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ELEMENTOS DE ESTUDO
DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
JOSÉ MANUEL DAMIÃO DA CUNHA
ESCOLA DE DIREITO DO PORTO
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
SEMESTRE DE VERÃO
2013/2014
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Elementos de direito processual penalAno letivo: 2013/2014 – 6º Semestre
Escola de Direito do Porto – UCPDocentes: Damião da Cunha
Sandra Tavares
PARTE I
NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
CAPÍTULO I
O DIREITO PROCESSUAL PENAL
APROXIMAÇÃO A CONCEITOS FUNDAMENTAIS
I. 1 – INTRODUÇÃO
§ 1 Quem ler o Código de Processo Penal (CPP) português comprovará que ele se
encontra dividido em duas “Partes” – ou, então, em duas grandes “repartições de
matérias”.
Numa primeira Parte encontramos a chamada “estática” do processo. Aí, deparamos
com aquilo que se poderia designar por Parte Geral/Institucional, na qual se pode
encontrar a regulamentação sobre os sujeitos processuais, os denominados atos
processuais e ainda outros “institutos” importantes para o processo penal, como os
referentes à prova, às medidas de coação, etc.
Numa segunda Parte, encontramos aquilo que se poderá designar por “procedimento
criminal”, fazendo-se a exposição das diversas fases por que o procedimento pode
passar. Naturalmente que a ligação entre Parte Estática/Institucional e Parte
Procedimental/Dinâmica parece fácil de estabelecer. Como se desenvolve o
procedimento, quais os agentes que o dirigem, ou que nele intervêm, e ainda o que em
cada um destes procedimentos se procura, são questões que remetem para a Parte
Dinâmica; dar o “conteúdo” de cada um dos “procedimentos” implica retornar à Parte
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Estática. Esta aparente simplicidade é, todavia, falsa; por vezes, até o próprio CPP a
nega.Com efeito, só pelo conhecimento da tramitação do procedimento é que se pode
compreender, na integralidade, a Parte Geral (ou Parte Estática) e vice-versa.
§ 2 A apresentação, muito sintética, a que agora vamos proceder do nosso processo
penal justifica-se, sobretudo, pela nossa convicção de que uma “leitura” e interpretação
dos preceitos do nosso CPP não se podem basear apenas na lei; de facto, há um
conjunto de pré-compreensões que têm de ser conhecidas para se poder “apreender” os
diversos conteúdos legais.
Assim, a finalidade primordial desta introdução/exposição, despretensiosa e algo
“arbitrária”, é a de tentar fornecer um primeiro conhecimento, uma primeira tomada de
contacto, com alguns dos conceitos básicos do processo penal e bem assim com as
estruturas e os princípios do processo penal (português). Com efeito, tanto a
sistematização como as concretas soluções positivadas pelo legislador português não se
reduzem a uma sua decisão “voluntarista” ou “caprichosa”; são também consequência
de um conjunto de valorações que se lhe impõem “exteriormente”, umas baseadas num
raciocínio desenvolvido pela metodologia jurídica, outras, consequência de uma
experiência histórica; por fim, outras ainda consequência de decisões “constituintes”.
É, por isso, que, para se compreender um processo (e, no caso, o processo penal
português), não é suficiente a leitura da lei e, menos ainda, “apenas” a da lei processual
penal portuguesa.
A primeira missão destes elementos de estudos é assim “fornecer” aqueles conceitos e
princípios fundamentais que justificam as soluções legais, nas quais o nosso processo
penal assenta.
I. 2 - O DIREITO PROCESSUAL PENAL - DEFINIÇÃO E CONCEITOS BÁSICOS
§ 3 Costuma-se definir, recorrendo a uma formulação demasiado simplificada, o direito
processual penal como o conjunto das normas jurídicas que disciplinam a aplicação, em
concreto, do direito penal (melhor: a sua aplicação ao caso concreto). Esta afirmação,
por si só, é pouco significativa e poderá até “confundir”. Com efeito, qualquer (ramo
do) processo visa a aplicação de um dado “direito”; mas, como é usual afirmar-se, o
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processo (tomando por base o “protótipo” de processo – o processo civil) visa a
aplicação de um direito, quando se verifique um conflito de direitos/interesses (de facto,
a acentuação da “instrumentalidade do processo” face ao direito material tem por ideia o
“conflito de direitos”, conflito esse que tem de ser resolvido/decidido; não se pensa pois
no direito em “acordo/consenso”). Onde não existe conflito não é, em princípio,
necessário o processo ou, então, haverá “outra coisa”, outra realidade, que não
propriamente a do processo (atribuindo a esta designação um sentido
“civilizacional/cultural”). Mais ainda: quando existe um processo, público – isto é, de
direito público, pois que estamos perante uma função regulamentada pelo Estado –, é
evidente que o facto de este (o processo) ser atribuído a uma entidade pública (para
mais assumindo uma determinada posição constitucional e institucional e dotada de
poderes decisórios de autoridade) só pode significar que está em causa um conflito de
direitos ou de interesses, grave ou comunitariamente relevante.
§ 4 A “especificidade (o quid specificum)” do direito processual penal encontra-se no
facto de ser construído e elaborado com base na presunção da existência de uma
conflitualidade entre Estado e (um concreto) cidadão; circunstância que impõe a
necessidade de a sua (ou seja, a do Direito Penal) “aplicação-discussão” prática ser, em
regra, matéria de “jurisdição”. Mas para que tal conflito se “realize” (i. é, se torne real) é
necessário que uma qualquer “entidade”, pública ou privada, afirme, ou então proponha-
se demonstrar, a possibilidade/hipótese de um cidadão ter cometido um crime, ou seja
alguém – representante do Estado ou da comunidade – que “afirme” e “promova” o
conflito (penal), de modo a que se torne necessário “abrir um debate”; o “debate” entre
“alguém” que vai afirmar a vigência dos interesses protegidos pela norma penal,
considerada violada, e o “cidadão/destinatário” que deverá sofrer, na sua pessoa, os
“efeitos” daquelas afirmações e as consequências, estas mais graves, que decorrem da
demonstração do que é afirmado (i. é, que é criminoso e deve sofrer a aplicação de uma
pena).
Por outro lado, da afirmação, atrás feita, poderia retirar-se a conclusão de que o
“processo penal” aplica “sempre” o direito penal – ou seja, que, nele, estará sempre em
causa/discussão a comprovação da existência de um crime e consequente necessidade
de aplicação de uma pena à pessoa, a quem se imputa o cometimento do crime. Não é
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verdade; de facto, a maioria dos processos penais (entendido este conceito numa
formulação muito ampla e, porventura, não totalmente correta) não termina sequer com
esta afirmação e menos ainda com a sua demonstração – p. ex., por vezes, não se sabe
se há crime, não se sabe ainda quem cometeu o crime. Do mesmo modo, há, hoje em
dia, casos de “aplicação” do direito penal, que não supõem uma “resolução litigiosa”
penal – casos, aliás, cada vez mais frequentes, e forma de resolução também cada vez
mais desejada pelo legislador, embora seja duvidoso poder-se afirmar que, nestes casos,
se aplica o direito penal (de facto, não se sabe exatamente que “direito” se aplica –
estarão, de todo o modo, em causa meios “alternativos” de resolução de conflito penal
ou, talvez melhor, meios de resolução de conflitos penais, sem a inflição de “sanções
penais”).
§ 5 Verdadeiramente, de um ponto de vista teórico ou de teoria geral, deverá distinguir-
se entre procedimento e processo (e, porventura, como posterior subdistinção o processo
jurisdicional).
De um ponto de vista da regulamentação legal (ou seja, nesta aceção muito ampla), o
que se descreve no CPP é exatamente um conjunto de atos, lógica e juridicamente
ordenados, que têm por finalidade (têm por fim último) saber/reconhecer se há um
crime, quem foi o seu agente e se este deve ser condenado e punido. Neste sentido, o
procedimento descrito no CPP é constituído por um conjunto de normas (que todavia
dependem já de um conjunto de pré-vinculações que as enformam), que visam resolver,
têm por destino último a resolução de um problema jurídico-penal, tanto num sentido
hipotético – enquanto fundada afirmação de uma situação configurável como de conflito
penal, que tem de ser decidida – como num sentido mais concreto ou mais seguro, de
facto criminoso comprovado e demonstrado (ou a sua negação).
Este “procedimento”, em sentido global, torna-se de facto “processo” quando o
problema jurídico-penal passa a estar submetido a uma discussão ou passa a ser
considerado uma “controvérsia”.
Assim, pode dizer-se que o conjunto de atos/procedimentos que estão descritos na
“Parte Especial/dinâmica” do CPP são atos que determinam a “forma” como o direito
penal deve ser aplicado. O procedimento penal passa a ser “processo”, quando o
problema passa a ser discutido e, em certos casos, a ser discutido de uma certa forma,
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ou seja, perante um “terceiro imparcial”, cuja atividade se rege por regras, de formação
e de pronúncia, próprias e únicas em processos decisórios estaduais.
§ 6 Poder-se-ia, assim, descrever o processo penal – melhor, o seu âmbito e as suas
tarefas – como a regulamentação jurídica respeitante à tarefa estadual de investigação de
crimes e, caso necessário, de condenação e aplicação da pena (rectius, de uma sanção
ou reação criminal) a um cidadão, em consequência de prática demonstrada, por via da
discussão e da argumentação, de um crime.
Tomando por base esta definição, pode reconhecer-se que existe, na lei, um
procedimento (penal), que tem a sua “origem” numa “hipótese” de existência de crime e
que terminará cum uma decisão, em função de um resultado obtido; resultado que, em
última análise, poderá vir a ser a aplicação e consequente execução de uma pena a
alguém condenado. Todavia, como a seguir veremos, mais do que um procedimento
(repita-se: neste sentido amplo, enquanto conjunto de atos lógica e juridicamente
ordenados que visam um determinado fim), podemos dizer que há, no processo penal
português, um conjunto de (sub)procedimentos entre si encadeados; e que o estão
(encadeados) numa lógica de sequência “condicional”. Assim, comprovar-se-á que há
um procedimento para investigar um crime e que termina em momento, no qual estarão
em aberto diversas “hipóteses decisórias”; dependendo da anterior opção decisória (ou
seja, consoante a hipótese decisória por que se optou) poder-se-á abrir um outro
procedimento, e assim por diante. Como é evidente, a distinção entre procedimentos, e
em especial a atribuição da sua titularidade a diferentes autoridades – ou seja a
competência para a realização ou atuação de cada um dos procedimentos –, deve-se a
razões de Estado de Direito e também de Organização do Estado.
§7 O conceito de procedimento, a que aqui fazemos apelo, é um conceito especificamente criado à luz, e
preordenado às (nossas) preocupações, do processo penal. De facto, desde o primeiro momento (do
início) do procedimento (do conhecimento do crime) até ao último – aqui porventura já em momento de
execução de pena – temos sempre um procedimento, em sentido geral. Este procedimento (em sentido
muito amplo) é dividido por diversos sub-procedimentos - daí a expressão “fase do procedimento” – que
consubstanciam também eles procedimentos, entre si autónomos, mas encadeados – recorrendo
discursivamente por via de analogia com o que está estabelecido no art. 119º do CPP, quando utiliza a
expressão “qualquer fase do procedimento”. Daí pois que se possa falar em procedimento, fases do
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procedimentos (ou então procedimento de inquérito, de julgamento, etc.) ou ainda em graus do
procedimento. Trata-se evidentemente de designações, para nós de menor relevância, neste contexto.
I. 3 - A LÓGICA – INTERNA E EXTERNA – DO PROCEDIMENTO
Secção A. – A lógica “natural/racional” de um procedimento decisório
§ 8 Obedecendo embora a determinadas regras, um procedimento visa o
desenvolvimento de uma atividade (no caso, decisória) ordenada para um fim, um
objetivo; ora, essa atividade supõe uma ordem lógica “natural”. Estando em causa um
procedimento jurídico, é evidente que se pretende, assim, qualificar o procedimento
como visando a resolução de um problema jurídico. Por isso, há uma série de passos
que, por obediência a regras metodológicas, têm de ser dados, de modo a que o
procedimento se vá desenvolvendo legítima e validamente até conseguir o fim que
prossegue.
a) Em primeiro lugar, é necessário o reconhecimento de uma situação que possa ser
configurada como de “problema” jurídico (e, no caso que nos interessa, de jurídico-
penal) – portanto, uma fase de reconhecimento da existência de um problema jurídico,
que irá legitimar a atuação do (titular do) procedimento; caso não seja reconhecida a
existência de um qualquer problema jurídico, não deve existir o procedimento (rectius, a
sua abertura) – designaríamos então esta (sub)fase como de “reconhecimento”.
b) Comprovada a suscetibilidade de existir um problema (no caso, jurídico-penal)
impõe-se então, como segunda tarefa, à entidade considerada competente (legalmente
habilitada para tal efeito) a procura das bases e dos critérios para a resolução/decisão do
problema – este momento denomina-se de “instrução”; momento conatural a qualquer
processo decisório. Instruir um processo tem exatamente este sentido: procurar as
“bases” para a resolução do problema, que se entendeu existir ou ser possível existir e,
por isso, é devedor de uma decisão autoritária.
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c) Feita a “instrução”, isto é, a recolha dos elementos necessários à decisão, há, por
fim, a própria decisão – decisão essa, que pode, ou não, ser suscetível de reapreciação
(instaurando-se, consequentemente, um procedimento de reapreciação, que tanto pode
referir-se à validade do procedimento realizado, como à própria decisão, no seu
conteúdo ou na sua forma, p. ex.).
§ 9 Estes três momentos existem – ou podem existir – em qualquer procedimento
(independentemente da “qualidade” da entidade com competência para a decisão); as
exigências que são impostas a, e o modo como se realiza, o procedimento dependem das
expectativas comunitárias que são colocadas na decisão ou na autoridade que a vai
proferir – dito por outras palavras: depende sobretudo dos pressupostos constitucionais
e legitimadores da atuação das entidades, consideradas competentes (para realizar o
procedimento e consequentemente decidir). Veremos, por isso, que o procedimento
jurisdicional tem características específicas que o contradistinguem de quaisquer os
outros procedimentos (isto é, procedimentos de outras autoridades públicas que não
sejam tribunais ou entidades jurisdicionais).
§ 10 Relembre-se, uma vez mais, que estamos a falar em sede de teoria geral do processo e, por isso, não
deve existir confusão entre o nível do “nosso” discurso e eventuais outras designações de soluções
positivas e muito menos as do CPP. Com efeito, a distinção entre procedimento e processo assume
particular importância, p. ex., no âmbito da doutrina administrativa. Mas, enquanto a doutrina
administrativa procede a esta conhecida distinção entre procedimento e processo (reservando este último
conceito para a Jurisdição), seguiremos antes uma outra conceituação que adiante explicitaremos, em
termos de teoria geral e por referência ao nosso processo penal.
Por outro lado, o facto de apelarmos para este conceito de procedimento, visando uma decisão, final e
definitiva, sobre uma questão controvertida, não exclui, de modo algum, o reconhecimento da existência
de elementos que impeçam ou então se configuram como condições para que o procedimento vá
avançando ou se verifique a pronúncia definitiva (assim, há pressupostos e obstáculos do procedimento
ou à própria pronúncia decisória).
Secção B A lógica – externa – de Estado de Direito ou de “cultura/civilização” processual.
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§ 11 Um Estado “absolutista” ou “totalitário” tenderá a reduzir o processo a
“procedimento” (mesmo que, ou sobretudo, o penal) de modo a que este seja realizado
integralmente por uma entidade/autoridade (isto é, caber-lhe-ia todas as funções ou
tarefas, como as de investigar e de julgar etc.), “sozinha”, mesmo que “ouvindo” (ou
então nem isso), a determinado momento (ou nunca), os sujeitos interessados na decisão
que lhe cumpriria tomar.
Ora, existem regras não meramente de Estado de Direito, mas de “verdadeira cultura
jurídica civilizacional”, que impõem, não só que o procedimento penal não seja
realizado por uma única entidade, como, além disso, garantem aos “interessados” na
decisão a proferir a possibilidade de participar no processo conducente a essa decisão e,
deste modo, a habilitação para influir na formação e, consequentemente, na pronúncia
da decisão final.
No caso concreto do processo penal, acrescem ainda regras constitucionais – mas
também outras, repetimos, de “cultura civilizacional” processual – que impõem que o
procedimento criminal, neste sentido amplo, seja dividido em subprocedimentos (a que
o CPP mais propriamente denomina de fases do processo), que visam garantir, e tornar
efetivo, o denominado “princípio da separação de poderes/funções” na realização do
processo penal (ou mais amplamente, no âmbito ou no interior da Administração da
Justiça Penal); além disso, existem outras regras, também constitucionais, que visam
garantir a efetividade dos direitos do destinatário do processo, de modo a que este
último tenha a possibilidade de nele participar e, assim, discutir a questão, que
pessoalmente o afeta, submetida à apreciação e decisão.
§ 12 Para esse efeito, existe uma “decisão”/norma constituinte – mas que, de facto, mais
do que “meramente” constitucional, é civilizacional e hoje se pode encontrar
sedimentada em diplomas internacionais – que afirma que o processo penal português
tem estrutura acusatória; consta ela do art. 32º, nº 5 da CRP.
A garantia da “estrutura acusatória” supõe, como condição necessária (mas não
suficiente !!), o chamado princípio da acusação, em sentido material. De acordo com
este último princípio, a entidade que “descobre” e investiga um crime será também
aquela que deve assumir a responsabilidade de decidir (dependendo da conclusão a que
tiver chegado, após a realização do competente procedimento) sobre se um agente deve,
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ou não, ser submetido a julgamento; entidade esta, pois, que deve ser materialmente
distinta da entidade que julga (vai julgar) – vertente que, no nosso CPP, se encontra
positivamente traduzida na atribuição da competência ao Ministério Público para a
denominada fase de inquérito. Em associação com a imposição, em processo penal,
desta lógica de separação de funções, encontra-se a garantia ou o pressuposto essencial,
legitimador e constitutivo do exercício da função jurisdicional: a atuação desta
função/poder na “condição de terceiro”, chamado/requerido para resolver uma questão
(jurídico-penal), considerada conflituosa; questão, que lhe é solicitada à apreciação por
“pessoa/entidade” distinta, em termos orgânicos.
Por outro lado, ao “destinatário do processo” são concedidos poderes para participar na
formação da decisão, a proferir pelo “terceiro imparcial”, num estatuto tanto quanto
possível de igualdade perante quem o (lhe deu) causa (ou seja, quem promoveu a
intervenção jurisdicional) e por isso numa “tendencial isonomia de influência” diante
este terceiro.
Poderemos, pois, distinguir (dentro de um conceito mais amplo de procedimento) entre
“procedimento de inquérito” – procedimento que tem em vista a obtenção de uma
decisão por parte de uma entidade pública (ou eventualmente de particulares, consoante
o tipo de processo) sobre a necessidade da submissão a julgamento de um cidadão – e o
“procedimento de julgamento”, enquanto procedimento que visa resolver o “conflito”
entre acusador e acusado, realizado perante um tribunal. A grande “diferença”, que se
pode divisar nestes procedimentos, encontra-se no modo e na intencionalidade como
cada um deles se desenvolve, o que naturalmente tem a ver com a posição dos
interessados mas fundamentalmente com a posição institucional da entidade decisora.
§ 13 Uma outra decisão legislativa, esta mais concreta e específica, é a de que, em
função do tipo de órgão (investigador/acusador ou julgador) aquele que é “objeto” do
procedimento tem o direito a ser “ouvido” sobre o(s) crime(s) por que está a ser
investigado/imputado ou julgado. Para isso, e para gozar desse direito, é necessário um
ato formal, pelo qual este destinatário é chamado a “tomar” conhecimento/contacto com
o processo, em ordem, por um lado, a saber que ele existe e, por outro, a ser sujeito a
alguns incómodos (desde logo, o de sofrer o incómodo “psicológico” da sua existência e
ainda eventualmente financeiro, que tal ato formal impõe) que decorrem tão-só da
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existência do processo que lhe é dirigido. Esta decisão legislativa impõe que, mesmo na
fase de inquérito, o “arguido” seja, possa ser, chamado a participar no processo
apresentando os seus contributos – aqueles que entenda interessarem – para a decisão
em fase de inquérito, ou seja, a de saber se deve ou não existir um julgamento. As
razões para esta participação podem ser de vária ordem: umas vezes porque, no
processo, pode ser necessário impor àquele destinatário determinados deveres que
também pressupõem a sua “audiência” – segundo as regras do “justo processo” ou, mais
corretamente, de “justo tratamento”; outras, porque se entende que o destinatário deve
ter o direito de participar na decisão (sobre a acusação ou não) e por isso mesmo o
direito de participar no processo antes de ser submetido a julgamento.
Uma e outra razão (para efeitos de participar em momento ao da eventual fase de
julgamento) não têm necessariamente o mesmo fundamento, pois que a última vertente
tem mais a ver com a “ideologia” e o “sentido” que deve presidir à atuação da entidade,
que detém o poder para realizar o procedimento criminal, ou seja ao titular da ação
penal. Com efeito, entende-se que esta entidade – de resto, em consonância com
princípios mais gerais que devem presidir à atuação de qualquer órgão do Estado – deve
atuar por forma objetiva, imparcial e segundo regras de Justiça, e, por isso, com o
intuito de obter uma decisão mais correta (até para efeitos de colaboração com o
Tribunal, quanto à necessidade de intervenção deste último). Uma vez que não existe a
objetividade absoluta, esta só pode ser conseguida quando ao destinatário do processo
seja permitido “colaborar”, embora a isso não esteja obrigado, com o titular do
procedimento, de modo a que este possa tanto quanto possível decidir de acordo com os
pressupostos legais.
Deste “direito de ser ouvido” não se deve deduzir, por qualquer modo, a conclusão de
que a posição do destinatário seja exatamente a mesma, ou dotada do mesmo “grau” de
garantia, ao longo do decurso do processo (isto é, consoante nele se avance). Pode
dizer-se que, à medida que o processo “avança” (em termos de fase processual), mais
consolidada se apresenta a posição do destinatário do processo, em matéria das suas
garantias processuais ou, então, da efetividade do seu direito a ser “ouvido” (na forma
por que, ou como, é ouvido).
I. 4 - O PROCESSO PENAL PORTUGUÊS – A SUA ESTRUTURA
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§ 14 O processo penal português – ou seja, aquele que se encontra regulado no CPP –
assume exatamente esta ideia (civilizacional e constitucionalmente prevista) de estrutura
acusatória, tanto na vertente (objetiva/institucional) de separação de poderes, como na
vertente de garantia (esta “subjetiva”) do destinatário do processo.
Assim, a distinção, entre entidade que investiga e acusa e entidade que julga, é garantida
no processo penal português pela atribuição de uma específica fase processual (a que
tem por objeto a investigação de um crime em ordem a saber qual o seu eventual
agente-responsável) à esfera de competência duma entidade – o Ministério Público –,
cabendo a este órgão a tarefa de decidir sobre se um agente deve ou não ser submetido a
julgamento - se assim se justificar esta conclusão, em função dos resultados obtidos,
após realização do procedimento.
Como referimos já, durante esta fase deve ser dada ao destinatário – ao arguido – a
possibilidade de colaborar em ordem a influenciar a decisão final (de acusação ou não)
– gozando, assim, do denominado “direito de audiência” (que, por si, não deve ser
confundido com o direito ao contraditório, em sentido próprio).
§ 15 A decisão no sentido da dedução de acusação, proferida pelo MP, impõe-lhe que
faça submeter essa acusação à apreciação de um Tribunal, o qual decidirá sobre o
fundamento daquela, segundo um modo decisório próprio, isto é, caracterizado pela
ideia de contraditório na formação das bases, de facto e jurídicas, decisórias. Neste
contexto, a fase de julgamento é uma fase de discussão em que uma entidade pública
tenta demonstrar – ou, se se quiser, convencer – uma outra entidade (um Tribunal), com
características legitimadoras específicas, da culpabilidade de um agente/cidadão e
justificar, por isso, a aplicação de uma pena/sanção criminal. Ao destinatário, no
procedimento jurisdicional, cabe-lhe fazer a defesa face àquela acusação, que lhe foi
movida, perante esse “terceiro equidistante”.
§ 16 Procedemos, assim, a uma sucinta explicitação da lógica de Estado de Direito e de
garantias de cidadania, a que o nosso processo penal obedece, na medida em que
também ele assenta num modelo de estrutura acusatória, o que implica dois
pressupostos:
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a) o princípio da separação de funções, concretizado no denominado princípio da
acusação, que nos diz exatamente que:
por um lado a entidade que (a) investiga, (b) acusa e (c) sustenta a acusação tem de ser
diferente da entidade que julga;
por outro, a ideia-garantia de participação do(s) destinatário(s) do processo nas decisões
a proferir ao longo do mesmo, mas obviamente com caráter e intencionalidade
diferenciados em face do tipo de procedimento (e consequente autoridade) que esteja
em causa.
A razão primordial para esta distinção, em termos funcionais, tem a ver com a garantia
que se quer conferir – ou que é ínsita num Estado Democrático – à função jurisdicional:
o Tribunal – órgão da função jurisdicional - julga (ou seja: exerce a função
jurisdicional) exclusivamente sobre o que (quid) lhe é pedido e desde que esse pedido
constitua um “problema” ou uma controvérsia jurídica, porque a sua (i. e, a do Tribunal)
tarefa/função, dentro do atual Estado de Direito Democrático, é exatamente a tarefa de
“decidir” de uma questão controvertida, que lhe é solicitada e atribuída à sua
“resolução/pronúncia” autoritária.
b) Além disso, o Tribunal julga – rectius, exerce materialmente a sua função – de uma
forma específica e única no âmbito dos poderes do Estado: isto é, em contraditório ou
com a possibilidade de contraditório; o que impõe sempre a subordinação da sua
atuação e decisão a determinados parâmetros (se quisermos, a tendencial igualdade e
consequente possibilidade de contraditório).
§ 17 Para que este “sistema/modelo” funcione, é necessário por conseguinte que a
acusação defina exatamente o “tema do que deve ser decidido/julgado” e, portanto, a
enunciação da questão que deve ser decidida. A acusação assume do mesmo modo
importância para o próprio destinatário, no que concerne a sua posição no processo, na
medida em que, definindo o tema de julgamento, também define o quid sobre que o
arguido se deve defender, em audiência.
Esta “dupla implicação” – consequência do princípio da acusação – todavia, não é por si
só suficiente, para afirmar a própria estrutura acusatória; de facto, o princípio da
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acusação é uma condição necessária, mas não suficiente, para a existência de um
processo de estrutura acusatória, pois que, além deste princípio, é ainda necessária a
existência da garantia do contraditório ou da possibilidade de contraditório em relação à
acusação. Este conceito/garantia, que pode, como iremos ver, encontrar diversas
“traduções” ou “conotações”, implica essencialmente que o procedimento jurisdicional,
nomeadamente a sua “instrução” (naquele sentido, atrás referido, de teoria geral), seja
sobretudo, ou predominantemente, tarefa dos “sujeitos processuais”
implicados/interessados na decisão, cabendo-lhes, assim, influenciar a decisão do
tribunal, por via dos contributos apresentados na audiência de julgamento. Daí, pois,
falar-se, na fase de julgamento, de “participação constitutiva dos sujeitos processuais
na declaração do direito ao caso” – na aceção de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito
Processual Penal, 1988/89, polic. p. 51), ou em outra expressão “participação
contemporânea e contra posta de todas as partes no processo”, como elemento
caracterizador do processo penal português.
Assim um processo, ou uma regulamentação processual, pode observar/respeitar o
princípio da acusação, mas não assume, só por isso, a qualidade da “estrutura
acusatória”. Basta que seja observado o princípio da acusação e que, em audiência de
julgamento, p. ex., as provas que sustentam a acusação fossem apresentadas por escrito
ou que ao arguido não fosse concedido o direito pleno de defesa, para nos
confrontarmos com um processo respeitador do princípio de acusação, mas não
seguramente caracterizado pela estrutura acusatória
§ 18 É evidente que o conceito “acusatório” pode assumir diversos “contornos”, uma vez que depende, em muito, do critério utilizado como meio de argumentação. De um certo ponto de vista, o processo penal é sempre inquisitório, na medida em que não existe, à partida, uma igualdade entre a entidade pública que investiga e o destinatário do processo. De facto, em Portugal, tanto o MP, como os seus órgãos auxiliares, estão dotados de poderes coercivos (alguns subordinados a cautela judicial) para realizar as investigações, poderes que não estão ao dispor do “destinatário”; por isso, o risco de “perdas probatórias” corre fundamentalmente contra este último (pois que intervém mais tarde ou sem os poderes do Estado). Tendencialmente esta originária desigualdade entre “Estado” e cidadão é posteriormente compensada: a) em audiência de julgamento, com os critérios ou parâmetros de decisão – por um lado, no âmbito do denominado ónus da prova e sua inversão; por outro, ao conceder-se ao Tribunal poderes subsidiários de intervenção em audiência; b) por fim, por um regime de “favor” em matéria de recurso extraordinário de Revisão. A estes aspetos retornaremos em momento devido.Assim, uma coisa é um processo que se rege pelo princípio da acusação; coisa diversa é um processo de estrutura acusatória, cuja existência ou qualidade se determina fundamentalmente pelos princípios de audiência de julgamento – nomeadamente pelo contraditório, publicidade, etc. Naturalmente que a estrutura acusatória não pode ser avaliada à luz dos singulares dos princípios ou valores, mas numa sua avaliação conjunta e na consideração de todos os elementos de ponderação relevantes, pois que nenhum
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sistema jurídico pode afirmar pretensões absolutizantes apenas quanto a um dos “elementos/fatores de ponderação”. Com efeito, mesmo hoje, para além do necessário equilíbrio entre os relevantes interesses defendidos pela acusação e os que são defendidos pela defesa, também importa adicionar-se o respeito por outros valores relevantes de outros participantes - em especial, os da proteção de testemunhas ou de vítimas. Mas, aqui, existe o risco de, embora respeitando-se o princípio da acusação, colocar-se em causa a “essencialidade” da estrutura acusatória.No fundo, o que se deve ter em atenção – e por isso ter sempre o cuidado de preservar – é que a “forma” de criação das bases decisórias do MP e do Tribunal sejam, entre si, independentes, e portanto com regras e momentos temporais próprios e autónomos.
§ 19 Conclusivamente, a denominada estrutura acusatória do processo penal tem duas
vertentes fundamentais, ou assenta em dois pressupostos, com as seguintes
consequências:
a) O princípio da separação de funções traduzido num efetivo princípio da acusação,
que deve ser entendido como princípio que visa garantir que a função jurisdicional, ou
então mais concretamente que o órgão-titular dessa função, se “remeta” à sua posição de
“terceiro” equidistante face aos sujeitos processuais que estão envolvidos numa
controvérsia de realização do direito criminal.
Este princípio da separação de poderes impõe “apenas” que a entidade que investiga e
que acusa (mas, de um modo lógico, impõe também por forma cogente que, em
audiência de julgamento, a argumentação, com as razões de direito e de facto
subjacentes àquela acusação, seja feita por aquela entidade que investigou e acusou)
seja materialmente distinta da entidade que julga.
b) Donde resulta uma outra consequência muito importante, em matéria de separação de
funções no âmbito da Administração da Justiça: a de que, afirmada a “independência”
entre quem investiga/acusa e quem julga, não há qualquer possibilidade de emissão de
“ordens” de uma das entidades/poderes de Estado em relação à outra (isto é: o tribunal
ou o juiz nunca dá ordens ao MP (quanto ao exercício da ação penal); apenas decide do
que é requerido ou solicitado pelo MP e em função da decisão, o procedimento
prossegue ou não; obviamente que a ideia inversa, a de o MP dar qualquer ordem ou
deter qualquer poder sobre juízes ou sobre Tribunais, nem sequer será pensável).
§ 20 Não se trata, assim, no princípio da acusação, e ao contrário do que por vezes é afirmado, somente de garantir somente a imparcialidade da entidade julgadora face a eventuais pré-juízos que se suscitariam
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em relação a um “julgador”, que tivesse tido uma qualquer anterior intervenção em atividade investigativa. Com efeito, esta regra de imparcialidade da função jurisdicional estaria sempre assegurada – como hoje o está – com o afastamento da atividade de julgamento do juiz-investigador. Tal regra de imparcialidade, de resto, existente no direito português, visa já a atividade do juiz, em fase anterior, quanto ao processo que lhe cabe julgar, pelo que é completamente independente das questões e dos problemas que o princípio da acusação visa prevenir. Que ter atuado como “investigador” no processo, que lhe cabe julgar, coloca irremissivelmente em causa a imparcialidade deste juiz é dado adquirido. Mas o princípio da separação de funções não diz que o juiz tenha que ser diferente; impõe, isso sim, é que os “poderes” ou as “instituições”, competentes para “acusar” e para “julgar”, sejam diferentes; quer sobretudo afirmar que o poder judicial deve ter determinadas características legitimadoras, que se visam preservar com este princípio.Assim, há países, de tradição francesa, que atribuem a titularidade da fase de instrução (enquanto fase de investigação) a um juiz, especificamente habilitado para esse efeito (o juiz de instrução). E não é forçosamente por esse facto que se viola o princípio de acusação e, menos ainda, a estrutura acusatória. Simplesmente, para que haja um funcionamento correto, ou coerente, do sistema, essa figura, a do juiz de instrução, tem de suportar alguns “atropelos”. Com efeito, a figura do juiz instrutor só logra sentido, quando este juiz deixe de ser juiz, para passar a ser uma entidade dependente, em alguma medida, de quem, a jusante, vai desenvolver a tarefa de acusar após as suas investigações. Assim, este juiz passa a ser uma espécie de “auxiliar” do MP (ou outra entidade equiparada) ou então remete-se à dependência daquele nos casos mais graves (daí, pois, que este juiz seja também designado como “alto oficial de polícia judiciária”). O juiz que investiga, interroga, prende, comprime direitos fundamentos corre, assim, o risco de deixar de ser um juiz para passar a ser um polícia dotado de fortes poderes judiciais.
C) A separação de funções há de traduzir-se, agora de um ponto de vista
“subjetivo”, numa outra garantia: a de que a entidade julgadora tem de ser um “terceiro”
face à investigação (aos resultados da investigação) e à sua demonstração em audiência
de julgamento. A “condição de terceiro” do tribunal/entidade julgadora implica que o
procedimento, isto é o conjunto de atos que regulam a forma de obtenção da sua
pronúncia/decisão final, se desenrole segundo determinadas regras de contraditório,
pelo que será, fundamentalmente, aos sujeitos processuais (aos “interessados” na causa)
que cabe trazer à audiência de julgamento os elementos de argumentação e de discussão
mais relevantes.
Desta regra decorre que não pode, em princípio, haver “transmissão” de provas entre a
fase de inquérito e a fase de julgamento. Ou seja, toda a prova obtida na fase de
inquérito pelo MP (e que tenha servido de fundamento à sua decisão de acusar) há de
ser apresentada, por modo autónomo, na fase de julgamento.
§ 21 O contraditório, a que aqui fazemos referência, deve ser entendido num sentido amplo e não necessariamente com os contornos que se descrevem, em sede de teoria geral (especialmente a civilística) e muito menos em conotações demasiado “radicais”.Sobre a matéria do contraditório, voltaremos a pronunciar-nos adiante, uma vez que se trata de matéria que merece uma reflexão autónoma. No entanto, observe-se que a CRP, no art. 32º, nº 5, refere a estrutura acusatória exatamente em associação ao princípio do contraditório.
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I. 5 CONCRETIZAÇÃO
§ 22 Definida, nestes termos muito lineares, a estrutura básica do nosso processo de
estrutura acusatória, poderemos dar alguns passos mais para melhor precisar certos
conceitos e princípios.
Como dissemos, a primeira fase do processo penal português é constituída por um
procedimento da titularidade do MP – enquanto entidade pública – que visa investigar a
existência de um crime e quem foram os seus agentes, com o intuito de saber se estes
devem ou não ser submetidos a julgamento, a fim de, se necessário (ou seja, caso se
prove a existência do crime por que são acusados e se comprove a sua responsabilidade)
serem punidos. Quando, por qualquer razão e no âmbito desse procedimento de
investigação, é necessário “chamar” a intervir aquele que está ser “objeto direto” da
investigação – que passa a ser o formal destinatário do processo (o arguido) – estamos,
em nosso entendimento, perante um “processo penal”. De facto, a assunção da
qualidade de “destinatário” do processo implica a imputação pessoal (subjetiva) de um
conjunto de direitos e deveres (ou então de incómodos) - dos quais, um dos direitos é de
o arguido passar a ter a faculdade de participar no processo e um dos seus deveres é o de
não desconhecer a existência desse mesmo processo, que contra ele é movido. Por essa
razão é que o destinatário do processo passa também a ter o direito, fundamental, de ver
resolvida a sua situação processual de forma célere e, pelo menos, tendencialmente
definitiva. A fase de inquérito é pois uma fase, em regra necessária, de investigação em
ordem a esclarecer se existe o crime, quem foi o seu agente e sobretudo a esclarecer se
aquele, sobre o qual há razões para crer que está implicado no crime e, por isso, é já
investigado, deve ou não ser submetido a julgamento. Daqui deriva que qualquer
decisão final tomada em fase de inquérito traduz-se num ato do MP, que corresponde a,
é concretização de, um resultado de uma investigação exaustiva (irrepetível) quanto à
implicação de uma pessoa numa determinada situação de facto, hipoteticamente
configurável como criminosa.
§ 23 Em outros ordenamentos jurídicos – nomeada, mas não exclusivamente, o italiano – prefere-se proceder à distinção entre procedimento e processo, segundo o critério da jurisdicionalidade ou então do contraditório; pelo que se faz equivaler a categoria do processo ao valor do contraditório. Em alguma medida, esta ideia, tal como já referimos, é aceite pela doutrina e legislação administrativas quando fazem
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a distinção entre “procedimento” administrativo e “processo” administrativo (aliás, contidos, no ordenamento jurídico português, em diplomas legislativos diferentes).Não teríamos qualquer obstáculo a fazer valer este critério no processo penal. Todavia, não nos parece que esta seja de facto uma boa solução, mesmo em termos gerais. Porque, a despeito do que a seguir se dirá, no processo penal a intervenção judicial, em fase de inquérito, pode dar-se por várias outras razões. O nosso critério será, assim, o da constituição do arguido.Com efeito, num modelo de processo, no qual a audiência de julgamento é em regra obrigatória, não se pode perfilhar um critério tão radical, face àqueles outros tipos de processos em que é possível o consenso sem julgamento.
§ 24 Em razão dos valores inerentes, e por isso mesmo tutelados, pelo direito e processo
penal resulta assim que a investigação criminal pode ter que fazer “uso” ou “recurso” a
utilização de meios que atinjam a “pessoa” do destinatário. Em qualquer caso é, porém,
necessário que as atuações de investigação se pautem sempre por limites face à pessoa
do destinatário, por um lado, quanto à sua dignidade pessoal, por outro quanto à
garantia da possibilidade da sua efetiva participação no processo penal; por fim, em
consequência dos princípios gerais de atuação do Estado, os limites impostos pelo
princípio da proporcionalidade quanto ao tratamento processual do destinatário, que
deve estar de acordo com a gravidade do crime, a sua complexidade, etc.
Pode dizer-se que, de acordo com esta conceção de processo, qualquer cidadão tem,
como condição-dever basilar inerente à própria cidadania, a obrigação de suportar pelo
menos alguns “incómodos” quando fundadamente se afigure necessário esclarecer a sua
participação num crime ou numa situação configurável como criminosa. Esta ideia que,
no fundo, traduz a máxima de que ninguém está acima da lei, é certamente correta; mas
há de ter o seu correspetivo na ideia de que “este” cidadão só deve ser sujeito uma única
vez a uma investigação por aqueles factos (ne bis in idem) e tem por isso o direito de
não voltar a ser “incomodado outra vez”, quanto ao mesmo “objeto do processo”, como,
do mesmo modo, tem o direito de ver resolvida num prazo “razoavelmente” célere a sua
posição/estatuto processual.
Por razões exclusivamente processuais – embora legalmente regulamentadas e
subordinadas a determinados pressupostos e garantias –, pode o cidadão ser obrigado a
colocar-se à disposição da justiça, a sofrer limitações na sua liberdade, ou mesmo ver-se
privado de liberdade (estamos perante as denominadas “medidas de coação”, que, pela
sua importância justificam um tratamento autónomo, ao qual naturalmente faremos
referência).
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§ 25 Além disso, face às finalidades do processo e à importância dos valores tutelados
pelo direito penal, para se investigar o crime e saber quem foi o seu agente pode ser
necessário – e muitas vezes é – afetar ou restringir direitos, liberdades e garantias de
cidadãos (que não exclusivamente do arguido), em ordem a, por exemplo, recolher as
provas que sejam, ou se afigurem como, necessárias para o esclarecimento do crime e
para a demonstração da culpabilidade do agente. Aqui, chegamos a um ponto
importante, aliás específico do direito processual penal, que é aquele que se refere aos
limites, impostos pelo Estado de Direito, à atividade de investigação e de prossecução
penal. De facto, a importância dos valores protegidos pelo direito penal – que no e
através do processo se querem realizar – pode servir de fundamento ou de base de
legitimação para a agressão/restrição de direitos fundamentais dos cidadãos (não apenas
do destinatário do processo), de modo a que se possam cumprir as finalidades, a que o
direito e o processo penal estão, no seu conjunto, preordenados. Mas, como veremos, e
também de acordo com os princípios do Estado de Direito Democrático, a “agressão” a
estes direitos está “balizada” por alguns princípios-garantias, como desde logo o de
existir um conjunto de direitos, liberdades e garantias que, em caso algum, podem ser
afetados (nem por via legislativa) e, naqueles casos em que constitucional e legalmente
se admite a sua restrição, estas restrições estarão subordinadas a princípios como os da
reserva de juiz, da proporcionalidade, do “fundamento legitimador”, etc. Além de
existirem condutas ou comportamentos (porque, p. ex., “desleais”, “enganosos”) que
são considerados inadmissíveis pela CRP.
Encontrámo-nos, assim, em outra matéria particularmente sensível do processo penal,
que é aquela que se refere aos denominados “meios de obtenção de prova” ou métodos
proibidos de obtenção da prova. A referência que se faz, aqui, a esta matéria deriva
somente do facto de ser nesta fase que estes meios serão mais necessários, não se
excluindo porém, que, em outras fases do procedimento de primeira instância, eles não
possam ter também utilidade prática.
Contrariamente ao que por vezes é afirmado, os direitos e as garantias fundamentais não
são, não devem ser entendidos como limites à descoberta da Verdade. De facto,
expressões ou proposições doutrinais, que dão um valor negativo às proibições de prova
ou as caracterizam como um “incómodo”, só podem partir do princípio de que a
restrição dos direitos, liberdades e garantias é a regra no Estado de Direito Liberal e
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Democrático. Ora, esta base “ideológica” é naturalmente falsa. Num Estado de Direito
Democrático, a defesa e a garantia dos direitos fundamentais é um elemento essencial e
constitui um seu verdadeiro ponto de partida. Por isso, só face a razões legítimas e
devidamente ponderadas é que se admite que se restrinjam/afetem direitos liberdades e
garantias. A eficácia universal das garantias constitucionais impõe, deste modo, limites
a todas as Verdades (públicas ou privadas). Ao processo penal é que é concedida, por
razões fundadas e devidamente ponderadas, a autorização constitucional para a
agressão/restrição, por forma direta e coativa, de direitos fundamentais (isto é, sem o,
ou prescindindo do consentimento do titular), para que possa lograr as suas finalidades.
A afirmação desta vertente tem ainda uma outra relevante implicação, nem sempre
devidamente apreendida. De facto, no processo penal não se discute apenas se um
agente deve ou não ser condenado em função das provas que foram recolhidas; discute-
se, do mesmo modo, se o agente (ou seja, o arguido) foi investigado segundo um
processo justo e de acordo com os princípios do Estado de Direito – o que, em última
instância, quer dizer discute-se se foi tratado, julgado ou condenado por forma
“processualmente” admissível.
§ 26 O conceito de condenação “por forma processualmente admissível” tem vastíssimas implicações, nem sempre devidamente apreendidas. De facto, os pressupostos constitucionais da realização do procedimento/penal são todos eles constitutivos da forma “processualmente admissível”. Por isso, a forma “processualmente admissível” tem de respeitar pressupostos básicos, quanto à estrutura do processo, quanto à posição do destinatário e ainda quanto às funções que são exercidas em cada uma das fases do procedimento penal. Melhor tentaremos adiante referir e aprofundar todas estas implicações, quando nos referirmos à prova.
§ 27 Em conclusão, vimos que a fase de inquérito se justifica em razão do princípio de
separação de funções (mas também de autogarantia do exercício da função
jurisdicional); princípio este que impõe assim que uma entidade pública tenha a seu
cargo a tarefa de investigar a existência de um crime e de saber quem o terá praticado,
em ordem a decidir se é necessário submetê-lo a julgamento, para lhe aplicar uma pena.
Neste procedimento de inquérito, a entidade que deve proferir a decisão final está
obrigada a “ouvir” o eventual destinatário da decisão, porque, de acordo com as regras
de justiça, a decisão que deve ser tomada o mais objetivamente possível deve ainda
tanto quanto possível ser antecipadora da função jurisdicional (em especial, num sentido
negativo, o de prevenir uma intervenção desnecessária da função jurisdicional).
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Como veremos, esta necessidade de, antes de decidir, o MP ter de ouvir o arguido
resulta de uma certa “ideologia” dos órgãos do Estado, que aponta para que estes em
qualquer decisão devam decidir de forma imparcial e justa. No caso do (nosso) MP, e
pelas razões que veremos, esta ideia é mais fortemente fundada e legitimada, na medida
em que a tarefa que lhe cabe é a de tanto quanto possível levar a julgamento, apenas
“aquilo” que for estritamente necessário ser levado a tal fase e, por isso, ser na medida
do possível uma instituição que sirva de “filtro” para a fase de julgamento; sobretudo
atendendo a que o MP realiza as suas próprias funções, em regra mas por forma
cogente, por via jurisdicional ou judicial.
§ 28 Em resumo: o inquérito é uma fase, na qual uma entidade pública leva a cabo uma investigação, o que significa uma atividade em que ela própria (aquela entidade) cria as bases necessárias para proferir a sua própria decisão, embora o destinatário, o arguido, tenha o direito de influenciar essa decisão.As decisões que o MP pode tomar em fim de inquérito são pois: a decisão de submeter alguém a julgamento; decisão tomada com base no critério de prognose, segundo o qual, se levado a julgamento, o cidadão acusado poderá vir a ser condenado pela prática de um crime; a decisão contrária; ou, por fim, a opção por soluções que se configuram como verdadeiras alternativas à acusação (decisão de submeter a julgamento).
§ 29 Tendo sido decidido submeter alguém a julgamento, em princípio abrir-se-ia a fase
de julgamento. No direito português, por força de imperativo constitucional, está
legalmente consagrada a possibilidade de se seguir/abrir uma fase intermédia,
denominada de “fase de instrução”, cuja única e exclusiva finalidade é a de “controlar”
a decisão do MP, tomada em fase de inquérito. A razão para a existência desta fase é o
facto de se considerar necessária a previsão de um controlo da “legalidade” da decisão
tomada pelo MP; de um lado, garantir o “controlo” judicial sobre se a acusação do MP
se justifica – pois que se entende que o ato de acusação implicará graves custos –
económicos e mesmo psicológicos – e um certo efeito infamante para o arguido; do
outro, saber se a decisão negativa é também ela correta – neste caso, intervindo, para tal
efeito, uma outra “personagem processual”, a quem cabe desencadear este controlo, por
ter um interesse na resolução do caso – o chamado “assistente”. Esta fase é facultativa –
porque tem de ser solicitada – e visa estritamente saber – tal como a decisão do MP – se
o arguido deve, ou não, ser submetido a julgamento.
§ 30 A fase de instrução assume-se, dentro do processo penal nacional, como a fase menos convincente e aquela que mais problemas suscita, de um ponto de vista teórico e de princípios. Com efeito, embora este
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seja um aspeto a desenvolver em local apropriado, a fase de instrução pode constituir uma verdadeira quebra (ou então um verdadeiro “quebra-cabeças”) do “princípio da separação de poderes”, pelo menos perspetivado segundo um ponto de vista material. De facto, a designação de “instrução” mereceria desde logo ser eliminada, uma vez que em regra o juiz de instrução (português) não é de facto juiz de instrução nenhum (isto é, não corresponde à figura, assim designada em outras ordens jurídicas, nas quais o juiz instrutor é de facto instrutor de causa penal). Com efeito, o juiz de instrução em Portugal, na sua dupla aceção, não “faz instrução” do processo. Antes comprova outras “instruções”…
§ 31 Esta fase é constituída por um procedimento em que os resultados das
investigações – seja daquelas que foram realizados em fase de inquérito, seja daquelas
que o juiz “realiza” na própria fase de instrução – são submetidos a discussão
contraditória. Daí que esta fase tenha um “momento de contraditório”, o denominado
“debate contraditório” (a preceder a decisão sobre a pronúncia em ordem a saber se o
arguido deve ou não ser julgado) sobre a prova “recolhida” por forma não contraditória.
Mas não pode ser considerada obviamente uma fase de “estrutura acusatória”, em
sentido próprio (em sentido material), uma vez que tal conceito está associado a um
conjunto de outros requisitos valorativos que, no todo ou em parte, inexistem nesta fase.
§ 32 Seja diretamente (isto é, pela via da acusação) seja indiretamente (por via do
despacho de pronúncia), poder-se-á abrir, no final, a fase de julgamento. A fase de
julgamento é da competência de um órgão, com uma especial legitimidade democrática,
que vai decidir se a acusação (deduzida por uma entidade pública contra um cidadão)
tem razão de ser e se tal cidadão/agente deve ser considerado criminoso e, por isso, deve
ser-lhe aplicada uma pena/sanção criminal.
De um ponto de vista de procedimento – em especial, no que se refere ao momento de
“instrução” (naquele sentido de teoria geral atrás referido) em audiência – a
característica mais relevante da fase de julgamento é a de que o seu desenvolvimento se
realiza não tanto por (impulso de) quem deva decidir, mas fundamentalmente pela
atuação dos sujeitos processuais que nela intervêm enquanto interessados. Num
processo de estrutura acusatória, a criação dos fundamentos da decisão é,
tendencialmente, realizada pelos sujeitos, interessados na decisão – MP e arguido
principalmente – que não só vão definindo os temas da discussão, mas também as bases
em que a decisão deve ser tomada – por isso, trata-se, ao longo do julgamento, de
convencer um terceiro de que a acusação tem ou não razão de ser ou então de qual a
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pena que deve ser aplicada. Esta ideia implicará que todos os atos, por que se
desenvolve o procedimento, serão realizados segundo uma perspetiva
“tendencialmente” contraditória. Mas, deve observar-se que esta perspetiva
“contraditória” é uma via que está fundamentalmente pensada como garantia do arguido
ou, mais corretamente, como garantia “subjetiva” do Estado de Direito, tal como se
encontra consagrada na nossa CRP.
O contraditório, como referimos já, nem sempre tem um significado inequívoco; com efeito, podem existir diferentes conceções de contraditório, mas que são consequência de “ideologias” do processo. De qualquer modo, uma acusação, para ser considerada “procedente”, e portanto poder servir de demonstração da culpabilidade de um agente, tem sempre de ser submetida a uma apreciação em audiência. O grau de contraditório depende em muito da própria forma como o arguido se predispõe para uma audiência – mas a via do contraditório está-lhe sempre aberta. Embora, tendencialmente este contraditório seja devidamente assegurado, a sua aceção mais radical, fica dependente da posição do arguido.
§ 33 À luz do nosso direito positivo, é além disso necessário precisar que o arguido,
além de ter o direito ao contraditório (quanto à produção da prova), tem ainda o direito a
influenciar a produção de prova e o decurso da própria audiência de julgamento através
das suas declarações, independentemente de se prevalecer do efetivo contraditório ou
até sequer se pronunciar pessoalmente sobre o tema. Com efeito, o contraditório, no
direito processual nacional, deve ser entendido num sentido algo amplo. De facto,
mesmo que o arguido não apresente nenhuma prova em seu favor, cabe-lhe, ou tem esse
direito (sem que tal se configura como qualquer ónus ou obrigação), de pessoalmente
influir na decisão final ou contraditar a prova apresentada pelo MP. Todavia, e em
qualquer caso, as provas que hajam de servir para fundamentar uma condenação têm
sempre de ser submetidas a um debate público e apresentadas segundo uma determinada
forma, garantindo-se – ainda que o arguido pessoalmente não se prevaleça de uma
qualquer forma positiva de defesa – um elemento indisponível de defesa em audiência,
enquanto princípio legitimador e institucional do processo penal.
Embora primaria e basicamente de estrutura acusatória, o processo penal português não
deixa, todavia, de reconhecer, em audiência de julgamento, alguns poderes de
intervenção ao Tribunal, na qualidade titular/decisor da fase de julgamento, que se
justificam fundamentalmente por duas razões:
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a) o reconhecimento de que não existe uma efetiva igualdade de armas entre os sujeitos
processuais e
b) o de se entender que a decisão final deve cumprir determinados requisitos para ser
considerada válida.
Neste sentido, deve entender-se que em audiência de julgamento o tribunal detém
poderes próprios integrativos, a vários níveis, que se fundamentam na autoridade do
tribunal e que se há de traduzir em exigências na própria decisão final a tomar.
I. 6 RESUMO – PROPOSIÇÕES-REFLEXÕES
§ 34 Desta visão – resumida e meramente descritiva – resultam naturalmente alguns
aspetos que devem ser realçados:
a) Desde logo, observe-se assim que o processo penal se constitui como um
procedimento unilateralmente desenvolvido pelo Estado, através de um órgão
especificamente vocacionado para o efeito, que tem por missão a investigação (rectius,
a tarefa de dirigir a investigação) de uma situação de facto configurável (ainda que
hipoteticamente) como criminosa cabendo-lhe realizar (rectius, dirigir) uma
investigação exaustiva tendo em vista descobrir se existe crime, quem foram os seus
agentes em ordem a saber se esses agentes devem, ou não, ser punidos. Este
procedimento denominamos de procedimento de exercício da ação penal, ou, se se
quiser, de promoção processual e abrange todos os momentos relevantes (em termos de
promoção) do processo penal.
Este procedimento – entendido como conjunto de atos que estão entre si ligados em
vista de uma finalidade – transforma-se em processo, quando a entidade competente
“adverte” uma pessoa concreta de que se deve considerar destinatária do processo –
em termos conceituais, o (constituído) arguido – e, por isso, está obrigada a
determinados deveres, mas sobretudo passa a ter direitos inalienáveis, com a informação
de que está a ser objeto de uma investigação, referente a uma questão de facto e de
direito, suscetível de ser considerada uma questão “criminal”. Assim, no fim deste
processo de inquérito, existirá uma decisão – de arquivamento ou de acusação que
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corresponde aos resultados de uma investigação exaustiva ou tanto quanto possível
exaustiva.
Implica isto, pois, que, no nosso entender, já existe nesta fase um tema de “discussão” entre a entidade que investiga e aquele que é investigado. E tanto assim o é, quanto de facto existem legalmente possibilidades de se resolver o processo – o conflito – por vias que não a da audiência de julgamento, portanto sem o sancionamento próprio e específico do direito penal.Repetimos, não é esta a visão mais comum de entendimento, mesmo de um ponto de vista doutrinal e até legal.
b) Tendo decidido acusar, o Estado, através do seu órgão próprio, está obrigado a
demonstrar perante um terceiro a razão dos seus argumentos, respeitando-se assim o
princípio da separação de poderes e as garantias do arguido.
Observe-se, todavia, que estas garantias, a da separação de funções e a do cidadão (ou
do destinatário do “pedido”), existem em qualquer processo jurisdicional (seja no
processo civil, seja no processo administrativo, ou em outro qualquer). Por isso, estas
duas notas caracterizadoras não servem, por si só, de elemento “distintivo” do processo
penal, ou da jurisdição penal, face a outros processos ou jurisdições. O que caracteriza o
processo penal – ou melhor, a função do tribunal penal ou da jurisdição penal – é o
facto, a circunstância, de ser imprescindível, para que um agente possa ser considerado
“criminoso”, que o Estado (representado pelo MP) demonstre – perante um órgão
independente, e que realiza-administra a justiça em nome do povo – que aquele agente
cometeu, na realidade, um crime e que por isso deve ser punido. Assim, pode dizer-se
mais propriamente que o princípio da separação de funções, no âmbito da
Administração da Justiça Penal, se traduz numa efetiva “diferenciação de legitimidades”
entre quem acusa e quem julga/condena. Expressão desta ideia de legitimação é o facto
de a audiência de julgamento dever ser pública e o MP ter de demonstrar publicamente
todos os elementos que são necessários para fazer condenar o arguido – ou seja, o MP
tem de convencer um tribunal, que “age (exerce a sua função) em nome do povo”, de
que o arguido deve ser condenado e que, por isso, deve sofrer uma pena. Ao arguido em
audiência de julgamento cabem-lhe, em regra, os poderes de “colocar em causa” as
afirmações do MP, incluindo o direito de “nada fazer” (que não deixa de ser uma forma
de defesa).
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Ao contrário do que se defendeu durante muito tempo, o facto de o julgamento ser realizado por um Tribunal, e este ser órgão diferente do acusador, não constitui, só por si, circunstância que ofereça garantia suficiente – a afirmação de que o tribunal estaria em melhor posição para conhecer da Verdade pode estar certa ou não; dependerá fundamentalmente do método de “conhecimento” da Verdade, e não tanto da posição do Tribunal.
C) Estes órgãos, designados por Tribunais, gozam da característica, “civilizacional” e
constitucionalmente reconhecida, da independência, exatamente porque, embora criados
pelo e dentro do Estado, só “dão razão” ao Estado (rectius, aos seus órgãos), quando
este, em conflitos nos quais esteja envolvido, consiga convencer o Tribunal das suas
razões. Ora, desta implicação, que configura o poder judicial como um poder
independente, cuja legitimidade deriva do povo (em nome do qual ele administra a
Justiça), resulta que o principal desígnio dos Tribunais será o de representar a
comunidade na resolução dos conflitos. Desígnio que se traduzirá nas ideias de que a
realização da Justiça deve assentar numa ideia de “proximidade” com a comunidade e
de que a audiência de julgamento bem como o seu corolário, que é a decisão/sentença
final, devem ser “acessíveis à comunidade”, ou seja ao público.
Infelizmente, este caráter simbólico, todavia fortemente legitimador, do exercício da função jurisdicional, tem-se transformado hoje em dia e face à prática, numa “ilusão”. Com efeito, nos estritos termos, o princípio da publicidade das audiências, constitucionalmente consagrado, é atacado e anulado na própria Lei e na prática. O princípio da publicidade, todavia, não vale só por si; a ele estão associados um conjunto de outros princípios, que sedimentam e reforçam a legitimidade do poder judicial e sobretudo a boa decisão da causa.De qualquer modo, observe-se que a legitimação democrática dos Tribunais pressupõe a publicidade da audiência de discussão e, quando deva ser proferida uma decisão de mérito (isto é que conheça do objeto do processo), a leitura do resultado da audiência (a sentença), com a fundamentação, deve ser também pública (enquanto correspetivo e demonstração da publicidade da audiência de julgamento). Falhando um destes pressupostos, nenhum Tribunal pode, deve, pronunciar a justiça em nome do Povo. Com efeito a justiça de gabinete não é “controlável” por ninguém (sobre este tema, veja-se o que afirmaremos sobre o princípio da publicidade).
§ 35 Pode assim dizer-se que a audiência pública de julgamento se configura como
necessária para que o Estado (MP) demonstre a obrigação de se proceder a uma
“censura” dirigida a um cidadão; censura esta a realizar pelo órgão, que representa a
comunidade na qual aquele cidadão se insere, e por isso órgão que, comprovada a
“culpabilidade” pelo crime, o sanciona e o “estigmatiza” como criminoso. Assim, o
“quid específico” do processo penal não reside meramente no facto de um agente ser ou
não considerado culpado de um crime; reside, antes, no facto de a condenação conter
uma “infâmia” (uma censura comunitária) sobre o agente – uma censura da comunidade
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(proferida por um seu órgão democraticamente legitimado e dela representante) a um
seu membro.
Ora, este princípio da publicidade da audiência de julgamento é assim um princípio de
legitimação da função jurisdicional que impõe que outros princípios – com conteúdo
autónomos – lhe estejam associados: a imediação, a oralidade etc.
Embora muito esquecida, na legislação, na doutrina e na prática esta “simbologia” nunca deixou de acompanhar o processo penal, em especial os de mais forte e perene tradição democrática e liberal. De qualquer modo, o nosso CPP contém esta “exortação censuratória”, no ar. 375º, nº 2, embora por forma mitigada (mas que não se confunde com a pena).“A Administração da Justiça em nome do povo” impõe diversos deveres aos Tribunais e aos que neles exercem as suas funções, deveres que nem sempre são respeitados, mesmo legalmente.Infelizmente, a tendência mais recente é a de transformar o processo penal numa espécie de processo “civil/privado” ou de processo cuja discussão interessa apenas às partes (e por isso não um processo de autoridade, mas quase de arbitragem). Basta, para fazer este confronto, referir que a maioria dos processos penais de outras ordens jurídicas, pertencentes à mesma “cultura jurídico civilizacional” que a nossa, impõem a presença do arguido na audiência de julgamento, têm regras próprias quanto às audiências de recursos ou mesmo regras de reforço da legitimidade democrática dos tribunais.Um dos aspetos que imediatamente se discute no âmbito da legitimação da função jurisdicional é a denominada participação dos particulares na Administração da Justiça, normalmente designados por tribunais de “júri” ou então tribunais de “composição mista”. Não sendo a existência de tribunais mistos ( júri, ou misto de togados/leigos) uma exigência necessária quanto à própria legitimidade democrática dos tribunais, não menos verdade é que estes, quaisquer que eles sejam, devem obedecer, na sua atuação, aos mesmos pressupostos de legitimação daqueles; isto no sentido de que, mesmo que quando compostos apenas por juízes profissionais (e não leigos), a representação e a exteriorização da Administração da Justiça Penal devem ser feitas como se o fossem para “leigos”.De resto – e por fim – uma tal conceção impõe que uma condenação seja realizada, em regra, em confronto, face a face, com o arguido. Por isso mesmo, de um ponto de vista de legitimidade, é evidente que os nossos Tribunais de recurso continuam a falecer de qualquer legitimidade.
§ 36 Daí que constitua, necessariamente, uma quebra ou uma “afetação” da legitimação
democrática do exercício da função jurisdicional, o julgamento com uma audiência não
pública, a não publicitação da decisão; como, consequentemente, a publicitação de uma
sentença, cujos fundamentos de solução nunca foram submetidos à discussão em
público ou publicitados (a menos que excecional e fundadamente se possa restringir tal
princípio) também é uma quebra dessa legitimidade.
De resto não se deverá a um qualquer acaso a constatação do facto de, nas soluções da CRP, só dois órgãos de soberania terem por característica legitimadora a “publicidade” da discussão e da decisão – por um lado, o Parlamento, por outro, os Tribunais. Qualquer outro órgão (mesmo de soberania) não está subordinado a, ou predeterminado por, este princípio constitucional.Naturalmente, esta argumentação fundamentadora da legitimidade democrática não basta, por si só, para justificar todas as exigências do modo de atuação dos tribunais. Todavia, enquanto ao Parlamento cabe a tarefa de legislar, aos Tribunais cabe sobretudo resolver controvérsias concretas sobre a aplicação da lei. Daí que existam regras, democraticamente definidas, sobre como um conflito deve ser resolvido e regras quanto às “partes” que estão em conflito. Mas um qualquer conflito entre Estado e cidadão nunca será
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comunitariamente indiferente, sobretudo quando este possa culminar com a possibilidade sancionatória, consistente na privação da liberdade.O conceito de “conflito” também não é “asséptico”. De facto, a perspetiva de conflito depende, desde logo, da própria “ideologia de processo”. Com efeito, por um lado, poder-se-ia admitir, no processo penal, que só deveria existir conflito, quando o arguido se predispusesse a discutir a valia da acusação; ou, por outro lado, também se poderia admitir que o conflito deveria ser irremissível, no sentido de que, antes de haver julgamento, Estado e cidadão poderiam negociar entre si, e só face ao falhanço na negociação, é que se abriria a fase de julgamento.Como veremos, existem também princípios constitucionais que especificamente determinam, ou limitam, o âmbito do consenso entre Estado e cidadão. De facto, e sobretudo face à gravidade (hoje em dia, real ou suposta) da violação das normas comunitárias que está envolvida na demonstração do crime ou, então, face à gravidade das sanções que podem ser aplicadas, casos há em que a intervenção material da função de julgar surge como constitucionalmente imposta.Não obstante, seria impensável propugnar, para os dias de hoje, um qualquer sistema processual que apontasse, como solução legislativa irrestrita, para a necessidade sistemática de fazer julgar, segundo formas solenes, todos os crimes que devessem merecer o julgamento (ou seja, aqueles em que há acusação). Com efeito nenhum sistema processual “civilizado” deixa atualmente de prever mecanismos “deflativos” da audiência de julgamento; a audiência de julgamento deveria sempre ser preservada e reservada para casos que, constitucional e legalmente, merecem indefetivelmente um julgamento. Naturalmente que as estratégias “deflativas” podem assumir diversas variáveis: a) por um lado, seguindo mecanismos de diversão, ou seja, resolução de casos penais por via informal, sem a necessidade de intervenção de um tribunal; b) por outro, conferindo um maior grau de autonomia ao arguido na determinação sobre a decisão de dever ser realizada a audiência de julgamento, em face da acusação que lhe foi movida. Estas soluções, que de um ponto de vista legislativo podem assumir formas diversas, pressupõem, todavia, sempre que a decisão do arguido seja considerada livre e esclarecida, não possa ser entendida como uma renúncia antecipada a direitos fundamentais e, por outro, têm necessariamente como condição a ideia de que qualquer decisão que precluda, p. ex,. o recurso à jurisdição, não pode conter ou desenvolver os efeitos que em regra estão associados a uma decisão (sentença), que corresponda material e plenamente aos pressupostos de atuação e decisão de um órgão com legitimidade democrática (isto é ao exercício de função materialmente jurisdicional).
§ 37 De qualquer modo, a existência desta “duas” fontes de legitimidade democrática –
a parlamentar e a jurisdicional, tradução do mesmo modo do princípio de separação de
poderes – pareceria não suscitar graves problemas, pois que, seguindo uma lógica
formal, a regra seria “o parlamento define a lei” > “o tribunal aplica a lei, definida pelo
parlamento”. Esta lógica pode seguramente ser aceitável – em abstrato – mas é
altamente errónea, a vários níveis: desde logo, porque uma coisa é o programa da lei –
a law in book - outra coisa é a law in action – esta cisão, que vale para qualquer ramo
de direito, assume um relevo primordial para o sistema penal, dada a estrita ligação e
vinculação entre processo e direito penal. Com efeito, podem existir leis penais
“inexequíveis”, ou seja de tal modo falhas de sentido que não sejam suscetíveis de
aplicação prática; além disso, e este é um aspeto que deve merecer sempre reflexão, não
se pode esquecer que se o processo e a jurisdição penal visam aplicar o direito penal, a
especial ressonância valorativa, que se encontra numa decisão judicial penal, decorre,
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ou é uma derivação dos próprios fundamentos e finalidades do direito penal, enquanto
ramo do direito que visa tutelar valores fundamentais para a comunidade. Neste sentido,
qualquer decisão judicial, e com particular relevo para a decisão condenatória e que
aplique a pena, tem de ser tradução ao nível concreto do consenso comunitário –
consenso que encontra representação num órgão especialmente vocacionado, ou
legalmente habilitado para tal efeito, ao nível de legitimação concreta - demonstrando a
gravidade do valor comunitário que foi violado por aquele agente/arguido. Ora, o
problema reside em que se, nos dias de hoje, há valores (penais) que necessariamente
podem ser considerados “consensuais”, existem também leis penais que podem ser
consideradas “discutíveis”, valoradas do ponto de vista da sua relevância comunitária.
Neste sentido, a pouca aplicação prática de certo tipo de leis penais derivará, por vezes,
do facto de tais leis não corresponderem aos pressupostos ou, então, aos conteúdos do
consenso mínimo comunitário necessário para a sua elaboração.
Daí que exista uma “perigosa tendência” para se defender os chamados tribunais penais
com competência “especializada”, em ordem (se bem que não exclusiva ou
primordialmente por esta razão) a facilitar o julgamento de casos menos compreensíveis
(nas diversas aceções que esta palavra pode comportar) para o “público/comunidade”.
CAPÍTULO II
O DIREITO PROCESSUAL PENAL
E O SISTEMA PENAL
II. 1 - A RELAÇÃO DE COMPLEMENTARIDADE ENTRE DIREITO E PROCESSO
PENAL
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§ 38 Em confronto com outros “ramos do direito”, a relação que intercede entre direito
(material) e processo é particularmente forte (melhor dizendo, de incindibilidade) no
âmbito do sistema jurídico-penal. Desde logo, e ao contrário do que sucede no direito
civil e no direito administrativo (e, dentro deste, mais precisamente no âmbito
sancionatório público – incluindo aquele de caráter punitivo, cujo exemplo/paradigma
constituirá o direito de mera ordenação social), não existe a possibilidade de
“aplicação/realização” do direito (penal) “fora” ou “sem” Jurisdição.
Assim, para o âmbito do direito e do processo penal vale o princípio nullum crimen,
nulla poena sine iudicium (sine processu). Princípio, pois, que impõe que a relação
funcional entre “direito” e “processo” seja particularmente “incisiva” no âmbito penal.
Esta consequência, ou esta implicação, deriva fundamentalmente do facto de o direito
penal, enquanto direito de “conflito”, carecer do processo (maxime, da jurisdição), para
se tornar efetivo – isto é, para que o conflito (comprovada a sua existência), que o
direito penal pretende regular, se veja resolvido seja pela negativa, seja pela positiva
(neste último caso por via de aplicação dos instrumentos próprios do direito penal – no
fundo e em última instância pela aplicação de pena privativa de liberdade).
A título de esclarecimento – e, em alguma maneira, de aprofundamento de alguns
aspetos referidos já no 1º capítulo –, esta particular “ressonância” justifica-se
fundamentalmente pelo caráter conflitual, que, ao menos presumidamente, está
subjacente à aplicação (prática) do Direito Penal. O caráter conflitual não é um
elemento exclusivo, uma propriedade, do direito (e processo) penal, antes é um
pressuposto que serve de justificação para a previsão de um qualquer ramo do direito e
respetivo processo. O que é exclusivo, específico, do direito e do processo penal é, sim,
a presunção de conflitualidade (constitucionalmente consagrada) e, sobretudo, as
consequências que podem decorrer da superação dessa conflitualidade e que à norma
penal estão associadas.
Neste sentido, existe, como se costuma dizer e é pacificamente reconhecido, uma
relação de complementaridade funcional entre o direito e o processo penal. De facto, o
direito penal constituirá o tema, por um lado, de investigação/acusação, mas, por outro e
por modo mais impregnante, o tema da discussão em audiência de julgamento no
processo penal. Ora, esta relação de complementaridade funcional implicará a existência
de uma certa “sintonia” entre Direito e Processo Penal.
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Por isso, tanto pode ser justificada, ou compreensível, a necessidade de intervir no
direito processual em ordem a melhorar-se a aplicação efetiva do direito penal, como
inversamente e por força do deficit de execução prática (i. e, ao nível processual) poderá
ser necessário intervir no direito penal, em especial no âmbito da redação dos tipos
legais de crime, para que estes últimos possam ser objeto de execução prática (ou,
então, esta seja mais eficiente).
Se fosse possível estabelecer, hoje em dia, uma qualquer relação de preponderância em
termos funcionais, poderíamos dizer que esta cabe melhor ao processo penal e não tanto
à dogmática penal. Preponderância, naturalmente a ser interpretada no sentido de que o
predomínio dos fundamentos para modificações legislativas ou dos modos de legislar se
encontra sobretudo nas dificuldades de aplicação e execução práticas.
O facto de se conceder esta posição de realce, ou de preponderância, em nada deveria contender com o
reconhecimento da importância decisiva que a dogmática, mas fundamentalmente a política criminal,
continua a ter em termos de eficiência e de justeza do sistema penal. De facto, haverá limites à
“imaginação legislativa”, limites decorrentes de garantias substantivas e processuais, constitucionalmente
consagradas.
Todavia, hoje em dia, os principais desideratos que se pretendem conseguir com a política criminal
deixaram se der matéria de dogmática ou de legislação para serem temas de processo penal concreto.
Disso é exemplo a denominada Lei –Quadro da Política Criminal (e consequentes “Leis bianuais sobre
objetivos da Política-Criminal”).
§ 39 Com efeito, historicamente encontram-se movimentos que pretenderam modificar
o processo penal (rectius, a posição e a função do juiz/tribunal, em processo penal) para
fazer valer ponderações e conceções, ideologicamente marcadas, de direito penal – em
especial, em função de motivações de ideologias de perigosidade ou de determinadas
conceções de culpa – que, num âmbito mais amplo, implicariam uma diminuição de
autonomia e autorresponsabilidade do arguido; soluções hoje manifestamente não
pensáveis, face a um horizonte jurídico, no qual os valores e as garantias do processo
penal assumem alguma universalidade e por isso se transformam em verdadeiros limites
àquela ideologia.
Com a atual sedimentação, no âmbito do processo penal, de princípios e garantias de
caráter universal, parece mais claro que a predominância, no âmbito do sistema penal,
deve ser conferida ao processo penal. E esta preponderância deve ser tanto maior,
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quanto o facto de ser reconhecido existir o fenómeno atualmente designável de
“pulverização” do pensamento global, sistemático ou coerente, no âmbito da dogmática
penal; assim, o facto de a incriminação criminal ser pensada e fundamentada para a
criminalidade concreta (como é característico dos tempos modernos) ou ainda ser
consequência de uma visão mais problematizada, implicará que, ao invés do raciocínio,
quase subsuntivo, que faz o percurso “ (da teoria) do crime para o processo”, se dê o
fenómeno inverso do percorrer, argumentativo e fundamentante, do Processo para o
Código Penal.
§ 39 Para explicitar e melhor perceber em que medida é importante o processo penal
estar ou não em consonância com a dogmática penal vamos apresentar um conjunto de
de temas, nos quais se podem divisar elementos de “conflito” ou de influência
“recíproca” nesta consideração global.
a) Em primeiro lugar, cada vez mais a redação da incriminação/tipificação penal é
consequência de dificuldades, ou é legitimada pela antevisão de dificuldades, na
investigação e prossecução criminal, pelo que, frequentemente, se modifica a redação de
um tipo de crime – nomeadamente prescindindo de um ou outro elemento típico
expresso ou implícito, (em regra de mais difícil prova, como sucede, p. ex., na
argumentação sobre o crime de corrupção imprópria, quanto à ligação vantagem/ato-
omissão) – de modo a que a investigação possa ser mais facilmente realizada e o crime
possa, também mais facilmente, ser “demonstrado” em audiência de julgamento; isto é,
coloca-se a “cargo” do arguido um certo ónus (que não de prova, mas tão-só de
alegação; ou então o ónus de carrear/aduzir para o processo os argumentos que em
alguma medida lhe sejam mais favoráveis – obedecendo-se a uma lógica que tentaremos
explicitar mais adiante, em outro Capítulo). Esta “fenomenologia” tipificadora pode
suscitar dúvidas, logo quanto ao respeito dos princípios da dignidade e necessidade
penal, mas sobretudo quanto aos fundamentos do processo penal, pois tanto pode afetar
as regras do “justo/equitativo” processo, como, em última instância, colocar em causa a
garantia da presunção de inocência. Sem prejuízo de se vir a referir este tema – quando
nos dedicarmos aos princípios da prova -, existe o risco de, pela simplificação das
incriminações, não sobrar “tema” para discussão (exceto aquele que se refira à
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legitimidade para a obtenção da prova, tema que se torna assim, para este tipo de crime,
no único modo e tópico de defesa ou, se se quiser, de discussão em audiência de
julgamento). Por outro lado, muitas vezes a modificação do tipo legal de crime pode
implicar aceitar uma certa regra da experiência (uma certa presunção, assente ou
fundada na experiência comum) – mas esta assumpção deve adequar-se necessariamente
às regras de processo equitativo/justo e às regras da lógica e da “natureza das coisas”.
Exemplos clássicos do que aqui se pretende afirmar, são:
aa) O crime de participação em rixa (art. 151º do CP)
Trata-se de um caso que suscita algumas dificuldades discursivas.
No crime de participação em rixa é frequentemente afirmado que nos defrontamos com um caso em que
as dificuldades de prova de um crime (no caso, o de homicídio) justificaram a criação deste autónomo
tipo legal de crime. Com efeito, a dificuldade de provar “quem” cometeu o crime – existindo um
resultado, no caso a morte de uma pessoa – levou à criação do tipo legal de crime, por forma a
“ultrapassar” aquelas dificuldades. Nesse sentido, pode dizer-se que a criação deste tipo legal constitui
uma “violação da presunção de inocência”. De facto, não é bem assim; o que justifica a incriminação é,
para além das dificuldades de prova, o reconhecimento de que há, pode haver, graves riscos que servirão
de o fundamento para a incriminação por criação ilícita da situação de risco. Todavia, e tendo em atenção
a ratio da norma, nunca se poderão considerar como protegidas pelo âmbito da norma aquelas condutas
que visam diminuir a probabilidade de resultados na situação de risco, ou aquelas em que um agente atua
de acordo com um dever ou para salvaguardar outros valores.
bb) Os tipos legais referentes à difamação são também exemplos, porventura os mais antigos e clássicos,
da importância e relevância do processo na tipificação penal.
Assim, o crime de difamação encontra-se previsto no art. 180º do CP.
No seu nº 2 afirma-se que a conduta não é punível quando a) a imputação for feita para realizar interesses
legítimos e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa
fé, a reputar como verdadeira.
De um ponto de vista processual, e em especial no que toca a al. b) deste artigo - que é aquela que nos
particularmente interessa, por referir que o arguido tem de “provar” –, poderia dizer-se que existe, de um
ponto de vista de alegação, ou, se se quiser, do dever de trazer ao processo os argumentos pertinentes,
uma espécie de “inversão” do ónus da prova (o agente “provar”). Não é exata esta conclusão: de facto, o
que o tipo legal de crime permite é que, por razões de justiça e de equidade, fique a cargo do arguido –
depois de provada pela acusação a tipicidade da difamação nos exatos termos do art. 180º - a obrigação de
trazer ao processo os elementos que demonstram a “não punibilidade”. Ora, após “cumprimento” deste
dever, se o tribunal ficar em dúvida razoável, quanto à seriedade ou à boa-fé da veracidade do agente,
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deve absolvê-lo – como se vê, a redação típica da “não punibilidade” assenta, já ao nível de formulação
da própria lei penal, no critério desta dúvida (razoável). Observe-se que esta ideia-critério poderá já valer
na própria fase de inquérito (a dúvida ou a certeza pode já ser “partilhada” pelo MP, aquando do
momento de decidir do inquérito).
cc) Exemplo contrário de tipificação muito duvidosa, em termos de constitucionalidade (ou então de
eficácia real), é aquela que podemos entrever a propósito do crime de recetação “presumida” previsto no
art. 231º, nº 2 do CP, a propósito da recetação por “suspeita”. Com efeito, lido de uma assentada, o tipo
legal, se impuser à acusação um dever de trazer ao processo todos aqueles elementos necessários, torna-se
num crime “improvável” (a menos que nele se encontrem várias presunções, todavia sem base
consistente).
dd) Além disso, cabem aqui os casos designados pela doutrina italiana de “perigo indireto”, em que as
condutas previstas no tipo de crime fazem presumir a prática de outras condutas.
b) São, pois, casos que não se configuram como qualquer singularidade; antes,
constituem, hoje em dia, uma forma cada vez mais frequente de tipificação (que pode,
de facto e em última análise, colocar em causa a garantia da presunção de inocência).
Trata-se, pois, de situações em que a “prática” de uma determinada conduta faz
presumir ou supõe mesmo a implicação de um determinado risco e por isso justificará o
colocar-se a “cargo” do arguido a demonstração de que cumpriu algum dever ou algum
cuidado, que, se comprovado, “negaria” o risco. No fundo, do que se trata é, em alguma
medida, de se proceder a uma distribuição “equitativa” da argumentação em processo
penal (mas, caberá sempre, e sem qualquer limitação, à esfera da acusação demonstrar a
existência de um certo e determinado perigo), sem que obviamente tal signifique
necessariamente uma inversão do ónus da prova em sentido “material”. O que em caso
algum pode existir em termos condenatórios (de resto, para qualquer ramo do direito
sancionatório público) é presunções inelidiveis – qualquer presunção assenta numa
regra de experiência, que tem de ser justamente demonstrada no caso concreto.
Sem prejuízo de se voltar ao tema, em momento e local próprios, há, assim, duas coisas
a discutir, por forma autónoma: uma, o conceito de processo equitativo (que tem a ver,
p. ex. com o necessário “balanço” ou distribuição de papéis na discussão, tendo sempre
por ponto de partida a ideia de que o peso maior, em termos de argumentação e de
demonstração, cabe “naturalmente” à “esfera” da acusação); outra, a inversão do ónus
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da prova (em sentido material). E naturalmente que a inversão do ónus é, no processo
sancionatório punitivo (e não apenas no penal), sempre uma regra que vigora em “favor
do arguido”.
Assim, pode, por dificuldades de prova, “aligeirar-se” a descrição de um tipo legal de
crime – passando-o, p. ex., de perigo concreto para perigo abstrato. Mas isto não pode
em qualquer caso significar uma inversão nas regras de juízo em termos probatórios e
não pode nunca eximir a acusação do respeito pelo dever de argumentação e
demonstração – dever esse, o que cabe à acusação, que tem de ser sempre o mais
relevante no âmbito do processo.
Estas ideias serão, repetimos, melhor precisadas quando estudarmos alguns institutos,
garantias e princípios do processo penal, em especial o da presunção de inocência ou da
prova.
b) Outra (possível) alteração é aquela que pode ser induzida por via inversa: aquela
de que, para se investigar um determinado crime, se tenha de alterar o CPP em especial
no âmbito da recolha da prova. Ou então, por força de institutos ou garantias
processuais constitucionais, não se deva (ou, inversamente, deva-se) incriminar
determinadas condutas.
Um exemplo desta “conexão” pode encontrar-se no seguinte caso, atinente à descriminalização do
consumo de drogas (ou, em outra expressão, à sua “descriminação”). Colocou-se a questão de saber se a
contraordenação por consumo de droga deveria prever e sancionar apenas o consumo público ou também
o consumo privado. Ora, por força da descriminalização operada, é evidente que o consumo privado
(nomeadamente na própria habitação ou em espaços reservados) deixou de ser prosseguível, logo como
contraordenação. Pela simples razão de que, nas contraordenações, não é possível, para efeitos de
obtenção de prova, a realização de buscas em locais não livremente acessíveis ao público e, menos ainda,
no domicilio das pessoas, exceto naqueles casos pouco prováveis de os “investigados” consentirem.
Logo, face às garantias da Constituição e à ausência de uma lei expressa que o legitime, não é possível
reprimir a prática destas contraordenações em ambientes “fechados”.
Observe-se, assim, que muitas das garantias processuais constitucionais são de facto garantias
substantivas, que deveriam intervir como elemento de ponderação nas decisões de incriminação (a
denominada garantia da privacy deveria servir de limite à intervenção do Estado, em termos de
incriminação penal).
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§ 40 Ainda dentro da demonstração de nexo entre direito e processo penal, assume
particular relevância a referência à sistemática dos elementos essenciais, estruturais, do
Direito Penal; tanto na denominada “doutrina da infração criminal” – assumindo
particular relevo a conceção de culpa – como na teoria da determinação e escolha da
pena.
Trata-se de temas que não têm merecido a devida reflexão, tendo em consideração esta
visão mais global, e que, por isso, se podem transformar num “escolho” a uma
edificação, sistemática e coerente, do sistema global penal.
Nestes temas podemos diagnosticar, no nosso sistema jurídico, algumas divergências
entre o elemento “doutrinal” (e, muitas vezes, legal-normativo) e a realidade, ou seja, o
processo ou a prática judiciária. Para esse efeito, contribui, em muito, o facto de a
maioria das soluções legais (normativas) pressupor uma determinada forma ou modelo
de Administração da Justiça (e por isso, uma coerência global no sistema de Justiça)
que, no caso português, dificilmente se encontra concretizado. Assim, se o Código Penal
(ou mais corretamente a dogmática penal) parte de uma certa visão, de um certo
modelo, de julgador ou de um determinado modo/modelo decisório, que não encontra
tradução no (concreto e efetivo) processo penal, é evidente que o Código Penal está
condenado a ser “traído” na sua aplicação prática.
Faremos agora uma breve enunciação de temas em que o sistema penal (nacional), no
seu conjunto, manifesta alguma “irritação”, por força de não se ter tomado consciência,
na elaboração doutrinal e legislativa, da especial importância do processo penal na
aplicação efetiva do direito penal (ou, então e mais corretamente, por não se ter
procedido a uma efetiva “refundação” da Administração da Justiça Penal, como era
exigido e estava pressuposto na versão original do CPP; tarefa porém que nunca foi
levada a cabo).
a) A primeira “irritação” refere-se à doutrina da infração criminal.
Como se sabe, a doutrina da infração criminal é uma matéria “altamente dogmatizada”.
No fundo, quer-se com ela oferecer uma forma, um método, racional de argumentação e
de apoio à justa decisão. Assim, a tripartição entre tipo, ilicitude e culpa visa constituir
um “iter” que o juiz deve prosseguir até à resolução definitiva da questão da
culpabilidade. Neste sentido, a doutrina da infração criminal tem de ser coerente e as
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suas categorias têm de estar devidamente solidificadas – de modo, pois, a que se
verifique o ne bis in idem: no sentido de proibição de dupla valoração ou de valoração
contraditória (isto é, uma vez afirmada a tipicidade, decide-se a ilicitude; só depois, se
afirmada esta última, se discute a culpa, não havendo, assim, possibilidade de regresso à
“questão anterior” – a denominada “proibição de retrocesso” ao “estado-iter” anterior).
Porém, esta ideia de critério de apoio à “justa decisão” não pode prescindir do modo
como se obtém, processual e argumentativamente, a justa e correta decisão. Como
exemplarmente demonstra a doutrina anglo-saxónica (e, de resto, a doutrina de
processos acusatórios de “adversários”), a doutrina da infração criminal é sobretudo
relevante para efeito de os sujeitos processuais/partes saberem o que lhes compete trazer
ao processo (quais os temas que lhes cumpre argumentar, ou qual o seu papel na
discussão). Num “sistema de adversários” (sobre esta qualificação, veja-se o que adiante
diremos a propósito de modelos de processo acusatórios) os elementos do tipo
(objetivos e subjetivos) incluindo a “negativização” da existência dos elementos
negativos do tipo são temas da competência de argumentação e de demonstração da
acusação. À defesa caberá trazer ao processo os elementos que lhe sejam favoráveis –
nomeadamente em matéria de exclusão de ilicitude ou de culpa. Mas desta “divisão na
transmissão de conhecimentos/argumentação” não decorre necessariamente (melhor:
nunca) um qualquer do ónus da prova (no sentido próprio do termo).
O sistema adversary não será seguramente o único exemplo que reflete esta ideia.
Com efeito, em sistemas continentais, de tradição mais liberal de processo penal (p. ex. aqueles que têm
tribunais de júri em sentido próprio), também se faz apelo à conceção das causas de justificação ou de
desculpação como “exceções” (processuais). Assim, a teoria do tipo indiciador, que encontrámos na
história do pensamento penal a propósito da doutrina da infração criminal, é uma segura consagração
deste “pensamento” mais global.
Desta função – de ordem argumentativo e decisório – deriva a conclusão de que a
doutrina da infração criminal é sobretudo importante como indicadora/indiciadora da
forma como se deve distribuir o trabalho na discussão e argumentação jurídico-
processual. Daí pois que, no espaço cultural anglo-saxónico, a doutrina da infração
criminal seja menos dogmatizada e mais flexível na sua aplicação concreta (desde logo,
pelo facto de nem sempre as decisões judiciais serem motiváveis). Note-se que dizer
que se trata de temas que os sujeitos têm de trazer ao processo (e, portanto, uma espécie
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de “ónus de alegação”) nada tem a ver com o ónus da prova, que é um critério de
decisão, rectius de juízo jurisdicional. Conclusivamente, também se pode conceber uma
doutrina da infração criminal em função de quem deve alegar determinada questão –
não se violando por qualquer modo o ónus da prova, ou a presunção de inocência – e
consequentemente na decisão que o Tribunal deve tomar.
Por isso mesmo, em regra um manual de direito criminal proveniente do espaço cultural anglo-saxónico
procede, antes de entrar na matéria dogmática, a uma breve apresentação das regras processuais, do tipo
de julgamento, etc.
Observe-se, de resto, que nesta conceção das coisas, mesmo a própria tipificação penal assume relevância
para efeitos de celeridade processual – saber quais os tipos de crime suscetíveis de “speedy trial” depende
em alguma medida da tipificação criminal que lhes esteja subjacente.
Seria interessante fazer o teste para o direito nacional, em ordem a saber quais os crimes que seriam mais
suscetíveis de julgamento em processo sumário e aqueles que deveriam ser processados por via do
processo sumaríssimo. Porventura, o teste falharia ou seria inútil, por ausência de qualquer “coerência
sistemática”, mesmo quando se analise as Leis de Política Criminal.
Observe-se que o nosso CPP não deixa, em sede de regulamentação sobre a deliberação
do Tribunal, de apresentar também uma determinada conceção de doutrina de infração
criminal – cf., assim, os arts. 368º e 369º do CPP referentes à deliberação, distinguindo
entre “declaração da culpabilidade” e “questão da determinação da sanção” e, dentro da
1ª questão, faz referência ao modo como as questões devem ser decididas – distinção e
ordenação que se repercutirá na sentença e sua fundamentação. Veja-se, também e do
mesmo modo, a “ordem de deliberação” e ordem de decisão dos respetivos itens
decisórios”, nomeadamente, as diversas alíneas do nº 2 deste artigo que também estão
sistematizadas segundo uma lógica de ordem sequencial.
Sem prejuízo de se voltar a este tema, esta referência não omite que o modelo de processo penal nacional
não é de cultural “adversarial”. Todavia, a lógica acabada de referir também existe no âmbito processual;
a grande diferença reside sobretudo na “ação penal”, como adiante veremos ao analisarmos a fase de
inquérito.
b) Um outro exemplo refere-se à matéria da determinação da medida da pena e à
conceção de culpa, que está subjacente às soluções do processo penal. Com efeito,
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consoante a conceção de culpa que se propugne, assim a posição do arguido em
audiência de julgamento deverá ser diferenciada.
Um processo penal assente num verdadeiro princípio de presunção de inocência tem
obrigatoriamente por ponto de partida uma conceção de culpa referida ao facto. Com
efeito, tal tipo de processo pressupõe, na “lógica natural das coisas”, que a prova do
crime (tipo de ilícito) se realize, primariamente, quanto ao facto cometido, em completa
independência e abstração das qualidades pessoais do arguido. De facto, o princípio de
presunção não é somente um problema de prova; é, do mesmo modo, um problema de
tratamento do arguido. Por isso mesmo, é que, em audiência de julgamento – mesmo
relativamente àquelas ordens jurídicas que não se reconhecem num sistema de
separação formal entre declaração de culpabilidade (conviction) e determinação da pena
(sentencing) –, haverá a necessidade de se proceder à distinção entre a matéria que se
refere ao “facto”/crime e a matéria que se refere ao caráter, personalidade, do agente –
matéria esta que só interessa, por via de regra, para a pena, se, e apenas se, o agente for
considerado culpado (trial by the fact, not trial by the character).
Exemplo desta lógica seria o que está estabelecido no nosso CPP – caso fosse levado a
sério e devidamente interpretado (que obviamente não é, nem nunca o foi) – não só a
propósito da prova testemunhal (art. 128º, nº 2), como também da deliberação da
sentença, em termos de reabertura da audiência para determinação da sanção (art. 371º).
Um processo penal, que tenha como eixo primordial o princípio de presunção de inocência, só pode
inserir-se num sistema penal que se baseie numa ideia de culpa referida ao facto: isto é, a demonstração
da prática do facto independentemente ou sem a consideração das qualidades pessoais (em especial, os
seus antecedentes criminais) do arguido. Com efeito, a consideração e valoração desses aspetos – como
de resto, expressamente o refere o art. 128º do CPP e se deduz ainda em matéria de regulamentação da
deliberação da sentença – só deveria intervir ou para efeitos de culpa (nomeadamente de gravidade de
culpa) ou então para efeito de determinação da medida da pena. Seria também neste exato sentido, que
deveria ser interpretado o art. 371º sobre reabertura da audiência para determinação da sanção. Como é
evidente um sistema que, por qualquer modo, queira fazer esta distinção tem naturalmente que superar a
errónea conceção, entendida de um ponto de vista tradicional, da distinção entre questão de facto e
questão de direito.
c) Também a determinação da medida da pena depende, em muito, da forma como
se concebe o modelo de decisão e de juízo sobre estas várias questões.
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Assim, um modelo decisório que faça a distinção entre “matéria de facto” e “matéria de
direito” em termos “radicais” (e, por isso, mesmo falsos) acaba por ter uma conceção de
pena e de culpa algo “objectivizada”. Ao contrário, um modelo decisório que assenta
numa conceção de Tribunal/juiz que opera a partir de uma ideia global dos fatores de
avaliação da pena, após a prova da culpabilidade, admite uma outra formulação ou um
outro pensamento, obedecendo a critérios ou linhas diretivas (que conhecemos da
doutrina portuguesa), segundo as quais o tribunal fundamenta, numa visão global de
facto e de direito, a sua decisão – e, neste sentido, a culpa corresponde também a um
juízo pessoal, mas do mesmo modo global, por parte do Tribunal, concretizado e
fundamentado nos elementos preponderantes. Assim, não se pode – sob pena de
contradição – ser defensor de um princípio de culpa (material) ou então de uma
determinada conceção de culpa, pessoal e subjetiva, e simultaneamente defender, para
esse mesmo sistema processual, a distinção entre questão de facto e questão de direito
como critério decisório (a distinção radical entre questão de facto e questão de direito no
âmbito da determinação da sanção só pode ser conseguida com a objectivização da
própria culpa, quando não mesmo com a anulação da avaliação da personalidade do
arguido).
Um exemplo evidente de descoordenação entre direito e processo penal é aquele que se refere à pena de
multa, em especial quanto à limitação imposta pela proibição da reformatio in peius. De facto, esta
referência limitativa – que encontramos no art. 409º do CPP – só se justifica quando o Tribunal de recurso
julgue em audiência e com a presença do arguido (ou então quando se verifique reenvio para novo
julgamento). Ora, conhecendo as modificações introduzidas em matéria de recursos é evidente que se
trata de norma hoje em dia com pouco sentido.
Para além disso, o modo de determinação da pena de multa (o denominado sistema
“dias-multa”) também não é adequado à decisão que parta da distinção entre questão de
facto e questão de direito.
d) Por fim, quer a determinação da pena quer a própria conceção de culpa (pelo
facto) dependem naturalmente da regulamentação sobre presença ou não do arguido em
audiência de julgamento – aspeto que não merecerá, assim o supomos, qualquer
contestação. De resto, julgamento na ausência numa estrutura processual que admite
que um tribunal penal aplique penas ou, ao invés, medidas de segurança é solução
inconcebível, de um ponto de vista civilizacional, mas também de lógica (não só
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jurídica, mas já de linguagem humana). Como, do mesmo modo, se o processo penal
quer realizar em alguma medida, na aplicação da pena, uma ideia de solidariedade ou
então de socialização – seja para efeito de correta escolha de espécie ou então de
medida de pena – tal desiderato só é exequível com um princípio de obrigatoriedade de
presença do arguido.
Isto sem esquecer a perda de legitimidade que a consagração do julgamento na ausência pode importar
para o próprio exercício da função jurisdicional.
§ 41 De qualquer modo, a relação entre direito penal e direito processual penal nunca,
ou então só muito dificilmente, será integralmente pacífica e estará sempre
condicionada pelos conflitos tão necessários, quanto inevitáveis, entre a law in book e a
law in action. Não será, todavia, arriscado afirmar que, no direito português, existe uma
clara e evidente “quebra” e um “certo corte” entre o programa previsto no Código Penal
e os resultados finais que decorrem do processo e da decisão judicial; cisão que se
justifica pelo facto de o (modelo de) Tribunal e o processo que esteve subjacente à
mente do legislador do CP (em 1982) não ser aquele que vigora na prática da nossa
ordem jurídica. Com efeito, prescindindo-se da visão processual e dinâmica de
aplicação e realização do direito penal, a dogmática falha completamente a sua principal
vocação: contribuir para a justa decisão do caso concreto, antes se transformar num
Diktat de gabinete completamente alheio à realidade. Mas é evidente que, ao invés,
também o processo penal não pode esquecer o direito penal e as suas regras e princípios
mais elementares sob pena de transformar-se num verdadeiro processo do terror e da
bagatela penal sem qualquer juízo de ponderação e proporcionalidade, com
consequências perversas – como os tempos mais recentes o têm demonstrado, já para a
própria eficiência da Justiça.
II. 2ª - PROCESSO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL
§ 42 Uma outra área, em que o processo penal vai assumindo papel de maior
predominância, é aquela que lhe cabe no âmbito da execução da política criminal, e
portanto enquanto instrumento de realização das suas primordiais finalidades. Não se
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esquece que a realização dos princípios gerais de política criminal se deveria efetivar já
no momento primário da decisão de criminalizar ou de não criminalizar. Mas é evidente
que a política criminal tem também de ser analisada de um ponto de vista dinâmico ou
de realização prática. Por isso mesmo, torna-se cada vez mais imperiosa a necessidade
de “inventar” mecanismos processuais que realizem, também eles, finalidades da
política criminal, enquadrando-se naquele discurso descriminalizador ou
despenalizador.
Com efeito, seja porque – não obstante o discurso descriminalizador ou do reiterado
reconhecimento e consagração dos princípios gerais de política criminal – se continua a
“criminalizar” demais, seja porque, muitas vezes, não há de facto alternativa à
criminalização ou, então e por fim, porque há um aumento significativo da
criminalidade (legal e real), nenhuma ordem jurídica deixa de prever mecanismos
processuais, com um pendor de realismo e de pragmatismo, que visam obter um
resultado, que se possa dizer coincidente (embora obtido por outra via) com os fins
sancionatórios do direito penal, ou seja punitivos, sem serem criminalizadores, em
sentido próprio.
Vai-se, pois, tendo consciência da necessidade de estabelecer estratégias processuais, de
caráter político-criminal, que visam sobretudo “deflacionar” a fase de julgamento, e
consequentemente obviar (ou quebrar o dogma de) a ideia de que a todo o crime
cometido e provado (ou suscetível de ser provado) tem de corresponder à afirmação-
condenação de um agente como “criminoso” ou a aplicação de uma pena “legal”; daí o
reconhecimento de “alternativas” na resolução de conflitos (penais).
Naturalmente que estes mecanismos variam de ordem jurídica para ordem jurídica,
dependendo, em muito, da Constituição ou da filosofia constitucional de cada Estado,
ou seja, consoante o Estado tenha, p. ex., um pendor mais liberal ou mais social.
§ 43 Pode dizer-se que há duas estratégias – vista esta temática numa perspetiva muito
abstrata – que têm normalmente por base uma posição voluntária (e portanto de
consentimento) da parte do arguido e que tanto podem consistir na procura de soluções
de “diversão” – ou seja de resolução do conflito penal fora da audiência de julgamento,
com a aceitação voluntária de determinadas consequências – ou então na procura de
soluções, nas quais o arguido, renunciando ao contraditório ou à audiência de
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julgamento, logre “vantagens punitivas” (redução em 1/3 da pena a aplicar ou aplicada
ou ao nível de custas, etc.) ou então punições não totalmente correspondentes ao
número de efetivos crimes cometidos.
Trata-se de duas soluções possíveis (repetimos de um ponto de vista meramente abstrato e de
enquadramento geral), mas que não se reconduzem exatamente ao mesmo pensamento fundamentador.
De resto, e consoante as especialidades da ordem jurídica, pode dar-se prevalência a uma ou outra opção,
sem se negar, de todo, a aplicação da outra.
Assim, típica dos mecanismos de descriminalização é a figura da “diversão”, ou seja a possibilidade de se
resolver o “conflito penal” sem que este seja submetido a julgamento, por forma sobretudo consensual ou
então por “descriminalização” por ato decisório concreto (não necessariamente judicial).
Típicos da outra conotação de deflação processual são exatamente os casos de declarações de culpa ou de
renúncia ao julgamento – enquanto renúncia ao exercício do contraditório (ou então aos custos de uma
audiência) por parte do arguido – casos, em regra, subordinados à concessão de determinados “prémios”.
Em regra, em sistemas mais liberais – ou menos apegados à ideia de “igualdade” ou de “legalidade”
estrita, e por oposição mais defensores do valor da autodeterminação do cidadão – tratar-se-á de um
sistema de “negociação” livre; em outros sistemas, mais legalistas e preocupados com a uniformidade na
aplicação da lei, dar-se-á preferência em estabelecer regras mais claras (negociações tabeladas) – p. ex.,
determinando o tipo de crimes em geral e fixando um valor para a renúncia ao contraditório; ou, então,
seguindo um outro critério “premial” em termos de manipulação da pena (ou outra qualquer vantagem
para o condenado). Estes mecanismos não podem, todavia, operar cega ou automaticamente; com efeito,
terão sempre de existir critérios de maior ou menor rigor que delimitem a aplicabilidade dos institutos,
consoante o crime e sua gravidade, ou consoante a personalidade ou o “cadastro” do “criminoso”.
Estas duas tipologias – repetimos, apresentadas aqui de forma puramente arquetípica –
acabam por ter reflexo no direito processual penal português. Assim sucede na
denominada “suspensão provisória de processo” – a qual é exemplo da 1º hipótese e,
por isso, corresponde, no fundo, a um verdadeiro caso de descriminalização, pelo que
não se pode dizer que exista um crime (nem pena). Esta forma de “diversão” assume
hoje diversos matizes (desde logo, na sua ligação com a mediação penal), o que em
nada auxilia a procura duma unidade de sentido para a figura e suscitará, na sua
regulamentação concreta, algumas preocupações.
Enquanto forma, não de descriminalização em sentido específico ou próprio, mas
porventura mais corretamente definível como de “redução” de conflitualidade, surge,
como alternativa, o caso do processo sumaríssimo. Embora seja difícil encontrar um
particular fundamento ou uma ideia político-criminal para a sua criação (de facto, dizer-
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se que se visa uma solução de consenso, sem se encontrar uma qualquer vantagem
patente para o destinatário da sanção é algo de incompreensível ou pouco aceitável), ter-
se-á, entretanto e por fim transformado, com a Revisão de 2007, numa “estranhíssima”
forma de criação de um novo sistema penal (com sanções que têm um regime diferente
do previsto no CP) que mistura novas sanções com novas incriminações. Adiante
faremos uma análise mais pormenorizada destas soluções.
§ 44 De qualquer modo, como adiante voltaremos a referir, a dimensão político-criminal
a realizar no processo penal está incluída no âmbito das tarefas exclusivamente
atribuídas ao titular da ação penal, isto é ao Ministério Público. Assim, a execução da
política criminal é uma tarefa que constitucionalmente está deferida ao MP – cf., assim,
o art. 219 do CPP.
É por isso que cabe ao MP realizar em concreto alguns dos desideratos que o
Parlamento democrático define em termos de política criminal. Como veremos, é ao MP
que cabe fundamentalmente a tarefa de realizar em concreto estas opções político-
criminais, sobretudo nas decisões finais da fase de inquérito (sobre este tema, cf. a fase
de inquérito e a referência às Leis sobre Política Criminal).
§ 45 O nosso CPP sempre deixou transparecer, nas suas soluções, a necessidade de
realizar estas finalidades político-criminais.
Desde a sua entrada em vigor, pode dizer-se que o ideário político-criminal de
“diversão/desjudiciarização” plasmado no CPP se terá identificado com a denominada,
reconhece-se em termos porventura não muito corretos, criminalidade de média ou
pequena gravidade. Não se pode esquecer que o CP alinhava numa dupla coordenada de
eixos – como aliás (ainda hoje) consta na Exposição de Motivos do CPP, ao referir um
duplo eixo de coordenadas, entre criminalidade grave e criminalidade menos grave e
entre espaço de consenso e espaço de conflito.
Assim, esta distinção operava para determinados efeitos legais: p. ex., constituição de
tribunal competente, regime de confissão em audiência de julgamento, aplicação de
alternativas à acusação (suspensão provisória do processo) ou ainda para efeitos de
aplicação do processo sumaríssimo. Na versão original do CPP estes limites eram, em
regra, os limites máximos de pena até 3 anos (e para o processo sumaríssimo pena de
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multa até 6 meses); limites que eram naturalmente justificados pelas próprias conceções
do Código Penal, em termos de molduras penais (uma vez que, por um lado, as penas de
substituição eram aplicáveis a crimes puníveis com pena de prisão até 3 anos e, por
outro, a crimes com pena de prisão até 6 meses, a pena de multa era aplicável em
substituição quase obrigatoriamente).
Em 1998, a Revisão do CPP ampliou – ou, pelo menos, tentou ampliar – estes institutos
alargando o limite máximo da punição para legitimação da sua aplicação. Este
alargamento, todavia, só foi realizado após prévia reforma do CP no qual se modificou o
redime de pressupostos de aplicação de penas substitutivas (penas concretas até 3 anos
de prisão), etc. – pelo que se justificaria o alargamento da aplicação destas figuras – o
que foi conseguido através da alteração das molduras penais que consentem ou
suportam a aplicação destes mecanismos.
Na reforma mais global de 2007 (que abrange tanto o CP, como o CPP e ainda
legislação extravagante), tornou-se mais difícil reconhecer uma linha de pensamento
unitário relativamente aos “caminhos” processuais alternativos a percorrer, ou por que
(o MP) deve optar. Com efeito, verificou-se um alargamento, ao nível de direito
substantivo, das possibilidades de aplicação de penas de substituição (agora pena
concreta até 5 anos), mas o âmbito destes mecanismos, em termos processuais,
manteve-se praticamente idêntico. Todavia, ao aparente alargamento de aplicação destes
institutos verificou-se uma completa permeabilidade de regimes, face aos crimes
previstos com a existência de soluções sobreponíveis, que é agravada pela sua
indefinição (mesmo “filosófica”).
§ 46 Através desta análise, necessariamente breve, torna-se evidente que a política
criminal se serve hoje em dia do processo penal para realizar as suas finalidades.
Compreende-se, em alguma medida, esta “deslocação do espaço” de atuação da política
criminal face à tendência (que não constitui qualquer singularidade nacional) de
hipercriminalização do sistema penal.
A “ausência de travões” à “imaginação” legislativa criminalizadora, ao nível primário, é
assim temperada por soluções “descriminalizadoras” ao nível processual, colocadas a
exclusivo cargo, i. e, na competência do titular da ação penal.
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Por isso mesmo, cabe, na prática, ao MP colocar “freios” para conseguir a enforceability
da lei. Circunstância que não surpreende, porque constitucionalmente é tarefa do MP
executar a política criminal (art. 219º da CRP). Também, por isso mesmo, foi
promulgada uma Lei de Política Criminal, a ser revista bianualmente, onde se
estabelecem objetivos político-criminais que, todavia por forma muito tímida, visam
resolver estas questões. Infelizmente além de a lei padecer de erros manifestos é, para
nós, duvidoso que possa servir qualquer um destes propósitos.
Sem evidentemente deixar de reconhecer que o próprio MP terá “falhado” nalgumas das tarefas, que neste
âmbito lhe cabiam.
Observe-se que a descriminalização, a realizar por via de exercício da ação penal, não é ideia nova:
crimes semipúblicos ou particulares ou prazos de prescrição, são fenómenos já antigos, através dos quais
também se “garante” a descriminalização.
I. 3 - DIREITO PROCESSUAL PENAL E CRIMINOLOGIA.
§ 47 A importância da criminologia e a sua ligação com o processo penal talvez seja
menos notória ou então não tão apreensível quanto a da política criminal. Assim, a
criminologia teria, de acordo com o modelo tradicional, um papel de intervenção não
tanto no âmbito legislativo, mas mais ao nível concreto de cada procedimento, (como no
âmbito de perícias, na recolha de prova, determinação da reação criminal mais
adequada, etc.) e por isso como ciência auxiliar no tratamento e na procura da justa
decisão do caso.
Trata-se, todavia, de uma falsa ou redutora conclusão.
Com efeito, a criminologia reivindica hoje em dia um outro estatuto enquanto ciência
auxiliar da dogmática do direito e do processo penal. Mesmo em termos legislativos, a
criminologia nas suas diversas formulações tem um inegável interesse.
Por um lado, enquanto elemento adjuvante da própria política criminal apelando, p. ex.,
para o reconhecimento de autónomos interesses dos particulares na resolução do
conflito penal bem como para o reconhecimento do efeito negativo que o processo penal
pode ter sobre eles; por outro, enquanto ciência que, pela análise sociológica, permite
fazer uma análise da exequibilidade ou da enforceability da lei penal e, por isso,
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legitimando modificações legislativas; por fim, enquanto ciência que, no âmbito da
vitimologia, vem reivindicando (e, por isso, influenciando a “política processual penal”)
um maior relevo à proteção da dignidade e do interesse da vítima no processo penal,
permitindo formular proposições que visam, em caso de conflito grave, sobretudo
garantir a sua “satisfação” no processo penal, mas do mesmo modo, garantir na
qualidade de “objeto” do processo (p. ex., como testemunha), a sua dignidade e
integridade pessoal, a vários títulos (a proibição de interrogatórios sobre determinados
temas, o não sacrifício desproporcionado, etc.).
§ 48 A importância da criminologia era já de há muito reconhecida, nomeadamente quanto aos
mecanismos alternativos de resolução de conflitos, à defesa do arguido e ainda ao princípio de “confronto
vítima-agente”. Quisemos apenas realçar sobretudo aspetos inovatórios mais recentes.
I. 4 - ÂMBITO, OBJETO E FIM DO PROCESSO PENAL – NOTAS FINAIS.
§ 49 Tendo por base a distinção (de princípio e também genérica) entre um primeiro
procedimento a cargo do Ministério Público – denominado procedimento de inquérito –
e um procedimento (de julgamento) a cargo de um Tribunal, pode deduzir-se qual é, de
facto, o “fim” especificamente processual penal. Tendo sempre por objeto e como ponto
de partida a possibilidade de existência de um crime, o inquérito tem por finalidade a
investigação e descoberta da existência de crimes e de quem foram os seus agentes. Pelo
que se pode, em termos gerais, afirmar que a fase de inquérito tem por fim habilitar o
MP a decidir sobre se um cidadão/arguido existem provas, que, a serem apresentadas
em julgamento, seriam suscetíveis de elidir a presunção (constitucionalmente garantida)
que sobre aquele arguido recai, quanto ao crime que lhe é imputado. No âmbito da fase
de julgamento diremos que do que se trata é exatamente de estabelecer a “certeza” sobre
a responsabilidade penal do agente. Certeza obviamente que tem determinados limites e
pressupostos de validade; mas que, para ser uma certeza válida, pressupõe sempre o
respeito de algumas condições do justo processo.
§ 50 Neste sentido, quase poderia dizer que a finalidade primordial do processo penal –
a sua verdadeira legitimação – é a “discussão” sobre a presunção de inocência.
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Todavia, no direito nacional, como em regra em muitos outros ordenamentos jurídicos,
além da questão da culpabilidade existe, ainda como eventual tema do processo penal, a
questão da pena. Naturalmente que o tratamento, efetivo ou na realidade, desta matéria
depende da resposta à questão prévia da prova da culpabilidade. Não está em causa
necessariamente uma questão jurisdicional (quando considerada de um ponto de vista de
direito comparado). Com efeito, há sistemas que fazem a distinção entre a questão da
culpabilidade e a questão da determinação da sanção, para acentuar a primordial
importância da primeira (que cabe sempre a um Tribunal, constituído com uma
componente democrática) e diminuem o relevo à segunda, ou então para conceder uma
maior autonomia, de maior ou menor grau, à segunda.
Este duplo objeto, questão da culpabilidade/questão da determinação da sentença, faz
parte integrante do processo penal e da sua regulamentação jurídica, em especial a da
audiência de julgamento, no âmbito do processo penal nacional.
§ 51 Observe-se, por fim, que a passagem de fase processual para fase processual cabe
fundamental ao (à promoção do) titular da ação penal. Ora, além da fase da declaração,
ou não, de um agente como culpado e ainda da consequente, mas eventual,
determinação da sanção, coloca-se o problema subsequente que é o da execução da
pena.
Se virmos bem, o CPP expressamente refere, no âmbito das suas competências em
processo penal, que é ao MP que cabe promover a execução da pena – o que
evidentemente – como melhor veremos quando falarmos do exercício da ação penal –
significa, ao menos tendencialmente, manter a regra de “acusatoriedade” no âmbito da
execução das penas (ou nos incidentes em que esta se dessobra).
Ora, a questão que se coloca é a de saber se se pode afirmar que a execução das penas é
ainda matéria do processo penal ou se se trata de matéria que está já “fora” do processo
penal.
Com efeito, há, desde logo, que distinguir entre a execução da sentença – se se quiser, o
título executivo em que a sentença consiste – e a execução das penas em sentido estrito;
e dentro destas poder-se-á fazer uma diferença, em termos de regulamentação, entre o
regime de execução da pena privativa de liberdade e o regime de execução das penas
não privativas de liberdade (sobretudo por força do estatuto jurídico do recluso).
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a) De facto, tanto a sentença condenatória, como a sentença absolutória comportam
igualmente um “efeito executivo”. De resto, e como expressamente refere o CPP, a
sentença absolutória é imediatamente executiva; já a sentença condenatória pode ver
suspensa a sua execução, enquanto existir recurso validamente interposto (cf. art. 467º,
468º, etc. do CPP).
Neste sentido, qualquer sentença tenderá a ser um título executivo, questão que tem
relevo na regulamentação jurídica da sentença condenatória transitada em julgado. Ora
este título executivo também terá de ser válido. Disso dá conta o próprio CPP quando, a
propósito da fase de execução, refere alguns aspetos atinentes à validade da sentença e,
em certos casos, afirma mesmo a sua inexequibilidade (art. 468º do CPP).
A validade deste título executivo poderá suscitar múltiplas questões, a maioria das quais
o CPP nem sequer refere. Assim, qual o valor da sentença quando viole o ne bis in
idem; o problema da violação do caso julgado; o problema da abolitio criminis ou da
amnistia serão questões que se referem primordialmente à validade da própria sentença,
isto é ao seu conteúdo e não tanto já à questão da execução da pena.
b) Matéria diferente é aquela que, pressuposta a validade e a “executividade” da
sentença penal, se refere à execução da pena, que se trata assim de matéria
substantivamente autónoma (no sentido de que se trata em regra de valorações
independentes, tanto em sede de matéria como de momento temporal, em relação
àquelas que estão subjacentes à sentença na determinação/aplicação da pena) do
processo “declarativo” da culpa e da pena. Por isso mesmo, tal matéria deveria ser da
competência de órgãos jurisdicionais diferenciados daqueles com competência para
julgar/condenar.
No direito português, pode dizer-se que a evolução mais recente tem sido no sentido de
uma progressiva jurisdicionalização da fase de execução das penas (tendo-se, há muito,
abolido a ideia de a execução de penas ser uma mera fase administrativa e portanto sem
qualquer necessidade ou controlo de jurisdição). Todavia, duas questões continuam hoje
em aberto:
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aa) Por um lado, a questão de saber se, no âmbito de execução das penas enquanto
procedimento também ele com alguma autonomia, se devem verificar algumas das
características da “acusatoriedade” em termos das questões jurisdicionalizadas que se
podem suscitar na execução (p. ex. libertação condicional; ou então para outros
incidentes, p. ex., revogação da liberdade condicional, revogação da suspensão da pena
de prisão, etc.)
bb) Por outro, a de saber qual o exato conteúdo da matéria de execução das penas, em
termos legislativos, face à regulamentação do CP e do CPP, diplomas que, em grande
parte, parecem abranger também a execução de penas. De facto, o CPP contém, para
além das referentes à “executividade” da sentença penal, regras que, materialmente, são
de execução de penas e, em certos casos, mesmo de verdadeiros incidentes de execução
de pena (p. ex. revogação de suspensão de pena, ou revogação de liberdade
condicional).
Além disso, e dentro deste contexto, haveria ainda que considerar os elementos-fatores
que devem ser considerados preponderantes para a determinação da sanção, em matéria
de audiência de julgamento, e quais os elementos-fatores preponderantes para efeitos de
“momentos” de execução de penas.
Trata-se de matéria que mereceria uma mais correta “reflexão” sobretudo quanto à
concreta “distribuição” destas tarefas entre fases (isto é, entre a condenação e a
execução das penas) e sobretudo entre jurisdições e consequentemente quanto aos temas
de “discussão e argumentação” que devem ser objeto de cada uma delas.
II. 5 - FINS INTRÍNSECOS E FINS EXTRÍNSECOS DO PROCESSO PENAL
§ 52 É usual no âmbito dos manuais de Direito Processual Penal referir um conjunto de
valores que são considerados fins do processo penal e podem conflituar entre si. Trata-
se todavia de fins ideais ou exteriores ao processo penal, em si. Falar na realização da
Justiça, na paz ou certeza jurídica, na descoberta da Verdade ou na proteção de direitos
fundamentais não nos parece que seja discurso sobre temas processuais, ou processos
concretos. Nuns casos, são valores de todo o Estado do Direito; noutros, são valores de
qualquer processo e não apenas do processo penal. O “modo” como se discute e em
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especial com que meios se procede à investigação e se realiza a posterior discussão
acerca do tema em que aquela presunção de inocência está envolvida é matéria que só a
um legislador democraticamente legitimado compete, embora delimitado por valorações
constitucionais e processuais penais.
Trata-se, em qualquer caso, de tópicos que deverão ser sobretudo considerados pelo
próprio legislador, dentro das coordenadas constitucionais de cada ordem jurídica.
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