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carta encíclica fides et ratio
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02/11/13 Carta Encclica Fides et Ratio, 14 de setembro de 1998, Papa Joo Paulo II
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CARTA ENCCLICA
FIDES ET RATIO DO SUMO PONTFICE
JOO PAULO II
AOS BISPOS DA IGREJA CATLICA
SOBRE AS RELAES
ENTRE F E RAZO
Venerados Irmos no Episcopado,
sade e Bno Apostlica!
A f e a razo (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o esprito humano seeleva para a contemplao da verdade. Foi Deus quem colocou no corao do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em ltima anlise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-
O, possa chegar tambm verdade plena sobre si prprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3;Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODUO - CONHECE-TE A TI MESMO
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, possvel entrever um caminho que, ao longo dos sculos,
levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela.
um caminho que se realizou nem podia ser de outro modo no mbito da autoconscincia
pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na
sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a questo do sentido das
coisas e da sua prpria existncia. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por
isso mesmo parte da nossa vida. A recomendao conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel
do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como regramnima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criao inteira, pela sua qualificao
de homem , ou seja, enquanto conhecedor de si mesmo .
Alis, basta um simples olhar pela histria antiga para ver com toda a clareza como surgiram
simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questes
fundamentais que caracterizam o percurso da existncia humana: Quem sou eu? Donde venho e
para onde vou? Porque existe o mal? O que que existir depois desta vida? Estas perguntas
encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem tambm nos Vedas e no Avest;
achamo-las tanto nos escritos de Confcio e Lao-Tze, como na pregao de Tirtankara e de Buda; e
assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragdias de Eurpides e Sfocles, quer nos
tratados filosficos de Plato e Aristteles. So questes que tm a sua fonte comum naquela
exigncia de sentido que, desde sempre, urge no corao do homem: da resposta a tais perguntas
depende efectivamente a orientao que se imprime existncia.
2. A Igreja no alheia, nem pode s-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no
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Mistrio Pascal, o dom da verdade ltima sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelasestradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6).
De entre os vrios servios que ela deve oferecer humanidade, h um cuja responsabilidade lhe
cabe de modo absolutamente peculiar: a diaconia da verdade. 1 Por um lado, esta misso torna a
comunidade crente participante do esforo comum que a humanidade realiza para alcanar a
verdade, 2 e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anncio das certezas adquiridas, ciente todavia
de que cada verdade alcanada apenas mais uma etapa rumo quela verdade plena que se h--de
manifestar na ltima revelao de Deus: Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa,
mas ento veremos face a face. Hoje conheo de maneira imperfeita, ento conhecerei exactamente
(1 Cor 13, 12).
3. Variados so os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade,
tornando assim cada vez mais humana a sua existncia. De entre eles sobressai a filosofia, cujocontributo especfico colocar a questo do sentido da vida e esboar a resposta: constitui, pois,
uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega,
amor sabedoria . Efectivamente a filosofia nasceu e comeou a desenvolver-se quando ohomem principiou a interrogar-se sobre o porqu das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de
diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence prpria natureza do homem.Interrogar-se sobre o porqu das coisas uma propriedade natural da sua razo, embora asrespostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a
complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidncia que a filosofia teve na formao e desenvolvimento das culturas do Ocidente nodeve fazer-nos esquecer a influncia que a mesma exerceu tambm nos modos de conceber a
existncia presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua prpria sabedoria natural, quetende, como autntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas propriamente
filosficas. Prova da verdade de tudo isto a existncia duma forma basilar de conhecimentofilosfico, que perdura at aos nossos dias e que se pode constatar nos prprios postulados em que
as vrias legislaes nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porm, que, por detrs dum nico termo, se escondem significados diferentes.Por isso, necessria uma explicitao preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade
ltima da existncia, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitamuma melhor compreenso de si mesmo e progredir na sua realizao. Os conhecimentosfundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contemplao da criao: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se includo no mundo e relacionado com outros seres semelhantes,com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levar, depois, descoberta de horizontes
de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco apouco, incapaz de uma existncia verdadeiramente pessoal.
A capacidade reflexiva prpria do intelecto humano permite elaborar, atravs da actividade
filosfica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerncia lgica entre asafirmaes e coeso orgnica dos contedos, um conhecimento sistemtico. Graas a tal processo,
alcanaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes pocas histricas, resultados quelevaram elaborao de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas
vezes a tentao de identificar uma nica corrente com o pensamento filosfico inteiro. Mas, nestescasos, claro que entra em jogo uma certa soberba filosfica , que pretende arvorar em leiturauniversal a prpria perspectiva e viso imperfeita. Na realidade, cada sistema filosfico, sempre no
respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalizao, deve reconhecer a prioridade do
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pensar filosfico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, possvel, no obstante a mudana dos tempos e os progressos do saber, reconhecerum ncleo de conhecimentos filosficos, cuja presena constante na histria do pensamento.
Pense-se, s como exemplo, nos princpios de no-contradio, finalidade, causalidade, e ainda naconcepo da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a
verdade, o bem; pense-se, alm disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente soaceites por todos. Estes e outros temas indicam que, para alm das correntes de pensamento, existe
um conjunto de conhecimentos, nos quais possvel ver uma espcie de patrimnio espiritual dahumanidade. como se nos encontrssemos perante uma filosofia implcita, em virtude da qual
cada um sente que possui estes princpios, embora de forma genrica e no reflectida. Estesconhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam constituir
uma espcie de ponto de referncia para as diversas escolas filosficas. Quando a razo consegueintuir e formular os princpios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentementeconcluses de ordem lgica e deontolgica, ento pode-se considerar uma razo recta, ou, como era
chamada pelos antigos, orths logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, no pode deixar de apreciar o esforo da razo na consecuo deobjectivos que tornem cada vez mais digna a existncia pessoal. Na verdade, ela v, na filosofia, o
caminho para conhecer verdades fundamentais relativas existncia do homem. Ao mesmo tempo,considera a filosofia uma ajuda indispensvel para aprofundar a compreenso da f e comunicar a
verdade do Evangelho a quantos no a conhecem ainda.
Na sequncia de iniciativas anlogas dos meus Predecessores, desejo tambm eu debruar-me sobreesta actividade peculiar da razo. Fao-o movido pela constatao, sobretudo em nossos dias, de
que a busca da verdade ltima aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, semdvida, o grande mrito de ter concentrado a sua ateno sobre o homem. Partindo da, uma razo
cheia de interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla eprofundamente. Desta forma, foram construdos sistemas de pensamento complexos, que deram osseus frutos nos diversos mbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da histria.A antropologia, a lgica, as cincias da natureza, a histria, a lingustica, de algum modo todo o
universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcanados no devem levar a
transcurar o facto de que essa mesma razo, porque ocupada a investigar de maneira unilateral o
homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este sempre chamado a voltar-se tambmpara uma realidade que o transcende. Sem referncia a esta, cada um fica ao sabor do livre arbtrio,
e a sua condio de pessoa acaba por ser avaliada com critrios pragmticos baseados
essencialmente sobre o dado experimental, na errada convico de que tudo deve ser dominado pela
tcnica. Foi assim que a razo, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tenso para averdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o
olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar
a sua pesquisa para o ser, concentrou a prpria investigao sobre o conhecimento humano. Em vezde se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas
limitaes e condicionalismos.
Da provieram vrias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigao filosfica aperder-se nas areias movedias dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo
diversas doutrinas que tendem a desvalorizar at mesmo aquelas verdades que o homem estava certo
de ter alcanado. A legtima pluralidade de posies cedeu o lugar a um pluralismo indefinido,
fundado no pressuposto de que todas as posies so equivalentes: trata-se de um dos sintomas
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mais difusos, no contexto actual, de desconfiana na verdade. E esta ressalva vale tambm para
certas concepes de vida originrias do Oriente: que negam verdade o seu carcter exclusivo,
ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmocontraditrias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinio. D a impresso de um
movimento ondulatrio: enquanto, por um lado, a razo filosfica conseguiu avanar pela estrada que
a torna cada vez mais atenta existncia humana e s suas formas de expresso, por outro tende adesenvolver consideraes existenciais, hermenuticas ou lingusticas, que prescindem da questo
radical relativa verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequncia, despontaram, no
s em alguns filsofos mas no homem contemporneo em geral, atitudes de desconfiana
generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser humano. Com falsa modstia,contentam-se de verdades parciais e provisrias, deixando de tentar pr as perguntas radicais sobre
o sentido e o fundamento ltimo da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperana
de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questes.
6. Credenciada pelo facto de ser depositria da revelao de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar
a necessidade da reflexo sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vs,
venerados Irmos no Episcopado, com quem partilho a misso de anunciar abertamente a verdade
(2 Cor 4, 2), e dirigir-me tambm aos telogos e filsofos a quem compete o dever de investigaros diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam procura duma resposta, para comunicar
algumas reflexes sobre o caminho que conduz verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que
tiver no corao o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcanar, e nela encontrarrepouso para a sua fadiga e tambm satisfao espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o Conclio
Vaticano II, so testemunhas da verdade divina e catlica 3. Por isso, testemunhar a verdade
um encargo que nos foi confiado a ns, os Bispos; no podemos renunciar a ele, sem faltar ao
ministrio que recebemos. Reafirmando a verdade da f, podemos restituir ao homem de hoje umagenuna confiana nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer filosofia um estmulo para poder
recuperar e promover a sua plena dignidade.
H um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexes Na carta encclica Veritatissplendor, chamei a ateno para algumas verdades fundamentais da doutrina catlica que, no
contexto actual, correm o risco de serem deformadas ou negadas . 4 Com este novo documento,
desejo continuar aquela reflexo, concentrando a ateno precisamente sobre o tema da verdade e
sobre o seu fundamento em relao com a f. De facto, no se pode negar que este perodo, de
mudanas rpidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende ofuturo, na sensao de estarem privados de pontos de referncia autnticos. A necessidade de um
alicerce sobre o qual construir a existncia pessoal e social faz-se sentir de maneira premente,
principalmente quando se obrigado a constatar o carcter fragmentrio de propostas que elevam o
efmero ao nvel de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcanar o verdadeiro sentido daexistncia. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase at borda do precipcio, sem saber o que
os espera. Isto depende tambm do facto de, s vezes, quem era chamado por vocao a exprimir
em formas culturais o fruto da sua reflexo, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucessoimediato ao esforo duma paciente investigao sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que
tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura atravs do apelo perene busca
da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocao originria. por isso que senti a
necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro milnio da eracrist, a humanidade tome conscincia mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e
se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de salvao, no qual est inserida a
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sua histria.
CAPTULO I - A REVELAO DA SABEDORIA DE DEUS
1. Jesus, revelador do Pai
7. Na base de toda a reflexo feita pela Igreja, est a conscincia de ser depositria duma
mensagem, que tem a sua origem no prprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela
prope ao homem, no provm de uma reflexo sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhidona f a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, nico
no seu gnero, que assinala a abertura de um mistrio escondido durante tantos sculos (cf. 1 Cor 2,
7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se
a Si mesmo e dar a conhecer o mistrio da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, pormeio de Cristo, Verbo encarnado, tm acesso ao Pai no Esprito Santo e se tornam participantes da
natureza divina . 5 Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem aoencontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o
conhecimento que o homem adquire d'Ele leva plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro
que a sua mente seja capaz de alcanar sobre o sentido da prpria existncia.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituio Dei Filius do Conclio Vaticano
I e tendo em conta os princpios propostos pelo Conclio de Trento, a constituio Dei Verbum do
Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreenso da f, reflectindo sobre aRevelao luz da doutrina bblica e de toda a tradio patrstica. No primeiro Conclio do
Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carcter sobrenatural da revelao de Deus. A crtica
racionalista que ento se fazia sentir contra a f, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia
sobre a negao de qualquer conhecimento que no fosse fruto das capacidades naturais da razo.Isto obrigara o Conclio a reafirmar vigorosamente que, alm do conhecimento da razo humana, por
sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que peculiar da f. Este
conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e
uma verdade certssima porque Deus no Se engana nem quer enganar. 6
9. Por isso, o Conclio Vaticano I ensina que a verdade alcanada pela via da reflexo filosfica e a
verdade da Revelao no se confundem, nem uma torna a outra suprflua: Existem duas ordens
de conhecimento, diversas no apenas pelo seu princpio, mas tambm pelo objecto. Pelo seu
princpio, porque, se num conhecemos pela razo natural, no outro fazmo-lo por meio da f divina;pelo objecto, porque, alm das verdades que a razo natural pode compreender, -nos proposto ver
os mistrios escondidos em Deus, que s podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto . 7
A f, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graa,
pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosfico. De
facto, este assenta sobre a percepo dos sentidos, sobre a experincia, e move-se apenas com a luz
do intelecto. A filosofia e as cincias situam-se na ordem da razo natural, enquanto a f, iluminada eguiada pelo Esprito, reconhece na mensagem da salvao a plenitude de graa e de verdade (cf.
Jo 1, 14) que Deus quis revelar na histria, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo
(cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Conclio Vaticano II, os Padres, fixando a ateno sobre Jesus revelador, ilustraram o
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carcter salvfico da revelao de Deus na histria e exprimiram a sua natureza do seguinte modo:
Em virtude desta revelao, Deus invisvel (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor, fala
aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para osconvidar e admitir comunho com Ele. Esta economia da Revelao realiza-se por meio de aces
e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na
histria da salvao, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e
as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistrio nelas contido. Porm, a verdadeprofunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvao dos homens manifesta-se-nos, por
esta Revelao, em Cristo, que simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelao . 8
11. Assim, a revelao de Deus entrou no tempo e na histria. Mais, a encarnao de Jesus Cristo
realiza-se na plenitude dos tempos (Gal 4, 4). distncia de dois mil anos deste acontecimento,
sinto o dever de reafirmar intensamente que, no cristianismo, o tempo tem uma importncia
fundamental . 9 Com efeito, nele que tem lugar toda a obra da criao e da salvao, e sobretudo
merece destaque o facto de que, com a encarnao do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde
j aquilo que se seguir ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no
tempo e na histria. Sem dvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistrio de Jesus de
Nazar. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constituio Dei Verbum: Depois de ter
falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que so os
ltimos, atravs de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto , o Verbo eterno,
que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida ntima de Deus
(cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, "fala,portanto, as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e consuma a obra de salvao que o Pai Lhe mandou
realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele v-l'O a Ele ver o Pai (cf. Jo 14, 9) , com toda a
sua presena e manifestao da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo
com a sua morte e gloriosa ressurreio, e enfim, com o envio do Esprito de verdade, completa
totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelao . 10
Assim, a histria constitui um caminho que o Povo de Deus h-de percorrer inteiramente, de tal
modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus contedos, graas aco
incessante do Esprito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o tambm a constituio Dei Verbum, quandoafirma que a Igreja, no decurso dos sculos, tende continuamente para a plenitude da verdade
divina, at que nela se realizem as palavras de Deus . 11
12. A histria torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a aco de Deus em favor da
humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se daquilo que nos mais familiar e mais fcil de
verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual no conseguiramos entender-nos.
A encarnao do Filho de Deus permite ver realizada uma sntese definitiva que a mente humana, por
si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento,
Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelao de Cristo deixou deestar circunscrita a um restrito mbito territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a
queira acolher como palavra definitivamente vlida para dar sentido existncia. Agora todos tm
acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurreio, Ele concedeu-nos a vida divina
que o primeiro Ado tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revelao, oferecida ao
homem a verdade ltima a respeito da prpria vida e do destino da histria: Na realidade, o
mistrio do homem s no mistrio do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente , afirma a
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constituio Gaudium et spes. 12 Fora desta perspectiva, o mistrio da existncia pessoal
permanece um enigma insolvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questes todramticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a no ser na luz que dimana do mistrio
da paixo, morte e ressurreio de Cristo?
2. A razo perante o mistrio
13. Entretanto, no se pode esquecer que a Revelao permanece envolvida no mistrio. Jesus, com
toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de
Deus; 13 e contudo, o conhecimento que possumos daquele rosto, est marcado sempre pelocarcter parcial e limitado da nossa compreenso. Somente a f permite entrar dentro do mistrio,
proporcionando uma sua compreenso coerente.
O Conclio ensina que, a Deus que revela, devida a obedincia da f . 14 Com esta breve mas
densa afirmao, indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que
a f uma resposta de obedincia a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade,
transcendncia e liberdade suprema. Deus que Se d a conhecer na autoridade da sua
transcendncia absoluta, traz consigo tambm a credibilidade dos contedos que revela. Pela f, o
homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e
integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque o prprio Deus que o garante. Estaverdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicao
interpessoal e impele a razo a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. por isso que o
acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de
opo fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligncia e vontade pem em aco o melhor da
sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exerccio da sua
liberdade pessoal. 15 Na f, portanto, no basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em
aco. Mais, a f que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua prpria liberdade. Por
outras palavras, a liberdade no se realiza nas opes contra Deus. Na verdade, como poderia ser
considerado um uso autntico da liberdade, a recusa de se abrir quilo que permite a realizao de simesmo? No acreditar que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existncia; de facto, nele
a liberdade alcana a certeza da verdade e decide viver nela.
Em auxlio da razo, que procura a compreenso do mistrio, vm tambm os sinais presentes na
Revelao. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa
autonomamente investigar inclusive dentro do mistrio. De qualquer modo, se, por um lado, esses
sinais do maior fora razo, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistrio com os seusprprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua
realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles so portadores. Portanto, j h
neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta no pode prescindir
sem destruir o prprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelao e de forma particular ao sinal eucarstico,
onde a unio indivisvel entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade
do mistrio. Na Eucaristia, Cristo est verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu Esprito, mas,como justamente diz S. Toms, nada vs nem compreendes, mas t'o afirma a f mais viva, para
alm das leis da Terra. Sob espcies diferentes, que no passam de sinais, que est o dom de Deus
. 16 Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filsofo Pascal: Como Jesus Cristo
passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre as opinies
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comuns, sem diferena exterior. O mesmo se d com a Eucaristia relativamente ao po comum .17
Em resumo, o conhecimento da f no anula o mistrio; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o
como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, na prpria revelao do mistrio
do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocao sublime , 18 que
participar no mistrio da vida trinitria de Deus. 19
14. A doutrina do primeiro e segundo Conclio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novotambm ao saber filosfico. A Revelao coloca dentro da histria um ponto de referncia de que o
homem no pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistrio da sua existncia; mas, por
outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistrio de Deus que a mente no
consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na f. Entre estes dois momentos, a razo possui o
seu espao peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a
sua finitude ante o mistrio infinito de Deus.
A Revelao introduz, portanto, na nossa histria uma verdade universal e ltima que leva a mente dohomem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaos do prprio
conhecimento at sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-
nos, nesta reflexo, uma das inteligncias mais fecundas e significativas da histria da humanidade,
qual obrigatoriamente fazem referncia a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra,
Proslogion, o Arcebispo de Canturia exprime-se assim: Detendo-me com frequncia e ateno a
pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras
vezes, pelo contrrio, furtava-se completamente ao meu pensamento; at que finalmente,desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era impossvel encontrar.
Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupao da minha mente no me
alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi ento que comeou a
apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe
de Deus, o que que comecei a fazer e o que que consegui? O que que visava e a que ponto
cheguei? A que que aspirava e por que que suspiro? (...) Senhor, Vs no sois apenas algo
acerca do qual no se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), massois maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se no
fsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vs, mas isso impossvel . 20
15. A verdade da revelao crist, que se encontra em Jesus de Nazar, permite a quemquer que
seja perceber o mistrio da prpria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que
respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se transcendncia. Aqui, a
relao entre liberdade e verdade atinge o seu mximo grau, podendo-se compreender plenamente
esta palavra do Senhor: Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos- (Jo 8, 32).
A revelao crist a verdadeira estrela de orientao para o homem, que avana por entre oscondicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lgica tecnocrtica; a ltima
possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de amor
que teve incio com a criao. Ao homem ansioso de conhecer a verdade se ainda capaz de ver
para alm de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus prprios projectos -lhe concedida a
possibilidade de recuperar a genuna relao com a sua vida, seguindo a estrada da verdade.
Podem-se aplicar a esta situao as seguintes palavras do Deuteronmio: A lei que hoje te
imponho no est acima das tuas foras nem fora do teu alcance. No est no cu, para que digas:"Quem subir por ns ao cu e no-la ir buscar?" No est to pouco do outro lado do mar, para
que digas: "Quem atravessar o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?"
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No, ela est muito perto de ti: est na tua boca e no teu corao; e tu podes cumpri-la (30, 11-
14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filsofo e telogo Santo Agostinho: Noli
foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas . 21
luz destas consideraes, impe-se uma primeira concluso: a verdade que a Revelao nos d a
conhecer no o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razo. Pelo
contrrio, aquela apresenta-se com a caracterstica da gratuidade, obriga a pens-la, e pede para seracolhida, como expresso de amor. Esta verdade revelada a presena antecipada na nossa histria
daquela viso ltima e definitiva de Deus, que est reservada para quantos acreditam n'Ele ou O
procuram de corao sincero. Assim, o fim ltimo da existncia pessoal objecto de estudo quer da
filosofia, quer da teologia. Embora com meios e contedos diversos, ambas apontam para aquele
caminho da vida (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a f, tem o seu termo ltimo de chegada na
alegria plena e duradoura da contemplao de Deus Uno e Trino.
CAPTULO II - CREDO UT INTELLEGAM
1. A sabedoria sabe e compreende todas as coisas (Sab9, 11)
16. Quo profunda seja a ligao entre o conhecimento da f e o da razo, j a Sagrada Escritura
no-lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros
Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas pginas da Sagrada
Escritura o facto de estes textos conterem no apenas a f de Israel, mas tambm o tesouro de
civilizaes e culturas j desaparecidas. Como se de um desgnio particular se tratasse, o Egipto e a
Mesopotmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traos comuns das culturas do Antigo
Oriente ressurgem nestas pginas ricas de intuies singularmente profundas.
No por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sbio, o apresenta como
aquele que ama e busca a verdade: Feliz o homem que constante na sabedoria, e que discorre
com a sua inteligncia; que repassa no seu corao os caminhos da sabedoria, e que penetra no
conhecimento dos seus segredos; vai atrs dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus
caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta s suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um
pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradvel morada; coloca os
seus filhos debaixo da sua proteco, e ele mesmo morar debaixo dos seus ramos; sua sombraestar defendido do calor, e repousar na sua glria (Sir 14, 20-27).
Para o autor inspirado, como se v, o desejo de conhecer uma caracterstica comum a todos os
homens. Graas inteligncia, dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de saciarem-se
nas guas profundas do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o
conhecimento do mundo e dos seus fenmenos no se realizava pela via da abstraco, como j o
fazia o filsofo jnico ou o sbio egpcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber oconhecimento nos parmetros prprios da poca moderna, mais propensa subdiviso do saber.
Apesar disso, o mundo bblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu
contributo original.
Qual? O carcter peculiar do texto bblico reside na convico de que existe uma unidade profunda e
indivisvel entre o conhecimento da razo e o da f. O mundo e o que nele acontece, assim como a
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histria e as diversas vicissitudes da nao so realidades observadas, analisadas e julgadas com os
meios prprios da razo, mas sem deixar a f alheia a este processo. Esta no intervm para humilhar
a autonomia da razo, nem para reduzir o seu espao de aco, mas apenas para fazer compreender
ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna visvel e actua o Deus de Israel. Assim, no
possvel conhecer profundamente o mundo e os factos da histria, sem ao mesmo tempo professar a
f em Deus que neles actua. A f aperfeioa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no
curso dos acontecimentos, a presena operante da Providncia. A tal propsito, significativa umaexpresso do livro dos Provrbios: A mente do homem dispe o seu caminho, mas o Senhor
quem dirige os seus passos (16, 9). como se dissesse que o homem, pela luz da razo, pode
reconhecer a sua estrada, mas percorr-la de maneira decidida, sem obstculos e at ao fim, ele s o
consegue se, de nimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da f. Por isso, a razo e a f no
podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo
adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. No h motivo para existir concorrncia entre a razo e a f: uma implica a outra, e cada qual
tem o seu espao prprio de realizao. Aponta nesta direco o livro dos Provrbios, quando
exclama: A glria de Deus encobrir as coisas, e a glria dos reis investig-las (25, 2). Deus e
o homem esto colocados, em seu respectivo mundo, numa relao nica. Em Deus reside a origem
de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mistrio, e isto constitui a sua glria; ao homem, pelo
contrrio, compete o dever de investigar a verdade com a razo, e nisto est a sua nobreza. Um
novo ladrilho colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: Quo insondveis para mim,
Deus, vossos pensamentos! Quo imenso o seu nmero! Quisera cont-los, so mais que as areias;se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer to
grande e comporta tal dinamismo que o corao do homem, ao tocar o limite intransponvel, suspira
pela riqueza infinita que se encontra para alm deste, por intuir que nela est contida a resposta cabal
para toda a questo ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexo, soube abrir razo o caminho para o
mistrio. Na revelao de Deus, pde sondar em profundidade aquilo que a razo estavaprocurando alcanar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo
Eleito compreendeu que a razo deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do
melhor modo possvel a prpria natureza. A primeira regra ter em conta que o conhecimento do
homem um caminho que no permite descanso; a segunda nasce da conscincia de que no se
pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal;
a terceira regra funda-se no temor de Deus , de quem a razo deve reconhecer tanto a
transcendncia soberana como o amor solcito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na
condio do insensato . Segundo a Bblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaa vida. que
o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, no capaz de fixar o olhar
nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pr ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir
uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a
afirmar que Deus no existe (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja
deficiente o seu conhecimento e quo distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, dasua origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este
assunto. L, o autor sagrado fala de Deus que Se d a conhecer tambm atravs da natureza. Para
os antigos, o estudo das cincias naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosfico. Depois
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de ter afirmado que o homem, com a sua inteligncia, capaz de conhecer a constituio do
universo e a fora dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posio dos astros, a natureza dosanimais mansos e os instintos dos animais ferozes (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o
homem capaz de filosofar, o texto sagrado d um passo em frente muito significativo. Retomando o
pensamento da filosofia grega, qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que,
raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: Pela grandeza e beleza
das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor (Sab 13, 5).
Reconhece-se, assim, um primeiro nvel da revelao divina, constitudo pelo maravilhoso livro da
natureza ; lendo-o com os meios prprios da razo humana, pode-se chegar ao conhecimento doCriador. Se o homem, com a sua inteligncia, no chega a reconhecer Deus como criador de tudo,
isso fica-se a dever no tanto falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstculo interposto
pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razo valorizada, mas no superexaltada. O que ela alcana pode ser
verdade, mas s adquire pleno significado se o seu contedo for situado num horizonte mais amplo, o
da f: O Senhor quem dirige os passos do homem; como poder o homem compreender o seuprprio destino? (Prov 20, 24). A f, segundo o Antigo Testamento, liberta a razo, na medida em
que lhe permite alcanar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situ-lo naquela ordem
suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razo o homem alcana a verdade, porque,
iluminado pela f, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da prpria existncia.
Justamente, pois, o autor sagrado coloca o incio do verdadeiro conhecimento no temor de Deus:
O temor do Senhor o princpio da sabedoria (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. Adquire a sabedoria, adquire a inteligncia (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento no se baseia apenas numa atenta observaodo homem, do mundo e da histria, mas supe como indispensvel tambm uma relao com a f e
os contedos da Revelao. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e aque deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condio, o homem bblico descobriu que no se podiacompreender seno como ser em relao : relao consigo mesmo, com o povo, com o mundo e
com Deus. Esta abertura ao mistrio, que provinha da Revelao, acabou por ser, para ele, a fontedum verdadeiro conhecimento, que permitiu sua razo aventurar-se em espaos infinitos,
recebendo inesperadas possibilidades de compreenso.
Segundo o autor sagrado, o esforo da investigao no estava isento da fadiga causada peloembate nas limitaes da razo. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro
dos Provrbios denuncia o cansao provado ao tentar compreender os misteriosos desgnios deDeus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente no desiste. E a fora para continuar o seu
caminho rumo verdade provm da certeza de que Deus o criou como um explorador (cf. Coel1, 13), cuja misso no deixar nada sem tentar, no obstante a contnua chantagem da dvida.
Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que belo,bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro captulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja
incisiva a reflexo dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentaofilosfica, o Apstolo exprime uma verdade profunda: atravs da criao, os olhos da mente
podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, atravs das criaturas, Ele faz intuir razoo seu poder e a sua divindade (cf. Rom 1, 20). Deste modo, atribuda razo humana uma
capacidade tal que parece quase superar os seus prprios limites naturais: no s ultrapassa o mbitodo conhecimento sensorial, visto que lhe possvel reflectir criticamente sobre o mesmo, mas,
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raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar tambm causa que est na origem de
toda a realidade sensvel. Em terminologia filosfica, podemos dizer que, neste significativo textopaulino, est afirmada a capacidade metafsica do homem.
Segundo o Apstolo, no projecto originrio da criao estava prevista a capacidade de a razoultrapassar comodamente o dado sensvel para alcanar a origem mesma de tudo: o Criador. Como
resultado da desobedincia com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomiarelativamente quele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.
O livro do Gnesis descreve de maneira figurada esta condio do homem, quando narra que Deus o
colocou no jardim do den, tendo no centro a rvore da cincia do bem e do mal (2, 17). Osmbolo claro: o homem no era capaz de discernir e decidir, por si s, aquilo que era bem e o que
era mal, mas devia apelar-se a um princpio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossosprimeiros pais de que eram soberanos e autnomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de
Deus. Nesta desobedincia original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando razotraumas srios que haveriam de dificultar-lhe, da em diante, o caminho para a verdade plena. Agoraa capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela averso contra Aquele que
fonte e origem da verdade. O prprio apstolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, ospensamentos dos homens se tornaram vos e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1,
21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razo foi progressivamenteficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvao que redimiu a
razo da sua fraqueza, libertando-a dos grilhes onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a relao do cristo com a filosofia requer um discernimento radical. No NovoTestamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposio
entre a sabedoria deste mundo e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidadeda sabedoria revelada rompe o crculo dos nossos esquemas de reflexo habituais, que no so
minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.
O incio da primeira carta aos Corntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deuscrucificado o acontecimento histrico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para
construir, sobre razes puramente humanas, uma justificao suficiente do sentido da existncia. Overdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de
facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvfico do Pai a mera lgica humana est destinada falncia. Onde est o sbio? Onde est o erudito? Onde est o investigador deste sculo?
Porventura, Deus no considerou louca a sabedoria deste mundo? (1 Cor 1, 20) interroga-seenfaticamente o Apstolo. Para aquilo que Deus quer realizar, no basta a simples sabedoria do
homem sbio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: O que louco segundo o mundo que Deus escolheu para confundir os sbios (...). O que vil edesprezvel no mundo, que Deus escolheu, como tambm aquelas coisas que nada so, para
destruir as que so (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na prpria fragilidade opressuposto da sua fora; mas S. Paulo no hesita em afirmar: Quando me sinto fraco, ento que
sou forte (2 Cor 12, 10). O homem no consegue compreender como possa a morte ser fonte devida e de amor, mas Deus, para revelar o mistrio do seu desgnio salvador, escolheu precisamente o
que a razo considera loucura e escndalo . Usando a linguagem dos filsofos do seu tempo,Paulo chega ao clmax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: Deus escolheu, nomundo, aquelas coisas que nada so, para destruir as que so (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o
carcter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Apstolo no tem medo de usar a linguagemmais radical que os filsofos empregavam nas suas reflexes a respeito de Deus. A razo no pode
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esgotar o mistrio de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar razo a resposta ltimaque esta procura. S. Paulo coloca, no a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria comocritrio, simultaneamente, de verdade e de salvao.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor,obrigando a abrir-se universalidade da verdade de que portadora. Como grande o desafio
lanado nossa razo e como so enormes as vantagens que ter, se ela se render! A filosofia, quepor si mesma j capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na
busca da verdade, pode, ajudada pela f, abrir-se para, na loucura da Cruz, acolher comogenuna a crtica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistemaprprio. A relao entre a f e a filosofia encontra, na pregao de Cristo crucificado e ressuscitado,
o escolho contra o qual pode naufragar, mas tambm para alm do qual pode desembocar nooceano ilimitado da verdade. Aqui evidente a fronteira entre a razo e a f, mas torna-se claro
tambm o espao onde as duas se podem encontrar.
CAPTULO III - INTELLEGO UT CREDAM
1. Caminhar procura da verdade
24. Nos Actos dos Apstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa dassuas viagens missionrias. A cidade dos filsofos estava cheia de esttuas, que representavam vrios
dolos; e chamou-lhe a ateno um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e basecomum para iniciar o anncio do querigma: Atenienses disse ele , vejo que sois, em tudo, osmais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos
sagrados, at encontrei um altar com esta inscrio: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O quevenerais sem conhecer, que eu vos anuncio (Act 17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes
de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo d vida. Depois continua oseu discurso, dizendo: Fez a partir de um s homem, todo o gnero humano, para habitar em toda
a face da Terra; e fixou a sequncia dos tempos e os limites para a sua habitao, a fim de que oshomens procurem a Deus e se esforcem por encontr-Lo, mesmo tacteando, embora no Seencontre longe de cada um de ns (Act 17, 26-27).
O Apstolo pe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no maisfundo do corao do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de
Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que no crem, diz: Deus eterno eomnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que s em Vs descansa o seu
corao . 22 Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto departida est na capacidade de a razo superar o contingente para se estender at ao infinito.
De vrios modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu
desejo ntimo. A literatura, a msica, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizaes da suainteligncia criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura.
Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com osmeios e segundo as modalidades cientficas que lhe so prprias, este desejo universal do homem.
25. Todos os homens desejam saber , 23 e o objecto prprio deste desejo a verdade. A prpria
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vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para alm do que ouve, arealidade das coisas. Em toda a criao visvel, o homem o nico ser que capaz no s de saber,
mas tambm de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que v. Ningumpode sinceramente ficar indiferente quanto verdade do seu saber. Se descobre que falso, rejeita-
o; se, pelo contrrio, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. a lio que nos dSanto Agostinho, quando escreve: Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas no
encontrei ningum que quisesse ser enganado . 24 Considera-se, justamente, que uma pessoa
alcanou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus prprios meios, entre aquilo que verdadeiro e o que falso, formando um juzo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Est
aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das cincias, que levaram, nos ltimossculos, a resultados to significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
E a pesquisa to importante no campo terico, como no mbito prtico: ao referir-me a este,desejo aludir procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graasprecisamente ao agir tico, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela
estrada da felicidade e encaminha-se para a perfeio. Tambm neste caso, est em questo averdade. Reafirmei esta convico na carta encclica Veritatis splendor: No h moral sem
liberdade (...). Se existe o direito de ser respeitado no prprio caminho em busca da verdade, hainda antes a obrigao moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez
conhecida . 25
Por isso, necessrio que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque s
estes que podem aperfeioar a pessoa, realizando a sua natureza. No fechando-se em si mesmoque o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo dedimenses que o transcendem. Esta uma condio necessria para que cada um se torne ele
mesmo e cresa como pessoa adulta e madura.
26. Ao princpio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um
sentido? Para onde se dirige? primeira vista, a existncia pessoal poderia aparecer radicalmentesem sentido. No preciso recorrer aos filsofos do absurdo, nem s perguntas provocatrias que
se encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experincia quotidiana dosofrimento, pessoal e alheio, e a observao de muitos factos, que luz da razo se revelaminexplicveis, bastam para tornar iniludvel um problema to dramtico como a questo do sentido
da vida. 26 A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossaexistncia, para alm do facto de existirmos, a inevitabilidade da morte. Perante um dado to
desconcertante como este, impe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve,conhecer a verdade sobre o seu fim. Quer saber se a morte ser o termo definitivo da sua existncia,
ou se algo permanece para alm da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou no. significativo que o pensamento filosfico tenha recebido, da morte de Scrates, uma orientao
decisiva que o marcou durante mais de dois milnios. Certamente no por acaso que os filsofos,perante a realidade da morte, sempre voltam a pr-se este problema, associado questo dosentido da vida e da imortalidade.
27. A tais questes, no pode esquivar-se ningum nem o filsofo, nem o homem comum. E, daresposta que se lhes der, deriva uma orientao decisiva da investigao: a possibilidade, ou no, de
alcanar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que verdadeiro deve ser verdadeirosempre e para todos. Contudo, para alm desta universalidade, o homem procura um absoluto que
seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de
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fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicao definitiva, um valor supremo,para alm do qual no existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As hipteses
podem seduzir, mas no saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou no, hnecessidade de ancorar a existncia a uma verdade reconhecida como definitiva, que fornea uma
certeza livre de qualquer dvida.
Os filsofos procuraram, ao longo dos sculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistemaou uma escola de pensamento. Mas, para alm dos sistemas filosficos, existem outras expresses
nas quais o homem procura formular a sua filosofia : trata-se de convices ou experinciaspessoais, tradies familiares e culturais, ou itinerrios existenciais vividos sob a autoridade de um
mestre. A cada uma destas manifestaes, subjaz sempre vivo o desejo de alcanar a certeza daverdade e do seu valor absoluto.
2. Os diferentes rostos da verdade do homem
28. H que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida
transparncia e coerncia de raciocnio. Muitas vezes, as limitaes naturais da razo e a inconstnciado corao ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vria ordem podem
sobrepor-se verdade. Acontece tambm que o prprio homem a evite, quando comea a entrev-la, porque teme as suas exigncias. Apesar disto, mesmo quando a evita, sempre a verdade quepreside sua existncia. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dvida, a incerteza ou
a mentira; tal existncia estaria constantemente ameaada pelo medo e a angstia. Assim, pode-sedefinir o homem como aquele que procura a verdade.
29. impensvel que uma busca, to profundamente radicada na natureza humana, possa sercompletamente intil e v. A prpria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica j
uma primeira resposta. O homem no comearia a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ouconsiderasse absolutamente inatingvel. S a previso de poder chegar a uma resposta queconsegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa
cientfica. Quando o cientista, depois de ter uma intuio, se lana procura da explicao lgica eemprica dum certo fenmeno, f-lo porque tem a esperana, desde o incio, de encontrar uma
resposta, e no se d por vencido com os insucessos. Nem considera intil a intuio inicial, sporque no alcanou o seu objectivo; dir antes, e justamente, que no encontrou ainda a resposta
adequada.
O mesmo deve valer tambm para a busca da verdade no mbito das questes ltimas. A sede deverdade est to radicada no corao do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existncia
ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cadaum de ns se sente o tormento de algumas questes essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na
alma, pelo menos, o esboo das respectivas respostas. So respostas de cuja verdade estamosconvencidos, at porque notamos que no diferem substancialmente das respostas a que muitos
outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, oconjunto dos resultados alcanados confirma a capacidade que o ser humano, em princpio, tem dechegar verdade.
30. Convm, agora, fazer uma rpida meno das diversas formas de verdade. As mais numerosasso as verdades que assentam em evidncias imediatas ou recebem confirmao da experincia: esta
a ordem prpria da vida quotidiana e da pesquisa cientfica. Nvel diverso ocupam as verdades de
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carcter filosfico, que o homem alcana atravs da capacidade especulativa do seu intelecto. Por
ltimo, existem as verdades religiosas, que de algum modo tm as suas razes tambm na filosofia;esto contidas nas respostas que as diversas religies oferecem, nas suas tradies, s questes
ltimas. 27
Quanto s verdades filosficas, necessrio especificar que no se limitam s s doutrinas, por vezesefmeras, dos filsofos profissionais. Como j disse, todo o homem , de certa forma, um filsofo e
possui as suas prprias concepes filosficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos modos,consegue formar uma viso global e uma resposta sobre o sentido da prpria existncia: e, luz
disso, interpreta a prpria vida pessoal e regula o seu comportamento. aqui que deveria colocar-sea questo da relao entre as verdades filosfico-religiosas e a verdade revelada em Jesus Cristo.Antes de responder a tal questo, preciso ter em conta outro dado da filosofia.
31. O homem no foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa famlia, para depois se inserir,pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em
vrias tradies; delas recebe no apenas a linguagem e a formao cultural, mas tambm muitasverdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturao pessoal
implicam que tais verdades possam ser postas em dvida e avaliadas atravs da actividade crticaprpria do pensamento. Isto no impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdadessejam recuperadas com base na experincia feita ou em virtude de sucessiva ponderao. Apesar
disso, na vida duma pessoa, so muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas queaquelas adquiridas por verificao pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os
inumerveis resultados das cincias, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia,por conta prpria, controlar o fluxo de informaes, recebidas diariamente de todas as partes do
mundo e que, por princpio, so aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrernovamente todos os caminhos de experincia e pensamento, pelos quais se foram acumulando ostesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade,
tambm aquele que vive de crenas.
32. Cada um, quando cr, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto,
pode-se individuar uma significativa tenso: por um lado, o conhecimento por crena apresenta-secomo uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeioar progressivamente por
meio da evidncia alcanada pela prpria pessoa; por outro lado, a crena muitas vezes mais rica,humanamente, do que a simples evidncia, porque inclui a relao interpessoal, pondo em jogo noapenas as capacidades cognoscitivas do prprio sujeito, mas tambm a sua capacidade mais radical
de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estvel e ntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relao interpessoal no so primariamente de
ordem emprica ou de ordem filosfica. O que se busca sobretudo a verdade da prpria pessoa:aquilo que ela e o que manifesta do seu prprio ntimo. De facto, a perfeio do homem no se
reduz apenas aquisio do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste tambm numa relaoviva de doao e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva doao, o homem encontra plenacerteza e segurana. Ao mesmo tempo, porm, o conhecimento por crena, que se fundamenta na
confiana interpessoal, tem a ver tambm com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia naverdade que o outro lhe manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem aopensamento o testemunho dos mrtires. Com efeito, o mrtir a testemunha mais genuna daverdade da existncia. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcanou a verdade a
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respeito da sua vida, e nada nem ningum poder jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o
sofrimento, nem a morte violenta podero faz-lo retroceder da adeso verdade que descobriu noencontro com Cristo. Por isso mesmo que, at agora, o testemunho dos mrtires atrai, gera
consenso, escutado e seguido. Esta a razo pela qual se tem confiana na sua palavra: descobre-se neles a evidncia dum amor que no precisa de longas demonstraes para ser convincente,porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, j sente como verdadeiro e que h
tanto tempo procurava. Em resumo, o mrtir provoca em ns uma profunda confiana, porque dizaquilo que j sentimos e torna evidente aquilo que ns mesmos queramos ter a fora de dizer.
33. Deste modo, foi possvel completar progressivamente os dados do problema. O homem, por suanatureza, procura a verdade. Esta busca no se destina apenas conquista de verdades parciais,fsicas ou cientficas; no busca s o verdadeiro bem em cada um das suas decises. Mas a sua
pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se,
por conseguinte, de algo que no pode desembocar seno no absoluto. 28 Graas s capacidades de
que est dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendoesta vital e essencial para a sua existncia, chega-se a ela no s por via racional, mas tambm
atravs de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade daverdade. A capacidade e a deciso de confiar o prprio ser e existncia a outra pessoa constituem,
sem dvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
bom no esquecer que tambm a razo, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por umdilogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiana, que por vezes envolve
a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filsofos antigos, que punham a amizade como umdos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamenteinfindvel: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A f crist vem em sua
ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto,superando o nvel da simples crena, ela introduz o homem naquela ordem da graa que lhe consenteparticipar no mistrio de Cristo, onde lhe oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus
Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que a Verdade, a f reconhece o apelo ltimo dirigido humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.
34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, no est em contraste com as verdades quese alcanam filosofando. Pelo contrrio, as duas ordens de conhecimento conduzem verdade na
sua plenitude. A unidade da verdade j um postulado fundamental da razo humana, expresso noprincpio de no-contradio. A Revelao d a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador tambm o Deus da histria da salvao. Deus que fundamenta e garante o carcter inteligvel e
racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, 29 omesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e
revelada, encontra a sua identificao viva e pessoal em Cristo, como recorda o apstolo Paulo: Averdade que existe em Jesus (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele a Palavra eterna, na qual tudo foi
criado, e ao mesmo tempo a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,30 revela o Pai (cf.Jo 1, 14.18). Aquilo que a razo humana procura sem o conhecer (cf. Act 17, 23), s pode ser
encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela a verdade plena (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realizao
(cf. Col 1, 17).
35. Tendo estas consideraes gerais como pano de fundo, necessrio agora examinar, de maneira
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mais directa, a relao entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relao requer uma dupla
considerao, visto que a verdade que nos vem da Revelao tem de ser, simultaneamente,compreendida pela luz da razo. S nesta dupla acepo que ser possvel especificar a justa
relao da verdade revelada com o saber filosfico. Por isso, vamos considerar, em primeiro lugar,as relaes entre a f e a filosofia ao longo da histria, donde ser possvel individuar alguns
princpios, que constituem os pontos de referncia aos quais recorrer para estabelecer a correctarelao entre as duas ordens de conhecimento.
CAPTULO IV - A RELAO ENTRE A F E A RAZO
1. As etapas significativas do encontro entre a f e a razo
36. Os Actos dos Apstolos testemunham que o anncio cristo se encontrou, desde os seusprimrdios, com as correntes filosficas do tempo. L se refere a discusso que S. Paulo teve com
alguns filsofos epicuristas e esticos (17, 18). A anlise exegtica do discurso no Arepagoevidenciou repetidas aluses a ideias populares, predominantemente de origem estica. Certamente
isso no se deu por acaso; os primeiros cristos, para se fazerem compreender pelos pagos, nopodiam citar apenas Moiss e os profetas nos seus discursos, mas tinham de servir-se tambmdo conhecimento natural de Deus e da voz da conscincia moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21;
2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, porm, na religio pag, esse conhecimento natural tinhadegenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Apstolo considerou mais prudente ligar o seu
discurso ao pensamento dos filsofos, que desde o incio tinham contraposto, aos mitos e cultosmistricos, conceitos mais respeitosos da transcendncia divina.
De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filsofos do pensamento clssico, foi purificarde formas mitolgicas a concepo que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religiogrega, como grande parte das religies csmicas, era politesta, chegando a divinizar at coisas e
fenmenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, ado universo tiveram a sua primeira expresso na poesia. As teogonias permanecem, at hoje, o
primeiro testemunho desta investigao do homem. Os pais da filosofia tiveram por misso mostrar aligao entre a razo e a religio. Estendendo o olhar para os princpios universais, deixaram de
contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional sua crena na divindade.Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradies particulares, levava a umdesenvolvimento que correspondia s exigncias da razo universal. O fim que tal desenvolvimento
tinha em vista era a verificao crtica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com essecaminho feito foi a concepo da divindade. As supersties acabaram por ser reconhecidas como
tais, e a religio, pelo menos em parte, foi purificada pela anlise racional. Foi nesta base que osPadres da Igreja instituram um dilogo fecundo com os filsofos antigos, abrindo a estrada ao
anncio e compreenso do Deus de Jesus Cristo.
37. Quando se menciona este movimento de aproximao dos cristos filosofia, obrigatriorecordar tambm a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo cultural pago, como,
por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria prtica e escola de vida, podia facilmente serconfundida com um conhecimento de tipo superior, esotrico, reservado a poucos iluminados. ,
sem dvida, a especulaes esotricas deste gnero que pensa S. Paulo, quando adverte osColossenses: Vede que ningum vos engane com falsas e vs filosofias, fundadas nas tradies
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humanas, nos elementos do mundo, e no em Cristo (2, 8). Como so actuais estas palavras doApstolo, quando as referimos s diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entrealguns crentes, privados do necessrio sentido crtico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros
escritores dos primeiros sculos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a umaorientao cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelao interpretao dos filsofos.
38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia no foi fcil nem imediato. Aexercitao desta e a frequncia das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros cristoscomo transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente misso era o
anncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar ointerlocutor converso do corao e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso no significa
que ignorassem a obrigao de aprofundar a compreenso da f e suas motivaes; antes pelocontrrio. injusta e pretextuosa a crtica de Celso, quando acusa os cristos de serem gente
iletrada e rude . 31 A explicao deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Narealidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta to satisfatria questo do sentido
da vida, at ento insolvel, que frequentar os filsofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, emcertos aspectos, superada.
Isto , hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado pelo cristianismo, quando defende o
acesso verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, ocristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus.
A primeira consequncia deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamentesuperado o carcter elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso verdade
um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condies de poder percorrer estaestrada. As vias para chegar verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade crist temvalor salvfico, cada uma delas s pode ser percorrida se conduzir meta final, ou seja, revelao
de Jesus Cristo.
Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosfico, sempre marcado por um
prudente discernimento, h que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a terpela filosofia grega depois da sua converso, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado,
no cristianismo, a nica filosofia segura e vantajosa . 32 De forma semelhante, Clemente de
Alexandria chamava ao Evangelho a verdadeira filosofia , 33 e, em analogia com a lei mosaica, via
a filosofia como uma instruo propedutica f crist 34 e uma preparao ao Evangelho. 35 Umavez que a filosofia anela por aquela sabedoria que consiste na rectido da alma e da palavra e na
pureza da vida, est aberta sabedoria e tudo faz para a alcanar. No nosso meio, designam-se porfilsofos os que amam a sabedoria que criadora e mestra de tudo, isto , o conhecimento do Filho
de Deus .36 Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega no tem como primeiro objectivocompletar ou corroborar a verdade crist; a sua funo , sobretudo, a defesa da f: A doutrina do
Salvador perfeita em si mesma e no precisa de apoio, porque a fora e a sabedoria de Deus. Afilosofia grega no torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas, porque torna impotente oataque da sofstica e desarma os assaltos traioeiros contra a verdade, foi justamente chamada sebe
e muro de vedao da vinha .37
39. Entretanto, na histria deste desenvolvimento, possvel constatar a assuno crtica do
pensamento filosfico por parte dos pensadores cristos. No meio dos primeiros exemplosencontrados, sobressai, sem dvida, Orgenes. Contra os ataques lanados pelo filsofo Celso, ele
recorre filosofia platnica para argumentar e responder-lhe. Citando vrios elementos dopensamento platnico, comea a elaborar uma primeira forma de teologia crist. Naquele tempo, a
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designao mesma de teologia e a sua concepo como discurso racional sobre Deus ainda estavamligadas sua origem grega. Na filosofia aristotlica, por exemplo, o termo designava a parte mais
nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosfico. Mas, luz da revelao crist, o queanteriormente indicava uma doutrina genrica sobre a divindade, passou a assumir um significadototalmente novo, ou seja, a reflexo que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca
de Deus. Este pensamento cristo novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas aomesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A histria revela que o prprio pensamento
platnico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformaes, especialmente emconceitos como a imortalidade da alma, a divinizao do homem e a origem do mal.
40. Nesta obra de cristianizao do pensamento platnico e neoplatnico, merecem menoparticular os Padres Capadcios, Dionsio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. Ogrande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosficas, mas todas o tinham desiludido.
Quando se lhe deparou a verdade da f crist, ento teve a fora de realizar aquela conversoradical a que os filsofos anteriormente contactados no tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo
refere o motivo: Preferindo a doutrina catlica, j sentia, ento, que era mais razovel e menosenganoso sermos obrigados a crer o que no demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta
no estivesse ao alcance de qualquer pessoa, quer a no houvesse. Seria isto mais sensato do quezombarem da crena os maniquestas, apoiados em temerria promessa de cincia, para depois nos
mandarem acreditar em inmeras fbulas to absurdas que as no podiam provar . 38 Quanto aosplatnicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, estecensurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, porm,
ignorado o caminho que l conduzia: o Verbo encarnado. 39 O Bispo de Hipona conseguiu elaborara primeira grande sntese do pensamento filosfico e teolgico, nela confluindo correntes do
pensamento grego e latino. Tambm nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento nopensamento bblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento
especulativo. A sntese feita por Santo Agostinho permanecer como a forma mais elevada dereflexo filosfica e teolgica que o Ocidente, durante sculos, conheceu. Com uma histria pessoal
intensa e ajudado por uma admirvel santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras,muitos dados que, apelando-se experincia, antecipavam j futuros desenvolvimentos de algumascorrentes filosficas.
41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em relao com asescolas filosficas. Isto no significa que tenham identificado o contedo da sua mensagem com os
sistemas a que faziam referncia. A pergunta de Tertuliano: Que tm em comum Atenas e
Jerusalm? Ou, a Academia e a Igreja? , 40 um sintoma claro da conscincia crtica com que os
pensadores cristos encararam, desde as origens, o problema da relao entre a f e a filosofia,vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limitaes. No erampensadores ingnuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o contedo da f, eles
conseguiam chegar s formas mais profundas da reflexo. Por isso, injusto e redutivo limitar o seutrabalho a mera transposio das verdades de f para categorias filosficas. Eles fizeram muito mais;
conseguiram explicitar plenamente aquilo que resultava ainda implcito e preliminar no pensamento
dos grandes filsofos antigos. 41 Estes, conforme j disse, tiveram a funo de mostrar o modo como
a razo, livre dos vnculos externos, podia escapar do beco sem sada dos mitos, para melhor seabrir transcendncia. Uma razo purificada e recta era capaz de se elevar aos nveis mais elevados
da reflexo, dando fundamento slido percepo do ser, do transcendente e do absoluto.
Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razo na sua plena aberturaao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelao. O encontro no foi apenas questo de
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culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascnio da outra; mas verificou-se no ntimo da alma, efoi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual
inconscientemente tendia por fora da sua natureza, a razo pde alcanar o sumo bem e a sumaverdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres no tiveram medo de
reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenas que aquelas apresentavam relativamente Revelao. A percepo das convergncias no ofuscava neles o reconhecimento das diferenas.
42. Na teologia escolstica, o papel da razo educada filosoficamente torna-se ainda mais notvel
sob o impulso da interpretao anselmiana do intelectus fidei. Segundo o santo Arcebispo deCanturia, a prioridade da f no faz concorrncia investigao prpria da razo. De facto, esta
no chamada a exprimir um juzo sobre os contedos da f; seria incapaz disso, porque no idnea. A sua tarefa , antes, saber encontrar um sentido, descobrir razes que a todos permitam
alcanar algum entendimento dos contedos da f. Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelectodeve pr-se procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para averdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo
que conhece, embora admita que ainda no fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: Ad te
videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum . 42 Assim, o desejo da verdade
impele a razo a ir sempre mais alm; esta fica como que embevecida pela constatao de que a suacapacidade sempre maior do que aquilo que alcana. Chegada aqui, porm, a razo capaz de
descobrir onde est o termo do seu caminho: Penso efectivamente que, quem investiga uma coisaincompreensvel, se deve contentar de chegar, pela razo, a reconhecer com a mxima certeza a sua
existncia real, embora no seja capaz de penetrar, pela inteligncia, o seu modo de ser (...). Alis,que h de to incompreensvel e inefvel como aquilo que est acima de tudo? Portanto, se aquilo decuja essncia suprema discutimos at agora, ficou estabelecido sobre razes necessrias, ainda que a
inteligncia no o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por issovacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflexo anterior compreendeu
de maneira racional que incompreensvel (rationabiliter comprehendit incomprehensibile esse) omodo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...) , quem explicar como ela mesma se
conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? . 43
Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filosfico e oconhecimento da f: a f requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razo; por sua
vez a razo, no apogeu da sua indagao, admite como necessrio aquilo que a f apresenta.
2. A novidade perene do pensamento de S. Toms de Aquino
43. Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial S. Toms, no s pelo contedoda sua doutrina, mas tambm pelo dilogo que soube instaurar com o pensamento rabe e hebreu do
seu tempo. Numa poca em que os pensadores cristos voltavam a descobrir os tesouros da filosofiaantiga, e mais directamente da filosofia aristotlica, ele teve o grande mrito de colocar em primeiro
lugar a harmonia que existe entre a razo e a f. A luz da razo e a luz da f provm ambas de Deus:
argumentava ele; por isso, no se podem contradizer entre si. 44
Indo mais longe, S. Toms reconhece que a natureza, objecto prprio da filosofia, pode contribuirpara a compreenso da revelao divina. Deste modo, a f no teme a razo, mas solicita-a e confia
nela. Como a graa supe a natureza e leva-a perfeio, 45 assim tambm a f supe e aperfeioa
a razo. Esta, iluminada pela f, fica liberta das fraquezas e limitaes causadas pela desobedinciado pecado, e recebe a fora necessria para elevar-se at ao conhecimento do mistrio de Deus
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Uno e Trino. Embora sublinhando o carcter sobrenatural da f, o Doutor Anglico no esqueceu ovalor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar o sentidode tal racionabilidade. Efectivamente, a f de algum modo exercitao do pensamento ; a razo
do homem no anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos contedos de f; que
estes so alcanados por deciso livre e consciente. 46
Precisamente por este motivo que S. Toms foi sempre proposto pela Igreja como mestre depensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o
que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasio do stimo centenrio damorte do Doutor Anglico: Sem dvida, S. Toms possuiu, no mximo grau, a coragem daverdade, a liberdade de esprito quando enfrentava os novos problemas, a honestidade intelectual dequem no admite a contaminao do cristianismo pela filosofia profana, mas to pouco defende arejeio apriorstica desta. Por isso, passou histria do pensamento cristo como um pioneiro no
novo caminho da filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a essncia da soluoque ele deu ao problema novamente posto da contraposio entre razo e f, com a genialidade doseu intuito proftico, foi o da conciliao entre a secularidade do mundo e a radicalidade doEvangelho, evitando, por um lado, aquela tendncia anti-natural que nega o mundo e seus valores,
mas, por outro, sem faltar s exigncias supremas e inabalveis da ordem sobrenatural . 47
44. Entre as grandes intuies de S. Toms, conta-se a de atribuir ao Esprito Santo o papel de fazer
amadurecer, como sapincia, a cincia humana. Desde as primeiras pginas da Summa theologi, 48
o Aquinate quis mostrar o primado daquela sapincia que dom do Esprito Santo e que introduz noconhecimento das realidades divinas. A sua teologia permite compreender a peculiaridade da
sapincia na sua ligao ntima com a f e o conhecimento de Deus: conhece por conaturalidade,pressupe a f e chega a formular rectamente o seu juzo a partir da verdade da prpria f: Asapincia elencada entre os dons do Esprito Santo distinta da mencionada entre as virtudesintelectuais. De facto, esta segunda adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contrrio, "provm do alto",
como diz S. Tiago. Mas tambm distinta da f, po
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