindícioquepudesseenvolvê-losnomistériodaquelasduasmortes.Oscriadosnãomereciamaspenasdumdesforçoqueimplicasseodesdourodeseusamos.ProvascontraSimãoBotelhonãopodiamaduzi-las.ÀquelahoraosupunhamelesacaminhodeCoimbra,ourefugiadoemcasadeseupai.Restava-lhesaindaaesperançadequeeletivessesidoferido,efosseacabarlongedolocalemqueotinhamassaltado.Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu
Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe prepararaposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia,receandoovelhoalgumincidentenoespaçodetempoquemediavaatéseconseguiremaslicenças,resolveunãoterconsigoTeresa,esolicitouaretençãotemporáriadelanumconventodeViseu.AcabaraTeresadelereescondernoseioarespostadeSimãoBotelhoqueamendigalhepassara
aoescurecer,pendentedeumalinha,quandoopaientrounoseuquarto,eamandouvestir-se.Ameninaobedeceu,tomandoumacapaeumlenço.—Vista-se comoquemé: lembre-se que ainda temosmeus apelidos – disse com severidade o
velho.—Cuideiquenãoeraprecisovestir-memelhorparasairànoite...—disseTeresa.—Easenhorasabeparaondevai?
—Nãosei...meupai.—Entãovista-se,enãomedêleis.—Mas,meupai,atenda-meummomento.—Diga.—Seasuaideiaéobrigar-meacasarcommeuprimo...—Edaí?—Decertonãocaso;morro,emorrocontente,masnãocaso.—Nemele aquer.A senhoraé indignadeBaltasarCoutinho.Umhomemdomeu sanguenão
aceitaparaesposaumamulherquefaladenoiteaosamantesnosquintais.Vista-sedepressa,quevaiparaumconvento.—Prontamente,meupai.Essedestinolhopedieumuitasvezes.— Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a
acompanharem.Quando se viu sozinha,Teresadebulhou-se em lágrimas, equis escrever aSimão.Àquelahora
quemlhelevariaacarta?ApelouparaoretábulodaVirgem,queelafizeraconfidentedoseuamor.Pediu-lhedejoelhosqueaprotegesse,edesseforçasaSimãopararesistiraogolpe,eguardar-lheconstânciaatravésdostrabalhosquesucedessem.Depoisvestiu-se,comprimindocontraoseioumembrulho em que levava o tinteiro, o papel e omacete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto,relanceandoosolhos lacrimososparaopaineldaVirgem,e, encontrandoopai,pediu-lhe licençaparalevarconsigoaqueladevotaimagem.—Láiráter—respondeuele.—Setivessetantavergonhacomodevoção,seriamaisfelizdoque
hádeser.Umadasprimas,irmãsdeBaltasar,chamou-adeparte,esegredou-lhe:—Ómenina,estavaaindanatuamãodaresremédioàdesordemdestacasa...—Qualremédio?!—perguntouTeresacomartificialseriedade.—DizateupaiquenãoduvidascasarcomomanoBaltasar...—PrimoBaltasarnãomequer—replicouela,sorrindo.—Quemtedisseisso,Teresinha?—Disse-momeupai.—Deixafalarteupai,estádesatinadocomoamorquetetem.Querestuqueeulhefale?—Paraquê?—Paraseremediardestemodoadesgraçadetodosnós.—Estás abrincar, prima!— redarguiuTeresa.—Euhei de ser tua cunhadaquandonão tiver
coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, sequiserem que eu morra por ele, abençoarei todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primoBaltasaredize-lhoantesqueteesqueça.—Então,vamos?!—disseovelho.—Estoupronta,meupai.Abriu-seaportariadomosteiro.Teresaentrousemumalágrima.Beijouamãodeseupai,queele
nãoousourecusar-lhenapresençadasfreiras.Abraçousuasprimas,comsemblantederegozijo;e,aofechar-seaporta,exclamou,comgrandeespantodasmonjas:—Estoumaislivrequenunca.Aliberdadedocoraçãoétudo.As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra “coração” uma heresia, uma
blasfêmiaproferidanacasadoSenhor.—Quedizamenina?!—perguntouaprioresa, fitando-apor cimadosóculos, eapanhandono
lençodeAlcobaçaadestilaçãodoesturrinho.—Disseeuquemesentiaaquimuitobem,minhasenhora.—Nãodigaminhasenhora—atalhouaescrivã.—Comoheidedizer?—Diga:“nossamadreprioresa”.—Poissim,nossamadreprioresa,disseeuquemesentiaaquimuitobem.—MasquemvemparaestascasasdeDeusnãovemparasesentirbem—tornouanossamadre
prioresa.—Não?!—disseTeresacomsinceraadmiração.—Quemparaaquivem,menina,hádemortificaroespírito,edeixarláforaaspaixõesmundanas.
Orapois!Aquiestáanossamadremestradenoviças,aquemcompeteencaminhá-laedirigi-la.
Teresanãoredarguiu: fezumgestoderespeitoàmestradenoviças,eseguiuocaminhoqueapreladalheiaindicando.A nossamadre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspede enquanto ali
estivesse;eajuntouquenãosabiaseseupaiescolheriaaqueleconventoououtro.—Queimportaquesejaumououtro?—disseTeresa.— É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou
bernardas.—Professe!—exclamouTeresa.—Eunãoqueroserfreiraaqui,nemnoutraparte.—Asenhorahádeseroqueseupaiquiserqueseja.—Freira?!Aissonãopodeninguémobrigar-me!—recalcitrouTeresa.—Issoassimé—retorquiuaprioresa—mas,comoameninatemdenoviciadoumano,sobra-lhe
tempoparasehabituaraestavida,everáquenãohávidamaisdescansadaparaocorpo,nemmaissaudávelparaaalma.—Masanossamadre—tornouTeresa,sorrindo,comoseaironialhefossehabitual—jádisse
queaestascasasninguémvemparasesentirbem...—Éummododefalar,menina.Todostemosasnossasmortificaçõeseobrigaçõesdecoroede
serviçosparaquenemsempreoespíritoestábem-disposto.Oravêaí.Mas,emcomparaçãodoquelávaipelomundo,oconventoéumparaíso.Aquinãohápaixões,nemcuidadosquetiremosono,nemavontadedecomer,benditosejaoSenhor!VivemosumascomasoutrascomoDeuscomosanjos.Oqueumaquerqueremtodas.Máslínguasécoisaqueameninanãohádeacharaqui,nemintriguistas,nemmurmuraçõesdesoalheiro.Enfim,Deusfaráoqueforservido.Euvouàcozinhabuscaraceiadamenina,ejávolto.Aquiadeixocomasenhoramadreorganista,queéumapomba,e comanossamestradenoviças, que sabedizermelhorque eu oque é a virtudenestas santascasas.Apenasaprioresavoltouascostas,disseaorganistaàmestradenoviças:—Queimpostora!—Equeestúpida!—acudiuaoutra.—Ameninanãosefienestatrapalhona,evejaseseupailhe
dáoutracompanhiaenquantocáestiver,queaprioresaéamaior intriguistadoconvento.Depoisque fez sessenta anos, fala das paixões domundo comoquemas conhece por dentro e por fora.Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais
ridícula, porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre estemostrengoafazermissõeseacurarindigestões.Teresa,apesardasuador,nãopôdereprimirumarisada,lembrando-sedavidadeDeuscomos
anjosqueasesposasdoSenhoraliviviam,nodizerdamadreprioresa.Poucodepois,entrouapreladacomaceia,esaíramasduasfreiras.—Quelhepareceramasduasreligiosasqueficaramcomamenina?—disseelaaTeresa.—Pareceram-memuitobem.Avelhadistendeuosbeiçosmatizadosdemeandrosdeesturrinholíquido,eregougou:—Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores;mas, se fossemmelhores, não se
perdianada...Oravamosaisto,menina;aquitemduaspernasdegalinhaeumcaldoqueopodemcomerosanjos.—Eunãocomonada,minhasenhora—disseTeresa.—Oraessa!Nãocomenada?!Hádecomer;semcomerninguémresiste.Paixões...queasleveo
porco-sujo!...Asmulhereséqueficamlogradas,eelesnãotêmqueperder!...Queeu,cádemim,atéaopresente,Deuslouvado,nãoseioquesejampaixões;masquemtemcinquentaecincoanosdeconventotemmuitaexperiênciadoquevêpenaràsoutrasdoidivanas.E,paranãoirmaislonge,estasduasquedaquisaíramtêmpagadobemoseutributoàasneira,Deusmeperdoe,sepeco.Aorganista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra,apesardesermestradenoviças,àfaltadoutraquequisessesê-lo,seeulhenãoandassecomoolhoemcima,estragava-measraparigas.Esteedificantediscursodecaridadefoiinterrompidopelamadreescrivã,quevinha,palitandoos
dentes,pediràpreladaumcopinhodecertovinhoestomacalcomquetodasasnoiteserabrindada.—Estavaeuadizeraestameninaaspeçasquesãoaorganistaeamestra—disseaprioresa.—Oh!Sãoparaoqueeulheprestar!Láforamambasparaaceladaporteira.Aestahoraestáa
meninaasercortadaporaquelaslínguas,quenãoperdoamaninguém.—Vaistuverseouvesalgumacoisa,minhaflor?—disseaprelada.Aescrivã,contentedamissão,foiimperceptivelmenteaolongodosdormitóriosatépararauma
porta,quenãovedavaoruídoestridentedasrisadas.Noentanto,diziaapreladaaTeresa:—Estaescrivãnãoémárapariga.Sótemodefeitodesetomardapingoleta;depois,nãoháquem
aature.Temumaboatença,masgastatudoemvinho,etemocasiõesdeentrarnocoroafazerssque émesmo uma desgraça.Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga.Verdade,que,àsvezes...(aquiapreladaergueu-seaescutarnosdormitórios,efechoupordentroaporta);éverdadeque,àsvezes,quandoandaazoratada,dáporpauseporpedras,edescobreosdefeitosdassuasamigas.Amimjáelameassacouumaleive,dizendoqueeu,quandosaíaaares,nãoiasóaares,eandavaporláafazeroquefazemasoutras.Fortepoucavergonha!Láqueoutrafalasse,vá;masela,quetemsempreunsnamoradospandilhasquebebemcomelanagrade,issolámecusta;mas,enfim,nãoháninguémperfeito!...Boaraparigaéela...senãofosseaquelemalditovício...
Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do vinhoestomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco sedemoraria.Tinhaelasaído,quandoaescrivãentrouatempoqueTeresa,comasmãosabertassobreaface,diziaemsi:“Umconvento,meuDeus!Istoéqueéumconvento?”—Estásozinha?—disseaescrivã.—Estou,minhasenhora.—Poisaquelagrosseiravai-seembora,edeixaumahóspedesozinha?!Bemsevêqueéfilhade
funileiro!...Poistinhatempodeterpráticadomundo,quetemandadoporláquefarte...Euhaviadeiraocoro...Masnãovou,paralhefazercompanhia,menina.—Vá, váminha senhora, que eu fico bem sozinha— disse Teresa, com a esperança de poder
desafogaremlágrimasasuaaflição.—Nãovou,não!...Ameninaaquiestarreciademedo;masapreladanãotardaaí.Ela,sepode
escapar-sedocoro,nãoparalámuitotempo.Iaapostarqueelalheesteveafalarmaldemim?—Não,minhasenhora,pelocontrário...—Ora,digaaverdade,menina!Euseiqueestacegonhanãofalabemdeninguém.Paraelatudo
sãolibertinasebêbadas.—Nada,não,minhasenhora;nadamedissearespeitodealgumafreira.—E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva. Enquanto à
libertinagem, tomara eu tantosmil cruzados comode amantes ela tem tido!Faz lá umapequenaideia,menina!...Aescrivãbebeuumcálicedovinhodasuaprelada,econtinuou:—Fazláumapequenaideia!ElaévelhíssimacomoaSé.Quandoeuprofessei, jáelaeravelha
comoagora,compoucadiferença.Oraeusoufreirahávinteeseisanos.Calculeameninaquantasarrobasdeesturrinhoelatematulhadonaquelesnarizes!Poisolhe,quermecreia,quernão,tenho-lhe conhecidomais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse aindaagora lhe forneceagarrafeira, ànossacusta, entende-se.Éumadissipadorados rendimentosdacasa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a meninahospedadaemcasadestahipócrita.Nãosedeixelevardasimposturicesdela,meuanjinho.Euseique seupai lhemandou falar, eaencarregoudeanãodeixarescrever,nemrecebercartas;masolhe,minhafilha,sequiserescrever,eudou-lhetinteiro,papel,obreiaseomeuquarto,separaláquiserirescrever.Setemalguémquelheescreva,diga-lhequemandeascartasemmeunome;eu
chamo-meDionísiadaImaculadaConceição.—Muito agradecida,minha senhora— disse Teresa, animada pelo oferecimento.—Quemme
derapodermandarumrecadoaumapobrequemoranobecodo...—Oquequiser,menina.Eumandolálogoquefordia.Estejadescansada.Nãosefiedealguém,
senãodemim.Olhequeamestradenoviçaseaorganistasãoduasfalsas.Nãolhesdêtrela,que,seasadmiteàsuaconfiança,estáperdida.Aívemalesma...Falemosnoutracoisa...Apreladavinhaentrando,eaescrivãprosseguiuassim:—Nãohá,nãohánadamaisagradávelqueavidadoconventoquandosetemafortunadeter
umapreladacomoanossa...Aí!Erastu,menina?Olhaseestivéssemosafalarmaldeti!—Euseiquetununcafalasmaldemim—disseaprelada,piscandooolhoaTeresa.—Aíestá
essameninaquedigaoqueeulheestiveadizerdastuasboasqualidades...—Poisoqueeudissedeti—respondeusórorDionísiadaImaculadaConceição—nãoprecisas
de perguntar, porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer omesmodasoutrasquedesonramacasa,etrazemaquitudointrigadonumameada,queémesmocoisadepecado!—Entãonãovaisaocoro,Nini?—tornouaprioresa.—Jáagoraétarde...Tuabsolves-medafalta,sim?—Absolvo,absolvo;masdou-tecomopenitênciabeberesumcopinho...—Doestomacal?—Pudera!Dionísiacumpriuapenitência,esaiupara,diziaela,deixarapreladanasuahoradeoração.Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de
Albuquerquemandarasuafilhaarespiraropuríssimoardosanjos,enquantoselhepreparavacrisolmaisdepuradordossedimentosdovícionoconventodeMonchique.Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual.
Ignoravaelaqueomundotinhadaquilo.Ouvirafalardosmosteiroscomodeumrefúgiodavirtude,dainocênciaedasesperançasimorredoiras.Algumascartasleradesuatia,preladaemMonchique,eporelas formaraconceitodoquedeviaserumasanta.Daquelasmesmasdominicanas,emcujacasaestava,ouviradizeràsvelhasedevotasfidalgasdeViseuvirtudes,maravilhasdecaridade,eatémilagres.Quedesilusãotãotristee,aomesmotempo,queânsiadefugirdali!AcamadeTeresaestavanamesmaceladaprioresa,emalcovaseparada,comcortinasdecassa.Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe amenina se poderia
escreveraseupai.Afreirarespondeuquenodiaseguinteofaria,postoqueosenhorAlbuquerqueordenassequesuafilhanãoescrevesse;assimmesmo,ajuntouela,quelhonãoproibiria,setivessetinteiroepapelnacela.Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa ameia-voz. Se o
murmúrio da oração enfadasse a hóspede, não teria elamuita razão de queixa, porque a devotamonja,aosegundoPadre-nosso,cabeceavademodoque jánãoatinoucomaprimeiraAve-Maria.Levantou-se,cambaleandoumamesuraàsimagensdosantuário,foideitar-se,epegouaressonar.Teresaafastousutilmenteascortinasdoquarto,etiroudeentreoseufatootinteirodetarraxae
opapel.A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera os seus
vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lheminuciosamenteossucessosdaqueledia.Acartarematavaassim:Nãoreceiesnadapormim,Simão.Todosestes trabalhosmeparecemleves,seoscomparoaos
quetenspadecidoporamordemim.Adesgraçanãoabalaaminhafirmeza,nemdeveintimidarosteusprojetos.Sãoalgunsdiasdetempestade,emaisnada.Qualquernovaresoluçãoquemeupaitomedir-ta-eilogo,podendo,ouquandopuder.Afaltadasminhasnotíciasdevesatribuí-lasempreao impossível.Ama-meassimdesgraçada,porquemeparecequeosdesgraçadossãoosquemaisprecisamdeamoredeconforto.Vouversepossoesquecer-me,dormindo.Comoistoétriste,meuqueridoamigo!...Adeus.
CapítuloVIII
Mariana,afilhadeJoãodaCruz,quandoviuseupaipensarachagadobraçodeSimão,perdeuossentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranhasensibilidadeemmulherafeitaacurarasferidascomqueseupaivinhalaureadodetodasasfeiraseromarias.
—Nãoháaindaumanoqueme fizeram trêsburacosnacabeça,quandoeu fuiàSenhoradosRemédios,aLamego,efoielaquemetosquiouerapouocascoànavalha—disseoferrador.—Peloquevejo,osanguedofidalgodeuvoltaaoestômagodarapariga!...Estamosentãobem-aviados!Eutenhocáaminhavida,equeriaqueelafosseaenfermeiradomeudoente...És,ounãoés,rapariga?–disseeleàfilhaquandoelaabriuosolhos,comsemblantedeenvergonhadadasuafraqueza.
—Sereicommuitogosto,seopaiquiser.—Pois,então,moça,sehásdeircosturarparaavaranda,vemaquiparaabeiradosenhorSimão.
Dá-lhe caldos amiúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre emais vinagre, quando ela estiver assim amododeroxa.Conversacomele,nãoodeixesestaramalucar,nemescrevermuito,quenãoébomquandoseestá fracodomiolo.Evossa senhorianão tenhaaquelasdecerimônia,nemmedigaàMariana—ameninaisto,ameninaaquilo.É—rapariga,dácáumcaldo;rapariga,lava-meobraço,dácáascompressas—enadadepolíticas.Elaestáaquicomosuacriada,porqueeu já lhedisseque,senãofosseopaidevossasenhoria,jáelahámuitotempoqueandavaporaíàsesmolas,oupiorainda.Éverdadequeeupodiadeixar-lheunsbenzinhosganhosaliasuarnabigornahádezanos,aforaunsquatrocentosmilréisqueherdeideminhamãe,queDeushaja;masvossasenhoriabemsabeque,seeufosseàforcaoupelabarrafora,vinhaajustiça,etomavacontadetudoparaascustas.
—Vosmecêtemumacasinhasofrível—atalhouSimão—pode,querendo,casarasuafilhanumaboacasadelavoura.
—Assimelaquisesse.Maridosnãolhefaltam;atéoalferesdacasadaIgrejaaqueria,seeulhefizessedoaçãodetudo,quepoucoé,masaindaquatromilcruzadosbons;ocasoéqueamoçanãotemqueridocasar,eeu,afalaraverdade,sousóemaisela,etambémnãotenhograndevontadedeficar sem esta companhia, para quem trabalho como mouro. Se não fosse ela, fidalgo, muitasasneirastinhaeufeito!Quandovouàsfeirasouromarias,sealevocomigo,nãobato,nemapanho;indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pingame sobe ao capacete doalambique;puxa-mepelajaqueta,eporbonsmodospõe-meforadoarraial.Sealguémchamaparabebermaisumquartilho,elanãomedeixair,eeuachograçaàobediênciacomquemedeixoguiarpelamoça,quemepedequenãováporalmadamãe.Eucá,emelamepedindoporalmadaminhasantamulher,jánãoseidequefreguesiasou.
Marianaouviaopai,escondendomeiorostonoseualvíssimoaventalde linho.Simãoestava-segozandonasimplezadaquelequadrorústico,massublimedenaturalidade.
JoãodaCruzfoichamadoparaferrarumcavalo,edespediu-senestestermos:—Tenhodito,rapariga;aquiteentregoonossodoente:trata-ocomoqueméecomosefosseteu
irmãooumarido.OrostodeMarianaacerejou-sequandoaquelaúltimapalavrasaiu,naturalcomotodas,daboca
deseupai.AmoçaficouencostadaaobatentedaalcovadeSimão.—Nãofoinadaboaestapragaquelhecaiuemcasa,Mariana!—disseoacadêmico.—Fazerem-
naenfermeiradumdoente,eprivarem-natalvezdeircosturarnasuavaranda,econversarcomaspessoasquepassam...
—Quesemedáamimdisso?—respondeuela,sacudindooavental,ebaixandoocósaolugardacinturacominfantilgraça.
—Sente-se,Mariana;seupaidisse-lhequesesentasse...Vábuscarasuacostura,edê-medaliumafolhadepapeleumlápisqueestánacarteira.
—Masopaitambémmedissequeonãodeixasseescrever...—replicouela,sorrindo.—Pouco,nãofazmal.Euescrevoapenasalgumaslinhas.—Vejaláoquefaz...—tornouela,dando-lheopapeleolápis.—Olhesealgumacartaseperde,
esedescobretudo...—Tudooquê,Mariana?Poissabealgumacoisa.?—Eraprecisoqueeu fosse tola...Eunão lhedisse jáquesabiadasuaamizadeaumamenina
fidalgadacidade?—Disse.Masquetemisso?—Aconteceuoqueeureceava.Vossasenhoriaestáaíferido,etodaagentefalanunshomensque
aparecerammortos.—Quetenhoeucomoshomensqueaparecerammortos?—Paraqueestáafingir-sedenovas?!Poiseunãoseiqueesseshomenseramcriadosdoprimoda
talsenhora?Parecequevossasenhoriadesconfiademim,eestáaquererguardarumsegredoqueeutomaraqueninguémsoubesse,paraquemeupaieosenhorSimãonãotenhamalgunstrabalhosmaiores...
—Temrazão,Mariana;eunãodeviaesconderdesiomauencontroquetivemos.— E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê
remédioaessapaixão!...Opiorfuturoéoqueaindaestáporpassar...—Não,menina,istoacabaassim:euvouparaCoimbralogoqueestejabom,eameninadacidade
ficaemsuacasa.—Seassimfor,jáprometidoisarráteisdeceraaoSenhordosPassos;masnãomedizocoração
quevossasenhoriafaçaoquediz...—Muitoagradecidolheestoupelobemquemedeseja—disseSimão,comovido.—Nãoseioque
lhefizparalhemerecerasuaamizade.—Bastaveroqueoseupaizinhofezpelomeu—disseela,limpandoaslágrimas.—Oqueseria
demim,seelemefaltasse,esefosseàforcacomotodaagentedizia!...Eueraaindamuitonovaquando ele estava na enxovia. Teria treze anos;mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se elefossecondenadoàmorte.Seodegredassem,entãoiacomele;iamorrerondeelefossemorrer.NãohádianenhumqueeunãopeçaaDeusquedêaseupaitantosprazerescomoestrelastemocéu.Fuidepropósitoàcidadeparabeijarospésàsuamãezinha,evisuasmanas,euma,queeraamais
nova,deu-meumasaiadelapim,queeuaindaalitenhoguardadacomoumarelíquia.Depois,cadavezqueiaàfeira,davaumagrandevoltaparaverseacertavadeencontrarasenhoraD.Ritinhaàjanela;emuitasvezesviosenhorSimão.Etalveznãosaibaqueeuestavaabebernafontequandovossasenhoria,hádoisparatrêsanosdeumuitapancadanoscriados,queeramesmoumrebuliçoquepareciaofimdomundo.Euvimcontaraopai,eelecaiuaochãoadarrisadascomoumdoido...DepoisnuncamaisovisenãoquandovossasenhoriaentroucomotiodeCoimbra;masjásabiaquevinha para esta desgraça, porque tinha tido um sonho, em que viamuito sangue, e eu estava achorarporqueviaumapessoamuitominhaamigaacairnumacovamuitofunda...
—Issosãosonhos,Mariana!...—Sãosonhos,são;maseununcasonheinadaquenãoacontecesse.Quandoomeupaimatouo
almocreve, tinhaeusonhadoqueoviaadarumtironoutrohomem;antesdeminhamãemorrer,acordeieuachorarporela,emaisaindaviveudoismeses...Agentedacidaderi-sedossonhos,masDeussabeoqueistoé...Aívemmeupai...SenhordosPassos!Nãováseralgumamánova!...
JoãodaCruzentroucomumacartaque receberadapobredocostume.EnquantoSimão leuacartaescritadoconvento,Mariana fitouos seusgrandesolhosazuisno rostodoacadêmico, e, acada contração da fronte dele, angustiava-se-lhe a ela o coração. Não tevemão da sua ânsia, eperguntou:
—Énotíciamá?—Tuésmuitoatrevida,rapariga!—disseJoãodaCruz.—Nãoé,não—atalhouoestudante.—Nãoémánotícia,Mariana.SenhorJoão,deixe-meterna
suafilhaumaamiga,queosdesgraçadoséquesabemavaliarosamigos.—Issoéverdade;maseunãomeatreviaaperguntaroqueacartadiz.—Nemeuperguntei,meupai;foiporquemepareceuqueosenhorSimãoestavaaflitoquando
lia.—Enãoseenganou—tornouodoente,voltando-separaoferrador.—OpaiarrastouTeresaao
convento.— Sempre é patife duma vez! — disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um
movimentodequemapertaàsmãosumpescoço.Neste lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos deMariana um clarão de inocente
alegria.Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe chegou,
dizendo:—Enquantoescreve,vouolharpelocaldinho,queestáaferver.Enecessárioarrancar-tedaí—diziaacartadeSimão.—Esseconventohádeterumaevasiva.
Procura-a,edize-meanoiteeahoraemquedevoesperar-te.Senãopuderesfugir,essasportashãodeabrir-sediantedaminhacólera.Sedaítemandaremparaoutroconventomaislonge,avisa-me,que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças deânimopara tenãoassustaremosarrojosdaminhapaixão.Ésminha!Nãoseidequemeserveavida,seanãosacrificarasalvar-te.Creioemti,Teresa,creio.Ser-me-ásfielnavidaenamorte.Nãosofrascompaciência;lutacomheroísmo.Asubmissãoéumaignomíniaquandoopoderpaternaléuma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra,chama-me,eeusentireiqueaperdadosanguenãodiminuiasforçasdocoração.
Simãopediuasuacarteira,tiroudinheiroemprata,deu-oaoferrador,erecomendou-lhequeo
entregasseàpobrecomacarta.DepoisficourelendoadeTeresa,erecordando-sedarespostaquedera.MestreJoãofoiàcozinha,edisseaMariana:—Desconfiodeumacoisa,rapariga.—Oqueé,meupai?—Onossodoenteestásemdinheiro.—Porquê?Opaicomosabeisso?—Équeelepediu-meacarteiraparatirardinheiro,eelapesavatantocomoumabexigadeporco
cheiadevento.Istobole-mecápordentro!Queriaoferecer-lhedinheiroenãoseicomohádeser...
—Eupensareinisso,meupai—disseMarianarefletindo.—Poissim;cogitalátu,quetensmelhoresideiasqueeu.—E,seopainãoquiserbulirnosseusquatrocentos,eutenhoaqueledinheirodosmeusbezerros:
sãoonzemoedasdeouromenosumquarto.—Poisfalaremos:pensatunomododeeleaceitarsemremorsos.Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinônimo de escrúpulos, ou
repugnância.FoiMarianalevarocaldoaSimão,quelhorejeitoucomodistraídoemprofundocismar.—Poisnãotomaocaldinho?—disseelacomtristeza.—Nãoposso,nãotenhovontade,menina;serálogo.Deixe-mesozinhoalgumtempo;vá,vá;não
passeoseutempoaopédumdoenteaborrecido.—Nãomequeraqui?Irei,evoltareiquandovossasenhoriachamar.DisseraistoMarianacomosolhosaverteremlágrimas.Simãonotouaslágrimas,epensouummomentonadedicaçãodamoça;masnãolhedissepalavra
alguma.E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe ideias aflitivas que os
romancistasrarasvezesatribuemaosseusheróis.Nosromancestodasascrisesseexplicam,menosacriseignóbildafaltadedinheiro.Entendemosnovelistasqueamatériaébaixaeplebeia.Oestilovaidemávontadeparacoisasrasas.Balzac falamuitoemdinheiro;masdinheiroamilhões.Nãoconheço,noscinquenta livrosque tenhodele,umgalãnumentreatodasua tragédiaacismarnomododearranjarumaquantiacomqueumusuráriolhelança,desdeacasadojuizdepazatodasasesquinas, donde o assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Disto é que os mestres emromancesseescapamsempre.Bemsabemelesqueointeressedoleitorsegelaapassoigualqueoheróiseencolhenasproporçõesdestesheroizinhosdebotequim,dequemoleitordinheirosofogeporinstinto,eooutrofogetambém,porquenãotemquefazercomele.Acoisaévilmenteprosaica,detodoomeucoraçãooconfesso.Nãoébonitodeixaragentevulgarizar-seoseuheróiapontodepensar na falta de dinheiro, ummomento depois que escreveu àmulher estremecida uma cartacomo aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentesestaçõesdasestradasdopaís,carroçasefolgadasparelhasdemulasparatransportaremaParis,aVeneza,ouaoJapãoabelafugitiva!Asestradas,naqueletempo,deviamserboasparaisso,masnãotenhoacertezadequehouvesseestradasparaoJapão.Agoracreioquehá,porquemedizemquehátudo.
Poiseujálhesfizsaber, leitores,pelabocademestreJoão,queofilhodocorregedornãotinhadinheiro.Agoralhesdigoqueeraemdinheiroqueelecismava,quandoMarianalhetrouxeocaldorejeitado.
Ameuver,deviamatribulá-loestespensamentos:
ComopagariaahospitalidadedeJoãodaCruz?ComqueagradeceriaosdesvelosdeMariana?SeTeresafugisse,comquerecursoproveriaàsubsistênciadeambos?Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase lha
absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a quem devia oconhecimentodoprestanteferrador.
Asrelíquiasdessedinheirodera-aseleàportadoradacartanaqueledia.Másituação!Lembrou-sedeescreveràmãe.Quelhediriaele?Comoexplicariaasuaresidêncianaquelacasa?
DestemodonãoiriaeledarindíciosdamortemisteriosadosdoiscriadosdeBaltasarCoutinho?Alémdeque,sobejamentesabiaelequesuamãeonãoamava;e,amandar-lhealgumdinheiroem
segredo,seriaoescassamentenecessárioparaajornadaatéCoimbra.Péssimasituação!Cansadodepensar,favoreceu-oaprovidênciadosinfelizescomumsonoprofundo.EMarianaentrarapéantepénasala,e,ouvindo-lhearespiraçãoalta,aventurou-seaentrarna
alcova.Lançou-lheumlençodecassasobreorosto,emrodadoqualzumbiaumenxamedemoscas.Viuacarteirasobreumabanquetaqueadornavaoquarto,pegounela,esaiupéantepé.Abriuacarteira,viupapéis,quenãosoubeler,enumdosrepartimentosduasmoedasdeseisvinténs.Foirestituiracarteiraaoseulugar,etomoudeumcabideascalças,coleteejaquetaàespanhola,dohóspede.Examinouosbolsosenãoencontrouumceitil.
Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditavaangustiadaanobrerapariga.Depoisergueu-sedegolpe,conversoulongotempocomopai.JoãodaCruzescutou-a,contrariou-a,masiadevencidasemprepelasréplicasdafilha,atéque,afinal,disse:
—Fareioquedizes,Mariana.Dá-mecáoteudinheiro,quenãovouagora levantarapedradalareiraparabulirnocaixotedosquatrocentosmilréis.Tantofazumcomooutro:teuéeletodo.
Marianadeu-sepressa em ir à arca, donde tirouumabolsade linho comdinheiro emprata, ealgunscordões,anéisearrecadas.Guardouoseuouronumaboceta,edeuabolsaaopai.
JoãodaCruzaparelhouaéguaesaiu.Marianafoiparaasaladodoente.AcordouSimão.—Nãosabe!?—exclamouelacomsemblanteentrealegreeassustado,perfeitamentecontrafeito.—Queé,Mariana?—Suamãezinhasabequevossasenhoriaaquiestá.—Sabe?!Issoéimpossível!Quemlhodisse?—Nãosei;oqueseiéqueelamandouchamarmeupai.—Issoespanta-me!...Enãomeescreveu?—Não,senhor!...Agoramelembroquetalvezelasoubessequeosenhoraquiesteve,ecuideque
jánãoestá,eporissolhenãoescreveu...Poderáser?—Poderá...Masquemlhodiria!?Seistosesabe,entãopodemsuspeitardamortedoshomens.—Podeserquenão;eaindaquedesconfiem,nãohátestemunhas.Opaidissequenãotinhamedo
nenhum.Oqueforsoará.Nãoestejaacismarnisso...Vou-lhebuscarocaldinho,sim?—Vá,sequer,Mariana.Océudeparou-meemsiaamizadedumairmã.Nãoachouamoçanasuaalegrealmapalavrasemrespostaàdoçuraqueo rostodomancebo
exprimia.Veiocomo“caldinho”—diminutivoquearetóricadumalinguagemmeigasanciona;mascontrao
qualprotestavaalargaefundamalgabranca,aoladodatravessacommeiagalinhaloura,degorda.
—Tantacoisa!—exclamou,sorrindo,Simão.—Comaoquepuder—disseelacorando.—Eubemseiqueossenhoresdacidadenãocomem
emmalgastamanhas,maseunãotinhaoutramaispequena;ecomasemnojo,queestamalganuncaserviu,queafuieucompraràloja,porpensarquevossasenhorianãoquiseraontemcomerporseatrigardaoutra.
—Não,Mariana,nãosejainjusta,eunãotinha,nemtenhovontade.—Mascomaporeulhepedir...Perdoeomeuatrevimento...Façadecontaqueéumasuairmã
quelhepede.Aindaagoramedisse...—Queocéumedavaemsiaamizadedumairmã...—Poisaíestá...Simãoachoutãonecessárioàsuaconservaçãoosacrifício,comoaocontentamentodacarinhosa
Mariana.Passou-lhenamente,semsombradevaidade,aconjeturadequeeraamadodaqueladocecriatura.Entresidiziaqueseriaumacruezamostrar-seconhecedordetalafeiçãoquandonãotinhaalmaparalhapremiar,nemparalhementir.Assimmesmo,bemlongedeseafligir,lisonjeavam-noosdesvelosdagentilmoça.Ninguémsenteemsiopesodoamorqueseinspiraenãocomparte.Nasmáximasaflições,nasderradeirashorasdocoraçãoedavida,égratoaindasentir-seamadoquemjánãopodeacharnoamordiversãodaspenas,nemsoldaroúltimofioqueseestápartindo.Orgulhoou insaciabilidadedocoraçãohumano,sejaoque for,noamorquenosdãonósgraduamosoquevalemosemnossaconsciência.
Nãodesprazia,portanto,oamordeMarianaaoamanteapaixonadodeTeresa.Istoseráculpanoseverotribunaldasminhasleitoras;mas,semedeixamteropinião,aculpadeSimãoBotelhoestánafracanatureza,queétodagalasnocéu,nomarenaterra,etodaincoerências,absurdasevíciosno homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástica vai vivendo emorrendo.
CapítuloIX
DuashorassedetiveraJoãodaCruzforadecasa.Chegouquandoacuriosidadedoestudanteerajásofrimento.
—Estaráseupaipreso?!—disseeleaMariana.—Nãomodizocoração,eomeucoraçãonuncameengana—responderaela.ESimãoreplicara:—Equelhedizocoraçãoameurespeito,Mariana?Osmeustrabalhosficarãoaqui?—Vou-lhedizeraverdade,senhorSimão...Masnãodigo...—Digaquelhopeço,porquetenhofénobomanjoquefalaemsuaalma.Diga...—Poissim...Omeucoraçãodiz-mequeosseustrabalhosaindaestãonocomeço...Simãoouviu-aatentamenteenãorespondeu.Assombrou-lheoânimoestaideiaturva,eafrontosa
àsingelarapariga:—“PensaráelaemmedesviardeTeresa,parasefazeramar?”Pensavaassimquandochegouoferrador.—Aquiestoudevolta—disseelecomsemblantefestivo.—Suamãemandou-mechamar...—Jásei...Ecomosoubeelaqueeuestavaaqui?—Elasabiaqueofidalgoestiveracá:mascuidavaquevossasenhoriajátinhaidoparaCoimbra.
Quemlhodissenãosei,nemperguntei;porqueaumapessoaderespeitonãosefazemperguntas.Diziaelaquesabiaofimaqueosenhorvieraesconder-seaqui.Ralhoualgumacoisa;maseu,cácomo pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aquidepoisquea fidalguinha foraparao convento.Disse-lhequevossa senhoriaestavaadoentadodeumaquedaquederadocavaloabaixo.Tornouelaaperguntar-meseosenhortinhadinheiro;eeudisse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou daí a pouco com este embrulho, para eu lheentregar.Aíotemtalequal;nãoseiquantoé.
—Enãomeescreveu?—Dissequenãopodiairàescrivaninha,porqueestavaláosenhorcorregedor–respondeucom
firmezamestreJoão—etambémmerecomendouquenãolheescrevessevossasenhoriasenãodeCoimbra,porque,seseupaisoubessequeomeninocáestava,iatudorasoláemcasa.Oraaíestá.
—EnãolhefalounoscriadosdeBaltasar?—Nemumpio!...Lánacidadeninguémjáfalavanissohoje.—EquelhedissedasenhoraD.Teresa?— Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está a
escorreremfio.Órapariga,traze-mecáamanta.Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhado da estranha
liberalidade,Mariana,abraçandoopainorepartimentovizinhodacasa,exclamava:—Arranjoumuitobemamentira!—Ó rapariga, quemmentiu foste tu!Aquilo lá o arranjaste tu comessa tua cabecinha!Mas a
coisasaiuaopintar,hein?Elecomeu-aquenemconfeitos!Andalá,queficastesemosbezerros,maslávirátempoemqueeletedêboisatrocodebezerros.
—Eunãofizistoporinteresse,meupai...—atalhouela,ressentida.—Olhaomilagre!Issoseieu,mas,comodizláoditado;quemsemeia,colhe.Marianaquedoupensativa,edizendoentresi:—Aindabemqueelenãopodepensardemimo
quemeupaipensa.Deussabequenãotenhoesperançasnenhumasinteresseirasnoquefiz.Simãochamouoferrador,edisse-lhe:—MeucaroJoão,seeunãotivessedinheiro,aceitavasemrepugnânciaosseusfavores,ecreio
quevossemecêmosfariasemesperançadeganharcomeles;mas,comorecebiestaquantia,há-deconsentirquelhedêpartedelaparaosmeusalimentos.Motivosdegratidãoadividasquesenãopagamaindameficammuitosparanuncameesquecerdesiedasuaboafilha.Tomeestedinheiro.
—Ascontas fazem-seno fim—respondeuo ferrador, retirandoamão—eninguémnoshádeouvir,seDeusquiser.Precisandoeudedinheiro,cávenho.Porora,aindaestáacapoeiracheiadegalinhas,eopãocoze-setodasassemanas.
—Masaceite—instouSimão—edê-lheaaplicaçãoquequiser.—Emminhacasaninguémdáleissenãoeu—replicoumestreJoão,comsimuladoenfadamento.
—Guardeláoseudinheiro,fidalgo,enãofalemosmaisnisso,sequerqueonegóciovádireitoatéaofim.Evicto-sério!
NoscincosubsequentesdiasrecebeuSimãoregularmentecartasdeTeresa,umasresignadaseconfortadoras,outrasescritasnaviolênciaexasperadadasaudade.Emumadizia:
Meupaidevesaberqueestásaí,e,enquantoaíestiveres,decertomenãotiradoconvento.Seria
bomquefossesparaCoimbra,edeixássemosesquecerameupaiosúltimosacontecimentos.Senão,meuqueridoesposo,nemelemedáliberdade,nemeuseicomoheidefugirdesteinferno.Nãofazesideiadoqueéumconvento!SeeupudessefazerdomeucoraçãosacrifícioaDeus,teriadeprocurar
uma atmosferamenos viciosa que esta. Creio que em toda a parte sepode orar e ser virtuosa,menosnesteconvento.
Noutracartaexprimia-seassim:Nãomedesampares,Simão;nãovásparaCoimbra.Eureceioquemeupaimequeiramudardeste
conventoparaoutromaisrigoroso.Umafreiramedissequeeunãoficavaaqui;outrapositivamentemeafirmouqueopaidiligenciaaminhaidaparaummosteirodoPorto.Sobretudo,oquemeaterra,mas nãome dobra, é saber eu que o intento do pai é fazer-me professar. Pormais que imagineviolênciasetiranias,nenhumavejocapazdemearrancarosvotos.Eunãopossoprofessarsemsernoviçaumano,eiraperguntartrêsvezes;heiderespondersemprequenão.Seeupudessefugirdaqui!...Ontemfuiàcerca,eviláumaportadecarroquedáparaocaminho.Soubequealgumasvezesaquelaportaseabreparaentraremcarrosdelenha;masinfelizmentenãosetornaaabriratéaoprincípiodoinverno.Senãopuderantes,meuSimão,fugireinessetempo.
Tiveram,entretanto,bomeprontoêxitoasdiligênciasdeTadeudeAlbuquerque.Apreladade
Monchique,religiosadesumasvirtudes,cuidandoqueafilhadeseuprimomuitodesuadevoçãoeamor aDeus se recolhia aomosteiro, preparou-lhe casa, e congratulou-se coma sobrinhade tãopiedosa resolução.A carta congratulatórianãoa recebeuTeresa, porque vieraàmãode seupai.Continha ela reflexões tendentes a desvanecê-la do propósito, se algum desgosto passageiro aimpediaàimprudênciadeprocurarumrefúgioondeaspaixõesseexacerbavammais.
Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia deMonchiqueaqueriateremsuacompanhiaalgumtempo,equeajornadasefarianamadrugadadodiaseguinte.
Teresa,quandorecebeuasurpreendentenova,játinhaenviadoacartadaquelediaaSimão.Emsuaaflitivaperplexidade,resolveufazer-sedoente,etãofebrilestavadascomoções,quedispensavaoartifício.Ovelhonãoqueria transigircomadoença;masomédicodomosteiroreagiucontraadesumanidade do pai e da prioresa, interessada na violência. Quis Teresa nessa noite escrever aSimão;masacriadadaprelada,obedecendoàssuspeitasdaama,nãodesamparouacabeceiradoleitodaenferma.Eracausaaestaespionagemterditoaescrivã,numahorademádigestãodaquelecertovinhoestomacal,queTeresapassavaasnoitesemoraçãomental,etinhacorrespondênciacomumanjodocéuporintervençãodumamendiga.AlgumasreligiosastinhamvistoamendiganopátiodoconventoesperandoaesmoladeTeresa;mascuidaramqueeraaquelapobreumadevoçãodamenina.Aspalavrasirônicasdaescrivãforamcomentadas,eamendigarecebeuordemdesairdaportaria.Teresa,numímpetodeangústia,quandotalsoube,correuaumajanela,echamouapobre,que se retirava assustada, e lançou-lhe ao pátio um bilhete com estas palavras: “É impossível anossa correspondência. Vou ser tirada daqui para outro convento. Espera em Coimbra notíciasminhas”.Istofoirapidamenteaoconhecimentodaprioresa,e,logo,àsordensdela,partiuohortelãonoencalçodapobre.Ohortelãoseguiu-aatéforadaporta,espancou-a,tirou-lheobilhete,efoidoconvento apresentá-lo a Tadeu de Albuquerque. A mendiga não retrocedeu; caminhou à casa doferrador,econtouaSimãooacontecido.
Simão lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele aperto queria ouvir uma voz,queria poder chamar amigo a um homem que lhe estendesse mão capaz de apertar o cabo dumpunhal.Oferradorouviuahistóriaedeuoseuvoto:“esperaratéver”.Simãorepeliuaprudencialfriezadoconfidente,edissequepartiaparaViseuimediatamente.
Marianaestavaali;ouviraaconfidência,eacharaacertadaaopiniãodeseupai.Vedando,porém,aimpaciênciadohóspede,pediulicençaparafalarondenãoerachamada,edisse:
—SeosenhorSimãoquer,euvouàcidadeeprocuronoconventoaBrito,queéumaraparigaminhaconhecida,moçadumafreira,edou-lheumacartasuaparaentregaràfidalga.
—Issoépossível,Mariana?—exclamouSimão,apontodeabraçaramoça.—Poisentão!—disseoferrador.—Oquepodefazer-se,faz-se.Vai-tevestir,rapariga,queeuvou
botaroalbardãoàégua.Simãosentou-seaescrever.Tãoembaralhadaslheacudiamasideias,quenãoatinavaaformaro
desígnio mais proveitoso à situação de ambos. Ao cabo de longa vacilação, disse a Teresa quefugisse,àhoradodia,quandoaportaestivesseabertaouviolentasseaporteiraaabrir-lha.Dizia-lhequemarcasseelaahoradodiaseguinteemqueeleadeviaesperarcomcavalgadurasparaafuga.Emrecursoextremo,prometiaassaltarcomhomensarmadosomosteiro,ouincendiá-loparaseabriremasportas.Esteprogramaeraomaisparecidocomoespíritodoacadêmico.Emvivofogoardiaaquelapobrecabeça!Fechadaacarta,começouapassearemtorcicolos,comoseobedecesseadesencontrados impulsos.Encravaraasunhasnacabeça,earrancavaoscabelos. Investiacomocego contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso ímpeto.Maquinalmenteaferravadaspistolas,esacudiaosbraçosvertiginosos.Abriaacartapararelê-la,eestavaapontoderasgá-la,cuidandoqueiriatarde,ounãolhechegariaàsmãos.Nesteconflitode
contrários projetos, entrou Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver aslágrimas.
O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é gratidão aohomemquesalvouavidadeteupai,queraravirtudeatua!Seoamas,seporlhedaralívioàsdorestumesmalhedesempecesocaminhoporondeteelehádefugirparasempre,quenomedareiaoteuheroísmo!Queanjotefadouocoraçãoparaasantidadedesseobscuromartírio?!
—Estoupronta—disseMariana.—Aquitemacarta,minhaboaamiga.Façamuitopornãovirsemresposta—disseSimão,dando-
lhecomacartaumembrulhodedinheiro.—Eodinheirotambéméparaasenhora?—disseela.—Não,éparasi,Mariana:compreumanel.Marianatomouacarta,evoltourapidamenteascostasparaqueSimãonãolhevisseogestode
despeitosenãodesprezo.Oacadêmiconãoousouinsistir,vendo-aapressar-senadescidaparaoquinteiro,ondeoferrador
enfreavaaégua.— Não lhe chegues muito com a vara — disse João da Cruz a Mariana, que, de um pulo, se
assentouno albardão, cobertodeumacolcha escarlate.—Tu vais amarela comocidra,moça!—exclamouelereparandonapalidezdafilha—Tu,quetens?
—Nada;queheideeuter?!Dê-mecáavara,meupai.Aéguapartiuagalope,eoferrador,nomeiodaestrada,arever-senafilhaenaégua,diziaem
solilóquio,queSimãoouvira:—Valestumais,rapariga,quequantasfidalgastemViseu!Pelamaispintadanãodavaeuaminha
égua;e,secáviesseomiramolimdeMarrocospedir-meafilha,osdiabosmelevemseeulhadava!Istoéquesãomulheres,eomaiséumahistória!
CapítuloX
ApeouMarianadefrontedomosteiro,efoiàportariachamarasuaamigaBrito.—Queboamoça!—disseopadrecapelão,queestavanorarolateraldaporta,praticandocoma
prioresa,acercadasalvaçãodasalmas,edeumasancoretasdevinhodoPinhãoqueelereceberanaqueledia,edoqualjátinhaengarrafadoumalmudeparatonizaroestômagodaprelada.
—Queboamoça!—tornouele,comumolhonelaeoutronoraro,ondeaciumosaprioresaseestavaremordendo.
—Deixeláamoça,edigaquandohádeiraserventebuscarovinho.— Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele todo da
rapariga!...—PoisrepareosenhorpadreJoão—replicouafreira—queeutenhomaisquefazer.Eretirou-secomocoraçãomalferido,eoqueixosuperiorescorrendolágrimas...desimonte.—Dondeévossemecê?—dissebrandamenteopadrecapelão.—Soudaaldeia—respondeuMariana.—Issovejoeu...Masdequealdeiaé?—Nãomeconfessoagora.—Masnãofariamalseseconfessasseamim,menina,quesoupadre...—Bemvejo.—Quemalgêniotem!...—Éistoquevê.—Quemprocuracánoconvento?—Jádisseláparadentroquemprocuro.—Mariana,éstu?!Andacá!Amoçafezumacortesiadecabeçaaopadrecapelão,efoiaolocutóriodondevinhaaquelavoz.—Euqueriafalarcontigoemparticular,Joaquina—disseMariana.—Euvouversearranjoumagrade:esperaaí.Opadretinhasaídodopátio,eMariana,enquantoesperava,examinou,umaauma,asjanelasdo
mosteiro.Numadasjanelas,atravésdasreixasdeferro,viuelaumasenhorasemhábito.—Seráaquela?—perguntouMarianaaoseucoração,quepalpitava.—Seeufosseamadacomo
ela!...—Sobe aquelas escadinhas,Mariana, e entra na primeira porta do corredor, que eu lá vou—
disseJoaquina.Mariana deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde vira a senhora semhábito, e
repetiuainda:—Seeufosseamadacomoela!...Malentrounagrade,disseàsuaamiga:—Olha lá, Joaquina, quem é umameninamuito branca, alva como leite, que estava ali agora
numajanela?—Seriaalgumanoviça,queháduascámuitolindas.—Maselanãotinhavestimentanenhumadefreira.—Ah!jásei;éaD.TeresinhadeAlbuquerque.—Entãonãomeenganei—disseMariana,pensativa.—Poistuconhece-la?—Não;masporamordelaéqueeucávimfalarcontigo.—Entãoqueé?!Quetenstucomafidalga?—Eucá,pormimnada;mascomumapessoaquelhequermuito.—Ofilhodocorregedor?—Essemesmo.—MasesseestáemCoimbra,—Nãoseiseestá,nemsenão.Faz-metuumfavor?—Seeupuder...—Podes...Euqueriafalarcomela.—Ódianho!Issonãoseisepoderáser,porqueatrazemasfreirasdebaixodeolho,eelavai-se
emboraamanhã.—Paraondevai?—Vaiparaoutroconvento,nãoseisedeLisboa,sedoPorto.Osbaúsjáestãopreparados,eela
estámortaporsair.Etuquelhequeres?—Nãotopossodizer,porquenãosei...Queriadar-lheumpapel...Fazecomqueelavenhacá,que
eudou-techitaparaumvestido.— Como tu estás rica, Mariana!... — atalhou, rindo, Joaquina. — Eu não quero a tua chita,
rapariga.Seeupuderdizer-lhequevenha,semquealguémmeouça,digo-lho.Eagoraéboamaré,
porquetocouaocoro...Deixa-meláir...Joaquinasaiu-sebemdadifícilcomissão.Teresaestavasozinha,absorvidaacismar,comosolhos
fitosnopontoondeviraMariana.—Ameninafazfavordevircomigodepressinha?—disse-lheacriada.Seguiu-aTeresa,eentrounagrade,queJoaquinafechou,dizendo:—Omaisbrevequepossabatapordentroparaeulheabriraporta.Seperguntaremporvossa
excelência,digo-lhequeameninaestánomirante.AvozdeMarianatremia,quandoD.Teresalheperguntouquemera.—Souumaportadoradestacartaparavossaexcelência.—ÉdeSimão!—exclamouTeresa.—Sim,minhasenhora.Areclusaleuconvulsivaacartaduasvezes,edisse:—Eunãopossoescrever-lhe,quemeroubaramomeutinteiro,eninguémmeemprestaum.Diga-
lhequevoudemadrugadaparaoconventodeMonchique,doPorto.Quesenãoaflija,porqueeusousempreamesma.Quenãovenhacá,porqueissoseriainútil,emuitoperigoso.Queváver-meaoPorto,queheidearranjarmododelhefalar.Diga-lheisto,sim?
—Sim,minhasenhora.—Nãoseesqueça,não?Vircá,pormodonenhum.Éimpossívelfugir,evoumuitoacompanhada.
VaioprimoBaltasareasminhasprimas,emeupaienãoseiquantoscriadosdebagagemedasliteiras.Tirar-menocaminhoéumaloucuracomresultadosfunestos.Diga-lhetudo,sim?
Joaquinadisseforadaporta:—Menina,olhequeaprioresaandalápordentroaprocurá-la.—Adeus,adeus—disseTeresa,sobressaltada.—Tomeláestalembrançacomoprovademinha
gratidão.Etiroudodedoumaneldeouro,queofereceuaMariana.
—Nãoaceito,minhasenhora.—Porquenãoaceita?—Porquenãofizalgumfavoravossaexcelência.Areceberalgumapagahádeserdequemcá
memandou.FiquecomDeus,minhasenhora,eoxaláquesejafeliz.SaiuTeresa,eJoaquinaentrounagrade.—Játevaisembora,Mariana?—Vou,queépressa;umdiavireiconversarcontigomuito.Adeus,Joaquina.—Poisnãomecontasoqueistoé?Oamordafidalgaestápertodaqui?Conta,queeunãodigo
nada,rapariga!...—Outravez,outravez;obrigada,Joaquininha.Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e, se alguma vez se
distraíadesteexercíciodememória,eraparapensarnasfeiçõesdaamadadoseuhóspede,edizer,comoemsegredo,aoseucoração:“Nãolhebastavaserfidalgaerica:é,alémdetudo,lindacomonunca vi outra!” E o coração da pobre moça, avergando ao que a consciência lhe ia dizendo,
chorava.Simão,deumafrestadopostigodoseuquarto,espreitavaao longodocaminho,ouescutavaa
estropeadadacavalgadura.Ao descobrirMariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas e esquecido já do ferimento,
cujacrisedeperigopioraranaqueledia,queeraooitavodepoisdotiro.Afilhadoferradordeuorecado,esemalteraçãodepalavra.Simãoescutara-aplacidamenteaté
aopontoemquelheeladissequeoprimoBaltasaraacompanhavaaoPorto.—OprimoBaltasar!...—murmurouelecomumsorrisosinistro.—SempreesteprimoBaltasar
cavandoasuasepulturaeaminha!...—Asua,fidalgo!—exclamouJoãodaCruz.—Morraele,queolevemtrintamilhõesdediabos!
MasvossasenhoriahádeviverenquantoeuforJoão.Deixe-airparaoPorto,quenãotemperigonoconvento. De hora a hora Deus melhora. O senhor doutor vai para Coimbra, está por lá algumtempo,eàsduasportrês,quandoovelhomalseprecatar,a fidalguinhaengrampa-o,eésuatãocertocomoestaluzquenosalumia.
—Euheidevê-laantesdepartirparaCoimbra—disseSimão.—Olhequeelarecomendou-memuitoquenãofosselá—acudiuMariana.—Porcausadoprimo?—tornouoacadêmicoironicamente.—Achoquesim,eportalveznãoservirdenadaláirvossasenhoria—respondeutimidamentea
moça.—Lásequer,—bradoumestreJoão—amulhervai-se-lhetiraraocaminho.Nãotemmaisque
dizer.—Meupai!Nãometaestesenhoremmaiorestrabalhos!—disseMariana.—Nãotemdúvida,menina—atalhouSimão—euéquenãoquerometerninguémemtrabalhos.
Comaminhadesgraça,pormaiorqueelaseja,heideeulutarsozinho.JoãodaCruz,assumindoumagravidadedequeasuafigurararasvezesseenobrecia,disse:— Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça aos
trabalhos,queeles,comoooutroquediz,quandopegamdeensarilharumhomem,nãolhedeixamtomarfôlego.Eusouumrústico;mas,abemdizer,estounaqueladaquelequediziaqueomaldosseusburrinhosofizeraalveitar.Paixões...queasleveodiabo,emaisquemcomelasengorda.Porcausa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder.Mulhereshá tantas comoapraga, e são comoas rãsdo charco, quemergulhauma, e aparecemquatroàtonadaágua.Umhomemricoefidalgocomovossasenhoria,ondequertopaumacomumpalmodecaracomosequereumdotedeencheroolho.Deixe-aircomDeusoucomabreca,queela,setiverdesersua,nãolhehádevirdar,tantoandarparatráscomoparadiante:éditadodosantigos.Olhequeistonãoémedo, fidalgo.Tomesentido,queJoãodaCruzsabeoqueépôrdoishomens duma feita a olhar o Sete-Estrelo,mas não sabe o que émedo. Se o senhor quer sair àestradaetiraratalpessoaaopai,aoprimo,eaumregimento,sefornecessário,euvoumontarnaégua,edaquiatrêshorasestoudevoltacomquatrohomens,quesãoquatrodragões.
Simãofitaraosolhoschamejantesnosdoferrador,eMarianaexclamara,ajuntandoasmãossobreoseio:
—Meupai,nãolhedêessesconselhos!...—Cala-teaí,rapariga!—dissemestreJoão.—Vaitiraroalbardãoàégua,amanta-a,ebota-lhe
seco.Nãoésaquichamada.—Nãováaflita,senhora—disseSimãoàmoça,queseretirava,amargurada.—Eunãoaproveito
algunsdosconselhosdeseupai.Ouço-ocomboavontade,porqueseiquequeromeubem;masheidefazeroqueahonraeocoraçãomeaconselharem.
Aoanoitecer,Simão, comoestivesse sozinho, escreveuuma longa carta, daqual extratamososseguintesperíodos:
Considero-teperdida, Teresa.O sol de amanhãpode ser que eu onão veja. Tudo, emvoltade
mim,temumacordemorte.Parecequeofriodaminhasepulturameestápassandoosangueeosossos.Nãopossoseroquetuqueriasqueeufosse.Aminhapaixãonãoseconformacomadesgraça.
Erasaminhavida:tinhaacertezadequeascontrariedadesmenãoprivavamdeti.Sóoreceiodeperder-tememata.Oquemerestadopassadoéacoragemdeirbuscarumamortedignademimedeti.Setensforçaparaumaagonialenta,eunãopossocomela.Poderiavivercomapaixão infeliz;masesterancorsemvingançaéuminferno.Nãoheidedar
barataavida,não.Ficarássemmim,Teresa;masnãohaveráaíuminfamequetepersigadepoisdaminhamorte.Tenhociúmesdetodasastuashoras.Hásdepensarcommuitasaudadenoteuesposodocéu, enunca tirarásdemimosolhosda tuaalmaparaveresaopéde ti omiserávelquenosmatouarealidadedetantasesperançasformosas.Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo, esperando as orações das tuas
lágrimas.Asorações!Admiro-medestafaíscadeféquemealumianasminhastrevas.!...Tuderas-
mecomoamora religião,Teresa.Aindacreio;nãoseapagaa luz,queé tua;masaprovidênciadivinadesamparou-me.Lembra-tedemim.Vive,paraexplicaresaomundo,comatualealdadeaumasombra,arazãopor
quemeatraísteaumabismo.Escutaráscomglóriaavozdomundo,dizendoqueerasdignademim.Ahoraemqueleresestacarta...Nãoodeixaramcontinuaraslágrimas,nemdepoisapresençadeMariana.Vinhaelapôramesa
paraaceia,e,quandodesdobravaatoalha,disseemvozabafada,comoseasimesmasomenteodissesse:
—ÉaúltimavezqueponhoamesaaosenhorSimãoemminhacasa!—Porquedizisso,Mariana?—Porquemodizocoração.Desta vez, o acadêmicoponderou supersticiosamenteosditamesdo coraçãodamoça, e como
silênciomeditativodeu-lheaelaaevidênciaantecipadadovaticínio.Quandovoltoucomatravessadagalinha,vinhachorandoafilhadeJoãodaCruz.—Choracompenademim,Mariana?—disseSimão,enternecido.—Choro,porquemeparecequeonãotornareiaver;ou,seovir,serádemodoqueoxaláqueeu
morresseantesdeover.—Nãoserá,talvez,assim,minhaamiga...—Vossasenhorianãomefazumacoisaqueeulhepeço?—Veremosoquepede,menina.—Nãosaiaestanoite,nemamanhã.—Pedeoimpossível,Mariana.Heidesair,porquemematariasenãosaísse.—Entãoperdoeaminhaousadia.Deusotenhadasuamão.Araparigafoicontaraopaias intençõesdoacadêmico.Acudiu logomestreJoãocombatendoa
ideiadasaída,comencarecerosperigosdo ferimento.Depois,comonãoconseguissedissuadi-lo,resolveuacompanhá-lo.Simãoagradeceuacompanhia,masrejeitou-acomdecisão.Oferradornãocediadopropósito,eestavajápreparandoaclavina,earraçoandocommedidadobradaaégua—paraoquedesseeviesse—diziaele,quandooestudantelhedisseque,melhoravisado,resolveranãoiraViseu,eseguirTeresaaoPorto,passadososdiasdeconvalescença.FacilmenteoacreditouJoão da Cruz; masMariana, submissa sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou damudança,edisseaopaiquevigiasseofidalgo.
Àsonzehorasdanoite,ergueu-seoacadêmico,eescutouomovimentointeriordacasa:nãoouviuomaisligeiroruído,anãoserorangidodaéguanamanjedoura.Escorvoudepólvoranovaasduaspistolas. Escreveu um bilhete sobrescritado a João da Cruz, e ajuntou-o à carta que escrevera aTeresa.Abriuasportasdajaneladoseuquarto,epassoudaliparaavarandadepau,daqualosaltoà estrada era sem risco. Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a fresta, lateral à porta davaranda,seabriu,eavozdeMarianalhedisse:
—Entãoadeus,senhorSimão.EuficopedindoaNossaSenhoraquevánasuacompanhia.O acadêmico parou, e ouviu a voz íntima que lhe dizia: “O teu anjo da guarda fala pela boca
daquelamulher,quenãotemmaisinteligênciaqueadocoraçãoalumiadopeloseuamor”.—Dêumabraçoemseupai,Mariana—disse-lheSimão—,eadeus...atélogo,ou...—Atéaojuízofinal...—atalhouela.—Odestinohádecumprir-se...Sejaoqueocéuquiser.Tinha Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu a lâmpada do santuário, e
ajoelhouorandocomofervordaslágrimas.Eraumahora, e estavaSimãodefrontedo convento, contemplandoumaaumaas janelas.Em
nenhumaviraclarãodeluz;sóadolampadáriodoSacramentosecoavabaçaepálidanavidraçadumafrestadotemplo.Sentou-senasescaleirasdaigreja,eouviuali,imóvel,asquatrohoras.Dasmil visões que lhe relancearam no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia era a deMariana suplicante, com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos deTeresa,torturadapelasaudade,pedindoaocéuqueasalvassedasmãosdeseusalgozes.OvultodeTadeudeAlbuquerque, arrastandoa filhaaumconvento,não lheafogueavaa sededavingança;mas cada vez que lhe acudia àmente a imagemodiosa deBaltasarCoutinho, instintivamente asmãosdoacadêmicoseasseguravamdapossedaspistolas.
Àsquatrohoraseumquarto,acordouanaturezatodaemhinoseaclamaçõesaoraiardaalva.Ospassarinhos trinavam na cerca do mosteiro melodias interrompidas pelo toque solene das Ave-Mariasnatorre.Ohorizontepassaradeescarlateaalvacento.Apúrpuradaaurora,comolabaredaenorme,desfizera-seempartículasdeluz,queondeavamnodeclivedasmontanhas,esedistendiamnasplaníciesenasvárzeas,comoseoanjodoSenhor,àvozdeDeus,viessedesenrolandoaosolhosdacriaturaasmaravilhasdorepontardumdiaestivo.
Enenhumadestasgalasdocéuedaterraenlevaraosolhosdomoçopoeta!Às quatro horas emeia, ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se àquele ponto.Mudou de
local,tomandoporumaruaestreita,fronteiraaoconvento.Pararamasliteirasvaziasnaportaria,elogodepoischegaramtrêssenhorasvestidasdejornada,
que deviam ser as irmãs de Baltasar, acompanhadas de doismochilas com asmulas à rédea. Asdamasforamsentar-senosbancosdepedra,lateraisàportaria.Emseguidaabriu-seagrossaporta,rangendonosgonzos,eastrêssenhorasentraram.
Momentos depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque, encostado ao braço deBaltasarCoutinho.Ovelhodenotavaquebrantoedesfalecimentoaespaços.OdeCastroDaire,bemcompostodefiguraecaprichosamentevestidoàcastelhana,gesticulavacomoaprumodequemdáassuasirrefutáveisrazões,econsolatomandoarisoadoralheia.
—Nadadelamúrias,meutio!—diziaele.—Desgraçaseriavê-lacasada!Euprometo-lheantesdeumanorestituir-lhecurada.Umanodeconventoéumótimovomitóriodocoração.Nãohánadacomo issopara limparosarrodovícioemcoraçõesdemeninascriadasàdiscrição.Semeu tioaobrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la-ia agora submissa, e ela não se julgariaautorizadaaescolhermarido.
—Eraumafilhaúnica,Baltasar!—diziaovelhosoluçando.—Pois por issomesmo— replicou o sobrinho.—Se tivesse outra, ser-lhe-iamenos sensível a
perda,emenosfunestaadesobediência.Fariaasuacasanafilhamaisquerida,emborativessedeimpetrarumalicençarégiaparadeserdaraprimogênita.Assim,agora,nãolhevejooutroremédiosenãoempregarocautérioàchaga;comemplastroséquesenãofaznada.
Abriu-senovamenteaportariaesaíramastrêssenhoras,eapóselasTeresa.Tadeu enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que não ergueu do chão os
olhos.—Teresa...—disseovelho.—Aquiestou,senhor—respondeuafilha,semoencarar.—Aindaétempo—tornouAlbuquerque.—Tempodequê?—Tempodeseresboafilha.—Nãomeacusaaconsciênciadeonãoser.—Aindamais?!...Queresirparatuacasa,eesqueceromalditoquenosfazatodosdesgraçados?—Não,meupai.Omeudestinoéoconvento.Esquecê-lonempormorte.Sereifilhadesobediente,
masmentirosaéquenunca.Teresa,circunvagandoosolhos,viuBaltasar,eestremeceu,exclamando:—Nemaqui!—Falacomigo,primaTeresa?—disseBaltasar,risonho.—Consigofalo!Nemaquimedeixaasuaodiosapresença?—Souumdoscriadosqueminhaprimalevaemsuacompanhia.Doistinhaeuhádias,dignosde
acompanharemaminhaprima,masesseshouveaíumassassinoquemosmatou.Afaltadeles,soueuquemeofereço.
—Dispenso-odadelicadeza—atalhouTeresa,comveemência.—Euéquemenãodispensodeaservir,àfaltadosmeusdoisfiéiscriados,queumceleradome
matou.—Assimdeviaser—tornouelatambémirônica—porqueoscovardesescondem-senascostas
doscriados,quesedeixammatar.—Aindasenãofizeramascontasfinais...minhaqueridaprima—redarguiuomorgado.Estediálogocorreurapidamente,enquantoTadeudeAlbuquerquecortejavaaprioresaeoutras
religiosas.Asquatrosenhoras,seguidasdeBaltasar,tinhamsaídodoátriodoconvento,ederamderostoemSimãoBotelho,encostadoàesquinadaruafronteira.
Teresaviu-o...adivinhou-o,primeiradetodas,eexclamou:—Simão!Ofilhodocorregedornãosemoveu.Baltasar,espavoridodoencontro,fitandoosolhosnele,duvidavaainda.—Éincrívelqueesteinfameaquiviesse!—exclamouodeCastroDaire.Simãodeualgunspassos,edisseplacidamente:—Infame...eu!Eporquê?—Infame,einfameassassino!—replicouBaltasar.—Jáforadaminhapresença!— É parvo este homem! — disse o acadêmico. — Eu não discuto com sua senhoria... Minha
senhora—disseeleaTeresa,comavozcomovidaeosemblantealteradounicamentepelosafetosdocoração.—Sofracomresignação,daqualeulheestoudandoumexemplo.Leveasuacruz,semamaldiçoaraviolência,ebempodeserqueameiocaminhodoseucalvárioamisericórdiadivinalheredobreasforças.
—Quedizestepatife?!—exclamouTadeu.—Vemaquiinsultá-lo,meutio!—respondeuBaltasar.—Temapetulânciadeseapresentarasua
filhaaconfortá-lanasuamalvadez!Istoédemais!Olhequeeuesmago-oaqui,seuvilão.
—Vilãoéodesgraçadoquemeameaça,semousaravançarparamimumpasso—redarguiuofilhodocorregedor.
— Eu não o tenho feito— exclamou enfurecidamente Baltasar— por entender queme avilto,castigando-onapresençadecriadosdemeutio,quetupodessupormeusdefensores,canalha!
—Seassimé—tornouSimão,sorrindo—,esperonuncameencontrarderostocomsuasenhoria.Reputo-otãocovarde,tãosemdignidade,queoheidemandarazorragarpeloprimeiromarioladasesquinas.
BaltasarCoutinholançou-sedeímpetoaSimão.Chegouaapertar-lheagargantanasmãos;masdepressaperdeuovigordosdedos.Quandoasdamaschegaramainterpor-seentreosdois,Baltasartinhaoaltodocrânioabertoporumabala,quelheentraranafronte.Vacilouumsegundo,ecaiudesamparadoaospésdeTeresa.
Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam Simão, queconservavaodedonogatilhodaoutrapistola.Animadosunspelosoutrosepelosbradosdovelho,iamlançar-seaohomicida,comriscodevida,quandoumhomem,comumlençopelacara,correudaruafronteira,esecolocou,debacamarteaperrado,àbeiradeSimão.Estacaramoshomens.
—Fuja,queaéguaestáaocabodarua—disseoferradoraoseuhóspede.—Nãofujo...Salve-se,edepressa—respondeuSimão.—Fuja,queseajuntaopovoenãotardamaísoldados.—Jálhedissequenãofujo—replicouoamantedeTeresa,comosolhospostosnela,quecaíra
desfalecidasobreasescadasdaigreja.—Estáperdido!—tornouJoãodaCruz.—Jáoestava.Vá-seembora,meuamigo,porsuafilhalhorogo.Olhequepodeser-meútil;fuja...Abriram-setodasasportasejanelas,quandooferradorselançounafugaatécavalgaraégua.Umdosvizinhosdomosteiro,que,emrazãodoseuofício,primeirosaiuàrua,eraomeirinho-
geral.—Prendam-no,prendam-no,queéummatador!—exclamavaTadeudeAlbuquerque.—Qual?—perguntouomeirinho-geral.—Soueu—respondeuofilhodocorregedor.—Vossasenhoria!—disseomeirinho,espantado;e,aproximando-se,acrescentouameiavoz:—
Venha,queeudeixo-ofugir.—Eunãofujo—tornouSimão.—Estoupreso.Aquitemaminhasarmas.Eentregouasarmas.TadeudeAlbuquerque,quandoserecobroudoespasmo,feztransportarafilhaaumadasliteiras,
eordenouquedoiscriadosaacompanhassemaoPorto.AsirmãsdeBaltasarseguiramocadáverdeseuirmãoparacasadotio.
CapítuloXI
O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou à esposa, que elesupunha também desperta na câmara imediata, que bulha era aquela. Como ninguém lherespondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e berrou ao mesmo tempo, aterrado pelahipótesedeincêndionacasa.QuandoD.Ritaacudiu,jáeleestavaenfiandooscalçõesàsavessas.—Queestrondoéeste?Queméquegrita?—exclamouDomingosBotelho.—Quemgritamaiséosenhor—respondeuD.Rita.—Soueu?!Masqueméquechora?—Sãosuasfilhas.—Eporquê?Diganumapalavra.—Poissim,direi:oSimãomatouumhomem.—EmCoimbra?...Efazemtantabulhaporisso!—NãofoiemCoimbra,foiemViseu—tornouD.Rita.—Asenhoramangacomigo?!PoisorapazestáemCoimbra,emataemViseu!Aíestáumcaso
paraqueasOrdenaçõesdoReinonãoprovidenciaram.— Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Baltasar Coutinho,
sobrinhodeTadeudeAlbuquerque.DomingosBotelhomudouinteiramentedeaspecto.—Foipreso?—perguntouocorregedor.—Estáemcasadojuizdefora.—Manda-me chamar o meirinho-geral. Sabe como foi e por que foi essa morte?... Mande-me
chamaromeirinho,semdemora.—Porquesenãovesteosenhor,evaiàcasadojuiz?—Quevoueufazeràcasadojuiz?—Saberdeseufilhocomoistofoi.—Senãosoupai;soucorregedor.Nãomeincumbeamiminterrogá-lo.SenhoraD.Rita,eunão
queroouvirchoradeiras;digaàsmeninasquesecalem,ouquevãochorarnoquintal.Omeirinho,chamado,relatoumiudamenteoquesabiaedisseter-severificadoqueoamoràfilha
doAlbuquerqueforacausadaqueledesastre.DomingosBotelho,ouvidaahistória,disseaomeirinho:—Ojuizdeforaquecumpraasleis;seelenãoforrigoroso,euoobrigareiasê-lo.Ausenteomeirinho,disseD.RitaPreciosaaomarido:—Quesignificaessemododefalardeseufilho?—Significaquesoucorregedordestacomarca,equenãoprotejoassassinosporciúmes,eciúmes
dafilhadumhomem,queeudetesto.EuantesqueriavermilvezesmortoSimãoqueligadoaessafamília.Escrevi-lhemuitasvezesdizendo-lhequeoexpulsavademinhacasa,sealguémmedesseacertezadequeele tinhacorrespondênciacom talmulher.Nãohádequerera senhoraqueeuvásacrificaraminhaintegridadeaumfilhorebelde,edemaisamaishomicida.D.Rita,algumtantoporafetomaternalebastanteporespíritodecontradição,contendeulargo
espaço;masdesistiu,obrigadapelainsólitapertináciaecóleradomarido.Tãoiracundoeásperoempalavras nunca ela o vira. Quando lhe ele disse: — “Senhora, em coisas de pouca monta o seudomínioeratolerável;emquestõesdehonra,oseudomínioacabou:deixe-me!”—D.Rita,quandotalouviu,ereparounafisionomiadeDomingosBotelho,sentiu-semulher,eretirou-se.Apontofoiistodeentrarojuizdeforanasaladeespera.Ocorregedorfoirecebê-lo,nãocomo
semblante afetuoso de quem vai agradecer a delicadeza e implorar indulgência, senão que, decarrancudoque ia,maisparecera irelerepresentaro juiz,porvirnaquelavisitadaracrerqueabalançadajustiçanasuamãotremiaalgumasvezes.—Começopordaravossasenhoriaospêsamesdadesgraçadeseufilho—disseojuizdefora.—Obrigadoavossasenhoria.Seitudo.Estáinstauradooprocesso?—Nãopodiadeixareudeaceitaraquerela.—Seanãoaceitasse,obrigá-lo-iaeuaocumprimentodosseusdeveres.— A situação do senhor Simão Botelho é péssima. Confessa tudo. Diz que matou o algoz da
mulherqueeleamava...—Fezmuitobem—interrompeuocorregedor,soltandoumacasquinadasecaerouca.—Perguntei-lhesefoiemdefesa,efiz-lhesinalquerespondesseafirmativamente.Respondeuque
não;que,adefender-se,ofariacomapontadabota,enãocomumtiro.Busqueitodososmodoshonestosdeolevaradaralgumasrespostasquedenotassemalucinaçãooudemência;ele,porém,responde e replica com tanta igualdade e presença de espírito, que é impossível supor que oassassínionãofoiperpetradomuitointencionalmenteedeclarojuízo.Aquitemvossasenhoriaumaespecialíssimaetristeposição.Queriavaler-lhe,enãoposso.—Eeunãopossonemquero,senhordoutorjuizdefora.Estánacadeia?
— Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria determina que lhe sejapreparadacomdecênciaaprisão.—Eunãodeterminonada.FaçadecontaqueopresoSimãonãotemaquiparentealgum.—Mas, senhor doutor corregedor— disse o juiz de fora com tristeza e compunção—, vossa
senhoriaépai.—Souummagistrado.—Édemasiadaaseveridade;perdoe-meareflexão,queéamiga.Láestáaleiparaocastigar;não
ocastiguevossasenhoriacomoseuódio.Adesgraçaquebrantaorancordeestranhos,quantomaisoafetuosoressentimentodeumpai!— Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me fala. Cumpra os seus
deveres,quelhoordenaocorregedor,eoamigomaistardelheagradeceráadelicadeza.Saiuojuizdefora,efoiencontrarSimãonamesmaserenidadeemqueodeixara.—Venhodefalarcomseupai—disseojuiz;—encontrei-omaisiradodoqueeranaturalcalcular.
Pensoqueporenquantonadapodeesperardainfluênciaoupatrocíniodele.—Istoqueimporta?—respondeusossegadamenteSimão.—Importamuito,senhorBotelho.Seseupaiquisesse,haveriameiosdemaistardelheadoçara
sentença.—Quemeimportaamimasentença?—replicouofilhodocorregedor.—Peloquevejo,nãolheimportaaosenhoriraumaforca?—Não,senhor.—Quediz,senhorSimão!—redarguiuespantadoointerrogador.—Digoqueomeucoraçãoéindiferenteaodestinodaminhacabeça.— E sabe que seu pai não lhe dámesmo proteção, a proteção das primeiras necessidades na
cadeia?—Nãosabia;quetemisso?Queimportamorrerdefome,oumorrernopatíbulo?—Porquenãoescreveasuamãe?Peça-lheque...—Queheideeupediraminhamãe?—atalhouSimão.—Peça-lhequeamacieacóleradeseupai,senãoosenhorBotelhonãotemquemoalimente.—Vossasenhoriaestá-mejulgandoummiserável,aquemdácuidadosaberondehádealmoçar
hoje.Pensoquenãoincumbemaosenhorjuizdeforaessasmiudezasdeestômago.—Decertonão—redarguiu,irritado,ojuiz—façaoquequiser.E, chamando o meirinho-geral, entregou-lhe o réu, dispensando o aguazil de pedir força para
acompanhá-lo.Ocarcereirorecebeurespeitosamenteopreso,ealojou-onumdosquartosmelhoresdocárcere;
masnuedesprovidodomínimoconforto.Umoutropresoemprestou-lheumacadeiradepau.Simãosentou-se,cruzouosbraçosemeditou.Poucodepois,umcriadodeseupaiconduziu-lheoalmoço,dizendo-lhequesuamãelhomandava
aocultas,eentregando-lheumacartadela,cujoconteúdoimportasaber.Simão,antesdetocarnoalmoço,cujocabazestavanopavimento,leuoseguinte:Desgraçado,queestásperdido!Eu não te posso valer, porque teu pai está inexorável. Às escondidas dele é que te mando o
almoço,enãoseisepodereimandar-teojantar!Quedestinooteu!Oxaláquetivessesmorridoaonascer!Mortomedisseramquetinhasnascido;masoteufataldestinonãoquislargaravítima.ParaquesaístedeCoimbra?Aquevieste,infeliz?AgoraseiquetensvividoforadeCoimbrahá
quinzedias,enuncativesteumapalavraquedissessesatuamãe!Simãosuspendeualeitura,edisseentresi:—Comoseentendeisto?!PoisminhamãenãomandouchamaroJoãodaCruz!Enãofoielaquem
memandouodinheiro?—Olhequeoalmoçoarrefece,menino!—disseocriado.Simãocontinuoualer,semouvirocriado:Devesestarsemdinheiro,eeudesgraçadamentenãopossohojeenviar-teumpinto.Teu irmão
Manuel,desdeque fugiuparaEspanha,absorve-me todasaseconomias.Veremos,passadoalgumtempo,oquepossofazer;masreceiobemqueteupaisaiadeViseu,enosleveparaVilaReal,paraabandonardetodooteujulgamentoàseveridadedasleis.MeupobreSimão!Ondeestariastuescondidoquinzedias?!Hojemesmoéqueteupaitevecarta
dumlente,participando-lheatuafaltanasaulas,esaídaparaoPorto,segundodiziaoarreeiroqueteacompanhou.Nãopossomais.TeupaijáespancouaRitinha,porelaquereriràcadeia.Contacomopoucovalordatuapobremãeeaopédumhomemenfurecidocomoestáteupai.
SimãoBotelhorefletiualgunsminutos,econvenceu-sedequeodinheirorecebidoeradeJoãoda
Cruz.Quandosaiucomoespíritodestameditação,tinhaosolhosmarejadosdelágrimas.—Nãochore,menino—disseocriado.—Ostrabalhossãoparaoshomens,eDeushádefazer
tudopelomelhor.Almoce,senhorSimão.—Levaoalmoço—disseele.—Poisnãoqueralmoçar?!—Não.Nemvoltesaqui.Eunãotenhofamília.Nãoqueroabsolutamentenadadacasademeus
pais.Dizaminhamãequeeuestousossegado,bemalojado,efeliz,eorgulhosodaminhasorte.Vai-teemborajá.Ocriadosaiu,edisseaocarcereiroqueoseuinfelizamoestavadoido.D.Ritaachouprovávela
suspeitadoservo,eviuaevidênciadaloucuranaspalavrasdofilho.Quando o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado de uma rapariga
camponesa:eraMariana.AfilhadeJoãodaCruz,queatéàquelemomentonãoapertavasequeramãodohóspede,correuaelecomosbraçosabertoseorostobanhadodelágrimas.Ocarcereiroretirou-se,dizendoconsigo:—“Estaébemmaisbonitaqueafidalga!”—Nãoqueroverlágrimas,Mariana—disseSimão.—Aqui,sealguémdevechorar,soueu;mas
lágrimasdignasdemim, lágrimasdegratidãoaos favoresque tenho recebidodesi ede seupai.Acabodesaberqueminhamãenuncamemandoudinheiroalgum.Eradeseupaiaqueledinheiroquerecebi.Marianaescondeuorostonoaventalcomqueenxugavaopranto.—Seupaitevealgumperigo?—tornouSimãoemvozperceptíveldela.—Não,senhor.—Estáemcasa?—Está,eparecefurioso.Queriaviraqui,maseunãoodeixei.—Perseguiu-oalguém?—Não,senhor.—Diga-lhequenãoseassuste,evádepressasossegá-lo.—Eunãopossoirsemfazeroqueelemedisse.Euvousair,evoltodaquiapouco.—Mande-mecomprarumabanca,umacadeira,eumtinteiroepapel—disseSimão,dando-lhe
dinheiro.—Hádevirlogotudo;jácápodiaestar;masopaidisse-mequenãocomprassenadasemsaber
sesuafamílialhemandavaonecessário.—Eunãotenhofamília,Mariana.Tomeodinheiro.—Nãorecebodinheiro,semlicençademeupai.Paraessascomprastrouxeeudemais.Easua
feridacomoestará?—Aindaagoramelembroquetenhoumaferida!—disseSimão,sorrindo.—Deveestarboa,que
nãomedói...SoubealgumacoisadeD.Teresa?—SoubequefoiparaoPorto.Estavamaliacontarqueopaiamandarametersemsentidosna
liteira,eestámuitopovoàportadofidalgo.—Estábom,Mariana...Nãohádesgraçadosemamparo.Vá,pensenoseuhóspede, sejao seu
anjodemisericórdia.Saltaramdenovoaslágrimasdosolhosdamoça;e,porentresoluços,estaspalavras:—Tenhapaciência.Nãohádemorreraodesamparo.Façadecontaquelheapareceuhojeuma
irmã.E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos e uma garrafa de licor de
canela,quedepôssobreacadeira.—Mau almoço é;mas não achei outra coisa pronta— disse ela, e saiu apressada, como para
pouparaoinfelizpalavrasdegratidão.
CapítuloXII
Ocorregedor,nessemesmodia,ordenouquesepreparassemmulherefilhasparanodiaimediatosaíremdeViseucomtudoquepudessesertransportadoemcavalgaduras.
Voudescreverasingelaedoridareminiscênciadumasenhoradaquelafamília,comoatenhoemcartarecebidahámeses:
Já lávãocinquentaeseteanos,eaindamelembro,comosefossemontempassados,ostristes
acontecimentosdaminhamocidade.Nãoseicomoéquetenhohojemaisclaraamemóriadascoisasda infância. Parece-me que há trinta anos me não lembravam com tantas circunstâncias epormenores.
Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús, rompemostodasnumchoroque irritoua iradopai.Asmanas,comomaisvelhasoumaisafeitasaocastigo,calaram-selogo.Eu,porém,quesóumavez,eunicamenteporcausadeSimão,tinhasidocastigada,continueiachorar,etiveoinocentevalordepediraopaiquemedeixasseirveromanoàcadeiaantesdesairmosdeViseu.
Entãofuicastigadapelasegundavez,easperamente.O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão já tinha alguns
móveis no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado. Àquela hora todos os sinos deViseuestavamdobrandoafinadosporalmadeBaltasar.
Ao pé dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta de lágrimas.Apontando-aaocriadoqueaobservava,disseSimão:—Aminhafamíliaéesta.
Nodia seguinte, ao romper damanhã, partimos paraVilaReal. Amãe chorava sempre; o pai,encolerizadoporisso,saiudaliteiraemquevinhacomela,fezqueeupassasseparaoseulugar,efeztodaajornadanaminhacavalgadura.
LogoquechegamosaVilaReal,eramtãofrequentesasdesordensemcasa,àcontadoSimão,quemeu pai abandonou a família, e foi sozinho para a quinta de Montezelos. A mãe quis tambémabandonar-noseirparaosprimosdeLisboa,afimdesolicitarolivramentodomano.Masopai,quefizera uma espantosa mudança de gênio, quando tal soube, ameaçou minha mãe de a obrigarjudicialmenteanãosairdacasadeseumaridoefilhas.
Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho não respondia: anosdepois,vimosentreospapéisdemeupaitodasascartasqueelaescrevera.Jásevêqueopaiasfaziatirarnocorreio.
Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade com que elaacudiaàsnecessidadesdeseu infeliz filho.Estacarta foi-lheentregueporumalmocreve;quandonão,teriaodestinodasoutras.Espantou-seminhamãedoconceitoemqueatinhaasuaamiga,econfessou-lhequenãootinhasocorrido,porqueofilhorejeitaraopoucoqueelaquiserafazeremseubem.AistorespondeuasenhoradeViseuqueumarapariga,filhadumferrador,estavavivendonasvizinhançasdacadeia, e cuidavadopresocomabundânciae limpeza, e a todosdiziaquealiestavaporordemeàcustadasenhoraD.RitaPreciosa.Acrescentavaaamigademinhamãequealgumasvezesmandarachamarabelamoça,e lhequiseradaralgunscozinhadosmaisesquisitosparaSimão,osquaiselarejeitava,dizendoqueosenhorSimãonãoaceitavanada.
De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre tristes, porque, na ausência demeu pai,conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas de Viseu contra o meudesgraçadoirmão.
Amãeescreviaaosseusparentesdacapitalimplorandoagraçarégiaparaofilho;masaquelascartasnãosaíamdocorreio,eiamdartodasàmãodemeupai.
Equefaziaeste,entretanto,naquinta,semfamília,semglória,nemrecompensaalgumaatantasfaltas?Rodeadodejornaleiros,cultivavaaquelegrandemontadoondeaindahoje,porentreostojoseurzes,quevoltaramcomoabandono,sepodemverrelíquiasdecepasplantadasporele.Amãeescrevia-lhelastimandoofilho;meupaiapenasrespondiaqueajustiçanãoeraumabrincadeira,equenaAntiguidadeosprópriospaiscondenavamosfilhoscriminosos.
Teveminhamãe a afoiteza de se lhe apresentar umdia, pedindo licença para ir a Viseu.Meuinexorávelpainegou-lha,einvectivou-afuriosamente.
Passadossetemeses,soubemosqueSimãotinhasidocondenadoamorrernaforca,levantadanolocalondefizeraamorte.Fecharam-seasjanelasporoitodias;vestimosdeluto,eminhamãecaiudoente.
QuandoistosesoubeemVilaReal,todasaspessoasilustresdaterraforamaMontezelos,afimdeobrigarembrandamenteopaiaempregaroseuvalimentonasalvaçãodo filhocondenado.DeLisboavieramalgunsparentesprotestarcontraainfâmia,quetamanhaignomíniafariarecairsobreafamília.Meupaiatodosrespondiacomestaspalavras:—Aforcanãofoiinventadasomenteparaos que não sabem o nome do seu avô. A ignomínia das famílias são as más ações. A justiça não
infamasenãoaquelequecastiga.Tínhamosnósumtio-avô,muitovelhoevenerando,chamadoAntôniodaVeiga.Foiestequemfez
omilagre, e foi assim:Apresentou-se ameu pai, e disse-lhe:—Guardou-meDeus a vida até aosoitentaetrêsanos.Podereivivermaisdoisoutrês?Istonemjáévida;masfoi-o,ehonrada,esemmancha até agora, e já agora há de assim acabar; meus olhos não hão de ver a desonra de suafamília. Domingos Botelho, ou tu me prometes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tuapresençamemato.—E,dizendoisto,apontavaaopescoçoumanavalhadebarba.Meupaiteve-lhemãodobraço,edissequeSimãonãoseriaenforcado.
Nodia seguinte, foimeupai para o Porto, onde tinhamuitos amigos naRelação, e de lá paraLisboa.
Emprincípiodemarçode1805,soubeminhamãe,comgrandeprazer,queSimãoforaremovidoparaascadeiasdaRelaçãodoPorto,vencendoosgrandesobstáculosqueopuseramaessamudançaosqueixosos,queeramTadeudeAlbuquerqueeasirmãsdomorto.
Depois...Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa de sucessos, que
importa,emrespeitoàarte,atarnofiocortado.SimãoBotelhoviraimperturbávelchegarodiadojulgamento.Sentou-senobancodoshomicidas
sem patrono nem testemunhas de defesa. Às perguntas respondeu com o mesmo ânimo friodaquelasrespostasaointerrogatóriodojuízo.Obrigadoaexplicaracausadocrime,deu-acomtodaa lealdade, sem articular o nome de Teresa Clementina de Albuquerque. Quando o advogado daacusaçãoproferiuaquelenome,SimãoBotelhoergueu-sedegolpe,eexclamou:
—Quevemaquifazeronomedeumasenhoraaesteantrodeinfâmiaesangue?Quemiserávelacusador está aí, que não sabe com a confissão do réu provar a necessidade do carrasco semenlamearareputaçãodumamulher?Aminhaacusaçãoestáfeita:euafiz.Agoraa leiquefale,ecale-seovilãoquenãosabeacusarseminfamar.
Ojuizimpôs-lhesilêncio.Simãosentou-se,murmurando:—Miseráveistodos!Ouviuoréuasentençademortenaturalparasemprenaforca,arvoradanolocaldodelito.Eao
mesmotemposaíramdentreamultidãounsgritosdilacerantes.Simãovoltouafaceparaasturbas,edisse:
—Idesterumbeloespetáculo,senhores!Aforcaéaúnicafestadopovo!Levaidaíessapobremulherquechora:essaéacriaturaúnicaparaquemomeusuplícionãoseráumpassatempo.
Marianafoitransportadaembraçosàsuacasinha,navizinhançadacadeia.Osrobustosbraçosquealevarameramosdeseupai.
SimãoBotelho,quando,emtodaaagilidadeeforçadosdezoitoanos, iadotribunalaocárcere,ouviualgumasvozesquesealternavamdestemodo:
—Quandovaieleapadecer?—Ébemfeito!Vaipagarpelosinocentesqueopaimandouenforcar.—Queriaapanharamorgadaàforçadebalas!—Nãoqueestesfidalgoscuidamquenãoémaissenãomatar!...—Matasseeleumpobre,etuveriascomoeleestavaemcasa!—Tambéméverdade!—Ecomoelevaidecaranoar!—Deixair,quenãotardaquemlhafaçacairaochão!...—Dizemqueocarrascojávempelocaminho.—Jáchegoudenoite,etraziadoiscutelosnumacoifa.—Tuviste-o?—Não;masdisseaminhacomadrequelhodisseraavizinhadocunhadodairmã,queocarrasco
estáescondidonumaenxovia.—Tuhásdelevarospequenosaveropadecente?—Puderanão!Estesexemplosnãosedevemperder.—Eucádemimjávienforcartrês,quemelembre,todospormatadores.—Porissotu,hádoisanos,nãoatirastecomavidadoAmaroLampreiaacasadodiabo!...—Assimfoi;mas,seeuonãomatasse,matava-meele.—Entãodequevogaoexemplo?!—Euseicádequevoga?OFreiAnselmodos franciscanoséquepregaaospaisque levemos
filhosaveremosenforcados.—Issohádeserparaonãoesfolaremaele,quandoelenosesfolacomospeditórios.Tãodesassombrado iao espíritodeSimão,quealgumasvezesesvoaçounos lábiosumsorriso,
desafiadopelafilosofiadopovo,acercadaforca.Recolhido ao seu quarto, foi intimado para apelar, dentro do prazo legal. Respondeu que não
apelava,queestavacontentedasuasorte,edeboasavançascomajustiça.
PerguntouporMariana,eocarcereiro lhedissequeamandavachamar.VeioJoãodaCruz,eachorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a falar em forca e a pedir que amatassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do acadêmico ao compreender, como seinstantaneamente lhe fulgurasse a verdade, queMariana o amava até o extremo demorrer. Pormomentos se lhe esvaiu do coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-iaporventuracomoumanjoredimidoemserenacontemplaçãodoseucriador;everiaMarianacomoosímbolodatortura,morrerapedaços,seminstantesdeamorremuneradoquelhedessemaglóriadomartírio.Uma,morrendoamada;outra,agonizando,semterouvidoapalavra“amor”doslábiosqueescassamentebalbuciavamfriaspalavrasdegratidão.
E chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que valiam bem as amarguras deMariana.
—Cuidedesuafilha,senhorCruz!—disseSimãocomferventesúplicaaoferrador.—Deixe-meamim,queestouvigorosoebom.Váconsolaressacriatura,quenasceudebaixodaminhamáestrela.Tire-a deViseu; leve-a para sua casa. Salve-a, para que nestemundo fiquemduas irmãs quemechorem.Osfavoresquemetemfeito,jáagoradispensa-osabrevidadedaminhavida.Daquiadiasmandam-merecolheraooratório;bomseráquesuafilhaignore.
Devolta,JoãodaCruzachouafilhaprostradanopavimento,feridanorosto,chorandoerindo,dementeemsuma.Levou-aamarradaparasuacasa,edeixouacargodeoutrapessoaasustentaçãodocondenado.
Terribilíssimas foramentãoashorassolitáriasdo infeliz.Atéàqueledia,Mariana,benquistadocarcereiroeprotegidapelaamigadeD.RitaPreciosa,tinhafrancaentradanocárcereatodaahorado dia, e raras horas deixava sozinho o preso. Costurava enquanto ele escrevia, ou cuidava doamanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no leito doente ou prostrado,Mariana, que tiveraalgunsprincípiosdeescrita,sentava-seàbanca,eescreviacemvezesonomedeSimão,quemuitasvezesaslágrimasdeliam.Eistoassim,durantesetemeses,semnuncaouvirnemproferirapalavraamor.Istoassim,depoisdasvigíliasnoturnas,oraempreces,oraemtrabalho,oranocaminhodesuacasa,ondeiavisitaropaiadesoras.
Nuncamaisopreso,naperspectivadaforca,viuentraraqueladocecriaturaolimiardaferradaporta,quelhegraduavaoar,medidoecalculadoparaqueasinteirashorasdaasfixiaasgozasseocordeldopatíbulo.Nuncamais!
E,quandoeleevocavaaimagemdeTeresa,umcaprichodosolhosquebrantadoslheafiguravaavisãodeMarianaaopardaoutra.Elacrimosasviaasduas.Saltavaentãodoleito,fincavaosdedosnosespessosferrosdajanela,epensavaempartirocrâniocontraasgrades.
Não o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz divina jamais penetrou no seuergástulo.Oanjodapiedadeencarnaranaquelacriaturacelestialqueenlouquecera,ouvoltaraparaocéucomoespíritodela.Oqueosalvaradosuicídionãoera,pois,esperançasemDeus,nemnoshomens;eraestepensamento:“Afinal,covarde!Quebravuraémorrerquandonãoháesperançadavida?!Aforcaéumtriunfoquandoseencontraaocabodocaminhodahonra.
CapítuloXIII
—ETeresa?Perguntamatempo,minhassenhoras,enãomeheidequeixarsemearguíremdeateresquecido
esacrificadoaincidentesdemenosporte.Esquecido,não.Muitoháquemereluzevoeja,aladacomoo idealquerubimdossantos,nesta
minhaquaseescuridade,aquelaavedocéu,comoapedir-mequelhecubradefloresorastilhodesanguequeeladeixounaterra.Maislágrimasquesanguedeixaste,ófilhadaamargura!Floressãotuas lágrimas,edocéumedizseosperfumesdelasnãovalemmaisaospésdo teuDeusqueasprecesdemuitadevotaquemorresantificadapelomundo,ecujocheirodesantidadenãopassadoolfatohipócritaouestúpidodosmortais.
TeresaClementinabemaviamtransportadadaescadariado temploondecaíra,à liteiraqueaconduziuaoPorto.Recobrandooalento,viudefrontedesiumacriada,quelhediziabanaisefriasexpressõesdealívio.Sealgumacriadadeseupai lheeraamiga,decertonãoaquela,acintementeescolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para tal expansão em gritos restava à afligidamenina!Masumraiodepiedadeferiraopeitodamulheratéàquelahoradesafetaasuaama.
Perguntava-seasimesmaTeresaseaquelahorrorosasituaçãoseriaumsonho!Sentia-sedenovofalecerdeforças,evoltavaàvida,sacudidapelaconsciênciadasuadesgraça.Condoeu-seacriada,eincitou-aarespirar,chorandocomela,edizendo-lhe:
—Podefalar,menina,queninguémnossegue.—Ninguém?!—Assuasprimasficaram:apenasvêmosdoislacaios.—Emeupainão?—Não,fidalga...Podechorarefalaràsuavontade.—EeuvouparaoPorto?—Vamos,sim,minhasenhora.—Etuvistetudocomofoi,Constança?—Desgraçadamentevi...—Comofoi?Conta-metudo.—Ameninabemsabequeseuprimomorreu.—Morreu?!Vi-ocairquaseaosmeuspés;mas...—Morreulogo,edepoisquiseramoscriados,àvozdeseupai,prenderosenhorSimão;masele
comoutrapistola...—Efugiu?—atalhouTeresa,comveementealegria.—Afinalfoielequesedeuàprisão.—Estápreso?!E, sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras confortadoras de
Constança.Serenadoalgumtantooviolentoacessodegemidosechoro,Teresasugeriuàcriadaoloucoplano
deadeixar fugirdaprimeiraestalagemondepousassemparaela iraViseudaroúltimoadeusaSimão.
A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos perigos que ia acumular àdesgraça do seu amante, e animando-a com a esperança de livrar-se Simão do crime, com ainfluênciadopai,apesardaperseguiçãodofidalgo.
CalaramlentamenteestasrazõesnoespíritodeTeresa.Chorosa, ansiada e a reveses desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a separava de
Monchique,ondechegouaoquintodiadejornada.
Apreladajáestavasabedoradossucessos,poremissáriosqueseadiantaramaomorosocaminhardaliteira.
Foi Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as recomendações de Tadeu deAlbuquerque eram clausura rigorosa e absoluta privação demeios de escrever a quemquer quefosse.
Ouviuapreladadabocadesuasobrinhaafielhistóriadosacontecimentos,eviuumaaumaascartasdeSimãoBotelho.Choraramabraçadas;masaprelada,enxugadasaslágrimasdemulheraofogodaausteridadereligiosa,faloueaconselhoucomofreira,efreiraqueciliciavaocorpocomasrosetas,eocoraçãocomasprivaçõestormentosasdequarentaanos.
Teresa carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia a santa vaidade de exorcismar odemônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da morte, que, de permeio ao seu amor e àesperança, lhe interpunha a asa negra que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em coraçõesinfelizes.
QuisTeresaescrever.—Aquem,minhafilha?—perguntouaprelada.Teresanãorespondeu.— Escrever-lhe para quê? — tornou a religiosa. — Cuidas tu, menina, que as tuas cartas lhe
chegamàmão?Quevaistufazersenãoredobrarairadeteupaicontratiecontraoinfelizpreso?!Se o amas, como creio, apesar de tudo, cuida em salvá-lo. Se não ouves aminha razão, finge-teesquecida.Sepodesviolentaratuador,dissimula,fazemuitoporqueateupaichegueanotíciadequelheserásdócilemtudo,seeletiverpiedadedoteupobreamigo.
NãorecalcitrouTeresa.Deuoutrosorrisoaoanjodamorte,epediu-lhequeaenvolvesseaela,eaoseuamor,eàsuaesperança,detodo,nanegruradesuasasas.
DemêsamêsrecebiaaabadessadeMonchiqueumacartadeseuprimo.Eramestascartasumrespiradouro de vingança. Em todas dizia o velho que o assassino iria ao patíbuloirremediavelmente.Asobrinhanãoviaascartas;masreparavanaslágrimasdacompassivafreira.
A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência condenou-a àmorte breve.DistofoiinformadoTadeudeAlbuquerque,querespondeu:—“Queanãodesejavamorta;mas,seDeusa levasse,morreriamaistranquilo,ecomasuahonrasemmancha”.EraassimimaculadaahonradofidalgodeViseu!...AHONRA,quedizemprocederemlinharetadavirtudedeSócrates,davirtudedeJesusCristo,davirtudedemilhõesdemártires,quesederamàsgarrasdasferas,quandopredicavamacaridadeeoperdãoaoshomens!
Quantascaríciasinventouasimpatiaeapiedade,todas,porministériodasreligiosasexemplaresdeMonchique,aporfiaramemrefrigeraroardorqueconsumiarapidamenteareclusa.Inútiltudo.Teresareconheciacomlágrimasacompaixão,e,aomesmotempo,alegrava-setirandodascaríciasacertezadequeosmédicosajulgavamincurável.
Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento dos Remédios deLamegolhedisseraqueSimãotinhasidocondenadoàmorte.
—Eeuvivoainda!Depoisorou,echorou;masoscostumesdasuavidaemparoxismoscontinuaraminalteráveis.PerguntouàsenhoraquelhederaanotíciaseasuaamigadoconventodosRemédioslhefariaa
esmola de fazer chegar àsmãos de Simão uma carta. Prontificou-se a freira, depois que ouviu oparecerdaprelada.Entendeuestareligiosaqueoderradeirocolóquioentredoismoribundosnãopodiadanificá-losnavidatemporal,nemnavidaeterna.
EstaéacartaqueleuSimão,quinzediasdepoisdoseujulgamento:Simão,meuesposo.Seitudo...Estáconoscoamorte.Olhaqueteescrevosemlágrimas.Aminha
agoniacomeçouhásetemeses.Deusébom,quemepoupouaocrime.Ouvianotíciadatuapróximamorte,eentãocompreendiporqueestoumorrendohoraahora.Aquiestáonosso fim,Simão!...Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia osmeus!...QuemalfariamaDeusosnossosinocentesdesejos?!...Porquenãomerecemosnósoquetanta gente tem?... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade apresenta-se-metenebrosa,porqueaesperançaeraaluzquemeguiavadetiparaafé.Masnãopodefindarassimonossodestino.Vêsepodesseguraroúltimofiodatuavidaaumaesperançaqualquer.Ver-nos-emosnumoutromundo,Simão?TereieumerecidoaDeuscontemplar-te?Eurezo,suplico,masdesfaleçonaféquandomelembramasúltimasagoniasdoteumartírio.Asminhassãosuaves;quasequeasnãosinto.Nãodevecustaramorteaquemtiverocoraçãotranquilo.Opioréasaudade,saudadedaquelasesperançasquetuachavasnomeucoração,adivinhandoastuas.Nãoimporta,senadaháalémdestavida.Aomenos,morrer.Setupudessesviveragora,dequeteserviria?Eutambémestoucondenada,esemremédio.Segue-me,Simão!Nãotenhassaudadesdavida,nãotenhas,aindaquearazão tedigaquepodiasser feliz, semenão tivessesencontradonocaminhoporonde te leveiàmorte...Equemorte,meuDeus!...Aceita-a!Nãotearrependas.Sehouvercrime,ajustiçadeDeusteperdoarápelasangústiasquetensdesofrernocárcere...enosúltimosdias,enapresençada...
Teresaiaescreverumapalavra,quandoapenalhecaiudamão,eumaconvulsãolhevibroutodo
ocorpopor largoespaço.Nãoescreveuapalavra!Masa ideiada forcaparou-lheavida.Afreiraentrounacelaapedir-lheacarta,porqueocorreioiaapartir.Teresa,indicando-lha,disse:
—Leia,sequiser,efeche-a,porcaridade,queeunãoposso.NostrêsdiasseguintesTeresanãosaiudoleito.Acadahoraasreligiosasassistentesesperavam
queelafechasseosolhos.—Custamuitomorrer!—diziaalgumasvezesaenferma.Nãofaltavampiedososdiscursosadivertirem-lheoespíritodomundo.Teresaouvia-os,ediziacomânsia:—Masaesperançadocéu,semele!...Queéocéu,meuDeus?Eoapostólicocapelãodomosteironãosabiadizerseosbensdocéutinhamdecomumcomosdo
mundoasdelíciasquefalsamentenaterrasechamamassim.Aquelassutilezasespirituaisquevêm
com algumas espécies de física, assim àmaneira dos últimos lampejos da vital flama, tinha-as aenferma, quando acontecia falarem-lhe as religiosasnabem-aventurança.Às vezes, se o capelão,convidado pela lucidez de Teresa, entrava os domínios da filosofia, tratando como tema aimortalidadedaalma, a inculta senhoraargumentavaembreves termos, com razões tão claras afavordauniãoeternadasalmas, jádestemundoesposas,queopadreficavaemdúvidasseseriaheréticocontestarumacláusulanãoinscritaemalgumdosquatroevangelhos.
Maravilhava-se jáamedicinadapertináciadaquelavida.Tinhaaabadessaescritoa seuprimoTadeu,apressando-oairveroanjoaodespedir-sedaterra.Ovelho,tocadodepiedadeeporventurade amor paternal, deliberou tirar do convento a filha, na esperança de salvá-la ainda.Uma forterazãoacresciaàquela:eraamudançadocondenadoparaoscárceresdoPorto.Deu-sepressa,pois,ofidalgo,echegouaoPortoatempoqueareligiosa,amigadaoutradeLamego,entregavaàdoenteestacartadeSimão:
Nãomefujasainda,Teresa.Jánãovejoaforca,nemamorte.Meupaiprotege-me,easalvaçãoé
possível.Prendeaocoraçãoosúltimosfiosdatuavida.Prolongaatuaagonia,enquantoteeudisserqueespero.AmanhãvouparaascadeiasdoPorto,eheidealiesperaraabsolviçãooucomutaçãodasentença.Avidaé tudo.Possoamar-tenodegredo.Em todaapartehácéu, e flores, eDeus.Seviveres,umdiaseráslivre;apedradosepulcroéquenuncaselevanta.Vive,Teresa,vive!Hádias,lembrava-mequeastuaslágrimaslavariamdaminhafaceasnódoasdosanguedoenforcado.Essepesadeloatrozpassou.Agoraneste infernorespira-se;oespartodocarrascojámenãoapertaemsonhos agarganta. Já fito os olhosno céu, e reconheço aprovidênciados infelizes.Ontem, vi asnossasestrelas,aquelasdosnossossegredosnasnoitesdaausência.Volviàvida,etenhoocoraçãocheiodeesperanças.Nãomorras,filhadaminhaalma!
Iaaltaanoite,quandoTeresa,sentadanoseuleito,leuestacarta.Chamouacriada,paraajudá-la
avestir.Mandouabrira janeladoseuquarto,eencostouas facesàs reixasde ferro.Esta janelaolhavaparaomar,eomareranessanoiteumaimensaflamadeprata;eaLua,esplendidíssima,eclipsavaofulgordumasestrelasqueTeresaprocuravanocéu.
—Sãoaquelas!—exclamouela.—Aquelasquê,minhasenhora?—disseConstança.— As minhas estrelas!... Pálidas como eu... A vida! Ai! A vida! — clamou ela, erguendo-se, e
passandopelafronteasmãoscadavéricas.—Queroviver!Deixai-meviver,óSenhor!—Hádeviver,menina!Hádeviver,queDeusépiedoso!—disseacriada.—Masnãotomeoar
danoite.Estenevoeirodoriofaz-lhegrandemal.— Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o céu há tanto tempo! Sinto-me
ressuscitar aqui,Constança! Por que não tenho eu respirado todas as noites este ar?Eu poderiaviver alguns anos? Poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito à minha Virgem Santíssima!Vamosorarambas!Vamos,queoSimãonãomorre...OmeuSimãovive,equerqueeuviva.EstánoPortoamanhã,etalvezjáesteja...
—Quem,minhasenhora?!—Simão;oSimãovemparaoPorto.Acriadajulgouqueasuaamadelirava,masnãoacontrariou.—Tevecartadeleafidalga?—tornouela,cuidandoqueassimlhealimentavaaqueleinstantede
febrilcontentamento.—Tive...Queresouvir?...Euleio...Eleuacarta,comgrandepasmodeConstança,queseconvenceu.—Agoravamosrezar,sim?...Tunãoésinimigadele,não?Olha,Constança,seeucasarcomele,
tuvaisparaanossacompanhia.Veráscomoésfeliz.Queresir,nãoqueres?—Sim,minhasenhora,vou.Maseleconseguirálivrar-sedamorte?—Livra;tuverásquelivra;opaidelehádelivrá-lo...eaVirgemSantíssimaéquenoshádeunir.
Mas,seeumorro...seeumorro,meuDeus!Ecomasmãosconvulsivamenteenlaçadassobreoseio,Teresaarquejavaempranto.—Seeunãotenhojáforças!...Todosdizemqueeumorro,eomédicojánemmereceita!...Então
melhormeforateracabadoantesdestahora!Morrercomesperanças,óMãedeDeus!EajoelhouanteoretábulodevotoquetrouxeradoseuquartodeViseu,aoqualsuamãeeavójá
tinhamorado,eemcujorostocompassivoosolhosdasduassenhorasmoribundastinhamapagadoosseusúltimosraiosdeluz.
CapítuloXIV
Anunciara-se Tadeu de Albuquerque na portaria deMonchique, ao dia seguinte dos anterioressucessos.Suaprima,primeirasenhoraquelhesaiuaolocutório,vinhaenxugandoaslágrimasdealegria.—Nãocuidequeeuchorodeaflita,meuprimo—disseela.—Onossoanjo,seDeusquiser,pode
salvar-se.Logodemanhãavipassearporseupénosdormitórios.Quediferençadesemblanteelatemhoje!Isto,meuprimo,émilagrededuassantasquetemosinteirasnaclausura,ecomasquaisalgumasperfeitas criaturasdesta casa seapegaram.Seasmelhoras continuaremassim, temosaTeresa;océuconsentequeestejaentrenósaqueleanjomaisalgunsanos...—Muitofolgocomoquemediz,minhaboaprima—atalhouofidalgo.—Aminharesoluçãoé
levá-lajáparaViseu,eláserestabelecerácomosarespátrios,quesãomuitomaissadiosqueosdoPorto.—Éaindacedoparatãolongaecustosajornada,meuprimo.Nãováosenhorcuidarqueelaestá
capazdesemeteraocaminho.Lembre-sequeaindaontempensamosemencontrá-lahojemorta.Deixe-aestarmaisalgunsmeses;edepoisnãodigoquenãoleve;mas,porenquanto,nãoconsintosemelhanteimprudência.—Maiorimprudência—replicouovelho—éconservá-lanoPorto,onde,aestashoras,deveestar
o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não saiba a prima?... Pois é verdade: o patife docorregedor saiu a campo em defesa dele, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse aapelação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente com isto, fez que o filho fosseremovidoparaascadeiasdoPorto.Euagoratrabalhoparaqueasentençasejaconfirmada,eesperoconsegui-lo;mas,enquantooassassinoaquiestiver,nãoqueroqueminhafilhaestejanoPorto.—Oprimoépai,eeusouapenasumaparenta—disseaabadessa.—Cumpra-seasuavontade.
Querveramenina,nãoéassim?—Quero,seépossível.—Poisbem,enquantoeuvouchamá-la,queiraentrarnaprimeiragradeàsuamãodireita,que
Teresalávaiter.AvisadaTeresadequeseupaiaesperava,instantaneamenteacorsadiaquealegravaassenhoras
religiosassedemudouna lividezcostumada.Quisa tia, vendo-aassim,queelanãosaíssedoseuquarto,eencarregava-sedeespaçaravisitadopai.—Temdeser—disseTeresa.—Euvou,minhatia.O pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou.Esperavamudança,mas não tamanha. Pensou que a não
conheceriasemopreveniremdequeiaversuafilha.—Comoeuteencontro,Teresa!—exclamouele,comovido.—Porquemenãodissestehámais
tempooteuestado?Teresasorriu-se,edisse:—Eunãoestoutãomalcomoasminhasamigasimaginam.—TerástuforçasparaircomigoparaViseu?—Não,meu pai; não tenhomesmo forças para lhe dizer empoucas palavras que não torno a
Viseu.—Porquenão,seatuasaúdedependerdisso?!...—Aminhasaúdedependedocontrário.Aquivivereioumorrerei.—Nãoétantoassim,Teresa—replicouTadeucomdissimuladabrandura.—Seeuentenderque
estesaressãonocivosàtuasaúde,hásdeir,porqueéobrigaçãominhaconduzirecorrigiratuamásina.—Estácorrigida,meupai.Amorteemendatodososerrosdavida.—Bemsei;maseuquero-teviva,e,portanto,recobra forçasparaocaminho.Logoquetiveres
meiodiadejornada,veráscomoasaúdevoltacomopormilagre.—Nãovou,meupai.—Nãovais?!—exclamou,irritado,ovelho,lançandoàsgradesasmãostrementesdeira.—Separam-nosessesferrosaquemeupaiseencosta,eparasemprenosseparam.—Easleis?Cuidastuqueeunãotenhodireitoslegítimosparateobrigarasairdoconvento?Não
sabesquetensapenasdezoitoanos?—Seiquetenhodezoitoanos;asleisnãoseiquaissão,nemmeincomodaaminhaignorância.Se
podeserquemãoviolentavenhaarrancar-medaqui,convença-se,meupai,dequeessamãohádeencontrarumcadáver.Depois...oquequiseremdemim.Enquanto,porém,eupuderdizerquenãovou,juro-lhequenãovou,meupai.—Seioqueé!—bramiuovelho.—JásabesqueoassassinoestánoPorto?—Sei,sim,senhor.—Aindaodizessemvergonha,nemhorrordetimesma!Ainda...—Meupai—interrompeuTeresa—,nãopossocontinuaraouvi-lo,porquemesintomal.Dê-me
licença...evingue-secomopuder.Aminhaglórianestelongomartírioseriaumaforcalevantadaaoladodadoassassino.Teresasaiudagrade,deualgunspassosnadireçãodasuacela,eencostou-seesvaídaàparede.
Correramaampará-lasuatiaeacriada,masela,afastando-assuavementedesi,murmurou:—Nãoépreciso...Estouboa...Essesgolpesdãovida,minhatia.Ecaminhousozinhaapassosvacilantes.Tadeubatiaàportadomosteiro com irrisórioenfurecimentopancadas,umasapósoutras, com
grandemedodaporteiraeoutrasmadres,espantadasdoinsólitodespropósito.—Queéisso,primo?—disseaprelada,comseveridade.—QuerocáforaTeresa.—Comofora?Quemhádelançá-lafora?!—Asenhora,quenãopodeaquireterumafilhacontraavontadedeseupai.—Issoassimé;mastenhaprudência,primo.—Nãoháprudêncianemmeiaprudência.Querominhafilhacáfora.—Poiselanãoquerir?—Não,senhora.— Então espere que por bonsmodos a convençamos a sair, porque não havemos trazer-lha a
rastos.—Euvoubuscá-la,sendopreciso—redarguiuemcrescentefúria.—Abram-meestasportas,que
euatrarei!—Estasportasnãoseabremassim,meuprimo,semlicençasuperior.Aregradomosteironão
pode ser quebrantada para servir uma paixão desordenada. Tranquilize-se, senhor! Vá descansardessefrenesi,evenhanoutrahoracombinarcomigooquefordignodetodosnós.—Tenhoentendido!—exclamouovelho,gesticulandocontraoralodo locutório.—Conspiram
todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes darei uma boa lição. Fique a senhora abadessasabendoqueeunãoqueroqueminhafilharecebamaiscartasdomatador,percebeu?—EucreioqueTeresanuncarecebeucartasdematadores,nemsuponhoqueasrecebadeora
emdiante.—Nãoseisesabe,nemsenão.Euvigiareioconvento.Acriada,queestácomela,ponham-na
fora,percebeu?—Porquê?—redarguiuapreladacomenfado.—Porqueaencarregueidemeavisardetudo,eelanadametemcontado.—Senãotinhaquelhedizer,senhor!—Nãomecontehistórias,prima!Acriadaquerovê-lasairdoconvento,ejá!—Eunãolhepossofazeravontade,porquenãofaçoinjustiças.Sevossasenhoriaquiserquea
suafilhatenhaoutracriada,mande-lha:masaqueelatem, logoquedeixedeaservir,hámuitassenhorasnestacasaqueadesejam,eelamesmadesejaaquificar.—Tenhoentendido—bradouele.—Queremmematar!Poisnãomatam;primeirohádeodiabo
darumestouro!TadeudeAlbuquerquesaiuemcorcovosdoátriodomosteiro.Erahediondaaquelaraivaquelhe
contraíaasfacesencorreadas,revendosuoresangueaosolhosacovados.Apresentou-se ao intendente da polícia, pedindo providências para que se lhe entregasse sua
filha.Ointendenterespondeuqueelenãosolicitavacompetentementetaisprovidências.Instouparaqueo carcereirodacadeianãodeixasse sair algumacartadeumassassinovindodacomarcadeViseu, por nome Simão Botelho. O intendente disse que não podia, semmotivos concernentes adevassas,obstaraqueopresoescrevesseaquemquerquefosse.Reduplicada a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com os mesmos requerimentos, em tom
arrogante.Ocorregedor,particularamigodeDomingosBotelho,despediucomenfadooimportuno,dizendo-lhequeavelhicesemjuízoeracoisatãoderisocomodelástima.Esteveentãoapiquedeperder-seacabeçadeTadeudeAlbuquerque.AndavaedesandavaasruasdoPorto,sematinarcomuma saída digna da sua prosápia e vingança. No dia seguinte, bateu à porta de algunsdesembargadores, e achava-os mais inclinados à demência que à justiça a respeito de SimãoBotelho. Um deles, amigo de infância de D. Rita Preciosa, e implorado por ela, falou assim aosanhudofidalgo:—Empoucoestáoserhomicida,senhorAlbuquerque.Quantasmortesteriavossasenhoriahoje
feito se alguns adversários se opusessem à sua cólera? Esse infelizmoço, contra quem o senhorsolicitadesvairadasviolências,conservaahonranaalturadasuaimensadesgraça.Abandonou-oopai, deixando-o condenar à forca; e ele da sua extrema degradação nunca fez sair um gritosuplicantedemisericórdia.Umestranholheesmolouasubsistênciadeoitomesesdecárcere,eeleaceitouaesmola,queerahonraparasieparaquemlhadava.Hoje,fuieuveressedesgraçadofilhodeumasenhoraqueeuconhecinopaço,sentadaaoladodosreis.Achei-ovestidodebaetãoepanopedrês.Perguntei-lheseassimestavadesprovidodefato.Respondeu-mequesevestiraàproporçãodosseusmeios,equedeviaàcaridadedumferradoraquelascalçasejaqueta.Repliquei-lheeuque
escrevesseaseupaiparaovestirdecentemente.Disse-mequenãopedianadaaquemconsentiuqueosdelitosdoseucoraçãoedasuadignidadeedopundonordoseunomefossemexpiadosnumpatíbulo.Hágrandezanestehomemdedezoitoanos,senhorAlbuquerque.SevossasenhoriativesseconsentidoquesuafilhaamasseSimãoBotelhoCasteloBranco,teriapoupadoavidaaohomemsemhonraqueselheatravessoucominsultoseofensascorporaisdetalafronta,quedesonradoficariaSimãoseasnãorepelissecomohomemdealmaebrios.Sevossasenhoriasenãotivesseopostoàshonestíssimaseinocentesafeiçõesdesuafilha,ajustiçanãoteriamandadoarvorarumaforca,nemavidadeseusobrinhoteriasidoimoladaaosseuscaprichosdemaupai.E,sesuafilhacasassecomofilhodocorregedordeViseu,pensaacasovossasenhoriaqueosseusbrasõessofriamdesdouro?NãoseidequeséculodataanobrezadosenhorTadeudeAlbuquerque,masdobrasãodeD.RitaTeresaMargarida PreciosaCaldeirãoCastelo Branco posso dar-lhe informações sobre as páginasdas mais verídicas e ilustres genealogias do reino. Por parte de seu pai, Simão Botelho tem domelhor sangue de Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar em competências com o dosAlbuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques terríveis de que reza Luís deCamões...Ofendidoatéaoâmagopeladerradeira ironia,Tadeuergueu-sede ímpeto, tomouochapéuea
enormebengaladecastãodeouroefezacortesiadedespedida.— São amargas as verdades, não é assim? — disse-lhe, sorrindo, o desembargador Mourão
Mosqueira.—Vossaexcelêncialásabeoquediz,eeucáseinoqueheideficar—respondeucomtomirônico
ofidalgo,alanceadonasuahonraenadosseusquinzeavós.Odesembargadorretorquiu:—Fiquenoquequiser;masvánacerteza,seissolheservedealgumacoisa,queSimãoBotelho
nãovaiàforca.—Veremos...—resmoneouovelho.
CapítuloXV
Sãotrezediasdecorridosdomêsdemarçode1805.Está Simão numquarto demalta das cadeias daRelação.Um catre de tábuas, um colchão de
embarque, uma banca e cadeira de pinho e um pequeno pacote de roupa, colocado no lugar dotravesseiro,sãoasuamobília.Sobreamesatemumcaixotedepaupreto,quecontémascartasdeTeresa, ramalhetes secos, os seus manuscritos do cárcere de Viseu e um avental deMariana, oúltimo com que ela, no dia do julgamento, enxugara as lágrimas e arrancara de si no primeiroinstantededemência.SimãorelêascartasdeTeresa,abreosenvoltóriosdepapelqueencerramasfloresressequidas,
contemplaoaventaldelinho,procurandoesvaídosvestígiosdaslágrimas.Depois,encostaafaceeopeitoaosferrosdasuajanela,eavistaoshorizontesboleadospelaserrasdeValongoeGralheira,ecortadospelasribaspitorescasdeGaia,doCandal,deOliveiraedomosteirodaSerradoPilar.Umdia lindo.Refletem-sedo azul do céu osmilmatizes daprimavera. Temaromas o ar, e a viraçãofugitivadosjardinsderramanoéterasurnasqueroubouaoscanteiros.Aquelaindefinidaalegria,queparecereluzirnas legiõesdeespíritoquesegeramaosoldemarço,rejubilaanaturezaque,todapompadeluzeflores,seestánamorandodocalorqueavaifecundando.DiadeamoredeesperançaseraaquelequeoSenhormandavaàchoçaencravadanagarganta
da serra, ao palácio esplendoroso que reverberava ao sol os seus espiráculos, ao opulento quepasseava as suas moles equipagens, bafejado pelo respiro acre das sarças, e ao mendigo quedesentorpeciaosmembrosencostadoàscolunasdostemplos.ESimãoBotelho,fugindoaclaridadedaluz,eovoejardasaves,meditando,choravaeescrevia
assimassuasmeditações:Opãodotrabalhodecadadiaeoteuseiopararepousarumahoraaface,purademanchas:não
pedimaisaocéu.Achei-mehomemaosdezesseisanos.Viavirtudeàluzdoteuamor.Cuideiqueerasantaapaixão
queabsorviatodasasoutras,ouasdepuravacomoseufogosagrado.Nuncaosmeuspensamentos foramdenegridosporumdesejoqueeunãopossaconfessaralto
diantede todoomundo.Diz tu, Teresa, se osmeus lábiosprofanaramapurezade teus ouvidos.PerguntaaDeusquandoquiseufazerdomeuamoroteuopróbrio.Nunca,Teresa!Nunca,ómundoquemecondenas!Se teu pai quisesse que eume arrastasse a seus pés para temerecer, beijar-lhos-ia. Se tume
mandassesmorrerparatenãoprivardeserfelizcomoutrohomem,morreria,Teresa!Mas tu eras sozinhae infeliz, e eu cuidei queo teualgoznãodevia sobreviver-te.Eis-meaqui
homicida,esemremorsos.Ainsâniadocrimeaturdeaconsciência;nãoaminha,quesenãotemiadas escadas da forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o estrebuchamento dasufocação.Euesperavaacadahoraochamamentoparaooratório,ediziacomigo:falareiaJesusCristo.Sempavor,premeditavanassetentahorasdessaagoniamoral,eanteviaconsolaçõesqueocrime
nãoousaesperarseminjúriadajustiçadeDeus.Maschoravaporti,Teresa!Otravordomeucálixtinhasobreaamarguraasmilamargurasdas
tuaslágrimas.Gemias aos meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões da morte, em teus
delírios.Amesmamortetemhorrordasupremadesgraça.Tardemorrerias.Aminha imagem,emvez de te acenar com a palma de martírios, te seria um fantasma levantado das tábuas dumcadafalso.Quemorteatua,óminhasantaamiga!Eprosseguiuatéaomomentoemque JoãodaCruz,comordemdo intendente-geraldapolícia,
entrounoquarto.—Aqui!—exclamouSimão,abraçando-o.—EMariana?Deixou-asozinha?!Morta,talvez!—Nemsozinha,nemmorta,fidalgo!Odiabonemsempreestáatrásdaporta...Marianavoltouao
seujuízo.—Falaverdade,senhorJoão?—Puderamentir!...Aquilofoicoisadebruxaria,enquantoamim...Sangrias,sedenhos,águafria
nacabeça,eexorcismosdomissionário,nãolhedigonada,araparigaestáescorreita,e,assimquetiverumtodo-nadadeforças,bota-seaocaminho.—BenditosejaDeus!—exclamouSimão.—Amém—acrescentouoferrador.—Entãoquearranjoéestedecasa?Quebrecadetarimbaé
esta?!Quer-seaquiumacamadegente,ealgumacoisaemqueumcristãosepossasentar.—Istoassimestáexcelente.
—Bemvejo...Edebarriga?Comovamosnósdetrincadeira?—Aindatenhodinheiro,meuamigo.—Hádetermuito,nãotemdúvida;maseutenhomais,evossasenhoriatemordemfranca.Veja
láessepapel.SimãoleuumacartadeD.RitaPreciosa,escritaaoferrador,emqueoautorizavaasocorrerseu
filho com as necessárias despesas, prontificando-se a pagar todas as ordens que lhe fossemapresentadascomasuaassinatura.—Éjusto—disseSimão,restituindoacarta—porqueeudevoterumalegítima.—Entãojávêquenãotemmaisdoquepedirporboca.Euvoucomprar-lhearranjos...—Abra-meoseunobrecoraçãoparaoutroserviçomaisvalioso—atalhouopreso.—Digalá,fidalgo.Simãopediu-lheaentregadeumacartaemMonchiqueaTeresadeAlbuquerque.—Oberzabumparece-mequeasarma!—disseoferrador.—Venhadeláacarta.Opaidelaestá
cá.Jásabia?—Não.—Poisestá;e,seodiabootrazàminhabeira,nãoseiselhedareicomacabeçanumaesquina.Já
me lembroudeoesperarnocaminhoependurá-lopelogasnetenogalhodumsobreiro...Acartatemresposta?—Selhaderem,meubomamigo.Chegou o ferrador aMonchique, a tempo que um oficial da justiça, dois médicos e Tadeu de
Albuquerqueentravamnopátiodoconvento.Falou o aguazil à prelada, exigindo em nome do juiz de fora que dois médicos entrassem no
conventoaexaminaradoenteD.TeresaClementinadeAlbuquerque,arequerimentodeseupai.Perguntouapreladaaosmédicosseelestinhamanecessárialicençaeclesiásticaparaentrarem
emMonchique.Àrespostanegativaredarguiuaabadessaqueasportasdoconventonãoseabriam.DisseramosmédicosdeTadeudeAlbuquerquequeeraaqueleoestilodosmosteiros,enãohouvequeredarguiràrigorosaprelada.Saíram,eoferradorsóentãorefletiunomododeentregaracarta.Aprimeiraideiapareceu-lhea
melhor.Chegouaoralo,edisse:—Ósenhorafreira!—Quequervossemecê?—disseaprelada.—A senhora faz favor de dizer à senhoraD. Teresinha de Viseu, que está aqui o pai daquela
raparigadaaldeiaqueelasabe?—Equemévossemecê?—Souopaidatalraparigaqueelasabe.—Jásei!—exclamoudedentroavozdeTeresa,correndoaolocutório.Apreladaretirou-seaumlado,edisse:—Vêláoquefazes,minhafilha...—Asuafilhaescreveu-me?—disseTeresaaoJoãodaCruz.—Sim,senhora,aquiestáacarta.Edepositounarodaacartaemqueaabadessareparou,edisse,sorrindo:—Muitoengenhosoéoamor,Teresinha...PermitaDeusqueasnotíciasdaraparigadaaldeiate
alegremocoração;masolha,filhinha,nãocuidesqueatuavelhatiaémenosespertaqueopaidaraparigadaaldeia.Teresa respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da santa senhora, e sumiu-se a ler a
carta,earesponder-lhe.Entregandoaresposta,disseelaaoferrador:—Nãovêaísentadanaquelaescadinhaumapobre?—Vejo,sim,senhora,econheço-a.Comodiaboveioparaaquiestamulher?Cuidequedepoisda
esfregaquelhedeuohortelão,apobrezinhanãotinhapernasqueacátrouxessem!Amulherpelosmodostemfibrasdaquelacasta!—Falebaixo—tornouTeresa.—Poisolhe...quandotrouxerascartas,entregue-lhasaela,sim?
Eujáamandeiàcadeia;masnãoadeixaramláentrar.—Bemestá,eoarranjonãoémauassim.FiquecomDeus,menina.Estaboa-novaalegrouSimão.Aprovidênciadivinaapiedara-sedelenaqueledia.Orestaurar-seo
juízodeMarianaeapossibilidadedecorresponder-secomTeresaeramasmáximasalegriasquepodiambaixardocéuaoseucerradoinfortúnio.Exaltara-seSimãoemgraçasaDeus,napresençadeJoãodaCruz,quearrumava,noquarto,uns
móveisquecompraraemsegundamão,quandoeste,suspendendootrabalho,exclamou:—Entãovou-lhedizeroutracoisa,quenãotinhatençãodelhedizer,paraoapanhardesúpeto.—Queé?—AminhaMarianaveiocomigo,eficounaestalagem,porquenãosepodiabulircomdores;mas
amanhãelacáestáparalhefazeracozinhaevarreracasa.Simão, reconcentrando o indefinível sentimento que esta notícia lhe causara, disse com
melancólicapausa:—É,pois,certoqueaminhamáestreiaarrastaasuadesgraçadafilhaatodososmeusabismos!
Pobreanjodecaridade,quedignatuésdocéu!— Que está o senhor aí a pregar? — interrompeu o ferrador. — Parece que ficou a modo de
tristonhocomanotícia!...—SenhorJoão—tornousolenementeopreso—,nãodeixeaquiasuaqueridafilha.Deixe-maver,
traga-aconsigoumavezaestacasa;masnãoadeixecá,porqueeunãopossotolherodestinodeMariana. Como há de ela viver no Porto, sozinha, sem conhecer ninguém, bela como ela é, eperseguidacomotemdeser?!—Perseguida!Tócarocha!Nãoqueelaémesmodeselhedarqueapersigam!...Quevãoparalá,
masquedeixemasventasemcasa.Meuamigo,asmulheressãocomoasperasverdes:umhomemapalpa-as,e,seodedoachaduro,deixa-as,enãoascome.Écomoé.Araparigasaiàmãe.Minhamulher,queDeushaja,quandoeulheandavarentando,dei-lheumdiaumbeliscãonumaperna.Evai ela põe-se direita comigo, e deu-me dois cascudos nas trombas, que ainda agora os sinto. AMariana!... Aquilo é da pele de Satanás! Pergunte o senhor, se algum dia falar com aquelefidalguinhoMendes,deViseu,atroçadaqueele levoucomasrédeasdaégua,sóporlhebulirnachinelaquandoelaestavaemcimadaburra!Simãosorriuaorasgadopanegíricodabravuradamoça,eorgulhou-sesecretamentedosbrandos
afagoscomqueelaodesvelaraemoitomesesdequasecontinuadaconvivência.—Evossemecêhádeprivar-sedacompanhiadesuafilha?—insistiuopreso.—Eulámearranjareicomopuder.Tenhoumacunhadavelha,elevo-aparamimparamearranjar
ocaldo.Evossasenhoriapoucotempoaquiestará...Osenhorcorregedorláandaatratardeopôrnarua,equeosenhorsai,cáparamimsãofavascontadas.Eassimcom’assim,viudizer-lhetudodumafeita:arapariga,seeuanãodeixassevirparaoPorto,davaumestourocomoumacastanha.Olhequeeunãosou tolo, fidalgo.Queela tempaixãod’almaporvossasenhoria, istoé tãocertocomoeuserJoão.Éasuasina;queheideeufazer-lhe?Deixá-la,quepelosenhorSimãonãolhehádevirmal,ouentãojánãoháhonranestemundo.Simãolançou-seaosbraçosdoferrador,exclamando:—Pudesseeuseromaridodesuafilha,meunobreamigo!—Qualmarido!...—disseoferradorcomosolhosvidradosdasprimeiraslágrimasqueSimãolhe
vira.—Eununcamelembreidisso,nemela!...Euseiquesouumferrador,eelasabequepodesersuacriada,emaisnada,senhorSimão;mas...sabequemais?Eudesejoqueosmeusamigossejamdesgraçadoscomohaviadeserosenhorsecasassecomapobrerapariga!Nãofalemosnisto,queeupormilagrechoro;mas,quandopegoachorar,souumchafariz...Vamosaoarranjo:amesadeveaquificar;acômodaali;duascadeirasdestelado,eduasdaquele.Abarraacolá.Obaúdebaixodacama.Abaciaeabilhadaáguasobreestacoisa,quenãoseicomosechama.Oslençóiseomaisbragaltem-nosláarapariga.Amanhãéqueoquartohádeficarquenemumacapela.OlhequeaMariana jáme disse que comprasse duas aquelas... Como se chamam aquelas envasilhas de pôrramos?—Jarras.—Écomodiz,duas jarraspara flores;maseunãoseiondesevende isso.Agoravoubuscaro
jantar,queamoçahádecuidarquemenãodeixamsairdacadeia.Aindalhenãodissequenãomedeixaramcáentrarontemàtarde;maseu,comotrouxeumacartinhadesuamãeparaumsenhordesembargador, fui onde a ele, e hoje de manhã já lá tinha na estalagem a ordem do senhorintendente-geraldapolícia.Atélogo.
CapítuloXVI
Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento da história, mas apropósitovindoparademonstrarumafacedaíndoledoex-corregedordeViseu,jáentãoexoneradodocargo.Sabido é queManuel Botelho, o primogênito, voltando a frequentarmatemáticas emCoimbra,
fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu marido, estudante açoriano que cursavamedicina.UmanodemoraranaCorunhaManuelBotelhocomafugitiva,alimentando-sedosrecursosque
suamãe, extremosapor ele, lhe remetia, vendendoapouco epouco as suas joias, e privandoasfilhasdosadornosprópriosdosanosedaqualidade.Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao filho que deixara de
socorrerSimãopornãotermeios;eagoradasescassaseconomiasquefazianadapodiaenviar-lheporqueestavaemobrigaçãodepagarosalimentosdeSimãoàpessoaqueporcompaixãolhosderaemViseu,elhosestavadandonoPorto.Ajuntavaela,paraconsolaçãodofilho,queviesseeleparaVilaReal,e trouxesseconsigoa infelizsenhora;que fosseeleparacasa,eadeixasseaelanumaestalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era oportuno por estar na quinta deMontezelosopai,quasedivorciadodafamília.VoltoupeloMinhoManuelBotelho,echegoucomadamaaoPorto,quinzediasdepoisqueSimão
entraranocárcere.Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem estimaram; mas o
infortúniodeSimãoremiaasculpasdogêniofatalqueoorfanaradepaiemãe,esódairmãRitalhedeixaraumalembrançasaudosa.FoiManuelàcadeia,e,abrindoosbraçosaoirmão,teveumglacialacolhimento.Perguntou-lheManuelahistóriadoseudesastre.—Constadoprocesso—respondeuSimão.—Etemesperançasdeliberdade?—replicouManuel.—Nãopensonisso.— Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta de recursos;mas, se
precisaderoupa,repartireiconsigodaminha.—Nãoprecisonada.Esmolassóasrecebodaquelamulher.JáManueltinhareparadoemMariana,edabelezadamoçainferiraconclusõesparaformarfalsos
juízos.—Equeméestamenina?—tornouManuel.—Éumanjo...Nãolheseidizermaisnada.Marianasorriu-se,edisse:—SouumacriadadosenhorSimãoedevossasenhoria.—ÉcádoPorto?—Não,meusenhor,soudosarrabaldesdeViseu.—Etemfeitosemprecompanhiaameumano?SimãoatalhouassimàrespostabalbuciantedeMariana:—Asuacuriosidadeincomoda-me,manoManuel.—Cuideiquenãoeraofensiva—replicouooutro,tomandoochapéu.—Queralgumacoisapara
amãe?—Nada.EstandoManuel Botelho, na tarde desse dia, fechando asmalas para seguir jornada para Vila
Real,foivisitadopelodesembargadorMourãoMosqueiraepelocorregedordocrime.—Devemosàespionagemdapolícia—disseocorregedor—anovidadedeestarnestaestalagem
umfilhodomeuantigoamigo,condiscípuloecolegaDomingosCorreiaBotelho.Aquivimosdar-lheum abraço e oferecer o nosso préstimo. Esta senhora é sua esposa?— continuou omagistrado,reparandonaaçoriana.—Nãoéminhaesposa...—balbuciouManuel—é...minhairmã.—Sua irmã...—disseMosqueira—qualdastrês?HácincoanosqueasviemViseu,egrande
mudançafezestasenhora,quenãomerecordodassuasfeiçõesabsolutamentecoisanenhuma.ÉasenhoraD.AnaAmália?—Justamente—disseManuel.—Belalheafirmoeuqueestá,minhasenhora;masfez-seumrostomuitooutrodoqueera!...—VieramveroinfelizSimão?—atalhouocorregedor.—Sim,senhor...viemosvermeupobreirmão.—Foiumraioquecaiuna famíliaaquele rapaz!...—ajuntouMosqueira.—Maspodeestarna
certezaqueasentençanãoseexecuta;digaasuamãequemoouviudaminhaboca.OmeutribunalestápreparandoparalheminorarapenaemdezanosdedegredoparaaÍndia,eseupai,segundo
medissenapassagemparaVilaReal,jápreparouascoisasnasuplicaçãoenodesembargodopaço,não obstante o morto ter lá parentes poderosos nas duas instâncias. Quiséramos absolvê-lo erestituí-loàsuafamília;mastantoéimpossível.Simãomatou,econfessasoberbamentequematou.Não consentemesmoque sedigaqueemdefesao fez.Éumdoidodesgraçado comsentimentosnobilíssimos!ChovemcartasdeempenhoafavordoAlbuquerque.Pedemacabeçadopobrerapazcomumasem-cerimôniaqueindignaoânimo.—Eessameninaquefoiacausadadesgraça?—perguntouManuel.— Issoéumaheroína!— respondeuocorregedordocrime.—Davam-na jápormortaquando
Simãochegouaqui.Desdequesoubedasprobabilidadesdacomutaçãodapena,deuumpontapénamorte,eestásalva,segundomedisseomédico.— Conhece-amuito bem,minha senhora?— disse o desembargador à dama, suposta irmã de
Manuel.—Muitobem—respondeuela,relanceandoosolhosaoamante.—Dizemqueéformosíssima!—Decerto—acudiuManuel—éformosíssima!—Muitobem—disse o corregedor, erguendo-se.—Leve este abraço aopai, e diga-lhequeo
condiscípulocáestálealededicadocomosempre.Eutenhodelheescreverbrevemente.—Eoutroabraçoasuavirtuosamãe—acrescentouodesembargador.—Voudesconfiado!—disseoMosqueiraaocolega.—ManuelBotelhotinha,hácoisadeumano,
fugidoparaEspanhacomumasenhoracasada.Aquelamulherquevimosnãoéirmãdele.—Pois,senosmentiu,épatife,pornosobrigaracortejarumaconcubina!...Eumeinformarei...
—disseocorregedor,ofendidonoseuausteropundonor.Enopróximocorreio, escrevendoaDomingosBotelho,dizianoperíodo final: “Tiveogostode
conhecerteufilhoManueleumadetuasfilhas;poreletemandeiumabraço,eporelatemandariaoutro,sefossemodaensinaremvelhosameninasbonitascomosedãoosabraçosnospais”.EstavajáManuelemcasa,ecuidavaemtrajarumamodestacasaparaaaçoriana,auxiliadopor
suabondosaeindulgentemãe.DomingosBotelhoforainformadodavinda,edisseraquenãoqueriaverofilho,avisando-odequeeraconsideradodesertordecavalariaseisdesdequeabandonaraosestudos,ondeestavacomlicença.Recebeudepoisacartadocorregedordocrime,emandouimediataesecretamentedevassarse
emVilaRealestavaasenhoraqueindicavaacarta.Aespionagemdeu-acomocertanaestalagem,enquantoManuelBotelhocuidavanosadornosdeumacasa.Escreveuomagistradoaojuizdefora,e este mandou chamar à sua presença a mulher suspeita, e ouviu dela a sua história sincera elacrimosamente contada.Condoeu-se o juiz, e revelou ao colega as suas averiguações.DomingosBotelho foi a Vila Real, e hospedou-se em casa do juiz de fora, onde a senhora foi novamentechamada,sendoqueaomesmotempoogeneraldaprovíncialavravaordemdeprisãoparaocadetedesertordecavalariadeBragança.A açoriana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda sombra, e aparência de
intençõessinistras.—EusoupaideManuel—disseDomingosBotelho.—Seiahistóriadasenhora.Oinfameéele.
Vossa senhoria é a vítima. O castigo da senhora principiou desde o momento em que a suaconsciêncialhedissequepraticouumaaçãoindigna.Seaconsciêncialhonãodisseainda,elalhodirá.Dondeé?—DailhadoFaial—respondeutrêmulaadama.—Temfamília?—Tenhomãeeirmãs.—Suamãeaceitá-la-ia,seasenhoralhepedisseabrigo?—Creioquesim.—SabequeManueléumdesertor,queaestashorasestápresooufugitivo?—Nãosabia...—Queristodizerqueasenhoranãotemproteçãodealguém...Apobremulhersoluçava,abafadaporânsias,edebulhadaemlágrimas.—Porquenãovaiparasuamãe?—Nãotenhorecursosalguns—respondeuela.—Querpartirhojemesmo?Àportadaestalagem,daquiapouco,encontraráumaliteiraeuma
criada para acompanhá-la até ao Porto. Lá entregará uma carta. A pessoa a quem escrevo lhecuidarádapassagemparaLisboa.EmLisboaoutrapessoaalevaráabordodaprimeiraembarcaçãoquesairparaosAçores.Estamoscombinados?Aceita?— E beijo as mãos de vossa senhoria... Uma desgraçada como eu não podia esperar tanta
caridade.Poucashorasdepois,aesposadomédico...—Quetinhamorridodepaixãoevergonhatalvez!—exclamaumaleitorasensível.—Não,minhasenhora;oestudantecontinuavanesseanoafrequentaraUniversidade;e,como
tinhajávastainstruçãoempatologia,poupou-seàmortedavergonha,queéumamorteinventadapeloviscondedeA.GarrettnoFreiLuizdeSousa,eàmortedapaixão,queéoutramorteinventadapelosnamoradosnascartasdespeitosas,equenãopeganosmaridosaquemoséculodotoudeunslonges de filosofia, filosofia grega e romana, porque bem sabem que os filósofos da Antiguidadedavampormimoasmulheresaosseusamigos,quandoosseusamigosporfavorlhasnãotiravam.Eestafilosofiahojeentão...Poisomédiconãomorreu,nemsequerdesmedrou,ou levouR significativodepreocupaçãodo
ânimo,insensívelàsamenidadesdaterapêutica.Aesposa,inquestionavelmentemuitomaisalquebradaevaletudináriaqueseuesposo,lavadaem
pranto,mortadesaudades,semfuturo,semesperanças,semvozhumanaqueaconsolasse,entrounaliteira,echegouaoPorto,ondeprocurouocorregedordocrimeparaentregar-lheumacartadodoutorDomingosBotelho.Umperíododestacartadiziaassim:Deste-meanotíciadumafilhaqueeunãoconhecia,nemconheço.Amãedestasenhoraestáno
Faial,paraondeelavai.Cuidatu,oumandacuidarnoseutransporteparaLisboa,eencarregaalialguémdecorrercomapassagemdelaparaosAçoresnoprimeironavio.Amimmedaráscontadasdespesas. Meu filho Manuel teve ao menos a virtude de não matar ninguém para se constituiramante. Domodo como correm os tempos, muito virtuoso é o rapaz que nãomata omarido damulherqueama.Vêseconseguesdogeneral,queestáaí,perdãoparaorapaz,queédesertordacavalariaseis,emeconstaqueestáescondidoemcasadumparente.EnquantoaSimão,creioquenãoépossívelsalvá-lododegredotemporário...ÉumalançaemÁfricalivrá-lodaforca.EmLisboamovem-se grandes potências contra o desgraçado, e eu estou malvisto do intendente-geral porabandonarolugar...etc.PartiuparaLisboaaaçoriana,edaliparaasuaterra,eparaoabrigodesuamãe,queajulgara
morta,elhedeuanosdevida,senãoditosa,sossegadaedesiludidadequimeras.Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor do crime, mudou de
regimentoparaLisboa,eaípermaneceuatéque,falecidoseupai,pediuabaixaevoltouàprovíncia.
CapítuloXVII
JoãodaCruz,nodia4deagostode1805,sentou-seàmesacomtristeaspectoenenhumapetitedoalmoço.—Nãocomes,João?—disse-lheacunhada.—Nãopassadaquiobocado—respondeuele,pondoodedonosgorgomilos.—Quetenstu?—Tenhosaudadesdarapariga...Davaagora tudoquanto tenhoparaaveraquiaopédemim,
comaquelesolhosquepareciamirdireitoaosdesgostosqueumhomemtemnoseu interior.Malhajam as desgraças da minha vida, que ma fizeram perder. Deus sabe se para pouco, se parasempre!...Seeunãotivessedadootironoalmocreve,nãovinhaaficaremobrigaçãoaocorregedor,enãosemedavaqueofilhovivesseoumorresse...—Massetenssaudades—atalhouasenhoraJosefa—mandabuscararapariga,tem-nacáalgum
tempo,etornadepoisparaondeaosenhorSimão.—Issonãoédehomemquepõenavalhanacara,Josefa.Orapaz,seelalhefalta,morredepasmo
dentrodaquelesferros.Istoévenetaquemedeuhoje...Sabesquemais?Leveabrecaodinheiro!AmanhãvouaoPorto.—Poisissoéoquedevesfazer.— Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. Por ora, tem-se
resistidoatudocomomeubraço.Arapariga,seficarcommenos,láseavenha.Assimoquer,assimotenha.Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços da garganta se iam
removendoàmedidaqueplanizavaasuaidaaoPorto.Acabaradealmoçar,eficaracismático,encostadoàmesadoescano.—Aindaestásmalucando?!—tornouJosefa.—Parececoisadodemônio,mulher!...Araparigaestarádoenteoumorta?—AnjobentodaSantíssimaTrindade!—exclamouacunhada,erguendoasmãos—Quedizestu,
João?—Estoucápordentronegrocomoaquelasertã!—Issoéflato,homem!Vaitomarar;trabalhaumpoucochinhoparaespaireceres.João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a bigorna, e começou a
atarracarcravos.Algunsconhecidos tinhampassado,palavreandocomeleconsoantecostumavam,eachavam-no
taciturnoenadaparagraças.—Quetenstu,João?—diziaum.—Nãotenhonada.Vaiàtuavidaedeixa-me,quenãoestouparalérias.Outroparavaedizia:—Guarde-oDeus,senhorJoão.—Eavossemecêtambém.Quenovidadehá?—Nãoseinada.—PoisentãovácomNossaSenhora,queeuestoucádecandeiasàsavessas.O ferrador largavaomartelo;sentava-seaospoucosno tronco,ecoçavaacabeçacomfrenesi.
Depoisrecomeçavanovamente,etãoalheadoofazia,queestragavaocravo,oumartelavaosdedos.
—Istoécoisadodiabo!—exclamouele;efoiàcozinhaprocurarapichorra,queemborcoucomoqualquerelegantedepaixõesetéreasseaturdecomabsinto.—Heideafogar-te,coisamá,quemeestásapertandoaalma!—continuouoferrador,sacudindoosbraços,ebatendoopénosoalho.Voltouaocobertoatempoqueumviandanteiapassandosobreasuapossantemula.Envolvia-se
ocavaleironumamplocapoteàmodaespanhola,semembargodacalmaquefazia.Viam-se-lheasbotasdecourocru,comesporasamarelasafiveladas,eochapéuderrubadosobreosolhos.—Oraviva!—disseopassageiro.—Viva!— respondeumestre João, relanceando os olhos pelas quatro patas damula, a ver se
tinhaobraemqueentreteroespírito.—Amulaéderópiaechibança!—Nãoémá.VossemecêéqueéosenhorJoãodaCruz?—Paraoservir.—Venhoaquipagar-lheumadívida.—Amim?Osenhornãomedevenada,queeusaiba.—Nãosoueuquedevo;émeupai,eelequemeencarregoudelhepagar.—Equeméseupai?—MeupaieraumrecoveirodeCarção,chamadoBentoMachado.Proferida metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente as bandas do capote e
desfechouumbacamartenopeitodoferrador.Oferidorecuou,exclamando:—Mataram-me!...Mariana,nãotevejomais!...Oassassinoteriadadocinquentapassosatodoogalopedaespantadamula,quandoJoãodaCruz,
debruçadosobreobanco,arrancavaoúltimosuspirocomacarapostanochão,dondeapontaraaopeitodoalmocrevedezanosantes.
Os caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente, ajuntaram-se em redor docadáver.Josefaacudiuaoestrondodotiro,ejánãoouviuasúltimaspalavrasdeseucunhado.Quistransportá-loparadentroecorrerachamarcirurgião;masumcirurgiãoestavanoajuntamentoedeclaroumortoohomem.—Quemomatou?—exclamavamtrintavozesaumtempo.NessemesmodiavieramjustiçasdeViseulavrarautoedevassar:nenhumindíciolhesdeuofio
do misterioso assassínio. O escrivão dos órfãos inventariou os objetos encontrados, e fechou asportasquandoossinoscorriamoderradeirodobreaocairdalousasobreJoãodaCruz.Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza de tua alma!
Pensandonasincoerênciasdatuaíndole,homemquemeexplicasaprovidência,assombram-meascaprichosasantítesesqueamãodeDeusinfundeemalentosnacriatura.Dormeoteusonoinfinito,senenhumoutrotribunaltecitaaresponderpelasvidasquetiraste,epelousoquefizestedatua.Mas,seháestânciadecastigoedemisericórdia,aslágrimasdetuafilhaterãosido,napresença
doJuizSupremo,osteusmerecimentos.Fez Josefa escrever aMariana, noticiando-lhe amorte de seu pai, mas sobrescritou a carta a
SimãoBotelho,paramaiorsegurança.EstavaMariananoquartodopreso,quandoacarta lhe foientregue.—Nãoconheçoaletra,Mariana...Eaobreiaépreta...Marianaexaminouosobrescrito,eempalideceu.—Euconheçoaletra—disseela—édoJoaquimdaloja.Abra,depressa,senhorSimão...Meupai
morreria?—Quelembrança!Poisnãotevehátrêsdiascartadele?...Enãodissequeestavabom?—Issoquetem?...Vejaquemassina.Simãobuscouaassinatura,edisse:—JosefaMaria!...Éatuatiaquelheescreve.—Leia...leia...Quedizela?Deixe-meleramim...Opresoliamentalmente,eMarianainstou:—Leiaalto,porquemé,senhorSimão,queestouatremer...evossasenhoriadescora...Queé,
meuDeus?Simãodeixoucairacarta,esentou-seprostradodeânimo.Marianacorreualevantaracarta,e
ele,tomando-lheamão,murmurou:—Pobreamigo!...Choremo-loambos...choremo-lo,Mariana,queoamávamoscomofilhos...—Poismorreu?—bradouela.—Morreu...mataram-no!...Amoçaexpediuumgritoestrídulo,efoicomorostocontraosferrosdasgrades.Simãoinclinou-a
paraoseio,edisse-lhecommuitaternuraeveemência:—Mariana, lembre-se que é omeu amparo. Lembre-se de que as últimas palavras de seu pai
deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que recebe das tuas mãos benfeitoras o pão da vida.Mariana,minhaqueridairmã,vençaador,quepodematá-la,evença-aporamordemim.Ouve-me,amigadaminhaalma?Marianaexclamou:—Deixe-mechorar,porcaridade!...Ai!MeuDeus,seeutornoaendoidecer!—Queseriademim!—atalhouSimão.—AquemdeixariaMarianaoseunobrecoraçãoparame
suavizarestemartírio?QuemmelevariaaodesterroumapalavraamigaquemeanimasseacreremDeus?Nãohádeenlouquecer,Mariana,porqueeuseiquemeestima,quemeama,equeafrontarácomcoragemamaiordesgraçaqueaindapodesugerir-meoinferno!Chore,minhairmã,chore;masveja-meatravésdassuaslágrimas!
CapítuloXVIII
Mariana,decorridosdias,foiaViseurecolheraherançapaterna.Emproporçãocomoseunascimento,bem-dotadaadeixaraolaboriosoferrador.Aforaoscampos,
cujo rendimentobastariaparaa sustentaçãodela,Mariana levantoua lajeconhecidada lareiraeachou os quatrocentosmil réis com que João daCruz contava para alimentar as regalias de suadecrepitudeinerte.VendeuMarianaasterras,edeixouacasaasuatia,quenasceranela,eondeseupaicasara.
Liquidadaaherança,tornouparaoPorto,edepositouoseucabedalnasmãosdeSimãoBotelho,dizendoquereceavaserroubadanacasinhaemquevivia,fronteiraàRelação,naRuadeS.Bento.
—Porquevendeuassuasterras,Mariana?—perguntouopreso.—Vendi-as,porquenãofaçotençãodelávoltar.—Nãofaz?...Paraondehádeir,Mariana,indoeudegredado?FicanoPorto?—Não, senhor,não fico—balbuciouela comoadmiradadestapergunta, àqual o seu coração
julgavaterrespondidodemuito.—Poisnão?!—Vouparaodegredo,sevossasenhoriamequisernasuacompanhia.Fingindo-sesurpreendido,Simãoseriaridículoaosseusprópriosolhos.—Esperavaessaresposta,Mariana,esabiaquenãomedavaoutra.Massabeoqueéodegredo,
minhaamiga?—Tenhoouvidodizermuitasvezesoqueé,senhorSimão...Éumaterramaisquentequeanossa;
mastambémhálápão,evive-se...—Emorre-se abrasado ao sol doentio daquele céu,morre-se de saudades da pátria,morre-se
muitasvezesdosmaustratosdosgovernadoresdasgalés,quetêmumcondenadonacontadefera.— Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntadomuito por isso à mulher dum preso, que
cumpriudezanosdesentençanaÍndia,eviveumuitobememumaterrachamadaSolor,ondeteveumatenda;e,senãofossemassaudades,dizelaquenãovinha,porquelhecorriamelhorporláavidaqueporcá.Eu,seforporvontadedosenhorSimão,voupôrumalojinhatambém.Verácomoeuamanhoavida.Afeitaaocalorestoueu;vossasenhorianãoestá;masnãoháde terprecisão, seDeusquiser,deandaraotempo.
—Esuponha,Mariana,queeumorroapenaschegaraodegredo?—Nãofalemosnisso,senhorSimão...— Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a pesar-me na alma, a
responsabilidadedoseudestino...Seeumorrer?—Seosenhormorrer,eusabereimorrertambém.—Ninguémmorrequandoquer,Mariana...—Oh!semorre!...Evivetambémquandoquer...NãomodissejáasenhoraD.Teresa?—Quelhedisseela?—Queestava apassarquando vossa senhoria chegouaoPorto, e que a sua chegada lhedera
vida.Poishámuitagenteassim,senhorSimão...Emaisafidalgaéfraquinha,eeusoumulherdocampo,vezadaatodosostrabalhos;e,sefosseprecisometerumalancetanobraçoedeixarcorrerosangueatémorrer,fazia-ocomoquemodiz.
—Ouça-me,Mariana:queesperademim?—Queheideeuesperar!...PorquemedizissoosenhorSimão?—OssacrifíciosqueMariana temfeitoequer fazerpormimsópodiamterumapaga,embora
mosnãofaçaesperandorecompensa.Abre-meoseucoração,Mariana?—Quequerqueeulhediga?—Conheceaminhavidatãobemcomoeu,nãoéverdade?—Conheço.Equetemisso?—Sabequeeuestouligadopelavidaepelamorteàqueladesgraçadasenhora?—Edaí?Quemlhedizmenosdisso?!—Ossentimentosdocoraçãosóospossoagradecercomamizade.—Eujálhepedimaisalgumacoisa,senhorSimão?!—Nadamepediu,Mariana;masobriga-metanto,quemefazmaisinfelizopesodaobrigação.Mariananãorespondeu;chorou.—Eporquechora?—tornouSimãocarinhosamente.—Issoéingratidão...eeunãomereçoquemedigaqueofaçoinfeliz.—Nãomecompreendeu...Souinfelizpornãopoderfazê-laminhamulher.EuqueriaqueMariana
pudessedizer:—“Sacrifiquei-mepormeumarido;nodiaemqueovi feridoemcasademeupai,veleiasnoitesaseulado;quandoadesgraçaoencerrouentreferros,dei-lheopãoquenemseusricospaislhedavam;quandoovisentenciadoàforca,endoideci;quandoaluzdaminharazãometornounumraiodecompaixãodivina,corriaosegundocárcere,alimentei-o,vesti-o,eadornei-lheas
paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a pátria daquele pobrecoração, trabalhei à luz do sol homicida para ele se resguardar do clima, do trabalho, e dodesamparo,queomatariam...”
OespíritodeMariananãopodiaaltear-seàexpressãodopreso;masocoraçãoadivinhava-lheasideias.Eapobremoçasorriaechoravaaumtempo.Simãocontinuou:
—Temvinteeseisanos,Mariana.Viva,queestasuaexistêncianãopodesersenãoumsuplíciooculto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe não pode restituir senão as lágrimas que eu lhetenhocustado.Otempodomeudesterronãopodeestarlonge;esperaroutromelhordestinoseriaumaloucura.Seeuficassenapátria,livreoupreso,pediriaaminhairmãquecompletasseaobragenerosadasuacompaixão,esperandoqueeulhedesseaúltimapalavradaminhavida.MasnãovácomigoàÁfricaouàÍndia,queseiquevoltarásozinhaàpátriadepoisqueeufecharosolhos.Seomeudegredofortemporário,eamortemeguardarparamaioresnaufrágios,voltareiàpátriaumdia.ÉprecisoqueMarianaaqui estejaparaeupoderdizerque venhoparaaminha família, quetenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com marido e filhos, a suaextremosafamíliaseráaminha.Seavir livreesó, ireiparaacompanhiademinhairmã.Quemeresponde,Mariana?
AfilhadeJoãodaCruz,erguendoosolhosdopavimento.disse:—EuvereioqueheidefazerquandoosenhorSimãopartirparaodegredo...—Pensedesdejá,Mariana.—Nãotenhoquepensar...Aminhatençãoestáfeita...—Fale,minhaamiga;digaqualéasuatenção.Marianahesitoualgunssegundos,erespondeuserenamente:—Quandoeuvirquenãolhesouprecisa,acabocomavida.Cuidaqueeuponhomuitoemme
matar?Nãotenhopai,nãotenhoninguém,aminhavidanãofazfaltaapessoanenhuma.OsenhorSimãopodeviversemmim?Paciência!...Euéquenãoposso...
Susteveocomplementodaideiacomoquemsepejadumaousadia.Opresoapertou-anosbraçosestremecidamente,edisse:
—Irá,irácomigo,minhairmã.Pensemuitonoinfortúniodenósambosd’oraemdiante,queeleécomum;éumvenenoquehavemosdetragarunidos,eláteremosumasepulturadeterratãopesadacomoadapátria.
Desdeestedia,umsecretojúbiloendoideciaocoraçãodeMariana.Nãoinventemosmaravilhasdeabnegação.ErademulherocoraçãodeMariana.Amavacomoafantasiasecomprazdeidearoamordunsanjosquebatemasasasdebaileembaile,eapenasquedamo tempoprecisoparasefazerem ver e adorar a um reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa, nãociúmesqueserefrigeramnaexpansãoounodespeito,mas infernossurdos,quenãorompiamemlabaredaaoslábios,porqueosolhosseabriamprontosemlágrimasparaapagá-la.Sonhavacomasdelíciasdodesterro,porquevozhumanaalgumanãoirialágemeràcabeceiradodesgraçado.Seaforçassem a resignar a sua inglória missão de irmã daquele homem, resigná-la-ia, dizendo: —“Ninguémoamarácomoeu;ninguémlheadoçaráaspenastãodesinteresseiramentecomooeufiz”.
E,contudo,nuncavacilouemaceitardamãodeTeresaoudamendigaascartasparaSimão.Acada vinco de dor que a leitura daquelas cartas sulcava na fronte do preso, Mariana, que oespreitavadisfarçada,tremiaemtodasasfibrasdoseucoração,ediziaentresi:—“Paraquehádeaquelasenhoraamargurar-lheavida?”
Eamarguravaacerbamenteadesditosamenina!Ressurgiramnaquelaalmaesperanças,quenãodeviamduraralémdotemponecessárioparaque
adesilusãolheacrisolasseoinfortúnio.Imaginaraelaaliberdade,operdão,ocasamento,aventura,a coroa do seu martírio. As suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas porque nãoconheciamaatrozrealidadedascoisas,outrasporquefiavamemdemasianasoraçõesdasvirtuosasdo mosteiro. Se os vaticínios das profetisas se realizassem, Simão sairia da cadeia, Tadeu deAlbuquerquemorreria de velhice e de raiva, o casamento seria um ato indisputável, e o céu dosdesgraçadosprincipiarianestemundo.
PorémSimãoBotelho,aocabodecincomesesdecárcere, jásabiaoseudestino,eacharaútilprevenirTeresa,paranãosucumbiraoinevitávelgolpedaseparação.Bemqueriaelealumiarcomesperanças a perspectiva negra do desterro;mas frouxos e frios eramos alívios emquenão eraparteaconvicçãonemosentimento.Teresanãopodiasequer iludir-se,porque tinhanopeitoumdespertador que a estava acordando sempre para a hora final, embora o semblante enganasse acondolênciadosestranhos.
E,então,eraoexpandir-seemlástimasnascartasqueescreviaaoseuamigo;invocaçõesaDeus,esacrílegasapóstrofesaodestino;brandurasdepaciênciaeímpetosdecóleracontraopai;oaferroàvidaquelhefoge,esúplicasàmorte,quenãoalivradastorturasdaalmaedocorpo.
Notermodesetemesesotribunaldesegundainstânciacomutouapenaúltimaemdezanosdedegredo para a Índia. Tadeu deAlbuquerque acompanhou a Lisboa a apelação, e ofereceu a suacasaaquemmantivessedepéaforcadeSimãoBotelho.Opaidocondenado,segundoassustador
avisoqueseufilhoManuellhedera,foiparaLisboalutarcomodinheiroeaspoderosasinfluênciasque Tadeu de Albuquerque granjeara na Casa da Suplicação e no Desembargo do Paço. VenceuDomingosBotelho,e, instigadomaisdoseucaprichoquedoamorpaternal, alcançoudoPríncipeRegenteagraçadecumprirocondenadoasuasentençanaprisãodeVilaReal.
QuandointimaramaSimãoBotelhoadecisãodorecursoeagraçadoRegente,opresorespondeuquenãoaceitavaagraça;quequeriaa liberdadedodegredo;queprotestariaperanteospoderesjudiciárioscontraumfavorquenãoimploravaequereputavamaisatrozdoqueamorte.
DomingosBotelho,avisadodarejeiçãodofilho,respondeuquefizesseeleasuavontade;masquea sua vitória dele sobre os protetores e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de Viseu estavaplenamenteobtida.
Foiavisoaointendente-geraldapolícia,eonomedeSimãoBotelhofoiinscritonocatálogodosdegredadosparaaÍndia.
CapítuloXIX
Averdadeéalgumasvezesoescolhodeumromance.Navidareal,recebemo-lacomoelasaidosencontradoscasos,oudalógicaimplacáveldascoisas;
mas,nanovela,custa-nosasofrerqueoautor,seinventa,nãoinventemelhor;e,secopia,nãomintaporamordaarte.
Umromancequeestribanaverdadeoseumerecimento,éfrio,éimpertinente,éumacoisaquenãosacodeosnervos,nemagente,sequerumatemporada,enquantoelenoslembra,destejogodenora,cujosalcatruzessomos,unsasubir,outrosadescer,movidospelamaniveladoegoísmo.
Averdade!Seelaéfeia,paraqueoferecê-laempainéisaopúblico!?Averdadedocoraçãohumano!Seocoraçãohumanotemfilamentosdeferroqueoprendemao
barrodeondesaiu,oupesamneleeosubmergemnocharcodaculpaprimitiva,paraqueéemergi-lo,retratá-loepô-loàvenda!?
Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar;mas, pois que eu perdi omeu a estudar averdade,jáagoraadesforraquetenhoépintá-lacomoelaé,feiaerepugnante.
Adesgraçaafervoraouquebrantaoamor?Issoéqueeu submetoàdecisãodo leitor inteligente.Fatosenão teseséoqueeu tragopara
aqui.Opintorretrataunsolhos,enãoexplicaasfunçõesópticasdoaparelhovisual.Aocabodedezenovemesesdecárcere,SimãoBotelhoalmejavaumraiodesol,umalufadadoar
nãocoadapelosferros,opavimentodocéu,queodaabóbadadoseucubículopesava-lheopeito.Ânsiadevivereraasua;nãoerajáânsiadeamar.Seismesesdesobressaltosdiantedaforcadeviamdistender-lheasfibrasdocoração;eocoração,
paraoamor,quer-se forteetenso,deumacertarijeza,queseganhacomobomsangue,comosanseiosdasesperanças,ecomasalegriasqueoenchemereforçamparaosreveses.
CaiuaforcapavorosaaosolhosdeSimão;masospulsosficaramemferros,opulmãoaoarmortaldascadeias,oespíritoentanguidonaglacialestupidezdumasparedessalitrosas,edumpavimentoque ressoa os derradeiros passos do último padecente, e dum teto que filtra amorte a gotas deágua.
Oqueéocoração,ocoraçãodosdezoitoanos,ocoraçãosemremorsos,oespíritoanelantedeglórias,aocabodedezoitomesesdeestagnaçãodavida?
Ocoraçãoéavíscera,feridadeparalisia,aprimeiraquefalecesufocadapelasrebeliõesdaalmaque se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias daamputação,paraosquaisasaudadedaventuraextintaéumcautérioembrasa;eoamor,quelevaaoabismopelocaminhodasonhadafelicidade,nãoésequerumrefrigério.
Aodeslaçardagargantaacordadajustiça,SimãoBotelhoteveumahoradedesafogo,comoquesentiaopatíbulolascarentreosseusbraços,eentãoconvidouocoraçãodamulherqueoperderaaassistiràssegundasnúpciasdasuavidacomaesperança.
Depois,apassoigual,aesperançafugia-lheparaasareiasdaÁsia,eocoraçãointumescia-sedefel,oamorafogava-senele,morteinevitável,quandonãoháaberturaporondeaesperançaentrealuzirnaescuridãoíntima.
EsperançaparaSimãoBotelho,qual?AÍndia,ahumilhação,amiséria,aindigência.
E os anelos daquela alma tinhammirado as ambições de umnome. Para a felicidade do amorenvidavaasforçasdotalento;mas,alémdoamor,estavamaglória,orenomeeavãimortalidade,que só não é demência nas grandes almas e nos gênios que se sentem previver nas geraçõesvindouras.
Masgrinaldasdeamoraescorreremsanguedosespinhos, essas infiltramvenenocorrosivonopensamento,apagamnoseioafaíscadasnobresafoitezas,apoucamaideiaqueabrangeramundos,eparalisamdemortalespasmoosestosdocoração.
Assim te sentias tu, infeliz, quandodezoitomesesde cárcere, comopatíbulo ouodegredonalinhadoteuporvir,tehaviammatadoomelhordaalma.
A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retraía-se,recriminadopelosditamesdarazão.
De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te vinhamespremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem podias consolar, pedias palavras ao anjo dacompaixãoparaela,easdodemôniododesesperoparati.
Os dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena eram-lhe mais horrorosos que opatíbulo.Eaceitá-los-ia,porventura,seamasseocéu,ondeTeresabebiaoar,quenospulmõesselheformavaempeçonha?Creio:antesamasmorra,ondepodeouvir-seosomabafadodeumavozamiga;antesosparoxismosdedezanossobreaslajesúmidasdeumaenxovia,se,nahoraextrema,aúltimafaíscadapaixão,aobruxulearparamorrer,nosalumiaocaminhodocéuporondeoanjodoamordesditososelevantouadarcontadesiaDeus,eapediraalmadoqueficou.
TeresapediraaSimãoBotelhoqueaceitassedezanosdecadeia,eesperasseaíasuaredençãoporela.
Dezanos!—dizia-lheaenclausuradadeMonchique.Emdezanosterámorridomeupaieeuserei
tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais aodegredo,parasempreteperdi,Simão,porquemorrerás,ounãoacharásmemóriademim,quandovoltares.
Como a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de vida se lhe concentravam no
coração!
Asânsias,a lividez,odeperecimentotinhamvoltado.Osangue,quecriaranovo, já lhesaíaemgolfadascomatosse.
Seporamoroupiedadeocondenadoaceitasseosferrolhostrêsmilseiscentasecinquentavezescorridossobreassuaslongasnoitessolitárias,nemassimTeresasusteriaapedrasepulcralqueavergavadehoraahora.
Nãoesperesnada,mártir—escrevia-lheele.—Alutacomadesgraçaéinútil,eeunãopossojá
lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos aoencontrodamorte...Háumsegredoquesónosepulcrosesabe.Ver-nos-emos?Vou.Abominoapátria,abominoaminhafamília;todoestesoloestáaosmeusolhoscobertode
forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço vociferar as imprecações docarrasco.EmPortugal,nemaliberdadecomaopulência;nemjáagoraarealizaçãodasesperançasquemedavaoteuamor,Teresa!Esquece-tedemim,eadormecenoseiodonada.Euqueromorrer,masnãoaqui.Apague-sealuz
dosmeusolhos;masaluzdocéu,quero-a!Queroverocéunomeuúltimoolhar!Nãomepeçasqueaceitedezanosdeprisão.Tunãosabesoqueéaliberdadecativadezanos!
Não compreendes a tortura dosmeus vintemeses. A voz única que tenho ouvido é a damulherpiedosaquemeesmolaopãodecadadia,eadoaguazilqueveiodar-measarcásticaboa-novadeumagraçareal,quemecomutaomorrerinstantâneodaforcapelasagoniasdedezanosdecárcere.Salva-te,sepodes,Teresa.Renunciaaoprestígiodumgrandedesgraçado.Seteupaitechama,
vai.Setemderenascerparatiumaauroradepaz,viveparaafelicidadedessedia.E,senão,morre,Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dor, é oesquecimentoquesalvadasinjúriasamemóriadospadecentes.
AspalavrasúnicasdeTeresa,emrespostaàquelacarta,significativadaturbaçãodoinfeliz,foram
estas:Morrerei,Simão,morrerei.Perdoatuaomeudestino...Perdi-te...Bemsabesquesorteeuqueria
dar-te...emorro,porquenãoposso,nempodereijamaisresgatar-te.Sepodes,viva;nãotepeçoquemorras,Simão;queroquevivasparamechorares.Consolar-te-áomeuespírito...Estoutranquila.Vejoaauroradapaz...Adeus,atéaocéu,Simão.
Seguiram-seaestacartamuitosdiasde terrível taciturnidade.SimãoBotelhonãorespondiaàs
perguntasdeMariana.Di-lo-íeisarroubadonasvoluptuosasangústiasdoseupróprioaniquilamento.AcriaturapostaporDeusaoladodaquelesdezoitoanostãoatribuladoschorava;masaslágrimas,seSimãoasvia,tiravam-nodamudezsossegadaparaímpetosdeaflição,queafinaloextenuavam.
Decorreramseismesesainda.E Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras que sabia ao certo o dia do seu
trespasse.DuasprimaverasviaSimãoBotelhopelasgradesdoseucárcere.Aterceirajáenfloravaashortas,
eesverdeavaasflorestasdoCandal.Eraemmarçode1807.No dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair na primeira embarcação que
levavaâncoradoDouroparaaÍndia.Nessetempovinhamaquiosnaviosbuscarosdegredados,erecebiamemLisboaosquetinhamigualdestino.
Nenhum estorvo impedia o embarque deMariana, que se apresentou ao corregedor do crimecomocriadadodegredado,compassagempagaporseuamo.
—Eapassagemvale-abem!—disseogalhofeiromagistrado.Simãoassistiuaoencaixotardasuabagagem,numaquietaçãoterrível,comoseignorasseoseu
destino.Quis muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda Teresa, e nem sinais de lágrimas
podiajáenviar-lhenopapel.— Que trevas, meu Deus! — exclamava ele, e arrancava a mãos-cheias os cabelos. — Dai-me
lágrimas,Senhor!Deixai-mechorar,oumatai-me,queestesofrimentoéinsuportável!Marianacontemplavaestarrecidaesteseoutroslancesdeloucura,ouosnãomenosmedonhosda
letargia.—ETeresa!—bradavaele,surgindosubitamentedoseuespasmo.—Eaquelainfelizmeninaque
eumatei!Nãoheidevê-lamais,nuncamais!Ninguémmelevaráaodegredoanotíciadesuamorte!E,quandoaeuchamarparaquemevejamorrerdignodela,quemtediráqueeumorri,ómártir?!
CapítuloXX
A17demarçode1807,saiudoscárceresdaRelaçãoSimãoAntônioBotelho,eembarcounocaisda Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do ex-corregedor de Viseu, a pedido dodesembargadorMourãoMosqueira,eporordemdoregedordajustiça,nãoiaamarradocomcordasaobraçodealgumcompanheiro.Desceudacadeiaaoembarque,aoladodeummeirinho,eseguidodeMariana,quevigiavaoscaixõesdabagagem.Omagistrado,fielamigodeD.RitaPreciosa,foiabordodanau,erecomendouaocomandantequedistinguisseocondenadoSimão,consentindo-onatolda, e sentando-o à suamesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro emouro, que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e, na presença de MourãoMosqueira, pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de degredo odinheiroquelhedava.—ÉdementeosenhorSimão?!—disseodesembargador.—Tenhoademênciadadignidade:poramordaminhadignidademeperdi;queroagoraveraque
extremodeinfortúnioelapodelevarosseusamantes.Acaridadesómenãohumilhaquandopartedocoraçãoenãododever.Nãoconheçoapessoaquemeremeteuessedinheiro.—Ésuamãe—tornouMosqueira.—Nãotenhomãe.Quervossaexcelênciaremeter-lheestaesmolarejeitada?—Não,senhor.—Então,senhorcomandante,cumpraoquelhepeço,oueuatirocomistoaorio.Ocomandanteaceitouodinheiro,eodesembargadorsaiudebordocomoespantadodasinistra
condiçãodomoço.—OndeéMonchique?—perguntouSimãoaMariana.—Éacolá,senhorSimão—respondeu,indicando-lheomosteiro,quesedebruçasobreamargem
doDouro,emMiragaia.CruzouosbraçosSimão,eviuatravésdogradeamentodomiranteumvulto.EraTeresa.NavésperareceberaelaoadeusdeSimão,eresponderaenviando-lheatrançadosseuscabelos.
Aoanoitecerdaqueledia,pediuTeresaossacramentos,ecomungouàgradedocoro,ondesefoiamparadaàsuacriada.Partedashorasdanoitepassou-assentadaaopédosantuáriodesuatia,quetodaanoiteorou.Algumasvezespediuquealevassemàjanelaqueseabriaparaomar,enãosentiaaliafrialdadedaviração.Conversavaserenamentecomasfreiras,edespedira-sedetodas,umaauma,indopôrseupéàscelasdassenhorasentrevadasparalhesdarobeijodadespedida.Todascuidavamemreanimá-la,eTeresasorria,semresponderaospiedososartifícioscomqueas
boasalmasasimesmasqueriamsimularesperanças.Aoabrirdamanhã,TeresaleuumaaumaascartasdeSimãoBotelho.Asque tinhamsidoescritasnasmargensdoMondegoenterneciam-naacopiosaslágrimas.Eramhinosàfelicidadeprevista:eramtudoquemaisformosopodedarocoraçãohumanoquandoapoesiadapaixãodácoraopensamento,eumaformosaeinspirativanaturezalheempresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscências daqueles dias: a sua alegriadoida, as suas doces tristezas, esperanças a desvaneceram saudades, osmudos colóquios com airmãqueridadeSimão,océuaromáticoqueselhealargavaàinspiraçãosôfregadevagosdesejos,tudo,enfim,quelembraadesgraçados.Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de flores
murchas,queSimão,doisanosantes,lheatiraradasuajanelaaoquartodela.
As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa, contemplando-as, disse: —“Comoaminhavida...”—echorou,beijandooscálicesdesfolhadosdasprimeirasquerecebera.Deu as cartas aConstança, e encarregou-a de umaordem, a respeito delas, que logo veremos
cumprida.Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma cadeira.
Erguendo-se,quasetiradapelaviolência,aceitouumaxícaradecaldo,emurmuroucomumsorriso:—“Paraaviagem...”ÀsnovehorasdamanhãpediuaConstançaqueaacompanhasseaomirante,e,sentando-seem
ânsiasmortais,nuncamaisdesfitouosolhosdanau,quejáestavavergaalta,esperandoalevadosdegredados.Quandoviu,adoisadois,entrarem,amarrados,notombadilho,oscondenados,Teresateveum
breveacidente,emqueajáfrouxaclaridadedosolhosselheapagou,easmãosconvulsaspareciamquereraferraraluzfugitiva.FoientãoqueSimãoBotelhoaviu.EaomesmotempoatracouànauumboteemquevinhaapobredeViseu,chamandoSimão.Foi
eleaoportaló,e,estendendoobraçoàmendiga,recebeuopacotinhodassuascartas.Reconheceuelequeaprimeiranãoerasua,pelalisuradopapel,masnãoaabriu.Ouviu-seavozde levarâncorae largaramarras.Simãoencostou-seàamuradadanau,comos
olhosfitosnomirante.
Viuagitar-seumlenço,eelerespondeucomoseuàqueleaceno.Desceuanauaomar,epassoufronteiraaoconvento.DistintamenteSimãoviuumrostoeunsbraçossuspensosdasreixasdeferro;masnãoeradeTeresaaquelerosto:seriaantesumcadáverquesubiudaclaustraaomirante,comosossosdacarainçadosaindadasherpesdasepultura.—ÉTeresa?—perguntouSimãoaMariana.—É,senhor,éela—dissenumafogadogemidoagenerosacriatura,ouvindooseucoraçãodizer-
lhequeaalmadocondenadoiriabrevenoseguimentodaquelaporquemseperdera.De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um movimento
impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa e do vulto de Constança, que eledivisaramaistarde.AnauparoudefrontedeSobreiras.Umanuvemnohorizontedabarra,eosúbitoencapelamento
dasondas,causaraasuspensãodaviagemanunciadapelocomandante.Emseguida,velejoudaFozumacatraia comopiloto-mor,quemandava lançar ferroaténovasordens.Mais tardeadiou-seasaídaparaodiaseguinte.E, no entanto, Simão Botelho, como o cadáver embalsamado, cujos olhos artificiais rebrilham
cravados e imotos num ponto, lá tinha os seus imersos na interior escuridade do miradouro.Nenhumsinaldevida.Eashoraspassaramatéqueoderradeiroraiodesolseapagounasgradesdomosteiro.Aoescurecer,voltoudeterraocomandante,econtemplou,comosolhosembaciadosdelágrimas,
odesterrado,quecontemplavaasprimeirasestrelas,iminentesaomirante.—Procura-anocéu?—disseonauta.—Seaprocuronocéu...—repetiumaquinalmenteSimão.—Sim!...Nocéudeveelaestar.—Quem,senhor?—Teresa.—Teresa...!Morreu?!—Morreu,além,nomirante,dondeelaestavaacenando.Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O comandante lançou-lhe os
braços,edisse:—Coragem,grandedesgraçado,coragem!OshomensdomarcreememDeus!Esperequeocéu
seabraparasipelassúplicasdaqueleanjo!MarianaestavaumpassoatrásdeSimão,etinhaasmãoserguidas.—Acabou-setudo!...—murmurouSimão.—Eis-melivre...paraamorte...Senhorcomandante—
continuoueleenergicamente—eunãomesuicido.Podedeixar-me.—Peço-lhequeserecolhaàcâmara.Oseubelicheestáaopédomeu.—Éobrigatóriorecolher-me?—Paravossasenhorianãoháobrigações;hárogos:peço-lhe,nãomando.—Vou,eagradeçoacompaixão.Marianaseguiu-ocomaqueleolharquebradoemaviosodo Jau,quandoopoetadesembarcava,
segundoaideiaapaixonadadocantordeCamões.EncarounelaSimão,edisseaocomandante:—Eestainfeliz?—Queosiga...—respondeuocompassivohomemdomar,quecriaemDeus.Simão recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em frente dele, e Mariana ficou no
escurodacâmaraachorar.—Fale,senhorSimão!—disseocomandante.—Desafogueechore.—Chorei,senhor!— Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana não criou ainda um
quadrotãoatroz.Arrepiam-se-meoscabelos,etenhovistoespetáculoshorríveisnaterraenomar.Acintemente,ocomandanteestavaprovocandoSimãoaodesabafo.Nãorespondiaocondenado.
Ouviaos soluçosdeMariana, e tinhaosolhospostosnomaçodas cartas,quepusera sobreumabanqueta.Ocapitãoprosseguiu:—QuandoemMiragaiamecontaramamortedaquelasenhora,pediaumapessoarelacionadano
conventoqueme levasseaouvirdealgumafreiraatristehistória.Umareligiosamacontou;maserammaisosgemidosqueaspalavras.Soubequeela,quandodescíamosnaalturadoOiro,proferiaemaltavoz:—“Simão,adeusatéàeternidade!”—Ecaiunosbraçosdumacriada.Acriadagritou,eoutras foram ao mirante, e a trouxeram meio morta para baixo, ou morta, melhor direi, quenenhuma palavramais lhe ouviram.Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e novemesesnaquelemosteiro;oamorqueelalhetinha,easmilmortesquealipadeceu,decadavezqueaesperançalhemorria.Quedesgraçadamenina,equedesgraçadomoçoosenhoré!—Porpouco tempo...—disseSimão,comoseodissesseasipróprio,ouaprópria imaginação
estivessedialogandoconsigo.
—Creio,creio,porpoucotempo—prosseguiuocapitão—,mas,seosamigospudessemsalvá-lo,senhor, eu dar-lhos-ia na Índiamais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob aminha palavra dehonra,alcançardovizo-reiasuaresidênciaemGoa.Prometosegurar-lheumdecenteprincípiodevidaeascomodidadesque fazemaexistência tão saudável comoelaénaÁsia.Nãoo intimideaideiadodegredo,senhorSimão.Viva,façaporvencer-se,eseráfeliz!—Oseusilêncio,porpiedade,senhor...—atalhouodegredado.— Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe à simpatia que me inspira a
indiscrição,masaceiteumamigonestahoraatribulada.—Aceito,eprecisodele...Mariana!—chamouSimão.—Venhaaqui,seestecavalheiroopermite.Marianaentrounoquarto.—Estamulhertemsidoaminhaprovidência—disseSimão.—Porqueelamevaleu,nãosentia
fomeemdoisanosenovemesesdecárcere.Tudoquetinhavendeuparamesustentarevestir.Aquivai comigo esta criatura. Seja respeitável aos seus olhos, senhor, porque ela é tão pura como averdadeodevesernoslábiosdummoribundo.Seeumorrer,senhorcomandante,aceiteolegadodeaampararcomasuacaridadecomoseelafosseminhairmã.Seelaquiservoltaràsuapátria,sejaoseuprotetornapassagem.—E,estendendo-lheamão,dissecomtransporte:—Promete-me isto,senhor?—Juro-lho.Ocomandante,obrigadoasubiraotombadilho,deixouSimãocomMariana.—Estoutranquilopeloseufuturo,minhaamiga.—Eujáoestava,senhorSimão—respondeuela.Nãosetrocarampalavrasporlargoespaço.Simãoapoiouafacesobreamesa,eapertoucomas
mãosasfontesarquejantes.Mariana,depé,aoladodele,fitavaosolhosnaluzmortiçadalâmpadaoscilante,ecismava,comoele,namorte.Eonordestesibilava,comoumgemido,nasgáveasdanau.
Conclusão
Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de passageiro, e Mariana,sentadanopavimento,comorostosobreosjoelhos,pareciasucumbiraoquebrantodastrabalhosaseaflitivashorasdaqueledia.
SimãoBotelhovelavaprostradonocamarote,comosbraçoscruzadossobreopeito,eosolhosfitosnaluzquebalançava,pendentedeumarame.Oouvidotê-lo-ia,talvez,atentoaumassobiodaventania:deviadesoar-lhecomoumaiplangenteaquelesilvoagudo,vozúnicanosilênciodeterraecéu.
À meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que Teresa lhe enviara, econtemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se nocamaroteparaalcançarobaçoclarãodalâmpada.
Diziaassimacarta:Éjáomeuespíritoquetefala,Simão.Atuaamigamorreu.AtuapobreTeresa,àhoraemque
leresestacarta,seDeusnãomeengana,estáemdescanso.Eudeviapoupar-teaestaúltimatortura;nãodeviaescrever-te;masperdoaàtuaesposadocéua
culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite daminhavida.Quemtediriaqueeumorri,senãofosseeumesma,Simão?Daquiapouco,perderásdevistaeste
mosteiro;correrásmilharesdeléguas,enãoacharás,empartealgumadomundo,vozhumanaquetediga:—“Ainfelizespera-tenoutromundo,epedeaoSenhorqueteresgate”.—Setepudessesiludir,meuamigo,quereriasantespensarqueeuficavacomavidaecomesperançadever-tenavoltadodegredo?Assimpodeser,mas,aindaagora,nestesolenemomento,medominaavontadedefazer-tesentirqueeunãopodiaviver.Parecequeamesmainfelicidadetemàsvezesvaidadedemostrarqueoé,aténãopodê-losermais!Queroquedigas:—“Estámorta,emorreuquandoeulhetireiaúltimaesperança”.—Istonãoéqueixar-me,Simão;nãoé.Talvez,queeupudesseresistiralgunsdiasàmorte,setu
ficasses;mas,deummodooudeoutro,erainevitávelfecharosolhosquandoserompesseoúltimofio,esteúltimoqueseestápartindo,eeumesmaoouçopartir.Nãovãoestaspalavrasacrescentaratuapena.Deusmelivredeajuntarumremorsoinjustoàtua
saudade.Seeupudesseaindaver-tefeliznestemundo;seDeuspermitisseàminhaalmaestavisão!...Feliz,
tu,meupobrecondenado!...Semoquerer,omeuamoragoratefaziainjúria,julgando-tecapazdefelicidade!Tumorrerásdesaudade,seoclimadodesterrotenãomataraindaantesdesucumbiresàdordoespírito.Avidaerabela,era,Simão,seativéssemoscomotumapintavasnastuascartas,quelihápouco!
EstouvendoacasinhaquetudescreviasdefrontedeCoimbra,cercadadeárvores,floreseaves.A
tuaimaginaçãopasseavacomigoàsmargensdoMondego,àhorapensativadoescurecer.Estrelava-se o céu, e aLua abrilhantava a água.Eu respondia comamudezdo coração ao teu silêncio, e,animadaporteusorriso,inclinavaafaceaoteuseio,comosefosseaodeminhamãe.Tudoistolinastuascartas;eparecequecessaodespedaçardaagoniaenquantoaalmaseestárecordando.Noutracarta,mefalavasemtriunfoseglóriaseimortalidadedoteunome.Tambémeuiaapósdatuaaspiração,ouadiantedela,porqueomaiorquinhãodosteusprazeresdeespíritoqueriaeuquefossemeu.Eracriançahátrêsanos,Simão,ejáentendiaosteusanelosdeglória,eimaginava-osrealizadoscomoobraminha,setumedizias,comodissestemuitasvezes,quenãoseriasnadasemoestímulodomeuamor.Oh,Simão,dequecéutãolindocaímos!Àhoraqueteescrevo,tuestásparaentrarnanaudos
degredados,eeunasepultura.Que importamorrer,senãopodemos jamais ternestavidaanossaesperançadehá trêsanos?
Poderiastucomadesesperançaecomavida,Simão?Eunãopodia.Osinstantesdodormireramosescassos benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é umamisericórdiadivina,umabem-aventurançaparamim.Equefariastudavidasematuacompanheirademartírio?Ondetuirásaviventarocoraçãoque
adesgraçateesmagou,semoesquecimentodaimagemdestadócilmulher,queseguiucegamenteaestreladatuamalfadadasorte?!Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar
rapidamente aminha sombra por diante dos teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tuaamigaestasderradeirasperguntas,aqueturesponderás,noalto-mar,quandoestacartaleres.Rompeamanhã.Vouveraminhaúltimaaurora...aúltimadosmeusdezoitoanos!Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma agonia longa. Todas as minhas
angústias lhe ofereço emdesconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divinamecondena,oferecetuaDeus,meuamigo,osteuspadecimentos,paraqueeusejaperdoada.Adeus!Àluzdaeternidadeparece-mequejátevejo,Simão!Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmoMariana, que levantava a
cabeçaaomenormovimentodele.—Quetem,senhorSimão?—disseela,erguendo-se.—Estavaaqui,Mariana?...Nãosevaideitar?!—Nãovou;ocomandantedeu-melicençadeficaraqui.—Mashádeassimpassaranoite?!Rogo-lhequevá,porquenãoénecessáriooseusacrifício.—Seonãoincomodo,deixe-meaquiestar,senhorSimão.—Esteja,minhaamiga,esteja...Podereisubiraoconvés?—Queriraoconvés,senhorBotelho?—disseocomandante,lançando-sedobeliche.—Queria,senhorcomandante.—Iremosjuntos.SimãoajuntouacartadeTeresaaomaçodassuas,esaiucambaleando.Noconvéssentou-senum
monte de cordame, e contemplou omirante doMonchique, que avultava negro ao sopé da serrapenhascosaemqueatualmentevaiaRuadaRestauração.
Ocapitãopasseavadaproaàré,mascomoouvidofitoaosmovimentosdodegredado.Recearaele o propósito do suicídio, porqueMariana lhe incutira semelhante suspeita. Queria omarítimofalar-lhepalavrasconsoladoras,maspensavaconsigo:—“Oquehádedizer-seaumhomemquesofre assim?” — E parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito daquelemirante.
—Eunãomesuicido!—exclamouabruptamenteSimãoBotelho.—Seasuagenerosidade,senhorcapitão,seinteressaemqueeuviva,podedormirdescansadoasuanoite,queeunãomesuicido.
—Masmereço-lheeuacondescendênciadedescercomigoàcâmara?—Irei;maseu,lá,sofromais,senhor.Nãoreplicouocomandante,econtinuouapassearnoconvésapesardasrajadasdevento.Marianaestavaagachadaentreospacotesdacarga,apoucadistânciadeSimão.Ocomandante
viu-a,falou-lhe,eretirou-se.Àstrêshorasdamanhã,SimãoBotelhosegurouentreasmãosatesta,queselheabriaabrasada
pelafebre.Nãopôdeter-sesentado,edeixoucairmeiocorpo.Acabeça,aodeclinar,pousounoseiodeMariana.
—Oanjodacompaixãosemprecomigo!—murmurouele.—Teresafoimuitodesgraçada...—Querdesceraocamarote?—disseela.—Nãopoderei...Ampare-me,minhairmã.Deualgunspassosparaaescadinha,eolhouaindasobreomirante.Desceua íngremeescada,
apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água, que bebeu insaciavelmente.Seguiu-seafebre,oestorcimento,easânsias,comintervalosdedelírio.
Demanhãveioabordoum facultativo,porconvitedocapitão.Examinandoocondenado,disse
queerafebremalignaadoença,ebempodiaserqueeleachasseasepulturanocaminhodaÍndia.Marianaouviuoprognóstico,enãochorou.Àsonzehorassaiubarra foraanau.Àsânsiasdadoençaacresceramasdoenjoo.Apedidodo
comandante,Simãobebiaremédios,quebolsavalogo,revoltospelascontraçõesdovômito.Aosegundodiadeviagem,MarianadisseaSimão:—Seomeuirmãomorrer,queheideeufazeràquelascartasquevãonacaixa?Pasmosaserenidadeadestapergunta!—Seeumorrernomar—disseele—,Mariana,atireaomartodososmeuspapéis,todos;eestas
cartasqueestãodebaixodomeutravesseirotambém.
Passadaumaânsia,quelheembargavaavoz,Simãocontinuou:—Seeumorrer,quetencionafazer,Mariana?—Morrerei,senhorSimão.—Morrerás?!...Tantagentedesgraçadaqueeufiz!...A febreaumentava.Os sintomasdamorteeramvisíveisaosolhosdocapitão,que tinha sobeja
experiênciadevermorreremcentenaresdecondenados,feridosdafebrenomar,edesprovidosdealgummedicamento.
Aoquartodia,quandoanausemoviaronceiradefrontedeCascais,sobreveiotormentasúbita.Onaviofez-seaolargomuitasmilhas,e,perdidoorumodeLisboa,navegoudesnorteado.Aosextodiade navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, emseguidaaodesastre,aplacaramasrefregas,desencapelaram-seasondas,enasceu,comaauroradodiaseguinte,umformosodiadeprimavera.Eraodiadeprimavera.Eraodia27demarço,ononodaenfermidadedeSimãoBotelho.
Marianatinhaenvelhecido.Ocomandante,encarandonela,exclamou:—ParecequevoltadaÍndiacomosdezanosdetrabalhosjápassados!...—Jáacabados...decerto...—disseela.Aoanoitecerdessediaocondenadodeliroupelaúltimavez,ediziaassimnoseudelírio:“Acasinha,defrontedeCoimbra,cercadadeárvores,floreseaves.Passeavascomigoàmargem
doMondego, à horapensativado escurecer.Estrelava-se o céu, e aLua abrilhantava a água.Eurespondiacomamudezdocoraçãoaoteusilêncio,e,animadaporteusorriso,inclinadaafaceaoteuseio,comosefosseodeminhamãe...Dequecéutãolindocaímos!...Atuaamigamorreu...AtuapobreTeresa...
Equefariastudavida,sematuacompanheirademartírio?...Ondeirástuaviventarocoraçãoque a desgraça te esmagou?!... Rompe amanhã... Vou ver aminha última aurora... a última dosmeusdezoitoanos.OfereceaDeusosteuspadecimentos,paraqueeusejaperdoado...Mariana...”.
Marianacolocouosouvidosaoslábiosroxosdomoribundo,quandocuidououviroseunome.“Tuvirásterconosco;ser-te-emosirmãosnocéu...Omaispuroanjoserástu...seésdestemundo,
irmã;seésdestemundo,Mariana...”.Atransiçãododelírioparaaletargiacompletaeraoanúncioinfalíveldotrespasse.Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e ouvira um gemido
estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos para tatear a face do agonizante,encontrouamãoconvulsa,quelheapertouumadassuas,erelaxoudesúbitoapressãodosdedos.
Entrou o comandante com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração, que não embacioulevementeovidro.
—Estámorto!—disseele.Marianacurvou-sesobreocadáver,ebeijou-lheaface.Eraoprimeirobeijo.Ajoelhoudepoisao
pédobelichecomasmãoserguidas,enãooravanemchorava.Algumashorasvolvidas,ocomandantedisseaMariana:—Agoraétempodedarsepulturaaonossoventurosoamigo...Éventuramorrerquandosevema
estemundocomtalestrela.PasseasenhoraMarianaaliparaacâmaraquevaiserlevadodaquiodefunto.
Mariana tirouomaçodascartasdebaixodo travesseiro,e foiaumacaixabuscarospapéisdeSimão. Atou o rolo no avental, que ele tinha daquelas lágrimas dela, choradas no dia da suademência,ecingiuoembrulhoàcintura.
Foiocadáverenvoltonumlençol,etransportadoaoconvés.Marianaseguiu-o.Doporãodanau foi trazidaumapedra,queummarujo lheatouàspernas comumpedaçode
cabo.Ocomandantecontemplavaacenatristecomosolhosúmidos,eossoldadosqueguarneciamanau,tãofuneralrespeitoosimpressionara,queinsensivelmentesedescobriram.
Marianaestava,noentanto,encostadaaoflancodanau,epareciaestupidamenteencararaquelesempuxõesqueomarujodavaaocadáver,parasegurarapedranacintura.
Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para oarremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, eninguémjápôdesegurarMariana,queseatiraraaomar.
Àvozdocomandantedesamarraramrapidamenteobote,esaltaramhomensparasalvarMariana.Salvá-la!...Viram-na,ummomento,bracejar,nãopararesistiràmorte,masparaabraçar-seaocadáverde
Simão,queumaondalheatirouaosbraços.OcomandanteolhouparaosítiodeondeMarianaseatirara,eviu,enleadonocordame,oavental,eàflordaágua,umrolodepapéis,queosmarujosrecolheramnalancha.Eram,comosabem,acorrespondênciadeTeresaeSimão.
DafamíliadeSimãoBotelhoviveainda,emVilaRealdeTrás-os-Montes,asenhoraD.RitaEmília
daVeigaCasteloBranco,a irmãprediletadele.Aúltimapessoa falecida,hávinteeseisanos, foiManoelBotelho,paidoautordestelivro.
BAGAGEMDEINFORMAÇÕESmomentohistórico
Os séculos XVIII e XIX foram permeados por revoluções constituídas com base no ideário
iluminista,formadoporumamentalidadelibertáriaqueiadeencontroaoabsolutismomonárquicoeaoantigosistemacolonial.Assim,em1862,quandoAmordeperdição,deCamiloCasteloBranco(1825-1890),foipublicado,
Portugal saía de um longo período de crises políticas e econômicas decorrentes dos efeitos daRevolução Francesa e da Revolução Industrial, que haviam marcado o fim do século XVIII e aascensãodaburguesianaEuropa.DuranteaprimeirametadedoséculoXIX,opaíssofreracomainvasãonapoleônica,afugadafamíliarealeaindependênciadesuaprincipalcolônia,oBrasil.Na segunda metade do mesmo século, porém, a nação portuguesa entrava na Restauração,
período no qual houve o incentivo à modernização e ao desenvolvimento da economia, o queproporcionou certa tranquilidade interna emaior segurança para o florescimento das artes e daliteraturanacionais.ÉnessecenárioqueoRomantismoportuguêsmostraseumaiorvigoreriqueza,compublicações
comoViagensnaminhaterra,deAlmeidaGarrett(1799-1854),eEurico,opresbítero,deAlexandreHerculano(1810-1877).
1850
AaprovaçãodaLeiEusébiodeQueirósporpressãodaInglaterrapõefimaotráficonegreironoBrasil.Compuniçõesseveras,anormainviabilizouaescravidão,quese
tornoumaisdifícilecara.
1860
Comoconsequênciadatentativaexpansionistaparaguaianosterritóriosuruguaio,argentinoebrasileiro,começaaGuerradoParaguai,violentoconflitoarmadoocorridona
regiãodabaciadoPrata.
1870
ComofimdaRestauraçãoapósaRevoltadaJaneirinha–queabalouPortugalpolíticaeeconomicamente–,oPartidoRegeneradorvoltaaopoder.FontesPereiradeMeloassume
ogovernoedánovoimpulsoàeconomia.
1880
Depoisdeumgolpemilitar,omarechalDeodorodaFonsecaproclamaofimdoImpérioesetornaoprimeiropresidentedoBrasil,substituindooregimemonárquicopelo
republicano.
BAGAGEMDEINFORMAÇÕESmomentoliterário
Aopassarporprofundastransformaçõesdeordempolítica,econômicaemoral,aEuropaassistiu
aosurgimentodeumdosmaisrevolucionáriosmovimentosdaartecontemporânea:oRomantismo.ComorigensnaAlemanhaenaInglaterraecomaFrançacomograndedifusora,eleaparececomoumacontraposiçãoaoracionalismoiluministadoséculoXVIII.Subjetivaeindividualistaaoextremo,avisãodemundoromânticaécentradanoeu,quesevolta
contra a realidade vigente, fruto da Revolução Francesa, da Revolução Industrial e da eranapoleônica.Nessecontexto,surgemastemáticasdoescapismoedamelancolia,asidealizações,ogostopelosobrenaturaleavalorizaçãodosentimento,danaturezaedaalma.Na literatura, o Romantismo é geralmente dividido em fases, mas seus textos mantêm o
ancoramentonaliberdadeformaledecriação,essencialparaaexpressãoartísticaromântica.Ao escrever Amor de perdição, quando estava preso sob a acusação de adultério, o escritor
portuguêsCamiloCasteloBrancousaomoteshakespearianodoamorproibidopeloódioentreduasfamílias para contar um pouco de sua própria história e ainda ilustrar outras características daprosaromântica,comoatragicidadeeapassionalidadeintensaqueanulamarazão.
TROVADORISMOHUMANISMOCLASSICISMOBARROCOARCADISMOROMANTISMOREALISMONATURALISMOPARNASIANISMOSIMBOLISMOPRÉ-MODERNISMO
MODERNISMO
Combasenasidealizaçõesdoamor,damulheredoherói,oRomantismodávazãoàimaginaçãoeépalcoparaoescapismo,ouseja,afugadeumarealidadeindesejada.Oescritorromânticotrazàtonaumsubjetivismoexacerbado,pormeiodoqualmanifestasuaindividualidade,delineadaprincipalmentepelasemoçõesepelossentimentos.Aexaltaçãodanatureza,oaspectoconfessional,omisticismo,amorbidez,opessimismoeamelancoliatambémfazempartedaestéticaliteráriaromântica.ORomantismobrasileiro,especificamente,épermeadoporumforteapelonacionalista,pelavalorizaçãodoexotismoedofolcloreeporumatemáticasocialbaseadanoinconformismo.
ObraconformeoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesaProduçãoeditorial:carochinhaeditorialProjetográfico:NaiaraRaggiottiBagagemdeinformações:SimoneOliveiraeRicardoPaschoalatoIlustrações:KrisBarzDiagramação:RicardoPaschoalatoPreparaçãodetexto:JulianaAmatoRevisão:LeandroMoritaeLucianaSoaresCapa:carochinhaeditorialConversãoemepub:{kolekto}Direitosdepublicação:©2013EditoraMelhoramentosLtda.1.ªediçãodigital,dezembrode2015ISBN:978-85-06-07604-0(digital)ISBN:978-85-06-01138-6(impresso)Atendimentoaoconsumidor:CaixaPostal11541–CEP05049-970SãoPaulo–SP–BrasilTel.:(11)3874-0880www.editoramelhoramentos.com.brsac@melhoramentos.com.br
Resenha:AmordePerdiçãoDuasfamíliasrivaiseumamorproibido:nessamisturaexplosiva,sentimentoscomopaixão,ódio,desesperoelealdadedesfilamaocontarumadashistóriasmaisderramadasecomoventesdaliteraturaportuguesa.AmbientadanoséculoXIX,atramasedesenroladeformafrenéticaedramática,bemaogostodasegundafasedoRomantismo,comdireitoatriânguloamoroso,assassinato,suicídioecartas-muitascartasdeamor.
Recommended