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Teorias curriculares : políticas, lógicas e processos de
regulação regional das práticas curriculares1
José Augusto Pacheco Universidade do Minho jpacheco@iep.uminho.pt
Introdução Escrever um texto sobre as questões teóricas do currículo ligadas à
regionalização é uma aventura política, pois falar sobre educação e currículo é
algo profundamente político e cultural. A discussão em torno de um currículo
regional, num país tão marcado pelo centralismo burocrático, apesar da
existências de ventos de descentralização, é a oportunidade para nos
interrogarmos na base da teorização curricular e das experiências que
vivenciamos enquanto actores de um sistema educativo. Neste sentido, e de
modo a justificarmos o último ponto – Referentes para um currículo regional –
centralizamos o texto na existência de diferentes concepções de currículo,
decorrentes das teorias curriculares, nas diversas territorialidades curriculares,
nos processos de regulação das políticas educativas e curriculares, nas lógicas
que influenciam directa e/ou indirectamente a construção do currículo e nos
desafios da sociedade do conhecimento.
Porque o currículo é um projecto, um artefacto, cuja construção se insere
numa dinâmica e complexa conversação, o currículo regional é um documento
de trabalho em permanente elaboração, pois não é possível definir a
aprendizagem a partir nem de um receituário nem de uma única perspectiva.
Para além do conflito, o currículo regional só se torna possível se rompermos
com os processos uniformes e estandardizados de decisão curricular.
1 Conferência realizada no âmbito do Seminário “O Currículo Regional”, Terceira, Açores, 4 de Setembro de 2003.
1. Teorias Curriculares
A educação torna‐se num recurso por excelência se procurar a
participação de cada de um nós na sociedade enquanto actores curriculares,
comprometidos histórica, social e culturalmente com um projecto de formação
que se encontra em permanente reconstrução. O currículo não é, por isso, um
projecto que diz respeito somente a professores e a alunos, mas que abrange
todos os intervenientes que, directa ou indirectamente, participam na sociedade
do conhecimento ou na sociedade de aprendizagem, tal como propõe
Hargreaves2.
Nas primeiras definições de currículo, o conhecimento ocupa um lugar
central da educação do aluno e da sua escolarização porque responde, de forma
interactiva, a objectivos, significados e valores sociais3, traduzível, de acordo
com os defensores de uma teoria curricular técnica, ou tradicional, nos
objectivos e na avaliação. Para Bobbitt4 – um dos precursores do currículo
valorizado como um domínio de investigação, que tem a necessidade de uma
teoria e de uma prática – o currículo é uma realidade objectiva construída na
base de uma engenharia de educação, terreno dos especialistas, do mesmo
modo que uma estrada é obrigatoriamente projectada por um engenheiro.
Kliebard5 – um historiador norte‐amerciano do currículo – fala de Bobbitt,
professor de Administração Educativa da Universidade de Chicago, como uma
referência fundamental relativamente à emergência do currículo, não só no
2 Cf. Andy Hargreaves. O ensino na sociedade do conhecimento. A educação na era da insegurança.
Porto: Porto Editora (publicação em 2004). 3 Para John Dewey, numa das primeiras obras sobre currículo, publicada em 1902, o processo
educativo resulta precisamente da interacção destas três forças sociais. Cf. John Dewy, 2002. A escola e a sociedade. A criança e o currículo. Lisboa:Relógio D’Água Editores.
4 Cf.. Franklin Bobbitt, 1918, The curriculum. New York: Houghton Mifflin. 5 Cf.. Herbert Kliebard, 1995. The struggle for the american curriculum 1893‐1958 (2ª ed.). New
York : Routledge.
2
domínio específico do saber, mas também enquanto campo de intervenção dos
especialistas. Deste modo, Bobbitt é incluído na linha de pensamento dos
« eficientistas sociais », isto é, de todos os que adoptam para a educação o
método de gestão proposto por Taylor, em 1911, com publicação do livro
ʺPrinciples of scientific managementʺ.Trata‐se de um modelo universal, pois os
princípios podem ser aplicados a todos os campos de intervenção social,
conhecido por taylorismo e que teve, segundo Beyer et Liston6, uma larga
influência na formação do campo curricular. Nas décadas seguintes, sobretudo
com o trrabalho de Tyler7, consolida‐se a noção de currículo como uma técnica
que é conceptualizada na base de uma teoria de instrução, ou seja, uma teoria
de controlo dos comportamentos cognitivos
Estamos, assim, na presença das teorias de engenharia curricular ou dos
modelos fechados. Tais concepções funcionalista e estruturalista reforçam a
definição de currículo como programa definido em termos nacionais e
implementado de modo estandardizado em todas as regiões e escolas, de modo
a salvaguardar a legitimidade normativa e a racionalidade técnica no processo
de desenvolvimento curricular. As decisões curriculares são determinadas pela
lógica do especialista, que actua junto da administração central, e pela natureza
jurídica do normativo, assumindo o Estado um papel activo na construção dos
produtos curriculares e na sua regulação.
Se o currículo nacional pode ser legitimado pelas teorias de pendor
tecnicista, cada vez mais presentes no quotidiano educativo, quer pela
“pedagogia de competências”8, quer pelo reforço da uniformidade curricular,
da estandardização de práticas escolares e pela existência de uma gramática 6 Cf.. Landon Beyer e Daniel Liston, 1996. Curriulum in conlfict: social vision, educational agendas,
and progressive school reform. New York : Teachers College Press. 7 Cf.. Ralph Tyler, 1949. Basic principles of curriculum and instruction, Chicago : The University
Chicago Press. 8 No texto “Competências curriculares: as práticas ocultas nos discursos das reformas”,
publicado em 2003, na Revista de Estudos Curriculares, 1,(1), 57‐75, argumentamos que a “pedagogia por competências se tornou no prolongamento da denominada “pedagogia por objectivos”.
3
pedagógica valorativa dos resultados cognitivos, em termos teóricos, o
currículo regional e local é explicado por uma perspectiva prática e crítica, isto
é, por uma teoria fenomenológica do desenvolvimento curricular centrada na
escola e nos sujeitos, implicando um processo de deliberação prática9 ou uma
proposta de trabalho10 a realizar ou ainda um texto11 que pode ter múltiplas
leituras.
No entanto, não existe uma perspectiva única que explique totalmente a
realidade curricular, pois trata‐se de uma prática que produz linguagens
contraditórias, resultantes de várias forças de influência. Também não se pode
dizer que o currículo seja exclusivamente o território organizado pela
administração central ou pela escola e professores.
Num currículo totalmente nacional, dado que não há espaço para as
decisões curriculares de professores e aluno, nem tão pouco para os contextos
regionais e locais, a escola coloca‐se no centro da transmissão de conhecimento,
sustentado tanto pela predeterminação de conteúdos quanto pela previsão dos
resultados marcadamente cognitivos, identificados na palavra mágica dos
objectivos de aprendizagem e das competências. Utilizando uma metáfora de
Tyler12, que em 1976, propôs a necessidade de caminhar no sentido de uma
teoria curricular global e coerente, podemos dizer que é preciso ser
curricularmente arquitecto e não carpinteiro, ainda que esta ideia seja utópica,
dado que jamais o Estado deixa de intervir, de forma decisiva e uniforme,
quase sempre, tal como se comprova nas políticas neoliberais e neo‐
conservadoras13, na construção quotidiana do currículo.
9 Cf. Joseph Schwab, 1985. Um enfoque practico como lenguage institucional. In J. Gimeno e A.
Pérez Gómez. La eneseñanza: su teoria y su practica., pp. 197‐209. 10 Cf.. Lawrence Stenhouse, 1984. Investigación y desarrollo del curriculum. Madrid: Morata. 11 Cf. Ulf Lundgren, 1993. Teoria del curriculum y escolarización. Madrid: Morata. 12 Cf. Ralph Tyler, 1976. Prospects for research and development in education. Berkeley : Mccutchan
Company Publishing Corporation. 13 Cf. José Pacheco, org., 2001a. Políticas educativas: o neoliberalismo em educação. Porto: Porto
Editora.
4
Fortemente delineadas na base de novas perspectivas sociológicas na
forma de entender e legitimar o conhecimento, os anos setenta e oitenta do
século XX trouxeram‐nos outras concepções curriculares que se enquadram nos
modelos abertos e na teoria social crítica, em geral, e nas teorias curriculares
crítica14 e pós‐crítica15. As noções de currículo como artefactos social, cultural e
político16 inscrevem‐se também nas teorias contextuais ou situacionais, ligadas
à teoria de acção do sujeito, aos modelos abertos e às tendências pós‐
estruturalistas. Consequentemente, o currículo é compreendido como uma
prática de significados, só totalmente dilucidados pela hermenêutica, que
revela o poder, a diversidade e a identidade que existe em cada projecto
curricular e na possibilidade de este se tornar num momento crítico de
aprendizagem17. Donde, a teoria curricular18 existe somente no plural e diz
respeito ao conhecimento e ao modo como é organizado.
2. Territorialidades curriculares
Questionar o currículo como prática, de significados distintos e
multirreferenciados, representa concebê‐lo a partir de um processo que admite
uma lógica de desconstrução, com a introdução de sucessivos discursos cujo
significado se apreende pela hermenêutica da prática, e optar por uma
abordagem processual que faz a inter‐relação das duas componentes
14 Cf.. Stephen Kemmis, 1988. El curriculum: más allá de la teoria de la reproducción, Madrid :
Morata; William Pinar, 1975. Curriculum theorizing: the reconceptualists, Berkeley: Mccutchan Publishing Copmpany.
15 Cf. Tomaz Tadeu da Silva, 2000. Teorias do currículo. Uma introdução crítica. Porto: Porto Editora.
16 Cf.. entre outros, Jean‐Claude Fourquin, 1996. École et culture. Le point de vue des sociologues britanniques (2ª ed.). Bruxelles: De Boeck; Henry Giroux, 1983. Theory and resistance in education. South Hadley, Mass: Begin and Garvey Publsihers; Shirley Grundy, 1987. Curriculum: product or praxis ? New York : Routledge.
Para uma visão global das teorias curriculares, Cf. José Pacheco, 2001b. Currículo: teoria e práxis (2ª ed.). Porto : Porto Editora.
17 Cf. Robert Young, 1998. The curriculum of the future. From the new sociology of education to a critical theory of learning. London : Falmer Press.
18 Cf. William Pinar, 2003. What is curriculum theory? (policopiado).
5
intrínsecas presentes em qualquer projecto curricular: o que se pretende
(expectativas e intenções curriculares) bem como o quê e onde ocorre
(realidade curricular).
Deste modo, o currículo é, cumulativamente, uma intenção e uma
realidade que ocorrem num contexto determinado e que são o resultado de
decisões tomadas em vários contextos. Dentro desta perspectiva dinâmica e
processual, o currículo, e todo o processo do seu desenvolvimento, é uma
intersecção de práticas com a finalidade de responder a situações concretas.
Tal quadro de análise curricular remete‐nos para a perspectiva de
currículo como um território organizado, através de normativos, de
orientações, de interesses profissionais e de interesses de aprendizagem, na
base dos pressupostos da globalidade da acção educativa, da flexibilidade
curricular e da integração das actividades educativas.
Nesta multiplicidade e coexistência de territorialidades curriculares, a
decisão é, por vezes, contraditória e geradora de resistências devido não só às
rotinas escolares, mas também aos castelos ou muralhas que os intervenientes
constroem de uma forma subtil. E os obstáculos são ainda maiores quando a
administração central assume, ao nível do discurso legislativo, o processo de
desenvolvimento do currículo numa linha de orientação e impõe, ao nível da
prática, critérios formais ou informais de prescrição.
Os territórios curriculares regionais e locais podem coexistir com o
território curricular nacional através de um processo de desenvolvimento do
currículo dinâmico e contínuo que exigem a definição de critérios sobre a
coordenação vertical e horizontal dos projectos existentes no âmbito dos
territórios educativos.
No quadro legal português, encontra‐se estipulado que
6
“os planos curriculares do ensino básico devem ser estabelecidos à escala nacional, sem prejuízo da existência de conteúdos flexíveis integrando componentes regionais”19. “Os planos curriculares do ensino secundário terão uma estrutura de âmbito nacional, podendo as suas componentes apresentar características de índole regional e local, justificadas nomeadamente pelas condições sócio‐económicas e pelas necessidades em pessoal qualificado”20.
Apesar do articulado normativo prever a existência de componentes
regionais e locais, o facto é que a estrutura curricular sempre se manteve
nacional, identificada pelos planos curriculares, programas, avaliação e
manuais. Tal realidade manter‐se‐á tanto na prática como na legislação. Por
exemplo, a Lei de Bases, que se encontra em discussão para aprovação,
estabelece que o sistema educativo tem como objectivo fundamental, entre
outros, “assegurar a organização e funcionamento das escolas, públicas,
particulares e cooperativas, de forma a promover o desenvolvimento de
projectos educativos próprios, no respeito pelas orientações curriculares de
âmbito nacional, e padrões crescentes de autonomia de funcionamento,
mediante a responsabilização pela prossecução de objectivos pedagógicos e
administrativos, com sujeição à avaliação pública dos resultados e mediante
um financiamento público assente em critérios objectivos, transparentes e
justos que incentivem asa boas práticas de funcionamento”21.
No mesmo projecto de lei, a estrutura nacional está ainda mais reforçada
quando se diz que:
“a política educativa prossegue (…) objectivos nacionais permanentes, pressupondo uma elaboração e uma concretização transparentes e consistentes”22.
Porém, no capítulo referente ao planeamento curricular, retoma‐se o
princípio das territorialidades curriculares:
19 Cf. ponto 4, art. 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86, de 14 de Outubro. 20 Idem, ponto 5. 21 Cf. alínea h) do art. 5º da Lei de Bases da Educação (projecto governamental). 22 Idem, ponto 1 do art. 6º.
7
“Os planos curriculares do ensino básico e do ensino secundário devem ter uma estrutura de âmbito nacional, que acolha os saberes e as competências estruturantes de cada ciclo, podendo acrescer a essa estrutura conteúdos flexíveis, integrando componentes de índole regional e local, e desenvolvimentos curriculares previstos em contratos de autonomia e desenvolvimento educativo entre a administração educativa e as escolas”23.
Fala‐se agora de legitimar as territorialidades regional e local pelos
contratos de autonomia, cujas cláusulas são definidas pela administração
central, e não propriamente pela vertente cultural. Neste caso, entendemos que
as territorialidades curriculares são partes de um mesmo processo, ou melhor,
peças de um puzzle que é construído, dentro do espaço nacional, em função das
dimensões nacional, regional e local (fig. 1.):
Currículo Nacional
Currículo Regional Currículo
Local
Currículo Regional
Fig.1 ‐ Territorialidades curriculares.
Embora o currículo nacional seja uma realidade desde a década de sessenta
do século XIX em Portugal24, só muito recentemente é que foi é definido nos
normativos. Depois de um processo de discussão das propostas da
administração central, no que ficou registado como projectos de revisão
participada, o currículo nacional é definido, do seguinte modo:
“(...) entende-se por currículo nacional o conjunto de aprendizagens e competências a desenvolver pelos alunos ao longo do ensino básico [de cada um dos curso do ensino secundário], de acordo com os objectivos consagrados na Lei de Bases do Sistema Educativo para este nível de ensino, expresso em
23 Idem, ponto 3 do art. 34º. 24 Cf. José Pacheco, 2001b.
8
orientações aprovadas pelo Ministro da Educação, tomando por referência os desenhos curriculares anexos [as matrizes curriculares dos cursos gerais e dos cursos tecnológicos anexas] ao presente decreto-lei”25.
Tal conceito surge associado ao reforço, pelo menos no plano discursivo,
não só da centralidade da escola nas decisões curriculares, mas também do
papel do professor, acompanhado de outros actores sociais, na construção do
projecto curricular.
Para além do currículo nacional, fala‐se agora de “projecto curricular de
escola” (concebido, aprovado e avaliado pelos respectivos órgãos de
administração e gestão) e de “projecto curricular de turma” (concebido,
aprovado e avaliado pelo professor titular de turma, em articulação com o
conselho de docentes, ou pelo conselho de turma, consoante os ciclos). É de
salientar que não se fala nem de um projecto curricular regional nem tão pouco
de um projecto político‐pedagógico, cuja existência, numa leitura abrangente do
Decreto‐lei nº 7/2003, de 15 de Janeiro, pode concretizar‐se no âmbito dos
municípios.
Projecto Político‐
pedagógico Projecto Educativo de escola
Projecto Curricular de escola
Currículo Local Projecto
Curricular de turma
Fig. 2 – Integração de projectos a nível local.
A territorialidade nacional do currículo tem argumentos válidos e
sustentáveis na existência de uma cultura comum, com funções sociais, políticas
e educativas discutidas na base da existência de uma escola que veicula um 25 Art. 2 dos decretos‐lei nºs 6/20001 e 7/2001, de 18 de Janeiro.
9
conhecimento que é oficial, prescrito e formal. Todavia, estamos convictos que,
mais importante do que a sua existência, ou não, para todos os cidadãos, aliás
um imperativo democrático das sociedades contemporâneas, torna‐se necessário
problematizar a forma como é feita a selecção da cultura que integra um
determinado currículo nacional. O que se tem verificado é que as opções
curriculares têm privilegiado a legitimação de um conhecimento escolar oficial
que representa os interesses de grupos sociais dominantes. Assim, o currículo
nacional, com todas as suas vantagens e/ou desvantagens culturais, não deixa de
ser um instrumento de diferenciação e de exclusão social enquanto os
conteúdos, que integrem esse currículo, e a escolaridade não forem amplamente
discutidos em função dos seus sentidos social, cultural e educativo.
Nos finais da década de noventa do século XX, os documentos orientadores
das políticas para os ensinos básico26 e secundário27, inseridos então no
programa do governo, no pacto educativo e no acordo de concertação
estratégica, adoptam estrategicamente a noção de currículo nacional, centrado
na definição de competências gerais e num sistema de avaliação dos alunos,
dando continuidade a um esquema de decisão sistémica com a definição dos
inputs e dos outputs, entregando‐se às escolas a responsabilidade de organizar a
gestão flexível do currículo, isto é, a “possibilidade de cada escola organizar e
gerir autonomamente o processo de ensino/aprendizagem, tomando como
referência os saberes e as competências nucleares a desenvolver pelos alunos no
final de cada ciclo e no final da escolaridade básica, adequando‐o às
necessidades diferenciadas de cada contexto escolar e podendo contemplar a
introdução no currículo de componentes locais e regionais”28.
26 Cf. Departamento da Educação Básica, 1998. Educação, integração, cidadania. Documento
orientador das políticas para o ensino básico. (www.deb.min‐edu.pt/ ) – consulta em Março de 1998.
27 Cf. Departamento do Ensino Secundário (1997). Documento orientador das políticas para o ensino secundário. Desenvolver, consolidar, orientar (www.des.min‐edu.pt/ ) – consulta em Novembro de 1997.
28 Cf. Ponto 1 do anexo ao Despacho n.º 9590/99, de 14 de Maio.
10
O currículo nacional definido como o conjunto de aprendizagens e
competências a desenvolver pelos alunos pressupõe, de um modo linear, ʺuma
estrutura simplificada de objectivos, competências e aquisições essenciais
pretendidasʺ29. O problema que é colocado às regiões, às escolas e aos
professores é que não existe uma definição clara do currículo nacional nem em
função das territorialidades regional e local nem no reconhecimento de um
conjunto nuclear de aprendizagens básicas. O currículo nacional não responde
ainda a uma estrutura básica comum, susceptível de ser flexibilizada e adaptada
aos contextos escolares.
Neste sentido, o currículo nacional é o somatório de disciplinas e
programas, não permitindo que as outras territorialidades curriculares sejam
reconhecidas de modo explícito, razão pela qual os estudos de investigação
revelam que os programas são extensos e prolixos30 e que os professores
mantêm uma atitude ambígua face ao currículo nacional31: por um lado, são
favoráveis à autonomia e flexibilização e, por outro, concordam com a definição
de um currículo nacional decidido pela administração central. Esta ambiguidade
é ainda mais reforçada se falarmos de um currículo nacional que é a súmula das
exigências académicas.
As territorilidades nacional, regional e local são partes de um mesmo
processo. Todavia, perguntamos: Que se entende por currículo de âmbito
regional? E por currículo de âmbito local? A leitura dos normativos e a vivência
de experiências educativas e escolares permitem‐nos afirmar que currículo
nacional é de tal modo catalisador das actividades de aprendizagem que as
diversas territorialidades são fortemente enfraquecidas, ainda que previstas e
valorizadas pela administração central.
29 Cf. Maria do Céu Roldão, 1998. O currículo como projecto. O papel das escolas e dos
professores. In R. Marques e M. do Céu Roldão (org.). Reorganização e gestão curricular no ensino básico. Reflexão participada. Porto: Porto Editora, p. 17.
30 Cf. Josè Pacheco et al., 1996. O impacto da reforma curricular no pensamento e na acção do professor. Relatório de investigação. Braga: Universidade do Minho.
31 Cf. José Morgado, 2000. A (des)construção da autonomia curricular. Porto: Edições Asa.
11
Pelo menos em termos continentais, argumentamos que a estrutura política
e cultural portuguesa não justifica a existência de uma regionalização curricular,
ou seja, a proposta de formas curriculares próprias e diversificadas em função
das especificidades de cada contexto dado que existem mais traços de
identificação que traços de diversidade cultural, num sentido amplo do termo.
Com esta afirmação não dizemos que não existe uma territorialidade regional
curricular, tão‐só que é necessário discutir os critérios que estão presentes nas
culturas regionais e nas culturas locais.
Na verdade, a territorialidade curricular regional significa a construção de
projectos constitutivos de realidades culturais específicas, cuja identidade
reforça não só a coesão social, mas também a dimensão pedagógica que cada
estabelecimento escolar procura consolidar. Todavia, como se reconhece no
documento “A construção do currículo regional”32, a “construção de um
currículo regional não pode no entanto, ficar cativa de condicionalismos
geográficos ou processos históricos, por relevantes que sejam”. Para Hagreaves,
“as culturas educativas locais podem ser paternalistas, mesmo feudais, no modo
como cultivam a lealdade aquiescente dos seus professores e dos seus líderes”33
O mesmo se pode dizer para a territorialidade curricular local ou para os
espaços de aglutinação de identidades mais concretas, de contextos curriculares
próprios, pois a territorialidade só se efectiva em projecto de formação se
entendermos o meio como conteúdo curricular34.
A análise do local como conteúdo curricular pressupõe que a cultura seja
vista como um campo de luta, tornando‐se inseparável dos grupos e classes
sociais, e que o currículo seja uma questão política, que impõe orientações
concretas relativamente à selecção e organização do conhecimento. Por isso, a
32 Cf. Luís Maciel Silva, 2002. A construção do currículo regional (policopiado), p. 2. 33 Cf. Andy Hargreaves, 2004, p. 219. 34 Cf. José Pacheco, 1995. Da componente nacional às componentes curriculares regionais e locais.
Lisboa: Ministério da Educação (PEPT 2000 ‐ n.º 7). Ver de igual modo, José Pacheco, 1998. Projecto curricular integrado. Lisboa: Ministério da Educação (PEPT 2000 ‐ n.º 18).
12
construção de um currículo regional pressupõe não a alteração de questões de
forma (nos métodos de ensinar, na predeterminação dos resultados, na
pedagogia por competências…), mas na relação do que se ensina, de uma forma
integrada, com a vida real dos alunos, de modo que o meio se torne num
conteúdo com expressão curricular.
No entanto, e como argumenta Forquin35, a exploração do local como fonte
exclusiva de conhecimento levanta questões éticas como as da tirania do
contexto próximo (reduzir a identidade pessoal à identidade social) e da
regressão cultural. Com efeito, o aluno precisa não só de referências simbólicas
do meio a que pertence bem como de referências e valores mais globais, para lá
duma estrutura básica de conteúdos.
O local na construção do currículo ganha, assim, sentido de luta curricular
e é justificado, no contexto das teorias pós‐modernas e pós‐culturais educativas
com base na valorização quer das análises pessoais e subjectivas, quer das
análises sociais que revelam preocupações e conflitos.
Entender as territorialidades regional e local como campo de luta
curricular significar questionar o estudo do contexto36 através da construção de
projectos curriculares que evidenciem ʺas vozes, experiências e histórias pelas
quais os alunos dão sentido ao mundoʺ37.
Trata‐se de legitimar curricularmente a cultura do quotidiano dos alunos,
dos seus saberes, dos seus contextos e dos seus problemas sociais, já que a
escolarização, regulamentada pelo Estado, tem perspectivado esta cultura ʺcomo
um terreno marginal e perigoso, algo contra o qual se deva ser imunizado ou ‐
na melhor das hipótese ‐ algo a ser ocasionalmente explorado como táctica
35 Cf. Jean‐Claude Fourquin, 1996, p. 148. 36 Cf. Maria do Céu Roldão, 1995. O estudo do meio no 1º ciclo: fundamentos e estratégias. Lisboa:
Texto Editora. 37 Cf. Henry Giroux e Roger Simon, 1994. Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana
como base para o conhecimento curricular. In A. Moreira e T. Tadeu da Silva (orgs.). Currículo, cultura e sociedade (2ª ed.). São Paulo: Cortez Editora, p. 95.
13
circunstancial de motivação, para aumentar o interesse do aluno por
determinada lição ou disciplinaʺ38.
Tem sentido falar do regional e local se o trabalho escolar estiver centrado
nos problemas dos alunos e se as práticas curriculares promoverem a sua
capacidade crítica de modo a permitir‐lhes a compreensão daquilo que
culturalmente os rodeia.
Outros sentidos adquire o local se o currículo for entendido como artefacto,
e não meramente como um plano que é elaborado pelos especialistas e
seguidamente, na lógica de uma linha de montagem fabril, implementado pelos
professores.
Para isso, é torna‐se fundamental explorar critérios não só de uma
pedagogia intercultural (conhecimento dos contextos específicos dos alunos e
das culturas dentro das várias civilizações históricas), mas também de uma
pedagogia crítica, pedagogia esta que só poderá ʺser discutida a partir de um
tempo, um espaço e um tema específicosʺ, pelo que ʺexercê‐la é um tarefa
estratégica, prática e não científicaʺ39. Nesta perspectiva, aplicar à escola as
ideias de pluralismo cultural implica escutar a multiplicidade de vozes, cada vez
mais organizadas nas questões do multiculturalismo40, que conferem significado
curricular ao que se aprende.
A expressão das territorialidades nacional, regional e local verifica‐se, no
plano dos normativos, na construção de projectos educativos, de projectos
curriculares de escola e de projectos curriculares de turma41. Também se pode
verificar, pelo menos em termos de uma visão global da participação da
38 Idem, Ibidem, p. 105. 39 Idem, Ibidem, p. 105. 40 Sobre o multiculturalismo, vide: Carlinda Leite, 2002. O currículo e o multiculturalismo no
sistema educativo português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 41 Não abordamos neste texto tais projectos. Para uma visão mais pormenorizada, baseada na
centralidade do projecto curricular de escola, vide: José Pacheco e José Carlos Morgado, 2003. Construção e avaliação do projecto curricular de escola. Porto: Porto Editora.
14
comunidade local, na construção de projectos político‐pedagógicos, ou seja, em
projectos educativos municipais42.
O projecto educativo concelhio não é um documento declarativo nem tão
pouco uma carta de intenções, elaborada pelos responsáveis políticos do
município com fins explicitamente temporais. Trata‐se da construção de um
projecto que visa a integração de dinâmicas relacionadas com as iniciativas de
todos os membros da comunidade educativa, tendo por finalidade principal
dotar os estabelecimentos de educação de infância e dos ensinos fundamental e
médio de um recurso que favoreça a relação da escola com a comunidade. Tal
projecto é uma plataforma de enriquecimento dos projectos pedagógicos
comuns às escolas de um dado território.
Porque a escola existe para a sociedade, a construção de um projecto
educativo municipal necessita da participação de todos os elementos da
comunidade. Por isso, não se pretende o consenso que represente meras ideias e
a troca utópica de experiências, mas a colaboração de todos os responsáveis da
comunidade escolar, mediante a promoção de relações de comunicação, que são
estabelecidas no contexto amplo da escola.
Só a colaboração de todos garante a transparência da tomada de decisões
sobre o projecto, cuja intencionalidade é constantemente redefinida pela relação
de reciprocidade. Com efeito, trata‐se de um projecto que se faz pela
participação efectiva de todos numa situação de autonomia, em que o local é o
referente principal para a territorialização de um projecto educativo nacional.
As territorialidades presentes na construção do currículo,
correspondentes a palcos com actores diferentes, embora agindo na base de
regras comuns, adaptadas e flexibilizadas constantemente, não existem em
função de palavras como descentralização, projecto, autonomia, contrato, etc.
Para além do valor semântico de cada palavra, e dos significados que
42 Cf. José Pacheco, 2003b. O município e as politicas educativas públicas. Revista Pedagógica
Pátio, nº 25, 16‐19.
15
desempenham quando as políticas educativas descentralizadas correspondem,
efectivamente, a aspectos de recentralização, o currículo é uma prática e não um
mero jogo linguístico.
E perguntamos: Que descentralização curricular existe quando o Estado
define o que se ensina, quando se ensina, como se ensina, o que, quando e como
se avalia? Estamos perante um princípio administrativo: delegação de
autoridade, mas jamais delegação de responsabilidades43. De jure, o currículo
tem uma versão oficial, prescrita e normativa. Mais prescrição existirá quando a
administração define o currículo como um produto final, uniformizando os
planos curriculares que devem constar do projecto construído em autonomia.
Todavia, as escolas defrontam‐se hoje em dia com uma autonomia de conquista,
resultante da luta travada contra o centralismo burocrático e contra as
prescrições curriculares estandardizadas e totalizantes, visíveis cada vez mais
nos processos de regulação.
3. Processos de regulação
A transferência de políticas educativas e curriculares verifica‐se tanto ao
nível interno como ao nível externo, sendo este último o mais marcante,
principalmente na sinalização de trajectórias cada vez mais globalizantes
através de organismos que funcionam como palcos de decisão política e que
tendem para o enfraquecimento das territorialidades nacional, regional e local.
Na fig. 3, estabelecemos uma tipologia de regulação das políticas, de
acordo com uma relação complexa e não linear dos processos e práticas de
43 Cf. Guy Pélletier, Guy. 2001. Décentralisation, régulation et gouvernance de systèmes
éducatives: un cadre de référence. In G. Pelletier (dir.). Autonomie et décentralisation en éducation: entre projet et évaluation. Montréal: Éditions de l’AFIDES, p. 19.
16
decisão entre actores concatenados em função de aspectos comuns e de redes
coercivas definidas de acordo com os meios de influência44.
Fig. 3 – Níveis de territorialidade política.
Nos processos de regulação das políticas educativas e curriculares, a falta
de tradição de estudos analíticos das políticas educativas e a tendência para
interpretações extremas devem‐se fundamentalmente pela “referência a
políticas e projectos para a educação de origem externa e de circulação
supranacional, seja remetendo para influências nos planos político‐ideológico e
partidário, seja para intertextualidades promovidas por uma espécie de novo
senso comum educacional, produzido por agências e organismos
internacionais, difundido através de recomendações, relatórios ou livros
brancos, e especialmente recontextualizados pela comunicação social de massas
e por instituições de âmbito nacional” 45.
Transnacional Supranacional
Local
Regional Nacional
No processo de regulação, a década de noventa do século XX marca, pelo
menos no plano discursivo, a substituição de um “controlo pelas normas” por
um “controlo pelos resultados”, na medida em que novos vocábulos começam
44 Para uma análise global da transferência de políticas públicas, vide: Pedro Crespo e Salvador
Chávez, 2002., Globalización, gobierno y transferência de políticas públicas. El caso de la educación superior en México. Education Policy Analysis, 10 (41), 1‐29 (http://epaa.asu./epaa/v10n41.html ‐ consulta em 1 de Setembro de 2003).
45 Cf. Licínio Lima e Almerindo Afonso, 2002. Reformas da educação pública. Democratização, modernização, neoliberalismo. Porto: Edições Afrontamento, p. 8.
17
a fazer parte dos textos políticos e outros são ressignificados, em busca de uma
reedição de modismos, agora essencialmente traduzidos pela autonomia,
descentralização, qualidade, eficiência, qualidade, projecto, contrato, actor,
etc.46
O veículo de tais políticas, cada vez mais apresentadas como solução de
curto prazo, ainda que enquadradas em ciclos de reformas, tem como principal
motor a educação comparada, cuja ênfase se faz sentir quer pela “voz
estrangeira”, quer pela “voz do viajante”, sediado num organismo
internacional. Estamos, assim, no primeiro nível de regulação, de origem
transnacional, cujos processos são de contaminação e empréstimo de políticas e
cujos efeitos produzem a convergência, normalização e externalização47.
A externalização presente na dimensão transnacional, como escreve
Steiner‐Khamsi48, tem uma influência marcante nos processos de reforma
educativa: “Em épocas de rápidas mudanças sociais, e económicas e políticas,
as referências internas são insuficientes para justificar a persistência ou
introdução de reformas. É precisamente nestes momentos que a externalização
oferece a oportunidade de romper radicalmente com o passado e importar, ou
tomar como empréstimo, modelos, discursos ou práticas de outro sistemas
educativos”.
Tal processo de regulação cada vez mais se faz sentir, através das
organizações internacionais para‐universais (ONU, OIT, GATT, BIRD, AID,
FMI)49, atendendo não só às novas linguagens que em nome da globalização
46 Cf. José Carlos Morgado, 2003. Processos e práticas de (re)construção da autonomia
curricular. Braga: Universidade do Minho. Tese de doutoramento (policopiada). 47 Cf. João Barroso, 2003a. Organização e regulação dos ensinos básico e secundário, em
Portugal: sentidos de uma evolução. Educação & Sociedade, 24 (82), 63‐92. 48 Citado por João Barroso, 2003b. Regulação e desregulação nas políticas educativas:
tendências emergentes em estudos de educação comparada. In J. Barroso (org.). A escola pública. Regulação, desregulação, privatização. Porto Edições Asa, p. 28.
49 ONU (organização das Nações Unidas); OIT (Organização Internacional do Trabalho); GATT (Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio); BIRD (Banco Mundial, mais precisamente, Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento); SFI
18
impõem a necessidade de enveredar pela via da reforma, como também à
adopção de palavras‐clichê que preenchem os discursos políticos. E estas “são
palavras gastas pelo uso, obtusas, sem fio; palavras que se pronunciam e se
escutam quase automaticamente, superficialmente, sem encarnação singular,
nem no corpo, nem na alma; palavras mortas, solidificadas e opacas, não mais
capazes de captar, ou de expressar vida; palavras comuns e homogéneas, que já
não podem incorporar um sentido plural”50.
Uma organização internacional pode “definir‐se como uma associação
voluntária de sujeitos do Direito Internacional, constituída mediante tratado
internacional e regulada nas relações entre as partes por normas de Direito
Internacional, dotada de um ordenamento jurídico interno próprio, e de órgãos
próprios, através dos quais prossegue fins comuns aos membros da
Organização, mediante a realização de certas funções e o exercício dos poderes
necessários que lhe tenham sido conferidos”51.
A existência de organizações intergovernamentais regionais (por
exemplo, OCDE, OTAN, EFTA, OEA, OUA)52 origina um segundo nível de
regulação, de natureza supranacional, sobretudo se seguirmos o caso da União
Europeia. Permanência e autonomia da União Europeia53 em relação aos
estados membros são princípios que se conjugam com os princípios da
integração, quando se procura a criação de uma política conjunta entre
diversos estados, e da subordinação, com a existência de “relações verticais de
integração, que levam ao nascimento de um verdadeiro poder integrado, um
(Sociedade Financeira Internacional); AID (Associação Internacional de Desenvolvimento); FMI (Fundo Monetário Internacional).
50 Cf. Jorge Larrosa e Walter Kohan, 2003. Igualdade e liberdade em educação: a propósito de o Mestre Ignorante. Educação & Sociedade, 24 (82), p. 181.
51 Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, 1997. Manuel de Direito Internacional Público (3ª ed.). Coimbra:Almedina, p. 412.
52 OCDE ( Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico); OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte); EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre); OEA (Organização dos Estados Americanos); OUA (organização da Unidade Africana).
53 O Mercosul (Mercado Comum do Sul, criado em 1991, pelo Tratado de Assunção, tem como modelo a União Europeia
19
autêntico poder político comunitário, na titularidade da Organização
supranacional54.
Neste sentido, a agenda educativa nacional é fortemente dominada pela
agenda supranacional, no plano organizacional da União Europeia, também
influenciada pela regulação transnacional, com a tendência para o Estado‐
Nação se converter no Estado‐União. A sociedade do conhecimento é um
desígnio supranacional, com repercussões directas nas processos e práticas de
decisão curricular e de formação de professores e formadores a partir do
momento em que se pretende cumprir até 2010 um programa de trabalho sobre
os objectivos futuros dos sistemas de educação e formação., referenciado no
ponto sobre os desafios da sociedade do conhecimento.
No terceiro nível, encontra‐se a regulação nacional que, segundo João
Barroso, tem no governo, administração burocrática e profissionalismo docente
a origem; na sedimentação e hibridismo entre autonomia transnacional e o
centralismo nacional os processos; na coexistência de medidas contraditória os
efeitos55.
Apesar da existência das regulações transnacional e supranacional
transnacional com vertentes nacionais, sobretudo no caso da União Europeia,
as políticas educativas e curriculares têm, e decerto continuarão a ter,
características de um centralismo estatal, visível na aditiva montanha de
normativos que traduzem de forma clara o fenómeno burocrático. Do conjunto
dos processos de regulação das políticas educativas e curriculares, e fazendo‐se
a sua análise tanto nos ciclos de reforma, quanto nos ciclos de inovação56,
identifica‐se o modelo de uma política centralista e descentralista: prevalece a
54 Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, 1997, p. 423. 55 Cf. João Barroso,2003a. 56 As políticas educativas e curriculares podem ser analisadas em função de dois ciclos
principais: os ciclos de reforma e os ciclos de inovação, que têm funcionado no sistema educativo português num sistema de descontinuidade e de contraciclo. Assim, em 1986 inicia‐se o ciclo da reforma, dez anos mais tarde o ciclo da inovação e em 2003 atinge‐se mais um ciclo de reforma, que não é mais do que um contraciclo.
20
perspectiva normativa. Política educativa e curricular “descentralizada ao
nível dos discursos, mas recentralizada ao nível das práticas. A prática
educativa e curricular é autónoma no discurso e nos textos mas é definida e
regulada pela administração central através do estabelecimento de referenciais
concretos. Os territórios locais têm autonomia para (re)interpretar o currículo
em função de projectos curriculares que são administrativamente
controladosʺ57.
A regulação também se processa a nível regional, se a região corresponder
a um regime político‐administrativo próprio que se fundamenta nas suas
características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas
aspirações autonomistas das populações58, dotada de autonomia legislativa e
administrativa59.
Porém, no campo da organização política portuguesa, a regulação
curricular processa‐se a nível regional mais ao nível dos processos do que dos
fins, já que estes são definidos, na sua generalidade, pela dimensão nacional,
embora se reconheça que a educação é um lugar privilegiado da autonomia
regional, “nomeadamente na sua vertente formal, enquanto sistema educativo,
e nas orientações que a regem e que a tornam específica no todo nacional”60.
A dimensão local, último nível de regulação, impõe‐se, pelas regras
informais e pelas redes de inovação subversivas, não se decreta nem
uniformiza. Existe pela aglutinação de identidades e pela adopção de práticas
de inovação quotidiana.
Na medida em que os espaços de incerteza actuam formal e
informalmente no quadro de um “sistema de acção concreto”61, decorrente de
uma regulação estatal que não é unitária nem coerente, há lugar para processos
57 Cf. José Pacheco, 2002. Políticas curriculares. Porto: Porto Editora, p. 33. 58 Cf. art. 225º da Constituição da República Portuguesa. 59 Idem, art. 228º. 60 Cf. Luís Maciel Silva, 2002, p.1 61 Cf. Erhard Friedberg, 1995. O poder e a regra. Dinâmicas da acção organizada. Lisboa: Instituto
Piaget.
21
de micro‐regulação local, assumidos por actores que interagem,
estrategicamente, num espaço de conflitos e indefinições. “Numa palavra, não
se trata nem de super‐homens hiper‐racionais e soberanos, nem de esponjas
que absorvem as normas exteriores, nem de simples suportes de estruturas”62.
A outro nível, a regulação local pode coincidir com o poder das autarquias
locais (enquanto pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos
representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações
respectivas63), sobretudo se as suas competências na educação forem
significativamente ampliadas, não se limitando a uma participação indirecta.
Aliás, o Conselho Local de Educação64 é agora uma:
“instância de coordenação e consulta, que tem por objectivo promover, a nível municipal, a coordenação da política educativa, articulando a intervenção, no âmbito sistema educativo, dos agentes educativos e dos parceiros sociais interessados, analisando e acompanhando o funcionamento do referido sistema e propondo as acções consideradas adequadas à promoção de maiores padrões de eficiência e eficácia do mesmo”.
Quer dizer que os municípios, através dos Conselho Local de Educação,
são os que, independentemente da sua participação na definição das macro‐
políticas educativas, passam a ser responsabilizados pela promoção da
eficiência e eficácia do sistema educativo. Donde que a descentralização é uma
forma muito subtil de esconder responsabilidades, sobretudo quando o Estado
não reconhece as suas próprias debilidades.
A linguagem da autonomia, da flexibilidade é sobretudo uma outra forma
de o Estado agir, pois como refere Charlot65, a descentralização ʺnão é uma
conquista do local mas o efeito de uma política nacional: ela foi desejada,
definida, organizada e posta em prática pelo Estadoʺ. E podemos acrescentar: a
62 Idem, Ibidem, p. 200. 63 Cf. art. 235º da Constituição da República Portuguesa. 64 Cf. Decreto‐lei n.º 7/2003, de 15 de Janeiro, 65 Cf. Bernard Charlot, 1994. Lʹécole et le territoire, Nouveaux espaces, nouveaux enjeux. Paris:
Armand Colin, p. 27.
22
descentralização, enquanto processo de responsabilização das escolas e dos
professores, responde, simultaneamente, às necessidades de um Estado forte
na selecção, organização e avaliação do conhecimento escolar e de um Estado
fraco na gestão do seu processo de implementação.
Entre os diferentes processos de regulação existem redes coercivas
directas e/ou indirectas definidas de acordo com os meios de influência e do
grau de aplicabilidade das políticas (fig. 4):
Transnacional Supranacional
Local
Regional Nacional
Coerção directa Coerção indirecta
Fig. 4 – Trajectórias de coerção
Partindo da análise das actuais políticas educativas e curriculares,
constata‐se que a coerção é indirecta , excepto para os casos de contratos de
subordinação explícitos, nas trajectórias: transnacional – supranacional;
regional – regional; transnacional‐local; supranacional‐local. Por sua vez, a
coerção é directa nas trajectórias: supranacional‐nacional; regional‐local;
nacional‐local; regional‐local, embora seja mais reforçada nas duas últimas
trajectórias, contribuindo para que a trajectória regional‐local tenha menos
eficiência.
23
Dentro de cada territorialidade existem trajectórias específicas que são a
síntese das regras de poder.
A tipologia de processos de regulação descrito pode ser ainda visto a
partir de concepções diferentes de política. Em termos formais, a política, na
sua definição mais global, é um enunciado performativo porque dimana de
alguém investido de autoridade, cuja análise “não se limita ao estudo das
produções discursivas ou dos textos doutrinais das reformas, nem se esgota na
interpretação dos processos legislativos e das regras jurídicas e formais
produzidas pelos actores políticos centrais, nem sequer na acção administrativa
levada a cabo pelos aparelhos burocráticos centralizados”66. Deste modo, a
política deve ser entendida mais como um processo, que ultrapassa o domínio
do Estado, embora a análise política consista, em geral, “em descobrir o que os
governos fazem, porque o fazem e que diferença é que isso faz”67.
Assim, a política é, ao mesmo tempo, processo e produto, envolvendo
quer a produção de intenções, ou de textos, quer a realização de práticas, ou de
acções concretas, ou ainda de texto e discurso68.
Quer os documentos de orientação, elaborados pelos organismos
internacionais, quer os textos curriculares, oriundos da administração central,
são documentos de trabalho que simbolizam o discurso oficial do Estado que
agrega interesses diversos e compromissos elaborados a diversos níveis de
acção. Porém, são textos macropolíticos que se inserem num linha de
racionalidade técnica quando os contextos de microdecisão política são
marginalizados. Reconhecer‐se‐á, assim, que as decisões políticas são
fragmentadas e multicentradas.
No entanto, há outros discursos que também legitimam a política e que
são produzidos no contexto das diferentes práticas, pois ʺa acção pode ser
66 Licínio Lima e Almerindo Afonso, 2002, p. 10. 67 Jenny Ozga 2000. Investigação sobre políticas educacionais. Porto: Porto Editora, p. 83. 68 Stephen Ball, 1997. Education reform. A critical and post‐structural approach (2ª ed.). Oxford:
Oxford Open University Press.
24
determinada de modo diferente mas não é determinada pela políticaʺ69. Neste
caso, não há um decisor político, mas diversos decisores políticos por mais
coesa e uniforme que seja a proposta de texto.
Com efeito, as políticas educativas e curriculares são decididas e
construídas em espaços e vertentes que envolvem lutas e compromissos e que
de forma alguma se restringem ao conceito racional e operativo da linearidade
política: o papel da administração na prescrição curricular, através de uma
estratégia de verticalização.
Ao contrário da perspectiva prescritiva, em que a política se processa em
distintas fases lineares, desde a formulação até à avaliação, a política tem uma
outra realidade: é um processo complexo, interactivo, multifacetado,
desarticulado e menos racional. Não se trata de legitimar os dois níveis de uma
noção linear de política através partir de duas categorias analíticas autónomas
ou justapostas: uma, o nível da concepção, a outra, o momento da
implementação. Se numa política tradicional estes dois momentos são cruciais,
no entanto, a passagem para o momento da prática faz‐se através de inúmeros
filtros que não só determinam o percurso das intenções como também
acrescentam diversas leituras, uma vez que a construção de significados
depende dos contextos em que se inserem.
Por isso, é “indispensável integrar nas análises de política educativa as
dimensões micropolíticas e mesopolíticas, as dinâmicas e as lógicas de acção
específica de cada contexto, de cada organização educativa e da diversidade e
heterogeneidade dos actores, contrariando focalizações normativistas e
legalistas, imagens meramente reprodutivas da acção política levada a cabo
por instâncias e actores tradicionalmente considerados centrais, instantâneos
do sistema educativo e das escolas em função, apenas, das orientações
69 Idem, Ibidem, p. 19.
25
megapolíticas e macropolíticas, por mais relevantes que sejam actualmente os
fenómenos políticos de tipo global ou transnacional”70.
4. Lógicas curriculares
A regulação política inclui processos e práticas existentes em diferentes
territorialidades, com estratégias complexas de transferência de decisões e
lógicas de acção. Em termos de construção do currículo, e partindo do lado da
prescrição e do lado da análise crítica, identificamos quatro lógicas em função
do modelo das racionalidades técnicas e do modelo das racionalidades contextuais71
Neste caso, incluímos, no modelo das racionalidades técnicas, dois
referentes concretos: a engenharia tyleriana e a engenharia mercantil que, por
sua vez, estão na origem de outras duas lógicas de construção dessas políticas ‐
a lógica de Estado e a lógica de mercado; e incluímos, no modelo das
racionalidades contextuais, outros dois referentes: a racionalidade crítica e a
racionalidade cultural que fundamentam duas lógicas específicas ‐ a lógica do
actor e a lógica cultural (fig.5):
Rac
iona
lidad
escontextuais
Racionalidade cultural
Racionalidade Crítica
Engenharia mercantil
Engenharia tyleriana
Lógica de Lógica Estado do actor Lógica de Lógica mercado cultural
Racion
alidad
estécnicas
Fig. 5 ‐ Lógicas na construção das políticas curriculares (Pacheco, 2002).
70 Licínio Lima e Almerindo Afonso, 2002, p. 11. 71 Cf. José Pacheco, 2002.
26
Tais lógicas devem ser entendidas como campos de poder que
legitimam, em diferentes momentos, as políticas curriculares. Metaforicamente
pode‐se dizer que cada lógica curricular funciona, num vasto e complexo
mundo subterrâneo, nas mesmas condições das placas tectónicas, sujeitas a
alterações e a ritmos de reajustamentos em função de critérios geográficos.
Cada lógica curricular é, deste modo, um poder diferenciado que deve ser visto
não só como um espaço próprio, com as suas dinâmicas e fronteiras específicas,
mas também como um espaço interdependente e permeável, com as suas
relações construídas na base do conflito, porque é manifesta a impossibilidade
de um consenso absoluto.
Enquanto espaço social diferenciado, onde os significados são
legitimados pelos vectores da ideologia e hegemonia, a lógica educativa e
curricular identifica‐se pelos jogos de poder existentes. Assim, a educação é
construída pela luta de diferentes fronteiras que delimitam terrenos de
participação e âmbitos de decisão. Não se poderá, contudo, aceitar que a
educação, em geral, e currículo, em particular, sejam a expressão de uma única
lógica, na medida em que as lógicas de Estado, de mercado, do actor e cultural
são peças de um puzzle que adquire sentido pelas fronteiras que são
conquistadas em momentos diferentes.
Com razão se propõe que as políticas educativas e curriculares resultam
de complexas decisões que derivam tanto do poder político oficialmente
instituído quanto dos actores com capacidade para intervir directa ou
indirectamente nos campos de poder em que estão inseridos.
Consequentemente, Gimeno72 afirma que as ʺpolíticas e práticas da educação
não podem ser pensadas nem governadas à margem dos agentes. A
racionalidade técnica cede, assim, a proeminência a uma outra racionalidade
72 Cf. José Gimeno, 1998. Poderes inestables en educación. Madrid: Morata, p. 82.
27
imperfeita, modesta nas suas aspirações mas compreensiva das realidades
sociais e humanasʺ.
Tanto a forma como o conteúdo das políticas educativas e curriculares
não são decididos nem a partir de critérios meramente técnicos nem de sólidos
argumentos teóricos e científicos, mas na base de opções políticas que, em
termos ideológicos, representam noções distintas de Estado e lógicas
proporcionais às influências dos grupos sociais com interesses e valores
educativos.
5. Desafios da sociedade do conhecimento
O currículo não é, por isso, um projecto que diz respeito somente a
professores e a alunos, mas que abrange todos os intervenientes que, directa ou
indirectamente, participam na sociedade do conhecimento ou na sociedade de
aprendizagem, tal como propõe Hargreaves73.O que torna divergente o
currículo são as questões em torno do conhecimento, quer no que diz respeito
aos aspectos culturais, políticos, económicos e sociais, sobretudo com a selecção
e organização em disciplinas, quer no que se prende com a transformação
didáctica ao nível do processo de ensino/aprendizagem.
Porque estamos na sociedade dominada pela informação, ou melhor dito
na sociedade do conhecimento, “o conhecimento é um recurso flexível, fluido,
sempre em expansão e em mudança”74. Neste sentido, a escola é exaltada como
a plataforma de democratização da sociedade se à partida for a âncora do livre
e igual acesso de todos os aprendentes à aprendizagem. Consequentemente,
quanto mais se fala de sociedade do conhecimento, e sobretudo na economia
do conhecimento, mais existe a tendência para reforçar o currículo nacional,
73 Cf. Andy Hargreaves. O ensino na sociedade do conhecimento. A educação na era da insegurança.
Porto: Porto Editora (publicação em 2004). 74 Cf. Andy Hargreaves, 2004, p. 34.
28
com a definição de competências gerais e estratégicas, comuns aos sistemas
educativos.
A ênfase da educação está, por isso, na centralidade do conhecimento,
com a clara tendência para o reforço de políticas mais eficientes, ainda que
nominalmente designadas por políticas descentralizadas, de controlo
curricular75, na mistificação da aprendizagem ao longo da vida e na
religiosidade da competência. Acredita‐se, pois, que a solução para os
problemas económicos se encontra na redefinição do conhecimento através de
um McCurrículo76, capaz de impor a cultura uniforme, práticas estandardizadas
e a divisão dos saberes (áreas disciplinares – núcleo forte do currículo, ou hard
currículo; áreas não disciplinares – núcleo fraco, light, do currículo, ou soft
currículo). A existência de um McCurrículo existe na medida em que se
reforçam outras territorialidades que ultrapassam o espaço nacional, capazes
de silenciar as territorialidades regional e local. Por isso mesmo, o sistema
educativo é traduzido em números que expressam os resultados de
aprendizagem e a seriação das escolas, pretendendo‐se ignorar que “uma
percentagem de 25% do potencial de sucesso dos alunos (…) continua a ser da
responsabilidade da escola e dos professores”77. Também se ignora o papel que
a comunidade educativa tem no sucesso dos alunos, mormente quando se
constitui numa referência para valores, para práticas democráticas, tanto no
acesso quanto na avaliação do conhecimento, e para identidades traduzidas
pelo carácter das regiões e das escolas, onde se reconhece que “o ensino não é
uma prática exclusivamente cognitiva e intelectual, mas também social e
emocional”.
75 Os documentos dos anos oitenta do século XX, respectivamente publicados nos Estados
Unidos da América e na Inglaterra, “A nação em risco” e “A educação não está a funcionar”, são exemplos de um centralismo curricular associado às políticas neoliberais e neo‐conservadoras.
76 A proposta deste conceito é feita a partir da leitura de Andy Hargreaves, 2004, p. 34. 77 Cf. David Hopkins. Prefácio. In Andy Hargreaves, 2004., p. 11. O autor refere‐se a estudos
realizados pelo governo do Reino Unido.
29
A obsessão pela eficiência e pelo resultado, cultivada pelos defensores
de um escola meritocrática, embora de raiz democrática, pois à partido todos
têm a mesma possibilidade, ainda que orwellianamente uns tenham mais
hipóteses de sucesso que outros, transforma a aprendizagem numa corrida
clínica e desapaixonada, orientada para determinadas metas, [ocupando] o
tempo dos professores com tarefas técnicas, de modo que não reste qualquer
espaço para a criatividade, para a imaginação e para o estabelecimento de
relações interpessoais – para tudo aquilo que alimenta a paixão de ensinar”78.
Quando se discute o sistema educativo e factores de regionalização e
localização do currículo é necessário também debater o currículo nacional, o
core curriculum, ou o currículo comum em termos que não nos coloquem na
obrigação de dizer simplesmente não.
A problemática do currículo comum, tanto menosprezada pelos
educadores críticos, é algo que deve ser discutido, mormente a partir do
momento que se reconhece a educação como um direito cultural. Deste modo,
o currículo comum, formulado e desenvolvido de maneira flexível, tem que dar
resposta ao pluralismo social e cultural, admitindo as diferenças entre culturas
sem renunciar à universalidade de muitos traços culturais e de certos objectivos
básicos79.
Contudo, e tal como é comummente defendido em diversos documentos
de organismos multilaterais e na bibliografia que reconhece a vantagem da
empresarialização da educação, o currículo comum é expresso na forma de
competências muito genéricas, para as quais contribuirão a escola, em termos
de uma formação geral, de pendor vocacional, e o mercado de trabalho, na
forma de uma formação específica, de natureza ocupacional. Numa perspectiva
muito pragmática, mas redutora do papel da educação, admitir‐se‐á que a
78 Cf. Andy Hargreaves, 2004, p. 94. 79 Cf. José Gimeno, 2002. Educação obrigatória. Seu sentido educativo e social. Porto: Porto Editora.
30
escola tem a função de veicular saberes, cuja importância é mais validada
pelo empregador do que pelo professor.
Daí que o documento sobre os objectivos futuros concretos dos sistemas de
educação e formação80 seja crucial na definição dos objectivos estratégicos para
tornar o espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade81 e
possibilitar a emergência de uma europa do conhecimento.
Estaremos ou não perante os primeiros objectivos estratégicos de um
currículo europeu que dê sentido social à educação obrigatória e atribua uma
finalidade profissionalizante aos ensinos secundário e superior?
As identidades educacional e curricular são, assim, conjugadas com o
espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida e a europa do
conhecimento mediante o reforço de uma política europeia das universidades
no sentido de tornar a Europa “na economia do conhecimento mais
competitiva e dinâmica do mundo”82.
Para além das atribuições culturais que lhe são confiadas, a educação
surge, nos documentos de orientação da União Europeia, entre as políticas que
promovem a competitividade económica e empresarial, num quadro de
mudanças advindas da globalização, e que, por isso, devem reforçar a europa
do conhecimento. A nova economia baseada no conhecimento parte da
convicção que este é a chave da competitividade e do desenvolvimento
económico e social europeu.
Tornar a europa do conhecimento uma realidade significa o
reconhecimento de um espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida que
englobe aspectos que são essenciais em qualquer documento económico
80 Cf. Relatório Objectivos futuros concretos dos sistemas de educação e formação, aprovado no
Conselho Europeu de Estocolmo, em 2001. Cf., de igual modo, Comunidades Europeias, 2002. Educação e formação na Europa: sistemas diferentes, objectivos comuns para 2010. Luxemburgo: Serviço das publicações Oficiais das Comunidades Europeias.
81 Cf. Relatório Tornar o espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade, comunicação da Comissão, em 21 de Novembro de 2001.
82 Cf. Relatório Tornar o espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade, p. 8.
31
direccionado para a competitividade e qualidade: espaços de aprendizagem,
empregos, conhecimentos, competências, recursos e parcerias.
A valorização da aprendizagem (formal, não formal e informal) é um
dos vectores principais nos documentos que são discutidos no âmbito da União
Europeia e ainda mais nos documentos de orientação sobre as políticas
educativas. O conceito de aprendizagem ao longo da vida é associado a uma
estratégia europeia para o emprego e reúne consensos relativamente a quatro
áreas globais de formação: realização pessoal, cidadania activa, inclusão social
e empregabilidade/adaptabilidade83. A definição aprendizagem ao longo da
vida consagra, assim, “toda a actividade de aprendizagem em qualquer
momento da vida, com o objectivo de melhorar os conhecimentos, as aptidões e
competências, no quadro de uma perspectiva pessoal, cívica, social e/ou
relacionada com o emprego”84.
Aprendizagem e competência são as duas faces de uma política de
educação e formação centrada na economia do conhecimento, pois o Estado
que não definir os saberes de base será um Estado desligado da nova realidade
europeia ou da grande casa do conhecimento que se procura edificar em nome
da competição económica. Mais uma vez ‐ e o currículo das organizações de
aprendizagem obedece a uma tradição inventada85, na medida em que as
propostas ora se repetem, ora são reformuladas ‐ o conhecimento é redefinido
em função de interesses económicos, tal como o demonstram diversos estudos
sobre as disciplinas escolares e as áreas de conhecimento referenciados por
Goodson86.
Advoga‐se ainda, no referido documento, que estamos num tempo de
transição: do conhecimento para a competência e do ensino para a
83 Idem, p. 11 84 Idem, p. 11. 85 Para uma análise deste conceito, vide: José Pacheco, 2001. 86 Cf. Ivor Goodson, 2001. O currículo em mudança. Estudos na construção social do currículo. Porto:
Porto Editora.
32
aprendizagem pelo que os “aprendentes devem, na medida do possível,
assumir a responsabilidade da sua própria aprendizagem e procurar
activamente adquirir conhecimentos e desenvolver as suas competências”87.
Assim, o principal desafio que a sociedade do conhecimento nos coloca
não é o de seguir a uniformidade do que se aprende, a estandardização de
práticas curriculares, mas o de reduzir o currículo nacional, a partir da
discussão de critérios em torno duma cultura básica comum que não silencie e
marginalize a criatividade, as experiências enriquecedoras e a diversidade
presente nos múltiplos processos de aprendizagem. Reduzir o currículo
nacional, estabelecendo parâmetros concretos para a identificação do conjunto
nuclear de aprendizagens básicas, é um imperativo que trará qualidade e
eficiência, não desfigurando os propósitos das seitas da formação para o
desempenho88, unicamente voltadas para o lado cognitivo da aprendizagem,
apenas reorientando‐os para novos modos de olhar para a riqueza que existe
no interior das escolas.
6. Referentes para um currículo regional
A construção de um currículo regional realiza‐se através de critérios bem
explícitos, cuja referencialização exige uma discussão e problematização
permanente, aliados a propósitos que se estabelecem como metas a alcançar
num determinado tempo e espaço. Neste sentido, e mais no âmbito de uma
reflexão do que no contexto de uma receita, preconizamos para o currículo
regional as seguintes ideias:
a) O currículo regional é um documento de trabalho que favorece a
democratização escolar se for elaborado na procura da igualdade e da
diversificação dos percursos de aprendizagem.
87 Cf. Relatório Tornar o espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida uma realidade, p. 30. 88 Cf. Andy Hargreaves, 2004, p. 236.
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b) O currículo regional é um documento de trabalho a elaborar na base
da deliberação curricular, implicando escolhas, compromissos e perdas
e ganhos.
c) O currículo regional é um documento de trabalho que produz o
conflito curricular.
d) O currículo regional é um documento de trabalho que segue o
princípio da integração de saberes, valores, atitudes e capacidades.
Tais ideias só se tornam válidas na base dos seguintes princípios
formativos e áreas de intervenção:
a) A democracia como estilo de trabalho ao nível de todos os
contextos da vida escolar, assumindo‐se a Escola como uma
Comunidade onde se observam os princípios da igualdade, da
diversidade, da justiça e da participação.
b) Aprendizagem educativa referenciada pelos parâmetros de uma
cultura básica comum, enquadrados no currículo nacional, e de
uma cultura diferenciada em função dos contextos regionais e
locais.
c) A aprendizagem educativa referenciada por propósitos bem
delineados e organizados – objectivos, competências – em
projectos de formação adequados aos aprendentes e à realidades
das escolas e comunidades.
d) A Escola ocupa um lugar central na elaboração de uma postura ética e
na discussão dos problemas sociais, cuja matriz de resposta exige a
diversidade e o reconhecimento da diferença.
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e) A cidadania como registo cívico (função socializante em direitos e
deveres) e como registo afectivo (contacto com problemáticas do
quotidiano)
f) Aprendizagem educativa referenciada pela valorização das
tecnologias de informação e comunicação que valorizem tanto a
lógica de participação na sociedade da aprendizagem quanto a
lógica de utilização da informação como processo de construção
do conhecimento.
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