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8/7/2019 Codato, Adriano. As velhas questes empresariado nacional, crise do Estado e (neo)liberalismo. Segundas Jornadas
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Asociacin Uruguaya de Historia Econmica(AUDHE)
Segundas Jornadas de Historia Econmica
As velhas questes:
empresariado nacional, crise do Estado e(neo)liberalismo
Adriano Nervo Codato
Montevideo,21 a 23 de julho de 1999
Trabalho apresentado nas Segundas Jornadas de Historia Econmica, Asociacin Uruguaya de
Historia Econmica (AUDHE), Montevideo, 21 a 23 de julho de 1999 (Simposio "Estado e
empresariado na Amrica Latina").
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As velhas questes: empresariado nacional, crise do Estado e
(neo)liberalismo
Adriano Nervo Codato
Resumo
Periodicamente, o empresariado nacional brasileiro se engaja numa campanha
aberta de crtica ao Estado e de defesa do liberalismo econmico. O objetivo desta
comunicao revisitar estas conjunturas a fim de compreender melhor seus
pressupostos ideolgicos, motivaes polticas e bases organizacionais. Tomando
como exemplo paradigmtico desse comportamento a "campanha contra a
estatizao", conduzida por setores importantes da burguesia brasileira em
meados dos anos setenta, procuro esclarecer sua ao conservadora e seu
"liberalismo instrumental" encobertos por um discurso contestador da forma e
funo do Estado ditatorial.
I. Introduo
Os problemas organizativos i.e., aqueles que dizem respeito configuraoparticular do sistema institucional dos aparelhos do Estado no so meramente
tcnicos e, tampouco, comportam uma soluo simples. O Estado est vinculado
diretamente a uma sociedade dividida em classes e fraes e , assim,
atravessado por conflitos de alto a baixo; mais do que isso, ele a "cristalizao"
das relaes de dominao de classe no nvel poltico. Isso faz com que qualquer
problema organizativo torne-se, automaticamente, um problema poltico, j que as
modificaes nos procedimentos organizacionais tradicionais (as diversas e
peridicas "reformas" ou alteraes mais ou menos substanciais no design)
significam, desde logo, uma alterao nos interesses consolidados nos aparelhos
burocrticos do Estado. Como, num regime no-democrtico, a burguesia tem
necessariamente de estabelecer seus interesses e expressar suas reivindicaes
atravs de redes de presena especfica no seio do aparelho do Estado
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II. As diferentes posies da literatura
Diversos estudos procuraram definir as razes da dissenso burguesa. Ainda
que toda classificao seja, forosamente, arbitrria e esquemtica, alm dequase nunca fazer justia riqueza e complexidade da argumentao
desenvolvida pelos pesquisadores, talvez fosse til, para os fins da nossa
exposio, separar os trabalhos que se ocuparam com maior ou menor
profundidade deste assunto em algumas classes de respostas. Assim, pode-se
dividir a natureza das explicaes para a origem de cada um do movimento anti-
estatista em trs causas distintas: 1) causas econmicas; 2) causas polticas; 3)
causas ideolgicas.
preciso salientar que nem sempre esses fatores agem sozinhos ou esto
assim expressos nas anlises por ns consideradas, ainda que estas possam ser
includas tendencialmente numa ou noutra categoria. Para os fins deste paper,
gostaria de ressaltar as posies mais expressivas da literatura sem, contudo,
deter-me na crtica de cada uma delas, apresentando suas deficincias ou
contradies. Alm desse esforo j ter sido realizado de forma eficiente (v. Cruz,
s.d.: 140-194)3, meu objetivo aqui to-somente encontrar uma linha de
interpretao mais produtiva e eficaz para compreender no a oposio burguesa
em si mesma, mas os conflitos decorrentes do modo especfico de operao do
sistema decisrio e, particularmente, do novo perfil transmitido a ele pelo
Conselho de Desenvolvimento Econmico (CDE), principal criao do governo
Geisel, que acabaram, ambos, determinando alteraes importantes no
funcionamento burocrtico do Estado ditatorial durante o governo Figueiredo
(1979-1985). Igualmente, embora existam diferenas importantes no
comportamento poltico das diversas fraes dominantes reunidas no bloco nopoder (e, ademais, nos grupos politicamente ativos que se destacam dessas
fraes) diante dos problemas principais da conjuntura a transformao do
"modelo poltico" atravs do projeto de "distenso" controlada e a redefinio do
3 Este texto apareceu posteriormente como Cruz, 1995.
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"modelo econmico" com a assuno definitiva por parte das elites estatais do
projeto de "Brasil-potncia" , s poderei tomar aqui, em funo do meu interesse
especfico, a posio de conjuntoda grande burguesia brasileira diante da
"tecnologia organizativa" do Estado ditatorial, dispensando-me portanto de
analisar as plataformas polticas (mais avanadas ou mais conservadoras)
presentes nos diversos grupos ideolgicos que tiveram uma presena destacada
na cena poltica nesse perodo.
Nessa primeira parte, resenho as interpretaes estabelecidas sobre o episdio
em questo. A seguir, ofereo minha prpria descrio sobre a campanha contra o
Estado. Por ltimo, procuro estabelecer, de forma muito sumria, minha prpria
explicao.
* * *
A primeira manifestao burguesa de descontentamento diante do regime
ditatorial brasileiro, aps o movimento fracassado da "Frente Ampla" em
1967/1968, passou a se opor abertamente, atravs de seus representantes
ideolgicos mais destacados o economista ultra-liberal Eugnio Gudin em
primeiro plano expanso acelerada da "interveno" estatal na economia. A
partir do incio de 1975, foram colocados em xeque tanto a ampliao das suas
funes empresariais (o crescimento "desordenado" das empresas pblicas
atravs da constituio de um sem-nmero de holdingse subsidirias), quanto o
aumento da prpria atividade regulatria do Estado.
A tabela abaixo torna mais concreta essa afirmao.
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Tabela 1
Participao pblica na economia brasileira
(1939-1983)
ano n. de empresasestatais (total)
setor produtivoestatal
1939 35 11
1950 66 -
1960 128 42
1970 267 100
1980 431 2031983 440 -
Fonte: Diniz e Lima, 1986: 28
Para tirar uma concluso simples, v-se que foi particularmente durante a
ditadura militar que o Estado mais se expandiu.
Mas para alm desses dados que, se pem em evidncia o crescimento
quantitativo do setor produtivo estatal, tambm lembram a continuidade desse
processo ao longo de quase quarenta anos , como entender as razes da
exploso de descontentamento que ganhou intensidade e, principalmente,
visibilidade poltica justamente entre os anos 1975/1976, mobilizando, ainda que
de forma diferenciada, boa parte da grande burguesia brasileira? De modo geral,
existem trs respostas bsicas para explicar os motivos que detonaram a
campanha contra a estatizao. Vejamos cada uma delas separadamente.
II.1 causas ideolgicas
Os principais "economistas de oposio" Joo Manoel Cardoso de Mello,
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo e Luciano Coutinho situaram os fundamentos
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do debate sobre a "hipottica" (Belluzzo, 1977) ampliao do processo de
estatizao da economia brasileira em meados dos anos 70, expresso no aumento
relativo da propriedade estatal sobre os meios de produo (expanso quantitativa
das empresas do governo), bem como na ampliao do controle pblico sobre a
poupana privada (atravs da assuno pelas instituies financeiras pblicas dos
fundos PIS/PASEP), em grande parte devido a uma "iluso de ptica"
entendida aqui como um (auto-)engano do conjunto da classe dominante em
relao aos seus objetivos concretos e adversrios reais.
De fato, sustenta Belluzzo, o Estado noampliou sua participao relativa na
propriedade dos meios de produo aps 1964. As novas empresas pblicas que
progressivamente surgiram no perodo, ou cumpriram uma funo suplementar em
relao ao processo de acumulao privada de capital, ou "simplesmente
assum[iram] diversas funes que eram preenchidas pela administrao
centralizada ou autrquica, com o objetivo, pelo menos declarado, de agilizar a
administrao [pblica]. Alm disso, o crescimento do nmero de empresas no
significou um aumento da participao relativa do Estado na propriedade dos
ativos. O indicador mais claro disso que o Estado manteve-se praticamente nos
mesmos setores em que [j] vinha operando, com a grande exceo da
petroqumica, onde detm apenas um tero da propriedade dos ativos. Em outraspalavras, o grosso das empresas pblicas criadas recentemente so apenas
subsidirias, operando nos mesmos setores, na forma de unidades
estaduais/regionais ou perfazendo operaes de apoio (acessrias atividade
principal da empresa-holding), no sentido de garantir insumos, matrias-primas e
servios, ou de alargar sua atividade na comercializao dos produtos. Apesar
disso, a taxa de expanso dos setores dominados por empresas do Estado no foi
superior taxa de crescimento dos setores dinmicos (especialmente de bens de
consumo durvel) onde esto concentradas as subsidirias das empresas
internacionais. Nem foi tampouco superior taxa de expanso de determinados
setores fornecedores de partes e produtos intermedirios, ou de bens de capital
por encomenda, onde muito expressiva a presena de empresas privadas
nacionais. [...] Se o critrio tomar o conjunto das grandes empresas, a ttulo de
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demonstrar o argumento [da estatizao da economia], verifica-se que as taxas de
crescimento das grandes empresas pblicas no foram em mdia superiores s
das grandes empresas privadas, nacionais ou estrangeiras. Onde, pois, a
estatizao?" (Belluzzo, 1977: 26; grifos meus)4.
Ora, alm de esquecer-se que, sob o capitalismo monopolista, o Estado deveria
regular, no seu mbito, a luta entre as fraes do capital e que, alm disso, nas
condies estruturais do "capitalismo tardio", essa funo estaria necessariamente
acompanhada por uma presena importante do setor produtivo estatal no
Departamento I, "pela profundidade do processo de internacionalizao do
sistema produtivo e, conseqentemente, por uma fragilidade congnita do capital
monopolista nacional", a burguesia brasileira deveria aprender tambm que a
"estatizao" da economia ", na realidade, o epifenmeno das novas formas de
regulao encarnadas no Estado e que seus limites esto dados pelas
necessidades [objetivas] da reproduo conjunta do prprio capital monopolista"
(Mello, 1977: 16). Assim, dessa iluso em relao ao seu prprio papel histrico e
s funes especficas do Estado capitalista que, a partir de 1974, teve de
assumir um lugar de destaque na nova estratgia de expanso econmica ,
surgiu um amplo movimento oposicionista no seio do empresariado nacional. A
face mais palpvel desse "conhecimento invertido" do funcionamento global dosistema capitalista estaria expresso, de forma paradigmtica, no divrcio
promovido pela conscincia burguesa entre os interesses particulares dos
capitalistas individuais e o interesse geral do capitalismo, sustentado e garantido
pelo Estado, o qual deveria, enquanto "capitalista coletivo ideal", recriar
indefinidamente as condies para o prosseguimento da acumulao.
Na mesma linha de argumentao, Fernando Henrique Cardoso sublinhou que
a principal motivao da campanha contra a "estatizao" seria resultante dos
4 Por outro lado, " verdade que o Estado utilizou seu maior poder fiscal para a constituio doschamados fundos de poupana compulsria (PIS, PASEP, FGTS etc.). Realmente o Estadoacentuou seu papel de mobilizador e concentrador do excedente, mas agiu fundamentalmentecomo mero repassador de fundos ao setor privado", como alis exemplificam os casos do BNH edo BNDE. Houve, sim, "um aumento do grau de controle sobre o processo de financiamento daacumulao" do setor privado, mas no sobre os ativos (Belluzzo, 1977: 26 e 27; grifos meus).
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obstculos criados pela nova estratgia econmica realizao dos interesses de
curto prazo dos capitalistas individuais. Apesar do diagnstico (essencialmente
correto) de que deveria ser preciso corrigir as distores do modelo de
desenvolvimento, o empresrio particular, submetido constantemente lgica da
concorrncia, no perceberia a "inteligncia global" da economia. Ele deseja,
simplesmente, atuar onde o retorno do seu investimento mais alto e mais rpido.
Isso "ajuda a compreender por que, apesar das polticas governamentais
orientarem-se a reforar o capitalismo, [...] os capitalistas, especialmente os que
tm suas empresas situadas em So Paulo, a elas se opem" (Cardoso, 1976:
21)5. Assim, segundo Luciano Coutinho, "por mais remota que fosse a
possibilidade de que, neste novo esquema, as empresas estatais assumissem o
papel de plo articulador de um tipo de crescimento autnomo, a mera ventilaode sua potencialidade foi suficiente para deflagrar uma devastadora campanha
'antiestatizao' em 1975/76" (Coutinho, 1977: 32-33; v. tambm Cardoso, 1976:
18).
Contudo, para alm dessas consideraes de ordem, digamos, meramente
"terica", havia uma base real em que se apoiava esse qiproqu ideolgico e que
impulsionava para frente a oposio necessariamente falseada entre "privatismo"
e "estatismo", constituindo o fundamento concreto dos protestos do empresariadonacional em meados dos anos 70: o novo comportamento assumido pela empresa
pblica, plasmado no modelo privado do desempenho, da eficincia e da
rentabilidade empresarial. Logo, o mvel real da campanha antiestatista situar-se-
ia, na verdade, conforme resumiu Belluzzo, no fato de que "as grandes empresas
estatais", tais como a PETROBRAS ou a Vale do Rio Doce, por exemplo,
passaram progressivamente aps 1964 "a operar como corporaes privadas,
procurando aumentar sua capacidade de autofinanciamento e diversificando seus
investimentos. [...] Dessa forma, a grande empresa pblica no tem
comportamento distinto da grande empresa privada e, portanto, ao invs de
revelar estatizao, este processo bem o de 'privatizao'". Da que seja
5 Para a mesma interpretao do processo poltico, v. Mathias, 1977: 52-53.
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fundamentalmente em funo desse "comportamento 'privado' da empresa pblica
que se originam os atritos na disputa por novas reas de inverso" (Belluzzo,
1977: 27)6.
II.2 causas econmicas
Mas essa interpretao, se possui a grande vantagem de desfazer alguns
equvocos persistentes acerca dos papis e funes do Estado capitalista na
periferia do sistema, no permite apreender a dimenso propriamente polticado
movimento oposicionista. Considerando-se a notvel persistncia e continuidade
da "interveno" do Estado na economia brasileira, por que surgiu, em meados
dos anos 70, um movimento com tais caractersticas? Quais as suas motivaesde fundo e seus objetivos concretos? Como ele foi conduzido? A abordagem
proposta por Sebastio C. Velasco e Cruz , neste sentido, bem mais produtiva
para responder essas questes, pois prope-se a ver na "operao poltico-
ideolgica" que constituiu, no Brasil, a campanha contra a estatizao, uma ao
polticaespecfica. Trata-se ento de apreender a crtica antiestatista no no nvel
do seu "discurso" ideolgico, das suas representaes falsificadas do movimento
geral da economia, mas essencialmente no campo das prticas de classe7. Assim,
dispensando-se de julgar a validade inerente do discurso empresarial, deve-se,
segundo este ltimo, perguntar: qual o fundamentodessas prticas? Para o autor,
a origem da campanha contra a ampliao das funes empresariais do Estado
no pode ser reduzida to-somente a uma mera ideologia que disfarava
6 Claro est que este comportamento possua conseqncias econmicas importantes. "Aoformular seus programas de expanso, as empresas pblicas procuram tomar em conta,
naturalmente, seus objetivos privados. Assim, por exemplo, na encomenda de equipamentos noh qualquer preocupao em privilegiar a compra no mercado interno, visando incentivar odesenvolvimento de empresas do setor de bens de capital ou poupar divisas frente gravesituao do balano de pagamentos. O que interessa a minimizao dos riscos, o custo doequipamento, sua qualidade tecnolgica e o prazo de entrega que deve estar ajustado a seucronograma de inverso. Esta a origem de freqentes desentendimentos com os produtoresnacionais que tm seus interesses muitas vezes desconsiderados sombra destes critrios"(Belluzzo, 1977: 27).7 Para uma fundamentao mais detalhada dessa opo, cf. Cruz, 1984: 8 e 70.
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interesses de curto prazo, mas tem, essencialmente, uma base econmica. Seno
vejamos.
Na medida em que o ambicioso programa econmico do governo Geisel,
impulsionado decisivamente pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND),
pretendia "alterar algumas das articulaes bsicas da economia brasileira,
mediante o fomento da indstria de bens de produo e o fortalecimento do capital
nacional, que gostaria de ver guindado a uma posio hegemnica" no interior do
bloco das classes dominantes, ele teve de recorrer expanso do setor pblico a
fim de dinamizar seu projeto, conferindo s empresas do Estado um papel
destacado no processo de acumulao capitalista. Com isso, deveria surgir,
necessariamente, uma srie de conflitos entre "privatistas" e "estatistas". Contudo,
adverte Cruz, "esse [era] apenas um dos aspectos da estratgia" do governo e
essas disputas, em particular, foram conseqncia quase lgica do novo papel de
liderana desempenhado pela empresa pblica (cf. Cruz, s.d.: 167). Alm disso, o
fundamental que "subjacente s opes do II PND estava ainda a inteno de
modificar mais ou menos profundamente as relaes de fora que at ento
[haviam predominado] entre as diferentes fraes do capital privado, em duas
direes ao menos: na interao entre capital financeiro e capital produtivo, de um
lado, e, de outro, na posio relativa dos diversos segmentos do capital industrial"(Cruz, s.d.: 167).
Carlos Estevam Martins ressaltou, igualmente, que a redefinio das tarefas
concretas que orientaram a acumulao capitalista no Brasil, ao determinarem,
objetivamente, o fortalecimento do Departamento I atravs de pesadas inverses
estatais no setor de infra-estrutura, deveria implicar uma alterao importante na
forma do "modelo poltico"; a concentrao do poder decisrio nas mos da
burocracia pblica transformou-se assim em "condio propiciatria" para amudana da correlao de foras no interior do bloco no poder, promovendo a
desintegrao progressiva da coalizo "internacional-modernizadora" que se
instalou no governo em 1964, varrendo a "coalizo nacional-populista", e erigindo
uma outra em seu lugar, formada basicamente pelo "capital estatal" e pelos
grupos privados nacionais. Assim, "o bloco no poder o epicentro da crise [poltica
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que se abre em 1974] e esta decorre de certas mudanas experimentadas pela
correlao estabelecida, em 1964, entre as foras dominantes no plano
econmico e dirigentes no plano poltico" (Martins, 1977: 183 e 264 e segs.).
Numa vertente bastante aproximada, Guillermo O'Donnell salientou tambm que
as dificuldades do modelo poltico "autoritrio" surgiram exatamente quando ele se
viu frente necessidade de incorporar a "burguesia nacional" aliana que
sustentava o "Estado burocrtico-autoritrio" (cf. ODonnell, 1987 (1975): 44 e
segs).
Dessa forma, a centralizao administrativa, representada em primeiro plano
pela criao do CDE e da Secretaria de Planejamento da Presidncia da
Repblica (SEPLAN), aliada concentrao dos recursos de poupana forada no
Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE), definida pela Lei
Complementar 19 (em 25/04/1974), permitiu que o Estado dispusesse mais
livremente do fundo pblico na direo imaginada pela nova estratgia de
desenvolvimento, marginalizando, com isso, os interesses at ento prevalecentes
da frao bancria em nome dos interesses do capital industrial de base local.
Esse foi, sem dvida, segundo Sebastio Cruz, um dos pontos mais importantes
de conflito poltico no perodo. Alm disso, preciso notar, a poltica proposta pelo
governo Geisel "no se dirigia igualmente a todos os ramos da indstria, nem atodos os grupos que, em cada um desses ramos desenvolviam atividades"
produtivas. Como a consolidao da indstria de base (bens de capital e insumos
bsicos) era "a meta prioritria" do Plano e "para ela todas as facilidades"
deveriam ser "reservadas", "o Estado, na prtica, transferi[u] recursos para os
capitais investidos nessa esfera", atuando, assim, de forma claramente
"discriminatria" em relao s demais fraes do bloco no poder. Logo, a
implementao dos diversos programas de investimento que concretizariam essa
poltica industrial exerceria um poderoso efeito de polarizao, aglutinando todas
as demais fraes no contempladas pela nova estratgia de crescimento setor
financeiro privado, em primeiro lugar, indstria de bens durveis, em seguida, que,
preciso lembrar, havia liderado o ciclo expansivo anterior na campanha contra
a "estatizao" (Cruz, s.d.: 173-174 e 178). Segundo o autor, o efeito diferencial
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da ao do Estado sobre as diversas fraes do capital determinaria assim, por
parte dos setores mais prejudicados, uma oposio consistente que s tenderia a
desaparecer quando o II PND fosse definitivamente abandonado, em fins de 1976.
Logo, a campanha em questo no alcanou um apoio uniforme no seio do
empresariado. Setores importantes do patronato mantiveram-se margem do
movimento antiestatista ou, mesmo, chegaram a se pronunciar abertamente
contra seus "excessos". Esse foi o caso tpico do setor de bens de capital. A
Associao Brasileira para o Desenvolvimento das Indstrias de Base (ABDIB),
por exemplo, ao invs de abraar uma retrica liberal, reclamava do governo uma
poltica industrial mais consistente e integrada e um programa de encomendas de
mquinas e equipamentos mais definido8.
II.3 causas polticas
Decidido a "observar com certa ateno aquelas manifestaes polticas dos
anos 70", Carlos Lessa viu, por sua vez, "na revivescncia ideolgica" do
liberalismo "clssico" por amplas parcelas do empresariado nacional que
passaram a advogar uma sorte de "Estado mnimo" sem qualquer presena
efetiva na economia, uma espcie de "linguagem codificada que mane[jou]prudentemente pois a campanha [contra e estatizao] se desenvolveu em um
restrito espao poltico, vigiado e cerceado pelo autoritarismo a argumentao
do liberalismo econmico como vetor de explicitao de reivindicao das outras
liberdades", no caso especfico, das liberdades polticas (pluralismo, democracia,
participao etc.) (Lessa, Gazeta Mercantil, 29/04/1980, p. 32)9. Portanto, a
origem do descontentamento da grande burguesia brasileira com o regime
ditatorial seria, para este ltimo, muito mais polticaque propriamente econmica,
como procurou demonstrar Sebastio Cruz, ou mesmo ideolgica. o que a
passagem reproduzida a seguir ressalta: "Antes que fosse consensual e auto-
8 Sobre esse ponto e sobre as diferentes posies das diversas fraes da classe dominante nacampanha antiestatista, v. Cruz, 1984: 79-108. A posio da ABDIB foi discutida detalhadamenteem Cruz, s.d.: 195-294.9 Para a mesma viso, cf. Cardoso, 1983: 14-15.
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evidente o descenso cclico [da economia brasileira em fins dos anos 70], tanto o
empresariado, com sua campanha antiestatizante, quanto o eleitorado urbano,
com seu voto oposicionista, j estavam, por esses canais, expressando sua
desconformidade [com o formato do Estado brasileiro]. Nos idos de 1974/1975,
no havia a percepo ntida da crise econmica e da impossibilidade de
sustentar o milagre salvo para uns tantos especialistas , e, respeitando a
cronologia, no se poderia estabelecer a precedncia do econmico sobre o
poltico [...]. primeira vista, aqui estaria um paradoxo para os que apreciam as
associaes mecnicas. Aps o 'milagre' [econmico], o regime autoritrio
administrou bem a crise [...]. Entretanto, enfrenta uma crescente oposio
empresarial, inequivocamente a principal beneficiria desta administrao.
campanha antiestatizante sucedem-se manifestaes multiformes que sinalizamclaramente a exigncia, pelo segmento beneficiado, de um reajuste institucional
das regras polticas" (Lessa, Gazeta Mercantil, 29/04/1980, p. 32).
Qual o fundamento da resposta particularmente violenta do principal
beneficirio objetivo do "modelo econmico" seno um desgosto profundo com as
regras bastante rgidas impostas pelo "modelo poltico"? Ademais, "para
amplssimos segmentos empresariais, o qinqnio [1974-1979] foi francamente
favorvel. No somente se expandiram seus lucros operacionais, como elespuderam, no circuito financeiro, obter crescentes receitas no-operacionais"
(Lessa, Gazeta Mercantil, 29/04/1980, p. 32). Assim, contrariamente ao que
sustentou, entre outros, Joo Quartim de Moraes, para quem a "contestao do
papel do Estado na economia ligou-se ao desencantamento suscitado pelo fim do
'milagre econmico brasileiro' que se manifestou bruscamente em 1974" (Moraes,
1982: 831-832), a oposio burguesa s poderia ter uma raiz poltica que, por
prudncia e na falta de canais mais apropriados, teria de ser encoberta pela
retrica do liberalismo econmico.
A assim chamada "Carta do Rio de Janeiro", aprovada pela IV Conferncia
Nacional das Classes Produtoras (CONCLAP) em fins de 1977, uma boa
evidncia desse tipo de raciocnio, pois sublinhava, de acordo com Carlos Lessa,
trs atributos indispensveis para concretizar, entre ns, a "economia de mercado"
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atravs de um regime democrtico, selando portanto, na conscincia empresarial,
uma aliana tcita entre a liberdade econmica e a liberdade poltica. Os objetivos
fundamentais da luta das "classes produtoras" deveriam ser: a) a associao entre
economia descentralizada e o pluralismo poltico (e "aqui aparece o j comentado
cdigo como um denominador comum"); b) a promoo do bem-estar social como
resultado da melhoria na distribuio da renda e da diminuio da pobreza
absoluta; e c) a necessidade de uma menor dependncia das empresas privadas
em relao ao Estado a partir do aumento da sua eficincia produtiva (Lessa,
Gazeta Mercantil, 29/04/1980, p. 32)10.
Ora, na medida em que a resposta governamental oposio burguesa
restringia-se a adotar, a partir de 1975 notadamente, medidas tpicas para conter
a autonomia operacional das empresas do Estado11, o empresariado aprofundava
sua distncia em relao ao regime ditatorial. que nesse "dilogo de surdos", o
"cdigo empresarial" por mais democraciae no exatamente por menos Estado
"no era decifrado pelo Planalto e vice-versa". Mesmo entre o setor de bens de
capital, "criatura favorita do II PND", alguns dos "principais fabricantes de
equipamentos est[iveram] alinhados na vanguarda da campanha contra a
estatizao". Logo, o erro fundamental do governo foi ter estabelecido um objetivo
para o Pas o Brasil-potncia "sem consultar os interesses de suas basessociais de sustentao" e apoio. O Estado "autoritrio", adverte Lessa, "em uma
hipostasia de voluntarismo, levou ao extremo um pressuposto de oniscincia do
10 Em apoio tese de Lessa, Victrio B. Cabral, presidente da Associao Brasileira das Empresasde Capital Aberto (ABRASCA), enfatizou que o "Brasil sempre postulou uma economia de livremercado, e a uma economia aberta, por definio, dever corresponder um sistema politicamenteaberto, pluralista e descentralizado" (O Estado de S. Paulo, 10/11/1978, p. 27).11 Atendendo parcialmente a essas presses, o governo props, no mbito do CDE, o seguinte
elenco de medidas: 1) vedar o acesso de determinadas empresas estatais obteno de aumentode capital mediante subscrio em dinheiro no mercado acionrio; 2) reduzir a correo monetriacobrada sobre os emprstimos do BNDE; 3) estabelecer a obrigatoriedade do recolhimento do IRpelas empresas governamentais; 4) proibir as empresas estatais utilizarem incentivos fiscais; 5)diminuir o volume total de recursos investidos nas empresas estatais; e, por ltimo, 6) o CDEaprovou resoluo que impunha rigorosas limitaes e submetia aprovao direta do Presidenteda Repblica as iniciativas para a criao de novas empresas estatais atravs de subsidirias deempresas j existentes, para a assuno do controle acionrio de empresas privadas ou para aexecuo de projetos por empresas governamentais fora de sua rea normal de atuao. V. OEstado de S. Paulo, 19/06/1975, p. 35.
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Poder Executivo: saber mais do que a Nao o que bom para ela" (Lessa,
Gazeta Mercantil, 29/04/1980, p. 33)12. Desse desencontro poltico, surgiu a
oposio empresarial.
Outra fonte sustenta-se, ainda que apoiada em argumentos distintos, na mesma
vertente interpretativa. O fundamento da campanha antiestatista seria, para Eli
Diniz e Renato Boschi, eminentemente poltico: "num debate aparentemente
marcado por consideraes de ordem econmica, transparece, em seus
fundamentos, uma demanda de carter essencialmente poltico" (Diniz e Boschi,
1978: 191). Por qu? Para os autores e para Olavo Brasil de Lima Jr., essencial
frisar, juntamente com Lessa, que "embora as motivaes econmicas tenham
tido um peso importante, no nos parece apropriado atribuir campanha
antiestatizante exclusivamente aos efeitos da crise econmica. Na verdade, ela
comeou antes que tais efeitos se tornassem plenamente visveis, quando as
elites econmicas e as autoridades governamentais ainda estavam influenciadas
pelo clima de otimismo gerado pela era do milagre" (Diniz e Lima Jr., 1986: 61).
Na verdade, as crticas ao crescimento "excessivo" e incontrolvel das firmas
estatais e os protestos diante da ampliao e aprofundamento dos controles
burocrticos (e, notadamente, financeiros) do Estado sobre a economia, "tiveram
uma dimenso poltica bastante significativa. Alm disso, a partir de certo
momento, as demandas polticas tornaram-se prioritrias" (Diniz e Lima Jr., 1986:
75; grifos meus). Como isso ocorreu?
Diferentemente de Lessa, no foi uma inclinao sbita pelo liberalismo poltico,
mas a sensao de marginalizao crescente por parte do conjunto do
empresariado nacional dos centros decisrios mais importantes, imposto a partir
de 1974 com o esvaziamento dos procedimentos usuais de articulao de
interesses e a concentrao de poder nos escales mais altos do sistema estatal, que teria, de fato, desencadeado demandas crescentes por uma maior
12 "Creio [portanto] no exagerar ao atribuir taxativa voluntarstica de superimpor uma estratgiaque no articulava os interesses de maior peso na economia brasileira e ao estilo autoritrio quepresidiu suas medidas de implementao, um efeito catalisador ao nvel da conscincia doempresariado" (Carlos Lessa, Gazeta Mercantil, 29/04/1980, pp. 33 e 34, respectivamente). Parauma repetio pouco inspirada das mesmas teses e concluses, v. Malan, 1981.
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participao na definio dos contedos da poltica econmica a campanha
contra a estatizao seria, portanto, uma conseqncia mais ou menos lgica
desse desejo explcito de disciplinar, in loco, a interveno indevida do Estado no
mercado atravs da reedificao de mecanismos corporativistas que revertessem
o carter "burocrtico", "fechado", "elitista" e "excludente" do processo decisrio.
Assim, segundo Diniz e Boschi, deveria haver uma "correspondncia" significativa
"entre as demandas polticas por maior participao e as crticas ao processo de
estatizao, j que [era] precisamente no sentido de manter o Estado dentro [de
certos] limites" bem especficos, em reas que no impli[cassem] qualquer tipo de
competio com a empresa privada, "que se torna[va] crucial o controle poltico
dos rumos de sua interveno na economia" (Diniz e Boschi, 1978: 191)13. Como
enfatizou um protagonista do movimento, "Atualmente [isto , 1974/1975], asorganizaes de classe agem de forma limitada, sem influir na fase decisria [dos
conselhos econmicos]. So ouvidas em carter gracioso por um ato de
condescendncia por parte do governo, e no por direito e obrigao". Portanto,
"restaurar a participao nos conselhos uma necessidade. uma forma de
evitar a estatizao, dada a possibilidade do empresariado dialogar com o governo
oficialmente e apresentar sugestes que influiriam nas decises" (Entrevista com
empresrio realizada em 02/12/1975; apudBoschi, 1979: 159)14.
Logo, pode-se dizer que o sentido ltimo dessa motivao antiestatizante dizia
mais respeito natureza "autoritria" do regime poltico, reforado pela reforma
administrativa de 1974, do que ao novo papel auto-concedido do Estado na
economia. Embora este ltimo tivesse tornado-se, atravs de suas empresas, um
problema crucial para as firmas privadas, no rivalizava em importncia com a
perda de acesso privilegiado ao topo do aparelho do Estado ditatorial.
13 Para a mesma posio, v. Boschi, 1979: 159-160: o ressentimento dos empresrios da suaexcluso do processo decisrio " talvez o fato bsico subjacente campanha contra aestatizao" (Boschi, 1979: 226). Cf. tambm Pessanha, 1981: 154-155.14 Tambm de acordo com Luciano Martins, os empresrios que protestavam contra a estatizaoestavam na verdade reclamando da perda de acesso (a partir do governo Geisel) s instnciasmais altas do processo de tomada de deciso, ou seja, do bloqueio dos canais de representaode seus interesses.Cf. Martins, 1978: 31.
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Essa a hiptese que nos parece mais produtiva para explicar a repentina
converso do grande empresariado brasileiro ao liberalismo poltica e econmico e
sua contestao aberta ao "modelo poltico". Foi exatamente isso que procuramos
demonstrar em trabalho anterior (cf. Codato, 1997: 229 e segs.).
Antes de avanarmos, faamos, porm, um resumo das posies da literatura
at aqui.
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Quadro 1
Principais explicaes sobre as causas da ecloso da campanha contra a
estatizao da economia brasileira em meados dos anos setenta
causas ideolgicas causas econmicas causas polticas
o descontentamento doempresariado brasileiro
deve-se a umconhecimento falseadodos papis e funes do
Estado no capitalismomonopolista
o projeto econmico dogoverno Geisel
pretendia alterar asrelaes seja entre o
"setor pblico" e o
"setor privado", seja asposies relativas dosdiversos segmentos do
capital privado
o liberalismo econmicoadvogado na campanhacontra a estatizao foi a
senha para a reivindicaoprincipal: o liberalismo
poltico
- Fernando HenriqueCardoso, 1976
- Joo Manoel Cardosode Mello, 1977
- Luiz Gonzaga de MelloBelluzzo, 1977
- Luciano Coutinho,1977
- Gilberto Mathias, 1977
- Sebastio Cruz,1984
- Sebastio Cruz, s.d.(1995)
- Carlos EstevamMartins, 1977
- Guillermo O'Donnell,1987 (1975)
- Carlos Lessa, 1980
- Fernando HenriqueCardoso, 1983
o fundamento real da
campanha antiestatista seriaa marginalizao crescentedos crculos decisrios
governamentais imposta aogrande empresariado
- Eli Diniz e RenatoBoschi, 1978
- Luciano Martins, 1978
- Renato Boschi, 1979
- Charles Pessanha, 1981
- Eli Diniz e Olavo Brasilde Lima Jr., 1986
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III. A campanha antiestatista
Pode-se sem dvida situar o ponto de partida da campanha contra a
estatizao a partir das crticas firmadas por Eugnio Gudin publicadas na
imprensa conservadora em fins de 1974. No discurso que pronunciou ao receber o
ttulo de "Homem de Viso" do ano e que ganharia notvel repercusso poltica
, Gudin alertou os empresrios para o fato de que, embora vivssemos, "em
princpio, em sistema capitalista, [...] o capitalismo brasileiro [era] mais controlado
pelo Estado do que o de qualquer outro pas, com exceo dos comunistas.
Setores industriais, como os de energia eltrica, siderurgia, petrleo, navegao,
portos, estradas de ferro, telefones, petroqumica, lcalis e grande parte do
minrio de ferro, que nos Estados Unidos esto nas mos das empresas privadas,
foram no Brasil absorvidos pelo Estado. Bem assim, em grande parte, a rede
bancria que controla o crdito para as empresas privadas" (Gudin, 1975: 9).
Essa concepo acerca do "tamanho do Estado" e da natureza da sua
"interveno" no "sistema econmico" estava fundada numa avaliao
particularmente crtica do processo de expanso das suas atividades produtivas
que ganharam notvel impulso com o Decreto-lei n 200/6715. Da que a
liberalidade crescente do "setor pblico descentralizado" diante da "administrao
direta", a adoo de uma lgica de operao estritamente mercantil e a
constituio, no interior das empresas governamentais, de uma camada especial
de funcionrios os "executivos do Estado" com baixa responsabilidade
pblica e quase nenhum controle poltico, levaria uma parcela expressiva da
grande burguesia brasileira a discutir e questionar os limites de ao do "Estado-
empresrio", bem como o "capitalismo sui generis", na expresso de Gudin,
implantado no Brasil aps 1964.
Segundo algumas vises mais radicais, como a sustentada pela AssociaoComercial de So Paulo, vivia-se mesmo o risco iminente da "socializao" dos
15 Conforme inmeros estudos estabeleceram, o Decreto em questo ao sublinhar o princpio dadescentralizao administrativa e conferir s empresas pblicas a personalidade jurdica de direitoprivado ("sociedades de economia mista") forneceu um impulso decisivo autonomizao doaparelho econmico produtivo do Estado. Cf., por exemplo, Warlich, 1980.
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meios de produo: "Em fase histrica no curso da qual o Estado avana, cada
vez mais, no setor privado, tornando-se empresrio em reas at agora ocupadas
pelos particulares, impe-se o combate, a fim de se evitar a estatizao totale,
com ela, a socializao. Esta viria por via de conseqncia, na esteira do
crescimento do Estado, de sua participao no PIB, de sua extenso como
empresrio. Se j temos o Estado banqueiro, o Estado industrial, o Estado
agricultor, no ser difcil que o poder pblico acabe por absorver a totalidade dos
setores econmicos, impondo o planejamentotambm total. Nesse dia estaramos
introduzidos, por inteiro, no socialismo. No , evidentemente, o projeto do
governo atual, como no foi o dos governos emanados da Revoluo de 31 de
maro, at agora. Mas se no se mostrar aos detentores do poder que a economia
se beneficia somente pelo revigoramento do setor privado, pela garantia daliberdade de iniciativa, pelo direito de empresa assegurado a todos, o Leviathan
acaba adquirindo as dimenses de um dinossauro" (Editorial ("Apresentao") de
Digesto Econmico, 1976; grifos meus).
Como, segundo a conscincia empresarial, havamos chegado a um ponto to
crtico, ameaando at mesmo a "economia de mercado"? Qual seria a base
palpvel desse processo inelutvel de multiplicao incontrolvel das atividades
do Estado?
No era exatamente correto sustentar, advertia Gudin, que o Estado via-se
"forado a intervir no sistema econmico", quando, na realidade, era o "inverso"
que se verificava. "Via de regra, o Estado cria[va] condies em que a empresa
privada no mais podia funcionar" (Gudin, 1978: 408). Por que isso ocorreu? "
bastante generalizada e no sem fundamento a opinio de que as vicissitudes por
que passam os empresrios que batem s portas do BNDE decorrem
freqentemente da mentalidade estatizante, lucrativista e burocrtica dos altosfuncionrios geralmente designados por segundo escalo, que sofrem de uma
viso por demais introvertida da finalidade da instituio a que lealmente servem
[...] Tive ocasio de observar este fato [o domnio da burocracia] na administrao
das estradas de ferro e servios de utilidade pblica em que os funcionrios das
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empresas perdiam a noo de que sua finalidade precpua era 'servir o pblico',
mais do que defender os lucros da empresa" (Gudin, 1978: 423)16.
Mas ao lado desse ethos"privatista" dominante na burocracia pblica havia um
problema bem mais grave e que constitua, por assim dizer, o "pano de fundo"
desse comportamento: a centralizao do crdito pblico e o controle, pelo
Estado, da quase totalidade dos investimentos produtivos a partir do
fortalecimento do "sistema BNDE". Esse era "o fator capital da estatizao"
(Gudin, 1978: 430)17.
Jorge Gerdau Johanpeter (do Grupo Gerdau) resumiu bastante bem essa viso:
"Existe um [...] fenmeno que tem caracterizado a orientao do planejamento
econmico do Pas. a conduo de toda a poupana. A poupana brasileira,
hoje, toda compulsria. [...] Dessa forma, extremamente difcil, uma vez que o
Estado esteja com a poupana em suas mos, fazer fluir esses recursos para
estimular, em grande parte, as atividades empresariais privadas". isso que
caracteriza a estatizao de "uma economia como a nossa. [...] O governo tem
que saber reequacionar esse esquema" (O Estado de S. Paulo, 04/04/1976, pp. 4-
05).
A "estatizao do crdito" era, contudo, apenas a face mais visvel de uma
questo que, de fato, mobilizava um leque bastante heterogneo de lideranas
empresariais. Celso Lafer, da FIESP, teve o mrito de expressar as motivaes
reais desse descontentamento difuso com o novo desenho do sistema decisrio:
"De que modo pergunto so alocados e controlados esses recursos, fruto de
operaes de crdito do Estado? So decises que, basicamente, esto nas mos
do Executivo, inclusive legalmente falando, porque so decises do Conselho
Monetrio Nacional, so decises que esto nas mos do Banco Central e assim
16 Embora o prprio Presidente Geisel tivesse bons propsitos e reafirmasse, claramente, "aorientao antiestatizante do [...] governo", enfrentava sensveis dificuldades para implementarseus objetivos. A principal delas resultava exatamente "do poder dissimulado do segundo escalo,espcie de eminncia parda, que trava quando no distorceo pensamento do governo. sabendodisso, isto , conhecendo esse poder, que o esquerdismo procura, em suas tticas sub-reptcias,alojar elementos seus no seio do segundo escalo" (Gudin, 1978: 427).17 Sobre a centralidade dessa questo, v. tambm O Estado de S. Paulo, 02/02/1975 e 21/05/1976.V., igualmente, Cruz, 1984, passim.
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sucessivamente. So decises tomadas, portanto, dentro do Executivo. O restante
da sociedade civil no tem condies de articular ou sequer de propor,
eventualmente, um esquema de realocao desses recursos de maneira
alternativa. No existem condies porque no h o canal de comunicao direto,
inclusive. Assim, o processo decisrio est enfeixado nas mos do Estado. Nem
sequer transita pelo Legislativo. [...] Se esse tipo de deciso [aplicao de
recursos pblicos em reas privadas estratgicas] ou se algumas dessas
decises, que no so decises-chave apenas para o Estado, mas para a
sociedade civil tambm, estivessem institucionalmente sujeitas ao crivo de uma
discusso mais ampla, em que outros critrios fossem levados em considerao,
no digo na deciso, mas na preparao da deciso, talvez se pudesse conduzir
um pouco dessa poupana compulsria de maneira um pouco diferente daquelaque est sendo conduzida" (O Estado de S. Paulo, 04/04/1976, 05; grifos meus).
S assim seria possvel reverter o processo crescente de estatizao da
economia.
Assim, de uma perspectiva mais ampla, o argumento central da campanha
antiestatista, sustentado por todos os seus representantes, pode ser assim
resumido: a paralisia da empresa privada diante do "avano da estatizao da
economia" decorreria, basicamente, da centralizao do crdito nos bancosoficiais (BNDE e Banco do Brasil, principalmente), mediante a transferncia
foradados fundos sociais (PIS, PASEP, FGTS) para suas respectivas rbitas,
aliado ao baixo grau de controle "social" sobre o processo de alocao desses
recursos em funo de um sistema decisrio bastante autnomo, do monoplio de
setores produtivos estratgicos pelo setor pblico e do enorme poder regulador do
Estado em "matria econmica". A atrofia da "livre iniciativa" resultante desse
conjunto de entraves geraria, por sua vez, uma srie de "espaos vazios" na
cadeia produtiva que teriam ento de ser preenchidos pelo prprio Estado e suas
empresas. De acordo com esse raciocnio circular, o "intervencionismo" estatal
produziria sempre mais intervencionismo, culminando, enfim, no cancelamento da
economia de mercado em nome do estabelecimento de um "capitalismo de
Estado" no Brasil (Gudin, 1978: 436). Para romper esse crculo nada virtuoso,
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seria necessrio uma modificao radical da "tecnologia organizativa" do Estado
ditatorial, inclusive para aperfeioar o andamento do prprio processo de
liberalizao. Portanto, no apenas a implementao de um programa amplo de
privatizao, mas tambm a tessitura de um novo modelo poltico exigia a
"institucionalizao do dilogo". Poltica e economia s poderiam reformar-se s
custas da retomada de um padro de negociao corporativo. Seno vejamos.
Na viso de Gudin, se o processo "abrangente de estatizao da economia
nacional" merecia muito mais do que alguns reparos pontuais, a estratgia poltica
traada pelo governo Geisel o aperfeioamento gradual e seguro de um
"regime democrtico" plenamente adaptado, segundo o primeiro, s
caractersticas do Pas e conforme o estgio alcanado tanto pelo seu
desenvolvimento social como pelo desenvolvimento poltico correspondente a este
ltimo exigiria, para ser executada, a efetiva ampliao dos contatos entre
empresa privada e governo e uma verdadeira promoo da participao das elites
"responsveis" no sistema poltico. "O que tem dificultado a execuo [dessa
estratgia] o hermetismo [...] preciso abrir o dilogo" (Gudin, 1978: 7). Esse
"dilogo", contudo, sendo de toda forma fundamental para o encaminhamento das
questes polticas, adquiria em economia um carter estratgico.
A desativao dos rgos colegiados que reuniam representantes corporativos
dos diferentes ramos da "produo" e, por isso, a ausncia de canais de
comunicao com o Executivo impediam, sistematicamente, a interveno dos
"setores interessados" para corrigir essas distores no modelo econmico,
agravando assim "o gigantismo das empresas do Estado" (Gudin). Conforme
enfatizou Claudio Bardella, presidente da ABDIB, "praticamente no h, hoje,
participao da iniciativa privado nos rgos do governo que tm poder decisrio.
Nossa participao de bastidores, sem influncia direta em decises que nosafetam diretamente". A reformulao do Conselho de Desenvolvimento Industrial
(CDI), por exemplo, "deixou no condicional a participao do setor privado em
decises governamentais na rea industrial", praticamente impedindo qualquer
ao empresarial mais eficaz junto ao processo deliberativo da agncia
encarregada de administrar toda sorte de incentivos fiscais. Assim, "o governo
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deve[ria] rever sua posio, permitindo maior representao empresarial em seus
rgos de deciso. [...] No adianta o dilogo se, no momento final, a deciso
cabe [exclusivamente] a rgos governamentais. Desta maneira, o empresrio
marginalizado e o dilogo [torna-se] praticamente ineficaz, apesar de existir. [...]
Ademais, "a experincia mostra que a participao empresarial em rgos
governamentais importante e benfica para o Pas", como no caso da Carteira
de Comrcio Exterior (CACEX) do Banco do Brasil (Jornal do Brasil, 31/05/1976,
p. 15)18.
No outro lado da cena poltica, a situao no era mais confortvel, uma vez
que a luta burguesa contra a estatizao encontrava um srio limite de
articulao/expanso no Parlamento. O MDB, que poderia fornecer uma base
institucional para um programa de oposio mais amplo para o movimento,
possua uma proposta econmica que ou diferia muito pouco da matriz
"estatizante", ou mesmo, nesse particular, no encontrava muitos motivos para
denunciar a poltica econmica oficial (cf. Kinzo, 1988, passim). Motta lembrou que
"no incio de 1975, o Jornal do Brasilfez uma pesquisa de opinio entre os
congressistas. Uma das perguntas era [justamente] sobre a participao do
Estado na economia. Entre os parlamentares do MDB, 60% eram a favor do
aumento da presena estatal na economia, enquanto 22% defendiam sua reduoe 18% a sua manuteno nos patamares ento vigentes" (Motta, 1996: 208, n.
13). Tambm na ARENA era difcil repercutir as demandas por "menos Estado". O
lder da maioria, Jos Bonifcio (ARENA-MG), afirmou, por exemplo, em meados
de 1976, que "a ARENA vai defender a presena estatal em todos os setores
fundamentais segurana nacional ou necessrios ao desenvolvimento do Pas
[...] Sou pela estatizao no sentido de que o Estado no deve abrir mo de
18 Essa era, com efeito, uma demanda constante. Manoel Gomes, secretrio-geral da AssociaoBrasileira das Indstrias de Fundio de Ferro e Ao, insistiu que "a posio hoje de simplesinformantes de rgos do governo no traz a agilizao necessria ao andamento da burocraciagovernamental. O empresrio deveria participar de rgos do governo ativamente [atravs deentidades como a ABDIB e o Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), inclusive "com direito a voto"],emprestando sua experincia para a soluo de problemas do setor" siderrgico. "No nosso caso,deveramos participar do CONSIDER [Conselho de No-Ferrosos e de Siderurgia]" (Jornal doBrasil, 31/05/1976, p. 15).
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nenhuma de suas organizaes em favor dos particulares" (apudLessa, Gazeta
Mercantil, 29/04/1980, p. 33).
Na medida em que o conjunto da burguesia nacional via-se marginalizado do
processo de definio da poltica econmica, e o mecanismo informal de consulta
(o "dilogo") no conduzia efetivamente a decises concretas, s a presena
direta nos prprios aparelhos do Estado, imaginava-se, poderia deter o processo
crescente de estatizao da economia. Logo, a participao "em rgos do
governo, atravs do CDE, [principalmente], seria um dos fatores essenciais para [a
adoo efetiva de] uma poltica de desestatizao da economia nacional" (Jornal
do Brasil, 22/05/1976)19. Por isso, vrias propostas foram feitas por diferentes
entidades de classe com o objetivo explcito de recriar, no interior do Estado
ditatorial, conselhos consultivos que abrigassem alguma sorte de representao
corporativa.
Assim, no final de julho de 1975, O Estado de S. Paulodivulgou um documento
da Associao Comercial de So Paulo, onde se esboava uma anlise genrica
das causas do processo "estatizante" e conclua-se que a criao de um conselho
especial, reunindo representantes do governo, da "iniciativa privada" e da
Universidade, seria a melhor forma de estudar o problema e oferecer medidas
objetivas para san-lo. A Federao das Indstrias do Rio de Janeiro (FIRJAN)
tambm props que se abrisse s "classes empresariais" algum tipo de canal que
contemplasse uma representao corporativa onde se pudesse discutir
amplamente o tema da estatizao da economia e implementar polticas restritivas
ou inibidoras nesse sentido. Sugeriu-se assim a criao de uma "Comisso
Consultiva de Desenvolvimento Empresarial (CCDE)", encarregada explicitamente
de desenvolver no s uma "doutrina", mas antes de tudo uma prtica que
19 Mas essa presena corporativa no estaria restrita apenas ao Conselho de DesenvolvimentoEconmico. A Federao das Indstrias do Estado de So Paulo e a Associao Comercial do Riode Janeiro sugeriram Secretaria de Planejamento da Presidncia da Repblica, na mesmapoca, uma participao mais ampla nos outros conselhos econmicos (Conselho deDesenvolvimento Industrial, Conselho de Poltica Aduaneira, Conselho de Interministerial dePreos, Conselho de Monetrio Nacional etc.), "a fim de garantir um tratamento [mais] eqitativoentre empresas pblicas e privadas" (apudGuimares, 1977: 42-43).
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limitasse a expanso estatal e zelasse pelo cumprimento das medidas tomadas
nessa esfera20.
Por tudo isso, preciso notar que a questo da democracia polticano se
colocava nos mesmos termos que a soluo proposta para reaver a liberdade
econmica usurpada pelo "regime autoritrio". Assim, deve-se separar nitidamente
as manifestaes de descontentamento diante do formato institucional que o
sistema decisrio assumiu a partir da reforma administrativa liderada pela
instituio do Conselho de Desenvolvimento Econmico da oposio forma
ditatorial do regime poltico; e, igualmente, resistir tentao de fundir o debate
pela restaurao de canais privilegiados de acesso ao aparelho do Estado com a
luta pelo aprofundamento da liberalizao poltica. Foi isso, de resto, o que o
principal lder ideolgico da campanha antiestatizante sublinhou em seu manifesto
liberal.
Uma vez que se evoluiu, desde o governo Castello Branco, para "uma situao
condizente com as circunstncias, a poca e as lies da experincia", seria agora
"uma imprudncia cedermos tentao ideolgica [...] de um regime de plena
democracia, sem os necessrios parapeitos de resguardo contra os abusos que
poderiam destru-la" (Gudin, 1978: 6). Ao contrrio: "Havemos de caminhar, dentro
da filosofia exposta pelo Presidente [Geisel], para um sistema que no se afaste
dos princpios da Constituio de 1967 [...] Comeando por devolver ao Poder
Judicirio as garantias de inteira independncia inerente sua funo em um Pas
civilizado. Restabelecendo a vigncia dos direitos fundamentais, mas ao mesmo
tempo formulando e promulgando leis eficazes de salvaguarda e remdios legais,
prontos e seguros, indispensveis garantia da ordem e da segurana para o
exerccio do governo" (Gudin, 1978: 7)21.
20 Cf., respectivamente, O Estado de S. Paulo, 27/07/1975 e 25/05/1976; apudCruz, 1984: 41, 165e 173, respectivamente.21 Sintomtico do processo de dissociao poltica e ideolgica entre os temas da "estatizao" eda "democratizao" entre os empresrios a revista Digesto Econmico, publicada pelaAssociao Comercial de So Paulo. Mesmo uma rpida inspeo nos seus artigos permitedetectar que, se ela participou vivamente da crtica ao "Estado-empresrio", no publicou, noperodo, qualquer artigo em defesa das "liberdades democrticas". Como seus editores fizeramquesto de enfatizar: "o Digesto Econmicotem uma constante na sua orientao: defende a livre
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Mas a oposio empresarial, foroso notar, embora no tocasse diretamente
na questo do autoritarismo poltico, no deve ser compreendida apenas em
funo de uma motivao economicista. A campanha contra a estatizao, vista
como um movimento de classe, e no s como o subproduto ideolgico de um
desconhecimento grosseiro dos papis do Estado capitalista dependente, surgiu,
antes, como uma reao poltica transformao radical do processo decisrio
efetivada pelo governo Geisel. Ademais, sua prpria existncia deveria debilitar as
bases do regime, pois a mera manifestao pblica de um dissenso, que no
podia ser simplesmente reprimido ou ignorado, contrastava com a pretenso do
Estado ditatorial ser o nico e verdadeiro promotor do interesse nacional (cf. Cruz
e Martins, 1983: 54).
Ao lado das demandas de natureza essencialmente econmica ("crescimento
da interveno do Estado", autonomia "excessiva" das empresas estatais, padres
desiguais de concorrncia entre as firmas privadas e as empresas do governo
etc.), o movimento antiestatizante teve, ao que tudo indica, "uma dimenso poltica
bastante significativa". Mas, mais do que isso: "a partir de certo momento, as
demandas polticas tornaram-se prioritrias". O processo de centralizao do
poder nas cpulas do Executivo federal, o acrscimo da autonomia dos
"tecnocratas" responsveis pela poltica econmica, juntamente com a"marginalizao do empresariado do processo decisrio", propiciado pelo
"esvaziamento dos mecanismos de articulao poltica e [pelo] bloqueio das
estruturas de mediao entre o Estado e a sociedade", levava adoo de uma
srie de medidas que comprometiam a "livre iniciativa" e conduziam ao
"desvirtuamento das funes do Estado" (Diniz e Lima Jr., 1986: 75 e 62,
respectivamente)22. A percepo ento dominante "apontava o carter fechado do
iniciativa; admite a tese da participao do Estado na economia, supletivamente, em setores queanimem o capital privado e sejam prioritrios; est ao lado da implantao das usinas nuclearespara gerao de energia [...]; proclama, intransigentemente, os direitos da pessoa, assentadossobre os fundamentos da doutrina crist; no faz concesses de nenhuma espcie ideologiacomunista, que considera uma peste, susceptvel de arrastar tragdia sem remdio o mundomoderno [...]" (Editorial ("Apresentao") de DigestoEconmico, 1977).22 Essa interpretao particular do processo poltico pode ser confirmada a partir dos resultados dapesquisa realizada por Eli Diniz e Renato Boschi entre 1975/1976 junto aos trinta empresrios maisrepresentativos da indstria brasileira. Cf. Diniz e Boschi, 1978: 185-193, especialmente.
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sistema decisrio, sua burocratizao crescente e a marginalizao da empresa
privada como os principais traos do sistema poltico consolidado no Pas pelos
governos ps-64. Segundo a viso dessa elite, a concentrao de poderes nos
altos escales burocrticos teria reduzido o espao para a atuao poltica da
classe empresarial, privando-a dos meios para o exerccio da influncia sobre
decises cruciais para o pleno desenvolvimento de suas atividades" (Diniz e Lima
Jr., 1986: 93, n. 100)23.
Assim, a poltica encontrava-se no ponto de partida e de chegada desse
movimento. Em meados de 1977, esse fato havia-se tornado indisfarvel. "Em
Manaus, na abertura do XII Congresso Nacional de Bancos, uma sintomtica
simbiose entre a profisso de f democratizante do presidente da Federao
Nacional de Bancos, Theophilo de Azeredo Santos, a extensa exegese do modelo
institucional feita pelo Presidente Ernesto Geisel e a renovada aposta do Ministro
Simonsen na iniciativa privada, indi[cou] aos banqueiros presentes que estavam
findos os tempos em que a estatizao era assunto restrito apenas s fronteiras
da economia. Melhor seria dizer, em vista do aprofundamento ao qual o tema foi
submetido, que atualmente difcil falar em estatizao sem falar em poltica. Seja
pela via da interao entre a livre iniciativa e a democracia, seja pelo vis mais
simplista de repesar a participao do empresariado no processo de obteno doconsenso, pelo menos (e por enquanto) na rea especfica de seus negcios [...]"
(Gazeta Mercantil, 03/08/1977, p. 6, grifos meus).
IV. Uma explicao alternativa
Toda "reforma administrativa" produz uma srie de efeitospolticosque
ultrapassam a mera reorganizao dos organogramas de governo.
Nesse sentido, a constituio de um dispositivo unificador da imensa
aparelhagem institucional do Estado ditatorial o Conselho de Desenvolvimento
Econmico tendeu a reforar o centralismo burocrticoe os mecanismos
23 Uma verso atualizada dessas concluses pode ser encontrada em Diniz, 1994: 198-231.
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internos de superviso e controle, especialmente mediante a multiplicao das
relaes de autoridade a que foram submetidos os membros mais importantes da
administrao pblica. Mas no s. Paralelamente, a "expulso" dos
representantes de classe de cada centro decisrio importante e, nesse
particular, so ilustrativas as alteraes na composio do CMN, do CDI, do CIP e
do CONSIDER permitiu um acrscimo da autonomia relativa do Estado frente
aos interesses especficos de cada setor, grupo ou frao dominante e uma maior
liberdade de ao dos crculos dirigentes e, especificamente, da Presidncia da
Repblica.
Contudo, em funo da extraordinria rigidez do Estado ditatorial, da
cristalizao de privilgios de todo tipo no seu seio e dos mltiplos "feudos"
burocrticos criados a partir da autonomia financeira ou administrativa das
agncias que compunham o sistema estatal, qualquer alterao nesse arranjo,
mesmo a mais simples, deveria atingir diretamente o ncleo dessa complexa
"engenharia institucional", pondo assim em risco um sistema particular de
realizao de interesses e ao de classe (cf. Poulantzas, 1975: 109). Nesse
contexto, minha tese que o estreitamento dos canais de influncia e presso
burguesas sobre o processo decisrio promovido pelo governo Geisel est, entre
outros fatores, na origem da "rebelio empresarial", representada, nessaconjuntura, pelas campanhas contra a "estatizao" da economia (1974/1976) e
pela "(re)democratizao" do sistema poltico (1977/1978).
Evidentemente, seria arriscado (e falso) retirar da o mvel exclusivo de todos
os conflitos entre a burguesia e seu Estado nesse perodo. Alm disso, as duas
"campanhas" no so, certamente, como alguns estudos estabeleceram,
acontecimentos nem contnuos, nem idnticos entre si. Mas, na srie de
ocorrncias (ideolgicas e/ou econmicas), de importncia diversa, queconduziram, ainda que de forma hesitante e flutuante, parte significativa das
fraes dominantes para o "campo das oposies" na segunda metade dos anos
70, o "fechamento" do aparelho do Estado a demandas muito localizadas e
particularistas teve, como se pretende demonstrar, um peso especfico.
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Desse ponto de vista estrito, que relao h entre essas duas campanhas?
Existe um fato bsico que subjaz aos dois movimentos? A partir desses poucos
elementos acima destacados, acredito ser permitido fazer aqui uma observao.
Do meu ponto de vista, as mudanas impostas organizao e ao modo de
funcionamento do aparelho do Estado a partir de 1974 e suas conseqncias
sobre o sistema de representao de interesses dominantes implicaram, em
termos gerais, a articulao de uma srie de demandas esparsas por maior
presena e influncia nas arenas decisrias estratgicas, culminando na
unificao das bandeiras da "desestatizao" e da "(re)democratizao" sob o
lema genrico da necessidade de restaurao da "participao empresarial" nos
principais conselhos econmicos. Este foi, sem dvida, um dos elementos, cuja
importncia no pode ser desprezada, que detonaram o movimento de oposio
do conjunto das fraes dominantes "poltica autoritria"24.
A relevncia dessa questo fica mais ntida luz de algumas consideraes,
ainda que necessariamente esquemticas, sobre o padro de relao Estado-
sociedade no Brasil ps-64. Elas permitem avaliar o alcance que a disputa em
torno do problema da "representao de interesses" plasmado segundo o
modelo do "corporativismo" representou nessa conjuntura em particular.
Quando se considera essa questo preciso, todavia, insistir antes sobre um
aspecto fundamental: se nas diferentes formas que o Estado capitalista pode
assumir democracia representativa ou ditadura, civil ("bonapartismo") ou militar
os partidos polticos e associaes de classe so instrumentos especficos de
organizao das fraes dominantes, eles no so os nicos. Como notou
Poulantzas, "para o bloco no poder [...], ainda que os partidos polticos
permaneam o meio privilegiado de organizao, o conjunto dos ramos e
24 Note bem: afirmar que as fraes burguesas harmonizaram seus interesses fundamentais emtorno de uma questo a "participao" no, ou melhor, a excluso do processo decisrio nosignifica, ipsofacto, dizer que no existissem interesses divergentes entre as classes dominantesno Brasil, mas que, nessa conjuntura precisa, eles no chegaram a se desenvolver politicamentede forma antagnica, o que, evidentemente, no exclui um certo grau de competio "intra-elites"pela participao privilegiada em todo o tipo de favores governamentais (financiamentossubsidiados, linhas de crdito preferenciais, indicaes polticas, postos de influncia no aparelhodo Estado etc.).
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aparelhos de Estado que pode acessoriamente desempenhar esse papel [...]
[Dessa forma,] o papel de organizao poltica do bloco no poder pode, portanto,
ser preenchido, em toda forma de Estado burgus, pelo conjunto dos aparelhos de
Estado [...] Conseqentemente, esses diversos aparelhos e ramos do Estado
constituem, freqentemente, praas fortes e basties privilegiados de organizao
de tal ou qual frao do bloco no poder" (Poulantzas, 1975: 120-121; grifado no
original).
Ocorre que, num regime caracterizado por um "pluralismo limitado" (Linz, 1979:
320) isto , que suprimiu, atravs de uma srie de regulamentaes estritas
sobre o sistema poltico, os representantes tradicionais das prprias fraes do
bloco no poder (seja por meio da extino do sistema partidrio populista e sua
substituio controlada por um outro, artificialmente bipolar, seja por meio da srie
de cassaes, destituies e depuraes que se seguiram ao golpe poltico-
militar), reduziu as funes do sufrgio, rebaixou as do Legislativo (notadamente
em matria oramentria) e imps um controle severo sobre as "liberdades
polticas" em geral , essa funo de "organizao" torna-se particularmente
aguda. Somadas s caractersticas que o sistema estatal progressivamente
adquiriu durante sua evoluo institucional e s atribuies que historicamente o
aparelho do Estado no Brasil freqentemente desempenhou, as funes dasdiversas agncias burocrticas, enquanto arenas polticas de conciliao de
demandas e expresso de interesses, atingiram, nesse contexto, seu grau
mximo. Desse ponto de vista, no constitui exatamente uma novidade notar que
houve, notadamente aps 1968, uma correlao positiva entre o fechamento
progressivo da cena poltica e uma abertura cada vez mais consistente de canais
institucionais de participao e influncia diretamente no seio dos aparelhos do
Estado ditatorial.
Por outro lado, assim como a ditadura militar permitiu a regulao dos conflitos
internos do bloco no poder atravs da representao "orgnica" das diversas
fraes da classe dominante no seio dos aparelhos do Estado, no se pode
esquecer, porm, que a "vinculao compartimentalizada entre esferas da
burocracia estatal e setores especficos da atividade privada" teve um impacto
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decisivo "sobre a capacidade de coordenao do prprio Estado" (Diniz e Boschi,
1986: 19). Dessa forma, todas as tentativas mais ou menos isoladas de disciplinar
e enquadrar essa relao, negar a entropia do sistema estatal e hierarquizar as
demandas no interior do processo decisrio convergiram para uma transformao
brusca desse esquema, efetivada essencialmente a partir de 1974 com a criao
do CDE e da SEPLAN.
A "reforma administrativa" do governo Geisel deveria produzir, assim, para alm
dos seus efeitos burocrticos, um desarranjo relativamente grave no sistema
tradicional de posies relativas ocupadas pelos diferentes grupos capitalistas no
interior do sistema estatal, dificultando, de forma crescente, sua participao direta
no policy-making. Nesse contexto, o corporativismo das classes dominantes, que
havia se convertido na "frmula ideal" para garantir uma presena diferenciada no
seio do Estado ditatorial, seria ento posto em questo. As reaes burguesas
que da se seguiram e as diversas aes para restabelecer um determinado
formato institucional de representao de interesses so assim estratgicas no
s para estimar o significado e o alcance das modificaes na estrutura do
sistema de decises, mas tambm para compreender concretamente as relaes
entre "Estado" e "sociedade" numa conjuntura decisiva da poltica brasileira.
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