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Manuscrito do índice do 14º Livro do Códex de Maimônides, que contém as leis dos reis (Colônia, 1295)

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A PALAVRA PODERIA ATÉ SER A SEMEN-TE DE DEUS, MAS A IGREJA DOS SÉCU-LOS XVII E XVIII NÃO APRECIAVA QUE

a cabeça de seu rebanho fosse arada emdemasia. O próprio Antônio Vieira, queusou a citação de Lucas acima em seu Ser-mão da sexagésima (1655), logo apren-deu que a “agricultura”eclesiástica tinhalimites muito estreitos: preso pela Inqui-sição, o Tribunal do Santo Ofício cassou-lhe a palavra em 1667 por causa de suasidéias milenaristas e por sua defesa dacausa dos judeus, vistos na então anti-se-mita Portugal como “perversa gente”.Vieira se retratou e sobreviveu. Menosafortunado foi um seu discípulo baia-no, o padre Manoel Lopes de Carvalho,nascido em Salvador em 1682 e queima-do vivo, num auto-de-fé, em 1726, apósanos nos cárceres da Inquisição.

“Profundamente influenciado pelopensamento do Padre Vieira, que haviaprognosticado um Terceiro Estado, noqual o uso das cerimônias judaicas se-ria permitido, a Igreja reverteria suas po-sições e concederia aos judeus conver-tidos ao catolicismo o uso de seus ritos,ele tentou criar um sistema teológico emque judeus e cristãos se tornariam um sópovo em uma só religião no reino dePortugal e suas possessões, o chamadojudeu-cristianismo”, explica AdalbertoGonçalves Araújo Júnior, autor da tesede doutorado “No ventre da baleia: omundo de um padre judaizante no sé-culo XVIII”, orientada por Anita No-vinsky e defendida recentemente no De-partamento de História da USP.“Sua vi-da, marcada por uma atitude questio-

nadora diante das principais instituiçõesdo seu tempo, o Estado, a Igreja e a In-quisição, foi uma saga que nos revelauma época em que liberdade e consciên-cia eram privilégios de poucos.” O no-tável no processo do padre Manoel é queseu caso contém um sistemático tratadoteológico, em que o réu fundamenta suasproposições, material inflamável nasmãos do inquisidor Thomas Feio Bar-buda, para quem o padre era uma pe-rigosíssima ameaça ao reino, tamanhaa sua “contaminação pelo judaísmo”.

Mas qual a razão para tanta celeumase ele provinha de uma região da colô-nia tão distante da metrópole? “A Bahia,ao longo dos séculos XVI a XVIII, foium centro judaizante com ambienteonde pairavam o judaísmo e o sincretis-mo judaico-cristão em razão dos mui-tos cristãos-novos e criptojudeus” , ob-serva Anita Novinsky em seu livro Cris-tãos-novos na Bahia. Eles também eramconhecidos como “marrano”, expressãodepreciativa que significa “porco” e lhesera imputada pela Igreja. Neste ano,aliás, completam-se os 500 anos da che-gada desses grupos ao Brasil, quando suaemigração da metrópole lusitana foipermitida.“Gente da nação”,“confessos”,“conversos”,“judaizantes”,“os batizadosem pé”, todos epítetos usados para de-signar os judeus obrigados a abrir mãode suas crenças e tradições, os cripto-judeus surgiram após serem expulsos daEspanha em 1492 pelos Reis Católicos,Fernando e Isabel, indo se refugiar emPortugal apenas para em 1497 nova-mente depararem com o anti-semitis-

mo hispânico. Dom Manuel, emboraadmirador dos judeus, que consideravaessenciais para o progresso da ciênciae da economia lusitanas, ao se casar comuma princesa espanhola, recebeu dos so-gros a ordem de expulsar todos os ju-deus de suas terras.

O rei português, porém, optou poruma solução com “jeitinho brasileiro”.Sabedor da importância dos judeus paraPortugal, fingiu marcar uma data naPáscoa para a expulsão dos hebreus quese recusassem a se converter ao catoli-cismo (os cristãos-novos). Quando che-gou a hora do embarque, alegou-se nãohaver navios suficientes e se determinouentão um batismo em massa dos que ti-nham se concentrado no porto lisboetaà espera de transporte para outros paí-ses, em particular os Países Baixos, queeram tolerantes com os judeus. Surgiuaí a expressão “ficar a ver navios”; o reidecretou não haver mais hebreus em ter-ras lusas e muitos foram arrastados atéa pia batismal pelas barbas e pelos cabe-los. A esperança de dom Manuel eraque, cristianizados, em algum tempoeles se aculturariam e permaneceriamem Portugal. “Mas isso não se deu comfacilidade e nasceu o conceito do crip-tojudeu, aquele que fingia ter aceito ocristianismo apenas para continuar pra-ticando, em segredo, o judaísmo, logotachado pela Igreja de heresia a ser pu-nida com a morte”, afirma Anita No-vinsky em Inquisição, prisioneiros do Bra-sil. Em 1531, com a nomeação do pri-meiro Inquisidor de Portugal, começa-ram as perseguições.

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Do ventre da baleia para a fogueira

Em pleno século XVIII, padre baiano quis unir judeus e cristãos

HISTÓRIA

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A “descoberta” de novas terras noBrasil deu chance aos criptojudeus de selivrarem da morte certa e de poderempraticar, com relativa liberdade, suascrenças.Ao menos até 1591, quando umvisitador inquisitório foi enviado às no-vas terras para recolher indícios sobre ossuspeitos de judaísmo. Antes disso, po-rém, a colônia era um espaço privilegia-do para a resistência criptojudaica, mo-tivada pela relativa harmonia e cumpli-cidade no convívio entre cristãos-novose velhos, possível devido a uma aindapálida estrutura eclesiástica (sem um tri-bunal da Inquisição), bem como pelocotidiano duro para todos os credos.Havia doenças, índios hostis, falta de co-mida e água e problemas em demasiapara que os colonos se dessem ao luxode perder tempo e energia em querelasreligiosas que só tinham sentido (se éque o tinham...) na Europa, tão distan-te do Novo Mundo. Ao mesmo tempo,por autorização de dom Manuel, os ju-

deus convertidos puderam adotar no-mes cristãos como os da população efe-tivamente católica ou, então, adotar so-brenomes ligados ao local onde mora-vam, à fauna e à flora, bem como a de-signação de sua ocupação profissional.

Tradições - O tempo, no entanto, fezcom que várias das tradições fossem es-quecidas ou reinterpretadas, seja por ne-cessidade, seja pela ausência de rabinose de livros sagrados, fundamentais nu-ma religião intelectualizada como a ju-daica. Sabia-se algo sobre o shabat, so-bre feriados, sobre a proibição de comercarne de porco ou de peixe sem escamas,mas a maior parte dos preceitos foi es-quecida ou observada erradamente.Ainda assim, os criptojudeus mantive-ram o hábito de “fazer esnoga” (sinago-

ga em português arcaico), ou seja, sereunir para as celebrações religiosas ju-daicas. Em geral, os “templos”eram im-provisados nos engenhos mais distantesou mesmo em casa, à porta fechada. Erapreciso cuidado para não ser notado edenunciado pelos vizinhos.

No engenho de Camarajibe, em Per-nambuco, por exemplo, havia a figura do“campainha”: uma pessoa andava pelavila descalço com um pano amarrado aodedão do pé, sinal de que a reunião esta-va para começar. Nas “esnogas secretas”havia um revezamento: enquanto algunsrezavam outros vigiavam a entrada paraanunciar a chegada de estranhos. Hou-ve mesmo um casamento judaico nes-sa sinagoga. Mais fácil de preservar era oshabat e entre os que o faziam estava opoeta Bento Teixeira, autor de Prosopo-péia.Ainda assim, nem tudo eram flores.Professor, o poeta sempre estava ausen-te das aulas nos sábados, o que lhe ren-deu acusação de atos “judaizantes”.

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Antiga rua dos Judeus, em Pernanbuco

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Tal qual na maioridade judaica, ocriptojudeu era informado de sua ances-tralidade aos 13 anos e, ao mesmo tem-po,avisado dos perigos de praticar sua re-ligião abertamente.Tudo podia levar umadenúncia. Fazer refeições em mesa bai-xa em sinal de luto indicava um cristão-novo. A mesma mesa, porém, ao ser do-tada de gavetões, em Minas Gerais, dis-farçava a religião do morador, pois seacreditava que elas serviam para escon-der a comida e, dessa forma, não precisardividi-la com estranhos, símbolo de so-vinice. Em verdade, esconder a comidanas gavetas era uma forma de não levan-tar suspeitas sobre a dieta específica queseguia os mandamentos dietéticos judai-cos. Até mesmo na morte era precisoatenção. O moribundo, ao sentir a chega-da do fim, chamava o “abafador”ou “afo-gador”, figuras que asfixiavam os doentesa fim de que, em sua inconsciência, nãotraíssem suas raízes judaicas ou revelas-sem nomes de outros criptojudeus. Ex-ternamente eram cristãos exemplares.

Aliança - Em 1643,Vieira chegou a en-viar ao rei dom João IV uma proposta,em que advogava uma aliança com osmercadores e financistas cristãos-novoscomo forma de tirar Portugal da linhado desastre econômico a que se dirigia,permitindo o retorno deles à metrópo-le. Mas o anti-semitismo do senso co-mum estava muito incrustado na men-talidade lusitana do tempo. “Daí a me-dida da ousadia do padre Manoel emtentar ir a Roma e propor ao papa Cle-mente XI um projeto de reforma daIgreja à luz do judeu-cristianismo”, no-ta o pesquisador. Segundo ele, as princi-pais teses preconizadas pelo padre eram:a observância do shabat no lugar do do-mingo cristão; a reforma do calendáriolitúrgico cristão, para dar maior atençãoà Páscoa, de acordo com o calendário ju-daico; a observância das leis dietéticasjudaicas; a circuncisão; a dúvida sobre amessianidade de Jesus.“Ele se refere tam-bém, no tratado, à situação dos cristãos-novos portugueses; o sofrimento comoprovação divina aos eleitos; e, horror, aresponsabilidade do apóstolo Paulo nadeformação dos ensinamentos de Jesuse na difusão destes no mundo gentílico.”

“A separação entre judeus e cristãoscomeçou pouco depois do ano 70 d.C.Paulo de Tarso, fariseu convertido aocristianismo, no esforço de ‘autocom-

preensão’ da Igreja primitiva, descon-siderou o judaísmo como caminho parachegar a Deus. Para isso bastava a fé emCristo”, explica. Essa pregação paulina,continua o professor, era herética paraos judeus, porque Paulo sustentavaque Cristo havia ab-rogado a lei mo-saica para todos, estabelecendo uma no-va aliança em que só deviam conservaras observâncias mosaicas na medida emque serviam ao proveito das almas. O ju-daísmo de Cristo precisava sair de ce-na para o cristianismo vingar como re-ligião. O padre Manoel foi mexer exata-mente nesse vespeiro eclesiástico. “As-sim como a lei é o fundamento da fé deIsrael, para ele ela é a base, o alicerce dafé cristã, não sendo possível conceberum cristianismo desprovido da obser-vância da Torá judaica.”

Não contentes em ter as idéias “heré-ticas”do padre por escrito, os inquisido-res foram atrás das “raízes judaicas” doréu.“Os prisioneiros da Inquisição eramqualificados segundo a quantidade desangue judaico que tinham nas veias,pre-sumindo-se a heresia proporcional a es-sa porcentagem”, lembra o pesquisador.No futuro, outros iriam se basear nessemesmo paradigma nefasto. Até a avó dopadre Manoel foi usada como prova deque ele tinha sangue judeu. Ele não seabalou. “A grande afinidade do padre

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CARLOS HAAG

Ketub, contrato

judaico decasamento,

de 1714

com o judaísmo o fez reivindicar sua con-dição judaica, chegando mesmo a convi-dar os inquisidores a confirmarem, porexame, que ele era circuncisado.”

Porém meses nos cárceres do SantoOfício tiraram dele a agudeza e a luci-dez.“Após seis meses preso, ele começoua se autodenominar o Messias. Para sus-tentar sua messianidade em detrimen-to da de Jesus, afirmou que o Messiascristão não tivera humanidade real, co-mo exigiam as profecias bíblicas, masque foi espécie subalterna de homem,porque não foi propagado do sêmen deAdão.”Para o pesquisador, é difícil saberse o padre perdera a razão ou se adota-ra uma lógica messiânica, em que a res-tituição da harmonia côsmica só ocor-reria com um mediador terrestre. Eis o“ventre da baleia”.

“Engolido por uma baleia, todos de-ram Jonas por morto, mas que impor-tava que ele tivesse morto no conceitodos homens se ele estava vivo (aindaque encoberto) no ventre da baleia. ParaAraújo Júnior, “a história do padre re-presenta a corrente de pensadores quedefendiam uma transformação radi-cal para uma sociedade mais justa”. Coi-sa, ainda hoje, de difícil digestão paraa maioria dos cetáceos. ■

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