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CIDADANIA E ARTE: INSERÇÕES ARTÍSTICAS NO CAMPUS CENTRAL DA UFRGS Cláudia Vicari Zanatta / Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Poéticas Artísticas
CIDADANIA E ARTE: INSERÇÕES ARTÍSTICAS NO CAMPUS CENTRAL DA UFRGS Cláudia Vicari Zanatta / Universidade Federal do Rio Grande do Sul RESUMO
O espaço físico do Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/ Brasil, localizado na área central de Porto Alegre, tornou-se na última década um grande estacionamento e zona de passagem de pedestres. Simultaneamente, a cidade passou a ter graves problemas relacionados à pobreza e ao crescimento populacional. O presente artigo analisa a prática do grupo Cidadania e Arte, o qual tem se dedicado, desde o
ano de 2012, a realizar inserções artísticas no Campus Central – UFRGS, com o objetivo de propor novos usos e imaginários para um espaço público que pode ir além de sua função de espaço de trânsito e estacionamento. O artigo examina como o grupo faz uso de inserções artísticas com o objetivo de desnaturalizar concepções que estão normatizadas e normalizadas no Campus. É identificado e analisado como o grupo ativa este espaço público de uso acadêmico por meio da prática artística contemporânea. PALARAS-CHAVE
arte contemporânea; inserção urbana; espaço público; campus universitário. RESÚMEN El Campus Central de la Universidad Federal de Rio grande del Sur que se encuentra ubicado en el área central de Porto Alegre, en la última década se ha convertido en un gran estacionamiento y zona de paso de peatones; al mismo tiempo que en la ciudad la pobreza y la densidad de población se han incrementado. El presente artículo analiza las inserciones artísticas que desde 2012 el grupo “Cidadania e Arte” realiza en el campus Central de la
UFRGS encaminadas a proponer nuevos usos e imaginarios para los espacios públicos de la Universidad distintos a los tránsito y parqueadero. El articulo explora como el grupo hace uso de inserciones artísticas con el objetivo de cuestionar diversas concepciones que se tienen por normas y normales en el Campus. Es identificado y analisado cómo el grupo activa ese espacio público de uso académico por medio de la práctica artística contemporánea PALABRAS CLAVE arte contemporáneo; inserción urbana; espacio publico; campus universitário.
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CIDADANIA E ARTE: INSERÇÕES ARTÍSTICAS NO CAMPUS CENTRAL DA UFRGS
Cláudia Vicari Zanatta / Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Educação em Artes Visuais
Campus Central da UFRGS: um grande estacionamento?
Ao observarmos a conformação arquitetônica de Porto Alegre, verificamos que ela
compartilha com muitas cidades brasileiras o fato de possuir uma diversidade de
estilos. Com origem em uma colonização açoriana iniciada no século XVII, ao longo
de décadas a cidade passou por transformações influenciadas por distintos períodos
históricos e concepções, sendo fruto de aportes das pessoas que a construíram,
habitaram e pensaram. A partir de uma pequena vila açoriana, a cidade tornou-se,
nos dias atuais, uma metrópole de quase dois milhões de habitantes.
Foi no coração de Porto Alegre que no século XIX começou a ser criado o que
posteriormente veio a ser denominado de Campus Central da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). No Campus Central, encontram-se prédios
construídos entre 1898 e 2013, coexistindo estilos que vão desde o art noveau, art
deco, arquitetura moderna, ecletismo e arquitetura de improviso (tais como galpões
feitos de madeira e caixotes cobertos por zinco e que ao longo dos anos acabaram
tornando-se, na prática, estruturas permanentes).
Nos anos 1970, Porto Alegre viveu o que ficou conhecida como a “era do cimento”,
década em que foram construídas, na capital, grandes avenidas e viadutos.
Baseada nas noções de progresso e de desenvolvimento contínuos, a cidade não
parou de crescer. As modificações que aconteceram ao longo dos anos também
afetaram o Campus Central da UFRGS, pois este território foi pouco a pouco sendo
encarcerado pelo Plano Diretor da cidade. Neste período, no Campus Central, foram
construídas edificações que, em sua maioria, não consideraram os edifícios já
existentes, extrapolando de modo progressivo, quase que imperceptivelmente, um
planejamento inicial e ocasionando que o conjunto arquitetônico passasse a ter
pouco espaço entre as edificações1.
Mais recentemente, nas últimas duas décadas, o Brasil passou a fomentar políticas
públicas de inclusão e as universidades foram pressionadas a ampliar suas
instalações em função da demanda de novos cursos e vagas para estudantes. Esta
realidade urgente forçou o reaparecimento de construções no espaço já densamente
ocupado do Campus Central. O novo cenário também gerou um aspecto paradoxal:
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ao mesmo tempo em que universidade ampliou-se para receber um maior número
de pessoas, passou a fechar e vigiar seu território com grades, cercas, portões,
câmeras e catracas no intento de evitar a violência ou outras situações urbanas
indesejadas presentes em seu entorno.
No caso do Campus Central da UFRGS, um ponto que chama à atenção é que a
situação de localizar-se em uma área de grande circulação de veículos e de ter
ampliado o número de vagas para estudantes e professores transformou os espaços
livres contíguos às edificações em um grande estacionamento de veículos. Dentro
do campus, as áreas ao ar livre favoreceram os carros e se tornaram espaços de
circulação e não de convivência. Além de influenciar diretamente como os usuários
se movem, se deslocam, tal panorama também afetou sua socialização, o convívio.
O arquiteto Maurício Magro, em estudo sobre campi universitários, aponta que os
espaços externos combinariam “qualidades físicas e semânticas, ou seja, atributos
físicos dos espaços e sentimentos recorrentes dos usuários2." O autor também indica
que seriam os espaços externos, mais do que os internos, os que favoreceriam a
possibilidade de socialização.
O espaço físico externo pode indicar não somente como se organiza uma sociedade,
mas com o que ela se importa, o que ela valoriza. Ao priorizar o deslocamento e
estacionamento dos carros, se impede que algo venha a ocupar os espaços livres
do campus. Também não se propicia que se permaneça nestes locais; não se
favorece o demorar-se em um espaço público.
Em relação ao contexto descrito acima, uma das perguntas que pode ser feita tanto
em relação à cidade quanto ao Campus de uma Universidade é se ao priorizar áreas
públicas como espaços para o trânsito por meio do transporte individual, estes locais
favoreceriam que o ser humano desenvolvesse suas melhores possibilidades no
sentido de bem viver3. Ou, dizendo de outro modo, quando os espaços livres de um
campus se tornam um grande estacionamento, qual o incentivo para a convivência e
permanência neste local?
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Imagens do Campus Central da UFRGS, 2014
Perguntas relevantes também se referem a como vemos e construímos espaços
urbanos. Qual o tipo de convívio, de sensibilidade que os espaços produzem e
estimulam e quais são os sentidos que eles impõem?
Considerando-se a organização e as transformações ocorridas ao longo dos anos no
Campus Central da UFRGS, constata-se que as escolhas feitas em relação ao
espaço físico fizeram com que atualmente se esteja como em uma ilha dentro do
coração densamente povoado de Porto Alegre: não há sinais de pobreza, crianças,
idosos: há estudantes, professores, técnicos. Neste sentido, poderíamos perguntar
que tipo de projeto tem uma instituição pública que não reflete a complexidade da
cidade em que se insere. Teria a Universidade escolhido situar-se, de certo modo,
de costas para a cidade, não se preocupando com a pluralidade social de seu
entorno, muitas vezes caracterizado pela desigualdade social?
Com o intuito de entender quais são os critérios e concepções que determinam a
atual configuração do Campus Central da UFRGS, a artista Marina Jerusalinsky
realizou, em 2013, uma entrevista4 com um dos servidores responsáveis pela
organização do espaço físico do Campus Central. Na entrevista, fica patente o
entendimento que setores administrativos da UFRGS têm em relação ao uso do
local. Também fica evidenciado que os usos do espaço não são fruto de uma
discussão democrática com a comunidade acadêmica e com a comunidade do
entorno, sendo determinados diretamente por administradores ocasionais da
universidade, os quais vêm conferindo a tal área a função principal de
estacionamento. A entrevista mostra que, assim como a cidade, o espaço
universitário carece de debate participativo sobre o modelo que o constitui.
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Jerusalinsky pergunta a um dos gerentes de espaço físico do Campus a respeito da
realização de algumas atividades em seus espaços externos:
– Quer dizer que, por exemplo, se um grupo de pessoas que não faz parte da UFRGS decide entrar e jogar um jogo de futebol aqui, em um espaço que não atrapalhe o estacionamento e a circulação de pessoas, não poderiam? – A princípio não… Até nem tem muito espaço, antigamente tinha uma quadra na frente da FACED, agora está tudo tomado por estacionamento. – E se fosse um jogo de cartas, que não toma muito espaço?
– Também não tem mesas! (risadas). E sempre tem a questão da segurança… – Mas se forem pessoas que fazem parte da UFRGS… – Nada é feito sem passar pelo crivo da administração, é meio chato, mas é assim que funciona atualmente.
Mediante o reconhecimento de como estão constituídos os espaços externos do
Campus Central da UFRGS – os quais foram progressivamente transformados em
espaços de passagens e de veículos – o grupo chamado Cidadania e Arte5, passou
a trabalhar neste contexto específico. Constituído por alunos e professores –
principalmente estudantes e professores de artes da UFRGS – uma das perguntas
centrais é como uma prática artística pode atuar como prática crítica para questionar
o destino que damos aos espaços das cidades.
A partir de 2012, o grupo decide atuar deslocando ações corriqueiras realizadas em
âmbito privado para o espaço do Campus Central da UFRGS. Os deslocamentos
ocorrem de modo discreto, efêmero, sem notificação prévia ao passante e são
denominadas pelo grupo de “inserções”. Tais inserções se propõem a ser não
somente contexto específico no sentido de estarem determinadas pelos locais em
que ocorrem, mas também contexto estratégico por ocorrerem em lugares que têm
um potencial discursivo e simbólico estratégico. Ou seja, atuar no espaço do
Campus torna-se uma decisão estratégica com o objetivo de apropriação simbólica e
também efetiva de um espaço que se pretende público e que, em décadas
precedentes, favorecia a convivência6.
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Dois conceitos para nortear ações do Cidadania e Arte: inserção artística e
malas-hierbas
O conceito de inserção artística se faz presente na arte brasileira tendo como
referência especialmente a prática do artista Cildo Meireles. Uma das obras mais
conhecidas de Meireles se intitula Inserções em Circuitos Ideológicos (1970). Nesta
proposta, o artista retirou elementos de seu circuito habitual para neles interferir e
devolvê-los à circulação. Exemplos são as garrafas de Coca-Cola, as quais foram
apropriadas pelo artista para intervir com frases acrescentadas em seus envases.
Após a intervenção, as garrafas foram devolvidas ao mercado, onde foi retomada
sua circulação.
A prática do grupo Cidadania e Arte faz uso do potencial que a noção de inserção
tem para desnaturalizar situações de normalidade em um dado circuito, inserindo em
um sistema cotidiano elementos ou situações diferenciadas sem aviso prévio, as
quais se fazem e se desfazem sem deixar rastros em sua efemeridade de ocasião.
Muitas vezes, a inserção ocorre de modo discreto, quase subliminar. Atuar mediante
uma inserção significa também que se busca intervir em um dado sistema
considerando sua lógica de circulação, sua constituição.
Vinculada à noção de inserção, outro conceito importante para o grupo é a noção de
malas-hierbas7 (ervas daninhas). As ervas daninhas são consideradas como plantas
que crescem em lugares onde não são desejadas, sendo sinônimo de plantas
improdutivas, não úteis ao ser humano como alimento ou uso medicinal. Embora
indesejadas, tais plantas crescem e ocupam espaços no meio urbano. A noção de
malas-hierbas é uma ferramenta conceitual, eixo do grupo, pois sublinha o objetivo
de enfrentar concepções naturalizadas que impedem que se pense outras
possibilidades para ocupar e viver nos espaços ou de torná-los lugares praticados,
como o entende Michel de Certeau. Segundo Certeau, muitas práticas cotidianas
podem subverter a lógica e os significados oficiais que são atribuídos aos espaços
urbanos, gerando o que o autor vai denominar de lugares praticados.8 Ou seja, um
lugar praticado é aquele que é apropriado, vivido pelos seus usuários, no cotidiano.
E muitos destes usos e práticas se distanciam do que foi previsto pelos planejadores
dos espaços urbanos.
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Atuando a partir das noções de inserção e de malas-hierbas, o grupo Cidadania e
Arte passa a se organizar para pensar como o espaço (principalmente o espaço
público urbano) se constitui, se normatiza e normaliza. Também dá início às
inserções no Campus Central.
Alguns exemplos de inserções realizadas pelo grupo Arte e Cidadania no
Campus Central a partir de 2012
O Jantar. Constou na reunião do grupo para um jantar em uma pequena mesa de
cimento existente no Campus Central (frase tá incompleta ou tem algum erro de
digitação, dá uma olhada). Toalha, velas, alimentos e bebidas foram os elementos
utilizados na ocasião. O que foi feito ali? Simplesmente jantar e conversar. Tal
inserção tem como antecedentes os piqueniques que as famílias realizavam nos
anos 1930 e 1940 no Campus Central.9 Este costume de dispor mesas ao ar livre
para reuniões ou para comer é praticamente inexistente no contexto contemporâneo
das cidades brasileiras. Atualmente, este hábito é raríssimo devido especialmente
ao medo da violência presente no espaço público.
Aula de Violão.10 Inserção em que um professor de música deu sua aula de violão
entre as vagas destinadas aos carros, sentado em um pequeno espaço em que
estão plantados dois coqueiros. Os passantes se detiveram a observar, curiosos a
respeito de uma aula em um lugar inusitado. Segundo Marina Jurasalinsky,
idealizadora da inserção:
O jantar, Campus Central da UFRGS, 2013
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Era uma aula de violão. Quando encontrei o professor – um estudante do Instituto de Artes – e a sua aluna, ele me disse: ‘depois que tu me fizeste a proposta eu fiquei pensando… violão não é algo muito incomum, talvez outro instrumento fosse mais estranho…’. Depois de alguns minutos da aula esta frase não mais se justificou. O instrumento não era tão desconhecido às pessoas, mas a situação parecia ser: poucos eram os que não viravam a cabeça ao passar por ali para olhar os dois tocando. A verdade é que ninguém fica ali, habitualmente, sentado nos canteiros no meio do estacionamento. É um lugar de passagem, efetivamente ocupado apenas por carros e algumas poucas árvores. A aula parece ter causado, inclusive, um desconforto para alguns motoristas, que hesitavam estacionar nas vagas mais próximas do canteiro – ao final da aula, elas ainda permaneciam vazias […] […] O deslocamento de algo que em muitos lugares dentro do campus poderia ser tão corriqueiro – duas pessoas tocando violão – naquele local acabou por gerar uma sutil comoção. Um encontro prazeroso para alguns, estranho para outros, mas de alguma maneira aparentando estar fora de lugar, num lugar a que deveria, na nossa concepção, normalmente pertencer aos seus usuários. São os carros, porém que pertencem ao estacionamento, e a este é que se dá lugar dentro do campus. Não se pode mais ter prédios de aula sem estacionamento, eles dizem. Não se pode mais ter universidade sem vida, nós dizemos.11
Aula de Violão, Campus Central da UFRGS, 2014
Flauta.12 Um estudante de música é convidado a estudar sua lição de flauta sob
uma árvore, entre os carros. Não se trata de um concerto e, sim, da ação cotidiana
de estudar flauta em um espaço de passagem. O estudante não está pedindo
dinheiro nem vendendo sua arte. Simplesmente toca flauta no espaço ao ar livre, o
que em Porto Alegre soa muito estranho, posto que não há o hábito da prática
musical nas ruas.
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Flauta, Campus Central da UFRGS, 2014
Padaria.13 Inserção que consistiu na feitura de pão utilizando a energia do banco e
do museu que estão localizados dentro da Universidade. Faz-se o pão e come-se o
pão em uma vaga do estacionamento. Segundo uma integrante do grupo, falando
sobre a inserção:
Ali estávamos nós, quarta-feira pela manhã, levando as extensões, as duas panificadoras domésticas, um forninho elétrico, a farinha, uma mesinha e uma cadeira de armar. Local de trabalho: uma vaga de estacionamento e uma entrada de um banco no Campus Central da UFRGS. Energia para os equipamentos? Uma tomada dentro do banco e outra dentro do Museu ao lado da vaga.
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Padaria, Campus Central da UFRGS, 2013
Considerações a partir das inserções no Campus Central
Quem pode usar determinados espaços ditos públicos da cidade? E como é
possibilitado que se faça este uso? Somente o fato de interrogar quanto ao modo
como se constitui um determinado espaço permite evidenciar seu caráter de
mobilidade, de espaço que pode ser alterado, posto que ele é determinado histórica,
cultural e materialmente. Questionar o modo como um espaço se apresenta salienta
que os usos e apropriações de um dado espaço não são naturalmente determinados,
fixos, sedimentados, pois, como a própria cidade, estão em permanente construção.
O que é visível no espaço urbano influencia o entendimento, as experiências e a
apropriação que temos a respeito da cidade em vários sentidos. Espaços de
estacionamento e de passagem reverberam imagens de contextos homogêneos.
Quando temos homogeneidade, deixamos de ter complexidade, vitalidade e saúde
não somente para nós, humanos, mas para todos os seres vivos. Espaços
homogêneos denotam um falso consenso no sentido de haver um entendimento
comum em relação ao seu destino, ao seu uso; mascaram a complexidade do
espaço urbano, caracterizado pelo dissenso.
Observando as inserções do Cidadania e Arte percebe-se que elas apostam na ideia
de que a introdução de novos códigos visuais na cidade possibilita que se coloque
em xeque o destino que conferimos aos espaços ditos públicos na urbe. Também
fica evidenciado que o grupo se vale da prática artística como prática crítica para
introduzir novas questões a respeito da normatividade e da normalização de alguns
espaços, como o caso do Campus Central.
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As inserções realizadas pelo Cidadania e Arte no Campus Central da UFRGS
buscaram criar oportunidades para que pensemos este espaço da cidade de outro
modo ao propor uma imagem diferente, um ver inusitado, inesperado em relação a
algo que se apresenta como possibilidade única, controlada e consensual,
proveniente de códigos e de intenção de ocupação e de representação vigentes
naquele espaço atualmente.
Ao buscar ser uma nova fala no Campus Central, as inserções sinalizaram a
possibilidade de pensarmos outros usos para a área física externa do campus,
cogitando que ele passe a ser não somente um espaço para atravessar ou
estacionar, mas para estar, permanecer, conviver. Mediante as inserções o grupo
procurou gerar uma espécie de imagem simbólica com o desejo de produzir algum
grau de efetividade no questionamento dos usos deste espaço específico.
Uma inserção pode provocar um ruído em um sistema dado, criar microespaços,
nichos, lugares de diferenciação em contextos urbanos caracterizados
massivamente pela presença de carros e de pessoas passando apressadas.
Nota-se que a estratégia do grupo foi buscar que o passante, ao se deparar com as
inserções, tivesse primeiramente o estranhamento em relação ao que lhe parecia
deslocado em um lugar que se encontra naturalizado e decodificado pelo contato
habitual e precisasse buscar referências não usuais para situar, contextualizar,
compreender o que via. Fundamental neste encontro com a inserção é a relação que
se instala quando o passante interroga, duvida do que está acontecendo em um
espaço por ele já tão conhecido e naturalizado.
As inserções de ordem simbólico-poética, oriundas de muitas práticas artísticas
contemporâneas, podem ativar e propor outros significados e usos, outras práticas –
mais humanizadas talvez – para espaços que tem um destino aparentemente
estático e definido.
O que uma prática artística como a analisada neste artigo denota é que ao propor
novos usos e imaginários para um dado espaço urbano, seja ele um estacionamento
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ou outro espaço urbano normatizado, são geradas outras possibilidades de viver a
cidade, viver na cidade.
Notas 1Tal crescimento gerou a necessidade da criação de outros campus, como o Campus do Vale situado no bairro
Agronomia, distante alguns kms do centro da cidade. Sua inauguração foi nos anos 70, com a transferência para o local de vários cursos, entre eles o de Letras e Filosofia.
2 MAGRO, Mauricio. Os Espaços Externos do Campus I na Universidade de Passo Fundo: Análise da Percepção
dos Usuários e de suas Preferências, 2006, pg. 26. Dissertação (Mestrado em Engenharia Civil) - Programa de Pós Graduação Em Engenharia Civil, Ufrgs.
3 Bem viver entendido aqui relacionado às noções de vida saudável e cuidado com o meio ambiente.
4 Entrevista feita por Marina Jerusalinsky à Prefeitura do Campus Central (UFRGS), Porto Alegre, 13-11-2013.
“Normas do Campus Central da UFRGS”. Entrevista disponível na íntegra em: https://cidadaniaearte.wordpress.com/2013/11/29/normas-do-campus-central-da-ufrgs/
5 O grupo é formado por alunos de graduação, pós-graduação e professores de diferentes universidades e atua
de modo colaborativo, propondo temas de debate e realizando inserções, entrevistas, coletando e organizando imagens. A cada inserção, em geral, agregam-se participantes que não fazem parte do eixo original do grupo, tendo participações pontuais, específicas de acordo com a proposta a ser realizada. Repositório digital do grupo: cidadaniaearte.wordpress.com.
6 Uma das origens de uma prática artística voltada aos espaços do Campus Central da UFRGS pode ser
vinculada às propostas iniciadas no final dos anos 90 pelo grupo Perdidos no Espaço. O grupo, com o objetivo de propor projetos de intervenções no espaço físico do Campus Central, se perguntava: “Com que propostas interpelar o publico constituído de professores, alunos e funcionários? Que subsídio fornece o Campus Central, para o desenvolvimento de propostas artísticas? Como questionar seus usos e de que forma alterá-los?” Disponível em:http://www.ufrgs.br/escultura/
7 Sobre o assunto, conferir o artigo “Herbário Valenciano: vingar e resistir na cidade”. ZANATTA, Cláudia.
Disponível em: http://www.anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/comites/pa/Claudia%20Zanatta.pdf e a tese: Malas-hierbas: análisis de una poetica de arte participativo. ZANATTA, Cláudia. Disponível em: <https://riunet.upv.es/.../VICARI%20-%20MALAS%20HIERBAS%3A%20A>.
8 Ver: CERTEAU, Michel. The Practice of Everyday Life. Berkely/LA e Londres, 1984.
19 Segundo Fernanda Gassen e Michel Zózimo, “Nos anos trinta e quarenta, durante os finais de semana, alguns
cientistas ocupavam o pátio do Observatório Astronômico, realizando piqueniques com as suas famílias.” Em: GASSEN, F.; ZÓSIMO, M. Piquenique no pátio do observatório. Cartaz produzido por Diálogos Abertos, Perdidos no Espaço: www6.ufrgs.br/escultura, 2011. A inserção “Jantar” também dialoga com o o trabalho da artista Louise Ganz, a qual em diversas ocasiões reuniu a familia e amigos para comer ao ar livre como prática artística. Ver: www.lotevago.blogspot.com.br, acesso em 30-10-2013.
10 Inserção proposta por Marina Jerusalinsky em colaboração com Josué Santos Farias e Cristiane Veeck.
11 Marina Jurasalinsky. Disponível em: www.cidadaniaearte.wordpress.com/category/insercoes/aula-de-violao/
112 Inserção proposta por Marina Jerusalinsky em parceria com Ettore Sanfelice.
113 Inserção proposta por Krishna Daudt.
Referências
CIRUGEDA, Santiago. Situaciones Urbanas. Barcelona: Editorial Tenov, 2007.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. São Paulo: Ed. Papirus, 1993.
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Cláudia Vicari Zanatta / Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Educação em Artes Visuais
KAPROW, Allan. A Educação do Não-Artista, Parte I. (1971). < Disponível em:
http://www.concinnitas.uerj.br/resumos4/kaprow.pdf.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. London: Verso,
1985.
PALLAMIN, Vera. Cidade e Cultura – esfera pública e transformação urbana. São Paulo:
Estação Liberdade, 2002.
PERDIDOS NO ESPAÇO. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/artes/escultura>.
PROJETO MOBILIÁRIOS. Disponível em: <http://<projetomobiliarios.blogspot.com>.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo. Ed. Hucitec, 1997.
Cláudia Vicari Zanatta
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde desenvolve pesquisa ligada à poéticas da participação. Desde 2011 coordena a pesquisa Cidadania e Arte e
projetos de extensão ligados à arte comunitária.
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