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CARREGANDO A ALDEIA DENTRO DE SI: O CAMINHO DE VOLTA
DE CONCITA SOMPRÉ
Hiran de Moura Possas1
Resumo: Sob a voz embargada das lembranças, Concita Sompré, indígena e professora
da Comunidade Kyikatêjê, Amazônia Oriental brasileira, mergulha nas turbulências de
"sua" vida, avizinhando fatos da infância com os preconceitos visceralmente
experimentados "em seu maior desafio": transformar vergonha em resistência.
Presentificar essas confidências vem sendo um exercício de escuta e aprendizagens
lentos, se mensurados por algumas ampulhetas centro-ocidentais, mas ressignificante,
antes de tudo, para os limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da
epistemologia. Sendo ou não já um princípio simétrico, a pesquisa busca urdir por essa
voz embargada, reconhecendo seus momentos oblíquos, e desejando que o caminho de
volta dessa também etnógrafa seja desenhado por um processo relacional de equivalência,
ou melhor, da busca "teóricometodológica" por isso.
Palavras-Chave: Simetria; reverso; antropologia especulativa; eterno retorno.
Eu antes tinha querido ser os outros para
conhecer o que não era eu. Entendi então que
eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha
experiência maior seria ser o outro dos outros:
e o outro dos outros era eu.
Clarice Lispector
Tentativas de procedimentos descritivos-cruzados já deveriam ser experimentos
majoritários frente ao que Viveiros de Castro (2015, p. 26) chama de antropologia versão
Disney, àquelas insistindo em constituir “os outros absolutamente outros, isto é, como
1 Doutor em Comunicação e Semiótica. Docente Unifesspa/FECAMPO.
não-humanos, bestas, plantas, legião de viventes mantida a máxima distância do círculo
narcísico do “nós”. Quem sabe deveria-se, então, pedir ou imaginar um plano de
equivalência para tantos “eus”.
Rogar por isso não significa dizer que experimentações simétricas ou até mesmo
reversas sejam frequentes e facilmente executáveis. Pelo contrário! O cacique Kyikatêjê,
a partir da convivência com pesquisadores que já passaram e já se foram de sua aldeia
mostra-se, até certo ponto, cético com essa possibilidade: “vocês vêm aqui. Fazem teses
e livros e somem. Tá na hora de mudar. Tá na hora de fazer parceria”
(JAKUKREIKAPITI, 2015). Já seria a hora de executar uma “conexão entre campos
semânticos e também etnográficos – heterogêneos” (GOLDMAN; VIVEIROS DE
CASTRO et al, 2006, p.01).
Desejando ser menos outsider nos devires com os Kiykatêjê e não simplesmente
revisional em termos etnográficos, a pesquisa sustentando esse exercício múltiplo procura
também ressemantizar a compreensão sobre o que seria a categoria: intelectual. Coube
uma escolha intelectual diaspórica e cruzada.Tentativa de alargamento de universos
conceituais. Seria a opção pelo desenraizamento das amarras dos pensamentos fixos e
arrogantes para os “pensamentos selvagens”.
É de se apostar que os “intelectuais indígenas” estarão, assim, procedendo de
igual maneira, tendo algo a nos dizer com base em seus princípios
epistemológicos, não apenas sobre si, mas sobre nós, num efeito de
“antropologia cruzada”. (Dias Jr; Santos, 2009, p. 139)
O referido povo da floresta é originário da região de Tucuruí-PA e atualmente
vive na Terra Indígena (TI) Mãe Maria, Aldeia Kyikatêjê, localizada no Km 25 da BR
222, município de Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do Pará. São heterodenominados
índios “Gavião”, classificados como povos do grupo Timbira, cuja língua é classificada
como da família linguística Jê-Timbira, do tronco Macro-Jê.
Nos últimos trinta anos este povo tem intensificado o contato com os não-
indígenas em função dos impactos e desterritorializações sofridos devido à construção da
UHE Tucuruí, abertura da BR-222 a implantação de linhas de transmissão de energia e
Estrada de Ferro Carajás, que corta a T. I. Mãe Maria.
Em 2014, com vistas a pretensão de se realizar um exercício cartográfico, em
parceria com os professores da língua indígena Kyikatêjê, para sistematização de seu
sistema ortográfico; elaboração de livros para a alfabetização na língua indígena e livros
de apoio didático ao ensino da língua, fomos apresentados à intelectual da floresta,
Concita Sompré, múltiplo Kyikatêjê: professora, estudante, mulher de cacique, presidente
de associação indígena, mãe, avó, mas, acima de tudo, capaz de carregar a aldeia dentro
de si: intensidade.
Figura 1: Concita Sompré
Fonte: Programa de Extensão Mito-Poéticas Orais: Repertórios “Tectônicos” em Devir
com a Educação Bilíngue
Dos frequentes e sucessivos encontros com Concita, percebi, desde já, a
desautoridade tradutória do projeto para os regimes de sentidos dos Kiykatêjê. Resolvi, a
partir de então, não explicar, nem interpretar, mas multiplicar e experimentar juntos.
Aqui, uma tentativa de afecção escrito-epistêmica chamada de amizade com o devido
empréstimo de Agamben (2009, p.90)
O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na mesmidade, um
tornar-se outro do mesmo. No ponto que eu percebo a minha existência como
doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e
exporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação
no coração mesmo da sensação mais íntima de si.
A busca de um “Nós” não significa uma opção tranquila ou até mesmo marcada
pelo consenso e a harmonia. Pelo contrário, seria um campo de tensões ou zona de
instabilidade problematizando o que seria um eu no outro ou um eu com o outro. Sujeitos
tentando deixar seus lugares fixos, para as relações. “Morte” parcial de “sujeitos”
substantivados: “não há sujeitos, o que há são regimes e modos de subjetivação, com suas
linhas centrais e periféricas”. (ILHA, 2011, p.50)
Isso teria algumas implicações: “ ‘nós’ e ‘outros’ deixariam de ser unidades
homogêneas e autocontidas, resolvidas em seus próprios e incomensuráveis termos”
(ILHA, 2011, p.52). Avatares, em certo sentido, em - intimidades culturais - com as
ordens simbólicas históricas impostas aos exercícios etnográficos (HERZFELD, 1997)
Desse modo, des-subjetivações, mesmidades e “co-sentimentos”, sempre
experimentando tensões, deram novos contornos ao projeto e ao desejo também de
descrever uma narrativa sobre a trajetória diaspórica de Concita Sompré.
Tristeza, incompletude, culpa, martírio, vergonha e sensação de paraíso fazem
da narrativa da professora Kyikatêjê uma trama matafórica que, aos olhos de Saer (2009),
não seria uma esquiva, por imaturidade ou irresponsabilidade, dos rigores que o
tratamento da “verdade” exige, mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo
da situação: um mergulho em sua turbulência ou no paradoxo próprio da ficção, quando
se recorre supostamente ao verossímil, para credibilizar o que ser quer dizer.
A antropologia especulativa é o saber desse como-ser, ou melhor, a dimensão
da perspectiva desse como-ser. Portanto, a descoberta de um mundo pela
antropologia especulativa não torna existente um mundo inexistente; torna
existente uma relação antes inexistente (mas subsistente, que sempre foi
possível) entre dois mundos, faz estes colidirem, se encontrarem; e faz o
explorador redescobrir a si mesmo, isto é, mudar de perspectiva, mudar a
perspectiva. A perspectiva da antropologia especulativa, assim, é a que deriva
desse encontro – não é a perspectiva de um mundo ou de outro, mas a de sua
tradução recíproca: uma entre-perspectiva, uma perspectiva caleidoscópica,
composta e atravessada por mais de uma perspectiva, como talvez toda
perspectiva, quando tornada corpo (textual ou xamânico), seja marca de um
encontro de perspectivas (NODARI, 2015, p.83)
Quando Deleuze se nega a fazer metáforas: “não faço metáforas”, isso acena para
uma linha de fuga dos sentidos habituais da referida figura de retórica. Ele contesta o
binarismo entre o próprio e o figurado, para fora desse domínio. Uma significação, quase
sempre, é contaminada por outra. A metáfora poderia ser, então, um espaço no qual nossa
experiência se estrutura e se transforma. (ZOURABICHVILI, 2005)
eu tenhu quarenta e cinco anus tenho cinco fiLHOS éh dois três homens e duas
mulheres tenhu um netinho de cinco aninhos eu fiz administração porque gostu
fiz meu curso técnico em área de administração então fiz administração e agora
eu tô entrando na área da licenciatura fazendo interculturalidade pela UEPA tô
nu:: penúltimo semestre [...] mi disseram que o curso ia ser ministrado dentro
da sa/dentro da aldeia eu mi senti assim (num) paraíso néh eu falei UM curso
de formação superior sendo ministrado dentro duma aldeia é inédito... então eu
fui fazer inscrição [...]porque eu mi sentia muito incompleta naum falando
minha língua i até um tempo atrás eu tinha vergonha disso quando eu chagava”
nus lugares que as pessoa falavam assim você é índia? sô cê FAla sua língua?
((abaixando a voz)) ai eu dizia assim naum:: ((elevando a voz e falando
rápido)) então você não é índia’ eu assumi aquilo como culpa i ficava com
vergonha i isso mi martirizo muito tempo quieu fiquei muito tempo com isso
vivi minha adolescência i:: o crescimento... então a forma como você interpreta
como você intendo o outro é que você se qualifica ai de igual pru outro [...]
entaum eu:: eu:: tinha essa essa essa tristeza dentro de mim por não falar a
língua i por muito tempo eu carreguei isso dentro de mim... MAS ai eu fiz u/um
caminhu - - por que que eu falo minha idade néh? - - Eu fiz um caminhu [...]
(SOMPRÉ, 2015)
Quem sabe a maioria dos exercícios etnográficos não tenham sido até hoje
especulativos?! Daí a impossibilidade de Viveiros de Castro (2015) e tantos outros
pesquisadores de concluirem ou quem sabe iniciarem seu anti-narciso. Rotações de
perspectivas e descolonização do pensamento parecem ínfimas se ainda comparadas ao
teatro perverso e inventado pela antropologia, congenitamente exotista e primitivista.
Ficcionalizar, desse modo, pelo caminho diaspórico de Concita “começaria”
quando seu pai, indígena Xerente, peregrinando de aldeia em aldeia2, graças as políticas
públicas “inclusivas” do SPI e da FUNAI, quando deslocavam, removiam e
desintegravam etnias pelo Brasil. O então jovem Xerente aportou em um convento jesuíta,
em São Paulo, graças a uma jovem clara e alta, Guarani. Já devidamente “raptada”, o
casal “desceu” o rio Araguaia, morou com os Karajás até a chegada na cidade de
Marabá/PA:
meu pai foi pará nesse conventu i lá ele raptó minha mãe... ((risos)) i ai eu tô
contando um pouco dessa história porque vocês... começam’ vocês tem que
entendê um pouco néh? porque que muitos índios vem pararem vários lugares
néh? teve um um ciclo ai pra ele tê ido parado em algum lugar... i ai a gente
veio descendo Rio Aragua::ia chegamos à Marabá na década de setenta
(SOMPRÉ, 2015)
Durante a década de 70, com cerca de 3 anos, Concita lembra da chegada no bairro
Amapá, hoje chamado de Cidade Nova, em Marabá. Todos sabiam indicar a “casa” dos
índios. A relação com os moradores, segundo suas remotas lembranças, era pacífica e
constituiu laços até hoje: “temos uma relação muito forti ali no Amapá foi um bairro qui
nos acolheu [...]” (SOMPRÉ, 2015).
2 Segundo Concita, seu pai , após um conflito familiar, foi remanejado para várias aldeias: Passou pelos
Karajás e pelos Kraôs.
As década de 70/80, para Concita, foram intensas e sua memória somada aos
jornais da época conseguem evocar parte das cenas genocidas envolvendo indígenas e a
construção da rodovia Transamazônica.
A história dos Arara, embora pouco conhecida, é igualmente trágica (e haverá,
para os índios, história que não seja trágica neste país e em quase todos os
demais?). Eles conseguiram fugir à ofensiva realizada pelo SPI entre 1952 e
1960 para 'pacificar' diversas tribos indígenas dos vales do Tocantins, Xingu e
Tapajós, consideradas ameaçadoras à economia regional por defenderem suas
terras, terras estas que continham seringais ou castanhais cobiçados pelo
'branco'.
Fugindo dos seringalistas e donos de castanhais – e também do SPI – os Arara
penetraram no interior da floresta arrasados por doenças, falta de alimento e
mudança de ambiente. Fizeram sua aldeia a aproximadamente 100 quilômetros
de Altamira e reiniciaram a vida. Foram surpreendidos pelas pesadas máquinas
que abriam, em 1970, a Transamazônica: suas habitações, roças e pertences
foram abandonados na fuga às pressas. Continuaram os Arara fugindo para o
sul.
No início de 1971, um grupo de trabalho formado pela Funai (chefiado pelo
falecido e saudoso antropólogo Eduardo Galvão, com participação de mais três
antropólogos do Museu Goeldi) reconheceu que os grupos ainda não
pacificados que se encontravam na rota da estrada, 'além de constituírem
minoria, parecem não possuir a força agressiva então demonstrada pelos
Kayapó. (CANDIDO SÁ, 1971)
Na década de 80, a família de repertórios simbólicos múltiplos muda-se para a
Reserva Mãe Maria, política pública compensatória do governo federal para
“territorializar” povos indígenas da região ou não. Povos Jês, Guaranis e, até mesmo
Kupês3, compuseram esse espaço com dimensões interativas. Seriam encontros
neocoloniais ditados por relações entre colonizadores e colonizados, não em termos da
separação ou segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimentos e
práticas interligadas. (PRATT, 1999)
Também, em 80, a passagem da estrada de ferro Carajás pela Reserva Mãe Maria,
possiblitou a esses sujeitos de trajetórias cruzadas, mas já sob a alcunha do termo redutor
Gavião, “compensações” indenizatórias, na maioria das vezes, refutadas com a interdição
da passagem dos minérios em suas terras.
chega lá u:: grandi agronegóciu né? ai vê aquela terra linda maravilhosa com
aqueli tantão di arvores qui dá um ocxi/um oxigênio PERFEItu prus nossus
pulmão/ não aqui tem MUI::ta madeira vau derrubá i plantá soja vamu fazê
dissu aqui um gandi::... um gandi agronegóciu... vamu produzi vami fazê vamu
acontece ai tá aí... né?... . intão somus traxadus di preguiçósus porque u nossu
3 Denominação para não indígena.
tempu não é u tempu du brancu... MAS AÍ tão tentando trazê u tempu pra cá
né?... (SOMPRÉ, 2015)
O eterno retorno ou o caminho de volta de Concita compreendido e interpretado
com/como Deleuze (1997, p.384) não seria retorno da mesma ao mesmo, pelo contrário:
O eterno retorno é bem o Semelhante, a repetição e a identidade não preexistem
ao retorno do que revém. Eles não qualificam de início isto que revém, eles
não se confundem absolutamente com seu retorno. Não é o mesmo que revém,
não é o semelhante que revém, mas o Mesmo é o revir disto que revém, quer
dizer do Diferente, o semelhante é o revir do que revém, quer dizer do
Dessemelhante. A repetição no eterno retorno é o mesmo, mas enquanto ele se
diz unicamente da diferença e do diferente.
Eterno retorno convertido em repetição selecionadora. Rompimento com um
suposto movimento circular. Seria justamento a distenção dessa trajetória circular e o
resultado do jogo da vontade de viver e de extrair da vida aquilo que, para Concita (2015),
pode ser estranho, insignificante, mas necessário. Para Concita, é indispensável, além de
falar de seu dia a dia na aldeia, citar sua passagem e de outros indígenas pelo desprezo da
universidade; pelo preconceito e pelos estranhamentos com o tempo corrido dos Kupês:
“O que se reepte sempre é a diferença, a emergência de uma novidade, uma diferença que
é a afirmação da positividade e não da negatividade: a reptição é uma trangressão do que
está aí” (HUR, 2013, p. 186)
MAS EU sei qui si eu valorizá aquilu i eu saí dessi mundu aondi eu vivo eu
num vou consegui mi adaptá é o qui acontece com us us nossus estudanti qui
chega nas universidadi... elis QUEREM tá aqui nessi mundu... mas elis não tão
sendo preparadu pra istá aqui... néh?... intão o que qui aconteci?... vem pra cá...
o professor tá falandu eli não tá conseguindo intendê até mesmo porque as
palavras qui tão sendo falada né? são palavras... como diz a:: o linguajá são
grego néh?... ali mal tá entendendu o português ai eli não vai entende mais
ainda... SÓ QUI eli tem um:: diferencial ainda eli tem vergonha di pergunta...
ali tem vergonha di abri a boCA... i si... fala in publicu... i ai eli fica caladu...
ai eli voltó pa dúvida... não entendeu’ u qui foi pedidu... não conségui pedi
ajuda i eli si fecha i ai eli retorna... chamadu di incompetenti não conseguiu
porque teve uma fala di um professor di medicina,... qui chamo um índio achu
qui é um índio Wai Wai... na sala di aula eli falô “não sei porque você tá aqui...
você não consegui entende o qui a genti fala pédi”... você tá:: já nu:: achu qui
no terceiro ou no quartu período a turma já tava lá na franti eli continuava lá...
“si eu fossi você eu voltava pra sua tribu... voltava pra sua aldeia lá você vai
ser mais útil do que aqui”... uma fala di um professor di medicina... uma das/...
i eli disse assim “não eu vó ficá... eu vó fica... eu vó aprendê... eu sei qui eu vó
aprendê”... ((chorando)) intão existi issu essa/essi impedimentu...
Concita coleciona falas de experiências indígenas na universidade consonantes
com os números bem guardados das universidades para a significativa evasão indígena.
Concita (2015) questiona o fato de que as políticas de inclusão se resumirem apenas ao
acesso à academia. Seria preciso também garantir permanência:
alguém qui/ vai prepará alguma coisa pra si adequá a nóis... mais issu vai mudá
a partir di hoji... creio eu... porque as pessoas/ o sistema são feitos di pessoas...
quein tá por tras do sistema dus programas são as pessoas’... intão si a
universidadi não prepara as pessoas pra recebê... naum trabalha as pessoas qui
vão trabalhá com o sistema pra recebê as pessoas a genti nunca vai sair da
mesmice...
A memória de Concita dá saltos desafiando quaisquer tentativas de precisão
descritiva. Esse espiral de lembranças, ora difusos, múltiplos e caóticos, ora lineares faz
passado, presente e futuro segmentares e descontínuos: “Por mais que o eterno retorno
possa afetar o passado e o presente, ele concerne diretamente ao futuro, a um
transbordamento produzido pelo futuro.” (HUR, 2013, p. 187)
Mostras disso é o salto que Concita costuma fazer quando suma memória,
enquanto multiplicidade, salteia do passado ao futuro para externar sua preocupação com
a Escola Kyikatêjê. A professora demonstra preocupação com o uma grade curricular
confinando e determinando que os saberes ancestrais fiquem reservados a um dia da
semana: a sexta feira. Concita compreende que a Escola seria, paradoxalmente, um
dispositivo, plantado na aldeia, nascido das relações do Estado com o Capital
reproduzindo e fortalecendo um projeto civilizador, no qual a gestão da colonização visa
ao ordenamento do “espoliado”, na exploração e expropriação de suas riquezas incluindo
seus saberes e a liberdade e o direito de representação. Por outro lado, compreende ser
possível transformá-la em contra dispositivo, pelas culturas letradas, uma tentativa de
rasura às representações canhestras historicamente recebidas pelos povos indígenas.
Agamben (2009b), sobre a categoria dispositivo, o vê como instrumento decisivo
de consolidação do capitalismo, não havendo um só instante da vida que não seja
modelado, contaminado ou controlado por ele. O filósofo italiano também se preocupa
de quais modos – e aqui incluo o povo de Concita – poderiam ser tecidas estratégias no
cotidiano com esses instrumentos modeladores: “nós vemos a escola como um forte
aliado não como um obstáculo mas como forte aliado”. (SOMPRÉ, 2015)
A armadilha de novamente se recair, pela Escola da aldeia, em processos de
reconfiguração das alteridades minoritárias, é refutada pelo desejo de Concita em ocupar
espaços de poder mediante alianças também com os aparelhos do Estado. Seria,
possivelmente, uma renúncia parcial dos horizontes ocidentais, para quem sabe,
reconfigurá-la a uma constelação mais ampla de saberes (SANTOS, 2010).
Concita crê no que chama de uma Escola intercultural reconhecendo o direito à
diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Lugar
da promoção de relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a
universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não
ignora as relações de poder presentes nas relações sociais, interpessoais e pedagógicas,
um reconhecimento de conflitos, procurando estratégias mais adequadas para enfrentá-
los.
então a escola ela tem esse papel; ela tem essa importância muito grande no
que está sendo ensinado desde a base ... se aquilo que está sendo ensinado vai
valorizar o meu eu enquanto Kyikatêjê vai valorizar minha cultura enquanto
Kyikatêjê vai fortalecer meu pertencimento. Kyikatêjê eu vou ser o primeiro a
ser o defensor da minha língua eu vou querer a falar a minha língua eu vou
querer defender a minha língua eu vou querer tomar como primeira vontade de
aprender a língua então é eu eu sujeito eu querendo a mudança eu querendo ter
orgulho daquilo que é meu ... porque eu não posso chegar para você e colocar
em você uma cultura ... você tem que querer abraçar aquela cultura viver aquela
cultura se identificar com aquela cultura e a partir daí você tem como fazer
alguma coisa. (SOMPRÉ, 2015)
As crianças precisam aprender a gíria4, segundo a professora e a liderança
kyikatêjê, Não há pensamento fora da linguagem e a escritura pode fornecer subsídios
tanto de reflexão quanto de ação. Os movimentos de desconstruções discursivas não são
construídos apenas por estruturas do fora. Também são possíveis e eficazes quando
ajustam seus “golpes” habitando as estruturas reguladoras. Isso é difícil e há horas que
não sabemos como fazer.
hoje eu tenho uma filha de quatro aninhos né? e ela está me chamando de ĩnxê
... ĩnxê que é mãe e ĩnxũ que é pai ... alguém disse para ela na sala de aula não
sei se foi o professor de língua não sei se foi a coleguinha e ela tomou isso e
não fala mais mãe ... não fala mãe mais não fala isso tem uns dois meses ... e
eu comecei a me perguntar o quê que está acontecendo com ela? por que que
ela está me chamando de ĩnxê e o pai de ĩnxũ? e não mudou mais não está
falando mais o Português o quê que está acontecendo com ela? Então eu
comecei a observar ela ... e eu comecei a observar que ela gosta ... ela gosta de
dançar ela gosta de pintar ... (SOMPRÉ, 2015)
4 Uso recorrente para a língua dita étnica.
Se há uma experimentação simétrica com Concita, poderíamos citar nossa
experimentação na tentativa de se reconfigurar a língua dita étnica para as cenas
cotidianas da vida. Resolvemos com a orientação de uma equipe multidisciplinar, a partir
da disponibilização de alguns recursos da universidade federal do sul e sudeste do pará,
construir um livreto para uso da Escola. Recorremos a temáticas da escolha dos indígenas,
assim como, a partir de um sistema ortográfico apresentando pelos professores indígenas,
decodificamos narrativas, dentre as quais a corrida de tora:
Kêka me kuprõ, me hõ tokto me nã nõ xun kaxuwa. Kêka pen pàr hô kre to te.
Kêka me wyr pen jato. Kêka jũm te nõrõxwyn wyr te. Kêka jũm kôt te. Kêka mã pe
puxwyry to te. Kêka mã pe kaxuwa kupy me to hõ kre hõ poro tom õ. Kêka jũm xare
aipen mã amne kôt amjijiko. Kêka jũm me wyry kume. Kêka jũm to kà jũm pea hàk, pea
pàn. Kêka jũm kupàn aihĩ wapê ta proro tom õ kume. Kêka me prara me hapôi me mpo
nã kà. Kêka ne ĩnkrere kãm kre. Kêka me kumrã. Kêka me kupu hô. Kêka me kà pê me
apà.
Em tradução livre, a corrida de tora embaraça a natureza aos corpos, às cores, aos
suores e às vozes. Extraídos das matas, troncos gigantescos de samaumeira aguardam as
mãos artesãs de quem vai transformá-los em toras aos homens e às mulheres.
Devidamente secas, pela ação do calor, em simbiose com um tempo incompreensível para
algumas ampulhetas ocidentais, essas esculturas gigantescas ganham cores e formatos.
Suas extremidades são escavadas por mãos-ferramentas-artesãs, mais tarde dando cores
de urucum à superfície do tronco. Devidamente toras, a “brincadeira”, talvez uma
necessidade de se abrir mão parcialmente do supralógico em favor de incerteza, imana o
jogo à vida pelas medidas do risco e do prazer. Risco constante, segundo os Kyikatêjês,
de afastamento progressivo de suas matrizes culturais. Prazer, na ação de lembrar. Esse
jogo confere a esses sujeitos a possibilidade da conquista de vitórias, fictícias ou não
sobre inimigos históricos. As regras do jogo escapam das lentes de câmeras. O corpo se
faz e se entrelaça em um desejo agônico de comunicar e de lembrar.
Figura 2: Corrida de Tora
Fonte: Programa de Extensão Mito-Poéticas Orais: Repertórios “Tectônicos” em Devir
com a Educação Bilíngue
Pensando com Isabelle Stengers (2007 ), se a política são os humanos e o cosmos
são as coisas, os gestos e desejos de Concita parecem dialogar com a palavra
"cosmopolítica". É necessário perceber, com outros olhos, os diferentes modos de habitar
o mundo, mas que em algum momento se encontram.
Cosmos é multiplicidade de mundos. Pensando nessa perspectiva, até que ponto a
Escola Kyikatêjê leva em consideração o patrimônio imaterial desse povo da floresta?
Em que sentido a política deve ser estendida nesse outros cosmos? Como se dá sua
imbricação com os saberes ancestrais? Como visualizar a cosmopolítica coms
representação de mundos? Os Kyikatêjês falam por quem e pelo que?
O caminho de Concita é múltiplo, mas nesse quiasma a professora escolheu sua
bússola em busca de uma indianidade: Escola Tataki Kyikatêjê.
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NODARI, Alexandre. A Literatura como Antropologia Especulativa. Revista da
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PROGRAMA DE EXTENSÃO MITO-POÉTICAS ORAIS: REPERTÓRIOS
“TECTÔNICOS” EM DEVIR COM A EDUCAÇÃO BILÍNGUE. Concita Sompré. 1
Foto.
PROGRAMA DE EXTENSÃO MITO-POÉTICAS ORAIS: REPERTÓRIOS
“TECTÔNICOS” EM DEVIR COM A EDUCAÇÃO BILÍNGUE. Corrida de Tora. 1
Foto.
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