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Departamento de Teologia
ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM A
EMMANUEL LÉVINAS
Aluno: Yan Piorno
Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer
Introdução
O presente texto se vale do pensamento do filósofo judeu franco-lituano Emmanuel
Lévinas e sua reflexão sobre a alteridade e a hospitalidade. Em continuidade com as pesquisas
anteriores, as categorias propostas por Lévinas seguem sendo o ponto de partida para a
abordargem de temas como como violência, criminalização, a estigmatização do outro e, com
este arcabouço, pensar teologicamente os dramas que acompanham sujeitos socialmente
marginalizados, pobres e desassistidos em contextos de violência urbana das periferias
brasileiras, e qual o lugar da espiritualidade, qual o lugar da própria teologia no fomento ou
―neutralização‖ da consciência e do enfrentamento de tais contextos. Mais uma vez nos
valemos também da experiência da curta, mas intensa, vida da jovem holandesa Etty Hillesum
com sua vivência de solidariedade em um dos momentos mais obscuros do século XX, o
Holocausto, e, tendo como fundo sua história, vinculamos com a história das mães que
enfrentam os riscos, violência do Estado e do ―crime organizado‖, em defesa de seus filhos.
Objetivos
Fomentar a reflexão sobre a ruptura ética em nossos dias, tendo como referenciais os
conceitos de alteridade e hospitalidade como propostos por Emmanuel Lévinas, e como a
―aniquilação‖ de tais conceitos estão no resultado da violência que consiste na ―produção‖ de
sujeitos marginalizados, sujeitos ―matáveis‖, corpos expostos a todo tipo de violência e risco,
fora do campo de alcance dos direitos e da memória. Denunciar uma mentalidade forjada com
a semelhança do Holocausto, enquanto metodologia de distinção entre ―nós‖ e ―eles‖,
―cidadão de bem‖ e ―suspeitos/criminosos‖, que permite encarcerar e matar. Apontar
caminhos, que tem na trajetória da holandesa Etty Hillesum, em meio a sua experiência
durante o Holocausto, uma referência para pensar como o compromisso com a alteridade que
inclui o outro e a hospitalidade que é solidariedade, e que é capaz de oferecer uma resistência
à uma cultura de eliminação. Tal alteridade e hospitalidade como resistência, vê-se nos
movimentos de mães que transformam a perda de seus filhos em motivo de luta permanente,
que desvia da vingança e busca ver o exercício da justiça.
Metodologia
Em primeiro lugar, partimos a partir de uma apropriação do sentido e relevância dos
conceitos de alteridade e hospitalidade em Lévinas (LEVINAS, 2006), e como ele aborda o
risco de a alteridade se reduzir a um ―mesmo‖, ao invés de fomentar uma ética da diferença,
que permita abrir-se para o outro e quem ele é com suas diferenças de mim mesmo. Lévinas
também trata a hospitalidade como solidariedade, uma acolhida que se expõe aos riscos, mas
que nega o fechar-se em si mesmo em busca de autopreservação. Aqui também se aplica a
definição de força trabalhada pelo filósofo franco-lituano, em que a força, enquanto exercida
(pelo estado, por um grupo social, por uma elite, por uma cultura, etc.), ―não se perde entre
aqueles que a sofrem‖, ao contrário, ―ela está vinculada a personalidade ou a sociedade que
a exerce‖ e sua força os faz crescer cada vez mais na medida em que subordina, ou subjuga os
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demais. Com tal reflexão foi possível pesquisar, por exemplo, como uma perspectiva do
Holocausto enquanto mentalidade opera lógicas como os ―campos urbanos‖ que podem ser as
favelas e complexos de favelas em cidades como o Rio de Janeiro, onde um grupo está
―confinado‖ a viver, se divertir, desfrutar com toda a precariedade e só sair para trabalhar ou
atender demandas de burocracia que exigem o acesso a partes centrais da cidade. A cultura do
esigma sobre o ―suspeito de envolvimento com o tráfico‖, que passa a ser uma espécie de tarja
de identificação do mau elemento, e assim por diante.
Um outro campo de observação partiu do conceito que Lévinas desenvolve em Da
existência ao existente”. ―Condenados‖ ao anonimato e a invisibilidade, identificamos
aqueles que vivem a condição do ―há” levinasiano, vítimas da impessoalidade do poder, que
os inclui na existência mas não os reconhece como existentes (LÉVINAS, 1998). Não há
portanto passagem do ―há” para ―hipóstase”. É com esta impessoalidade que o poder do uso
―legítimo‖ da força policial entra muitas vezes nas periferias, sobe morros e favelas no Rio de
janeiro. Talvez por isso, temos em Etty Hillesum, não apenas uma jovem ousada e destemida
que neutralizaria de sua alma e de seu coração todo o medo e todo abalo da escolha de uma
alteridade. Viver no mundo exterior integralmente tem também esse caráter de compromisso
em não se omitir diante de circunstâncias por demais tenebrosas, as quais a jovem judia
holandesa experimentava com tantos outros irmãos. O convite à responsabilidade
desinteressada feita por Lévinas é então aceito por Etty Hillesum, no passo voluntário para
Westerbrork, e de lá para Auschwitz.
Por fim, nos aproximamos dos relatos e movimentos de lutas por direitos e justiça de
algumas mães cujos filhos foram vítimas de violência, acompanhando parte do processo de
suas lutas e como a espiritualidade também marca esse processo. A espiritualidade entra como
força motivadora, fonte de uma esperança que não se esgota e um conforto cotidiano em meio
à memória que envolve dor. Alteridade e hospitalidade se conectam aqui, identificados de
maneira diversas, não só na luta das mães, mas também no esforço de desconstrução de uma
cultura que estigmatiza sujeitos, principalmente jovens e pobres, constroem sujeitos como
ameaças sociais, riscos para o bom funcionamento da sociedade. Muitos destes filhos foram
vítimas a partir desta construção. A hospitalidade enquanto solidariedade, se abre para todo
grupo social marginalizado e estigmatizado, que podem ser alvo de um enquadramento.
Conclusões
O estudo teórico possibilitou a publicação de artigos que buscaram acrescentar no
debate da ética, da violência e do olhar sobre comunidades periféricas e grupos sociais
marginalizados.
A reflexão de Lévinas ganhou espaço em debates e grupos de discussão, auxiliando
inclusive numa revisão de significado da cultura periférica em espaços de debate e pesquisa
sobre o tema e uma contribuição significativa, no Rio de Janeiro em particular, para
ampliação de sentido de compreensão da violência.
Segundo David Harvey, a segregação socioespacial transformara as cidades em
territórios estanquizados. Territórios marcados, sobretudo, pelo tipo de sujeitos que neles se
distribuem. Áreas de fato muito ricas, áreas de fato extremamente pobres. Entre uma área e
outra, várias matizes da dinâmica social que vão compondo o cotidiano das sociedades,
grupos diversos, classes diversas. Atravessando todas estas matizes está a crescente sensação
de insegurança, o medo permanente da violência, o risco que ronda a vida nas cidades. Cada
vez mais, para o estado, para os gestores das cidades, o bem governar é conduzir bem a
segurança pública, mas que é notadamente a segurança de um público específico, enquanto
controla outros, a partir de seu monopólio da violência. Mas medo e risco são palavras
polissêmicas, de muitos sentidos, percepções e formas de se materializar. Elas podem
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inclusive constituir a própria política pública, podem estar inseridas como instrumentos de
controle no plano de governar.
Um exemplo comum à quase totalidade de países da América Latina é a política de
guerra às drogas. Usada como instrumento de conter o avanço da produção e do consumo de
drogas no continente, esta política se confunde com o cotidiano de violência nas periferias
destes países, onde estão concentrados grande parte de sua população pobre. A política de
guerra às drogas segue também um roteiro de estigmatização muito bem definido. Esse
roteiro é uma espécie de testamento que se mantém como uma herança de nossa sociedade
autoritária e desigual, profundamente hierarquizada e elitista, que se constituiu no continente
americano, como foi tão bem sintetizado pelo uruguaio Eduardo Galeano no clássico As veias
abertas da América Latina. Essa estigmatização é a construção de um ―perfil objetivo‖ de (A)
um grupo social, cuja relação com as drogas é vista como ameaça e crime; (B) territórios
específicos, cuja presença da droga, seja pela produção ou pela circulação, são vistos como
territórios ingovernáveis, sujeitos às arbitrariedades violentas que se revestem de força da lei;
e (C) corpos objetivos, cujo contato com a droga é peremptoriamente demonizado e
legitimador da repressão imposta.
Para estes é que o discurso passa a ser utilizado como poder. Como bem lembra a
venezuelana Rosa Del Olmo, ―o importante, portanto, não parece ser nem a substância nem
sua definição, e muito menos sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano,
mas muito mais o discurso que se constrói em torno dela‖1. Portanto, política de Guerra às
Drogas na América Latina está profundamente marcada pela manutenção da criminalização
da pobreza.
Exercício de poder, estigmas e criminalizações tornam-se instrumentos de ―produção‖
de sujeitos sem-rosto nas cidades, uma permanente invisibilização que começa com um não
reconhecimento e, em seguida, um remanejamento do outro para uma categoria dos sem
lugar. Vale-se do imaginário coletivo dos ―não-lugares‖ ocupados por indivíduos nas
sociedades urbanas: o preconceito geo-identitário a pobres, pretos, moradores de favela; a
hostilidade àqueles tidos como sendo de comportamentos desviantes, sejam traficantes,
pessoas em situação de rua, usuários de drogas, prostitutas, pessoas LGBT, menores
infratores. São muitos ―não-lugares‖ ocupados, delimitados não pela comunicação formal,
mas pelos estigmas interiorizados, a deportação para o anonimato e o não reconhecimento,
sem-rosto. Rostos que somem do reconhecimento do estado, da sociedade, das instituições, e,
pasmem, até das igrejas. Há uma silenciosa compreensão de uma parcela da sociedade de que
o ―corpo social harmonioso‖ vai encontrar seu equilíbrio com a eliminação — seja pela
execução, pela reclusão, ou pela marginalização invisibilizadora — dos que ―incomodam‖,
ou, como afirma a socióloga Vera Malaguti, com a amputação destes membros ―gangrenados‖
do corpo social.
Aqui vale insistir numa reflexão que fomente a desconstrução das periferias de nossas
cidades como ocasionais aglomerados de pobres, destituídos da presença do cuidado social do
1 Del Olmo, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 22.
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estado. Antes, deveríamos entendê-las como o sociólogo francês Loïc Wacquant define os
guetos americanos que ele tão bem estudou: uma ―forma institucional‖. É preciso dar
visibilidade às sutilezas do estado, que mantém uma massa sob controle dissimulado,
lançando sobre eles a conta da ameaça institucional e da desordem social. É preciso dar
visibilidade a essa capacidade do estado de produzir medo e estigmas, bem como de
potencializar o medo e o estigma já existente na cultura da sociedade, para legitimar e
justificar a violência, a fé na punição e a militarização. Tais características teriam então o
papel de exigir, cumprir e manter o lugar da preservação da responsabilidade individual na
vida social. É ponsível pensar outra forma de cuidado e responsabilidade?
A responsabilidade constitui um dos mais desconfortantes desafios nos apresentados
por Lévinas. Desconforto quando pensada em um mundo e um ambiente de negação do
cuidado e afirmação da auto-preservação. Pensamento caro a Lévinas, a responsabilidade é
pensada como antes e acima da própria liberdade. Uma reflexão que passa desde suas leituras
talmúdicas até a sensibilidade tocada pela própria experiência vivida durante o holocausto,
experiência vivida e refletida em grande parte a partir de ―Da existência ao existente”. Em
seu livro “Quatro leituras talmúdicas‖ lemos:
A Torá é dada na Luz de um rosto. A epifania do outro é ipso facto minha
responsabilidade com respeito ao outro: a visão do outro é desde já uma
obrigação a seu respeito.2
Para Lévinas, a existência do ser não pode ser justificada com o seu fim em si mesmo,
mas em verdade em como o seu cuidado com o outro se manifesta. Momentos de horror
costumam suscitar não apenas o medo, mas também uma luta pela sobrevivência que cega e
ensurdece quanto à presença do outro, e principalmente quanto a sua vida dizer respeito ao
meu cuidado e responsabilidade. Esse distanciamento do outro é caminho de refúgio em
ocasiões de fechamento das liberdades, de perseguição e de avanço do terror que causa
desesperança.
A negação dessa responsabilidade passa a ser portanto, integrante deste corolário de
propagação da força impessoal da regra, da doutrina, do controle e do subjugo imposto ao
outro não compreendido como um de nós. Seguir o pensamento de Lévinas é perceber que tal
contexto esteve presente de maneira ativa não só durante o período de domínio nazifascista na
Europa, mas também em dias hodiernos, de intensa disputa pela esfera pública e reivindicação
de acesso ao poder. A negação da responsabilidade pelo outro ou a imposição da projeção do
mesmo no outro passa por essa herança do idealismo, mas tem desdobramentos que já se
distanciam dele. ―Existir, diz Lévinas, em todo o idealismo ocidental, refere-se a esse
movimento intencional de um interior para o exterior”. Isso o leva a concluir que, aqui, ―o ser
é o que é pensado, visto, agido, querido, sentido, o objeto”3. Essa objetivação que nega ao
outro o direito de ser, pode estar presente também em algo como o holocausto, mas a negação
da responsabilidade pelo outro ―neutralizou‖ mentes e corações para qualquer movimento no
sentido contrário, isto é, de reverter a indiferença diante do clamor do outro. Por isso, para
Lévinas, a liberdade não se mostra suficiente, ela não pode ofuscar a responsabilidade – não
entendida como um exercício de controle constitutivo de uma heteronomia, mas como a
generosidade fluente de uma autonomia. Ela é então o que se torna realmente importante, pois
2 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 97
3 LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998, pg. 43
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para ele essa compreensão “é a noção de uma responsabilidade que precede a noção de uma
iniciativa culpável”4.
Lévinas leva a sério este eu deposto, a queda deste eu que cuida apenas de si mesmo,
que se entende no convívio social em detrimento do outro, ou deste próximo mantendo
distância. Este eu desvinculado de outro é uma espécie de ―equação falha‖, seu resultado não
pode apontar solidariedade. Seguindo o rastro deixado pela reflexão de Lévinas, se atento
estivesse a este chamado, seria essa a compreensão de Israel, herdeiro do patriarca Abraão:
Que outra coisa pode significar a descendência de Abraão? Lembremos a
tradição bíblica e talmúdica relativa a Abraão. Pai dos crentes? Certamente.
Mas sobretudo aquele que soube receber e alimentar homens; aquele cuja
tenda era aberta aos quatro ventos. Por todas essas aberturas, ele observava os
passantes para acolhê-los. (...) A descendência de Abraão: homens a quem o
ancestral legou uma vida difícil de deveres e, na relação com o outro, nunca
completada, uma ordem que nunca cumprimos totalmente, mas com a qual o
dever toma antes de tudo a forma de obrigações a respeito do corpo, o dever
de alimentar e de abrigar.5
Lévinas persegue esse compromisso com a responsabilidade que vem do apelo do
rosto de outrem. Mas isso não vem como uma escolha que possa ser feita ou recusada, ela é,
para fins de sobrevivência da própria humanidade, essencial e necessária. ―Para que o mundo
humano seja possível”, diz o filósofo franco-lituano, ―é preciso que se encontre, a todo
momento, alguém que possa ser responsável pelos outros”6. Isto é, sem este ser-responsável
tal mundo há de se tornar in-sobrevivível. A entrada do povo escolhido, segundo a narrativa
bíblica, na terra de Canaã só poderia ser compreendida pelo mesmo, se fosse não para pura e
simplesmente conquistá-la, mas para santificá-la, e santificar a terra tem exatamente, para
Lévinas, este compromisso de tornar a terra justa para todos7, ou seja, homens e mulheres que
adentrariam a terra não para subjugar os ali situados, mas para servi-los, sendo responsáveis
por ele.
Se o rosto levinasiano é caracterizado pela forte exigência ética, a negação do
reconhecimento do rosto de outrem traduz-se bem por ruptura ética. Exercício de poder,
estigmas, criminalizações, tornam-se instrumentos de ―produção‖ de sujeitos sem-rosto nas
cidades, uma permanente invisibilização que começa com um não-reconhecimento e em
seguida um remanejamento do Outro para uma categoria sem lugar. Vale-se do imaginário
coletivo dos ―não-lugares‖ ocupados por indivíduos nas sociedades urbanas: o preconceito
geo-identitário a pobres, pretos, moradores de favela; a hostilidade àqueles tidos como sendo
de comportamentos desviantes, sejam traficantes, moradores de rua, viciados, prostitutas,
gays, menores infratores; ―lugares‖ profissionais tidos como de menor importância no corpo
social como pedreiros, garis, serventes, domésticas. São muitos “não-lugares” ocupados,
4 POIRIÉ, François, Emmanuel Lévinas, ensaios e entrevistas, São Paulo, Perspectiva, 2007, pg. 90
5 LÉVINAS, Emmanuel, Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2001, pg. 23 6 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 168
7 Será essa a leitura feita e proposta por Lévinas, em Quatro leituras talmúdicas, do conhecido episódio contido
no capítulo 13 do livro de Números: “Se Moisés nos tirou do Egito, se nos abriu mar e nos nutriu com maná, acreditam vocês, portanto, que sob o seu comando nós vamos conquistar um país como se fôssemos conquistar uma colônia? Acham vocês que nosso ato de conquista pode transformar-se em imperialismo? Nós vamos construir nessa terra uma cidade justa. Isso é santificar a terra. Santificar a terra é nela construir uma cidade justa”.
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delimitados não pela comunicação formal, mas pelos estigmas interiorizados, a deportação
para o ser em geral (o ―há”), anônimos, desconhecidos, sem-rosto.
É possível pensar a partir disso, o quão difícil se torna ter de ouvir as falas de mães
que perderam seus ilhós e hoje se organizam em movimentos coletivos de amparo e denúnica.
Os relatos sobre tiros que atravessaram a cabeça; da tortura com o saco e o afogamento; da
humilhação antes de morrer, e o corpo ignorado; da cena do crime violada e forjada para
simular um confronto; da acusação precipitada pela sociedade de ―bandidinhos‖ e ―envolvidos
com o tráfico‖; do funeral decente negado; da recusa de socorro. Cada vez que essas mães
narram o que aconteceu, fala-se sobre a sensação de que elas também ―morrem um pouco‖.
Mas a ressurreição delas parece vir cada vez que a memória dos seus filhos clama por justiça.
Em abril de 2015, o Rio de Janeiro recebeu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), de
deputados federais que investiga o extermínio de jovens negros e pobres no Brasil. Mas como
a CPI também é um instrumento do estado, ela tem sempre o forte risco de não corresponder,
uma vez que mostra-se incapaz de responsabilizar o próprio Estado, sobre os números
altíssimos de jovens mortos que o Brasil hoje possui. Assim sendo, a CPI acaba por se tornar
um investimento pouco eficiente, ao não tratar o racismo como elemento protagonista — e
não um mero detalhe — desse extermínio invisibilizado. Também não possui nenhuma
proposta concreta de responsabilização do estado. Porque todos os dados apontam como
sendo ele, o estado, quem mais mata. Mas como nunca mata apenas a vítima atingida, vai
matando aos poucos também a resistência dos que estão à volta, como nesse relato de uma
mãe vítima de violência no Encontro de Campanhas de Enfrentamento ao Extermínio de
Juventude Negra e ao Racismo:
Todos os dias eu penso que se eu morasse por perto da ponte Rio-Niterói, eu já teria me
jogado de lá, pra acabar com esse sofrimento. Desde que o estado tirou a vida do meu filho,
minha vida em casa, com meu marido, é um inferno. Apenas no meio de vocês, em atos,
manifestações e encontros como esses, eu tenho um pouco de felicidade.
Cada vítima da ―guerra às drogas‖ nunca é apenas ―uma‖ vítima. Jovens pretos da
favela. Jovens policiais pretos residentes nas mesmas favelas. Parece que a figura do estado
mata onde, quando e como quer, sem sujar as mãos, já que usa as mãos (e os rostos) de outros
para apertar o gatilho. Com essas mulheres, a academia precisa aprender a ser afetada, para
além da sua racionalidade instrumental, dos dados, dos Power Points bem elaborados, dos
conceitos bem explorados e interpretados. Com elas, as igrejas precisam aprender a ter fé,
perseverança e indignação, mediante um ambiente alienador que não aproxima os seus
membros do mundo real, precisam chorar, sentindo a mesma dor. Com cada uma dessas mães,
as ONGs precisam aprender a não se acomodarem, a não serem pautadas pelo estado, mas
pautá-lo, exigir dele, enfrentá-lo.
"Há tempos que o homem negro é um encarcerado dentro do seu corpo"8, escreveu
Frantz Fanon no seu livro mais famoso, Pele Negra, Máscara Branca. Encarcerar o negro em
seu próprio corpo é a domesticação cotidiana, a disciplina que opera legal e moralmente, e
8 FANON, Frantz. Pele negra, máscacras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008, pg.30
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que atinge de maneira mais pesada e violenta os mais pobres e pretos, sempre. A exigência de
um corpo "que não seja suspeito" é a vigilância permanente do sujeito preto e favelado. Por
outro lado, o apóstolo Paulo vai dizer, na sua carta aos Romanos, que nós, a humanidade,
homens e mulheres, ansiamos sempre pela redenção, a libertação do nosso corpo. A libertação
de corpos disciplinados, vigiados pelo Estado (Império Romano), pela religião, e pela
sociedade que estava disposta a se submeter à lei que o poder impunha.
Evidentemente a Lei não nos torna melhores, e nem foi feita para tal. Sobretudo no
Brasil, leis sempre foram pensadas para controlar os suspeitos. O Código Penal foi elaborado
para vigiar e punir as ameaças, os diferentes, os pretos alforriados que invadiam as ruas do
Império, e que seguem sendo hoje os protagonistas da pobreza e da favelização precarizada da
cidade. A Lei que criminaliza o corpo e nos torna estranhos. "Quando me amam, dizem que é
apesar da minha cor", escreveu Fanon, "quando me detestam, dizem que não é por causa da
minha cor. Em uma ou outra situação sou prisioneiro de um ciclo infernal"9. A Lei que
criminaliza os corpos pretos e empobrecidos condiciona um enquadramento marcado pela
construção dos comportamentos suspeitos. E se a Lei é o Estado, o suspeito "padrão" é
também um suspeito para o Estado.
As igrejas e líderes religiosos que aclamam para si a defesa de uma Lei moral que eles
consideram "a única", matando assim a pluralidade reconhecida pelas narrativas dos
Evangelhos, também se tornam algozes em nome da Lei. Aqui, Estado e Igreja se encontram.
Franz Hinkelammert, teólogo e economista, diz que a crítica de Paulo à Lei, negada e
ocultada pelos adoradores da Lei, está reconhecendo que "os tribunais e a polícia estavam do
lado daqueles que cometeram crimes"10
. A condenação de Jesus mostrava que não era uma
questão de ser justo ou injusto, criminoso ou inocente, mas o quanto era interessante para a
Lei construir um culpado.
Com a Lei, e sua (in)devida manipulação, controlam o corpo, reprimem o
questionamento, o protesto, a sexualidade, as drogas, o tamanho do vestido, o tom de voz, a
música a ser ouvida, os movimentos, o beijo, os gestos, enquadram os afetos, cerceiam a
mobilidade. Fanon dizia que "não queria nada menos que a libertação do homem negro de si
mesmo"11
. Era se libertar desse peso, dessa criminalização, desse controle que incutiram sobre
ele, para que ele naturalizasse. Para que ele não busque no homicídio diante dos seus olhos na
favela as explicações que rivalizem o "trabalhador" e o "vagabundo". Diz Giorgio Agamben,
filósofo italiano, também pensando em Paulo e na Lei: "Jesus de Nazaré não foi condenado,
mas morto: seu sacrifício não foi uma injustiça, foi um homicídio"12
. A Lei rege uma política
pública alicerçada no aparato de segurança, no controle de território e na criminalização da
pobreza. Ela, portanto, não nos representa em justiça, ela nos inclui no controle e repressão.
9 Idem, pg.109
10 HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei: as raízes do pensamento crítico em Paulo de Tarso.
São Paulo, Paulus, 2012, pg.82 11
FANON, Frantz. Pele negra, máscacras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008, pg.26 12
AGAMBEN, Giorgio. Pilatos e Jesus. São Paulo, Boitempo; Florianópolis, Editora da UFSC, 2014, pg. 51
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O capítulo 25 do Evangelho de Mateus, com esta perigosa perícope de 31 a 46, não é
uma passagem comum, não é um recurso meramente pedagógico para falar de salvos e
condenados. Não consigo sequer imaginar Jesus dizendo aquilo com a tranquilidade com que ela
é lida nos nossos sermões. Não é possível, porque é forte demais.
Na ilustração de Jesus, se salvarão aqueles que salvarem outros. Não aqueles que
salvarem a alma dos outros, porque esta seria missão inglória, que ninguém é capaz de fazer. É
preciso intervir no sofrimento do corpo. A fome, a sede, o ser estrangeiro, a nudez, a
enfermidade e o encarceramento violentam o corpo. É o corpo cuja sede rasga a garganta,
emudece a voz, resseca o organismo. É o corpo cuja fome enfraquece, é a fraqueza que perturba
a capacidade de discernir, mover-se, caminhar, resistir. E em nome da vitória sobre a fome, o
corpo é levado a vender-se, ser usado, explorado, abusado. É o corpo cujo encarceramento agride
a liberdade, a capacidade de ir e vir. Encarceramento seletivo, com grupo social específico,
território específico, cor de pele definida, faixa etária preferencial e ―práticas criminosas‖ bem
escolhidas. Encarceramento covarde, cuja palavra final está nas mãos de quem faz questão de
exibir o poder, decide o que é passível de pena e quanto custa a liberdade. Quanto custa a
liberdade deste corpo negro indomável, delinquente, infrator, maior ou menor, ameaça
intimidadora do ordenamento social, elemento perturbador do cotidiano. Corpos marcados à
espera do cárcere, nem sempre pelos atos cometidos, mas muitas vezes pelo estigma
naturalizado, ―a cor padrão‖ dos atos ―criminosos‖.
É o corpo, sempre o corpo nu, não apenas pela ausência das vestes, mas nu sem proteção
à violência, aos maus tratos, corpo nu e indefeso diante do controle inclemente do estado e das
incertezas, riscos e inseguranças da vida social. Acrescentemos a esse entendimento do nu, que
não é somente o corpo, mas toda uma vida e existência, a definição de vida nua, oriunda do
italiano Giorgio Agamben e tão bem lembrada por André Duarte: ―a vida que somente cai na
esfera da política na medida em que dela pode ser eliminada sem mais, sem que com isso se
cometa um crime‖13
. É este corpo nu, vulnerável e abandonado, que marca presença no texto.
Quando Jesus lembra estes corpos nus, carentes de vestes — as vestes não são suas roupas, são
seus cuidados, seu corpo que (re)veste outros corpos ,— ele se reporta à ele mesmo. Ele, que
seria o Cristo ―abandonado‖, segundo essa imagem linda e poderosamente refletida por
Moltmann em seu O Cristo crucificado. O teólogo alemão afirma que a gente só entende a
diferença da ―morte de Jesus das outras cruzes na história do sofrimento humano‖ quando vemos
seu abandono por parte de Deus e Pai. ―Jesus‖, diz Moltmann, ―morreu em singular abandono da
parte de Deus‖14
. É a força de uma contradição que nos agride. Todos os dias, a vida nua destes
corpos violados pela pobreza e pela negação do reconhecimento pede socorro. Estão
abandonados, são chacinados, executados, eliminados, desaparecidos, arrastados, agredidos.
Corpos nus.
É o corpo do estrangeiro. Não o estrangeiro pátrio, não os exilados nacionais. Os
estrangeiros são os ―indesejáveis‖, novos forasteiros das cidades, vítimas silenciadas da
13
DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, pg.274 14
MOLATMANN, Jürgen. O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Sando André-SP, Academia Cristã, 2014, pg.193
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segregação socioespacial, das famílias dos miseráveis expulsos das propriedades dos donos-
senhores, no campo e na cidade. Construtores de favelas, mão de obra dos alienados da própria
vida, escravos assalariados, removidos a qualquer hora, em função de uma política pública de
gentrificação, ansiosa de transformar cidades e territórios em produto. Nesta nova lógica de
cidade, o cidadão só é entendido como cliente, aquele capaz de se bancar como usuário de bens e
serviços em geral. Como a simples conclusão do geógrafo Márcio Piñon pontua, ―cidadão é
aquele que pode participar como consumidor e usuário da cidade; o que não pode, encontrar-se-
á, cada vez mais, à margem dela‖15
. Os estrangeiros e forasteiros estão também nas ruas, sujos,
esquecidos e temidos, aquecidos muitas vezes pelo álcool, pelo crack e pelo thinner. Indesejáveis
que são, não cabem nesta terra, não possuem direito ao sol, enfeiam nossas cidades, atrapalham
nosso percurso. São corpos soltos. Corpos dispensáveis.
Aí vem o Cristo e se identifica com essa gente, e condiciona o caminho para a tão
desejada salvação à coragem e a disposição de ir em direção a essa gente. E nós que já tínhamos
nos acostumado a torná-los lugar-comum, casos isolados, invisíveis mesmo. E se eliminados
fossem, a sociedade se sentiria confortável. Mas Jesus preconiza o que Paulo compreendeu.
Controlar “as ameaças”
No seu já clássico Manicômios, prisões e conventos, Erving Goffman dedica boa parte
do início do livro a esclarecer seu conceito de ―instituições totais‖. Não cabe aqui destrinchar
o que ele descreve, mas para efeito de ilustração, vale dizer que ele considera que as
instituições totais podem ser enumeradas em cinco agrupamentos, e é o terceiro que nos
interessa. Diz Goffman: ―É organizado para proteger a comunidade contra perigos
intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato‖16
.
Entre os exemplos, o autor vai citar as cadeias, as penitenciárias, os campos de
concentração. Mas eu gostaria de chamar atenção para um trecho específico, a saber, ―o bem-
estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato”. E mais, em outro canto,
Goffman afirma que ―a barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo
externo assinala a primeira mutilação do eu‖17
.
Essa introdução serve apenas como um apontamento do rumo desta reflexão, e para
onde é o convite da discussão. Os acontecimentos recentes no presídio de Pedrinhas, no
Maranhão, império da família Sarney, colocou em evidência o que já é lugar comum de toda
organização de defesa de direitos: tortura, morte e medidas desumanas é parte do cotidiano no
sistema prisional brasileiro. A morte de mais de sessenta presos no presídio em 2013 só foi
capaz de assustar por causa das decapitações. A simples possibilidade de que um homem seja
capaz não apenas do assassinato, mas, uma vez tendo assassinado, ainda ―concluir o serviço‖
15
OLIVEIRA, Marcelo Piñon de. O retorno à cidade e novos territórios de restrição à cidadania, in Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial / Milton Santos [et al.], Rio de Janeiro, Lamparina, 2011, pg.175 16
GOFFMAN, Erwing. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 17. 17
Idem
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arrancando-lhe a cabeça, é o que parece nos conectar com o que há de mais sombrio no ser
(ainda) humano.
Todavia, a quantidade de presos decapitados em Pedrinhas, em 2013, não chega nem
perto da metade dos decapitados num presídio de Rondônia em 2002. Foram 27. E ao longo
de todo o sistema prisional brasileiro a violência e a indiferença com o bem-estar de quem
está isolado é absolutamente regra, quase sem exceção. Aliás, é difícil pensar em exceção
quando você tem 548 mil homens e mulheres amontoados onde deveria haver 238 mil, sendo
que destes, cerca de 135 mil são presos provisórios, ainda que muitos estejam lá há anos.
Estão jogando pessoas nas cadeias. Mas não se trata de quaisquer ―pessoas‖, e não se trata
apenas de cadeias. E é disso que estamos realmente a tratar.
Nossa questão aqui é de que maneira nossas instituições totais — mesmo as que não
são de fato, mas que funcionam como — estão a serviço do controle, ou da contenção, da
nossa desigualdade social. Há um perfil comum que predomina entre o tipo de ―gente‖ que
ocupa o sistema prisional brasileiro, mas não só. Este perfil se encontra também nos abrigos
para onde são recolhidos moradores em situação de rua, ―crackudos‖ incômodos na paisagem
das nossas capitais; nos territórios ocupados do Rio de Janeiro, onde outrora o tráfico
realmente dominava, mas a entrada do braço armado do estado não reverteu o quadro, antes,
valendo-se da mesma intimidação, evidencia que deve ficar claro ―quem manda‖; nas
unidades de cumprimento de medidas socioeducativas para adolescentes, sem perspectiva de
ressocialização, apenas mantendo sob controle os ―potenciais criminosos‖.
No Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos abrigos para recolhimento de moradores
em situação de rua fica em Paciência, na Zona Oeste da cidade. Um verdadeiro depósito de
gente, com mais de 500 pessoas com toda precariedade de tratamento e assistência.
Considere-se que não estamos nos referindo a criminosos julgados e condenados, mas a
pessoas socialmente vulneráveis, onde não é incomum inclusive encontrar quem por uma
fatalidade perdeu tudo, inclusive família, e tentara recomeçar como ambulante e tivera sua
mercadoria recolhida por agentes da prefeitura, impossibilitado de ganhar a vida de outras
formas, sendo a rua o único lugar. Em 19 de fevereiro de 2013, em apenas um dia, mais de
cem pessoas foram recolhidas numa ação da prefeitura, levadas para o abrigo de Paciência. O
local já recebera diversas denúncias de más condições, maus-tratos e precariedade dos
serviços.
Precariedade e tortura também são o cotidiano das unidades próprias para
adolescentes, em cumprimento de medidas socioeducativas. Incapazes de uma política
eficiente para ressocializar os jovens e ampliar o leque de oportunidades e alternativas para
um reencontro com a sociedade, o sistema, no apagar das luzes, maltrata, impõe o medo,
violenta, humilha e subjuga. Toda essa energia repressiva é canalizada no adolescente não
para superar sua condição, mas para fomentar sua capacidade de destruição, vingança e
agressividade, a dissimulação do sujeito bem comportado, para ―reagir‖ no momento certo,
matando se for necessário, para garantir a liberdade e a vida.
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Mas o nosso maior drama passa a ser não esse quadro decepcionante, mas outro: o
silêncio da sociedade. Esse silêncio é um vazio inconsequente, que acaba por ser preenchido
pelas violações que ignoramos. Nossa política de segurança pública tem sido dividida por
décadas entre o enfrentamento ostensivo do crime, quando este ataca e se materializa, e o
controle social, de onde deriva a manutenção permanente da ordem social, da contenção dos
seus perturbadores.
O que digo com nosso silêncio é que ele invisibiliza o que parece ter chegado num
estágio de estrangulamento. Para ficar no ―meu quintal‖, direciono os argumentos deste artigo
às igrejas e organizações evangélicas que, salvo raríssimas (grifem o ―raríssimas‖) exceções,
não tornam o caos da (in)segurança pública e a violência como uma pauta urgentemente
relevante. O Rio de Janeiro teve em 2013, segundo relatório da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa, cerca de 6 mil desaparecidos. É como se o estado fosse
um grande campo de extermínio. No mesmo ano, o estado da Bahia registrou a morte de
4.240 jovens negros por homicídio. No estado de Minas Gerais, em especial a cidade de Belo
Horizonte, nos últimos anos, cerca de 100 moradores de rua foram assassinados, segundo o
Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos, Moradores de Rua e Catadores. Sem falar
do recolhimento forçado, ao apagar das luzes. Em 2012, o estado de São Paulo teve 546
mortes registradas como ―auto de resistência‖, e o Rio de Janeiro somam mais de 10 mil
mortes pelo mesmo motivo entre os anos 2001 e 2011.
A impessoalidade do poder des-figura os rostos das pessoas comuns. E essa é uma
estratégia importante para o não reconhecimento do lugar do outro na cidadania. O filósofo
Emmanuel Lévinas tem no rosto uma importante categoria de exigência ética. O rosto do
outro exige de mim um olhar, um cuidado, responsabilidade. Mas considero aqui a reflexão da
filósofa americana Judith Butler, que, ao pensar sobre a relação de conflito entre Israel e
Palestina a partir de Lévinas, se pergunta se os palestinos seriam os sem-rosto para os
israelenses. Negando-lhes o rosto, estava negada a exigência ao cuidado, a responsabilidade,
o olhar e o diálogo.
Ao que parece, temos uma massa de homens e mulheres sem rostos. Abrigos,
presídios e territórios ocupados tornam-se o destino daqueles não reconhecidos no cotidiano
da cidade, ―deslegitimados‖ por sua condição de anonimato pelos serviços da cidadania e da
reparação, do acesso ao leque de oportunidades necessárias para um avanço na escalada da
pirâmide social, apátridas internos, exilados em um mundo onde possuem o direito básico de
saírem para trabalhar e voltar. A favela tornou-se uma ―pátria‖ de projetos, ONGs,
movimentos, assistências, capelanias, missões, laboratórios e observatórios. Tudo o que lá se
instala, revela que lá não tem nada porque não é interessante ter.
Faz tempo que reprimir o tráfico não justifica mais tanta loucura e excesso na
repressão. Parece que a guerra mesmo já foi contra o tráfico, mas faz tempo que ela não é
mais. A guerra é contra a pobreza mesmo. Evidentemente não a pobreza no sentido da
limitação material, mas no sentido amplo do imaginário que a pobreza, e os espaços de
pobreza, suscitam no coletivo. A criminalização de um território é sempre simbólica, mas
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incide de maneira sempre concreta sobre os ocupantes do território. Territórios
criminalizados, corpos criminalizados.
A criminalização é, em muitos aspectos quando lançado como estigma sobre um grupo
social específico, fruto de contingências históricas e obedecem a um fim determinado. ―O
‗direito‘ da polícia‖ — diz Walter Benjamin em seu famoso artigo ―Crítica da Violência‖ de
1921 — ―é o ponto em que o Estado não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus
fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço‖18
.
―Atingir a qualquer preço‖ é o ponto. No cumprimento de uma ordem de desocupação
recente no Rio de Janeiro, a polícia tentou ―dialogar‖ com os ―invasores‖ informando, com a
utilização de um megafone pelo soldado à frente da tropa de choque já pronta para invadir,
que o estado disponibilizaria ônibus e caminhões para conduzirem as pessoas até os seus
destinos e também abrigos para os necessitados. A partir daí, o prédio foi invadido e as
pessoas retiradas. Sem rostos. Pessoas ignoradas na sua cidadania e do exercício do diálogo
processual com o poder. Uma vez criminalizado o território — um prédio, ―invadido‖, é um
espaço criminalizado pela ―invasão —, são criminalizados os corpos do território. E o abrigo
surge aqui como alternativa, não para acomodar pessoas para a manutenção da cidadania, mas
como um instrumento de contenção dos indesejáveis.
Numa definição simples do que caracterizaria uma nova cidadania, a professora
Evelina Dagnino afirma que ela irá requerer ―a constituição de sujeitos sociais ativos,
definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento‖19
.
Nada mais distante do que temos atualmente. Quando a atividade dos sujeitos ativos é
previamente criminalizada, toda luta pelo seu reconhecimento é neutralizada pelo ―direito‖ a
serviço do rei.
Cada vez que diante de um tensionamento social — como as repetidas imagens de
―menores furtadores‖ exibidas em reportagens sucessivas; a ―rebeldia popular‖ nas
comunidades periféricas que queimam ônibus enquanto outros aproveitam para hostilizar as
instalações que representam o estado; as notícias de conflitos cada vez mais frequentes entre
policiais e facções — a primeira resposta dos governantes é o aumento do efetivo policial-
militar, a ponto de solicitar uma intervenção federal quando a quantidade disponível não é
suficiente, podemos estar certo de que não estamos conversando sobre solução ou esperança.
Ao contrário. Estamos falando de agravamento. Como uma corda que vai apertando quando já
deveria estar afrouxando para se pensar em outro nó ou outra forma de fazê-la envolver o
drama.
Talvez por isso, temos em Etty Hillesum não apenas uma jovem ousada e destemida que
neutralizaria de sua alma e de seu coração o medo e todo abalo da escolha de uma alteridade,
mas sobretudo alguém que ensinou a abertura para o encontro e o diálogo, a solidariedade e o
engajamento. Mesmo diante do rosto frio de um soldado alemão em pleno nazismo, ela era
18
BENJAMIN, Walter. ―Crítica da Violência – crítica do poder‖. In: Documentos de cultura, documentos de
barbárie: escritos escolhidos. Willi Bolle (Org.), São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986. 19
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Anos 90:
Política e sociedade no Brasil. Dagnino, E. (org.) São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 108.
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capaz de atravessamentos, ir além da dura objetivação que sobre ele pairava20
, e alcançava-
lhe o rosto, no mais levinasiano dos sentidos. Acompanhar a trajetória de Hillesum pelos seus
diários, nos mostra uma jovem linda, poética, mas de profundo fervor na espiritualidade e de
confiança em Deus. Pode-se dizer com segurança que sem recorrer ao Deus a quem orava e
buscava ouvir mesmo em meio aos escombros parte de sua coragem e ousadia arrefeceria. Há
isso numa oração feita numa manhã de novembro de 1941.
―Meu Deus, tomai-me pela mão, eu Vos seguirei obedientemente e não
resistirei demais. Não evitarei nenhuma das tempestades que a vida me
reserva, tentarei fazer face a todas elas da melhor forma que eu puder. (...)
Procurarei distribuir algo de meu calor, de meu verdadeiro amor pelos outros,
onde quer que eu vá. (...) Não desejo ser nada especial, apenas quero ser fiel
àquela parte de mim que procura cumprir sua promessa. Às vezes imagino
que anseio pela reclusão conventual. Mas sei que devo procurar-Vos no meio
do povo, no mundo exterior. (...) Faço voto de viver minha vida no mundo
exterior integralmente.‖21
Viver no mundo exterior integralmente tem também esse caráter de compromisso em
não se omitir diante de circunstâncias por demais tenebrosas, as quais a jovem judia holandesa
experimentava com tantos outros irmãos. O convite à responsabilidade desinteressada feita
por Lévinas é então aceito por Etty Hillesum, no passo voluntário para Westerbrork, e de lá
para Auschwitz.
A fragilidade da vida no campo não a intimidou a ponto de que buscasse evitar o
sofrimento e a exposição à vulnerabilidade diante da força ali imperante. Atirou-se sempre
com determinação, tendo consciência que seu sofrimento não era de maneira nenhuma maior
que outros. Ao perguntar a si mesma: ―quando sofro pelos vulneráveis, não é pela minha
própria vulnerabilidade que sofro?”, está Etty Hillesum expressando a consciência nítida
daquilo que Lévinas identificava como o conceito da substituição, esta passagem do gesto e
da atitude do ―para o outro‖ para o ―pelo outro‖. Esta jovem holandesa traduz isso de maneira
natural e encantadora na sua história de oferecimento de sua própria vida e serviço em defesa
da causa e da sobrevivência do outro.
Presença permanente, no campo de concentração o sofrimento é quase um ser real e
tangível. É mais fácil rezar por alguém a distância, escreve ela em seu diário, do que vê-lo
sofrer ao seu lado. Não é o medo da Polônia que me impede de ir com meus pais, mas o medo
de vê-los sofrer. Está aí, pois a força dramática da alteridade. Quem lê os diários de Etty
percebe com surpresa, ao fim da leitura, a ausência de uma reflexão que expresse o medo de
sua própria morte, mas antes, sempre o medo do sofrimento de outros, a morte de outros.
Ozanan Carrara, refletindo sobre o conceito da responsabilidade e da substituição em
Lévinas, parece mesmo ―teorizar‖ o que com a ajuda da própria vida de Etty Hillesum,
podemos contemplar existencialmente:
Neste sentido não é a minha própria morte que me angustia ao me fazer
deparar-me com minha própria finitude, mas a possibilidade da morte do
outro que afeta minha sensibilidade.22
20
Escreveu ela em 1942: “De todos esses uniformes, um agora apareceu com um rosto. Haverá outros rostos também nos quais seremos capazes de ler algo que compreendemos: que os soldados alemães também sofrem. Não há fronteira entre a gente que sofre, e devemos rezar por todas elas”. 21
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, pg. 72-73 22
CARRARA, Ozanan Vicente, Lévinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente, Aparecida-SP, Idéias & Letras, 2010, pg. 145
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Evidentemente, Etty Hillesum não foi a única pessoa a, no tenebroso contexto do
nazismo e do Holocausto, a ―ousar cuidar‖, a não permitir que o medo matasse a
solidariedade. Homens e mulheres, não foram poucos os que arriscaram a vida, o cargo, a
segurança, para poupar a vida de alguns, aliviar o sofrimento de outros. Mas sua entrega e sua
renúncia são peculiares, e até conflitante, vista a partir de hoje. Declarações como: ―casar-me
com um refugiado, a fim de poder ficar com ele quando o mandassem para um campo de
concentração‖, são afirmações que mostram a jovialidade de uma ousadia destemida, mas
também de uma vida inclinada mesmo para a responsabilidade com o outro. Diz Edith Stein
que “o que não é livre é constrangido, só dura até quando houver necessidade”, e completa
afirmando que ―o amor é doação de si mesmo‖23
. Ela mesma, Edith Stein, vítima dos horrores
de Auschwitz, foi uma referência de perseverança e entrega e de encontro com Deus, em meio
ao caos e a angústia do hitlerismo.
Mas sua afirmação contempla a jovem holandesa. Na sua solidariedade, a liberdade
não age por constrangimento impositivo, mas por amor, voluntário. A mesma mente amante
juvenil que imagina ser a mulher companheira de um refugiado, oferecendo-lhe alguma
companhia, consolo e encorajamento, é que também desejou a possibilidade de ser enviada
para o campo para cuidar das crianças, tirada de seus pais, sem qualquer condição de saber se
estes estariam vivos.
Nessa missão, Hillesum entrou por inteira, entrou com sua disposição, jovialidade,
educação e também sua espiritualidade. Sem a ―formalidade‖ institucional de religião alguma,
encontrou Deus em meio ao terror. Não titubeou a questioná-lo pela condição que vivia ela e
os judeus, entendeu que ali o homem produziu a maldade, e agora Deus estava ali, com eles,
companheiro maior no sofrimento que lhe infringiam. Uma vez que tenha entendido sua vida
como uma tarefa ao amor e a responsabilidade (fazendo aqui uso do conceito que Lévinas
poderia utilizar), prosseguiu, apesar de todas as adversidades. Por que não lembrar Stein
novamente: Nossa tarefa é amar e servir. E uma vez que Deus jamais abandona o mundo
que Ele criou, tem um amor predileto pelos seres humanos, para nós é
naturalmente impossível desprezar o mundo e os seres humanos.24
O que Etty Hillesum assume é o mundo e os seres humanos, com todas as suas
contradições, capacidade de produzir morte, mas também com a capacidade de gerar vida e
cuidar dela, sua e do outro. Esta orientação é seguida por Etty Hillesum, e mostra também um
―compromisso libertário‖, com Deus, em quem acredita e clama.
Referências
1- LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998
2- LÉVINAS, Emmanuel, Los imprevistos de la história, Salamanca/España, Ediciones
Sigueme, 2006
3- VATTIMO, Gianni, O fim da modernidade; niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996
4- BRITO, Felipe e OLIVEIRA, Pedro Rocha de (orgs.), Até o último homem, São Paulo,
Boitempo, 2013
23
STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 43 24
STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 103
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