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8/16/2019 Condição de Estudante
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NTRO UÇÃO
O ofício de estudante
A primeira tarefa que um estudante deve realizar quando ele
chega à universidade é aprender o ofício de estudante. Paradoxo,
objetarão alguns, porque ser estudante é um status social provisório
que, diferente de um ofício, dura apenas alguns anos. Esse é,
precisamente, o principal problema que encontram os estudantes
manter-se por vários anos na universidade, especialmente além do
primeiro ano, onde se dá, na França, um conhecido fracasso. Hoje, o
problema não é entrar na universidade, mas continuar nela. O
crescimento da demanda social por formação superior e das
possibilidades de acolhimento, as diversas reformas que foram
realizadas ao longo dos últimos vinte anos não resultaram numa
mudança sensível das taxas de fracasso e abandono observadas. Para
compreender esse fenômeno, é necessário abrir a caixa preta da
seleção na universidade e tentar ver, pela prát ica de uma etnografia
de campo, como se fracassa, quais são os mecanismos e as conexões
internas desse processo de seleção e de classificação social que
distingue aqueles que permanecerão estudantes daqueles que serão
excluídos.
Aprender o ofício de estudante significa que é necessário
aprender a se tornar um deles para não ser eliminado ou auto
eliminar-se porque se continuou como um estrangeiro nesse mundo
novo. A entrada na vida universitária é como uma passagem: é
necessário passar do estatuto de aluno ao de estudante . Como toda
passagem, ela necessita de uma iniciação. O trabalho que eu apresento
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aqui se funda sobre a hipótese de que os estudantes que n1 o
conseguem afil iar-se fracassam. Eu entendo por afiliação o método
através do qual alguém adquire um status social novo. O estudante
deve mostrar seu
savoir faire2
na medida em que ele é uma condição
do sucesso. Ter sucesso significa que fomos reconhecidos como
socialmente competentes, que os saberes que adquirimos foram
legitimados. Se o fracasso e o abandono são numerosos ao longo do
primeiro ano é precisamente porque a adequação entre as exigências
acadêmicas, em termos de conteÚdos intelectuais, métodos de
exposição do saber e dos conhecimentos e os
l abitlls
dos estudantes,
que são ainda alunos, não aconteceu. O aluno deve adaptar-se aos
códigos do ensino superior, aprender a utilizar suas instituições e a
assimilar suas rotinas. Como se adquire esta competência se não
através de uma aprendizagem que inicie o debutante nas regras de
seu novo universo? A entrada na universidade pode ser analisada
como uma passagem, no sentido etnológico do termo, que eu
proponho considerar em três tempos:
_ o tempo do estranhamento, ao longo do qual o estudante entra
em um universo desconhecido, cujas instituições rompem com o
mundo familiar que ele acaba de deixar;
- o tempo da aprendizagem quando ele se adapta progres
sivamente e onde uma acomodação se produz;
- e, por fim, o tempo da afiliação que é o do manejo relativo das
regras identificado especialmente pela capacidade de interpretá
Ias ou transgredi-Ias.
O objetivo desse livro é mostrar que o sucesso na universidade
passa pela aprendizagem do ofício de estudante e que a entrada na
universidade de nada serve se não foracompanhada por um processo
de afil iação, ao mesmo tempo, insti tucional e intelectual. Tentarei
mostrar que o sucesso acadêmico depende, em grande parte, da
capacidade de inserção ativa dos estudantes em seu novo ambiente.
Trata-se de identificar as propriedades desses processos de aquisição
que, apesar de estarem à margem do conteÚdo acadêmico
A __ •.••. . ••, . . . ;;:, .. . •.••r rc·TI II ' \ . • • •.T : · . 4 ~NTQAnA NA VIDA UNIVERSITÁRIA
propriamente dito, parecem-me essenciais em toda carreirêl
estudêlntil de sucesso.
A transição Ensino Médio Ensino Superior
Sabemos que a transição do ensino médio pêlrao ensino superior é
delicadêl.Os índices de fracasso e abandono, ao longo do primeiro ciclo
universitário, traduzem a dificuldade dessa passagem. A universidade
de Pêlris8,em Saint-Denis, que éo campo que eu escolhi pêll adesenvolver
minhas pesqu isas, não escapa êIesse fenômeno e experimentêl as mesmas
dificuldades. A reforma dos primeiros ciclos universitários, iniciada nessa
universidade êIpartir do início do ano escolar de 1984,era especialmente
voltêlda para este problema, propondo aos estudantes formações
pluridisciplinares e uma orientação progressivêl.
A entrada no Ensino Superior um objeto sociológico
Na França, a questão do fracasso universitário não
é
nova. Vários
trabalhos lhe foram consagrados e trouxeram contribuições
importantes. Mas qualquer que seja a sua orientação - teoria marxista,
da reprodução, das desigualdades e da mobilidade social, da economia
neoclássica - nenhum deles tomou como objeto êIentmda no ensino
superior. Ora, esse é,precisamente, um momento decisivo que é preciso
estudar com muita atenção se queremos explorar os fenômenos do
abandono e do fracasso que se produzem, principalmente, ao longo
deste período. Por outro lado, esses estudos não levam em conta três
fatores que caracterizam o ensino superior:
trata-se de um ensino que se dirige a adultos e, exatamente por
isso, problemas particulares se colocam e deveriam ser estudados,
dentre eles, especialmente, a conquista da autonomia. O lugar
do saber não é mais o mesmo: não há mais referência aos discursos
pêlrentais, sendo que a autonomia é obtida em oposição a esses
discursos visando êllcançar um saber que se exibe em uma
AlAIN COUlON 33
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comunidade de construção de conhecimentos onde os pares
assumem um lugar importante;
é um ensino terminal: o ensino fundamental prepara para o
ensino médio. Se eventualmente o ensino superior prepara para
um novo ciclo como é o caso dos Cursos Preparatórios para as
Grandes Escolas a universidade prepara em princípio para a
vida ativa;
_ a entrada no ensino superior continua voluntária mesmo se ela
é cada vez mais uma escolha forçada em razão do mercado de
empregos e porque o cc l llré t não é mais suficiente para
garantir uma saída profissional.
Várias rupturas simultâneas
Certo número de fatores relacionados precisam ser colocados em
evidência para que seja possível analisar o fenômeno do fracasso e
do abandono nas universidades.
a Para muitos estudantes a passagem para o ensino superior é
acompanhada por outras mudanças. Ela é marcada por várias rupturas
simultâneas:
_ nas condições de existência o que pode gerar às vezes ansiedade
e comportamentos que favorecem o fracasso;
_ na vida afetiva com a passagem na maioria dos casos da vida
no seio da família para uma vida mais autônoma;
sobretudo uma ruptura psicopedagógica: a relação pedagógica
com os professores do ensino superior é em geral extremamente
reduzida mesmo quando se trata de trabalhos orientados em
pequenos grupos. Se o tempo do ensino médio é aquele do
tutelamento o tempo do ensino superior é o do anonimato
também em relação aos ou tros estudantes. Isto provoca
comportamentos muito diferentes por parte dos novoS
estudantes cujas referências habituais foram todas subvertidas
ao mesmo tempo. Uma nova identidade está por ser construída
uma nova relação com o saber precisa ser elaborada.
b importante insistir igualmente em relação à responsabilidade
que tem a organização institucional no sucesso ou fracasso na
universidade. Vários problemas encontrados ao longo de minhas
pesquisas mostram o efeito repetido dos dispositivos institucionais
sobre o desenvolvimento da escolaridade dos estudantes.
Por outro lado a passagem para a universidade é acompanhada
de modificações importantes nas relações que o indivíduo mantém
com três modalidades fortemente presentes em toda a aprendizagem:
o tempo o espaço e as regras do saber.
• Como observam os estudantes a relação com o tempo se encontra
profundamente modificada: as aulas não têm mais a mesma
duração; o volume semanal de horas é muito mais pesado que
no ensino médio; o ano quando não é contínuo é recortado em
dois semestres em vez de três trimestres; o ritmo de trabalho é
muito diferente; as provas não acontecem nos mesmos momentos
do ano o esforço que precisam empregar não se distribui da
mesma maneira.
• No que concerne à relação com o espaço os estudantes sublinham
que uma universidade -mesmo quando suas instalações são restritas
como é o caso de Paris 8 em St. Oenis - é imensa infinitamente
maior que um colégio ao ponto que eles têm dificuldades no início
de encontrar a sala de aula ou a secretaria certa.
• A mudança mais espetacular reside na relação com as regras e
com o saber.
É
preciso distinguir esses dois aspectos apesar de
que a relação com o saber é subjacente à relação mais global com
as regras. Na universidade inicialmente há um número
expressivo delas que atuam eventualmente de forma simultânea
além de serem muito mais complexas. Elas são com freqüência
articuladas umas às outras resultando em que o desconhecimento
de uma delas provoque a ignorância de todo um grupo de regras
que lhe são relacionadas. Além das regras propriamente ditas o
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sentido do jogo é muito diferente. Quanto
à
relação com o saber,
ele
é
totalmente modificado quando se entra na universidade,
ou pela amplitude dos campos intelectuais abordados, ou em
razão de uma maior necessidade de síntese ou ainda, por causa
do laço que o ensino superior estabelece entre esses saberes e a
atividade profissional futura.
Esse conjunto de reflexões me levou a pensar que, se o primeiro
ano de universidade é tão catastrófico para muitos e tão difícil para
todos, era porque, além da capacidade e da aptidão de cada um,
existiam problemas sérios de adaptação ao ensino superior. Os
estudantes que aí chegam, vindo diretamente do ensino médio, ficam,
geralmente, surpresos de ter tanta dificuldade para se adaptar a esse
novo quadro que é a universidade. Os alunos do ensino médio não
estão preparados para se afi liar ao ensino superior, especialmente
porque lá eles devem suportar uma orientação obrigatória que lhes
faz acreditar que estão no lugar que merecem. Esses processos de
orientação - existência dos CIO, o papel das subáreas do bnccnlnurént
o todo-poderoso conselho de classe - que atribui um lugar a cada um,
mascaram os fenômenos de afiliação que, entretanto, existem no
ensino médio, mas passam desapercebidos. As estratégias dos
indivíduos são, dessa forma, ocultadas pelo próprio dispositivo
institucional de orientação que impede que os alunos sejam
confrontados com esse tipo de aprendizagem, como seria o caso em
um sistema escolar mais flexível em matéria de orientação. Assim,
eles só descobrem a importância da afiliação e seus riscos,
experimentando muita ansiedade, quando entram na universidade.
o
ofício de estudante
Tornem-se estudantes profissionais , eu digo isso aos novos que
acabaram de chegar à universidade. Não no sentido pejorativo que se
pode atribuir, às vezes, a esta expressão. Aprender a se tornar
estudantes profissionais não é, como eu compreendo, uma
brincadeira irônica que os convida a ser estudantes sempre atrasados,
A _~
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-IA
\11nA
IINIVF R ;ITÁRIA
um pouco diletantes e que acabariam por não final izar seus estudos.
Esteconselho deve ser escutado como: considerem seu novo status de
estudante como uma nova profissão que vocês irão exercer . O que
significa não apenas que devem consagrar a ela um tempo significativo
desuas vidas imediatas, mas que é necessário, antes de qualquer coisa,
começar a aprendê-Ia, a dominar suas ferramentas, a identificar e
aprender suas regras.
Dizer que se é um profissional, como se pode dizer em algumas
atividades esportivas, significa que deixamos de ser amadores, que
não exercemos mais essa atividade somente por prazer e que
decidimos que ela vai nos permitir ganhar nossa vida. No caso de um
estudante, esse conselho pode, evidentemente, ser considerado como
um artifício pedagógico, na medida em que, por definição, o status
de estudante é transitório. Entretanto, por não considerar seu status
de estudante como um ofício de verdade, muitos entre eles, não o
mantêm por muito tempo. O senso comum sabe que realizar estudos
superiores representa um invest imento para o futuro, que é preciso
gerenciar, seriamente, como um profissional , como o demonstraram,
de maneira pouco crítica, osdefensores da teoria do capital humano ,
como Gary Becker eJacob Mincer, que concebem os estudos superiores
realizados pelos indivíduos como uma estratégia econômica
calculada3•
Como identificar o essencial
o exemplo dos estudos de medicina
Howard Becker, Blanchee Geer, Everett Hughes e Anselm
Strauss4
estudaram a vida cotidiana dos estudantes de medicina da
Universidade do Kansas. Na aprendizagem da profissão de médico,
a ciência e o talento não são suficientes, é preciso ser iniciado no status
de médico, ter aprendido seu papel. Esta aprendizagem não se dá de
uma única vez. A transição, no caso da aprendizagem da medicina, é
lenta. No início do ano, os estudantes do primeiro ano, que formam
realmente um grupo
à
parte, falam apenas de uma coisa: do trabalho
que devem realizar e de sua quantidade. Como eles farão para
••••• r~ .
•
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trabalhar de 70 a 90 horas por semana como parece exigir o volume
de trabalho que seus estudos representam? Mesmo que estejam muito
motivados rapidamente sentir-se-ão sobrecarregados. Eles foram
certamente prevenidos que deveriam trabalhar sem parar e que seriam
necessárias horas suplementares à noite para finalizar alguns trabalhos
de laboratório. O problema é que eles próprios devem compreender
sozinhos a natureza do trabalho a ser realizado que é indefinível .
O que eles devem conhecer e com que grau de detalhe? Como eles
devem dosar seus esforços? O que é necessário aprender exatamente?
É claro que existem os manuais e os textos dos professores mas apenas
a sua leitura já representa um trabalho tão grande que é absolutamente
necessário fazer uma seleção. Com a ajuda de que critérios?
É
claro
que eles são supervisionados o tempo todo por assistentes ao longo
de seus estudos dirigidos mas dizem os autores as exigências
cotidianas dos professores são mínimas eles fazem apenas sugestões
informais e os estudantes não podem utilizar suas instruções para
compreender a natureza da tarefa que têm para realizar. Apenas a
prova lhes dirá mais tarde se eles trabalharam o suficiente e se
estavam no caminho certo.
A sua primeira perspectiva ao longo das quatro primeiras
semanas é esta constante preocu pação que engendra sonhos
t raumáticos : conseguir t rabalhar o suficiente para aprender tudo o
que é exigido. Ao final de um mês todos os estudantes compreendem
que precisam selecionar aquilo que devem aprender e aí então dois
tipos de reações aparecem: alguns irão triar aquilo que lhes parece
importante para a prática médica ; os outros em número três vezes
maior escolherão os i tens a serem trabalhados em função daquilo
que os professores querem que eles saibam o que concretamente
quer dizer aquilo que eles talvez perguntem na provas.
prender a instituição do saber
Como adivinhar o que é necessário fazer quando os professores
se contentam em dizer a estudantes literalmente abarrotados de
trabalho: Dêem o melhor de vocês ? É assim que nascem as técnicas
para se dar bem nas provas quando os estudantes realizam
verdadeiras pesquisas sobre as preferências e as perspectivas dos
professores. Assim nas fratcmitics S todas as provas dos anos
precedentes são conservadas analisadas e comentadas. Se as provas
são tão importantes aos olhos dos estudantes não é apenas porque
elas são difíceis e a cada vez colocam em questão sua própria
existência como estudante de medicina é sobretudo porque elas são
a única ocasião que eles têm de aval iar através das perguntas que lhe
são feitas se eles estudam os temas corretos . As notas obtidas e os
comentários dos professores são considerados primeiro como
indicações que Ihes dizem se eles estão no caminho certo . Os
estudantes arriscam ir mais longe ainda tentando compreender como
responder àsquestões das provas da maneira mais adequada possível.
Aprendendo aquilo que eles pensam que seus professores querem
que eles demonstrem como compreendido conhecido e sob seu
controle os estudantes têm o sentimento de aprender seu ofício de
médico. Mas fazendo isso ao mesmo tempo eles renunciam ao seu
ideal de conhecimento para serem mais eficazes.
A obra de H. Becker e seus colaboradores mostra que o primeiro
ano é decisivo para aprender a instituição : mesmo que não seja o
mais importante do ponto de vista do conhecimento estritamente
médico ele é essencial por ser aquele onde se formam as perspectivas
dos estudantes.
É
durante esse ano que se aprende a viver esse novo
papel. Mais tarde ao longo de seus anos cl ínicos os estudantes
deverão ainda enfrentar problemas similares mas aí eles já disporão
de dois critérios para escolher o que é necessário estudar em
prioridade: sua experiência clínica através da qual eles podem
identificar todas as suas lacunas e sua responsabilidade médica que
os desafia a estabelecer um diagnóstico correto e um tratamento
adequado. Quando estão no primeiro ano ao contrário eles devem
aprender tudo como indica bem a expressão americana que os
designa6: eles são instados a descobrir não apenas o conteúdo
acadêmico da medicina mas sobretudo a encontrar soluções para o
problema principal que os atormenta a saber como aprender tanta
coisa em tão pouco tempo.
L IN OUlON
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Os ritos de afiliação
Raros estudantes estão prontos para se tornarem verdadeiros
profissionais de seus estudos. Não que eles não sejam capazes. Mas,
para isso, necessitam ter uma perspectiva a longo prazo, isto é, um
projeto suficientemente elaborado que justifique os esforços
empregados e que se realize em instituições que o favoreçam.
A noção de passagem
Podemos considerar, como se faz, freqüentemente, na linguagem
ordinária, a entrada na vida universitária como uma passagem. Não
é comum falar de passagem para o ensino superior ou ainda do
baccalallréat como um ponto de passagem obrigatório em direção
à
universidade? Esta passagem, para se realizar, supõe o domínio de
certo número de mecanismos e exige ter realizado, com êxito, certo
número de ritos de afiliação.
Quando observamos os primeiros meses que seseguem à entrada
de um estudante na universidade, ou quando solicitamos que a
descrevam, é fácil localizar as três fases descritas por Van Gennep7,
que acreditou ser possível detectar, em todas as sociedades, uma
estrutura de rituais de iniciação que sempre marcam a passagem de
um status social para outro: a separação em relação ao status passado,
a fase de ambigüidade e, enfim, a fase da conversão, que ele chama
de admissão. Os primeiros meses na universidade são descritos pelos
estudantes como seguindo três fases:
_ o novo estudante se encontra inicialmente na fase da separação
com o passado familiar, ao longo do qual ele perde suas
referências anteriores: é preciso esquecer aquilo que ele
conhece bem. Segundo os estudantes, a fac, não é semelhante
ao colegial , é preciso se habituar . Eu chamei essa fase o tempo do
estranlzamento Nele, o que é importante é o ponto de encontro
entre a universidade e o futuro estudante, deixando para trás o
tempo da separação e a viagem realizada entre esta e a porta da
__ o • •
i _ ~ •..rrTIIr\A -ITF: FNTR D N VID UNIVERSITÁRI
universidade. Diante dessa porta que se abre para a estranheza,
o iniciante percebe um mundo que não é mais familiar;
a segunda fase, a da margem, é onde se corre os maiores perigos.
É um período freqüentemente doloroso, feito de inseguranças e
dúvidas, ao longo do qual o estudante está ansioso. Ele não tem
mais passado, mas ainda não tem futuro. Ele está no espaço entre
dois momentos e não tem mais referências. À necessária
desestruturação que acompanha o esquecimento de seu passado,
não sucede, imediatamente, a reestruturação que o fará passar,
definitivamente, para a terceira fase. Uma aprendizagem
complexa se opera e há de ser feita o quanto antes, já que é
indispensável para prosseguir na passagem para a vida
universitária: é o tempo da aprendizagem
enfim, vem o momento da admissão, aquele da passagem definitiva
para seu novo estado: o estudante é agora um dos veteranos . Os
estudantes sabem reconhecê-l o e dizem quando ultrapassaram a
soleira dessa terceira fase: agora está melhor , eu sei que eu não
vou mais abandonar : éo tempo da afiliação A duração da passagem
é variável. Ela depende da duração da segunda fase que varia
segundo os indivíduos. Ela varia também segundo os
estabelecimentos, seu grau de sofisticação institucional e segundo
o número e a complexidade de suas regras.
Da noção de passagem à de afi Iiação
Aprender o ofício de estudante consiste em aprender os inúmeros
códigos que balizam a vida intelectual e proceder de maneira que os
professores, que são também os seus avaliadores, reconheçam que
eles apresentam um domínio suficiente para exercê-Io. Assim, não se
trata apenas de adquirir esta competência, é necessário igualmente
aprender a maneira de mostrar que eles a possuem.
Esta exibição da competência assume diversas formas. Ela não
se manifesta somente nos momentos de avaliação acadêmica formal,
mas depende também de operações informais que são objeto de
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julgamento por parte dos professores e de outros estudantes:
expressão oral e escrita, inteligência prática chamada, às vezes, de
competência para saber se virar 8, seriedade, ortografia, saber
apresentar referências teóricas e bibliográficas. É preciso exibir sua
competência, mostrar que se tornou um igual , que atribui o mesmo
sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos. Neste
sentido, a cultura estudantil é diferente da cultura dos jovens do ensino
médio. Entre estes os códigos são outros, são outros o discurso e a
linguagem e, igualmente, a maneira de identificar, de colocar e de
resolver problemas. O colégio e a universidade não têm a mesma
comunidade de uzbitlls e o primeiro ano de universidade, sobretudo
os primeiros meses, ou as primeiras semanas, exige que se passe de
uma
à
outra. Este trabalho deve ser realizado além do trabalho
intelectual normalmente relacionado à universidade. Ele demanda
tempo e deve ser considerado como uma aprendizagem verdadeira.
Esquemas culturais devem ser desenvolvidos, é preciso esquecer
sua cultura anterior de estudante de ensino médio, na qual ele viveu
durante sete anos, para substituí-Ia por uma nova cultura, mais
complexa, mais sofisticada, tão mais difícil de decodificar e adquirir
na medida em que ela é mais simbólica.
Tornar se um membro nativo uma aprendizagem
do senso comum
Como se adquirem esses códigos, essa cultura particular de uma
universidade? Seguramente, não só de maneira acadêmica. Muitos
deles não residem no trabalho acadêmico propriamente dito. Pois o
senso comum, como sublinhou P. Perrenoud9, é difuso, ele está
implicado na prática mais insignificante, na interação mais
insignificante, no mais insignificante objeto, no mais insignificante
aspecto da organização social p.247).
Assim, não é de bom augúrio que um estudante diga: eu passo
o menor tempo possível na universidade, assim que as aulas acabam
eu vou embora . Aqueles que conhecem as condições de vida difíceis
de um estudante no interior de certas universidades não se
surpreenderão com uma fala como essa. Entretanto, é preciso ter
consciência que esta prática, freqüentemente induzida por condições
de vida difíceis, leva igualmente o estudante a se isolar de múltiplas
e minúsculas operações que participam da imersão nessa nova cultura.
Quanto mais interações aconteçam, mais se atenua a ambigüidade da
segunda fase da passagem e melhor se realiza a indispensável
aprendizagem do senso comum.
Os estudantes devem tornar-se nativos desta nova cultura
universitária, tornarem-se membros dela, pois, para eles, isso é uma
questão de sobrevivência. A noção de membro, que, para a
etnometodologialO, designa o domínio da linguagem natural do grupo
ou de sua organização, permite compreender a necessidade e as
condições dessa passagem para o status de nativo. Tornar-se membro,
não é apenas tornar-se nativo da organização universitária, é também
ser capaz de mostrar aos outros que agora possuímos as competências,
que possuímos os etnométodos de uma cultura. Esta aquisição não é
completa porque a cultura da comunidade nativa é movente e
cumulativa. Ela é ainda menos completa na medida em que o próprio
debutante participa, desde que esteja suficientemente iniciado, de sua
transformação e elaboração. Apesar disso, a posse de uma parte dessa
cultura de senso comum é suficiente, em geral, para conferir, àquele
que a detém e que sabe exibi-Ia, o status de membro.
Reconhecer a competência de um membro é identificar aquilo que
ele exibe do domínio que tem das rotinas, admitir nele uma naturalidade
autêntica que lhe permite realizar certo número de coisas sem pensar
nelas, obedecendo a alguns esquemas de pensamento ou de ação, o que
Pierre Bourdieu chamou de habitlls que, como conjunto de pensamentos
e práticas incorporadas, gera novas atitudes e facilita novas aquisições.
Entretanto, a aquisição do conjunto de procedimentos novos, através
dos quais nos tomamos membros, não está ancorada sobre um habitus
constituído de uma vez por todas, fonte infalível e motor inesgotável de
todas as aquisições e performances ulteriores. Ela se produz sobre um
habitlls constantemente renovado, que se enriquece - ou se empobrece,
como é o caso no analfabetismo - de experiências novas que são como
sedimentadas sobre as precedentes. As incorporações mais recentes são
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aquelas que foram objeto de um julgamento avaliativo, o que pode ser
de uma grande eficácia destrutiva: osestudantes que não podem mostrar
que eles incorporaram, ao longo dos primeiros meses após sua chegada
à universidade, os traços distintivos de sua afiliação ao ofício de
estudante são, impiedosamente, eliminados (fracasso) ou se auto-
eliminam (abandono).
Estudantes ordinários
Meu propósito não é o de analisar a formação das elites, formadas,
em geral, nas Grandes Escolas. Eu estou interessado na imensa massa
de estudantes ordinários que fazem seus estudos na universidade
e que se tornam, em seguida, elites médias . Esse fenômeno social é
muito importante, especialmente por causa das perturbações
econômicas e políticas que provocaram a explosão demográfica
universitária das últimas três décadas.
É chocante constatar que a universidade comum, que produz os
quadros executivos e que diz respeito, cada vez mais, às classes
médias, foi pouco analisada a partir de pesquisas empíricas. Não se
sabe praticamente nada acerca das práticas concretas, nem das
universidades, porque elas não são avaliadas no plano qualitativo,
nem da experiência e estratégias dos estudantes no interior das
universidades e menos ainda das práticas pedagógicas dos professores
do ensino superior. Eu me esforçarei então para oferecer ao leitor,
graças aos métodos etnográficos que utilizei, uma visão de dentro
acerca das práticas universitárias.
Por que se interessar por estudantes de uma universidade
reputada, mas considerada marginal ? Acontece que a universidade
de Paris 8, em Saint-Denis, apresenta uma dupla vantagem: trata-se
de uma universidade inovadora do ponto de vista pedagógico, desde
a sua origem, e que dispensa atenção aos estudantes de primeiro ciclo;
além disso, ela acolhe, particularmente, um grande número de
estudantes imigrantes e estudantes titulares de
L nccnln lrénts
tecnológicos ou profissionais, considerados como culturalmente
dominados . Essas características fazem dela um campo
privilegiado de estudos de fenômenos que jásão observados em outros
espaços, mas que devem produzir-se, massivamente, em talvez um
terço das universidades francesas ao longo dos dez próximos anos.
Trata-se, então, de analisar os mecanismos de afiliação que estão em
curso nelas. A revelação desses mecanismos, mesmo que descobertos
e analisados localmente, tem a ambição de ter um alcance mais geral
e resultados suscetíveis de ser generalizados ou uti lizados em outras
universidades.
org n iz ção do livro
Depois de iniciar expondo o contexto e as condições da pesquisa,
bem como os métodos utilizados em campo, eu apresentarei as
análises que me parecem possíveis sobre o material recolhido e os
resultados a que cheguei. No primeiro capítulo, O tempo da
estranheza , eu vou mostrar a desordem que atinge os estudantes
quando eles chegam, pela primeira vez, à universidade e se defrontam
com os dispositivos institucionais dentro dos quais eles terão de
trabalhar. No segundo, O tempo da aprendizagem , eu vou expor
as estratégias que eles utilizam, as perspectivas que se desenham, os
desencantamentos que ameaçam levar ao abandono e a instalação
progressiva de rotinas. Finalmente, no terceiro capítulo, O tempo
da afiliação , eu insistirei sobre a interpretação que fazem os
estudantes das regras do currículo e sobre a incorporação que fazem
dos
nllnnt de sai
intelectuais que irão defini-Ios, progressivamente,
como estudantes competentes.
Concluindo, eu tentarei mostrar as conseqüências concretas que
podem ter esses resultados, como um novo olhar possível acerca do
primeiro ano de universidade. Eu vou tentar apresentar certo número
de idéias que, se postas em prática, poderão favorecer uma pedagogia
da afiliação. Com efeito, parece-me que múltiplas circunstâncias
políticas, econômicas, sociológicas, psicológicas - que cercam a entrada
dos estudantes nas universidades, por sua natureza, exigem ser
consideradas seriamente e tratadas com urgência.
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Notas
N. do T.Em francês, há uma diferença entre a palavra éleve atribuída a crianças
e jovens que estudam até o nível médio e
étudinnt
uti lizado apenas para jovens
ingressos no ensino superior.
N. do T. Optamos por manter a expressão original por já ser utilizada na
literatura brasileira.
Becker, G. S., Human Capital, New York, Columbia University Press, 1964;
Mincer, J., Investment in Human Capital and Personal Income Oistribution ,
Journal of Political Economy,
1958, 66, p. 281-302.
Becker, H. S.,Geer, B.,Hughes, E.c Strauss, A.L.,
Boys
in
White. Student Culture
in Medical School, New Brunswick, N. J., Transaction Books, 1977) [1961].
N. do A. As fraternities , ou as sororities , caso setratem de rapazes ou moças,
são grandes casas situadas em volta dos campi. Os estudantes aí vivem
coletivamente ao longo do ano acadêmico. São lugares onde reina, em geral ,
uma grande solidariedade.
N. do A. Os estudantes de primeiro ano são chamados nos Estados Unidos de
freshmen; no segundo ano, e les se tornam sophomore, em seguida, jllllior e, por
fim,
senior.
Van Gennep A.,
Les rites de passage,
Paris, Picard, 1981 [1909],288 p.
N.do T. Em francês,
débrouillardise.
Perrenoud, P.Lafabrication de / excellence scolaire, Geneve, Oroz, 1984.
10 Coulon, A.,
L éthnométhodologie,
Paris, PUF Que sais-je? , no. 2393)
5e
édition, 2002.
11 N. do T.O autor faz referência a uma observação feita por Bourdieu, explicada
mais adiante no livro.
A CONDiÇÃO DEESTUDANTE: A ENTRADA NA VIDA UNIVERSITÁRIA
o CONTEXTO, O CAMPO
E O MÉTODO DA PESQUISA
A reforma dos primeiros ciclos de 1984
Em 1982, o Ministério da Educação Nacional, então dirigido por
Alain Savary, decide iniciar uma reforma dos primeiros ciclos
universitários que iria culminar na lei de 1984. Esta reforma se tornou
necessária em razão dos resultados quantitativos medíocres obtidos
e, ao mesmo tempo, correspondia a um desejo de que os estudantes
realizassem percursos profissionalizantes.
Um grupo de especialistas foi então encarregado de conduzir uma
reflexão sobre essa futura reforma, consultando centenas de organizações
e personalidades e associando estreitamente universidades e
universitários nesse momento preparatório. Foi assim que, centenas de
pessoas ligadas ao ensino superior, participaram, em março de 1982, do
colóquio organizado pela Universidade de Lyon
l
com a presença do
ministro e sua equipeI
o
balanço
Todos os estudos sobre os primeiros ciclos universi tários, qualquer
que fossem as disciplinas ou w1iversidades, mostravam, depois do início
dos anos de 1970, uma taxa expressiva de fracasso e abandonos: um
estudante, em cada dois que entravam na universidade, saía sem
nenhum diploma.
Por outro lado, as formações universitárias, diversificadas ao
longo dos anos de 1970, não respondiam muito às necessidades do
mercado de trabalho nem às mudanças previstas a médio e longo
prazo. Muitos estudantes se inscreviam sem um projeto preciso e a
ALAIN COULON
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