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Entrevista 7_M. S. D.
Data: 28 de janeiro de 2019
Local: Camarins do Teatroesfera
E - A ideia, tal como lhe contei ao telefone, será fazer uma peça de teatro com elementos,
coisas que nos contam as diversas pessoas, que podem ser da sua vida pessoal, ou de
outras que conheçam, e que queiram sublinhar. E, a partir daí, faríamos uma peça a contar
este esforço que me parece muito das mulheres guineenses que vêm até cá, e trabalham
muito, têm filhos, têm ideais para os filhos … trata-se um pouco de perceber qual é o
espírito das pessoas migrantes, cá, relativamente a este assunto da mulher e relativamente,
também, à divisão do trabalho de que falámos, relativamente aos seus objetivos, ao que
sonham, expectam… e a peça de teatro tem essa envolvência. Acha bem?
MDS – Sim (riso)
E – Então, eu começava por lhe perguntar – já lhe comecei a fazer a pergunta, há pouco
– se vê uma grande distinção de papéis, entre homem e mulher, na cultura guineense, quer
cá, quer lá.
MDS – Sim. Há alguma diferença. Contudo, lá, e nas zonas mais periféricas, a mulher
tem um papel principal em torno da família, porque é a mulher que praticamente executa
todas as tarefas do lar, da casa. É a mulher que vai à lavra, é a mulher que cuida das
crianças, é a mulher que cuida da casa. Portanto, tudo o que é tarefa para garantir a
funcionalidade desta família, é a mulher que executa. Mas as decisões são tomadas pelos
homens. Muitas das vezes, a mulher nem sequer tem o voto na matéria. O homem decide,
e o que ele decidiu está decidido, e não há volta a dar.
E – Isto nas zonas periféricas, no interior.
MDS – Exatamente. No interior. E já nas regiões mais urbanas, as coisas têm mudado e
já mudaram. O paradigma não é bem esse do interior.
E – Sim
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MDS – Na zona urbana, a mulher trabalha, mas o homem também trabalha, se bem que
há aquelas que não trabalham, não fazem o trabalho de escritório e coisas assim, mas
acabam sempre por fazer o trabalho doméstico.
E – As mulheres?
MDS – As mulheres, exatamente. E, aí, também já há homens que colaboram ativamente
no que diz respeito às tarefas domésticas. Há partilha de roles nestes casos. E cá, também,
é semelhante à cidade de Bissau. Já as pessoas partilham. Aqui, a mulher trabalha e o
homem também tem que trabalhar. E, então, não há assim aquele…há poucos. Se o
homem não trabalha aqui, é porque realmente não conseguiu emprego, tem estado difícil,
nós sabemos disso. Mas, no geral, o homem trabalha e a mulher trabalha. E as tarefas, no
que respeita à limpeza da casa, a cozinha, a educação dos filhos, é agora partilhada entre
homens e mulheres. Há homens que já cozinham, há homens que limpam, há homens que
vão à escola, levam os miúdos, vão buscá-los, vão às reuniões e a decisão é, geralmente,
consensual, os dois opinam. Muitas das vezes nós somos mais rebeldes e conseguimos
levar avante a nossa ideia. (riso)
E – As mulheres? (riso)
MDS - Exatamente. (riso) Conseguimos levar avante a nossa ideia. É essa a diferença que
eu, pessoalmente, consigo encontrar entre os dois géneros.
E – Diria que, aquela sociedade conhecida como sociedade machista e patriarcal, está a
mudar.
MDS – Está. Está visivelmente a mudar.
E – Em Bissau, sobretudo, ou nas cidades…
MDS – Nas cidades. Ainda, no interior, ainda é… a cultura ainda está muito, muito
visível, muito pesada aí, ainda. Os homens ainda decidem, os homens tomam as decisões
todas…, contudo, eles já trabalham. Porque, antigamente, o homem levantava-se e
sentava-se à porta, na conversa com os outros, com os vizinhos e assim, enquanto a
mulher vai trabalhar. Trabalha na lavra, depois vem cozinhar, cozinha, dá o almoço, e
volta para a lavra, e o homem sentadinho. E a mulher lava a loiça, a mulher lava as
panelas, a mulher faz tudo, e o homem sentadinho. Agora, a sociedade tem estado a mudar
e nota-se francamente a mudança. Os homens já trabalham.
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E – Engraçado, porque alguém me tinha dito, nas conversas… eu descobri que havia uma
certa diferença entre “ter emprego” e “trabalhar”. As pessoas dizem, “Ah, a mulher
trabalha e o homem não tem emprego”. Tem valor diferente a palavra “trabalho” e a
palavra “emprego…
MDS – Exatamente. O trabalho é o exercício mais pesado e não tem remuneração. E o
emprego já tem remuneração.
E – Há muitas mulheres que me falaram das bideras, das pessoas que vão vender. Não
sei se eu pronunciei bem, provavelmente…
MDS – Sim, bideras.
E – Que vão vender no mercado de Bissau, exatamente para sustentar a família. E que há
muitas, muitas, muitas. Eu tenho uma curiosidade que lhe vou pôr e que é esta: as pessoas
que vendem, no mercado de Bissau, correspondem a mulheres cujo marido não trabalha,
não tem emprego, mulheres que foram separadas da família primeira, do primeiro
casamento? É uma curiosidade.
MDS – Olhe, engloba tudo. Desde as mulheres que têm um marido que trabalha, mas que
o salário não é suficiente para fazer face às despesas. Então, essas mulheres arranjam uma
outra fonte de rendimento, não é? Elas vão vender.
E – Exato.
MDS – Há aquelas mulheres que são mães solteiras que não têm fonte de rendimento
nenhuma, também vão vender. Há todo o tipo. E mesmo as pessoas que, o marido
trabalha, a mulher trabalha, nós sabemos que o salário mínimo em Bissau, na Guiné-
Bissau, é ínfimo. Não chega para nada. Nem para a alimentação mensal quanto mais para
suprir outras despesas.
E – Exato.
MDS – Portanto, vão fazer o trabalho normal, ou vão ao emprego, depois ainda são
obrigados a arranjar outra fonte de rendimento. Fazem… depende de cada um, do que é
o talento de cada um, não é? A maneira de conseguir dinheiro. Há umas que vão para
outros países, compram roupas e vão vender no mercado, ou mesmo em casa, de porta a
porta, vendem. Há outras que vão a grossitas nos mercados, nas feiras, e compram certos
produtos como por exemplo mancarra, castanha caju, quiabos, produtos alimentares, e
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depois, em casa, fazem um tipo… nós chamamos de “beco”, que são pequenos
aglomerados de pessoas que se juntam, são da mesma zona, juntam-se, e cada um põe a
sua mesinha a vender alguma coisa.
E – É um mini-mercado?
MDS – É um mini-mercado. Não é bem, bem, um mercado. É quatro, cinco, pessoas.
Sentamo-nos assim como estamos. E cada um, com a sua mesa, a vender alguma coisa.
Há os que vão comprar cabaceira…
E – Isso é um beco?
MDS – Exato. É um beco. Vão comprar cabaceira, fazem sorvetes. Fazem o sumo de
cabaceira, põem num saco de plástico e vão vender também nesse beco, que é porque as
crianças gostam, não é? Vão comprando. E outros fazem bolos, outros fazem… muita
coisa! E fazem pequenos mercados à porta de casa ou mesmo na entrada das ruas, na porta
das escolas… é mais para conseguir mais alguma fonte de rendimento para ajudar nas
despesas da família.
E – Sim
MDS – Portanto, todo o mundo vende. Não é uma classe específica.
E – Não tem a ver com desagregação familiar, ou mãe solteira, ou mulher que foi rejeitada
pelo marido…, não?
MDS – Não. Qualquer pessoa cujo ordenado não supre as suas despesas, arranja uma
outra fonte de rendimento. E as pessoas que não têm rendimentos nenhuns também
encontram aí uma saída.
E – Exato. Mas são sobretudo mulheres?
MDS – Maioritariamente mulheres. Os homens, o negócio dos homens, é mais roupas.
Compram roupas e vão porta a porta, vão porta a porta. Eles não… há aqueles que se
sentam. Nós temos, nas feiras, há homens que se sentam. Há homens, mulheres, há de
tudo. Mas nos becos, é mais as mulheres. Porque são coisas pequenas, são negócios
pequeninos. Geralmente, o que eles angariam aí serve mais para comprar suplementos
para a alimentação, para um almoço, para um jantar. Não é um negócio que gera grandes
receitas, não. São receitas mais pequeninas.
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E – Para a mesa?
MDS – Exatamente.
E – Os estudos, na Guiné? Os estudos, como são? Há distinção, na sua geração, havia
distinção entre os estudos consagrados para raparigas, iam até uma determinada fase, e
os estudos para rapazes?
MDS – Não. Essa distinção não há.
E – Não há?
MDS - Rapazes e raparigas têm os mesmos… na minha geração, que é a dos oitenta, é a
época dos oitenta. Porque eu entrei na escola, primeira classe, em oitenta. No ano oitenta,
quando eu fiz a minha primeira classe. Mas nessa época não havia, nunca houve distinção
de rapazes e raparigas. Antigamente sim. Antigamente. Na época dos meus pais, sim,
havia. Os rapazes tinham mais possibilidades de estudar. Porque a menina é aquela mais
massacrada. Porque tem de ajudar a mãe nas lides de casa, e então tem de ajudar a apanhar
água, a ir à feira, buscar a lenha, para ajudar a mãe. Os rapazes vão à escola e as meninas
ficam em casa a trabalhar. Mas nós, graças a Deus, já não vivemos essa fase. Na minha
altura, todo o mundo tem o mesmo direito. A diferença que há, que ainda existe, é em
termos de extrato social. As pessoas com mais posses geralmente conseguem melhores
escolas. E conseguem pôr os filhos nas escolas privadas, onde não há greve, tem um
cronograma de ensino, assim, minimamente organizado, não é? E as pessoas com menos
possibilidades, já têm de depender do governo. E então, dependendo do governo, está
sujeito a greves, está sujeito a professores menos preparados, essa é a diferença que, ainda
neste momento, existe.
E – O número de aulas chega a ser muito reduzido face ao calendário previsto, não é?
MDS – Exatamente. Dou só um exemplo muito, muito recente, é que habitualmente as
aulas começam em setembro, e em Bissau as aulas começaram aqui há uma, duas semanas
atrás, por causa da greve, por causa da greve prolongada.
E – Muito tempo.
MDS – Sendo assim, o que é que essas crianças vão aprender? E as aulas acabam em
junho. Acabam em junho. São pouquíssimos meses de aulas.
E – Exato. Três já foram.
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MDS – Exatamente.
E – Dra. Mariama, estudou, começou por estudar na Guiné?
MDS – Sim. Eu fiz até à oitava classe em Bissau. E depois, aos doze anos, fui para Cuba,
onde fiz o resto. Fiz a nona classe até à faculdade. De 88 a 2000.
E – Com 12 anos foi, e tinha lá família, tinha…?
MDS – Não.
E – Não?
MDS - Não
E – São sempre uma grande aventura, essas partidas… quer contar um pouco?
MDS – Sim. Eu, às vezes, fico chateada, porque … eu digo que fui privada da minha
infância, na minha terra, com os meus irmãos. Mas também, em compensação, eu digo
que tive a sorte de ser do grupo que conseguiu estudar, que conseguiu ser alguém, que
pode ajudar os outros. Porque há pessoas que nunca tiveram essa oportunidade. (chora)
Nunca. Nós sabemos que, na Guiné, não temos universidades. As escolas secundárias mal
funcionam e, então, a nossa saída, a nossa alternativa, é sempre uma bolsa de estudo para
o estrangeiro. Porque quem ficar em Bissau corre o risco de não se formar, de não fazer
nada. É preciso ter muita foça de vontade, é preciso ser muito empenhado para se
conseguir fazer alguma formação. Contudo, agora, já há algumas escolas técnicas, tem
universidade também de direito, mas não havia. Até há pouco tempo, não havia. E então,
eu fui para Cuba com 12 anos, não tinha… fui num grupo grande, eramos todos crianças
de mais ou menos a mesma idade: 12, 15, não passava daí. E fomos através de … Cuba
concedia bolsas de estudo à Guiné-Bissau, e essa bolsa era distribuída para diferentes
instituições e, nessa época, era partido único. Então, o Partido que geria tudo isso era o
PAIGC, era o único partido que havia. Então distribuía essas bolsas a diferentes
instituições. E as instituições davam aos funcionários.
E – Sim.
MDS – Exatamente. E eu, foi uma bolsa de UDEMU, que é uma organização das
mulheres do PAIGC, porque a minha mãe é do PAIGC, o meu pai era do PAIGC também,
e então eu consegui uma bolsa de estudo. Não tinha família lá. Eramos muitos. Estávamos
num colégio, tipo um colégio, onde tudo fazíamos nós. Aí é assim: desde o dia que sais
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de Bissau já és adulto, a vida é tua, tu fazes dela o que bem entenderes. E então, tudo nós
fazíamos. Tínhamos regras, não é? A escola estabelecia regras, era acordar às seis da
manhã, fazer a higiene, ir ao refeitório, tomar o pequeno almoço, depois tínhamos de fazer
a formação, a formatura. Tínhamos todos que fazer a formatura. Uma escola tinha pr’aí
mil alunos, ou um bocadinho mais, ou menos, dependendo.
E – Da Guiné foram quantos?
MDS – Éramos muitos. Não faço ideia, porque cada ano vai um grupo, cada ano vai um
grupo. Nós tínhamos a escola toda, do 7ª ano até ao 9ª, a escola era toda, era só guineenses.
Portanto, éramos imensos. Imensos, imensos. E cada nacionalidade tinha a sua escola.
Isso, na Ilha da Juventude. Cada nacionalidade tinha a sua escola. E então, era tudo
regrado. Tinha-se que cumprir rigorosamente as coisas. Às seis da manhã tocava o
levantar, pequeno almoço a seguir, depois do refeitório, todo o mundo tinha a obrigação
de descer para a formatura onde eram dadas as informações do que vai acontecer o dia
todo, liam-se as notícias, cantávamos o hino de Cuba e da Guiné, neste caso. Há escolas
que tinham mais nacionalidades e cantavam de todas as nacionalidades - todo o mundo
tinha de saber cantar o hino das outras nacionalidades – e depois, aí, eramos divididos em
grupos. Os mais pequenininhos limpavam a escola, ao redor da escola; os mais
crescidinhos iam para o campo. O trabalho de campo era: plantar batatas, mandioca,
recolha de tomate, de toranja, de laranja, de tudo o que se produzia aí, e tudo o que nós
produzíamos era para o nosso consumo. Tudo que nós fizemos… vinham algumas coisas,
como por exemplo, a carne, o peixe, essas coisas, vinham de fora. Do governo, o governo
dava. Mas o resto, tudo o que é tubérculos, hortaliças, e não sei quê, éramos nós que
produzíamos. E depois, um grupo ia para o campo e outro grupo ia para a docência, para
a escola, para as aulas propriamente ditas, e depois, isso até ao meio dia. Os que foram
ao campo vinham, as criancinhas subiam para tomar banho, e depois o turno trocava: os
que foram ao campo vão para a escola, os que foram à escola vão para o campo, os mais
pequenininhos que limparam a área verde vão para a escola, os que estiveram na escola,
descem para limpar o resto. E isso, a jornada da tarde acabava às 5 da tarde, a partir das
seis até às sete e meia, ou oito, era o jantar. Depois do jantar, - era às sete e meia -, depois
do jantar, às oito, todo o mundo, todo o mundo, subia para a docência, estudar obrigatório,
e então, depois da docência, às 10, era o recolher, tocavam o sino do recolher, todo o
mundo tinha que ir recolher, ir dormir. E era assim, todos os dias. E nós tínhamos um dia
de recreação, que era uma quarta feira, não havia o estudo, todo o mundo descia para a
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recreação, dançávamos, brincávamos, jogávamos, cada um fizesse o que quisesse, fazia
o que quisesse, e depois os fins de semana, nós não podíamos sair da escola sem
autorização. Tinhas, uma semana antes, de pedir por escrito, autorização, do fim de
semana que pretendes sair, de tal hora a tal hora, onde é que vais, com quem vais,
entregavas na direção, e o teu pedido era avaliado. A avaliação passa desde o teu
comportamento durante a semana, do teu rendimento na escola, do teu rendimento no
campo, a organização da tua área lá no dormitório, são coisas que são avaliadas…
E – Os parâmetros
MDS – Exatamente. Para tu teres, ou não, o direito à saída. Quando sais, depois de voltar,
tens que avisar que voltaste, se voltaste tarde, já, na próxima semana, sabes que não podes
sair e depois, o teu pedido, o teu próximo pedido, é avaliado com mais atenção ainda.
Portanto, aquilo exigia uma disciplina, uma regra, que ninguém podia violar.
E – Sim.
MDS – E aqueles que, no final do ano, tivessem boas notas, tinham prémio. O prémio,
muitas das vezes, era a viagem a Bissau. Outros, eram férias nas outras províncias, nos
aldeamentos turísticos. Isso, íamos também. E, depois, tínhamos campismos, de vez em
quando também íamos ao campismo, mas em todas essas atividades eramos avaliados um
a um: o comportamento, o rendimento escolar, tudo isso. Portanto, ninguém podia escapar
às regras, não havia como escapar às regras. E pronto.
E – E quanto tempo esteve lá?
MDS – Eu? Em Cuba?
E – Sim.
MDS – Eu, em Cuba, estive de 88 a 2000. Em 88, comecei na Ilha da Juventude, até 94.
Depois, fui para a faculdade. Em 94 eu entrei para a faculdade. É já numa província
central, ilha Clara, que foi onde eu fiz o meu estudo universitário. E acabei em 2000. E
vim para cá. Vim para cá, também não era para ficar. A minha mãe estava cá com os meus
irmãos. Mas a minha ideia era uma passagem por cá e depois…
E – Voltar para Bissau?
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MDS – Para Bissau. Só que, em 98, tinha vindo de férias, foi a altura em se deu o
levantamento militar, lá em Bissau, e então, muita confusão, tudo estragado, uma guerra
infundada.
E – Foi a de 7 de junho?
MDS – Sim, 7 de junho. Uma guerra sem nexo. E, então, as coisas complicaram-se. E
dois anos depois, acabo eu os estudos, vim para cá para voltar para Bissau. Depois, optei
por ficar mais um tempo. Em 2001 fui de férias em Bissau, para ver as condições. O meu
pai estava lá, o meu pai também era médico, e então ele disse-me “Olha, neste momento,
a tua vinda cá seria mais um peso do que um rendimento” e ele sugeriu-me ficar por cá
ainda, e fazer a especialidade, especialidade em alguma área que eu quisesse, enquanto
aquilo se organizava. E eu não queria, mas ele insistiu, lá está, o papel do homem, o papel
do pai que é sempre muito… pai é “Sim senhor”, “Sim senhor”. E então, eu aceitei, e
voltei. Voltei, fiz cá a especialidade, em Santa Maria fiz a especialidade em reflexologia,
à espera que as coisas se organizem, e até então … (risos) ainda cá estou. Mas com muita
vontade de voltar.
E – É?
MDS – Muita. Muita vontade de voltar.
E – Tem filhos?
MDS – Tenho uma filha.
E – Que idade é que ela tem?
MDS – Tem onze. Tenho uma filha com onze anos. Mas tenho muita vontade de voltar.
A maneira que eu encontro de ajudar para colmatar essa vontade é ir regularmente fazer
voluntariado.
E – Faz voluntariado?
MDS – Vou. Vou fazer voluntariados a Bissau.
E – Nos hospitais?
MDS – Nos hospitais. Todos os anos. Nós fundámos uma organização. Porque aqui, em
Portugal, há muitos médicos guineenses. Muitos. Mais de duzentos médicos guineenses
cá. Há especialistas inclusive. Muitas especialidades. E, então, nós fizemos uma ONG,
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assim muito recente, que vai agora em março fazer o seu primeiro ano, e vamos em
missões curtas, uma semana, a Bissau fazer consultas, cirurgias, dar formações, para
poder, de uma outra maneira, ajudar. (chora)
E – Ajudar as pessoas
MDS – Exatamente. É isso. Até agora, conseguimos. Estamos a tentar alargar a missão
para mais tempo, mas como é uma ONG nova, nós não temos financiamento, nós não
temos ajuda das comunidades, da comunidade internacional.
E – Sim.
MDS – Nos mantemos basicamente por doações. Temos doações para bilhetes, doações
de materiais, doações de medicamentos, e fazemos um volume grande e levamos para
Bissau.
E – Ah, muito bem. E, de entre os médicos que fundaram essa ONG, vão alguns deles,
vão todos?
MDS – Não. A ONG foi fundada por um núcleo de amigos guineenses que já são pessoas
mais … mais adultas do que nós, não é (risos)?
E – (risos) O que é isso, ser mais adulto?
MDS – (risos) Com mais idade!
E – Está a falar do David?
MDS – Do David, do Fortunado… O David é de Cabo Verde. A mulher dele é guineense.
Foi fundada pelo Doutor Fortunato que é um guineense, é urologista, pelo Doutor Renato
Monteiro, também é guineense, é pneumologista, e depois, uns amigos, e fundaram a
ONG. E então, na primeira missão, o Dr. Fortunato foi, fez levantamentos, o que é que
era preciso e não sei quê… Depois veio, e como ele sabe, todos nós sabemos, que somos
muitos cá, ele contactou os médicos.
E – Não é Carlos Fortunato?
MDS – Não, ele é Fortunato, Fortunato só. Matos. E então, contactou os médicos e nós
respondemos. Alguns respondemos ao pedido e fomos em missão. A uma missão que
correu extremamente bem, apesar de todas as dificuldades que nós temos. Para ir, é
sempre uma história! Temos sempre história para contar, porque até no dia da ida, quando
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a viagem é às seis da manhã, às cinco da tarde do dia anterior, ainda não temos bilhetes
completos. (risos) Portanto, é aquela boa vontade que nos move, aquela necessidade de
fazer alguma coisa que nos move. Isso é bom. E então fomos, a missão correu muito bem,
fomos bem recebidos, fomos bem aceites, trabalhámos imenso. Não tínhamos hora de
entrar, quer dizer, entrávamos às oito da manhã, e depois ninguém sabia a que horas íamos
sair. Aqui em Portugal, oito, oito e meia da noite, acaba o turno, passo o turno e vou-me
embora. Atrasa-se o colega cinco minutos e já estou a ralhar (risos). Mas lá foi diferente.
Foi diferente, porque nesses dias parece que, no hospital, não chega a noite. Porque está
sempre cheio, porque colocam anúncios na rádio e as pessoas fazem a inscrição então,
são tantos inscritos, são tantos inscritos, que às cinco da tarde, estás no consultório, e não
te lembras que ainda não foste almoçar; às dez da noite não foste jantar; à uma, duas da
manhã, estamos a discutir doenças como se nada tivesse acontecido, como se a hora não
tivesse passado. E depois, alguém se lembra: ah, então não vamos …? E lá íamos nós, às
duas, três da manhã. E, às oito, tínhamos de estar novamente no hospital. Uma semana
extremamente intensa! Mas conseguimos ajudar. Se bem que nós voltamos sempre com
a sensação de poder fazer mais. E isso é que nos move, aquela vontade de poder… neste
momento estamos a preparar uma nova missão para fevereiro, na semana de 22.
E – Dizia há pouco sobre o estado da saúde… há falta de médicos, há falta de
medicamentos… e as pessoas não têm acesso fácil a cuidados de saúde, é isso?
MDS – A falta é global. Tudo isso… não tiro nada daí. Há falta de tudo. Para começar,
nós temos uma estrutura governamental desorganizada. Quando o governo desorganiza,
o resto vai tudo abaixo, vai tudo atrás, na mesma onda de desorganização. Nós, só
médicos guineenses, somos muito mais do que duzentos. Cá fora. Especialistas. Mesmo.
Portanto, a nossa falta, eu acredito que seja notória. A Guiné-Bissau não tem uma… tem
uma “faculdade”. Nós sabemos a dificuldade de saúde da Guiné. E então, de antemão, a
formação desses médicos é deficitária. Falta sempre, quando é que eles vão fazer a prática,
nós não temos meios complementares de diagnóstico, como é que eles sabem? Regem-se
mais pela teoria do que pela própria prática. Nós sabemos que medicina tem que ser as
duas coisas juntas. Vais ler, mas depois, se não vires na prática… depois, não consegues
enquadrar as coisas. A população extremamente empobrecida não tem poder económico
para os serviços de saúde, porque nós não temos um sistema de saúde que funcione,
portanto, as instituições públicas não têm como. Só a título de exemplo, uma pessoa
precisa de cirurgia, de uma cirurgia. Por mais simples que seja. Essa pessoa tem que pagar
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o médico – numa instituição pública! – pagar o médico, mas não é porque está
determinado na lei que tem que pagar.
E – Não está?
MDS – Não está, mas é aquelas coisas por baixo. Se eu não pago, não sou atendida.
Porque a própria situação económica do país permite isso. Quanto é que ganha um médico
guineense? Um médico guineense não ganha mais do que 100 euros. 100 euros são
sessenta e cinco mil francos. Tem família, tem filhos, tem que dar comida, tem que dar a
educação aos filhos. Com sessenta e cinco mil francos não vai lá… a pessoa tem que
pagar o médico, por baixo, se não morre à espera de ser atendido, tem de comprar todos
os materiais que o médico vai usar na cirurgia, compressas, álcool, tudo! Tem de comprar
tudo, antibiótico, tem de comprar tudo e, ainda, esperar que haja cama, que não há camas.
Nós não temos um sistema de saúde que suporte isso. Nós não temos um orçamento que
suporte os gastos de saúde. Portanto, é tudo muito complicado. O hospital não funciona.
O hospital não tem um laboratório. Ou, tem um laboratório, entre aspas, onde tudo é pago
e muito caro. Por exemplo, aqui em Portugal, a gente chega com febre, com o que o
doente se queixar, nós fazemos uma bateria de exames, até que muitas vezes, confesso,
que desnecessária. Num hemograma, se nós pedirmos um hemograma, já vem tudo:
leucócitos, eritrócitos, monócitos, vem tudo o que compõe um hemograma. Em Bissau
não funciona assim. Quando pedes um hemograma, não podes pedir um hemograma,
porque a seguir o paciente vai embora e não volta mais, porque não tem dinheiro para
pagar. Porquê? Porque todos aqueles itens que compõem um hemograma, é cobrado à
parte. Cobram eritrócitos, cobram hemoglobina, cobram leucócitos, tudo isso. É
insustentável para uma pessoa que não tem rendimento nenhum. E é assim com todo o
resto de baterias de exame.
E – Aquilo de que falávamos há pouco, das pessoas virem através da junta para serem
tratadas cá, mesmo assim, é necessário despender muito dinheiro.
MDS – Sim, porque, pelas vias normais não funciona, não funciona mesmo. Um cidadão
comum, que não tem condições nenhumas, vai a uma junta, a seguir pegam no processo
dele e é metido na gaveta, literalmente. Ninguém olha, porque não vai gerar receita ao
coletivo da junta. Quem tem possibilidade, chega, e junto do processo entrega um
dinheiro. Dividem entre eles, agilizam o processo, e a pessoa consegue junta. Mas essa
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pessoa pode até não ter necessidade nenhuma de vir para a junta médica. Apenas quer
emigrar. E aquele coitadinho que realmente tem…
E – Necessidade.
MDS – Exatamente, não tem dinheiro, não tem como conseguir o dinheiro que eles
pedem, fica lá e morre. Outras vezes, a família cá, fazem um pé de meia, juntam, cada um
põe um bocadinho, conseguem o dinheiro e mandam, e na hora em que o doente chega,
já está no final, já não tem nada a fazer, os médicos não têm nada a fazer. Tudo isso é um
processo extremamente complicado. Muito complicado. E outra coisa que acontece com
essa junta médica, é que inventam diagnósticos. Por exemplo, se eu digo que sofro de
enxaqueca, isso não é nenhuma patologia que requer junta médica. Agora, se eu tenho
uma insuficiência renal, ou se tenho uma neoplasia, aí sim, já posso ser avaliada e, com
jeito, conseguir uma junta. Então, as pessoas vão forjando diagnósticos, que é para os
seus doentes poderem conseguir junta.
E – Pagam.
MDS – Aí está, tem de ser pago por baixo. (chora)
E – Há pouco estava a falar da sua vontade de voltar e eu reparei que o seu rosto se ilumina
quando fala desse desejo.
MDS – Sim. Eu hoje digo que o meu objetivo número um, neste momento, é voltar. Eu
estou aqui, eu estou bem aqui, sinto-me bem aqui, porque eu tenho a minha casa, tenho a
minha filha, tenho a minha vida organizada, sem stress, sem nada, não tenho muito
trabalho, correr daqui para ali… mas lá está, eu estou assim, estou satisfeita com a minha
vida, mas há um milhão de guineenses insatisfeitos (chora). E acho que, eu, aqui, costumo
dizer, que eu sou mais uma. Mas, na Guiné, consigo fazer alguma diferença.
E – Quer ajudar.
MDS – Exatamente. Porque eu não consigo ficar indiferente a estas situações sociais. Eu
tenho as mínimas condições para viver, mas uma população inteira a sofrer, uma
população inteira com necessidades, e… acho que isso não é justo. Por isso, se eu puder
ajudar, se eu consigo ajudar, eu ajudo sim. Porque eu sei que é necessário. Eu nunca serei
completamente feliz sabendo que há pessoas com necessidade, há pessoas a morrerem.
Eu sou médica e não consigo ajudar. Isso é injusto, não deve acontecer (chora). Por isso
a minha vontade, cada vez mais, de voltar. Eu tenho muita vontade mesmo de voltar.
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(Mariama agradece os lenços de papel que lhe estendemos)
MDS – Tenho mesmo muita vontade de voltar.
E – O que é que a sua mãe diz a isso? A essa sua vontade de voltar, o que é que diz a sua
mãe? Disse-me que ela está cá, com os seus irmãos…
MDS – Está. Está. Sabe, quando nós… a minha mãe até pode… a minha mãe foi
combatente da Pátria. A minha mãe foi criada, a minha mãe foi criada pelo Amílcar
Cabral e aqueles combatentes todos, porque a minha mãe é mandinga e é da zona norte
do país. Quando começou a guerra a minha mãe era pequeninha e, então, o PAIGC fazia,
os guerrilheiros faziam sensibilização nas tabancas, que era para as pessoas poderem sair
e ajudar na guerra, naquela época colonial. E a minha mãe fugiu da tabanca, abandonou
a sua família, e foi para a guerra. Ela foi criada… saiu à revelia, não é? A família tentou
resgatá-la, mas ela nunca quis, e ficou. Então, depois, estiveram naquela zona norte,
depois, como eram pequenininhas, precisavam de estudar, porque eles faziam, tipo, uma
triagem, uma seleção, e as pessoas que já eram mais crescidas e pudessem ser uma mais
valia em carregar balas, levar comidas, e não sei quê, essas eram aproveitadas para essas
tarefas. Mas, aquelas mais pequenininhas, que não iam ser úteis naquela fase, eram
levadas para Conacri. O PAIGC tinha uma barraca, uma barraca não, tinha, tipo, um
internato, um colégio lá, onde iam lá as crianças para poderem estudar. E a minha mãe
foi nesse grupo para Conacri. Foi estudar. Depois, foi para a Bulgária. Levaram-na para
a Bulgária para fazer algum curso. A minha mãe é enfermeira. E então, trabalhou todos
esses anos, inicialmente, numa província a leste, em Gabu, depois em Bissau. Até… a
minha mãe veio para cá em 1996. Mas acho que, nós as duas, nutrimos o mesmo gosto, a
mesma vontade. De ajudar. Tanto que ela disse sempre que ia voltar. Ela quer muito
voltar. Apesar já de ser…,mas ela reformou-se porque está cá. Porque reformando-se,
recebe lá o ordenado, como os antigos combatentes. Mas ela quer muito voltar, portanto,
ela acha essa ideia uma ideia boa, uma ideia interessante. Até que ela diz sempre “Vou
voltar”. Eu digo-lhe, “Tu vieste e nunca mais foste, e agora queres voltar?” Mas falta-lhe
aquela companhia, porque ela viveu muitos anos aqui, o meu pai já morreu, e então, para
ela, é complicado ir lá ficar sozinha. E, então, acho que ela está mesmo à procura de uma
companhia para ir. E, então, juntamos o útil ao agradável (risos).
E – Quantos irmãos tem?
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MDS – Nós… Nós somos, hã, seis. Mas o meu pai tem mais três. Mãe e pai, somos seis.
Quatro meninas e dois rapazes.
E – Só a Dra. Mariama é que ficou médica? É a única?
MDS – Sim. Sou a única. A vontade da minha mãe é que algumas das minhas irmãs
também fizessem medicina. Mas ninguém quis, e então, sou eu a única. Tenho uma que
é jornalista, tenho um que fez… ai, já nem sei o que é que ele fez… uma coisa de
marketing, uma coisa de empresas, relacionado com empresas. Depois, uma, é da área
social, de geriatria, depois tenho uma outra que está em Londres, essa, a minha queria que
fizesse enfermagem, mas não, não conseguiu convencê-la, e não fez nada. Depois, tenho
outro rapaz que também não fez nada, mas eu costumo dizer que há sempre tempo para
…
E – Fazer.
MDS – Para fazer alguma coisa. Tanto, que eu ainda estou a estudar, estou a fazer gestão
(risos).
E – Foi a Mariama que escolheu mesmo medicina?
MDS – Sim. Fui eu que escolhi. Os meus pais foram muito liberais. Se bem que o meu
pai dizia, o meu pai é médico, era médico, já morreu, ele dizia-me sempre que, na Guiné,
um médico não é respeitado. Ele não me aconselharia que fizesse medicina porque deixa-
se de ter qualidade de vida, deixa-se de ter uma vida social, e a tua vida resume-se àquilo,
ao hospital e os doentes. E ele queria que eu fugisse um bocadinho a isso, mas também
nunca se opôs. Eles diziam sempre, “A decisão é vossa. Nós podemos opinar, mas a
última palavra é sempre vossa”. E foi assim que aconteceu. Fui eu que escolhi, por
vontade minha, e ainda não me arrependi. (risos)
E – (risos)
MDS – Eu tenho dores, sim. De vez em quando, uma ou outra revolta, pelo sistema. Mas,
do curso que fiz, não me arrependo, porque consegue-se sempre ajudar. E é sempre
preciso. Está sempre alguém a precisar de ajuda nesse sentido.
E – É bonito. Tem colaborado com a Associação Irmãos e Amigos de Farim?
MDS – Sim. Filhos e Amigos de Farim.
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E – Tem? Quer-nos contar um pouco dessa colaboração?
MDS – Os Filhos e Amigos de Farim é uma associação, lá está, que também começou
com amigos. Começou com amigos, porque nós sabemos que a emigração é complicada.
Uma pessoa que emigra e não tem alguém para a ajudar, nunca consegue concretizar os
seus sonhos, não se consegue orientar tão facilmente. E então, essa associação foi criada
por um grupo de amigos com a intenção, basicamente, de ajudar os outros.
E – Os recém-chegados?
MDS – Os recém-chegados. Os recém-chegados e também, no caso de falecimento, poder
sempre juntar algum dinheiro e contribuir para fazer o funeral e fazer as cerimónias que
nós fazemos, em Bissau. E então, fizeram essa associação, como sabe, pagam quotas e,
desde o início, muito bem estruturada, tinham as suas regras e obedeciam todos a essas
regras. E depois, a associação, foi tendo cada vez mais sócios, e sócios mais novos, e
sócios mais ambiciosos, e aquela tarefa que se limitava mais em ajuda aos que chegam e
do custo do funeral, foi-se ampliando. Neste momento, a associação dos Filhos e Amigos
de Farim é uma associação reconhecida, que tem os seus estatutos próprios, aprovados,
que tem a sua atividade reconhecida, inclusive na Assembleia e tudo, e tem os seus
parceiros. Portanto, é uma associação em crescimento. Eu fui convidada para, porque eu
também pertenço a um partido, e então, numa dessas reuniões, acho que foi aí, … Não.
Eu uma vez fui convidada para uma palestra de uma organização que estava a começar a
emergir, que era banbaran apili, banbaran apili. Apili, em crioulo, em Bissau, em
Guineense, é mulher. “Banbaran” é aquele pano que nós usamos para segurar as crianças
nas costas.
E – Ah, sim.
MDS - E então, essa organização estava a tentar emergir. Então, fizemos uma primeira
palestra, no Campo Grande, e eu fui uma das oradoras, no tema da saúde. Aí, conheci o
Eduardo e ele convidou-me para fazer parte da Associação. Mas lá está, costumo dizer
que nós, os médicos, somos extremamente cómodos. Nós encarnamos, vestimos a bata e
nunca mais saímos do hospital. Há poucos médicos que têm assim tarefas extra-hospitalar
que não têm nada a ver com a área da medicina. E eu fui dilatando, fui dilatando, fui
dilatando, (risos). É verdade, e ele, sempre paciente, chamou-me sempre, e tudo. Então,
eu decidi, agarrar o projeto, decidi fazer parte do grupo. Ainda tivemos formação na APF.
Um ano de formação – foi intensivo! (risos)
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E – Foi duro, não foi?
MDS – Foi duro! (risos) Foi duro, mas foi muito bom. E então, a partir daí, a partir dessa
formação, eu comecei a interagir mais com eles e fui ficando, e lá estou como membro,
como ativista, como responsável. E gosto do trabalho que faço apesar de ter pouco tempo.
Eu gostava de poder dedicar mais tempo às tarefas da Associação. Porque é uma tarefa
muito nobre.
E – É.
MDS – Mas não consigo, não tenho tempo. (risos)
E – Não dá para tudo.
M – Não dá, mas, felizmente, eles compreendem isso e temos uma ótima relação, uma
ótima relação. Até, a minha mãe diz-me sempre “Tu achas que consegues”, porque eu
estou na política, estou no hospital, estou na Associação, e ela diz “Como é que consegues
fazer isso?”. Eu cheguei à conclusão que não, que não conseguia. (risos) Eu até tento, mas
alguma coisa sempre (risos).
E – (risos)
MDS - Não consigo mesmo, mas vou dando sempre o meu melhor. Às vezes, eles ligam-
me, o Ussumane, é que nós coordenamos juntos os projetos, ele liga-me “Tu perdeste-te,
tu perdeste-te, não apareces” E eu “Vou aparecer, eu estou longe, mas estou junto no
coração”. (risos) Então, pronto, a Associação desempenha várias…, para além da MGF,
temos outras parecerias. Nós temos uma parceria com o “A sorrir”, nós conseguimos que
eles enviem médicos, sobretudo dentistas, para Farim, que é para fazerem educação na
escola, extração, tratamentos e tudo. Por isso, já foram umas quantas vezes a Farim.
Depois também fizemos parcerias com algumas escolas, vamos fazer workshops, vamos
fazer conferências.
E – Workshops, de que natureza? Pergunto.
MDS – Da MGF. Da MGF, da mutilação genital feminina. Porque nós sabemos que é um
tema que, apesar de já se falar muito, mas é um tema que ainda muita gente desconhece.
Muita gente desconhece e nós temos muitas crianças que precisam de saber que isso
existe, precisam de saber em que momento começa a ocorrer o perigo, porque como já
está legislado, essa prática, então as pessoas, agora, fazem às escondidas. Pegam nas
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crianças, levam para Bissau, com intenção de irem passar férias, e vão cometer o ato.
Então, nós precisamos que as crianças tenham consciência, e que outras pessoas,
portugueses, outras pessoas que não são a comunidade praticante, que também saibam
que isso existe. Porque quanto mais sabemos, quanto mais falamos disso, é mais fácil
conseguir erradicar a prática. Já evoluiu muito, não é? Porque… eu costumo dizer que
tudo o que é tabu, tudo o que não é abordado, não há maneira de erradicar. Porque eu
posso ter um problema grande, se eu não falar, vocês não sabem, não me conseguem
ajudar. E agora, falando, eu passo a palavra, ela vai passando, você passa, e então assim,
juntos, conseguimos fazer alguma coisa. E eu acho que a mutilação genital feminina não
foge à regra e têm-se conseguido grandes coisas. Porque, antes, inclusive aqui, faziam a
mutilação. Agora, quem for apanhado a cometer isso, a pena é pesada. Então, ninguém
vai arriscar. Ninguém vai arriscar, mas também é perigoso, porque agora fazem às
escondidas.
E – Pois é.
MDS – Antes, nós sabíamos onde encontrá-los e como fazer para os encontrar. Mas agora,
nós não sabemos. As pessoas que cometem erros desses são muito subtis. Fazem, assim,
com uma “perfeição”, digamos, as barbaridades, e então nunca conseguimos saber a hora
a que vão fazer, onde é que fazem. E nós, isso, precisamos de saber. E a única maneira
que nós conseguimos chegar a isso é falar, passar a palavra, pedir ajuda às pessoas,
consciencializando. Nós vamos às escolas, vamos às feiras, falamos do tema e, neste
momento, inclusive, aos hospitais. Estamos a tentar, que é para se dar palestras, para se
fazer conversa com as pessoas sobre o assunto. Para saber, quando temos uma situação
dessas, para onde encaminhamos as pessoas. Ajudar aquelas que já foram mutiladas e
prevenir e proteger aquelas que eventualmente possam ser mutiladas.
E – Como é que se ajuda uma pessoa que já foi mutilada?
MDS – É porque a mutilação genital feminina, para além das mazelas físicas também
deixa mazelas psicológicas.
E – Psicológicas.
MDS – Exatamente. E essas pessoas são geralmente pessoas muito fechadas, muito
introvertidas, fechadas no seu mundo no que respeita a esse tema. Nunca querem expor,
nunca querem falar. E então, no apoio, nós temos sempre que nos pôr no lugar delas. E
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fazer com que elas percebam que nós, apesar de não termos sido mutiladas, mas sentimos
a mesma dor. Porque, quer dizer, porque é que alguém vem mutilar-me a mim? O corpo
é meu, sou eu que decido o que eu quero fazer dele, não é? Não há direito nenhum que
venha outra pessoa com uns argumentos … não interessam os argumentos, porque não há
nada que justifique essa atitude. Então, conversando, apoiando em todos os sentidos, e há
sequelas físicas graves, também, que requerem muitas vezes uma reconstrução… são
maneiras que se podem usar para ajudar.
E – Para ajudar… até me arrepio.
MDS – Exatamente.
E – Sim.
MDS – As mulheres se juntam e são ouvidas. Sim, vale a pena, entrar na política e
tentarmos mudar o mundo, assim essa maneira
E – Aquela Lei de 2001, da abolição do fanado, acha que foi pelo contributo das mulheres
que se conseguiu?
MDS – Ah, nós temos uma boa parte aí, o nosso empenho, a nossa voz tocou nessa tomada
de decisão.
E – O que é que deseja para as mulheres do seu país?
MDS– Ai! Que todas elas sejam empoderadas! Que elas tenham uma voz ativa na
sociedade em que vivem, que elas contribuam para mudar aquela sociedade, contribuam
na educação, contribuam na construção e na reconstrução do país. É isso que eu desejo
para todas as mulheres. Que todo o mundo faça o que quer, que digam o que lhe vai na
alma, sem repreensão, sem castigo, sem nada disso. Que todo o mundo seja livre de dizer
o que espera. Lá está, muitas das vezes, nós exageramos, não deve ser assim! (risos) Mas
sim, acho que todos nós somos seres humanos, não devia haver essa divisão de homem e
mulher, porque as mulheres demonstraram, ao longo desses anos todos, que são capazes.
Quer dizer, eu costumo dizer que a mulher até consegue ser mais capaz do que o homem,
porque o homem está no escritório, é esta tarefa: hoje vou fazer uma carta de convite, é
esta carta convite que eu vou fazer hoje! A mulher já não, a mulher faz isto, faz aquilo,
faz o outro. A mulher está no escritório, vai para casa cozinha, dá banho aos meninos,
põe os meninos na cama, consegue fazer inúmeras tarefas num dia. Mas o homem foca aí
e é aí que vai. Portanto, eu acho que nós temos, anatomicamente, eu acho que é por isso
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que eles nos reprimem, porque anatomicamente está comprovado que a mulher funciona
com os dois hemisférios. E o homem só com um, portanto (risos), eles de maneira
nenhuma podem ser superiores a nós. Se nós não formos reprimidas, nós conseguimos
fazer muita coisa. E a mulher tem dado essa prova ao longo dos anos.
E – E está com esperança numa nova Guiné?
MDS – Ai sim, exatamente.
E - Com a participação feminina?
MDS – Exatamente. E na Guiné… A Guiné não é um exemplo de país, por tudo o que
tem acontecido, por todas as rixas, por todas as desavenças da classe política. Mas a Guiné
tem, tinha e tem ainda, tudo para ser um país, um país completo, um país exemplo, porque
nós temos homens e mulheres, mulheres e homens capazes. (risos) Nós temos mulheres
e homens capazes, temos recursos, nós temos tudo. A Guiné é um país pequeniníssimo, é
um país muito pequenino, que eu digo que não é difícil reconstruir a Guiné. Basta as
pessoas deixarem de ser egoístas e pensarem na Guiné como um todo, não como uma
parte, não como uma propriedade, como tem acontecido. Nós todos pensarmos na
sociedade, no povo em geral, e cada um der um bocadinho de si, nós conseguimos
construir a Guiné, nós conseguimos pôr a Guiné, projetar a Guiné no caminho do
desenvolvimento. Mas, enquanto há filhos da Guiné que pensam neles, e exclusivamente
neles, nós não vamos conseguir isso. Mas eu tenho esperança que sim, eu tenho esperança
que algum dia isso aconteça. Porque as mulheres da Guiné, agora, também estão a abrir
os olhos. Abriram os olhos. As mulheres agora gritam, as mulheres reclamam, as posições
das mulheres reclamam os seus direitos. Um exemplo disso, as mulheres conseguiram
recentemente, no parlamento, 36% de quota. Isso é inédito. Isso, há dez anos atrás, era
impensável falar nesse assunto. Isso é mais a demonstração de um avanço da nossa
democracia, um avanço da voz das mulheres. Por isso acho que é importante nós nos
empoderarmos.
E – Sim.
MDS – Eu aposto muito nisso, eu acho que nós temos de trabalhar para isso, nós temos
que lutar para que isso aconteça, para que todo o mundo tenha educação,
independentemente de a família ter ou não condição. O governo deve isso às pessoas, a
formação. É importante, isso é imprescindível, é essencial em qualquer sociedade, porque
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senão, não chegaremos lá. Mas eu tenho esperança que sim, a curto prazo mesmo, acho
que nós chegaremos, sim.
E – O que é que mais admira na cultura guineense? O que é que gosta mais?
M – Olha, em geral eu gosto de tudo, mas sobretudo aquela hospitalidade do guineense,
aquele espírito caridoso do guineense, porque acho que isso foi crucial mesmo para a
nossa sobrevivência, para o nosso Estado, para a nossa nação mesmo. Porque, com tantos
problemas que tem havido ao longo… nós somos independentes há quarenta e cinco anos,
só quarenta e cinco, e então, se nós formos fazer uma retrospetiva, em quarenta e cinco
anos, nós não temos nada, nós não fizemos nada! O pouco que o colonialismo nos deixou,
nós fomos capazes de destruir, e não conseguimos nada! Portanto, eu digo que a
benfeitoria do guineense tem ajudado o guineense porque, na Guiné, ninguém morre à
fome. Se eu tenho um prato de arroz, eu ponho no meio. Quem estiver, come. Isso é ótimo.
As pessoas não dormem na rua. Tu vais para a Guiné, não vês pessoas a dormirem na rua.
Podes ver as pessoas com problemas mentais a deambular, mas porque não têm onde
dormir, não acontece.
(telemóvel de Mariama toca. Mariama desliga-o.)
Desculpe lá!
E – Não tem problemas
MDS – Mas, porque não têm onde dormir, ou não tem o que comer, isso é raro de
acontecer, é muito raro acontecer. O guineense ajuda. Muito.
E – É engraçado, porque soube há pouco, é taxa zero de crianças abandonadas
MDS – Exatamente.
E – As crianças são adotadas ou recebidas em família.
MDS – Exatamente. Porque nós temos… lá está, essa é outra atitude que se tem perdido
um bocadinho. Por exemplo, na época dos meus pais, as pessoas se disponibilizavam para
criar filhos uns dos outros. O meu pai teve três irmãs. O pai do meu pai era marinheiro.
Andava mais no mar. E a minha avó, tinha as minhas tias e o meu pai. E então, o tio do
meu pai achou que era uma sobrecarga enorme para a minha avó, esses quatro filhos. E
também diziam que o meu pai não podia ser criado com as irmãs porque iria ter mania de
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mulheres. E então, era obrigado a tirar o meu pai daquele ambiente, que é para crescer
com os homens.
E – Sim.
MDS – O meu pai foi tirado daí e levado. Era assim, se as pessoas vissem que uma tem
dificuldade em criar os filhos, havia sempre quem se disponibiliza para ficar com esse
filho. Iam-se criando uns aos outros, e então, o cansaço, a sobrecarga, a pobreza, não
reflete muito. Menos um, a pessoa acaba por ficar sempre mais aliviada. Acho que isso
também é uma coisa muito, muito, positiva.
E – É bonito.
MDS – É bonito. Só que agora, com a mudança da conjuntura, as pessoas estão a ficar
muito egoístas.
E – É?
M – É. Ainda se vê essa partilha, tudo isso, mas as pessoas estão a ficar… daqui a uns
anos, na geração dos nossos filhos, já não vão ter essa característica.
E – É pena. É uma perda
MDS – Exatamente. Está-se a perder. Eu não me lembro, até 2000, eu não me lembro de
ter visto a casa dos meus pais fechada, a não ser à noite. Nós, irmãos, éramos seis. O meu
pai era médico, a minha mãe era enfermeira, e então era um nível de vida um bocadinho
melhor que muita gente, não é? Era de um estrato social mais elevado. Mas lá está, todos
os primos, os tios, o que se possa imaginar, estavam todos lá em casa. Estavam todos lá
em casa! Portanto, um saco de cinquenta quilos de arroz não chegava para um mês.
Eramos imensos! (risos)
E – Casa cheia!
MDS – É, casa cheia. É muito cheia. Eu, quando chego a Bissau, agora, quando entro em
minha casa, eu sinto uma dor, uma nostalgia… o meu pai não está, a minha mãe não está
lá, a casa está fechada, fico eu sozinha lá dentro. Apesar de aqui estar sozinha e habituada
a isso, e não sei quê, mas não é igual. Aquela ali, não estou habituada a vê-la fechada. E
dá-me dor. Dá-me dor. (choro)
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E – Há alguma história, alguma lenda, que nos queira deixar? Pode ser lenda, pode ser
história verdadeira, uma coisa que gostasse que tivesse expressão.
MDS – Ó… agora não me ocorre assim nada. Histórias há sempre! Há sempre. Vou tentar
ver o que é que … não sei (risos)
E – Se se lembrar, depois diz-me?
MDS – Ok.
E – Podemos deixar para depois e, se lembrar de qualquer coisa que gostasse de ver
integrado… que tenha gostado muito, ou que a tenha chocado...
M – Eu, o que me choca mesmo é a degradação humana. É isso. O estado, sobretudo o
estado social, o estado de saúde do meu país. Isso é que realmente me revolta, me dá dor,
me dá angústia, dá-me vontade de lá voltar, de lutar cada vez mais. Porque eu acho que,
eu digo que ninguém é feliz vendo pessoas ao redor a passarem fome, a passarem
necessidades. Como é que é possível uma pessoa não ter que comer? Acaba por comer
com os outros porque não tem o seu próprio comer, não tem como fazer, não tem como
… não tem dinheiro para comprar. Como é que é possível uma criança não ter acesso à
escola? Uma criança crescer e nunca ter visto uma ponta de luz? Não tem água…
E – Está-se a referir ao interior?
MDS – Exatamente. Ao interior. Eu gosto de me posicionar no interior porque, com os
anos que nós já temos de independência, é suficiente para o nosso interior ter as mínimas
condições, e todas as ajudas, todas as doações que se levam para a Guiné, ficam em
Bissau.
E – Pois é.
MDS – E não acho isso justo porque, realmente, os mais necessitados são os do interior,
porque em Bissau, de uma maneira ou de outra, a pessoa acaba por conseguir um…
qualquer coisa. Mas aqueles pobres, não têm como conseguir. Não tem como conseguir!
Porque quem está ao lado não tem, aquele não tem, e não têm capacidade para gerar
nenhuma fonte de rendimento. Vivem das terras. As terras estão cada vez mais secas, não
têm água potável, não têm escola… crianças de vinte anos, não se admite não saberem
ler, não saberem escrever. Isso é muito mau. Chegas a Bissau, e encontras pessoas com
Toyota Yaris, com Mercedes, com carros de alta gama, têm uma dor de cabeça, vão para
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Dakar, comem… sei lá! Camarões, comem lagostas, comem não sei quê… e aquele pobre
não tem o mínimo para pôr na mesa. Isso faz-me muita confusão. Muita confusão. Eu
aprendi sempre que não vale a pena vivermos num luxo enorme enquanto os outros a
morrerem de fome. (choro)
E – Pois é.
MDS – Tu nunca és feliz. É uma coisa… eu, pessoalmente, não consigo ser feliz sabendo
que há pessoas a morrerem à fome. Eu, agora, vou-lhe contar uma história. Eu fui para
Cuba com doze anos. Para Cuba vai todos os filhos dos funcionários, mas nem todos os
funcionários têm a mesma condição. Há funcionários que passam fome porque o nosso
salário mínimo, é mínimo mesmo. Não é nada! Não se compara mesmo com o ordenado
de uma pessoa… não sei qual é o mínimo. Uma senhora de limpeza ganha muito mais do
que um médico especialista em Bissau. E então, o nosso ordenado não é nada. E nós
fomos para Cuba, de diferentes estratos sociais. E havia quem… os pais podiam mandar
encomendas, há pais que conseguiam, mas há outros pais que não têm possibilidade de
fazer isso. E, então, isso gerava diferença entre nós. Na escola, nós, de segunda a sexta,
tínhamos que andar de uniforme. Não podíamos por as nossas roupas. Mas, no fim de
semana, para sair, ou mesmo para ficar na escola, podias por a tua roupa. Os teus
pertences, podias usá-los. Mas há pessoas que não tinham isso, não tinham. Eu recebia.
O meu pai mandava-me dinheiro, em dólares. E esse dinheiro, nós não podíamos ter
dinheiro na mão, não podíamos ter dólares americanos. Eramos obrigados a contactar e
eles iam fazer trocas a um peso convertível, no banco.
E – Sim.
MDS – E então, com esse dinheiro, podias ir fazer as tuas compras, compravas o que
quisesses. E então, alguns recebiam dinheiro. Mas, como é que é possível estares num
universo com mil e tal pessoas, tu, este e este, recebem, e os outros não recebem? Vão
usá-los sozinhos? Não dá. E então, nós partilhávamos. Voluntariamente. Não era
obrigatório. Só partilhava se quisesse. Mas nós… não havia ninguém que se recusasse a
isso, nós partilhávamos. Havia pessoas, eu lembro-me. Por exemplo, há pessoas que
tinham um sapato, e depois desgastam na sola. E quando chovesse, ai, os papelões, os
cartões, não sei quê, aquilo era uma concorrência danada! (risos). De cada vez que
chegavam mercadorias à escola, ao armazém, cada um ia buscar o seu papelão e guardar,
caso fosse preciso. E então, aparecia alguém “Tens algum papelão? O teu papelão sobrou
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alguma coisa?” Porque queriam o papelão para reforçar, para por dentro do sapato, para
poder andar à chuva. E então, era assim que nós vivíamos. A partilha era inteira. A minha
roupa não era minha só. Eu vestia, depois lavava, guardava, vinha outra: “Olha, para a
semana quero vestir aquela!”, “Tudo bem, leva!”. “Para a semana, quero vestir outra
coisa!” E há pessoas que, por exemplo, visto esta calça, mas eu vou sair de manhã, a
minha licença acaba e ao meio dia tenho de estar na escola, e havia quem saísse à tarde
“Ai, eu quero vestir esta calça!”, “Ah, mas é essa que eu vou vestir”, “Está bem, então eu
vou ficar aqui à espera”. Então eu vou, ao meio dia, já sei que tenho que vir rápido porque
a pessoa está à espera da minha calça e tenho que lhe dar. E a partilha foi assim, era uma
irmandade, e ainda hoje temos essa relação, nós que estudámos em Cuba. Temos uma
relação muito estreita, uma relação muito bonita. Eu lembro-me que, uma vez, porque
cada pai tinha que arranjar como fazer chegar a encomenda.
E – Sim.
MDS – E era difícil. De Bissau para Cuba não havia voos, as pessoas não circulavam a
não ser os estudantes. E era uma vez ao ano! E então, o meu pai decidiu fazer uma
associação de pais. Ele arranjava um contentor, e cada pai ia, fazia compras, depositava
no contentor, e ele arranjava maneira de transportar aquilo para Cuba. E, então, o meu pai
dizia “Dinheiro não te dou porque se tu tiveres dinheiro em mão, tu vais comprar inclusive
o que não precisas, e tu tens lá pessoas que nem o mínimo conseguem”. O meu pai não
me dava dinheiro. O meu pai mandava-me roupa e, depois, quando formaram a
associação, … às vezes, ele mandava dinheiro, mas o dinheiro não chegava à minha mão.
O dinheiro ia para os responsáveis. E ele descrevia o que é que se ia comprar com esse
dinheiro. E em baixo punha sempre: “P.S. Sem diferença com os outros estudantes”.
Portanto, eu não podia comprar uma coisa extremamente cara que me fazia uma grande
diferença com os outros. Ele não deixava. Eu lembro-me que a primeira vez que foi, o
meu pai levou, para mim, sacos de arroz, levou caixas de atum, corned-beef, e coisas
assim. Nós usamos muito óleo de palma, ele levou três, quatro bidões de cinco litros de
óleo de palma, levou azeite, levou muita coisa. E, quando chegou, ele disse “Eu trouxe
isto para ti” e depois, entre aspas, “para vocês”. (risos) E então, eu deixei aquilo num
canto do nosso dormitório. Cada dormitório, a ala das meninas, eram quatro pisos.
E – Sim.
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MDS – Quatro pisos. E cada piso tinha … eramos quatrocentas meninas. Os rapazes eram
quatrocentos também. E então, eu deixei aquilo num sítio que fosse acessível a toda a
gente. Aí não havia como… eu podia guardar tudo, podia fechar, mas não fazia sentido.
Como é que eu ia consumir isso tudo, e as pessoas ao lado com fome?!
E – Claro.
MDS – Não dá.
E – É muito bonito.
MDS – Eu não consigo. Eu não me lembro, mesmo na escola, no hospital, eu não consigo
fechar nada! Eu não consigo. Na minha casa, eu só fecho a porta principal, o resto está
tudo aberto. E eu noto essa diferença, mesmo entre eu e os meus irmãos, eu noto um
bocadinho essa diferença. Apesar de sermos filhos dos mesmos pais, não sei, há quem
feche mais, há quem seja mais agarrado aos seus pertences. Por exemplo, eu deixo as
minhas coisas aí, eles chegam e podem pegar e podem fazer uso, não é? Mas, já para mim,
é diferente. Eu, para pegar, “Posso pegar isto? Posso…?”, não é? Noto assim um
bocadinho de diferença nisso. Apesar de eles nunca dizem “não!”. Mas têm as coisas
guardadas, num espaço. Para tu acederes tens que pedir licença. Isso é um bocadinho
diferente, comigo. Eu deixo, à vontade. E todo o mundo usa. Mesmo no hospital,
rebuçados e não sei quê, deixo aí e todo o mundo come, e pronto! Eu não consigo. Não
sei, não consigo ver alguém a passar necessidade à volta. Acho que é injusto. Acho que
todos nós devíamos ter um bocadinho.
E – O mínimo.
MDS – Exatamente. O mínimo. Eu, o meu carro… eu para comprar esse carro foi uma
guerra. O pai da minha filha dizia… e eu, “Como é que eu vou andar com um Audi?!” E
há pessoas a andarem de comboio e nem dinheiro para o comboio têm! Não pode ser. E
ele, “Mas isso, o que é que isso tem a ver? Eles têm as suas vidas e tu tens a tua!”.
E – As pessoas podem andar de comboio, não têm de andar de carro.
MDS – Exatamente. Essas diferenças grandes fazem-me imensa confusão. Por isso é que
eu arranjo para fazer voluntariado, para estar na associação, que são coisas fora do
hospital. São coisas que me fazem sentir bem porque eu fico com a consciência um
bocadinho aliviada, porque ajudei. Fiz alguma coisa por alguém.
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E – E agora está a fazer para nós (risos). Não sei, eu estou muito agradecida, eu vou usar
algumas coisas que me disse.
MDS – É essa a minha vida. Não tem assim nada de engraçado.
E – É um grande exemplo.
MDS – Não sei.
E – Um dia, se voltar à Guiné, avise-me, está bem?
MDS – Eu vou voltar. Vou voltar. No governo, sem governo, a fazer voluntariado, a fazer
qualquer coisa. Mas eu tenho que voltar mesmo. Porque, aqui, vou ao hospital, vejo dez-
quinze, os meus colegas vêm outros dez-quinze… mas, na Guiné, eu vejo cem. Eu não
me importo. Estou lá! Estou lá o dia todo a ver doentes atrás de doentes. E ainda, aqui, a
pessoa que há pouco me ligou, ligou-me de Bissau. Porque há alguma necessidade “Ah,
eu fui ao médico, receitou-me isto, posso fazer?”, “Ah, sim, pode“, “Ah, mas eu não tenho
como fazer”. Então eu lá vou comprar. Há um ano atrás, fui chamada porque nós
passamos receitas hospitalares, já vêm informaticamente e não sei quê. Mas, depois,
podemos comprar receitas na ARS e passar em casa.
E – Sim Manualmente?
MDS – Manualmente. São quarenta e seis ou quê. Com esses pedidos todos, às vezes,
excedo as quarenta!
E – Pois é.
MDS – E fui chamada. Tenho que justificar o porquê. Então, a minha sorte, é que tudo
quanto vou mandar, eu faço, eu peço nota nos correios. Compro, ponho nos correios e
vou guardando as notas. Foi assim que eu consegui justificar porque, senão, seria
sancionada, não podia exceder, nem de longe, as quarenta. Então, mas eu vou-me sentar
aqui e saber que há alguém a precisar, mesmo urgente, lá?
E – Esse espírito de ajuda, eu encontro muito nas mulheres guineenses. Também não
tenho falado com homens. Mas encontro muito nas mulheres, é engraçado. Esse espírito
de enviar coisas para lá…
MDS – Os homens ajudam. O problema é que eles dão dinheiro às mulheres (risos)
E – Bem visto (risos), bem visto.
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MDS – Eles não têm paciência de andar nas lojas, buscar, fazer as compras. E, então, dão
dinheiro e as mulheres vão fazer, dão dinheiro e as mulheres vão mandar. Não, eles
ajudam. Em termos de ajuda, sim, ajudam mesmo. E outra coisa… eu vou dar exemplos
sociais, só isso. E outra coisa, em Bissau, no hospital, tem que se comprar tudo. Tudo,
tudo, tudo! Não há nada que se dê. Num hospital público! Não há nada que é dado. Se
você está com uma crise… chegas lá, arranjas maneira que o médico te veja, com dinheiro
ou com uma conversa boa, e tem que passar receita para você ir comprar ou para um
familiar ir comprar e fazeres a medicação de urgência. E às vezes, a pessoa chega tão mal,
tão mal, que enquanto o familiar vai e vem, morreu, ou apanhou um AVC… e então, um
dia destes, estava… eu fui e, então, quando nós vamos, os colegas pedem consultoria, os
colegas que lá estão. Vou a uma enfermaria e estava um rapaz muito doente, no máximo
tinha vinte anos. Um negro branco, branco, branco, branco! Tinha para aí umas treze
gramas de hemoglobina. Perguntei, “O que é que ele tem?” “Tem anemia, ele tem
anemia”. Precisava de uma transfusão. O homem já estava exausto, ia morrer. Eu disse
que ia pedir uma transfusão. E ele disse, “Mas a família não tem dinheiro para uma
transfusão”, “O quê? Ele vai morrer por falta de sangue?”. “A família não tem dinheiro
para comprar sangue”. Eu fiquei a olhar para o rapaz, a chorar. Eu peguei no colega e
disse “Vem tu comigo, vamos comprar sangue”. Eu disse “Vamos começar com três
litros.” “Mas quem paga o sangue?”, “Neste momento, não é o mais importante quem
paga, o que importa é que aquele rapaz se salve”. Fomos comprar sangue para o rapaz. O
rapaz levou seis litros de sangue. Paguei tudo. E esse rapaz ainda hoje me liga. Ele não
sabe o meu nome, diz-me “salvador” (risos). Diz-me “salvador”. Os meus colegas lá não
têm materiais para trabalhar. Eu levo as minhas batas e não venho com as minhas batas,
eu vou com estetoscópio e não venho com o meu estetoscópio. Mas isso não é justo! Isso
não devia acontecer. Nós temos quarenta e cinco anos de independência, não devia
acontecer. Mas pronto!
E – Obrigada Mariama. Muito obrigada.
MDS – Nada. De nada.
E – Foi uma grande entrevista. Obrigada.
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