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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
CHANCELER - Dom Dadeus Grings REITOR - Norberto Francisco Rauch VICE-REITOR - Joaquim Clotet CONSELHO EDITORIAL
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Helena Noronha Cury Jayme Paviani Jussara Maria Rosa Mendes Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva Marília Gerhardt de Oliveira Mírian de Oliveira
Urbano Zilles (Presidente) Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime
EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
C.P. 1429 90619-900 Porto Alegre – RS
Fone/Fax.: (51) 3320-3523 E-mail edipucrs@pucrs.br
www.pucrs.br/edipucrs/
© Copyright de EDIPUCRS, 2004
J22. Jaeschke, Walter Direito e eticidade. / Walter Jaeschke. – Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2004.
80 p. – (Coleção Filosofia, n° 176) ISBN: 85-7430-436-0 1. Ética. 2. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich – Crítica e Interpretação. 3. Filosofia do Direito. I. Título II. Série
CDD: 172.2
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa desta Editora
Capa: Felipe Castro Diagramação: Mônica Severo da Silva Diagramação da versão digital: Maria Eduarda Sardo Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO / 6
Draiton Gonzaga de Souza
DIREITO E ETICIDADE / 8
PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL / 19
SUBJETIVIDADE E INTERSUBJETIVIDADE NA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ / 32
ESPÍRITO E HISTÓRIA / 43
6 Coleção Filosofia - 176
APRESENTAÇÃO
Prof. Dr. Walter Jaeschke estudou filosofia, história das religiões e sinologia na
Universidade Técnica de Berlim e na Universidade Livre de Berlim; nesta, doutorou-se
com a tese Die Suche nach den eschatologischen Wurzeln der Geschichtsphilosophie.
Eine historische Kritik der Säkularisierungsthese (München, Kaiser, 1976, 368p., A
busca das raízes escatológicas da filosofia da história. Uma crítica histórica à tese da
secularização). O trabalho de livre-docência, apresentado na Universidade de Bochum,
intitula-se Die Vernunft in der Religion. Studien zur Grundlegung der
Religionsphilosophie Hegels (Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1986, 478p., A razão na religião. Estudos sobre a fundamentação da filosofia da religião de
Hegel). De 1974 a 1989, trabalha no Arquivo Hegel da Universidade de Bochum e, de
1989 a 1998, na Academia das Ciências de Berlim-Brandenburg e na Universidade Livre
de Berlim. Em 1998, retorna para a Universidade de Bochurn, como Professor de
História da Filosofia, com ênfase no Idealismo Alemão, e Diretor do Arquivo-Hegel.
Além disso, trabalhou e trabalha na edição de obras de Jacobi, Schleiermacher,
Feuerbach e, sobretudo, de Hegel, além de coeditar, com Prof. Dr. Ludwig Siep
(Münster), a revista HegelStudien, internacionalmente renomada. Já organizou diversas
coletâneas, escreveu vários verbetes de léxicos importantes, artigos e livros, que
denotam uma vasta erudição — haja vista ser um profundo conhecedor da história da
filosofia —, aliada a uma capacidade especulativa exemplar; seus escritos sobre a
filosofia de Hegel, já traduzidos em vários idiomas (português, espanhol, italiano, inglês,
grego, japonês etc.), tornaram-se referência mundial nos estudos hegelianos. Há pouco
foi lançada, na Alemanha, uma obra extraordinária do autor, o Hegel-Handbuch. Leben,
Werk, Wirkung (Stuttgart, Metzler, 2003, 597p., Manual Hegel: vida, obra, influência),
na qual Jaeschke apresenta uma visão panorâmica da vida de Hegel, com uma
apresentação detalhada do pensamento hegeliano. O presente volume reúne palestras proferidas pelo eminente Prof. Dr. Walter
Jaeschke, em diversas Universidades do Brasil em 2001 e 2002, e uma proferida em
Santiago do Chile, em 1999, concentrando-se em temas ligados ao Idealismo Alemão,
sobretudo a filosofia de Hegel: a relação entre espírito e história, entre Direito e
eticidade, a controversa questão da subjetividade e intersubjetividade na filosofia
clássica alemã e os problemas centrais Filosofia hegeliana do Direito.
No Brasil, Prof. Jaeschke proferiu palestras em Porto Alegre, Florianópolis,
Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. A todos os colegas que colaboraram na organização
da vinda do Prof. Jaeschke ao Brasil queremos agradecer sinceramente, sobretudo a Prof.
Coleção Filosofia – 176 7
Dr. Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Profa. Dra. Márcia Gonçalves (UERJ), Profa. Dra.
Maria de Lourdes Borges (UFSC), Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Jr. (UNICAMP), Nikolai
Petersen e Reinhard Sauer (respectivamente, ex-diretor e diretor do Instituto Goethe de
Porto Alegre). Além disso, agradecemos ao Prof. Dr. Urbano Zilles (PUCRS), que
possibilitou a publicação dessa coletânea na Coleção Filosofia, por ele dirigida.
Por fim, nosso agradecimento ao Prof. Jaeschke, que, não obstante os inúmeros
compromissos que tem, não apenas na Alemanha, mas em diversos países da Europa, e para
além dela, aceitou nosso convite para vir ao Brasil nos três primeiros anos do século XXI. Com a publicação da presente coletânea, contendo textos traduzidos por Peter
Naumann, Prof. Dr. Luís Marcos Sander (EST), Profa. Dra. Márcia Gonçalves (UERJ) e
por mim, querernos facultar aos leitores da língua portuguesa, no Brasil, um primeiro
contato com o pensamento de Walter Jaeschke, que, muito mais que uma mera
reprodução, representa uma recepção crítica e criativa de grandes autores e de grandes
temas da tradição do pensamento ocidental.
Prof Dr. Draiton Gonzaga de Souza
8 Coleção Filosofia - 176
DIREITO E ETICIDADE
1. A origem da “eticidade”
a) ―Direito‖ e ―eticidade‖ — esses dois conceitos constituem os dois pontos focais
da filosofia hegeliana do Espírito Objetivo. Apesar de sua relação recíproca, são muito
dessemelhantes, por conseguinte precisam de um tratamento distinto: o conceito do
direito é de uso geral e não parece necessitar de explanações. Já o conceito de eticidade
descende, por assim dizer, de uma linguagem particular de Hegel; é artificial e carece de
esclarecimento. Na verdade, ele se afigura compreensível, se sinonimizamos ―eticidade‖
e ―moralidade‖ — mas essa identificação não é pertinente. Igualmente, a tentativa de
compreender a ―eticidade‖ face ao fundo histórico da vida ética bela da pólis grega
desperta uma associação ao menos parcialmente errada. Ambas as associações —
―moralidade‖ e ―eticidade da pólis‖ — talvez se justifiquem com vistas à formulação
originária do conceito. Mas seu significado transcende a ambas. Já nos primeiros
esboços redigidos por Hegel em Jena, nos quais o conceito ―eticidade‖ ainda não nega as
suas conotações históricas, ele não está historicamente fixado, E já aqui ele é um
conceito oposto a ―moralidade‖ — e até a ―direito‖. b) O primeiro texto de Hegel já mostra isso, explicitando esse conceito
sistematicamente e sendo por isso, não sem razão, intitulado por seu biógrafo Sisema da
eticidade. Sob o título ―eticidade‖, esse ―sistema‖ oferece, por assim dizer, toda uma
―fenomenologia da natureza social‖ — sobrepujando dessarte a dualidade de ―direito‖ e
―moralidade‖ pela pletora dos temas tratados sob a rubrica ―eticidade‖: sentimento prático,
trabalho, ferramenta, máquina, reconhecimento, troca, contrato, dinheiro, comércio,
dominação e servidão, crime, até a ―eticidade absoluta‖: o povo, a constituição do Estado,
o governo, a justiça, a teoria das formas do Estado e a sua ligação com a religião.
Esse dimensionamento do ―Sisterna da eticidade‖ volta-se energicamente contra a
dualidade de direito e moral, que, mesmo hoje, ainda se nos afigura como princípio
evidente per se de subdivisão da filosofia prática. Ele possui também uma pré-história
que remonta à Antiguidade. Mas, na época de Hegel, ela de modo algum está
firmemente ancorada na consciência coletiva. Por um lado, a diferença fática das
disciplinas ―Teoria do Direito‖ e ―Teoria da Virtude‖, na Metafísica dos costumes de
Kant, respectivamente a diferença também formal entre o Fundarnento do Direito
Natural e o Sistema da teoria da eticidade de Fichte säo paradigmáticos para a pré-
história direta de Hegel. Mas essa diferença é, na época, um produto recente da
dissolução ou, para dizê-lo em termos positivos, um produto da diferenciação da ciência unitária do Direito Natural que se estende até ao limiar da filosofia de Kant. E ela é,
outrossim, simultaneamente, uma redução da abrangência do Direito Natural, à medida
que o seu terceiro elemento, o ―decorum‖, o ―costume‖, ao lado do ―iustum‖ e
Coleção Filosofia – 176 9
―honestum‖, perdeu sistematicamente o seu lugar na dualidade de direito e moral,
própria da filosofia transcendental.
O conceito hegeliano de eticidade procura reconduzir essa diferença — reduzida e
ao mesmo tempo autonomizada — a uma unidade abrangente, porém intrinsecamente
diferenciada. No entanto, o conceito-chave da integração renovada das disciplinas
separadas pela filosofia transcendental não é mais o conceito tradicional do Direito
Natural, mas o da ―eticidade‖. Sob esse título Hegel compreende a totalidade das situações
da vida humana; a moral ou o direito constituem apenas os seus momentos abstratos. No conceito de ―eticidade‖ pensa-se a totalidade das figuras nas quais a vida social se
explicita. Como no matrimônio, elas podem alcançar até a esfera da dimensão biológico-
natural, mas em sua essência constituem uma figura própria, imanente à vida espiritual, por
assim dizer natural para ela e justamente por essa razão historicamente mutável.
c) Hegel esboça essa imagem de uma ―vida ética‖ construída de modo
originariamente social, e não secundariamente a partir de átomos humanos, em oposição,
não apenas a dualidade de direito e moral, mas também à fundamentação contratualista
do convívio humano, especificamente própria da Idade Moderna. Mas aqui não se trata
apenas da diferença entre uma interpretação individualista e coletivista de relações
sociais. O povo ético não representa a totalidade numérica dos cidadãos dos Estados
modernos — assim como, genericarnente, no Sisterna da eticidade, dos primeiros anos,
falta de modo claramente provocador o conceito de Estado — em favor do conceito
naturalista do povo. A comunhão ética ―absoluta‖ do povo forma aqui o último horizonte
da vida hurnana, conforme o princípio aristotélico: ―Totum parte prius esse necesse est‖.
Aqui, num primeiro momento ainda, o ―povo ético‖ é o povo idealizado da pólis
grega. Isso se evidencia, com particular nitidez, no fato de Hegel denominar ―a
divindade do povo‖ a ―universalidade que simplesmente uniu consigo mesma a particularidade‖. Vista na forma ideal da particularidade, ela seria ―O deus do povo‖
1. O
que indiciará no pensamento posterior de Hegel uma deficiência da antiga configuração
da eticidade — o fato de a esfera do Espírito Absoluto ainda não se ter separado do
Espírito Objetivo — se manifesta aqui ainda de forma irrestritamente afirmativa como
indício da coerência desejada da vida ética.
E, apesar disso, também aqui já é unilateral o caráter ―tendente à imitação da
Antiguidade‖, próprio do conceito de eticidade. Até a referência ao povo idealizado da
pólis antiga se torna ambivalente numa época em que correntes no interior da Revolução
Francesa buscam resgatar e, nesse empenho, copiar a unidade antiga da vida para o
mundo moderno. De qualquer modo, a face bifronte de Jano antigo-moderna do Sistema
da Eticidade fica visível logo de saída na escolha conceitual. Com o conceito de sistema,
Hegel se coloca expressamente na tradição pós-kantiana, que busca realizar a
reivindicação de Kant de um detalhamento da filosofia no sistema. E da ―eticidade
absoluta‖ Hegel faz uma afirmação dupla: ―A sua intuição é um povo absoluto; seu
conceito, a união absoluta das individualidades‖; e isso encerra, ao menos, também um
1 GW 5.325s.
10 Coleção Filosofia - 176
momento moderno-individualista2. Ambos — ―povo absoluto‖ e ―União absoluta das
individualidades‖ — são constitutivos para o conceito de eticidade.
d) O percurso de Hegel, desse texto da sua primeira fase até a filosofia do direito
dos seus anos de Heidelberg e de Berlim, é simultaneamente o caminho da eticidade
imitadora da Antiguidade para a eticidade moderna. E esse caminho é, também para o
próprio Hegel, um longo caminho, que passa por experiências históricas e no qual as
oposições de antanho se perdem. Trata-se do caminho da formação progressiva do seu
sistema e, ao mesmo tempo, da formação de um conjunto de instrumentos analíticos. Depois dos anos em Jena, as estações desse caminho estão quase totalmente encobertas
para nós. Os anos de Nürnberg permitem lançar olhares apenas ocasionais sobre ele,
mas, quando permitem descortiná-lo, eles revelam uma paisagem intelectual
transmudada: ―O Estado é a efetividade do direito e da moral ou, mais propriamente, dos
costumes, [...]. O próprio Estado, seu povo, devem possuir os costumes, devem ser bons,
morais. ter os costumes por hábito e retornar dessarte à natureza. Por isso a eticidade é
mais elevada do que a moralidade, ainda que nos tempos mais recentes se afirme (sem
razão) o contrário‖3. Somente a primeira versão da sua Enciclopédia (1817) esboça uma
filosofia do Espírito Objetivo, subdividida em direito — moralidade — eticidade.
Nesse caminho da ―eticidade‖ rumo ao ―Espírito Objetivo‖, o conceito da
eticidade perde as suas conotações históricas da primeira fase. Transforma-se em
conceito formalmente neutro, em termos de história; e, na sua dimensão conteudística,
ele se caracteriza agora, desde o curso sobre Direito natural e Ciência do Estado, de 18
17/18, até por uma diferenciação assaz moderna, que ainda não encontramos nessa forma
nem em Kant nem em Fichte: diferenciação entre ―sociedade civil‖ e ―Estado‖.
e) Agora o conceito basilar do novo enfoque não é mais o conceito da ―eticidade‖,
mas o do ―Espírito Objetivo‖. Nesse conceito Hegel apreende com engenhosa concisão o caráter da vida social. A vida social é uma vida espiritual. Assenta no Espírito Subjetivo,
na espiritualidade que distingue a vida humana. Onde ela falta, não existem instituições
sociais, pois o direito, a moralidade e a eticidade não existem ―a partir da natureza‖; são
formas produzidas pelo Espírito, mais proximamente pela vontade, pelo livre-arbítrio; o
Espírito é a sua ―substância‖, conforme diz Hegel. Isso poderá parecer trivial — e, não
obstante, não é errado evocar essa verdade freqüentemente esquecida. Mesmo na época
de Hegel ela não era evidente. Assim o seu colega e rival Schleiermacher anuncia que
oferecerá, no seu Curso sobre a Teoria do Estado, uma ―fisiologia do Estado‖4 — mas a
“phýsis”, a natureza do Estado é o Espírito, mais exatamente o Espírito estatuído por
atos volitivos, por isso ―Espírito Objetivo‖.
O conceito do Espírito Objetivo permite a interpretação unitária da vida social,
que abrange o direito, a moralidade e eticidade. Por isso, a ciência do Espírito Objetivo é
uma ―ciência unitária‖ — embora diferenciada em seu interior. Diferentemente dos dias
atuais, ela não se decompõe em ética, por um lado, e filosofia do direito, por outro — se
2 GE 5.279.
3 GW 10 (Abbegg: Anmerkungen zur philosophischen Eccyclopädie 1812/13, ad § 58).
4 Schleiermacher Vorlesungen über die Lehre vain Staat, Ed. Walter Jaeschke. Kritische Gesamtausgabe 11/8.
Berlim; Nova Iorque, 1998, 496, 69.
Coleção Filosofia – 176 11
é que os promotores da ―reabilitação da Filosofia Prática‖ não esqueceram, de qualquer
forma, a filosofia do direito. E a unidade de direito, moralidade e eticidade, que Hegel
pensa no conceito do Espírito Objetivo, não foi comprada ao preço de ele, por seu lado,
ter esquecido a ética. Ele dimensionou a sua ―Filosofia do Espírito Objetivo‖ também
como uma disciplina sucedânea da ética — se o fez com razão, é uma pergunta a qual
retornarei mais adiante. Mesmo se concedermos a ética uma função mais importante do
que Hegel, a sua inserção no contexto do direito e das instituições éticas só pode ser
ignorada, quando muito, temporariamente, no piano do método. Já as alterações mais recentes do Direito de Família na Alemanha fornecem um material ilustrativo suficiente
para o nexo estreito entre direito, moral e instituições éticas — para um nexo, que
escarnece da estrita distinção pós-hegeliana entre moral e direito.
f) No âmbito da esfera do Espírito Objetivo, podemos indicar com exatidão as
diferenças entre as esferas ―direito‖ e ―moralidade‖ ou ―moralidade‖ e ―eticidade‖,
Porém, a relação entre ―direito‖ e ―eticidade‖ poderia afigurar-se um tanto
desorientadora, pois Hegel usa o termo ―direito‖ no duplo sentido — no sentido amplo,
no qual ele intitula o seu compêndio Linhas fundamentais da Filosofia do Direito, e no
sentido mais estrito, limitado ao ―direito abstrato‖. No sentido amplo, o ―direito‖ não
abrange apenas ―o restrito direito jurídico‖, mas ―a existência [Daseyn] de todas as
determinações da liberdade‖5 — isto é, também as formas da eticidade. Elas são formas
da vida social em geral, mas como tais são naturalmente também formas jurídicas: a
família não diferentemente da ―sociedade civil‖ ou do Estado, Devem ser compreendidas
como formas do direito — mas não podem ser compreendidas apenas e nem
primacialmente como formas do direito. Reduzimos o teor do Estado enquanto forma da
eticidade, se o discutimos tão-somente sob a rubrica ―Direito Público‖ — como, e.g.,
Kant na sua Doutrina do Direito. As figuras da eticidade são formas da realidade do livre-arbítrio, formas de vida da liberdade. Enquanto tais, elas possuem certarnente uma
dimensão jurídica, embora não se dissolvam nela, nem se deixem reduzir a ela. Em
oposição a isso, o direito, no sentido estrito do ―direito formal‖, e a moralidade são
―ambos abstrações, cuja verdade é propriamente a eticidade”6. Por isso, Hegel reconhece
um indício de uma forma de decadência histórica, quando as formas da eticidade são
percebidas primacialmente como formas do direito — na transição da Antiguidade grega
a Antiguidade romana bem como no Iluminismo, que ele descreve igualmente como uma
época da ―juridificação‖ —, embora ele, na época, tenha vivenciado apenas o início
desse processo de juridificação, que se prolonga até aos nossos tempos, com um
dinamismo acelerado, e provavelmente há de prolongar-se.
Com essa diferenciação entre o conceito amplo e o conceito estreito, a utilização
que Hegel faz do termo ―direito‖ parece ser muito flexível. Apesar disso, podemos
objetar-lhe que a ampliação do conceito do direito, como ―existência da liberdade‖, até a
história universal, dilui excessivamente o seu conteúdo. De outro lado, o conceito
estreito do direito ―formal‖ ou ―jurídico‖ ou ―civil‖ provavelmente é definido em termos
demasiado estreitos — uma vez que Hegel também trata, sob o título ―direito abstrato‖,
5 Enciclopédia, § 486.
6 Filosofia do Direito, § 33 Adendo.
12 Coleção Filosofia - 176
apenas determinações genericamente jusnaturalistas ou jus-racionalistas da esfera do
Direito Privado e do Direito Penal, mas não o Direito Público. Por isso, o título
―Filosofia do Espírito Objetivo‖ provavelmente corresponde bem mais as intenções
sistemáticas de Hegel do que o título ―Filosofia do Direito‖.
2. Liberdade consciente de si e objetiva
a) Na primeira parte preparatória das minhas reflexões, delineei como Hegel projeta, já nos seus esboços de sistema da primeira fase, uma interpretação unitária da
vida social, sob o título de ―eticidade‖ — enquanto conceito que abrange o direito e a
moralidade —, e como ele subordina essa interpretação ao conceito do Espírito Objetivo
no desenvolvimento ulterior do seu sistema. O Espírito Objetivo encontra a sua
efetividade na ―eticidade‖, mais especificamente na integralidade das suas figuras reais
da família, da sociedade civil e do Estado; o ―direito‖ apreende em forma abstrata apenas
as relações reais, objetivamente espirituais, éticas. E apenas o modo abstrato de
expressar as relações éticas enquanto determinações da vontade, enquanto ―existência do
livre-arbítrio‖; poderse-ia dizer que o direito constitui a expressão formal da existência
do livre-arbítrio, que é, na sua figura real, a eticidade.
Mas esse discurso da existência do livre-arbítrio só diz respeito a uma dimensão
de direito e eticidade — e ela nem é especificamente hegeliana. A segunda dimensão é a
da necessidade: visto o direito ser a expressão formal dessa existência do livre-arbítrio,
ele enuncia também a lógica interna das figuras da eticidade — embora apenas
parcialmente. O mesmo pode ser dito da eticidade: ela é existência do livre-arbítrio –
mas a sua explicação obedece a uma lógica interna, a uma necessidade. A marca
inconfundível da filosofia hegeliana do Espírito Objetivo está apenas na simultaneidade das duas dimenções – a da liberdade e a necessidade – e na forma especifica da sua
concatenação: a própria necessidade, que parece obstar à consciência da liberdade, é a
própria necessidade do desenvolvimento da liberdade.
Não é, porém, contraditório falar de uma ―lógica‖, de uma ―necessidade‖ do livre-
arbítrio‖? Apesar das compreencíveis reservas nesse tocante, essa formulação faz
sentido, e o problema por ela designado não é de modo algum apenas um problema
intrínseco à filosofia do direto de Hegel: trata-se de um problema central da
configuração de relações sociais em geral. Na sua filosofia do direito, Hegel o somente
reconheceu e enunciou pela primeira vez com toda nitidez. A sua solução pode afigurar-
se contraditória, mas essas supostas contradições provavelmente se evidenciarão como
ínsitas ao próprio objeto, se perguntarmos em que assenta genericamente a ―eticidade‖.
b) Essa pergunta pelo fundamento da eticidade pode ser facilmente respondida
por rneio de uma breve retrospectiva. Para o Direito Natural mais antigo, ela não foi
colocada — pois sempre já estava respondida de modo duplo: as figuras da eticidade —
família e Estado — eram consideradas ou fundamentadas por ordem divina ou figuras
existentes ―por natureza‖. Mas como, no imaginário cristão, essa ―natureza‖ sempre foi
pensada como criada por Deus, ainda que talvez como natureza decalda, as duas respostas, em última instância, cifram-se numa única. Hoje é quase impossível Sequer
imaginar o enorme poder, que essa hipótese exerceu sobre as mentes até ao século XVII.
Coleção Filosofia – 176 13
Semelhantemente radical é a profunda mudança operada pelo jusnaturalismo do
início da Idade Moderna: o direito e a eticidade assentam no livre-arbítrio; e visto esse
livre-arbítrio se manifestar na realidade como multiplicidade de vontades livres,
eventualmente conflitantes, essa relação de fundamentação é pensada em termos de
contrato. A idéia do contrato serve a limitação, mas também a legitimação do poder de
Estado; mas ela serve igualmente a explicação hipotética, não, porém, a explicação
histórica da sua gênese, pois o livre-arbítrio só pode exercer a função de instância crítica
de legitimação sob a hipótese de a família e o Estado terem a sua origem no livre-arbítrio. Enquanto as relações sociais forem tidas como fundamentadas na vontade de
Deus ou na ―natureza‖, o livre-arbítrio será destituído de direitos: ele só pode legitimar
ou também rejeitar o que possui o fundamento da sua realidade nele mesmo.
c) O imenso significado do contratualismo está fora de qualquer dúvida, mas isso
não o exime simplesmente de crítica. Na época de Hegel, ele foi rejeitado
primacialmente por razões políticas, como preparação espiritual da Revolução Francesa
— e justamente isso recomenda-o aos nossos olhos como uma teoria favorecedora do
liberalismo. Não obstante, isso não deve iludir-nos a respeito da sua insuficiência,
identificada por Hegel: o contratualismo transforma as figuras da eticidade em produto
direto de atos volitivos conscientes — um produto da disposição gratuita, quando não do
livre-arbítrio, no sentido pejorativo. E com isso ele ultrapassa, por assim dizer, os limites
do seu objetivo, pois, mesmo se todas as figuras da eticidade e todas as formas do direito
subsistem pelo livre-arbítrio, elas absolutamente não devem a forma dessa subsistência a
atos volitivos conscientes, mas a uma necessidade que atua por trás desses atos.
Na sua Doutrina do Direito, Kant já chamara a atenção a um aspecto dessa
fraqueza do contratualismo: de modo nenhum está à disposição das partes contratantes se
decidem passar do estado de natureza ao estado civil. Caso as partes contratantes decidissem por unanimidade permanecer no estado de natureza, decerto não seriam
mutuamente injustas, mas cometeriam uma injustiça em termos genéricos; pois a
exigência de produzir relações sociais juridicamente regulamentadas, de formar uma
sociedade civil (no sentido tradicional desse termo), é uma exigência categórica. Aqui,
como em algumas outras passagens, Kant insinua a existência de estruturas da razão
localizadas em níveis mais profundos do que a vontade das partes contratantes — sem
com isso questionar as descobertas fundamentais do contratualismo moderno. Porém,
essa exigência — enquanto exigência — se reveste nele de um caráter exterior, por
assim dizer moral: não se trata aqui de comprovar uma lógica imanente. A marca da
filosofia do direito de Hegel, no entanto, reside no fato de ele elevar a consciência essa
problemática da lógica interna do livre arbítrio, que se objetiva, e da sua posicão diante
da autoconsciéncia da liberdade.
Freqüentemente Hegel foi acusado de atribuir pouca importância ao contratualismo
da Idade Moderna. Mas isso deriva muito coerentemente da sua compreensão de que a vida
social, a eticidade, é estruturada por uma lógica interna a qual não pode ser explicitada pelo
regresso a idéia do contrato. A nova compreensão hegeliana também não é um mero
retorno a idéia grega do primado das relações sociais sobre a vontade do indivíduo. Na filosofia do direito bem como nas outras filosofias do real, ele se interessa, antes, por uma
compreensão inteiramente nova de um problema fundamental de natureza sistemática: o
14 Coleção Filosofia - 176
direito e a eticidade são, conforme o seu conceito, ―liberdade consciente de sí‖ — rnas uma
liberdade consciente de si que se tornou ―natureza‖ ou ―mundo‖7. Eticidade é liberdade,
que se configura na efetividade de um mundo8. Porém, quando a liberdade consciente de si
se configura na efetividade de um mundo, está sujeita a uma lógica interna, a uma
necessidade que não lhe está disposnível. Mas qual então o sentido da afirmação de que a
liberdade — e nao, e.g., a natureza — se configura em mundo da eticidade? Pois essa
lógica interna da formação e reconfiguração de estruturas e instituições sociais não logra
ser construída a partir da idéia da liberdade, do livre-arbítrio consciente de si e aspirante a liberdade, mas só pode ser reconstruída pela filosofia do direito, a partir das relações reais.
Vê-se, então, que essa necessidade nao é algo estranho a liberdade consciente de si, mas a
sua própria necessidade.
Essa reconstrucão de modo algum é de interesse meramente filosófico-
sistemático; ela possui, ao mesmo tempo, uma dimensão eminentemente política, a
medida que conscientiza que as próprias figuras da eticidade e a sua formulação abstrata
pelo direito são produtos do livre-arbítrio. Por isso o elã revolucionário de quebrar tais
formas institucionais pelo simples fato de elas serem algo oposto ao livre-arbítrio
dernonstra tão-somente a autocompreensão equivocada da liberdade, como se o seu
produto fosse apenas o que resulta de atos conscientes, não o resultado do seu produzir
inconsciente. O fato de elas serem tais resultados de uma lógica interna da explicitação
da liberdade já é demonstrado pela reflexäo e negativo de elas nem poderem ter outra
origem — pois não são ―por força da natureza‖. A ―natureza‖, da qual elas provêm, é
tão-só a natureza do próprio Espírito, isto é, a sua lógica imanente — e a pergunta
central indaga até que ponto a liberdade se pode reconhecer nessa lógica.
d) Esse caráter duplo de eticidade e direito não é, e.g., uma idiossincrasia, que
resultaria de quaisquer coações ínsitas ao sistema hegeliano ou do seu anseio inato por contradições. Ele é o resultado do seu olhar sobre a tensa constituição interna do
convívio humano, que naturalmente pode ser contestado, como toda e qualquer análise
— embora se possa argumentar também a seu favor. Penso que ela analisa muito
pertinentemente uma camada importante de problemas da vida social: todas as figuras e
formas da vida social resultam da liberdade subjetiva — ou, como Hegel o formula na
última frase transcrita de um curso de filosofia do direito: ―A liberdade é o mais íntimo,
e é a partir dela que se eleva toda a construção do mundo espiritual‖9. Mas, se essa
construcão do mundo espiritual se eleva a partir dela, se a liberdade se torna ―natureza‖
em instituições sociais, então essa construção obedece a uma lógica interna que não pode
ser explicada compreensivelmente a partir da mera idéia da liberdade, e essa lógica pode
até manifestar-se contra a liberdade enquanto ausência de liberdade. Mesmo aquela
liberdade, que aspira a liberdade, gera no ato da sua objetivação, em conformidade com
a lógica intrínseca desta, relações necessárias que podem até ser vivenciadas como um
―revestimento duro como aço‖*, o qual ameaça sufocar a liberdade. Isso vale tanto para
as figuras da eticidade quanto para o direito que regula as relações éticas.
7 Enciclopédia, § 430, Filosofia do Direito, § 142.
8 Enciclopédia, § 484.
9 Nachschrif Strauss, Wintersemester 183 1/32.
Coleção Filosofia – 176 15
Com isso fica exposto o problema decisivo da filosofia do direito de Hegel e de
toda e qualquer tematização filosófica da vida social: até que ponto as estruturas da
eticidade — nascidas da liberdade — ainda podem ser atribuídas ao livre-arbítrio, até
que ponto elas estão à sua disposição? Ou, perguntando diferentemente: até que ponto as
figuras da eticidade e as formas do direito se desvinculam da sua origem na liberdade,
em razão da sua lógica interna? E se elas, por um lado, brotam da liberdade, mas
obedecem na sua evolucão a sua lógica interna: até que ponto elas, então, ainda são
reguláveis pela liberdade? Justamente aqui reside o problema desentranhado por Hegel — e, em rnesma medida, o problema da política atual: a ―natureza da coisa‖, que
resultou da liberdade, opõe-se a consciência da liberdade10
a qual muito freqüentemente
não se reconhece mais nessa ―natureza da coisa‖ provinda dela mesma — comparável ao
aprendiz de feiticeiro que não sabe mais esconjurar os espiritos invocados. A
necessidade das relações sociais sempre poderia ser superada pelo livre-arbítrio — e,
apesar disso, e essa necessidade que força o livre-arbítrio para seu serviço — superando-
o mais do que ele a supera.
e) Diante da profundidade dessa compreensão, devernos rejeitar por superficial
uma objeção freqüentemente apresentada: a de que Hegel desconsideraria o valor do
indivíduo, pois, de acordo com ele, a liberdade enquanto dimensão objetiva, enquanto
―círculo da necessidade‖ dos poderes éticos, governaria a vida dos indivíduos, e esses
indivíduos seriam tão-somente a figura aparente e realidade dos poderes éticos
objetivos11
. Esse é, com efeito, um resultado frequentemente enunciado por Hegel —
mas o tão apreciado procedimento de reagir a tal enunciado com a difamação moral
lembra o velho costume, no fundo já desaparecido, de afogar ou apedrejar o mensageiro
que traz uma má notícia. Importa tão somente se a compreensão é pertinente. E talvez
essa notícia nem seja tão desastrosa. Hegel de modo algum percebeu como má notícia a rnensagem, por ele transmitida, da tensão entre a autoconsciência da liberdade e a
necessidade da liberdade objetivada. Ele tinha a convicção de que a racionalidade
subjetiva e objetiva haveriam de mediar-se reciprocamente, pois essa própria dimensão
objetiva seria a explicitação da idéia da liberdade. E a efetividade da liberdade parecia-
lhe mais bem preservada na lógica objetiva da sua explicitação do que em atos
subjetivos. Hoje, porém, essa convicção nutrida por Hegel se dilui em mera esperança,
quase não mais cultivada. Pois o que nos autoniza a supor que a lógica interna da
eticidade é efetivamente uma lógica da liberdade, se ela nao pode ser reconhecida na
vontade que quer a sua liberdade?
*A famosa imagem é de Max Weber e está nas páginas fineis da obra A ética protestante e o espíritodo
capitalismo:‖Na opinião de Baxter a preocupação com os bens exteriores deveria cobrir os onbros dos seus
santos apenas como ‗um manto leve que se poderia tirar a qualquer tempo. Mas o destino inexorável fez do
manto um revestimento duro como aço. À medida que a ascese começou a estruturar o mundo e produzir seus
efeitos no mundo, os bens exteriores desse mundo adquiriram um poder crescente e finalmente inescapável
sobre os homens como nunca dantes na sua história‖. In: Max Weber. Die protestantische Ethik und der Geist
dês Kapitalismus. Vol. I. 2. ed. revista e ampliada. Munique e Hamburgo, 1969, p. 188 [Nota do Tradutor]. 10
Filosofia do Diereito, § 144. 11
Filosofia do Diereito, § 145
16 Coleção Filosofia - 176
f) Quereria agora abordar ainda um problema subseqüente: como se altera o
estatuto de normas, quando relações sociais são conduzidas pela sua lógica interna, e o
abismo entre essa lógica interna e o livre-arbítrio, que quer a sua liberdade, parece
alargar-se a olhos vistos? (Permito-me, aqui, por razões de simplicidade, falar de
―normas‖, embora esse não seja um conceito hegeliano). Afinal de contas, podemos
argumentar, com boas razões, que o conceito da norma se transforma, quando o seu
fundamento nao é mais o livre-arbítrio consciente de si, mas a vontade objetivada,
esconjurada no ―círculo da necessidade‖. Parece que aqui se esboça uma reversão da norma ética na ―norinatividade do fático”.
Hegel (teve consciência desse problema, mas supôs fosse ele solucionável, em
virtude da sua convicção da unidade de ambos os lados que para nós se dissociam cada
vez mais. Por isso, o seu conceito de ―eticidade‖ oscila entre a norma e a descrição.
Hegel já procura assegurar o caráter normativo da eticidade, mediante a história da
origem desse conceito. O ―desenvolvimento sistemático do círculo da necessidade ética‖
seria a ―teoria dos deveres éticos‖ — mas uma ―teoria dos deveres éticos como ela é
objetivamente, não como ela deve estar apreendida no princípio vazio da subjetividade
moral‖. Ao desenvolvimento das deterininações objetivas da eticidade Hegel atribui um
caráter normativo — embora acrescente também que pretende desistir do corolário, que
no fundo deveria ser acrescentado em cada caso: ―Por isso essa determinação é um dever
para o homem‖. Uma teoria não-filosófica dos costumes pode extrair a sua matéria das
relações existentes, mas ―uma teoria imanente e conseqüiente dos deveres não pode ser
outra coisa senão o desenvolvimento das relações que se tornam necessárias por causa
da idéia da liberdade, e são por isso efetivas em toda a sua abrangência, no Estado‖12
.
Assim, o caráter normativo do ―desenvolvimento das reiações‖ fundamenta-se
unicamente na convicção perseverante de Hegel de essas relações serem ―necessárias por causa da idéia da liberdade‖. Por isso, ele desaparece precisamente à medida que
desaparece a convicção de que as relações existentes são ―necessárias por causa da idéia
da liberdade‖. A teoria normativa passa, então, a ser descritiva; a necessidade ética das
relações desvirtua-se em coação de fato.
3. História da eticidade
a) Por esse motivo, duas coisas importam para uma filosofia do direito na esteira
de Hegel: por um lado, ela não pode demonizar moralmente a compreensão hegeliana do
controle das relações sociais, por meio da sua lógica interna, mas deve examiná-la com
vistas a sua evidência; por outro, deve-se examinar essa convicção fundamental, ainda
viva em Hegel, segundo a qual essa formação progressiva das relações sociais pode ser
compreendida como ―necessária por causa da idéia da liberdade‖ e não apenas como
necessária no sentido de uma necessidade do fáctico, destituída do conceito. Pois, nesse
caso, deveria ser abandonado o conceito hegeliano enfático de eticidade; o
desenvolvimento do conceito de eticidade não poderia mais reivindicar ser considerado a
disciplina sucedânea da tradicional ―teoria do dever‖.
12
Filosofia do Direito, § 148.
Coleção Filosofia – 176 17
Não quero responder aqui as duas perguntas — embora provavelmente tenha ficado
claro que atribuo muita importância ás idéias hegelianas de uma lógica objetiva das
relações sociais, ao passo que considero cada vez mais difícil compartilhar a sua conviccão
fundamental de que a necessidade por ele reconhecida constitui uma necessidade do
desenvolvimento da liberdade. Mas é possível aduzir bons argumenos também em favor
dessa tese — talvez em número maior do que geralmente se ousa esperar. Há muitos
indícios em favor da tese de que a liberdade está mais bem preservada na necessidade
objetiva do desenvolvimento do que em atos conscientes de si. b) Em vez disso, à guisa de conclusão, gostaria de referir-me ainda brevemente a
um outro âmbito do meu tema, que pode, ao mesmo tempo, servir para o exame dessa
alternativa. Para Hegel — e não apenas para ele — direito e eticidade são formas e
figuras do Espírito. Esse enunciado implica um outro: elas possuem uma história — pois
tudo o que é espiritual é histórico; nada há de espiritual que não seja ao mesmo tempo
histórico. Pois a história é a forma específica de explicitação — se assim quisermos, a
―natureza‖ do ―espírito‖, e a lógica interna do desenvolvimento do direito e da eticidade
só podem desdobrar-se em meio a um desenvolvimento histórico.
Hegel, porém, não tornou em consideração a historicidade do direito nas suas
Linhas fundarnentais dafilosofia do direito, um compêndio para suas preleções — em
parte por razões atinentes à técnica expositiva, em parte por motivos respeitantes ao
conteúdo, que considero compreensíveis, mas não-pertinentes. O conceito de ―eticidade‖
também não foi introduzido por Hegel como conceito histórico — embora o seu caráter
histórico salte aos olhos: a própria estrutura do conceito de eticidade, a sua tripartição
em família, sociedade civil e Estado representa um fruto do desdobramento histórico das
relações sociais, controlado por uma lógica interna — como se evidencia especialmente
no conceito de sociedade civil. Ela não seria dedutível do conceito, mas pode ser reconhecida post festmi como adequada ao conceito.
c) Apesar dessa não-ternatização da história, Hegel viu muito nitidamente que a
tripartição da eticidade também apresenta conotações históricas. Isso é mostrado, por
igual, pelo seu diagnóstico extremamente importante — na sua época mais um
prognóstico do que um diagnóstico — de que a dinâmica da sociedade civil já
dissolveria em si a família13
. Hoje nos deparamos com uma pergunta de alcance ainda
maior: se essa dinâmica não dissolve igualmente em si O Estado — ou se ela também já
o dissolveu e o colocou a seu serviço. Se, porém, o desenvolvimento da eticidade nas
três figuras da família, da sociedade civil e do Estado é ―racional‖, isto é, resultado de
uma estrutura imanente da razão, isso não pode valer na mesma medida para a
dissolução dessa tripartição. Por isso, devemos encaminhar a esse processo a pergunta
antes formulada, se tal desenvolvimento, indubitavelmente controlado por uma lógica
interna, ainda pode ser considerado desenvolvimento da Idéia da liberdade. Ainda ha
trinta anos essa pergunta era respondida, de forma praticamente irrestrita, em termos
afirmativos: a dissolução do Estado na sociedade civil era vista como desmontagem de
estruturas — irracionais — de dorninação. Mas entrementes preponderam, na minha
opinião, os indícios de que esse desenvolvimemo pode ser avaliado primacialmente
13
Filosofia do Direito, § 238.
18 Coleção Filosofia - 176
como um desenvolvimento da ausência de liberdade — e então surge a pergunta se e
como devemos contra-arrestar esse processo.
d) Da constituição do direito não podemos esperar nenhuma ajuda para a
promoção da liberdade, pois o direito não é uma instância independente da eticidade; ele
representa um espelho da eticidade, um meio da sua consciência de si. Quando muito, a
sua lógica interna pode sustar ou promover temporariarnente o desenvolvimento da
eticidade. Considerada no seu conjunto, porém, a sua história acompanha a história da
eticidade, a semelhança de uma sombra, e.g., na transformação da família ou do matrimônio — que estamos vivenciando atualmente na Alemanha —, e ela acompanha,
de modo particular, a dinâmica global da sociedade civil, que é também a forca motriz
na superação de formas estatais de organizacão pela construção de instituições supra-
estatais. As normas obedecem a lógica histórica das relações sociais; a sua historicidade
é um momento da sua racionalidade. Mas se o desenvolvimento de figuras éticas fosse
um desenvolvimento da ausência de liberdade, o desenvolvimento do direito, que o
acompanha em postura abstratora e reflexiva, também não seria uma história da
liberdade14
, mas da ausência de liberdade.
Remanesce, assim, em últirna instância, apenas a tarefa de fixar a idéia da
dualidade da consciência da liberdade e da sua explicitação objetiva nas formas da
eticidade: não há nenhuma certeza e existe pouca esperança de que o processo objetivo
da eticidade deva ser compreendido como desenvolvimento da idéia da liberdade,
consoante isso ainda parecia ser demonstrável para Hegel — em virtude da sua
observação atenta das transformações da sociedade, que ele, em parte, conheceu
historicamente, em parte vivenciou muito conscientemente como testemunha da sua
época. E remanesce — no lugar de uma decisão — apenas a tarefa de examinar, em cada
caso, os desenvolvimentos e verificar ate que ponto eles são progressos na consciência da liberdade: a tarefa de promovê-los, onde eles o são e de sustá-los, na medida do
possível, onde eles não o são, em conseqüência de nosso conhecimento.
Traduçao de Peter Naumann
14
Jaeschke: Die vergessene Geschichte der Freiheit In: Hegel-.Jahrbuth 1993/94. Berlim, 1995.
Coleção Filosofia – 176 19
PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA DO
DIREITO DE HEGEL
Em vez de falar sobre “os problemas fundamentais‖ da filosofia do direito de
Hegel, resolvi restringir-me aqui a apenas ―um problema fundamental‖ dessa filosofia do
direito — e talvez não só a ―um‖, mas ―ao‖ problema fundamental — a saber, à relação
que ela estabelece entre ―razão‖ e ―história‖. Esse problema de razão e história — ou,
usando a denominação historicamente adequada, de direito natural e história — não
aparece, a primeira vista, como um problema central da filosofia do direito de Hegel.
Entretanto, quando se retrocede à época da filosofia alemã clássica, fica manifesto que, na
situação da teoria na época de Hegel, a polarização entre razão e história já está dada e que
ela também se reflete reiteradamente nos escritos e preleções de Hegel. Por isso, gostaria,
inicialmente, de indicar, de maneira um pouco mais detalhada, os antecedentes dessa
relação, que residem na história tardia do direito natural e, assim, definir os problemas com
os quais Hegel se defronta em seus trabalhos sobre a filosofia do direito. Num segundo
passo, abordarei, então, o desenvolvimento da problemática nos textos de Hegel.
1
a) Na época de Hegel, ―filosofia do direito‖ é um termo bastante recente para
designar a disciplina que, desde sempre, fora chamada pelo nome de ―direito natural‖ —
e certamente não era só um termo recente, mas, ao mesmo tempo, um indício de
deslocamentos sistemáticos; pois, por volta da virada do século XVIII para o XIX, a
grande tradição do direito natural entra numa nova e definitiva crise. Naquela época, ele
perdeu a posição dominante na filosofia prática, a qual ainda detinha de maneira
inconteste no século XIX1. O nome ―direito natural‖ continua se reproduzindo, durante
algum tempo, em títulos de livros e em catálogos de cursos acadêmicos; porém, mesmo
algumas renascenças posteriores não lhe devolvem mais sua importância anterior.
Algumas são de curta duração — como após a Segunda Guerra Mundial2 —, outras
1 THOMASIUS,Institutionum Iurisprudentiae divinae libri três (1687): Fundamenta Iuris Naturae ET gentium
ex sensu communi deducta, in quibos ubic sensernuntur princupia honesti, justi et decori (1705); Christian
WOLFF, Ius naturae methodo scientifica pertractatum, 8 partes, Halle, 1748; Intutiones iuris naturae at
gentium, Halle, 1750; Grundsätze des Natur- und Völkerrechts, Halle, 1754. 2 Mencionamos como exemplos representativos de uma renascença inicialmente ampla porém efêmera, Erik
WOLF, Das Problem der Naturrechtslehre: Versuch eiener Orienterung, 3. ed. Karlsruhe, 1964; Helmut COING,
Die obersten Grundsätze dês Rechts: Ein Versuch zur Neubegründung des Naturrechts, Heidelberg, 1947.
20 Coleção Filosofia - 176
permanecem regionalmente restritas, como, por exemplo, a tradição de um pensamento
jurídico com fundamentação primordialmente teológica 3.
Diferentemente do que ocorreu no destino mais ou menos contemporâneo da
metafísica, no caso do fim do direito natural a influência de razões filosófico-teológicas
não foi significativa. Afinal, o direito natural do início da Idade Moderna era entendido
preponderantemente como direito secular — não só na forma extrema assumida no
pensamento de Hobbes, mas também em sua versão dominante, que poderia ser
representada pelo nome de Pufendorf4. Em vez disso, foram duas outras instâncias que
se tornaram decisivas para seu destino, as quais poderiam, aqui, ser designadas
brevemente com as palavras ―razão‖ e ―história‖,
b) O primeiro ataque contra o direito natural acontece, pouco antes de 1800, em
nome da razão. Como exemplo paradigmático disso pode-se aduzir a Fundamentação do
metafísica dos costumes, de Kant. A objeção de Kant pressupõe uma mudança no
conceito de natureza, que pode ser descrita a partir de duas facetas: por um lado, como
separação nítida entre âmbito descritivo e normativo, entre ser e dever-ser. O que se
pode designar como ―natureza‖ — e também como natureza do ser humano — situa-se
inteiramente no âmbito do ser; a ―natureza‖ é objeto de descrição; com isso, entretanto,
ainda não está colocada nenhuma norma. A descrição da natureza do ser humano tem
seu lugar sistemático na antropologia. Porém, dessa descrição do que é não se pode obter
o conhecimento do que deve ser. Ora, a filosofia do direito e a ética não tratam do que é,
e sim do que deve ser. Princípios da moralidade não devem ser buscados na natureza
humana5, mesmo que sua formulação não vá ocorrer sem referência a essa natureza.
A mesma diferença, porém, pode ser também descrita — epistemologicamente
— como separação nítida entre experiência e razão. O conhecimento da natureza do ser
humano é objeto de experiência, e sem tal experiência não é possível saber o que seja a natureza do ser humano. Ora, o âmbito do direito e da moral não é o âmbito da
experiência, e sim o da razão. A experiência diz como é o ser humano. Mas só a razão
pode conhecer e dar as normas para fundamentar a ética ou a filosofia do direito.
Com palavras muito contundentes, Kant expressa sua fundamental rejeição do
direito natural: de modo algum se deveria pensar na possibilidade de derivar a obrigação ética
de uma qualidade particular da natureza humana6: ―o princípio da obrigação não se há-de
buscar aqui na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que ele está posto,
mas sim a priori exclusivamente em conceitos da razão pura‖7. E ha poucas maciçamente —
como em sua polêmica contra a ―asquerosa miscelânea de observações enfeixadas
atabalhoadamente e de princípios racionais malconcatenadas com que se deliciam as cabeças
ocas, pois há nisso qualquer coisa de utilizável para o palavrório de cotidiano‖ 8.
3 Joannes MESSNER, Das Naturrecht, 7. Ed. Berlim,1984.
4 Samuel PUFENDORF, De jure naturae et gentium libri octo, Lund, 1672; veja agora id., Gesammelte Werke,
ed. por Wilhelm Schmidt-Biggemann, v. 4, parte 1 e 2: De jure naturae ET gentium, ed. por Frank Böhling, 1998. 5 Immanuel KANT, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, AA, v. p. 410.
6 Ibid., v. IV, p. 425.
7 Ibid., v. IV, p. 389.
8 Ibid., v. IV, p. 409.
Coleção Filosofia – 176 21
A consciência do caráter inovador de sua fundamentação filosófico-
transcendental de normas jurídicas e morais e que faz Kant recorrer a essas palavras
contundentes. Ela encobre, inicialmente, o fato de que também o direito racional,
refundamentado por Kant, desempenha, por sua vez — no tocante a sua função
sistemática de propor diretrizes para a ação moral, jurídica e política — o papel de pólo
oposto ao direito positivo e, nesse sentido, torna-se O sucessor do direito natural
anterior. Entretanto, ao assumir a função sistemática do direito natural, o direito racional
assume, ao mesmo tempo, também os problemas associados à tradicional dualidade de direito natural e direito positivo.
c) O ataque ao direito natural em nome da ―razão‖ levou, é verdade, a revisão
na fundamentação de normas. Mas, na medida em que não alterou a dualidade, também
não eliminou definitivamente o direito natural. Antes, a identidade da função sistemática
do direito natural e do racional sobrepõe-se à diferença entre ―natureza‖ e ― razão‖: uma
década mais tarde, em sua Metafísica dos costumes, Kant até emprega, como
autodesignação de seu enfoque, O termo ―direito natural‖ anteriormente rejeitado de
maneira tão incisiva 9. Contudo, mais ou menos ao mesmo tempo em que Kant trabalha
na Metafísica dos costumes, forma-se uma nova crítica ao direito natural, que,
simultaneamente, é, de maneira até mais severa, uma crítica do direito racional: a crítica
em nome da história. Contra o enfoque universal de uma fundamentação de normas
jurídicas e morais, a partir de uma natureza ou razão geral — na perspectiva da nova
crítica, isso é idêntico — ocorre aqui à invocação do direito que sempre já está presente
na realidade efetiva e nela se desenvolve historicamente.
Essa crítica é particularmente bem-sucedida, porque ela não só se apóia em
argumentos filosófico-jurídicos, mas contém uma implicação política que, na situação da
época, revela-se eficaz: a identificação de natureza = razão = iluminismo = revolução. Essa crítica tornou-se exitosa na história da interpretação, especialmente por causa da
obra Betrachtungen über die Französische Revolution (Reflexões sobre a Revolução
Francesa), de Edmund Burke, que — em especial na tradução para o alemão, de
Friedrich Gentz, e exacerbada pelos acréscimos deste — associa a crítica á revolução
com o recurso a história10
.
d) Nessa situação teórica, a nova contraposição pragmático-científica entre
universalidade e contextualidade se sobrepõe, pela primeira vez, a tradicional
contraposição sistemático-científica entre direito natural e direito positivo, na
fundamentação do direito, e essa mesma contraposição continua permeando ainda hoje os
debates entre contratualismo e contextualismo, liberalismo e comunitarismo. A objeção
que se assaca agora ao direito natural ou racional não é que ele não seja direito em sentido
estrito, na medida em que sua violação no acarretaria uma sanção — ao menos não uma
9Veja, por exemplo, Immanuel KANT, Metaphysik der Sitten, AA, v. VI, p. 237: o direito natural daseia-se só
em, princípios a priori; AA, v. VI, p. 242: o direito natural se divide em direito privado e direito público.
Nesse caso, ―direito natural‖ tornou-se sinônimo de ―direito racional‖ ou de ―metafísica dos costumes‖. 10
Edmund BURKE, Reflection on the Revolution in France, 1790; traduzido para o alemão por Friedrich
Gentz: Betrachtungen über die Französische Revolution, Berlim, 1793.
22 Coleção Filosofia - 176
sanção direta —, e sim que sua pretensão universal destruiria a realidade efetiva do direito
historicamente presente — e isso com conseqüências políticas catastróficas.
Igualmente para Burke, a sociedade baseia-se em assentimento, come também
ocorre no direito natural — mas em assentimento, não em conseqüência de um até da
razão, e sim em virtude de hábitos e preconceitos — ou melhor: de formas de vida —
adquiridos em longo prazo. Nessas formas de vida se expressa o assentimento a
respectiva forma de domínio ou governo. A legitimação do domínio político não se
baseia num ato de sujeição — ativa ou passiva —, mas também não num contrato social concebido nos moldes do direito racional, e sim no desenvolvimento histórico de um
sistema político que garanta a satisfação das necessidades e o bem-estar dos cidadãos. A
razoabilidade moderna, porém, seria artificial, como, aliás, tudo seria artificial no Estado
moderno — e por isso, também, sem sustentação. A moderna filosofia da razão proporia,
é verdade, o ideal da humanitas, mas justamente assim, com seu ideal artificial,
―fabricado‖, ela não poderia realizar a verdadeira humanitas, e levaria, pelo contrário, a
revolução e culminaria na bestialidade. Essa crítica se reproduz por mais de meio século,
ate ao fim da época de restauração, caracterizada pelo nome do chanceler austríaco
Metternich. Mesmo após a revolução fracassada de 1848, ela é repetida por Friedrich
Julius Stahl, o mais influente pensador conservador das duas décadas que se seguiram a
morte de Hegel: ―O liberalismo ou a revolução, nesse sentido, e justamente o efeito dos
princípios nos quais se baseia o ‗direito natural‘‖11
.
2
a) Com essas referências está esboçada a situação na qual Hegel concebe os
fundamentos de sua filosofia do direito e a elabora ao longo de duas décadas. Hegel se familiariza cedo com esses embates. A particularidade de seu enfoque consiste no fato de
ele não tomar partido de nenhum dos dois lados, nesse conflito epocal entre razão e
história, mas de tentar abranger e unificar ambos os pólos em disputa. Pode-se ilustrar
essa duplicidade de seu interesse, colocando lado a lado dois de seus escritos: em seus
esboços para um texto sobre a crítica da Constituição da Alemanha12
, ele mostra-se
intimamente familiarizado com a situação política e com argumentações históricas, com
o reconhecimento do direito de situações, que se formaram historicamente e, da mesma
maneira, com o problema de sua pretensão de legitimidade face a uma realidade política
transformada. Imediatamente após concluir esses trabalhos, entretanto, Hegel intervém,
com seu Ensaio sobre o direito natural, no debate em torno do direito natural da Idade
Moderna — e o faz como crítico, mas no como crítico do direito natural de modo geral,
e sim apenas de suas ―formas de abordagem anteriores‖, a saber, por um lado, do direito
natural ―empírico‖ da Idade Moderna incipiente e, por outro, do ―direito natural
puramente formal‖ ou direito racional de Kant e Fichte: ―É preciso negar toda
11
Friedrich Julius STAHL, Die Philosophie des Rechts nachh geschichtlicher Ansicht, 3. ed. Heidelberg, 1830,
2 v.; citação à p 289. 12
Veja agora Georg F. W. HEGEL, Schriften und Entwürfe (1799-1808), Hamburgo, 1998,p. 1-219, bem como,
especialmente, o detalhado relato do editor sobre o escrito acerca da Constituição (Gesammelte Werke, v. 5).
Coleção Filosofia – 176 23
importância das formas de abordagem anteriores do direito natural, e daquilo que teria de
ser considerado como diversos princípios do mesmo, para a essência da ciência‖13
.
A forma bastante apodítica com a qual Hegel apresenta aqui sua crítica
devastadora pode parecer mais apropriada para questionar o crítico do que aquilo que ele
critica — ainda mais que, nessa fase inicial (1803), os problemas de fundamentação do
sistema de Hegel ainda estão solucionados de maneira bastante precária, e o modo como
Hegel expõe as posições criticadas deixa efetivamente a desejar. Ainda assim, a situação
teórica de sua época se espelha em seu veredicto: o contraste entre razão e história, que domina essa época, está pré-formado dentro do direito natural no contraste entre a
disseminação empírica e um retorno a princípios racionais que Hegel introduz aqui como
sendo ―abstratos‖ e, assim, critica; ele está pré-formado no contraste entre a proposição
de um princípio universal, porém tautológico, e a exclusão de toda determinidade — sob
o ―cognome do empírico‖ — dessa aprioridade14
. Face a essa cisão, a alternativa para tal
exclusão de determinidade reside meramente na tentativa de ―restringir e dominar‖ o
empírico, isto é, a sensitividade, as inclinações.
Em contraposição a isso, Hegel destaca Montesquieu como alternativa real a
cisão entre geral e particular, por parte do direito natural: ele teria baseado sua imortal obra
L„esprit des lois na noção da individualidade e do caráter dos povos; não teria deduzido da
razão as instituições e leis, nem as teria abstraído da experiência, mas concebido todas as
determinações ou disposições a partir do caráter do todo e de sua individualidade,
recorrendo à individualidade viva de um povo15
. Portanto, a posição que supera as
oposições não-resolvidas dentro do direito natural parece, ao mesmo tempo, adequada para
superar também a cisão entre razão e história, que irrompeu na época de Hegel.
b) Ainda antes de Hegel mais uma vez tomar a palavra para falar como filósofo
do direito — em sua Enciclopédia e nas preleções ministradas em Heidelberg e, mais tarde, em Berlim —, a antiga disputa entre razão e história se exacerba numa forma
nova, mais uma vez motivada politicamente: no debate sobre a possibilidade de codificar
o direito privado — e, em sentido mais amplo, também codificar o direito constitucional.
Essa disputa foi travada principalmente entre Friedrich Carl von Savigny16
, líder da
―Escola Histórica do Direito‖, estabelecida nessas confrontações, e posterior colega de
Hegel em Berlim, e Anton Friedrich Justus Thibaut, amigo e colega de Hegel em
Heidelberg. Nesse conflito, que Savigny entende como um conflito entre direito natural
ou racional e ―concepção histórica‖, e no qual também intervieram outros adeptos da
―história‖ ou do ―direito racional‖, a pergunta pela fonte do elemento normativo é
colocada com toda a precisão necessária. Enquanto, para os representantes da chamada
―Escola Histórica do Direito‖, ela reside no desenvolvimento histórico do direito, não
restando mais, ao lado deste, qualquer lugar para argumentações baseadas no direito
13
Georg F. W. HEGEL, Gesammelte Werke, v. 4, p 419. 14Id., ibid., v. 4, p. 423. 15
Ibid., v. 4, p. 481. 16
Friedrich Carl Von SAVIGNY, vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Heidelberg, 1814, in: Tribaut und Savigny: Ihre programmatischen Scheiften, com introdução de Hans
Hattenhauer, München, 1973, p. 95-192.
24 Coleção Filosofia - 176
natural17
, Johann Paul Anselm Feuerbach (o pai do filósofo), por exemplo, formula com
muita clareza: a história só poderia dizer como algo se teria tornado, mas não o que esse
algo seria — ou seja: a abordagem meramente histórica não pode proporcionar
legitimação para a justificação interna de uma norma jurídica ou moral18
. O mero recurso
a situações históricas e ao direito de fato vigente jamais pode dizer o que o direito seria,
mas apenas o que teria sido válido como direito, numa determinada época e situação.
As preleções e publicações de Hegel sobre filosofia do direito não abordam
pormenorizadamente essa importante disputa, embora ele tenha estado muito familiarizado com ela por causa das estações de sua vida posterior — por sua amizade
com Thibaut, em Heidelberg, e sua oposição a Savigny, em Berlim. No entanto,
encontramos diversos ecos dessa disputa, particularmente o maciço posicionamento em
favor de uma codificação do direito no § 211 das Linhas fundamentais da filosofia do
direito: ―Denegar a uma nação culta ou a ordem dos juristas dessa nação a capacidade de
fazer um código de leis [...] seria uma das maiores afrontas que se poderiam fazer a uma
nação ou a essa ordem‖. Ora, foi justamente isso que Savigny, o representante da
chamada corrente ―histórica‖, fez nessa disputa com Thibaut.
c) Assim, com essa manifestação, Hegel parece bandear-se para o lado dos
expoentes do direito natural — e em favor disso depõem também os títulos das preleções
que anuncia — ―Ius naturae et civitatis‖ — bem corno o subtítulo das Linhas
fundamentais da filosofia do direito: ―Direito natural e ciência do Estado em
compêndio‖. Contudo, tanto nas preleções quanto no Compêndio, ele torna a distanciar-
se desse termo: ―O nome ‗direito natural‘ merece ser abandonado e substituído pela
designação ‗doutrina filosófica do direito‘ ou, como também haverá de mostrar-se,
doutrina do Espírito Objetivo‖19
. A expressão ―natureza‖ deve ser substituída, por conter
a ambigüidade ―de que, sob ela, entende-se 1) a essência e o conceito de algo, e 2) a natureza imediata e desprovida de consciência como tal‖. Conseqüentemente, Hegel
observa no § 2: ―A esfera do direito no é o âmbito da natureza, e sim [...] a esfera da
liberdade‖. Porém, com essa crítica, Hegel não se coloca logo ao lado do ―histórico‖, e
sim primeiramente apenas na tradição kantiana da substituição do termo ―direito natural‖
por ―direito racional‖. E esse caráter associado ao direito racional domina a filosofia do
direito desenvolvida por ele em Heidelberg e Berlim. Ele se torna palpável
especialmente na primeira parte da Filosofia do direito, dedicada ao ―direito abstrato‖.
Não menos inequívoco, entretanto, é o distanciamento de Hegel em relação ao
direito natural ou racional — particularmente em sua crítica ao contratualismo da
17
Friedrich Carl von SAVIGNY, introdução ao v. 1 da Zeitschrift für geschichtlischen Rechtswissenschaft,
1815, in: Thibaut um Savigny, p. 261-268. Nesse texto, Savigny distingue de maneira progrimática entre o
método histórico e o não-histórico ou filosófico – porém não d etal maneira que eles fossem dois enfoques
igualmente legítimos, e sim afirmando que um seria apropriado e o outro, reprovável. Thibaut critica essa
distinção e a substitui pela distinção entre o método ―meramente histórico‖ e o ― histórico-filosófico‖; veja
Thibaut und Savigny, p. 270. 18
Johann Paul Anselm FEUERBACH, Einige Worte über historische Rechtsgelehrsamkeit und einheimische
teutsche Gesetzgebung (1816). In: Thibaut und Savigny, p. 224. 19
Georg F. W. HEGEL, Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft: Heidelberg 1817/18 mit
Nachträgen aus der Vorlesung 1818/19, transcritas por P. Wannenmann. Editadas por C. Becker et al.,
Hamburgo, 1983 (= Hegel, Vorlesungen, v. 1), § 2, nota.
Coleção Filosofia – 176 25
filosofia do Estado e em sua teoria da ―moralidade‖ que o substitui, isto é, em sua
doutrina das instituições da convivência humana. E também podem encontrar-se
afirmações nas quais Hegel concorda expressamente com os críticos do direito racional
— já na Fenomenologia, em suas análises da liberdade absoluta e do terror20
, e
igualmente mais tarde, por exemplo, em suas preleções sobre a história da filosofia:
―Fazer valer abstrações na realidade efetiva significa destruir a realidade efetiva‖21
. Em
nenhuma outra afirmação da filosofia de Hegel mostra-se uma associação mais estrita a
crítica de uma razão meramente abstrata ligada ao nome de Edmund Burke. d) Portanto, nos textos de Hegel, é possível encontrar manifestações que
atestam sua vinculação tanto ao partido ―histórico‖ quanto ao partido ―do direito
racional‖ —, sem que essas duas séries de enunciados estivessem ligadas de uma
maneira sistematicamente concludente. Ambos os enfoques tem sua legitimidade, mas os
dois são unilaterais. Por isso, não podemos deter-nos em sua mera oposição, mas
precisamos buscar uma passagem entre a Cila* do direito racional e a Caribde** da
abordagem meramente histórica, mas que, não obstante, reivindica legitimação. Essa
mediação deve ser concebida como uma dupla mediação de acordo com o procedimento
exposto por Hegel em outros casos. É preciso mostrar que a razão não constitui um
princípio meramente abstrato, excogitado a escrivaninha, sem mediação com a realidade
efetiva, mas que ela só é razão quando já estiver sempre mediada com a realidade
efetiva. Faz-se mister mostrar também que a própria história não é mera facticidade, mas
que ela é ―história da liberdade‖. Só se pode yindicar da história uma pretensão
normativa, se se puder mostrar que o movimento da história é, ao mesmo tempo, um
desdobramento de conteúdos normativos. E, inversamente, só se pode conceder à razão
uma pretensão normativa em relação à realidade efetiva, se se mostrar que isso não
acarreta a destruição da realidade, mas sim que a razão só é pensada corretamente, se for concebida como estando desde sempre reconciliada com tal realidade efetiva.
Mas será que Hegel realizou essa mediação? Gostaria de concentrar a resposta a
essa pergunta em duas teses que parecem contradizer-se, mas de fato não se contradizem:
1) Na filosofia do direito, Hegel não resolveu o problema da relação entre razão
e história ou — expressando-o com o título de uma publicação recente — da relação
entre facticidade e validade22
— que sua época lhe colocou e que ele resolveu em outras
partes dc seu sistema.
2) Ainda assim, esse problema só é solucionável a partir do enfoque de Hegel.
Gostaria de expor e fundamentar essas duas teses nas partes 3 e 4 desta conferência.
20
Id., Phänomenologie des Geistes. In: Gesammelte Werk, v. 9, p. 316-323. 21
Id., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. In: Werk, v. 15, p. 553.
* N. do T.: Banco de areia no mar da Sicília.
** N. do T.: Sorvedouro no mar da Sicília. ―Cila e Caribde‖ simbolizam, portanto, duas opções igualmente
endesejáveis para as quais se precisa buscar uma alternativa. 22
Jürgen HABERMAS, Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtsstaats, 2. ed. Frankfurt am Main, 1992.
26 Coleção Filosofia - 176
3
a) Na forma como ela se encontra, a filosofia do direito de Hegel não oferece
uma abordagem para superar a tensão entre razão e história. A razão disso me parece ser
uma razão de princípio, ou seja, deve-se a forma do sistema da filosofia do direito. Essa
forma se distingue consideravelmente da forma das outras disciplinas da filosofia do
espírito: da estética e da filosofia da religião23
. A diferença decisiva ainda não é tão
visível, quando se compara apenas a forma que a filosofia do direito, por um lado, e a estética e a filosofia da religião, por outro, adquiriram na Enciclopédia; pois na
Enciclopédia — como guia conciso para as preleções — o elemento histórico da estética
e da filosofia da religião não está exposto, mas, antes, oculto. As Preleções, por sua vez,
mostram de que maneira Hegel associa, um com o outro, os momentos conceituais e os
históricos dessas áreas. As Preleções sobre a estética, por exemplo, tratam tanto do
―sistema das formas de arte‖ quanto a história da arte — e oferecem, indo além da mera
justaposição de ambas as áreas, uma teoria bem-elaborada sobre o nexo do ―sistema das
formas de arte‖ com a história da arte. E as Preleções sobre a filosofia da religião
desenvolvem inicialmente um ―conceito de religião‖ e mostram, a seguir, a medida que
se percorrem as religiões históricas, como esse conceito — de início, introduzido apenas
a partir da filosofia do espírito — se forma na história, como, portanto, o curso da
história representa a efetivação progressiva do conceito. Cada figura histórica constitui,
por isso, urna realização mais adequada do conceito de religião. Aqui, na filosofia da
religião, Hegel chega a afirmar que haveria só um método na ciência: e o primeiro seria
―aqui o conceito, corno sempre‖; o segundo, a determinidade histórica do conceito; o
terceiro, a forma acabada24
. Contrariando essa afirmação, porém, Hegel só expôs essa
forma na filosofia da religião, ao passo que, na estética, ao menos associou, um ao outro, o aspecto conceitual e o histórico.
Na filosofia do direito, entretanto, Hegel no inseriu nenhum elemento histórico.
Ela começa como lógica do conceito de direito e introduz definições como
―propriedade‖ e ―contrato‖, a maneira do direito natural ou racional anterior — sendo
que, em especial no caso do conceito de propriedade, ele se apóia claramente no conceito
transcendental de propriedade de Kant —, mesmo que, com a correlação de propriedade
e pessoa, Hegel vá além de Kant. Todavia, aí não se encontram momentos históricos —
tampouco na segunda seção sobre a ―Moralidade‖, embora, nesse caso, as implicações
com a história contemporânea sejam Obvias. E, também na terceira seco, Hegel
desenvolve as três formas de ―moralidade‖ — família, sociedade civil e Estado — como
formas organizadas hierarquicamente, mas não como figuras históricas, conquanto
também nesse caso, com a introdução do novo conceito de ―sociedade civil‖, a relação
com a história do seu tempo seja patente. Por conseguinte, seu enfoque parece implicar
uma exposição puramente jurídico-racional da realidade social — apesar de, justamente
23
A relação do trecho da Enciclopédia sobre ―filosofia‖ com as Preleções sobre a história da filosofia constitui
um tema á parte. 24
Georg F. W. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Religion: Teil 1, ed. por Walter Jaeschke,
Hamburgo, 1983, p. 83 (= Hegel, Vorlesungen, v. 3).
Coleção Filosofia – 176 27
na teoria hegeliana da moralidade, encontrarem-se os elementos contextualistas com
base nos quais, na atual discussão sobre a filosofia do direito, seu enfoque é situado do
lado do comunitarismo, em contraposição ao liberalismo, que argumenta a partir do
direito racional e da teoria do contrato.
b) Poder-se-ia, contudo, objetar, contra o que aqui foi exposto, que também a
filosofia do direito conteria efetivamente um momento histórico: afinal, depois da parte
que trata do direito estatal interno e externo, ela culmina num panorama da história
universal. Por três razões, porém, esse apêndice não me parece ser um substitutivo suficiente para uma exposição histórica da filosofia do direito. A história universal — qual
Hegel a esboça aí, como história dos Estados — não representa um equivalente para a
história do direito que está faltando em sua abordagem. Essa já teria de começar com os
estágios situados antes de um enfoque histórico-universal nos moldes de Hegel: já teria de
iniciar com a formação do conceito de direito, no desligamento do ius em relação ao fas, e
descrever o desenvolvimento histórico de todos os institutos jurídicos como formas da
razão em processo de efetivação. E teria de avançar, passando, por exemplo, pela
constituição dos conceitos de imputação e obrigatoriedade, até chegar — hoje em dia, indo
além de Hegel — à formação do moderno direito internacional como figura peculiar e
dantes não-conhecida do direito. Se não se compreende a constituição de todos os institutos
jurídicos e das instituições políticas como tais formas da efetivação da razão, também não
se pode superar o conflito entre razão e história irrompido na época de Hegel.
Ha ainda urna segunda razão pela qual a história universal não me parece ser
um substituto para uma exposição da história do direito. Em outra passagem, a história
universal é definida por Hegel como a totalidade das manifestações do espírito25
. Essa
totalidade, porém, não deve ser enfocada já no final da filosofia do direito, pois ela
abrange também as histórias da arte, da religião e da filosofia. Por isso, a história universal, no sentido de uma totalidade, não pode ter seu lugar sistemático no final da
filosofia do direito; aí, quando muito, pode ser tematizada a história dos Estados.
E ainda, por uma terceira razão, a história universal me parece estar
erroneamente localizada, em termos sistemáticos, ao final da filosofia do direito. A
concisa formula na qual Hegel expressa a processualidade da história universal é, a rigor,
uma fórmula da história do direito, a saber, que ela seria ―progresso na consciência da
liberdade‖. Embora essa também fosse uma fórmula possível para a história universal, a
concretização que Hegel lhe dá ocorre apenas no marco da história do direito ou,
especialmente, do direito constitucional: no Oriente só uma pessoa seria livre; na
Antiguidade, algumas; e só no mundo moderno o ser humano seria livre enquanto ser
humano. Essa é uma fórmula só para designar a dinâmica da história do direito enquanto
história constitucional, e não da história universal de modo geral. Entretanto, é
justamente essa história do direito que Hegel não elaborou como tal. Por isso, na
25
Id., Grundlinien, § 341: a história universal seria ―a realidade efetiva espiritual em toda a abrangência da
interioridade e da exterioridade‖; no § 342 ele a denomina de ―a exposição e a realização efetiva do espírito universal”. Tal conceito de história universal, entretanto, não deve ser exposto como história dos Estados, sob
o título ―Estado‖.
28 Coleção Filosofia - 176
filosofia do direito de Hegel, não está explicitado o elernento da história que seria
constitutivo para a vinculação de razäo e história.
c) Por que Hegel no destinou a história do direito um lugar sistemático que seja
análogo ao da história do ―Espírito absoluto‖? Não se estará equivocado ao supor seja uma
confrontaco histórico-científica que impediu Hegel de conceder à história do direito a
posição que lhe compete, no só a partir de um ponto de vista geral, mas que também lhe
cabe a partir de seu próprio enfoque sisternático — ou seja, a confrontação com a Escola
Histórica do Direito, Em favor dessa explicação depõe o fato de as passagens, em que Hegel procede a uma separação radical e inteiramente não-hegeliana entre método
conceitual e histórico, estarem inseridas numa polêmica contra a Escola Histórica do
Direito. Hegel acusa-a de ter trocado a verdadeira justificação a partir do conceito por
―uma justificação a partir das circunstâncias‖; de confundir o surgirnento exterior com o
surgirnento a partir do conceito e, — pensando de maneira bem aistórica, contra sua
própria autocompreensão como Escola ―Histórica‖ do direito —, fundamentar o direito de
hoje, por meio do direito de ontem, mesmo que ele tenha se tornado obsoleto por causa da
mudança da situação da sociedade ocorrida nesse meio tempo26
. Uma geração mais tarde,
Marx retornar e radicalizará essa afirmação, acusando a Escola Histórica do Direito de não
legitimar o direito, e sim ―a infâmia de hoje por meio da infâmia de ontem‖27
. Também nas
Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie [Preleções sobre a história da filosofia]
aparece várias vezes esse conflito: aí Hegel diz que os juristas esperavarn que se
―valorizasse como cornpreensão do assunto o fato de eles pretenderem saber como foram
as coisas no passado‖28
. Mas nessas preleções também fica claro que a crática de Hegel à
Escola Histórica do Direito vai urm tanto além do alvo que pretendia atingir, ao negar a
história do direito todo e qualquer caráter normativo e ao afirmar que, na história do
direito, o espírito não estaria junto de si. O fato de a história do direito conter particularidades — como, aliás, também a história da religião —, de modo que também
não dobramos mais os joelhos diante de Jupiter29
, não é um argumento concludente. Do
contrário, este último seria um argumento de primeira linha de que, na história da religião,
o espírito não estaria junto de si — e Hegel dificilmente teria pretendido contestar isso. Ao
menos a diferença de nosso espírito atual, que se recusa a ajoelhar-se, e a do espírito das
religiões anteriores não impediu Hegel de incluir a história da religião, como efetivação do
conceito de religião, no contexto de sua filosofia da religião: portanto, ele concede à
história da arte, da religião e da filosofia o que nega à história do direito.
Ao que tudo indica, a confrontação com a Escola Histórica do Direito fez com
que Hegel deixasse de perceber que entre o desdobramento sistemático do conceito de
direito e o tratamento meramente histórico da história do direito — compreensivelmente
rejeitado por Hegel — há ainda uma terceira via: a via de uma interpretação filosófica da
história do direito. E isso significa: a via da reconstrução filosófica da efetivação do
26
Ibid., § 3 27
Karl MARX, Zur Kritik der Hegel‘schen Rechts-Philosophie. In: Deutsch-Französische Jahrbücher, ed. por
Arnold Ruge e Karl Marx, Paris, 1844. p. 73. 28
Georg F. W. HEGEL, Einleitung in die Geschichte der Philosophie (veja nota 3); Vorlesungen, v. 6, p. 73,
ou Gesammelte Werke, v. 18, p. 85. 29
Id., Einleitung in die Geschichte der Philosophie (veja nota 3); Vorlesungen, v. 6, p.327.
Coleção Filosofia – 176 29
direito, da história da liberdade guiada pela idéia do direito. Essa história de modo algum
se torna insuficiente por causa do tratamento meramente histórico da história do direito
— tratamento que, entretanto, não e suficiente, tanto da perspectiva filosófica quanto a
partir do interesse na legitimação —, da mesma maneira que tampouco a história da
religião se torna falha por causa de um enfoque histórico da história da Igreja, que só se
ocupe com exterioridades, que só conheça ainda as datas dos Concílios nos quais foram
definidos dogmas quaisquer ou estruturas organizacionais da Igreja30
. A rigorosa linha
divisória que Hegel quis tracar entre o método da Escola Histórica do Direito e seu próprio enfoque obviarnente o irnpediu de perceber que a exposição empírica da história
do direito tem seu fundamento num método insuficiente, e não, por exemplo, numa
constituição peculiar dessa própria história.
d) Isso pode ser ilustrado a partir de uma reflexão com a qual Hegel distingue a
história do direito da história da religião: ―Aqui [sc. na filosofia da religião] a situação
não é como quando, por exemplo, se trata o direito, de maneira empírica. As
determinidades do direito não se seguem do conceito, mas são tomadas de outro lugar.
Aí primeirarnente se define, de modo geral, o que significa direito; os direitos
específicos, porém, o direito romano ou o alemão, devem ser tomados da experiência.
Aqui [sc. na filosofia da religião], porém, a determinidade deve depreender-se do próprio
conceito‖31
. Se isso fosse adequado em relação à história do direito, seria uma objeção,
não tanto contra a história do direito, e sim contra o conceito de espírito. Entretanto,
também nesse caso, Hegel não menciona nenhuma razão para sua afirmação de que o
espírito enquanto direito teria uma outra relação com sua história do que o espírito
enquanto religião. E isso também não logra ser fundamentado com meios hegelianos. De
resto, ele assegura incisivarnente haver, no respectivo caso, apenas um princípio, um
espírito que constituiria o caráter comunitário da religião, da constituição política, da moralidade e do sisterna jurídico
32. Ora, nesse caso, nesse espírito uno não pode ocorrer
uma contraposicão de historicidade e aistoricidade. Pelo contrário: assim como para a
filosofia da religião e imprescindível uma filosofia da história da religião, que consiga
perceber a razão na religião, inclusive em suas configurações que, à primeira vista,
parecem pouco razoáveis, também para a filosofia do direito é imprescindível uma
filosofia da história do direito, que ensine a entender a história do direito como história
da liberdade. Afinal, não se pode derivar essa diferença ou discrepância entre
historicidade e aistoricidade da discrepãncia entre a objetividade do espírito na área do
direito e sua absolutidade no âmbito da arte e da religiao. Hegel, porém, não tratou da
história do direito que, justamente também a partir de seu enfoque, seria possível e
necessária. Em vez disso, ele desenvolveu sua filosofia do direito como uma construção
nos moldes do direito racional — ―Direito natural e ciência do Estado em compêndio‖
— que não estabelece uma consonância dos elementos imanentes, contextualistas,
históricos em sua concepção, com os elementos jurídico-racionais.
30
Id., Vorlesungen über die Philosophie der Religion, parte I, p. 76 e passim. 31
Ibid., parte 1, p. 84. 32
Georg F. W. HEGEL, Philosophie der Weltgeschichte: Einleitung 1830/31. In: id., Gesammelte Werke, v.
18, p. 196s.
30 Coleção Filosofia - 176
4
a) Como contraponto a esse resultado um tanto decepcionante, gostaria de
defender, na quarta parte de minhas reflexöes, a posicão de que justamente o enfoque de
Hegel se presta, mais do que qualquer outro, para estabelecer uma ligação e
concordância entre os dois controvertidos elementos ―razäo‖ e ―história‖.
Para comprovar essa tese, gostaria de, por um lado, remeter a confrontação de
Hegel com a chamada ―Escola Histórica do Direito‖. O enfoque de Hegel me parece ser o melhor enfoque historiográfico nessa controvérsia, ou seja, o enfoque que corresponde
melhor à historicidade do direito do que a abordagem que denomina a si mesma de
―histórica‖33
e, ainda assim, cleixa o conceio de história totalmente obscuro. Hegel, por
sua vez, recorrendo a suposicão da existência de uma efetivação progressiva do direito,
desenvolve consequências que admitem o desenvolvimento jurídico mais recente e que,
por isso, também se contrapõem à postura negativa da chamada Escola Histórica do
Direito para com a codificação: justamente se o direito se manifesta no desenvolvirnento
progressivo do espírito do povo, também sua codificação só pode ser um ato formal. Mas
não gostaria aqui de detalhar este argumento34
.
b) O argumento filosófico decisivo, para a mediação entre razão e história,
pode, em minha opinião, ser obtido já a partir do § 1 da Filosofia do direito: nele Hegel
diz, com muita clareza, que a ciência filosófica do direito tem ―por objeto a idéia do
direito, o conceito de direito e sua efetivaçäo‖35
. Ora, ―efetivação‖ não significa um
estado fixo, e sim um processo histórico: justamente o processo da história do direito
enquanto efetivação histórica daquilo que é razoável racional em si — portanto, a
história do direito como história da liberdade36
.
Embora Hegel não tenha exposto a história do direito como uma história desse tipo de liberdade, justamente seu enfoque na ―ideia‖ do direito permite — e exige — tal
33
Existe uma ―dissonância cognitiva‖ contundente entre a programática científica ―histórica‖ e a prática
científica ―historiográfica‖ de Savigny. A programática histórica, que deveria ter tornado compreensíveis o
surgimento do direito, a partir do muito invocado ―espírito do povo‖, e as posteriores mudanças do direito até
ao presente, é substituída, na execução da proposta, pela investigação historiográfica do Direito Romano e pela
validação desse contra as codificações mais recentes: o ―Direito Territorial Geral para os Estados Prussianos‖ e
o ―Code Civil‖, que Savigny considera, nesses anos pós-napoleônicos. uma doença política pela qual se
passou. O abismo entre o recurso programático ao espírito do povo germânico e a refundição do Direito
Romano é mal e mal ocultado pelo artifício da afirrnação de que justamente o Direito Rornano melhor
corresponderia ao espírito do povo alemão. Não obstante, esse enfoque teve, por causa de sua magistral
exposição da história do Direito Romano, uma influência decisiva sobre o pensamento jurídico do século XIX,
incluindo o positivismo. Para uma apresentação mais detalhada dessa crítica aqui apenas mencionada. veja a
publicação indicada na próxima nota. — Sobre Savigny veja especialmente o estudo de Joachim RÜCKERI‘,
Idealismus, Jurisprudenz und Politik bei Friedrich Carl von Savigny, Ebelsbach, 1984 (Abhandlungen zur
rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung, 58), o qual, porém, não está interessado numa crítica do
conceito de história da Escola Histórica do Direito na perspectiva da filosofia hegeliana. 34
Veja sobre isso Walter JAESCHKE, Die Vernünftigkeit des Gesetzes: Hegel und die Restauration im Streit um
Zivilrecht und Verfassungsrecht, In: Hans-Christian LUCAS; Otto PÖGGELER (Eds.), Hegels Rechtsphilosophie im Zusammenhang der europäischen Verfassungsgeschichte, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1986, p. 221-256. 35
Também em Grundlinien, § 273, Hegel acentua a necessidade do desenvolvimento histórico da idéia, mas
aqui o enquadra na ―história universal do mundo‖ 36
Walter JAESCHKE, Die vergessene Geschichte der Freiheit. In: Hegel Jahrbuch 1993/94, Berlim, 1995.
Coleção Filosofia – 176 31
exposição. A tematização filosófica de uma forma do espírito bem como da do direito —
para ser completa — precisa expor o conceito e a efetivação, a razão e a história, e isso não
só em termos de uma adição ou de uma completude externa, mas por razões que residem
na própria natureza do espírito. Para Hegel, afinal, a ―história‖ está fundamentada no
conceito de espírito: para ele, não ha história que não fosse história do espírito e,
inversamente, não ha forma ou configuração do espírito que não fosse histórica.
Por essa razão, para Hegel, a história não é nada que fosse pura e simplesmente
estranho as exigências da razo, pois ele concebe a história justamente como a forma necessária do desdobramento da razão. Uma razão que não estivesse mediada com sua
formação histórica seria, pelo contrário, uma razão abstrata — e querer impô-la contra a
efetividade significaria destruir a efetividade. Por outro lado, porém, Hegel concebe a
configuração que se constituiu em efetividade como uma configuração da razão — não
como algo meramente positivo, factual, mas como algo racional. A razão e a história
constituem, por isso, uma unidade — e este é o sentido da afirmacão muito citada e
difamada: “O que é racional é efetivo; e o que é efetivo é racional”37
. E, com vistas ao
aspecto político dessa fórmula, estaria, de qualquer modo, na hora de finalmente
lembrar-se de que ela foi cunhada pela crítica à revolução do ―liberal‖ Burke e não pelos
teóricos da restauração daquela época.
c) Como, porém, pode-se evitar, sob a condição de supor-se a existéncia dessa
identidade, que também as formas de efetividade, as quais não parecem portar o caráter
do racional, e sim da pura irracionalidade, sejam, ainda assim, legitimadas como
racionais? Afinal, todas as configurações particulares da razão ficam aquém da
realização completa da razão — do contrário nem haveria história da razão. O critério
para a crítica imanente não pode ser outro do que o conceito — histórico-jurídico — da
história enquanto progresso na consciência da liberdade: o grau dessa consciência da liberdade é a craveira da razão imanente da história.
Por causa dessa identidade de razão e história, toda exigência de uma suposta
razão, que não esteja mediada com a situação historicamente dada, não passa de
exigência de uma razão abstrata, que destrói a realidade efetiva. Da mesma maneira, uma
exigência apoiada na mera facticidade de um estado histórico e uma exigêcia desprovida
de razão, se ela não se mediar com o teor interno da história, com o progresso na
consciência da liberdade. Por conseguinte, a fonte de toda normatividade não reside nem
na razão — aistórica — nem na história — não-racional. Ela reside na razão tão-só na
medida em que essa possa ser interpretada como razão historicarnente efetivada, e reside
na história tão-só na medida em que esta possa ser concebida como história da razão.
Uma pretensão de normatividade só pode ser levantada pelo elemento histórico, que
deva ser cornpreendido como um momento dessa história da liberdade.
Tradução de Prof. Dr. Luís Marcos Sander (EST)
37
Georg F. W. HEGEL, Grundlinien, Vorrede. In: Werke, v. VIII, p. 17.
32 Coleção Filosofia - 176
SUBJETIVIDADE E INTERSUBJETIVIDADE NA
FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ
1. Filosofia da Subjetividade
Um tópos muito em yoga na mais nova historiografia da filosofia consiste em
caracterizar a filosofia clássica alemã — de Kant a Hegel — como uma filosofia da
subjetividade, e, concomitantemente a isso, em colocá-la em questão. Sem dúvida, essa caracterização acentua um traço fundamental dessa filosofia. Dificilmente se poderia
encontrar uma época anterior, na história da filosofia, que tivesse concedido ao sujeito
uma posição comparável a essa. Antes de tudo, foi ela que, pela primeira vez, enfatizou
claramente a idéia de subjetividade, contra a substancialização imediata do ―ego‖, contra
a falsa interpretação cartesiana do eu como uma ―res‖ (ainda que uma ―res cogitans‖) e,
por conseguinte, como uma substância. Desse modo, a filosofia clássica alemã se
encontra, por um lado, dentro da tradição do cartesianismo, o qual — a meu ver — ela,
pela primeira vez, entende como sendo uma ―filosofia da subjetividade‖1. Porém, ao
mesmo tempo, ela desenvolve a crítica definitiva àqueles resquícios do cartesianismo
que perpassam a metafísica racionalista, incluindo a do século XVIII. Ela sacrifica —
poder-se-ia assim, dizer — as implicações relativas á filosofia da substância do
cartesianismo e aprofunda suas implicações relativas à filosofia da subjetividade,
tornando, dessarte, pela primeira vez, o sujeito em fundarnento da filosofia.
Quando se vê a filosofia clássica alemã generalizadamente caracterizada através
desse conceito de filosofia da subjetividade, não é nada fácil buscar nela ainda Os
princípios que possibilitariam a formação da idéia de intersubjetividade. Além disso, a
evidência (nela) desse caráter de filosofia subjetiva é predominante. O conhecimento, cuja possibilidade ela busca fundamentar, corresponde ao conhecimento de um sujeito.
Ele não é atribuído ao sujeito como um produto já acabado; é, ao contrário, entendido
como um produto, cuja constituição pode ser reconstruída a partir do efeito simultâneo
(Zusammenwirken) de diferentes atos de conhecimento do sujeito — algo como
receptividade e espontaneidade, sensibilidade e entendimento, ou, mais detalhadamente,
como consta na primeira versão da dedução transcendental de Kant através da apreensão,
reprodução e recognição de representações. Para descrever o efeito simultâneo dessas
―fontes de conhecimento subjetivas‖, não é necessário ver além do sujeito, a não ser
quando essas representações do sujeito tenham que ser consideradas como
representações ―de algo‖, pois esse ―algo‖ consiste no múltiplo da intuição. Falta,
entretanto, toda a demonstração de que um outro sujeito poderia formar uma condição
necessária para esse processo de constituição do conhecimento.
1 HEGEL: Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Edição de Pierre Garniron e Walter Jaeschke.
Parte 4. Hamburgo, 1986 (= Hegel: Vorlesungen. Vol. 9), p. 88-90.
Coleção Filosofia – 176 33
Essa impressão também é comprovada através do ulterior aperfeiçoamento da
filosofia teórica, no interior do idealismo transcendental. Nem a minuciosa
sistematização de ações internas do eu, que Schelling coloca, em seu Sistenia do
Idealisnio Transcendental, sob o título de uma ―história da autoconsciência‖, atinge os
momentos da intersubjetividade. Diante das ações do sujeito, sempre está apenas um
―não-eu‖ ou ―objeto‖, não sendo preciso nenhum outro sujeito2.
Mas essa reconstrução das condições internas do conhecirnento, relativa a uma
filosofia fechada da subjetividade, também é posta em questão e, aliás, em um contexto que conduz para além do fundamento de tal conhecimento: na observação do modo
como funciona o tribunal da razão. Esse último, segundo Kant, não possui apenas um
(único) juiz, o qual seria dotado de competências ilimitadas: ―Quanto e com que
correção nós pensaríarnos; (Se estivéssemos) sozinhos, se não pensássemos
simultaneamente em comunidade com outros, com os quais compartilhamos nossos
pensamentos e os quais compartilham conosco os seus?‖3 Aqui, o significado da
comunidade com outros é direcionado para nosso pensamento, tanto, aliás, para o lado
do pensamento em geral quanto para o lado da correção dos resultados do pensamento.
Também nas notas póstumas, Kant escreve que, por intermédio da razão, um (ser
humano) seria para o outro ―um co-proprietário (condorninus) da grande propriedade
dos conhecimentos‖, ―que se oferecem como posse para a razão humana universal‖4.
Porém, Kant não tematiza possíveis repercussões dessa idéia sobre sua teoria da
constituição do conhecimento. Essa conseqüencia teria permanecido remota para ele, e
talvez por um bom motivo. Ele recorre a esse pensamento apenas para fundamentar a
necessidade de um uso público da razão. Talvez fosse possível interligar os dois temas:
de um lado, o da constituição filosófico-subjetiva do conhecimento, e, de outro, o
significado da comunidade para esse conhecimento. O pensar em comunidade com outros é um estimulante também para que se pense. Do mesmo rnodo, o pensamento em
comunidade pressupõe o pensamento individual; esse último permanece um esforço
interno do sujeito. A intersubjetividade não se insere nas condições de constituição do
conhecimento. Mas, como é sabido que o conhecimento pode ser errôneo, é atribuída ao
pensamento em comunidade com outros, não apenas a função de estímulo, mas também
a de um corretivo, para que o uso da razão conduza a resultados confiáveis.
2. Primeira crítica a filosofia da subjetividade
Essa modificação da centralização exclusiva no sujeito, aqui sugerida, também
não é, de modo algum, a úitima palavra da filosofia clássica alemã sobre o tema. Contudo,
antes de retomá-la, eu gostaria inicialmente de lançar um olhar sobre dois críticos
anteriores, cujos estilos também se tornaram modelares para a crática mais recente.
2 SCHELLING: System des transzendentalen Idealismus. Sämtliche Werke, Parte I, Vol. 3, p. 395-531.
3 Immanuel KANT: Was hei t: Sich im Denken orientieren? In: KANT: Gesammelte Schriften. Edição da Königlich
Preu ischen Akademie der Wissenschaften. Vol. 8, 1912, nova impressão Berlim e Leipzig, 1923, p. 144. 4 KANT: Vorarbeit zu Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in der Philosophie. In: Kant:
Gesammelte Schriften. Vol. 23, p. 195.
34 Coleção Filosofia - 176
A imagem unilateral que temos atualmente da filosofia clássica alemã como
sendo mera filosofia da subjetividade — e não concomitantemente da intersubjetividade
— remonta, em grande parte, a crítica eficaz5 que Friedrich Heinrich Jacobi exerceu
sobre essa filosofia66. Por isso, Jacobi é considerado como aquele que pos o ―tu‖ (das
“Du”) contra a fixação no sujeito, característica da filosofia clássica alemã. A ele se
deve agradecer a inversão de pólos, do ―eu‖ para o ―tu‖. Além dessa, encontram-se, em
sua obra, outras tantas formulações. Sua proposicão decisiva é a seguinte: “Conhece-te a
ti mesmo, é, segundo o deus délfico e segundo Socrates, o mais elevado mandamento, e tão logo ele é colocado em prática, o ser humano descobre que sem o tu divino não há
nenhum eu humano, e vice-versa‖7.
A concepção de que, através disso, a mudança histórica do eu para o tu se
consuma, ou ao menos principia, deve, sem dúvida, ser corrigida em trés aspectos. De
um lado, Jacobi parte do mandamento do autoconhecimento, o qual é direcionado a um
eu — e, na marcha desse autoconhecimento, o eu deve perceber que um tu é a condição
necessária de sua ipseidade (Ichheit). Essa e, porém, — mesmo que se quisesse
concordar com isso — a descrição de uma complexa estrutura de pressuposição, que
lembra menos a intersubjetividade do que a relação do eu e do não-eu no Fundamento de
toda a Doutrina da Ciência (Grundlage der gesainten Wissenschaftslehre) de Fichte:
quando a necessidade do tu se esclarece para o eu, a partir de um ato de
autoconhecimento do eu, cabe ao eu, nessa relação, o primado.
Por outro lado, porém, o ―tu‖, do qual se fala aqui, não é expressamente o tu
humano, mas o Lu divino; e seria difícil entender a relação de um tu humano com um tu
divino de modo analógico, enquanto forma de intersubjetividade, mesmo que talvez
alguém considerasse correta a perspectiva de que o tu divino seria o protótipo do tu
humano, e esse últirno fosse visto apenas como que a luz do primeiro. Tal função prototípica do tu divino para o ser humano proíbe, contudo, não apenas o inegável
―desequilíbrio‖ entre ambos, mas o simples fato de o tu divino ter o seu lugar em
ninguém mais do que no eu humano, mesmo quando é pensado como aquele que tem
independência diante do eu humano, ou ainda independência primária. Também essa
pressuposta independência é sempre tão-somente uma independência pensada pelo eu.
— Neste sentido, Jacobi, o crítico da subjetividade, ainda permaneceu atrelado ao
pensamento da subjetividade pretensamente superado.
E finalmente apresente-se ainda uma terceira interrogação, válida para as duas
últimas palavras da citacão:
1. ―Sem o tu divino não ha nenhum eu humano e vice- versa.‖
5 Veja — entre os contemporâneos — Jean PAUL: Clavis Fichteana. In: Transzendentalphilosophie und
Spekulation. Der Streit um die Gestalt einer Ersten Philosophie (1799-1807). Quellenband (= Philosophisch-
literarische Streitsachen, V.2.1). Edição de Walter Jaeschke. Hamburgo, 1993, p. 81-109 6 Jacobi an Fichte. Hamburgo 1799. In: Transzendentalphilosophie und Spekulation, p. 3-43.
7 Friedrich Heinrich JACOBI: Werke. Edição de Klaus Hammacher e Walter Jaeschke. Vol. 1. Edição de Klaus
Hammacher e Irmgard-Maria Piske. Hamburgo, 1998, p. 348s
Coleção Filosofia – 176 35
O significado dessas duas palavras ―e vice-versa‖ é claríssimo. Através da
mera inversão das relações de condição — que Jacobi por certo tem em mente —
resultaria a seguinte proposição:
2. ―Sem o eu humano não haveria nenhum tu divino‖.
Poder-se-ia relacionar a inversão também à ordem de ligação dos adjetivos com
os substantivos. Então o resultado da inversão da proposição 1 seria esta nova proposição:
3. ―Sem o tu humano não haveria nenhum eu divino‖
Ou através da inversão da proposição 2, resultaria esta nova proposição: 4. ―Sem o eu divino não haveria nenhum tu humano‖.
Em um determinado horizonte de pensamento tradicionalmente teísta, essa última
proposição é naturalmente trivial. O interessante é, contudo, que as duas proposições 2 e 3
resultem analogamente na mesma afirmação — na ênfase sobre a imprescindibilidade de
Deus para os seres humanos, tanto quanto sobre a imprescindibilidade do ser humano para
um pensamento personalista de Deus: assim como o ser humano só se torna pessoa através
de Deus, também Deus só se torna pessoa através da relação pessoal com o ser humano.
Essa é, aliás, uma informação que busca produzir a reciprocidade entre o eu (ou o tu)
divino e humano. Entretanto, ela se deixa fundamentar argumentativamente tão pouco,
quanto (ao menos na perspectiva da religião tradicional) é problemática. Pode-se localizar,
precisamente na tarefa de evitar essa conseqüência, o sentido sistemático de uma
importante época da história dos dogmas.
Duas gerações mais tarde, conhecendo as formulações de Jacobi, mesmo sem citar
seu nome, e dando-ihes continuidade, Ludwig Feuerbach — novamente em uma virada
contra a filosofia clássica alemã enquanto filosofia da subjetividade — procurou conceder ao
tu o primado sobre o eu. Eu gostaria aqui de diferenciar duas fases. Na primeira, em sua
crítica da religião, ainda fortemente orientada por Hegel, em A essência do cristianismo, Feuerbach ainda permanece, em dois aspectos, na esfera da religião: de um lado, entende ―O
segredo do mistério sobrenatural da trindade‖ como expressão da necessidade estrutural do tu
para o eu: também o eu divino, poder-se-ia dizer, com Jacobi, não poderia prescindir de um
tu — não, porém, de um tu humano, mas sim do tu divino intratrinitário8. Nesse sentido,
Feuerbach é, em comparação com Jacobi, melhor teólogo — embora, evidenternente, apenas
em intenção crítica: em sua perspectiva, na idéia de trindade, não se trata de nada mais do que
da projeção das carências elementares do ser humano em direção ao outro. Mas, para
Feuerbach, a religião satisfaz essa carência: ela ―é a consciência do ser humano de si em sua
totalidade empírica, na qual a identidade da autoconsciência existe apenas como unidade —
realizada e plena de relação — de eu e tu”9
Assim, o enfoque feuerbachiano desloca o problema do eu e tu do nível
(Jacobiano) da reciprocidade necessária, entre eu humano e eu divino, para o nível de
uma necessidade elementar do ser humano efetivo por um tu efetivo — sob a projeção
dessa relação essencial para o ser humano na vida intratrinitária de Deus. Eu não
gostaria, de modo algum, de contestar tal carência elementar, mas eu não penso que a
8 FEUERBACH: Das Wesen des Christentums. In: Gesammelte Werke (ed. Werner Schuffenhauer), vol. 5, p.
130-149, especialmente p. 136s 9 Idem,p. 132.
36 Coleção Filosofia - 176
relação de subjetividade e intersubjetividade possa ser discutida satisfatoriamente nesse
nível. Não obstante, eu gostaria de extrair da proposição de Feuerbach uma lição
histórico-filosótica: o significado do tu humano para um eu humano surge, pela primeira
vez no horizonte da filosofia, somente quando o tu divino é pensado como uma projeção
do humano — ou, dito de outra forma: enquanto o lugar do tu for sistematicamente
ocupado pelo tu divino, o tu hurnano será sistematicamente irrelevante. Por isso, no
começo do século passado, a chamada ―filosofia do eu-tu‖ ou a ―filosofia do diálogo‖,
apesar de seu fundo religioso, que só preciso aqui indicar com o norne de Martin Buber — é, com razão, ligada não a Jacobi, mas a Feuerbach
10.Na fase um pouco posterior de
sua obra, depois de sua passagem para um materialismo explícito, Feuerbach enfatiza,
ainda contra o idealismo, o primado do ―tu‖ — porém, com uma mudanca que o afasta
da idéia de intersubjetividade. Pois o ―tu‖, que Feuerbach pressupõe e que opõe ao eu,
não deve mais, de modo algum, ser entendido como pessoal: sua pressuposição é aqui
sinônimo de pressupor o ―objeto‖ ou o ―se?‖11
. A virada anti-idealista de Feuerbach é
expressa ainda na inverso dessa relação: o conceito de objeto näo é, originalmente, nada
mais do que o conceito de um outro eu — de modo que o ser humano apreende, na
infância, todas as coisas como seres livremente ativos e arbitrários; portanto, o conceito
de objeto é sobretudo mediado através do conceito de tu, do eu objetivado‖12
. Essa
lembrança de uma fase ontogenética — talvez também filogenética — de indiferença
entre objeto e pessoa é, entretanto, dificilmente apropriada, para fundamentar o primado
da intersubjetividade contra o ―idealismo‖.
No entanto, Feuerbach também tenta superar, com um outro argumento, a fixacão
do sujeito feita pelo ―Idealismo‖. Gostaria de citá-lo aqui, desmembrando-o em dois
momentos: ―Apenas através da participação, apenas a partir do diálogo do ser humano com
o ser humano surgem as idéias. Nunca sozinho, mas só mutuamente chega-se a conceitos, à razão propriamente dita. Dois seres humanos fazem parte da concepção do ser humano,
tanto espiritual quanto físico: a comunidade do ser humano com o ser humano é o primeiro
princípio e critério da verdade e universalidade‖. Nesse ponto, Feuerbach se refere —
provavelmente sem o notar — a frase de Kant citada: que nós pensamos em comunidade e
só assim também pensamos corretamente. Retornarei esse aspecto um pouco mais adiante.
Na passagem citada, Feuerbach continua: ―A certeza propriamente dita da
existência das outras coisas fora de mim e para mim mediada através da certeza da
existência de um outro ser humano fora de mim. Do que eu vejo sozinho eu duvido; o
que o outro também vê, só disso se tem certeza‖13
. Nesse aspecto, o antisubjetivismo e o
antiidealismo de Feuerbach vão longe demais, ―A certeza do conhecirnento sensível do
mundo exterior, via de regra, não é garantida através do outro. Se a certeza de outras
coisas fosse garantida mediante a certeza de um outro ser humano, nunca se chegaria à
certeza, uma vez que um outro ser humano é, para os sentidos, também uma outra coisa.
10
Veja Karl LÖWITH: Das individuum in der Rolle des Mitmenschen. 1. ed. München, 1928. Reedição:
Darmstadt, 1969. 11
Ludwig FEUERBACH: Über Spirititalismus und Materialismus, besonders in Beziehung auf die
Willensfreiheit. In: FEUERBACH: Gesammelte Werke. Vol. ll,p. 172s. 12
FEUERBACH: Grundsätze der Philosophie der Zukunft. § 33, Gesammelte Werke, vol.9, p. 316. 13
Idem, § 42, Gesammelte Werke, vol. 9, p. 324
Coleção Filosofia – 176 37
Por isso, não considero convincentes nem aproveitáveis para a filosofia clássica
alemã essas duas formas da crítica contemporânea — ou quase contemporânea — a
filosofia da subjetividade, mesmo que a filosofia clássica alemã não tivesse nada mais do
que isso a dizer sobre o tema ―intersubjetividade‖. Porém, é claro que esse é, sem
dúvida, o caso — apenas os críticos de então (e frequentemente também os atuais) não
tomaram conhecimento disso.
3. Filosofia da intersubjetividade
Após esse excurso, abordando a crítica anterior, retorno à filosofia clássica
alemã. Inicialmente eu a tinha caracterizado como uma filosofia da subjetividade;
contudo, essa caracterização é, em duplo sentido, muito superficial. Por um lado, por ela
ter-se eximido, com vistas a mostrar sua plausibilidade, de diferenciar as concepcoes de
subjetividade muito diversas e até mesmo opostas. ―Filosofia da subjetividade‖ é tanto a
filosofia transcendental de Kant e de Fichte, quanto a especulação de Hegel; porém, elas
tem significados sistemáticos totalmente diversos. Descrever a filosofia clássica alemã
como ―filosofia da subjetividade‖ constitui, portanto, uma mera homonímia.
Além disso, essa caracterização é ainda muito superficial, na medida em que faz
esquecer que essa mesma filosofia da subjetividade poderia ser descrita como filosofia da
intersubjetividade. Se vejo corretamente, foi ela, que, pela primeira vez na história da
filosofia, deu atenção àquelas estruturas que hoje são tratadas sob o título de
―intersubjetividade‖, as mesmas que, no entanto, são vistas como suas opostas. O fato é que,
naquela época, nao se falava de “intersubjelividade”, mas sim de ―interpersonalidade‖.
A crítica clássica à filosofia da subjetividade se direciona contra a filosofia
teórica, e isso não acontece por acaso, mas de modo bem-fundamentado. Aliás, o lugar sistemático da intersubjetividade na filosofia clássica alemã é a filosofia prática — não a
ética, mas, mais precisamente, a filosofia do direito. A esse respeito, permitam-me fazer
aqui algumas observações gerais.
A estrutura básica da ética kantiana consiste na justaposição da lei moral
presente na razão e da minha vontade livre, através das quais determino as máximas de
meu agir. A idéia da ―intersubjetividade‖ atua nesse modelo, quando muito e de modo
muito pouco específico, na medida em que os sujeitos fora de mim são incluldos, de
forma global, na idéia de uma ―legislação universal‖. Na área do direito, isso se dá de
modo diferente. O conceito de direito é a unificação de minha vontade livre com outras
vontades livres sob uma lei. O conceito de vontade livre não é o de uma vontade isolada,
mas sim o de uma vontade, que, unificada sob a lei da liberdade, é de todos aqueles que
gozam do direito. Atualmente, não podemos mais pensar a idéia de direito a não ser por
causa dessa idéia de liberdade, assim como não podemos pensar a ordem jurídica senão
como uma ordem da liberdade, e, portanto, como estruturada intersubjetivamente.
Saber que o conceito de direito deve agora fundamentar-se não mais a partir do
sujeito que sabe e quer isoladamente, saber que esse conceito tem essa disposição
intersubjetiva, está submetido, contudo, a uma condição histórica: a de que aquelas normas ditadas por uma longa tradição — indiferentemente se pela ―natureza‖ ou por ―Deus‖ —
perderam sua validade. O rompimento dessa fundamentação tradicional da norma
38 Coleção Filosofia - 176
constitui-se na experiência fundamental da filosofia do direito do início da modernidade. A
partir disso, ela adquire sua consciência do problema e sua questão fundamental. Uma má
compreensão das leis jurídicas e morais enquanto mandamentos divinos encobre sua
origem na ordem das vontades livres. Aguçadamente poder-se-ia formular: somente a
deposição histórica do sujeito divino como legislador, como princípio de moral e direito,
libera a visão para identificar a estrutura intersubjetiva do direito.
O novo conceito de direito como uma ordem da liberdade, estruturada
intersubjetivamente, constitui a base da filosofia do direito de Kant. Porém, ele ainda se encontra parcialmente em luta contra um princípio abstratamente subjetivo. Esse pode
ser muito nitidamente percebido na fundamentação transcendental kantiana da
propriedade14
. Embora Kant antecipe o conceito de direito — concebido
intersubjetivamente —, sua doutrina sobre a propriedade suscita de início a impressão de
que se necessitaria, para a fundamentação da propriedade, somente da vontade daquele,
que, por primeiro, se apodera de um objeto, e que faz valer a sua pretensão de posse
mediante sinais externos. Por um lado, Kant enfatiza, de modo muito insistente, que a
aquisição original tem que ser pensada como conseqüência de um arbítrio unilateral. Isso
a diferencia também do contrato, que é uma relação bilateral. Por outro lado, contudo,
Kant deixa igualmente claro que essa aquisição originária so deve ser considerada como
uma relação jurídica, quando ela for pensada como ocorrendo sob a vontade unificada de
todos titulares de direito, portanto dentro dos lirnites de uma ordem da liberdade
intersubjetivamente estruturada.
Kant situou esse conceito de direito, um tanto abruptamente, no início de sua
Doutrina do Direito, destacando a evidência imediata desse princípio para a razão. Um ano
antes, porém, Johann Gottlieb Fichte já escolhera um caminho sistematicamente mais
dispendioso, porém igualmente satisfatório: na estruturação sistemática de seu Fundamento do Direito Natural, ele elaborou essa idéia da constituição intersubjetiva do direito, de
modo clássico, e de tal forma que ela não cairia em um regresso infinito, como se deve
dizer em relação a alguns novos princípios. O eu não pode pôr-se como livre, não pode ser
responsável por uma atividade livre, sem que outro eu seja igualmente responsabilizado; e
a ordem jurídica é exatamente a ordem dessa atividade livre unificada do eu15
.
Fichte desenvolve essa idéia na Introdução de sua Doutrina do Direito, em
vários passos, que eu, aqui, poderei apenas parafrasear. Ele parte da idéia de que um ser
racional finito não pode pôr a si mesmo, sem se atribuir uma atividade livre. Na medida
em que se atribui essa atividade, ele determina um mundo sensível fora de si mesmo.
Para a passagem a um conceito intersubjetivo do direito, é decisivo o próximo passo: o
ser racional finito não pode atribuir a si mesmo uma atividade livre no mundo sensível,
14
KANT: Die Metaphysik der Sitten. 1. Parte: Metaphysishe Anfangsgründe der Rechtslehre. In: Kant:
Gesammelte Schriften. vol. 6. Berlim, 1907. Nova edição: 1914. Cf. § 10 e § 14 (Erwerbung als Folge
einseitiger Willkür) com § 15 (der Vernunftbegriff des Eigentums setzt die Idee eines a priori vereinigten
Willens voraus) 15
Johann Gottlieb FICHTE: Grundlage des Naturrechts nach Principien der, Wissenschaftslehre. Jena e
Leipzig, 1796, 1ª Parte: Deduktion des Begriffs vorn Rechte. 2ª Parte: Deduktion der Anwendbarkeit des
Rechtsbegriffs. In: Fichte: Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Ed. de Reinhard
Lauth e Hans Jacob. Parte 1, vol. 3. Stuttgart-Bad Cannstatt, 1966, p. 329-388.
Coleção Filosofia – 176 39
sem que também a atribua a outros, portanto sem igualmente considerar, além de si,
outros seres racionais finitos. Um caso isolado de subjetividade e de todo impensável.
Daí surge, contudo, a seguinte conseqüência: o ser racional finito ainda não pode
considerar outros seres racionais finitos além de si, sem se pôr como estando em uma
determinada relação com os mesmos, a qual se chama relação de direito. O direito
representa, pois, uma relação reciproca entre seres racionais livres. Como tal ser
racional, tenho que reconhecer outros tais seres além de mim, ou seja, tenho que limitar
minha liberdade, através do conceito de liberdade dos outros. Hegel, finalmente, repudia, em seus Princípios da Filosofia do Direito, o modo
como Kant e Fichte pensam o conceito de liberdade, recorrendo à idéia de restrição
recíproca. Obviamente não existe dissenso entre eles em relação à justificacão jurídica
intersubjetiva. Pois a vontade livre que, para Hegel, constitui a base do direito também
não é uma vontade isolada, mas uma vontade mediada intersubjetivamente. Ela é sim a
vontade que quer a liberdade, e essa é também a liberdade do outro. Poder-se-ia mesmo
dizer que Hegel pensa a constituição intersubjetiva da esfera do direito ainda mais
profundamente do que quando ele a ancora no interior do próprio conceito de liberdade,
fazendo surgir a verdadeira liberdade, não como resultado de uma lirnitação recíproca da
liberdade natural, ou seja, da liberdade ainda não-mediada intersubjetivamente.
4. Espírito
Até agora, tentei mostrar que tanto a mais recente, quanto a mais antiga
crítica a filosofia clássica alemã, que a considera como uma mera filosofia da
subjetividade, não faz justiça ao conteúdo da mesma, na medida em que ignora a
significação do conceito de intersubjetividade para a filosofia prática e especialmente para a filosofia do direito. É verdade que a filosofia clássica alemã não introduz esse
conceito na filosofia teórica. Isso poderia ser uma lacuna, mas, nesse ponto, poderia
expressar-se também uma melhor compreensão.
Antes de corneçar a falar de um outro aspecto dessa filosofia, eu gostaria ainda
de destacar alguns momentos que considero imporantes — mesrno tendo consciência de
hoje muitos verem esse assunto de forma diversa da minha. Eu gostaria assim de intervir
a favor do conceito — hoje tão criticado — de sujeito.
a) Inicialmente, gostaria aqui de mencionar a ―irretrocedibilidade do eu‖. Trata-
se de um esforço frustrado querer recuar para trás da autocerteza do eu e, sobretudo,
querer constituí-la através de outras instâncias — sejam essas de origem celeste ou de
outra procedência terrena. Cada tu, enquanto tu, também está sempre relacionado a um
eu, sendo assim, não apenas gramaticalmente, a segunda pessoa. E esse ―outro‖
pressupõe aquele para o qual ele é ―outro‖ e mediante o qual ele se torna, antes de tudo,
―outro‖. Apesar de todas as inúmeras tentativas — dispendiosas e também bem-
intencionadas —, essa relação não é reversível.
b) Em segundo lugar, com essa certeza de si, é dada também a certeza do
mundo exterior e, concomitantemente, a certeza do outro; dá-se a certeza do outro, porque o eu não se sabe apenas como um eu singular, mas também como um eu
universal, e atribui aos outros eus exatamente a mesma atividade livre, que atribui a si
40 Coleção Filosofia - 176
mesmo. Contudo, ele atribui essa atividade ao outro, assim como ele a atribui a si
mesmo; ele não a atribui a si, porque ele a atribui ao outro. Não haveria nenhum motivo
para a atribuir ao outro, se ele não a atribuísse a si mesmo.
Essas duas teses devem ser salvaguardadas contra o recurso de Jacobi a um tu
supostamente divino e primordial, assim como diante do recurso de Feuerbach a uma
necessidade elementar de um outro ser humano efetivo — não como se não existisse tal
necessidade, mas sim porque essa necessidade é apenas secundária diante da certeza
originária de si e da constituição de mundo do eu. c) A esfera jurídica, ao contrário, é estruturada de modo completamente diferente
da do conhecimento teórico. O conceito de intersubjetividade tem nela seu lugar primário,
Pelo menos depois do desenvolvimento da idéia de direito, desde o início da modernidade
até ao iluminismo, não podemos mais pensá-lo senão como intersubjetivo. Um direito que
fosse posto apenas através de um sujeito, não seria, por isso mesmo, para nós, mais
nenhum direito, mas apenas um mandamento. Em que medida o conceito de
intersubjetividade determina também a esfera da moral, isto depende do respectivo
conceito de moral. A partir de sua fundamentação, a moral cristã é tão pouco intersubjetiva
quanto a moral kantiana. Contudo, conhecidamente, também existem formas de
fundamentação da moral que procedem intersubjetivamente. A crítica moderna ao
esquecimento da intersubjetividade procede com maior plausibilidade, ao se voltar contra a
ética de Kant, que, apesar de sua referenda global à totalidade dos seres racionais e apesar
de sua idéia de um ―reino dos fins‖, não é construída de modo intersubjetivo. — Por
precaução, acrescento, ainda, que essa avaliação da ética de Kant, como não-intersubjetiva,
não é, porém, pensada aqui como um juízo sobre a consistência da crítica que lhe é feita.
Conseqüentemente, seria tão pouco proveitoso incluir a intersubjetividade na
esfera da filosofia teórica, quanto querer conceituar a esfera do direito através dos meios de uma filosofia da subjetividade. Aliás, com essa adição das áreas submetidas,
respectivamente, aos princípios de ―subjetividade‖ ou ―intersubjetividade‖, ainda näo se
falou de uma importante descober-ta feita exatamente pela filosofia clássica alemã.
Existe, sim, uma série de conceitos que são indiferentes a uma separação estrita
entre filosofia prática e filosofia teórica — como, por exemplo, os conceitos de razão ou
de linguagem. Depois do que foi dito, não é de admirar-se que esses conceitos sejam, do
mesmo modo, indiferentes a uma distinção estrita entre subjetividade e
intersubjetividade. Não se pode limitar a razão a uma área teórica, nem entendé-la como
uma função do sujeito isolado — assim como não se poderia concebê-la sem tomar em
consideraço esse sujeito. Jacobi expressou muito enfaticamente esse duplo caráter com
sua provocante questão: ―É o homem que tem razão, ou é a razão que tem o homem?‖16
Pois ele bem sabia que, com isso, não está formulada nenhuma alternativa decidível
entre uma razão substantiva e uma razão adjetiva — apesar da contradição, na qual se
parece incorrer, quando se afirma serem ambas verdadeiras.
O mesmo vale para a linguagem. Ela abrange subjetividade e intersubjetividade.
Alguém poderia ser tentado a afirmar tal indiferença entre subjetividade e
intersubjetividade também na esfera do direito. Pois, para compreender o direito,
16
JACOBI: Werke, V. 1.259.
Coleção Filosofia – 176 41
também não se pode abstrair nem da subjetividade, nem da intersubjetividade. Por outro
lado, mostra-se imediatamente a diferenca entre as esferas do direito e da linguagem. A
esfera do direito tem um caráter marcadamente intersubjetivo, na medida em que o
direito é constituído exatamente através da relação reciproca das vontades. Entretanto, é
sabidamente controverso se o mesmo valeria para uma instituição como o Estado.
Construções contratuais o colocam na esfera da intersubjetividade; por outro lado, suas
construções comunitárias o elevam acima dessa esfera. Também a linguagem subjaz a
tais atos constitucionais intersubjetivos. Falamos uma língua, pensamos em uma língua, mas ela não e o produto de nossa vontade, assim como o direito o é. Por isso, a
linguagem não será avaliada corretamente, enquanto se falar apenas de sua estrutura
intersubjetiva. Mesmo que ela seja falada por sujeitos singulares, servindo a respectiva
compreensão desses sujeitos, enquanto uma efetiva realidade espiritual, ela pressupõe
processos intersubjetivos de constituição. A primeira filosofia da linguagem do século
XVIII procurou pensar essa questão sob o título de origem divina da linguagem. Isso é
segurarnente um tanto quanto exagerado, porém ressoa aqui a consciência legítima da
origem da linguagem a ser compreendida não apenas intersubjetivamente.
Ao se falar de uma ―efetiva realidade espiritual‖, aparece uma última expressão
para se tematizar a questão da relação da filosofia clássica alemã com o problema ela
subjetividade e da intersubjetividade: sua importante contribuição consiste, a meu ver, na
descoberta do amplo domínio do espírito como uma realidade efetiva, que inclui tanto
momentos subjetivos quanto momentos intersubjetivos, embora, no fundo, esteja além da
contraposição de subjetividade e intersubjetividade, não podendo, pois, ser concebido
através dessa terminologia. Ao lado da linguagem, esse domínio compreende, também, a
arte, a religião e a filosofia — portanto, aquelas esferas que Hegel chama de ―Espírito
absoluto‖: uma efetiva realidade espiritual que não apresenta indícios nem de estrutura subjetiva, nem especificamente de estrutura intersubjetiva. Ela é sustentada pelos sujeitos
singulares, mas estende-se para além deles e ―tem‖ esses sujeitos singulares tanto quanto
esses a têm. E toda tentativa de aqui querer — com uma alegria transbordante da
descoberta — atuar e argumentar, usando a categoria de ―intersubjetividade‖, misturaria a
estrutura específica dessa realidade efetiva com a da esfera do direito, regredindo, assim, a
um momento anterior ao da abordagem da filosofia clássica alemã.
Inicialmente, tentei justificar a caracterização da filosofia clássica alemã como
uma filosofia da subjetividade. Na medida em que ela é filosofia teórica e apresenta a
possibilidade do conhecimento, ou analisa o conhecimento, ela é filosofia da subjetividade
— e o é com razão. A crítica clássica ao conceito de subjetividade não tem consciência
dessa limitação metódica e considera, por isso, erroneamente, que deve complementar o
princípio teórico da subjetividade, seja através da ênfase na necessidade do tu — no
sentido do tu divino — para o eu, seja, contrariamente a isso, através da tentativa de
entender este tu divino como a mera projeção de um tu humano, e compreender esse tu
humano como o tu propriamente exigido, acreditando estar contribuindo para a
fundamentação do conhecimento teórico. Entretanto, a formação das estruturas da
intersubjetividade se realiza, na filosofia clássica alemã, primariamente na esfera do direito, e ela começa, historicamente, no momento em que o legislador divino único é
abandonado, e a ordem jurídica é concebida como uma ordem interpessoal da liberdade.
42 Coleção Filosofia - 176
Não menos importante que essa descoberta do direito como esfera da intersubjetividade e,
contudo, a descoberta da esfera do espírito como uma realidade efetiva indiferente diante
da diferença entre subjetividade e intersubjetividade, e situada acima dessa oposição.
Traducäo de Profa. Dra. Marcia Gonçalves (UERJ)
Coleção Filosofia – 176 43
ESPÍRITO E HISTÓRIA
Antes de Hegel, ninguém fez valer tão enfaticamente que o ―e‖, no titulo de
minha conferência ―Espírito e história‖, não relaciona entre si, a posteriori, dois objetos
diferentes. Quero referirme a essa concepção de Hegel. Considero que a conexão de
espírito e história não é menos válida hoje do que na época de Hegel, e que hoje não é
menos importante do que em seu tempo elevá-la ao nível da consciência. Mas,
evidentemente, hoje isso tem que acontecer sob condições distintas das vigentes no
tempo de Hegel. Por isso, quero aproximar-me da tese aqui já antecipada, fazendo um
pequeno desvio e quero pedir-lhes que me acompanhem nesse desvio — ainda que, a
princípio, ele pareça afastar-nos de Hegel.
1. Filosofia da história material e formal
a) Atualmente a filosofia da história encontra-se numa situação ruim. A redução
do cânon das matérias, realizada pela filosofia do século XX nela mesma, não afetou tão
fortemente a nenhuma outra disciplina específica como a filosofia da história. No limiar
do século XXI, pode ilustrar-se isso mediante um olhar retrospectivo ao Festschrift — inspirado no neokantismo — em homenagem a Kuno Fischer, intitulado A filosofia no
começo do século XX1 e em particular ao artigo de Heinrich Rickert sobre a filosofia da
história. Esse volume ocupa-se prioritariamente daquelas áreas da filosofia que se
formaram no final do Iluminismo, no marco da ampla reformulação do cânon recebido
da filosofia canonizada tradicional. Por razões que, em parte, se devem ao
desenvolvimento das ciências e, em parte, aos destinos políticos do século XX, várias
das disciplinas tratadas nesse volume só designadas hoje depreciativamente como
―filosofias de genitivo‖ e, num primeiro momento, foram empurradas para a margem da
filosofia, e, posteriormente, para além da margem, sendo, em grande parte, esquecidas
nas Faculdades de Filosofia — menciono aqui a filosofia da religião e a filosofia do
direito. Somente a filosofia da arte pôde resistir a esse destino.
À filosofia da história, no entanto, não foi possível nem a continuidade de sua
existência nem uma morte suave: ela foi muito dolorosamente triturada entre a pretensão
da teologia — exposta de maneiras muito diversas mas sempre altissonantes — de ser a
última instância fundamentadora da filosofia da história, e uma crítica ao assim chamado
―historicismo‖ em suas formas antigas e atuais, crítica motivada politicamente e também
bem-intencionada, mas que, cientificarnente, não era digna de discussão. Pode ser que
também outras posições críticas tenham participado dessa operação de destruição, como, por exemplo, as restrições epistemológicas que puseram sob suspeita de serem
1 Die Philosophie im Beginn des zwanzigslen .Jahrhunderts. Festschrift em homenagem a Kuno Fischer, organizado
por Wilhelm Windelband. Heidelberg 1907 (2. ed), p. 321-422: Heinrich Rickert: ―Filosofia da história‖.
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desprovidas de sentido, não só as proposições da filosofia da história, mas também as
proposições em geral referidas à história.
Parece, portanto, não ser agora o tempo propício para defender a renovação da
colocação de questões de filosofia da história. Mas frequentemente o extempotâneo é um
reflexo invertido do que está na hora de ser feito e ele poderia, sim, ser novamente
adequado ao nosso tempo — na forma de tal inversão. Evidenternente pode ocorrer que a
suspeita de extemporaneidade se reforce ainda mais, ao longo de minhas considerações.
Pois minha defesa de uma renovação da filosofia da história pode, a propósito, parecer demasiado tradicional — tão tradicional que, para dizê-lo com as palavras de Jacob
Burkhardt, alguém poderia crer estar vendo novamente aparecer centauros na beira do
floresta, isto é, aqueles seres da fábula que ainda conhecernos, no máximo, por ouvir dizer
e de cuja extinção se estaria seguro, mesmo que nunca tivessem existido.
b) Entretanto, a lamentação expressa aqui, por causa do destino da filosofia da
história, parece ser só em parte sincera e adequada — a saber, só no que concerne à
assim chamada ―filosofia material da história‖, cujo fim, porém, poderia estar
anunciando o feliz começo de uma nova época — a transformação da filosofia material
da história numa filosofia formal da história, ou, dito de outra maneira, numa lógica da
história, no sentido de uma ―lógica da ciência histórica‖, ou numa ―lógica da pesquisa
histórica‖, ou também numa ―teoria da história‖ (Historik). Naturalmente sua existência
fática e também a justificação de sua existência podem ser consideradas como
inquestionáveis, por parte da filosofia (salvo exceções extremas). Ela pode legitimar-se
de três modos: 1) mediante a referenda ao factum da ciência histórica, sob especial
consideração da permanente crise moderna, no que respeita a sua autocompreensão; 2)
através da proximidade ou inclusive subordinação de tal filosofia da história formal ou
analítica a uma disciplina a altura dos tempos, como, por exemplo, a teoria da ciência; 3) por sua parcial intersecção com a filosofia analítica da história, considerada não
carregada metafisicamente e, portanto, igualmente adequada ao seu tempo.
De fato, o objeto de tal filosofia analítica da história parece-me ser, em parte,
idêntico com o objeto de uma teoria da história, na medida em que se entende a si
mesma apenas como lógica da pesquisa ciêntifica e, por razões metodológicas, dispensa,
ao menos temporariamente, uma consideração retrospectiva de sua propria história. Por
outro lado, a filosofia analítica da história vai, nesse ponto, mais além da teoria da
história, ao não investigar apenas a relação com a lógica da ciência histórica, mas
também a linguagem não-científica, na qual falamos acerca da história. Essa
coincidência parcial de filosofia analítica da história e ciência da história decerto
preencheria apenas a primeira parte da filosofia formal da história projetada por Rickert;
as outras duas partes — a saber, a ciência dos princípios da história (ciência dos valores)
e a teoria da história universal (como relação da história com os valores) — ficariam de
fora, sem grandes lamentações. Nesse sentido, a defesa de uma renovada sua existência
fática, decerto não seria algo supérfluo, mas algo a ser corrigido.
c) Assim, há que se perguntar, em primeiro lugar, se tal filosofia formal da
história pode efetivamente exercer a função de sucessora da anterior — sobretudo porque hoje já não poderia continuar sendo inserida numa filosofia neokantiana dos
valores, para obter pontos de vista materials a partir dela. Deve-se perguntar se tal
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filosofia formal da história satisfaria nosso ―interesse pela história‖ ou se somente o
despertaria e o deixaria antes insatisfeito. Pois então ela só se constituiria no
definhamento de um definhamento e, como tal, estaria em melhores condições nos
departamentos de história que nos de filosofia.
Mas ainda ha que se perguntar se é, em geral, possível conceber uma filosofia
da história como uma disciplina meramente formal. Pois toda filosofia formal da história
pressupõe um conceito de história — se é que ainda está falando de alguma coisa e não
de nada. Uma filosofia da história sem um conceito material de história seria cornparável a uma filosofia da religião que não soubesse dizer o que é religião, ou comparável ainda
a uma estética desprovida de um conceito material de arte. Por certo, esse conceito
material de história poderia ser ditado irreflexivamente pela ciência histórica ou, em
úitimo caso, por um difuso uso cotidiano da palavra ―história‖ — com isso, porém,
encaminhar-se-ia para a dependência do que foi rnencionado.
2. Defesa de uma filosolia material da história
a) Por isso, gostaria de advogar uma renovação de uma filosofia material da
história, e, primeiramente, apresentar algumas considerações acerca do conceito de uma
filosofia material da história. A questão fundamental que ela coboca não é, como sói
ouvir-se, a questão do ―sentido‖ ou do ―objetivo‖ da história. Com certeza, encontram-se
tais questões ou tematizações em esboços anteriores de filosofia cela história, mas, em
nenhum caso, com a presença dominante e penetrante que de hábito atribui-se a essa
filosofia da história, sobretudo por parte daqueles que, exatarnente por causa de tais
questões, a descartam. Ao invés disso, a pergunta sistematicamente prioritária e, a meu
juízo, imperiosa é a seguinte: por que grandes âmbitos de nossa realidade efetiva estão estruturados históricamente e o que isso, de fato, significa — ou por que há história e
não antes nenhuma história.
A filosofia da história — e máxime a atual — certamente tem dificuldade de
dar uma resposta a isso. Não obstante, parece-me necessário destacar essa questão ao
menos como questão e não simplesmente aceitar a ―história‖ como uma obviedade ou
como algo fático — caindo-se, assim, num dogmatismo histórico. Talvez seja fatal
colocar questões, das quais se sabe, quase a priori, que não podem ser suficientemente
respondidas. Parecer-me-ia, no entanto, ainda mais fatal (Se se pode usar aqui o grau
comparativo), se tal questionamento já não fosse mais permitido, ao ser desqualificado
como antiquado por causa de um pensar específico da época e, particularmente, devido a
enfoques epistemológicos especiais. Um exemplo impressionante das consequências que
acarreta tal amordaçamento e interdição intelectual o constitui a própria luta de
libertação de Arthur Danto — que ocupa metade de sua Filosofía analítica da história
— contra uma teoria da ciência que, inclusive, descarta como obsoletas proposições
basilares acerca da história. Quero, de bom grado, prosseguir essa luta de libertação,
ainda que, com certeza, contra a intenção de Danto. Pois não me parece nem necessário
nem sequer possível poupar-se as questões aqui lançadas. b) Que significa, pois, falar de ―história‖ — na medida em que com ela quer-se
dizer algo mais do que nossa narração de algo, cujo conteúdo não pode ser determinado
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mais precisarnente? O giro decisivo na compreensão moderna da história consiste no
penoso deslocamento semântico que se deu no conceito da história: da ―história‖ como
relato (subjetivo) de um acontecer a designação dessa conexão (objetiva) do acontecer
mesmo. Mas, com isso, é, ao mesmo tempo, necessário delimitar essa conexão do
acontecer, chamada história, como um âmbito objetivo — justamente porque a filosofia da
história não quer e no pode contentar-se com a constatação mais banal que basal, de “that
history tells stories”2. Como um indício da exigência de tal determinação objetiva, permito
inclusive valer-me da assim chamada ―caracterização minimalista‖ da história de Arthur Danto: a tarefa da história seria fazer constatações verdadeiras de acontecimentos do
próprio passado ou oferecer a descrição deles3. Certamente essa caracterização é — sit
venia verbo — demasiado minimalista; ela clama, por assim dizer, por uma ampliação.
Pois, aqui, não basta apenas refletir somente sobre o sentido das expressões ―constatações
de acontecimentos‖ ou ―descrição‖. O fundamental é a pergunta material acerca de que
sejam propriamente ―acontecimentos do próprio passado‖. Poder-seia, porém, eliminar
também as diferenças entre diversos âmbitos de objetos — por exemplo, acontecimentos
naturais e ações — e dissolver esses âmbitos num grande conexto narrativo. Mas, então,
terse-ia dissolvido toda determinação do pensamento.
c) Uma delimitação do âmbito objetivo da ―história‖ — por muito geral que
seja — parece-me necessária num duplo sentido. Nem sequer uma filosofia formal da
história pode renunciar a uma delimitação de seu objeto — especialmente quando já não
se entende apenas como ―teoria da história‖, no sentido de uma lógica da ciência da
história, mas cormo filosofia da história. O que a teoria da história — enquanto teoria da
ciência histórica — é permitido, e inclusive exigido, constitui para uma filosofia da
história um deficit: uma renúncia a delimitação de seu âmbito objetivo tornaria a
filosofia da história dependente do conceito de história da ciência histórica. Como filosofia da história, ela não pode deixar que seu objeto ―história‖ seja ditado pela
ciência histórica. Não o pode, por razões metodológicas. porque então perderia, por
própria culpa, seu caráter de filosofia da história; e não o pode. por razões materiais, se é
que nao quer fazer-se culpável. por um lado, da amputação do conceito de história e, por
outro, da dogmatizção das partes não-amputadas.
Orientar-se pela ciência histórica não é, para a filosofia da história, nem legítimo
nem adequado a amplitude com que a filosofia da história deve colocar o tema ―história‖.
Pois a ciência histórica desconsidera, com todo direito, uma grande parte daqueles
fenômenos aos quais igualmente atribuímos — e não sem sentido — ―história‖, e que
reconhecidamente não constituem um objeto da ciência histórica: desde o direito, passando
pela arte, a religião e a filosofia, até aos conceitos, idéias e problemas. Mesmo que os
fenômenos mencionados ocorrarn, em parte, na ciência histórica, as histórias parciais, que
correspondem a esses fenômenos, seguramente não tem seu lugar primariamente na ciência
histórica — se e que não se quer ampliar seu conceito para além de todas as delimitações
tradicionais e sacrificar, com isso, toda determinidade do conceito de história. Mas a
2 Arthur C. Danto: Analytische Philosophie der Geschichte. Primeira edição em inglês 1965. Versão alemã,
Frankfurt am Main. 1974. passim. 3 Id.. ibid.. p. 49.
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filosofia da histdria — corno a pergunta por aquilo que propriamente constitui o
especificamente histórico — tern que considerar tambdrn o caráter histórico ou — recorro
à feliz expressão introduzida por Hegel — a ―historicidade‖ de todos esses fenôrnenos.
Portanto, as reflexões acerca da delimitação desse âmbito da filosofia da história tem como
conseqüência uma ampliação em relação à ciência histórica: a história tematizada pela
ciência histórica constitui apenas um de seus âmbitos de investigação.
d) Essa ampliação concernente ao âmbito do objeto da filosofia da história pode
parecer ilimitada, e o seria efetivamente, se falássemos sempre de ―história‖, cada vez que se dissesse algo sobre processos que se prolongam no tempo. Desse modo, todos Os
processos naturais seriam também história — desde as fases minuciosamente
reconstruídas da explosão original, passando pelo recente eclipse solar, até ao devir
cíclico e ao desaparecimento dos organismos. De modo algum contesto que seja possível
referir-se a toda a evolução como ―história‖ — como ―história natural‖, apesar de que
essa expressão deve seu uso habitual apenas ao fato de que, sob o domínio do antigo
conceito de história, ela designava outra coisa, a saber, o ―informe acerca da natureza‖.
No entanto, não pode passar despercebida a diferença existente, não apenas entre os
processos cíclicos naturais, mas também entre a evolução, por um lado, e a história no
âmbito do espiritual, por outro. Por isso, ainda continua não me parecendo possível — e
aqui se trata de uma impossibilidade de princípio — com vistas a uma delimitação
conceitual exata do âmbito temático da filosofia da história, renunciar a contraposição
entre ―natureza‖ e ―espírito‖ e reservar ―história‖ para aqueles processos que se situam
no ambito do espiritual. Pode-se querer delimitar o conceito de ―história‖ ainda mais do
que propus antes em relação a ciência histórica; mas ainda incluir também a natureza
significaria dissolver o sentido que tem falar de história e de filosofia da história.
3. O conceito de espírito
a) Mas se a história é delimitada dessa forma em relação à natureza, então
coloca-se a pergunta pelo que tem de comum aqueles fenômenos, aos quais, com esse
conceito, se atribui ―historicidade‖. Não consigo ser persuadido — apesar de todas as
intervenções críticas e as objeções irônicas — de que exista conceito mais adequado para
isso do que o atualmente vilipendiado conceito de espírito. Introduzir, em seu lugar, o
conceito de liberdade não constitui uma verdadeira alternativa, pois também só pode
haver liberdade lá onde há espírito. O recurso ao conceito de espírito, no máximo,
apresentaria problemas, se fosse concebido de um modo demasiado estreito, reduzindo-o
a intencionalidade de sujeitos que agem e compreendem, mas não quando se pensa a
espiritualidade como a qualidade do conjunto do mundo produzido pela práxis humana
— incluído o mundo social e a técnica — e que e impensável sem ela. Um mundo sem
espiritualidade seria um mundo sem história, mesmo que nele houvesse mudanças
naturais e inclusive evolução de espécies. Por isso, avalio essa irrenunciabilidade como
um indício suficiente de uma estreita conexão entre espírito e história.
Mas se espiritualidade é o pressuposto irrenunciável de to- dos os fenômenos aos quais atribuímos história e se não é possível encontrar história para além de tal
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espiritualidade, então, inversamente, deveríamos pensar a historicidade como uma
forma, mais ainda, como a forma específica de expressão da espiritualidade.
b) Já destaquei, no começo, ter sido Hegel quem, pela primeira vez, expressou,
com grande determinidade, essa unidade de espírito e história. Mas desde que esse
problema entrou, através dele, na consciência moderna, já não é mais um problema
apenas de sua filosofia, mas da filosofia da história em geral. A história qua história
universal em sentido objetivista existe, como se sabe, ha alguns milênios — mas apenas
na passagem do Iluminismo a filosofia clássica alemã alcançou a consciência de que razão qua espírito e história se encontram nessa estreita relação — e nenhum dos
pensadores de então expressou essa conexão com uma influência tão duradoura como
Hegel. O conceito de espírito e o conceito de história formam em sua filosofia uma
unidade indissolúvel. Inclusive pensadores posteriores que corroborarão esse vínculo —
como, por exernplo, no século XX, Nicolai Hartmann, com os conceitos do Espírito
Objetivo e do espirito objetivado4 — fizeram-no na esteira de Hegel. A filosofia de
Hegel é filosofia da história, porque é filosofia do espírito. Essa co-pertença pode ser
comprovada também sob o ponto de vista histórico-evolutivo: Hegel elabora o conceito
de espírito — e, em conexão com esse, o conceito de história — no final do período de
Jena, expondo ambos, pela primeira vez, publicamente, em sua Fenomenologia do
espírito. Nesses anos, reconhece que a história não é algo que teria uma mera afinidade
com o ―espírito‖, mas reconhece que a história é o modo de ser essencial do espírito, o
modo no qual o espírito chega à sua autoconsciência.
Também mais tarde, Hegel expressou essa conexão com palavras muito
incisivas, nalgumas frases de um fragmento pouco conhecido que quero aqui citar
brevemente: ―De onde vem [o espírito] — ele procede da natureza; para onde vai — para
a sua liberdade. O que ele é é justamente esse movimento mesmo de libertar-se da natureza. Essa é sua própria substância, tanto assim que não se deve falar dele como de
um sujeito estável, que fizesse e efetivasse isto ou aquilo, como se tal atividade fosse
uma contingência, uma espécie de estado, fora do qual ele existiria; sua atividade é, sim,
sua substancialidade, a atuosidade é seu ser‖5.
c) Mas, apesar de reconhecer essa correspondência essencial entre espírito e
história, a explicacão de Hegel ficou aquém do potencial conceitual presente em sua
filosofia no tocante a isso. Não desenvolveu a relação essencial entre espírito e história,
descoberta por ele mesmo, de um modo que tivesse sido adequado a forma e as
exigências de seu sistema. Na verdade, porém, o modo em que a expressou é mais
apropriado para voltar a encobrir sua descoberta.
A concepção da constituição histórica do espirito foi elaborada por Hegel em
seus anos de Jena, nas disciplinas parciais do espírito absoluto — a arte, a religião e a
filosofia. A história, no sentido de história universal, ainda não se lhe apresentava,
naquela época, como objeto de uma disciplina filosófica. Ao abordar essas áreas em suas
preleções berlinenses, Hegel retorna sempre à constituição histórica do espírito absoluto,
4 Nicolai Hertmann: Das Problem des geistigen Seins. Untersuchungen zur Grundlegung der Geschichtsphilosophie
und der Geisteswissenschaften. Primeira edição: 1933, terceira edição, sem modificações. Berlim. 1962. 5 ―Fragment zu Philosophie des Geistes‖. In: Hegel, Gesammelte Werke, vol. 15, p. 249.
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mas sem elaborar especificamente o fundamento da constituição histórica dessas figuras
do espírito absoluto. Hegel introduz mais incidentalmente o fato de que elas têm história.
Em contrapartida, o tema ―história‖ é assumido em seu sistema pelas Preleções sobre a
filosofia da história universal. Mas a importância de sua concepcão da historicidade do
espírito vai muito além daquilo que deve ser tratado em uma filosofia da história
universal. Hegel encobre isso, ao operar com um duplo conceito da história universal:
―história universal‖ é, por um lado, a história dos Estados — e só esse sentido tem seu
lugar sistemático ao final da Filosofia do direito. Por outro lado, a ―história universal‖ estão pensada como totalidade que também abarca, além da história dos Estados, as
histórias parciais do espírito absoluto. So neste (último sentido a história universal
constitui-se no objeto completo da filosofia da história. O conceito de história tem que
ser tomado em um sentido muito mais profundo do que o que é possível numa filosofia
da história universal qua história dos Estados. Essa constitui apenas um recorte da
temática da filosofia da história — e nm sequer o mais importante. Partindo-se de uma
história universal como história dos Estados pode-se, quando muito, visar a conexão
entre espírito e história, mas não se pode torná-la plausível.
Uma filosofia da história no sentido pleno da palavra — não apenas como
filosofia da história universal qua história dos Estados — tem que considerar também a
historicidade de todos aqueles fenômenos que permanecem excluídos do conceito de
história radicado no círculo da ciência histórica. A história universal, no sentido de
história dos Estados, poderia inclusive oferecer o campo — o menos fecundo — para o
conhecimento do que seja história. Hegel cometeu um erro, ao introduzir em seu sistema
o conceito de históna apenas através do conceito de história universal e ao seguir
utilizando-o, então, para as três formas do espírito absoluto, em vez de localizá-lo e
esclarecê-lo no contexto do conceito de espirito. Precisamente se se considera, com Hegel, a ―historicidade‖ como a forma
específica de explicitação do espírito em geral, então o lugar sistemático do conceito de
historicidade deve estar nos paragrafos fundamentais para a filosofia do espírito (§§ 381-
384), mas justamente aí Hegel nada fala sobre de. Naturalmente essa falta não pode ser
suprida posteriormente. Mas podem fazer-se ao menos algumas reflexões acerca de qual
teriam sido a tarefa e o conteúdo de tal fundamentação.
d) A história não é algo imediato que se pudesse simplesmente acessar, a que se
pudesse remeter como algo disponível. E tampouco é algo que surja da relação dos Estados
entre si. Os Estados não teriam história alguma, se não fossem figuras espirituais. Pode ser
que atualmente se julgue que a tarefa de uma filosofia da história se esgota na consideração
do uso que se faz do vocabulário referido a ―história‖ e na consideração da forma como se
fazem enunciados sobre o passado e o futuro. No entanto, pode considerar-se uma
vantagem de uma filosofia metafísica do lipo hegeliano o fato de que ela constitui o marco
que permite perguntar pelo fundamento da história — e que se pode quase reclamar isso
dela, à medida que ela passa por alto tais questões. Essa exigência não significa de nenhum
modo que se esteja apresentando a Hegel um tema estranho. Ela apenas procura libertar a
descoberta de Hegel do entulho com o qual ele mesmo a encobre. e) A tarefa de uma fundamentação no âmbito da filosofia do espírito consiste
em ancorar o conceito de historicidade no conceito de espírito. Essa ancoragem teria que
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estar disposta de tal forma, que pudesse fazer plausível o movimento histórico dentro do
Espírito Objetivo — isto é, no âmbito do direito, das instituições e das constituições — e
no campo do espírito absoluto como fios individuais do desdobramento único do
espírito: teria que tornar possível apreender a unidade da história do espírito.
Poder-se-ia certamente objetar que essa exigência faz Hegel, de certo modo,
mais hegeliano do que já é. Porém, essa exigência só tem a ver com o cumprimento
explícito daquilo que, no aparato conceitual e na sistemática de Hegel, sempre esteve
implícito, mas não desenvolvido. Do contrário produzir-se-ia uma brecha demasiado grande no processo de fundamentação de sua filosofia. Pois, ao tratar da arte, da religião
e da filosofia, Hegel passa a falar, sem mediação, do desdobramento histórico desses
âmbitos — como se essas histórias tivessem que ser tomadas como meros fatos. Mas,
com isso, se sacrificaria a pretensão hegeliana de conceber a história. Pois, como poderia
a história ser o desdobramento do espirito, se o factun; da história não pudesse ser
esciarecido a partir do conceito do espírito?
Uma explicitação desse pensamento, uma fundamentação da história no âmbito
da filosofia do espírito, naturalmente teria de especificar o próprio conceito de espírito.
Teria que introduzir diferenças, por exemplo, entre o nível da intencionalidade de
individuos agentes e o nível das estruturas que são imanentes aos fenômenos espirituais,
sem que pudessem ser concebidas a partir de tal intencionalidade ou a partir de ações —
como, por exemplo, a tendência a diferenciação histórica ou a tendência a efetivar, nessa
diferenciação, a autoconsciência do espírito.
Mas que o espírito tenha essa estrutura é algo que já não precisa mais ser
fundamentado, mas apenas explicitado e exemplificado. Para explicitá-lo, há que se
remeter ao conceito de liberdade. E não se precisa mais fundamentar, uma vez que —
como já o explicitara Kant e como se deve supô-lo também em Hegel — a possibilidade da própria liberdade não precisa mais ser explicitada. Por isso, gostaria apenas de ainda
destacar duas irnplicações e submeter o exposto a uma breve prova num tema atual.
A primeira implicação diz:
Todo o espiritual deve ser pensado como histórico. Não existe nada espiritual que
não seja, ao mesmo tempo, algo histórico. Pois a história é a forma de explicitação do
espírito, uma vez que o espírito só pode ser pensado por meio da liberdade. Esse é um
outro conceito de história, diverso do de história universal, e dele Segue outro conceito de
filosofia da história: precisamente o que podemos descrever como a descoberta de Hegel,
mesmo que ele não o desenvolva de maneira sistemática com a minuciosidade necessária.
E a segunda implicação reza:
Somente o ser espiritual é ser histórico. Porque apenas algo espiritual pode ter
história; entenda-se história no sentido elaborado aqui. Toda história é história do espírito:
história do espírito em sentido preciso, não no sentido deslavado em que estamos
acostumados, desde Dilthey, a falar de história do espírito. Por isso, não atribuímos história
a outros âmbitos não-espirituais da realidade efetiva — ou, quando muito, o fazemos, na
medida em que se elevam à vida espiritual e tornam-se momentos da vida espiritual6.
6 Permito-me aqui, remeter a considerações minhas já publicadas; cf. Walter Jaeschke: Die Geschichtlichkeit
der Geschichte, In: Hegel-Jahrbuch 1995, Berlim, 1996, p. 363-373
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4. A estrutura da história
a) Segundo o que vimos, a tarefa de uma filosofia da história consiste — ainda!
— em conceber o que é a história. Não vejo que essa pergunta possa ser respondida
senão mediante uma análise da conexão entre espírito e história, pois o ser histórico é
sempre um ser espiritual. Mas isso não significa que, por exemplo, o conceito de ação
não tivesse lugar em semelhantes conexões. Ele tem, primeiramente, de ser situado no
contexto de uma filosofia do espírito e posto em conexão com seus outros momentos. Entretanto, tal filosofia material da história já não se compreenderá mais hoje
como orientada para uma ética — como ocorreu na passagem do século XIX para o XX.
Compreender-se-á hoje como lógica da história, evidentemente como uma lógica da
história, não apenas no sentido de uma lógica da investigação histórica, mas uma lógica
do objeto dessa investigação histórica e, com isso, como lógica material da história. Até
que ponto, então, se pode ainda conectar uma ética com essa lógica material da história,
essa é uma questão, para cuja resposta teniam que ser elaborados pressupostos no
interior da filosofia da histónia — e, a meu juízo, essa não é uma pergunta premente ou,
ao menos, não é uma pergunta constitutiva, na perspectiva da filosofia da história.
b) A estrutura fundamental da história é, a meu juizo, algo que só pode ser
compreendido a partir da dualidade implicada no conceito de espíriito. Sua explicação
completa tem que ser desenvolvida em três passos.
No primeiro passo, hão que se analisar os momentos da história que constituem
seu lado objetivo, incluindo as modalidades de seu curso, ainda que essa análise se vera
confrontada com a acusação de procurar revitalizar construções obsoletas ou morfologias
teleológicas de variada proveniência intelectual e coloração poilítica. Tal suspeita não
pode ser enfraquecida senão mediante a solidez dos resultados. Trata-se de determinar, antes do mais, os fatores historicamente relevantes, chegando-se à questão da relação
entre indivíduo e história (objetiva); trata-se de perguntar pela dinâ mica, a inter-relação
e a sobreposição de processos e de outros elementos desse tipo.
Esses momentos ―objetivos‖ constitutivos da história — estruturas ou
acontecimentos — já pertencem, enquanto ações ou produções espirituais, à esfera do
espírito e são impensáveis fora dela. Mas só se tornam história em sentido próprio por
meio de uma atividade de constituição realizada pelo observador, a qual — quer a
atribuamos a um sujeito transcendental quer a uma conexo narrativa — não pode ser
produzida à margem da consciência e da espiritualidade —, e digo isso, apesar de estar
consciente de que falar de sujeito, consciência e espírito é percebido hoje, em geral,
ainda apenas como uma lembrança molesta de erros há tempo descartados, visíveis tão-
só ainda fantasmagoricamente. Mas ainda que, por isso, se tenha de argumentar, nesse
ponto, mais circunspectamente, continua, em todo caso, sendo uma das tarefas
irrenunciáveis de uma filosofia da história — e, portanto, de uma filosofia material da
história —, iluminar esse duplo caráter constitutivo da história, isto é, a tensão entre
objetividade e transcendentalidade que não pode ser eliminada de seu conceito.
O terceiro passo constitutivo para a compreensão da história consiste na idéia de que o próprio sujeito — seja ele cognoscente ou apenas narrativo — é um momento da
conexão objetiva, a qual o sujeito, por meio de sua atividade, constitui como história; além
52 Coleção Filosofia - 176
disso, consiste em o próprio sujeito participar da historicidade ―objetiva‖ e em ele estar
inserido no contexto da história objetiva, em relação a qual ele se posiciona cognoscitiva
ou narrativamente. A historicidade objetiva forma aqui, por assim dizer, a ratio
cognoscendi da historicidade subjetiva, assim como, inversamente, a historicidade
subjetiva assentada na espiritualidade tem que ser determinada como ratio essendi da
história. Ter reconhecido e feito valer essa relação tripartida como característica da história
é o mérito perene do historicismo — que, a propósito, com isso, muito mais do que
admitiu, ficou preso à tradição da abordagem hegeliana. Qualquer um convencer-se-á facilmente disso, após leitura da Teoria da história, de Johann Gustav Droysen, ou das
considerações sobre a história universal, de Jacob Burckhardt. Apenas com a filosofia da
história neokantiana posterior ao historicismo rompese a conexão entre espírito e história;
por isso, ela pôde desenvolver a filosofia da história somente como lógica formal da
história e procurou compensar sua unilateralidade com a ampliação da filosofia da história
para uma ciência dos valores — a meu juízo, com pouco êxito. Pois o que é ―histórico‖ na
história — e isso podemos aprender de Hegel — é apenas aquilo que é espiritual —
justamente porque a história nada mais é do que a forma da auto-explicitação do espírito.
Tradução de Prof. Dr. Draiton G. de Souza (PLJCRS)
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