View
246
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Renata Torres Schittino
Hannah Arendt, a política e a história
TESE DE DOUTORADO
Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Rio de Janeiro
Julho de 2009
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História Social da Cultura.
Renata Torres Schittino
Hannah Arendt, a política e a história
Prof. Marcelo Gantus Jasmin Orientador
Departamento de História PUC-Rio
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Departamento de História
PUC-Rio
Prof. Eduardo Jardim de Moraes Departamento de Filosofia
PUC-Rio
Prof. Paulo César Nascimento Departamento de História
UNB
Prof. Pedro Spínola Pereira Caldas Instituto de História
UFUB/MG
Profº Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 06 de julho de 2009.
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da Universidade, do autor e do orientador.
Renata Torres Schittino
Formou-se em História pela Universidade Federal Fluminense, tendo exercido atividade de iniciação científica sob orientação do prof. Daniel Aarão Reis, especializando-se em história do terrorismo. (2002) Concluiu curso de mestrado na PUC-Rio em 2004, onde defendeu a dissertação Terrorismo: violência política como espetáculo, sob orientação do prof. Marcelo Gantus Jasmin. Atualmente, atua como professora no curso de graduação de história da PUC-Rio, modalidade à distância.
Ficha Catalográfica
CDD:900
Schittino, Renata Torres Hannah Arendt: a política e a história / Renata Torres Schittino; orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2009. 243 f.; 30 cm Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Política. 4. Filosofia da história. 5. Totalitarismo. I. Arendt, Hannah. II. Jasmin, Marcelo Gantus. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. IV. Título.
À Leopoldina (in memoriam)
À Maria Bela, Iago e Danrlei, pelas
alegrias do mundo nosso.
Agradecimentos
Ao meu orientador Marcelo Gantus Jasmin devo um agradecimento especial por
todos esses anos de atenção e apoio. Por suas leituras cuidadosas e suas críticas
generosas.
Ao professor Eduardo Jardim Moraes, pelos cursos estimulantes sobre Hannah
Arendt que freqüentei durante muitos anos, pelas contribuições que fez ao
trabalho no exame de qualificação e pela presença nessa banca.
Ao professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues, pela participação nessa
banca, pelos diversos cursos e pelo apoio e generosidade desde os tempos da
graduação na UFF.
Ao professor Paulo Nascimento e ao professor Pedro Caldas, que gentilmente
aceitaram compor essa banca e abriram a possibilidade para um proveitoso
diálogo.
Ao professor Ricardo Benzaquen de Araújo, pela solicitude em compor o quadro
da banca e pela excelente formação que concede em suas aulas. À professora
Janaína Pereira de Oliveira pelo apoio e gentileza.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura.
Em especial à professora Cecília Cotrim, que trouxe contribuições generosas no
processo de qualificação e seleção do doutorado, ao professor Marco Antonio
Pamplona e ao professor Luiz Resnik. Agradeço ainda àqueles com quem tive a
oportunidade de estudar: a professora e atual coordenadora do Programa,
Margarida de Souza Neves, e o professor Ronaldo Brito.
Ao professor Luiz Costa Lima que leu algumas vezes a proposta deste trabalho
nos cursos do início do doutorado e contribuiu com reflexões sobre o tema e com
aulas instigantes.
Ao professor Daniel Aarão Reis Filho e aos colegas do Núcleo de Estudos
Contemporâneos, pela amizade, discussões e comentários sobre a proposta deste
trabalho.
A Danrlei de Freitas Azevedo pela constante e valiosa interlocução.
A todos os amigos que conheci nesse curso de Pós-Graduação, dentre os quais
nomeio Felipe Charbel, Sérgio Xavier, Fabrina Magalhães Pinto, Gustavo Naves,
Leonardo Padilha, Marcelo Rangel e Daniel Ferreira.
Aos funcionários do Departamento de História e da Pós-Graduação de História
Social da Cultura, principalmente à Edna Maria Timbó.
Ao CNPq pela bolsa de estudos concedida.
Por fim, deixo o meu agradecimento aos familiares e amigos próximos, em
especial, a Marly, Danrlei, Alexandre, Tatiana, Ângela e Graziane. E a minha mãe
Rita, cujo apoio, estímulo e amor incondicionais foram fundamentais para a
materialização deste trabalho.
Resumo
Schittino, Renata Torres; Jasmin, Marcelo Gantus. Hannah Arendt, a
política e a história. Rio de Janeiro, 2009, 243p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O trabalho busca refletir sobre o significado da história na obra de Hannah
Arendt, tendo como horizonte a revisão que a autora empreende acerca da
tradicional separação entre teoria e política. Nesse sentido, supomos que a
valorização da ação e a indicação da dignidade da política abrangem também a
consideração da especificidade da história. Observando a discussão sobre o caráter
nostálgico de seu pensamento e as avaliações que sugerem o viés hermenêutico da
sua abordagem do passado, analisamos a narrativa arendtiana da história
ocidental, questionando a possibilidade de se tratar de algum tipo de filosofia da
história. Buscamos compreender a noção de esquecimento do político que
sustenta essa narrativa, por um lado, examinando seus pressupostos acerca da
responsabilidade e da novidade que estão envolvidas na ação humana e, por outro,
pensando suas colocações sobre a historiografia, onde a história surge como uma
“história de muitos começos e nenhum final”.
Palavras-chave
Hannah Arendt, história, política, filosofia da história, totalitarismo.
Abstract
Schittino, Renata Torres; Jasmin, Marcelo Gantus (Advisor). Hannah
Arendt, the politics and the history. Rio de Janeiro, 2009, 243p. Thesis – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The work searchs to reflect on the meaning of history in the work of
Hannah Arendt, having as horizon the revision that the author undertakes
concerning the traditional separation between theory and politics. In this direction,
we supose that the valuation of the action and the indication of the dignity of the
politics also enclose the consideration of the especificidade of history. Observing
the quarrel on the nostalgic character of its thought and the evaluations that
suggest the bias hermeneutic of its boarding of the past, we analyze the arendtian
narrative of history occidental, questioning the possibility of if dealing with some
type of philosophy of history. We search to understand the notion of forgetfulness
of the politics who supports this narrative, on the other hand, examining estimated
its concerning the responsibility and of the newness that are involved in the action
human being and, for another one, thinking its ranks on the historiography, where
history appears as a “history of many starts and no end”.
KeyWords
Hannah Arendt, history, politics, philosophy of history, totalitarianism.
Sumário
1. Introdução
10
2. A condição humana e a história do ocidente 19
2.1. A arquitetura da vita activa e sua referência histórica
2.2. O esquecimento do político e o fio da história
19
33
3. O inesperado sentido da história – algumas questões de filosofia da
história
3.1. A concepção arendtiana da história segundo Luc Ferry e Jacques
Derrida
3.2. A imprevisibilidade da ação e a indeterminação da história
58
58
76
4. Totalitarismo e revolução – o aparecimento da novidade 97
4.1. O ineditismo totalitário e a realidade ficcional
4.2. Diante da novidade: o caso dos revolucionários modernos
98
122
5. O espetáculo da história
5.1.Considerações teóricas
5.2.História e historicidade
5.3.História da história
6.Conclusão
148
149
172
197
226
7. Referências Bibliográficas
234
1 Introdução
Pode-se dizer que a obra de Hannah Arendt já compartilha hoje do devido
reconhecimento. Seus livros têm alcance mundial e suas idéias são discutidas em
diversas línguas e países. No Brasil, a maior parte de seus textos está traduzida e
publicada. O interesse crescente por seu trabalho parece dever-se à atualidade e ao
vigor de suas proposições. Conhecida por muitos como aluna de Martin
Heidegger, Arendt transforma-se num clássico contemporâneo por mérito próprio.
Nascida judia na Alemanha de 1906, Arendt acompanhou ao longo de sua
juventude a escalada progressiva de anti-semitismo, sendo obrigada a deixar seu
país e a assumir a condição de apátrida na tentativa de sobreviver ao esquema de
exclusão hitlerista. Estabelecendo-se durante pouco tempo em Paris, a autora,
como tantos outros judeus, viu-se obrigada a trocar a Europa pela América para
prosseguir com vida. Na distante Nova York, tem notícia do desenvolvimento da
guerra e descobre com pesar que os nazistas aplicaram a solução final sobre
milhões de judeus com o intuito de eliminá-los de seu território.
Ao ingressar na carreira filosófica, na qual teve contato não apenas com
Heidegger, mas com outros grandes pensadores do século XX, tais como Edmund
Husserl e Karl Jaspers, Arendt não estava envolvida com questões propriamente
políticas, as quais marcariam definitivamente sua obra, embora tenha adquirido
nesse período a formação privilegiada que lhe permitiu desenvolver suas próprias
concepções acerca da temporalidade e da história, que será aqui estudada. Sua
aproximação do sionismo e dos assuntos políticos propriamente ditos foi de certo
modo compelida pelo contexto político que se avultava. Nesse sentido, seu exílio
francês foi a época em que sua virada para a política pareceu definitiva. Por
intermédio de Heinrich Blücher, seu futuro marido, e de seu amigo Walter
Benjamin, Arendt se defrontou seriamente com o pensamento marxista. A
passagem por Paris também lhe permitiu freqüentar o famoso curso de Kojève
sobre Hegel e conhecer o jovem grupo de existencialistas, de quem só mantinha
algum entusiasmo por Albert Camus.
11
Assim como muitos de sua geração, a produção arendtiana é marcada por
uma impressão hostil sobre qualquer tipo de determinismo histórico,
principalmente porque o totalitarismo, na tentativa de legitimar seu poder político,
relaciona seu desenvolvimento à realização de um projeto histórico decidido de
antemão. Do mesmo modo que Walter Benjamin, Karl Löwith, Reinhart
Koselleck e tantos outros, Arendt empenha-se em refutar a idéia de filosofia da
história.1
Nossa suposição é que o embate arendtiano contra as filosofias da história
é parte de um empreendimento mais amplo, que visa rever qualquer tipo de
determinismo teórico sobre as ações humanas. Tendo como horizonte a distinção
traçada pela autora entre pensamento e ação, que revela sua re-leitura da
tradicional hierarquia entre filosofia e política, acreditamos ser possível entrever
na sua obra proposições suficientes para se delimitar uma concepção singular da
história.
A separação entre a vida activa e a vida do espírito pode ser visualizada na
própria divisão temática de dois de seus textos mais significativos, que ora se
voltam para a consideração da Condição humana, ora para a reflexão sobre a Vida
do espírito. Tal distinção revela a diferenciação que a autora identifica entre os
domínios da ação e do pensamento. No entanto, não seria possível supor que
elabora uma teoria de dois mundos. Como se houvesse um mundo das aparências
em que se desenrola a política, e um outro, referente às idéias mesmas. Ao
contrário, é justamente contra a concepção, primordialmente platônica, da
separação entre o mundo das idéias e o mundo dos assuntos humanos, que Arendt
interpõe sua distinção como uma crítica sobre toda a tradição metafísica que
pretende, com a valorização da teoria, propor a orientação para as atividades
práticas. Sua argumentação recai sobre todos aqueles que tentaram encontrar uma
direção para a política a partir de justificativas exteriores a ela, como a idéia de
Bem, de Verdade, ou de processo histórico. Suas objeções voltam-se sobretudo
contra o citado platonismo e a modernidade instrumental, esta última representada
categoricamente pelo pensamento de Marx. Se, no primeiro caso, a autora rejeita a
concepção do rei-filósofo, que baseado no conhecimento tem o poder de reger a
1 Sobre a temática da filosofia da história as referências dos autores citados são
respectivamente: Teses de filosofia da história; O sentido da história; Futuro passado.
12
política, no segundo, não aceita a possibilidade da história ser guiada por um fim
previsível, como se fosse possível fabricá-la.
Desde quando escrevia sobre o totalitarismo, Arendt acreditava que um
dos maiores problemas da política era ter sido pensada não em seu domínio
específico da contingência, mas do ponto de vista da teoria, que amarra as ações
como se elas pudessem ser completamente controladas e como se fosse possível
saber o que deve ser feito. Na perspectiva arendtiana, os impedimentos gerados
pelo encerramento do pensamento em sua torre de marfim, de onde se pode
contemplar a verdade e dirigir os caminhos do mundo, alcançam tanto a ação
quanto o próprio pensamento, pois nenhuma das duas instâncias aparece em sua
dignidade própria, em sua autonomia, quando essas esferas mantêm-se ligadas
hierarquicamente e rigidamente.
A distinção entre ação e pensamento, prevista por Arendt na
reconsideração da metafísica, por sua vez, não pode ser entendida como uma
separação definitiva. A tentativa de restituir a especificidade da vita activa e da
vida do espírito, livrando a ação de ser orientada pelo pensamento e a teoria de ser
arregimentada em prol da ação, implica reconhecer a existência de um laço entre
essas atividades. Não é tarefa simples acompanhar a delicada ligação entre
pensamento e ação vislumbrada por Arendt, pois se trata tanto de compreender
seu empenho em desarticular a tradicional dominação da teoria sobre o
pensamento, quanto de observar a conexão não hierárquica que concebe entre
esses domínios. Ao mesmo tempo em que pretende livrar o pensamento de
qualquer função de comando sobre a ação, garantindo, desse modo, a dignidade
do espírito e da política, percebe que proteger essa especificidade significa
reconhecer a existência de um laço entre essas atividades. Assim, Arendt sustenta
que não há nenhum mundo para além das aparências, mas resguarda a capacidade
de se ausentar momentaneamente da realidade pelo pensamento. Sua idéia é que o
pensamento se realiza numa brecha temporal – o hiato entre o passado e o futuro -
, que se abre como uma linha diagonal resultante do embate de forças entre o
passado e o futuro. Ao andar nessa diagonal, o ego pensante pode circular
livremente por diferentes tempos.
O que torna, a nosso ver, peculiar a leitura arendtiana é a sua insistência
em observar que essa capacidade do pensamento só existe como um afastamento
momentâneo do mundo circundante. Em outras palavras, o ego pensante, embora
13
possa se ausentar rapidamente da realidade, não pode se separar definitivamente
dela. A peculiaridade que sublinhamos consiste justamente nessa insistência em
não tomar o pensamento pela ação ou a ação pelo pensamento, mas, antes, em
manter a separação entre essas instâncias de modo completamente revisado. É
nesse sentido que Arendt pode compreender a distância entre as atividades do
espírito e a condição humana menos como um divórcio definitivo e mais como
um afastamento provisório, em que o vínculo com a realidade das aparências – a
única que existe – precisa ser mantido, destacando-se daqueles tantos outros
autores que, como ela, se empenham na “desmontagem da metafísica”.
A reconsideração arendtiana da distinção entre ação e pensamento que
propiciou essa retomada dos assuntos humanos não foi avaliada como uma
equivalente reconsideração da história. Ao contrário, considerando a crítica da
autora sobre as filosofias da história, a ênfase da ação ficou marcada como a
valorização da liberdade em detrimento da necessidade. O título significativo de
um texto de Richard Bernstein “Not history, but politics” indica como a
autonomia do político constituiu-se em oposição ao histórico.2
Nosso intuito não é propor nenhuma reviravolta nos estudos sobre o
pensamento arendtiano, negando que sua obra se destaca pela atenção concedida
às temáticas políticas. A autora esteve realmente preocupada em explicar como
alguns homens conseguiram concretizar sua potencial liberdade iniciando a
novidade no mundo e outros pretenderam suprimir a própria possibilidade desse
exercício. Se formulássemos uma daquelas perguntas que representam todo
direcionamento de um filósofo, poder-se-ia dizer que a questão de Arendt gira em
torno do que é política. Não obstante, acreditamos que sua tentativa de
salvaguardar a dignidade da ação e do político está diretamente relacionada à
defesa de uma nova concepção da história, que pode fundamentar-se na
contingência sem cair no relativismo de considerar as ações humanas como mera
movimentação irracional ou casual. Acontece que para agir, ou seja, para poder
interpor a novidade no mundo, os homens precisam contar com uma história
indeterminada, que não esteja dada a priori.
O fato de Arendt não ter sistematizado sua concepção da história, apesar
da sua obra ser perpassada tematicamente e metodologicamente por essa questão,
2 BERSTEIN, R., The origins of totalitarianism: not history, but politics, Social Research,
Summer, 2002.
14
pode ter contribuído para que esse assunto seja pouco enfatizado entre os seus
intérpretes, que se concentram em explicar suas análises políticas. Os trabalhos
que se propõem a tratar da história em Arendt, geralmente priorizam a reflexão
sobre o storyteller como contador de histórias e enfatizam o aspecto que
denominamos como positivo da leitura arendtiana da história ocidental. Ocorre
que a ruptura da tradição, que aparece como o ponto culminante da narrativa do
esquecimento do político traçada pela autora, surge não apenas como um “tempo
sombrio”, mas também como um novo horizonte de possibilidade para a retomada
do passado. Sob essa perspectiva, deparamo-nos com a hipótese da concepção de
história de Arendt caracterizar-se como uma noção hermenêutica, que é inclusive
relacionada às influências de Heidegger e de Benjamin.
De fato, quando se admite a importância crucial que a análise do
totalitarismo adquire na obra da autora, concebendo a partir daí seu anseio em
pensar novas possibilidades da ligação entre passado e futuro na ausência da
tradição, com a qual os movimentos totalitários teriam rompido inevitavelmente, o
presente contemporâneo surge como época privilegiada para a retomada do
passado. Com Heidegger e Benjamin, Arendt supõe que o passado pode advir
como novidade, pois ao desprender-se o fio autoritário que amarrava a
continuidade dos tempos, “tesouros” que não foram legados pela tradição podem
ser encontrados. É nesse sentido que Arendt menciona o trecho de Shakespeare e
propõe a possibilidade da “pesca de pérolas” como uma nova intermediação entre
passado e futuro. “A cinco braças jaz teu pai/De seus ossos fez-se o coral/Essas
são pérolas que foram seus olhos/Nada dele desaparece/Mas sofre uma
transformação marinha/Em algo rico e estranho.” 3
A perspectiva histórica arendtiana também foi entendida como nostálgica
ou romântica. Na verdade, a interpretação hermenêutica sobre sua obra vem,
inclusive, questionar essa tendência. Ao contrário de conceber o retorno de Arendt
aos gregos como um aspecto nostálgico ou idealista, o viés hermenêutico pôde
vislumbrar que a retomada do aparecimento do político na pólis não supõe recriar
o contexto grego, mas, antes, trata-se de iluminar a experiência sucumbida pela
tradição. Para sistematizar, poderíamos destacar que a consideração da noção de
história arendtiana divide-se em dois tipos: 1 – a valorização das possibilidades
3 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 165.
15
advindas da ruptura da tradição, entrevendo a perspectiva hermenêutica de
Arendt; 2- a ênfase no helenismo ou nostalgia com relação à pólis grega. Essas
duas formas de abordagem indicam, de certo modo, leituras distintas acerca da
grande narrativa que a autora traça sobre a história ocidental e, mais
especificamente, sobre o esquecimento do político no desenvolvimento da
tradição ocidental.
Nosso intuito é justamente retomar essa grande narrativa que vislumbra a
continuidade da história rompida pelo totalitarismo no elo do esquecimento do
político, e como defendemos, também do histórico, para considerar sua concepção
de história. A suposição que nos orienta é, até certo ponto, uma proposição
negativa, pois não acreditamos que a compreensão arendtiana da história se feche
nem simplesmente na indicação hermenêutica e na valorização do storyteller,
nem, muito menos, na definição romântica ou nostálgica. Se não podemos rejeitar
completamente a relevância que a autora impinge sobre o espaço político grego,
nossa preocupação é considerar a ênfase no surgimento do político e do histórico,
que Arendt aí vislumbra, em seu caráter histórico, contrapondo a fixação do topos
grego com o desenvolvimento posterior da história. Pretendemos mostrar que a
irrupção do político e do histórico na Grécia clássica não funciona como um
modelo de realização do político de modo que a história exista apenas como mera
repetição dessas experiências. Assim, não se trata de negar a perspectiva
hermenêutica da autora, mas de compreender qual é o seu alcance na concepção
arendtiana de história. Temos a suposição de que a consideração hermenêutica
vale mais para a esfera do pensamento que da ação.
Nossa discussão se abre, então, em duas frentes, que se mantêm
conectadas entre si e constituem-se como a consideração da continuidade da
história ocidental narrada pela autora como o esquecimento do político e do
histórico, e a análise das suas proposições mais específicas sobre a historiografia e
o historiador, nas quais vislumbramos o caráter fragmentado da história que surge
como “uma história de muitos começos e nenhum final.”
Num primeiro momento, nossa preocupação é contrapor a narrativa da
história arendtiana à sua própria concepção histórica, dialogando com a
possibilidade de sua narrativa compor-se como algum tipo de modelo a-histórico.
O primeiro capítulo se volta para reencontrar aquilo que denominamos a narrativa
da história ocidental traçada por Arendt. Parece-nos que tal narrativa perpassa
16
toda a obra arendtiana, mas é explicitamente traçada na Condição humana,
sobretudo no último capítulo desse livro. É com esse texto que indicamos a
existência de uma grande continuidade na história que se desenrola desde o
florescimento do político na pólis, concebe a decadência do espaço político desde
o fim das cidades-estado antigas e destaca o extremo esquecimento do político na
modernidade com a noção de perda do mundo. A história que a autora conta é
fundamentalmente a história do esquecimento do político que encontra sua ruptura
no totalitarismo. Não se pode perder de vista que, ao escrever a Condição
humana, Arendt já havia analisado profundamente as origens dos movimentos
totalitários do século XX. Nessa obra, a autora defendia o lugar central dos
totalitarismos na ruptura da continuidade da história ocidental.
A etapa inicial do nosso trabalho é observar como Arendt pôde contar uma
história da continuidade que, de certo modo, perpassa toda a tradição ocidental,
indagando se é possível conceber essa grande narrativa como algum tipo de
filosofia da história. Tal reflexão é abordada de modo mais específico no segundo
capítulo, onde examinamos particularmente os trabalhos de dois autores - Luc
Ferry e Jacques Derrida – que, por perspectivas bem diferenciadas, versam sobre a
questão da filosofia da história em relação à noção de história arendtiana. Em
contraste com ambos, concluímos essa parte do estudo indicando a dificuldade de
determinar a concepção de história da autora como um tipo de filosofia da
história. Para tal, buscamos compreender a diferenciação suposta por Arendt entre
a impossibilidade de controlar a ação e a responsabilidade dos homens por seus
atos. Nosso intuito é relacionar a singular percepção da ação arendtiana à sua
noção de história, sugerindo a conexão fundamental entre o político e o histórico
em seu pensamento.
No capítulo três, a análise recai sobre a temática da novidade que, como
defendemos, surge na obra arendtiana como elemento crucial da passagem do
político ao histórico. Trata-se de entender como a novidade pode advir ao mundo,
traçando a história humana. Deparamo-nos especificamente com a questão da
novidade no totalitarismo e nas revoluções, buscando explicar até que ponto a
novidade pode ser realmente interposta pelos homens.
Por fim, consideraremos as proposições mais específicas de Arendt sobre a
historiografia e o historiador. Pode-se dizer que essas suposições são mais teóricas
porque revelam indicações sobre o possível lugar da história e do historiador na
17
concepção da autora. Aparecem principalmente quando a autora trata da ação na
Condição humana, no texto “Compreensão e política”, e no conhecido “Conceito
de história – antigo e moderno”. A diferença fundamental no que se refere à
abordagem histórica do esquecimento do político é que, em vez de supor a
continuidade da história, Arendt enfatiza seu aspecto fragmentado, sugerindo que
a História é mais uma pluralidade de histórias que um processo único. Mas,
mesmo para tratar do histórico, Arendt compõe, de modo semelhante ao que traça
para o político, uma narrativa do declínio desde o fim da pólis - buscando destacar
seu florescimento entre os gregos, seu eclipse na moderna versão da história e sua
radical transformação nos totalitarismos. Acompanhando essa “narrativa” do
político e do histórico, vemos que, ao contrário do que se pode imaginar,
considerando a crítica arendtiana às filosofias da história, o histórico está bem
próximo do político.
Arriscamo-nos a dizer então que o histórico por excelência só pode surgir
pari passu com a ação. Por isso, as questões que se enfrentam, ao tentar conceber
a perspectiva arendtiana da história, também estão sempre próximas daquelas
tratadas pelos que se interessam pelo seu aspecto político. Nesse sentido, é que
propomos considerar histórico e político em sua distinção e conexão. Nossa
suposição é que Arendt concebe uma separação entre ação (político) e
historiografia (histórico), entrevendo a diferenciação entre a história real e a
escrita da história. Os atores, por serem livres, não podem controlar absolutamente
as suas ações, nem identificar o sentido da história que suas ações deixarão atrás
de si. Apenas o espectador, quando uma história chega ao fim, pode conceber seu
sentido e significado. Defendemos então que um dos principais aspectos de sua
concepção da história é acreditar que não se pode superpor essas instâncias da
ação e da historiografia.
Acreditamos que tal separação entre a história real, proveniente das ações
e feitos humanos, e a escrita da história, que se compõe como artefato inspirado
pelo pensamento e produzido pelas mãos do autor da história, deve ser
compreendida como parte da argumentação mais ampla que a autora desenvolve
sobre a revisão da tradicional distinção entre ação e pensamento. Assim,
vislumbramos que, ao tentar salvaguardar a autonomia de ambas as esferas,
Arendt sugere a separação e a ligação entre elas, não pelos meios tradicionais, que
hierarquizavam teoria e prática, mas concebendo uma conexão não autoritária.
18
Não há autoridade do pensamento sobre a ação, ou seja, a teoria não pode dizer
aos homens o que eles devem fazer, sob o risco de interditar a liberdade que é o
seu fundamento. Do mesmo modo, não é a ação que dita o seu significado porque
os atores não têm consciência e controle absoluto sobre o que “fazem”. Essa
distinção que não torna o pensamento uma outra instância separada da realidade,
mas deixa entrever a possibilidade da compreensão surgir como o outro lado da
ação, ilumina também, a nosso ver, a diferenciação entre história real e escrita da
história, que alicerça a concepção arendtiana da história.
2 A condição humana e a história do ocidente 2.1. A arquitetura da vita activa e sua referência histórica
A aproximação da concepção arendtiana da história inicia-se pelo exame
da própria história ocidental traçada pela autora. Acredita-se que sua narrativa da
história revela-se mais claramente no seu livro A condição humana, onde
apresenta o aparecimento do político na Grécia e conta a história do seu declínio
desde o fim da cidade-estado ateniense, passando pela sua decadência instaurada
na modernidade, até a situação contemporânea, a qual se refere ao contexto do
segundo pós-guerra.1 Deve-se compreender, no entanto, que a intenção arendtiana
não é produzir um grande texto de história aos moldes das grandes narrativas
universais. Seu texto não é intitulado História ocidental ou História da condição
humana. O livro originalmente seria designado como Vita activa, mas o título foi
reformulado pelo editor, que achou ser mais vendável A condição humana. Se
Arendt pretendia chamar seu livro de Vita activa isso se deve ao fato de que o
núcleo central de sua obra não é traçar uma história, mas sim, estabelecer a
especificidade da vita activa para tentar restituir sua validade perdida com a
preponderância da vida contemplativa, que ao longo da tradição instituiu a
superioridade do pensamento sobre a ação. Assim, sua preocupação está mais
voltada para especificar por diferenciação as atividades fundamentais envolvidas
na condição humana. Nesse trabalho, Arendt analisa das atividades da vita activa,
mas é importante ter em mente que, numa consideração geral da obra arendtiana,
às atividades da vita activa, se juntam as atividades da vida do espírito. Em
desenvolvimento posterior, a autora incumbe-se de esclarecer tais atividades, mas
mesmo antes de começar a escrever os textos que seriam reunidos postumamente
1 ARENDT, H., A condição humana.
20
como A vida do espírito, já está lançada a necessidade da revisão da vida
contemplativa diante da reconsideração da vita activa.2
As atividades da vita activa são três: labor, trabalho e ação. E as atividades
da vida do espírito também tripartida dividem-se em: pensar, querer e julgar. Com
sua súbita morte, seu projeto de esclarecer a ‘estrutura’ da condição humana ficou
prejudicado. Sobretudo no que se refere à compreensão da atividade do juízo.
Seus biógrafos contam com lamento que ao sofrer o ataque cardíaco fatal deixara
em sua máquina de escrever uma folha onde constava apenas o título de seu futuro
trabalho – Julgar. Tudo indica que sua próxima missão seria tratar dessa atividade,
que completaria a elucidação da condição humana. Apesar dessa incompletude, é
comum entre seus estudiosos tentar compreender o que Arendt entendia como
juízo a partir de fragmentos em sua obra, onde ela indica seu pensamento sobre o
tema, e, principalmente, a partir da consideração de suas aulas sobre o juízo
político em Kant.3
A história ocidental que se pode vislumbrar em Arendt aparece bem
descrita em A condição humana, sobretudo, na última parte do livro, intitulada “A
vita activa e a era moderna”. Se as atividades da vida do espírito não fazem parte
da arquitetura do livro, constituem o pressuposto dessa história. A autora escreve
primeiro sobre a vita activa porque entende que a hierarquização entre espírito e
ação, que institui a inferioridade dos assuntos humanos é um problema
fundamental da história ocidental. O início dessa história, que chama de início da
tradição, aparece com Platão e com seu desprezo pelo mundo, que seria o próprio
lugar das sombras. A opção por tratar das atividades da vita activa está
relacionada à tentativa de lançar a luz sobre esse obscurecimento do activo e das
confusões que se fizeram ao longo da história a respeito de sua importância.
Arendt entende que a tentativa moderna de valorizar a práxis e a história não tem
sucesso na reversão do processo de esquecimento do político, pois acaba
promovendo o engano segundo o qual trabalho, labor e ação – as atividades da
vita activa – não se distinguem entre si. A retomada posterior sobre a vida do
espírito também visa completar essa tarefa, buscando alocar as atividades
espirituais a partir do direcionamento tomado na vita activa. Se a vita activa não
deve ser subjugada pelo espírito, é preciso não apenas compreender o que é a vita
2 Id., A vida do espírito, p. 7. 3 Id.,, Lições de filosofia política em Kant.
21
activa, mas entender qual seria o lugar da vida do espírito a partir de uma nova
concepção dos assuntos humanos. O que Arendt vislumbra é a possibilidade de se
considerar ação e pensamento (vita activa e vida do espírito) sem que sua relação
esteja marcada pela autoridade hierárquica de uma instância sobre a outra. Por
isso procura delimitar a separação das esferas e compreender a relação entre elas,
de modo a garantir a autonomia do político e do pensamento. Nesse projeto ganha
destaque a retomada da experiência histórico-política. Para fazer frente ao
tradicional apelo ao pensamento, a autora busca enfatizar a realidade histórica e a
experiência política, que designa como os assuntos humanos no mundo.
Nesse momento, importa destacar a estruturação arendtiana da vita activa,
tendo em vista a história que apresenta a sua depreciação, desenvolvendo o
argumento da ligação entre a arquitetura da condição humana e a história. Arendt
fala em condição humana em vez de trabalhar com a idéia de natureza humana.
Com isso é possível perceber uma constelação de atividades referentes à condição
humana que tem caráter variável e se difere de uma concepção de natureza
humana como alguma coisa dada, cuja alteração histórica não teria sentido. A
condição humana distingue-se da natureza humana por duas razões principais que
estão interligadas logicamente. A condição não é um simples dado natural. Não
define a natureza ou essência da espécie humana. Essa primeira característica
torna visível a outra, que indica que a condição humana permite um grau de
variação. Pode-se pensá-la pela sua possibilidade de alteração, pois o próprio
homem intervém na sua condição. Nas palavras de Arendt, “A condição humana
compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os
homens são seres condicionados. Tudo aquilo com o qual eles entram em contato
torna-se imediatamente condição de sua existência.”4 A pretensão da concepção
de natureza humana é universal e atemporal, ao passo que a imagem da condição
humana tem um caráter mais histórico. Isso não significa que cada época tenha
uma condição humana e estejamos em meio a homens completamente diferentes
entre si. Concebendo a condição humana através da arquitetura entre atividades
ativas e condições de realização dessas atividades, Arendt entrevê a possibilidade
de uma variação histórica nas relações entre as atividades e as condições. A cada
uma das atividades da vita activa corresponde uma condição: ao labor, a vida
4 Id., A condição humana, p.17.
22
biológica; ao trabalho, a mundanidade; à ação, a pluralidade. De modo geral, essa
correspondência não é tão rígida, mas é a partir dessa concepção que Arendt
determina as atividades da vita activa e compreende a relação entre as atividades e
suas condições no desenrolar das épocas históricas.
A disposição entre atividades e condições é vislumbrada a partir da análise
histórica do período clássico na Grécia. A referência é a Atenas do século V e a
organização da pólis. É nesse quadro histórico que a autora enxerga as relações
primeiras da condição humana. Deve-se entender esse surgimento não
simplesmente no sentido cronológico, mas como uma espécie de referencial para
conceber a experiência do político. Se é possível entrever que a retomada
arendtiana dos gregos acaba concebendo um topos no qual se pode ver a situação
“ótima” para a realização da condição humana, não devemos perder de vista que a
noção de topos não se caracterizaria como uma abstração do pensamento, mas
revelaria uma situação histórica específica. Esse topos não é imaginado por
Arendt, mas apreendido na experiência histórica concreta.
A autora não deixou de ser criticada pela retomada da Antigüidade. Alguns
recriminaram sua nostalgia, outros censuraram seu senso histórico. Entendemos
que Arendt concede tanta importância à situação ateniense porque é nesse quadro
que, a seu ver, aparece pela primeira vez a realização do político, a qual até a
contemporaneidade nos referimos.5 Desde esse aparecimento, pode-se vislumbrar
que os homens se articulam de modo plural. Assim, vemos que a realização da
pluralidade no espaço público da pólis deve-se não apenas ao dado natural, mas,
principalmente, à delimitação histórica de um espaço de liberdade. Arendt
concorda com Aristóteles, e acredita que seu pensamento não pode ser entendido
como simples teoria, mas como um fato histórico, pois reflete a realidade da pólis,
onde “a política (...) não é de maneira nenhuma, algo natural e não se encontra de
modo algum onde os homens convivem. Ela existiu, segundo a opinião dos
gregos, apenas na Grécia e mesmo ali num espaço de tempo relativamente curto.”
5 Veja em ARENT, H., O que é política, p. 45. “A pergunta pelo sentido da política e a
desconfiança em relação à política são muito antigas, tão antigas quanto a tradição da filosofia política. Elas remontam a Platão e talvez até mesmo a Parmênides e nasceram de experiências muito reais de filósofos com a polis: significa como a forma de organização do convívio humano, que determinou, de forma tão exemplar e decisiva aquilo que entendemos hoje por política que até mesmo nossa palavra para isso em todos os idiomas europeus, deriva daí.”
23
O que determina tal argumento é a idéia de que “Ser-livre e viver-numa-polis
eram, num certo sentido, a mesma e única coisa.”6
A intenção de destacar esse caráter histórico da pluralidade e da própria
condição humana deve-se à pergunta pelo histórico na obra arendtiana. No
entanto, é necessário muito cuidado ao proferir certas ilações, pois a autora não
faz essa definição específica. Não diz que a condição humana é histórica, embora
rejeite a idéia de natureza humana.
Observando mais de perto essa rejeição à concepção de natureza humana é
possível encontrar mais uma pista para entender o significado da condição
humana. O homem não é simplesmente um ser natural. Para Arendt, a remissão ao
seu aspecto biológico e à noção de espécie não revela o que está em jogo quando
se trata de compreender a humanidade do homem. O que confere ao homem a
humanidade está mais próximo daquilo que ele mesmo produz ou põe em ação do
que de qualquer dado natural. A autora não pode negar que há o aspecto do
naturalmente dado na existência humana, no entanto, valoriza no humano aquilo
que lhe é próprio, a saber, sua diferenciação do natural. Nessa gênese do humano,
a atividade da ação adquire lugar de destaque, porque é essa atividade que garante
ao homem a sua plena realização enquanto homem através da possibilidade de
singularização. Pela ação o homem distingue-se não apenas do mundo natural e
de sua determinação biológica, mas consegue individualizar-se, distinguindo-se
também entre seus pares.7
A condição humana não é apenas o dado natural. No contexto
contemporâneo, Arendt sublinha que a tecnologia permite ao homem a alteração
do próprio dado natural através da ação sobre a natureza. A autora refere-se às
explosões nucleares e experimentos genéticos a partir dos quais o homem
pretende dar início a processos que antes eram puramente naturais, ou seja, só
eram encontrados na natureza. Entenda-se que o anseio de reproduzir a criação da
vida humana seria a grande apreensão do simplesmente dado. Se o homem se
6 Ibid, p. 47. Para referência à Aristóteles, ver ARENDT, H., A condição humana, p. 33.
“Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristóteles, mas de simples fato histórico: precedera a fundação da polis a destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco.”
7 Id., A condição humana, p. 188. É fundamental entender que, para Arendt, os homens são iguais, porque são humanos, e são diferentes. Se fossem apenas iguais como animais de uma determinada espécie não precisariam da ação e do discurso para se diferenciar uns dos outros, pois poderiam se comunicar por sons e sinais. A teoria da ação arendtiana baseia-se nesse pressuposto segundo o qual o homem revela sua humanidade quando manifesta sua singularidade, que é individual.
24
volta para essas tentativas é porque tem a intenção de dominar o dado e controlar
o natural. A novidade na contemporaneidade não é o subjugo da natureza, que já
era exercida com grande sucesso pela técnica, mas a capacidade de se produzir
natureza e se recriar o dado. Donde advém que o homem, que tanto sonha
controlar o natural, perde seu domínio porque põe em funcionamento processos
naturais inéditos, que fogem a sua autoridade. Se a concepção arendtiana da
condição humana permite todo esse trâmite sobre o natural, parece que também
indica a existência de uma constante trans-histórica, que é a própria arquitetura
das atividades invariáveis da vita activa. Limito-me, de um lado, a uma análise daquelas capacidades humanas gerais decorrentes da condição humana e que são permanentes, isto é, que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mude a própria condição humana. Por outro lado, a finalidade da análise histórica é pesquisar as origens da alienação do mundo moderno, o seu duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem, a fim de que possamos chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e desconhecida.8
Dois sentidos do histórico podem ser detectados aqui, embora Arendt só se
refira literalmente ao histórico para designar seu método de “análise histórica”.
Por um lado, concebe o histórico como procedimento de pesquisa quando explica
seu empreendimento de considerar a alteração na representação da vita activa.
Essa análise histórica só é possível porque há uma variação histórica na
compreensão da vita activa. A partir dessa concepção, a autora pode visualizar
uma história de encobrimento e rejeição da vita activa, principalmente da ação,
isto é, do político. Ou seja, Arendt só pode contar a história do Ocidente como a
história do esquecimento do político porque acredita no aspecto variável da
condição humana. Por outro lado, pode-se notar que mesmo o caráter permanente
da condição humana, visível na estruturação das atividades tem sua implicação
histórica. A “estrutura” só se faz visível na situação histórica grega. Deve-se
compreender que o destaque da importância desse aspecto histórico não é mera
leitura historiográfica. É certo que o olhar do historiador pode historicizar tudo,
principalmente idéias e pensamentos. No entanto, não é esse o pressuposto
quando se intenta evidenciar a relação histórica fundamental que se pode entrever
na constituição da arquitetura da vita activa arendtiana. Entende-se que a própria
8 Ibid, 14.
25
autora baseia-se nessa hipótese de apreender a vita activa na experiência de
realização. Assim, o quadro grego adquire valor histórico não apenas como um
momento da história, mas como a situação primeira onde a vita activa se realiza
“exemplarmente”.9 Apenas tendo em vista essa realização “inicial”, Arendt pode
dar sentido à história que narra. Ademais, esse “início” é o aparecimento do
humano distinto do natural. Quando o homem consegue diferenciar-se do dado
natural não apenas pelo seu trabalho, mas, sobretudo, pela ação.
Para melhor entendimento é necessário retomar o raciocínio arendtiano
sobre a vita activa. A autora apresenta o labor, o trabalho e ação como as
atividades fundamentais desse modo de vida. O labor é o trabalho biológico de
nosso corpo, do qual dependemos para sobreviver. Trata-se das necessidades
físicas que sustentam os processos mantenedores da vida. A condição humana que
se refere ao labor é a vida. O trabalho produz os artefatos que constituem o mundo
humano artificial em relação à natureza. A condição humana em jogo no trabalho
é o próprio mundo. A ação é o que se passa entre os homens quando
compartilham a condição humana da pluralidade. Essa é a atividade propriamente
política porque não está ligada a nenhuma necessidade como o labor e o trabalho.
O político, em Arendt, refere-se ao âmbito da liberdade. A autora relaciona às três
atividades as suas correspondentes condições gerais na Terra: nascimento e morte,
natalidade e mortalidade.
Para entender o caráter histórico de seu pensamento e perceber que a
arquitetura da vita activa não surge de nenhum vislumbre puramente ideal, mas se
sustenta pela análise histórica concreta, é importante destacar não apenas a
correspondência desse esquema com o mundo grego do século V, mas também a
relação temporal que relaciona essas atividades. Deve-se observar a passagem do
labor ao trabalho e à ação, que reflete a liberdade e a singularidade
especificamente humanas. Distintamente das suposições meramente materialistas,
Arendt propõe que o homem afirma-se como homem diante do mundo dado, não
simplesmente pela competência fabricadora, mas pela possibilidade de agir. Há
então um rumo que vai do labor à ação. O ciclo biológico reina no mundo natural,
atua sobre todas as espécies, inclusive sobre o homem. Nessa situação não há
9 Arendt usa essa designação da exemplaridade para falar do aparecimento extraordinário
do político em Atenas. Ver ARENDT, H. O que é política, p. 45. A passagem já foi citada aqui na nota 2.
26
nada especificamente humano, já que o homem não passa de um ser natural como
os outros animais. A humanidade começa a se distinguir quando o homem se
separa da natureza e passa a erigir um mundo próprio, construído com o trabalho
de suas mãos. Quando se destaca da natureza e ergue o mundo artificial que não
está submetido ao ciclo biológico, o homem constrói para si uma morada - o
mundo. Institui um início humano donde passa a existir um mundo duradouro que
sobreviverá à vida individual de cada homem. Para ilustrar essa passagem pode-se
imaginar uma espiral cortada por uma linha reta. Essa é a primeira ruptura
produzida pelo homem no ciclo biológico. A sobreposição do labor pelo trabalho
é também a introdução do tempo humano sobre o tempo puramente biológico da
natureza. O ‘ciclo sempiterno’ é rompido pela atividade que introduz início e fim
no mundo. Segundo Arendt, o trabalho, que é marcado pelo ímpeto da
objetividade, traz ao mundo um produto que foi inteiramente visualizado do início
ao fim pelo fabricador.10
A passagem do trabalho à ação é caracterizada por uma nova ruptura. Uma
vez rompido o ciclo biológico e instaurado o mundo, o ciclo sempiterno da
natureza é desprezado em prol de um tempo especificamente humano. Apesar de
ser possível entender esse tempo do mundo como uma ruptura com o tempo
natural, que é quase uma eterna repetição do mesmo, ele também instaura um
processo baseado na repetição, que é a própria cotidianidade do mundo. Nesse
caso, a ação aparece como a atividade que vem interromper o processo cotidiano,
cuja extraordinariedade surge como o aspecto mais importante, que podemos
observar nessa consideração do ponto de vista temporal. A ação promove o
extraordinário, separando-se do comum ou cotidiano. Se no biológico os homens
estão unidos como espécie, e, no trabalho, estão separados pelo mundo de objetos;
na ação encontram-se reunidos em pluralidade. Isto é, reunidos num espaço de
liberdade onde são todos iguais como cidadãos e por isso podem distinguir-se uns
dos outros pela singularidade. A ação é a capacidade humana de singularizar-se e
de produzir o novo no mundo; de iniciar alguma coisa. Liberdade e ação são
equivalentes no que indica que o homem não está preso ou delimitado por
nenhum dado, seja ela natural ou humano - construído por ele mesmo -, mas sim
que é livre para trazer a novidade ao mundo.
10 Essa sobreposição temporal entre labor, trabalho e ação também é exposta pela autora.
ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 71.
27
Arendt não impõe essa arquitetura temporal ao início da vida humana no
globo e nem pretende desenvolver os aspectos antropológicos de sua perspectiva.
Ou seja, não imagina uma existência puramente natural donde o homem se
destaca pela técnica, tal como a perspectiva materialista da história. A discussão
arendtiana não aparece como uma busca pela origem histórica num quadro
evolucionista onde o natural seria suplantado pela técnica e a técnica permitiria o
aparecimento da liberdade humana desenvolvida no espaço político. Ainda que
seu esquema possa dar margem a esse tipo de interpretação, esse trabalho não
pretende explorar esse caminho. Segui-lo, talvez, extrapolasse a proposição da
autora. No entanto, se abdicamos de visualizar como Gehlen o homem primitivo,
considerando a técnica e a política como desenvolvimento do humano,11 isso não
significa que a estrutura da condição humana traçada por Arendt esteja alheia ao
problema. Sobretudo porque seu fundamento histórico, como acreditamos, é
bastante explícito.
Para compreender melhor o problema retomaremos ainda a relação entre a
arquitetura da vita activa e sua correspondência histórica na pólis grega. Ao
perguntar-se pelo político, Arendt, seguindo o exemplo heideggeriano, vê como
melhor forma de compreendê-lo, a busca pela origem da palavra ou do conceito.
O aparecimento histórico, tal como o desenvolvimento que se segue são
fundamentais para elucidação do fenômeno. A política, segundo a autora, seria
portanto uma categoria grega. O político aparece na pólis quando se organiza um
espaço onde os homens podem revelar uns aos outros sua singularidade. Um
espaço de igualdade – dada a igualdade entre os cidadãos que participam da ágora
– onde os homens podem distinguir-se entre si – revelando suas opiniões e sua
‘diferença’ de modo a destacar-se na igualdade. Nesse espaço, a autora entrevê a
condição humana da pluralidade. Pluralidade significa que o homem existe em
conjunto com outros homens, ou seja, sua condição nessa Terra é eminentemente
plural. Essa pluralidade, embora seja um fato, e não haja meios físicos de existir o
homem no singular, não é um dado. Segundo Arendt, a pluralidade está ligada à
existência do espaço de liberdade. A história da supressão dessa pluralidade é
justamente a história que a autora se põe a analisar.
11 LIMA, Luiz C., História. Ficção. Literatura, p. 141.
28
Temos, então, o fio condutor que permite compreender a narrativa
arendtiana da história ocidental. Pode-se detectar um início com o aparecimento
do espaço de liberdade na pólis, onde o homem pôde pela primeira vez mostrar-se
em sua singularidade. A decadência desse espaço tem origem no fim da cidade-
estado grega e na ascensão do império romano. A autora distingue essa passagem
observando as implicações da tradução latina do político como social. A história
do obscurecimento do espaço público tem continuidade na valorização do homo
faber e os produtos de seu trabalho em detrimento da ação. Seu cume é a tentativa
totalitária de extinção completa da pluralidade pela fabricação do Uno.
Observemos mais detalhadamente alguns pontos dessa história. Arendt
fala inicialmente do florescimento do espaço público na Grécia. A existência
desse espaço deve-se, segundo ela, fundamentalmente à nítida separação entre a
esfera da liberdade e a esfera da necessidade. “O que todos os filósofos gregos
tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade
situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente
um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado...”12. A
divisão entre o espaço público e o privado separa o debate do âmbito político das
questões de cunho íntimo e familiar. No espaço doméstico, reina a hierarquia
entre o senhor da casa e os demais familiares, escravos e agregados. Nem mesmo
o chefe da família pode ser livre em seu lar porque não mantém relações de
liberdade com os demais. Tal espaço seria regido pela dominação que veta o
aparecimento da liberdade vislumbrada por Arendt, que só no espaço político de
iguais pode realizar-se. Apenas quando não há dominação de uns sobre outros, os
homens podem expor suas opiniões e agir revelando sua singularidade aos demais.
Só na condição da liberdade política é possível aparecer a diferença entre os
homens. Quando estão livres para agir e mostrar quem são.
A autora recebe muitas críticas por trabalhar sobre essa bifurcação entre
público e privado. A separação que Arendt entrevê na Grécia e que fundamenta
toda sua concepção de política, alguns autores julgam ser a questão
eminentemente moderna da divisão das esferas. A separação entre público e
privado indica a distinção entre político e social, é uma das marcas do pensamento
arendtiano. Com base nesse pressuposto, a autora contraria certo consenso acerca
12 ARENDT, H., A condição humana, p. 40.
29
do bastião da modernidade, quando descarta o caráter político da revolução
francesa, relegando-a ao plano das questões sociais a partir da oposição com a
revolução americana, que seria política par excellence.13 Ao comentar a situação
da política de dessegregação dos negros nos Estados Unidos por ocasião do
episódio em Little Rock, quando os alunos negros precisam ser escoltados para
entrar na escola mista sob forte oposição branca, Arendt também surpreende ao
entender que a segregação é um problema social. “a discriminação é um direito
social tão indispensável quanto a igualdade é um direito político. A questão não é
como abolir a discriminação, mas como mantê-la confinada dentro da esfera
social, quando é legítima, e impedir que passe para a esfera política e pessoal,
quando é destrutiva.”14
Deve-se notar que a distinção provoca tanta indignação e surpresa
principalmente pela dificuldade de encontrar historicamente exemplo tão ‘puro’
de experiência política. A dúvida reside na delimitação da fronteira entre o
político e o social, e avulta-se com a enorme complicação de conceber um espaço
político que não serve para resolver problemas sociais. A questão levantada por
Mary McCarthy resume bem essa angústia que acomete grande parte dos leitores
de Arendt. “Qué se supone que debe hacer alguien en el estrado público, si no se
interesa por lo social? Es decir, ? qué queda? (...) se me deja com la guerra y los
discursos, pero los discursos no pueden ser solo palabras, deben ser discursos
sobre algo.”15
Se a interlocução de McCarthy revela a dificuldade de compreender o
político arendtiano fora do quadro da pólis. Para nosso contexto, vale indagar até
que ponto essa demarcação não acabaria determinando também sua própria
concepção de história? Nossa questão é se a retomada da realização do político em
Atenas não compromete a perspectiva arendtiana acerca da história? O problema é
que, diante da importância do quadro histórico grego, toda a história restante, que
lhe sucede, acaba aparecendo como um obscurecimento dessa experiência política
excepcional ou, no máximo, como uma repetição dessa experiência. Nesse
sentido, lemos em Arendt que:
13 Id., Da revolução. Voltaremos a essa discussão na análise da história sobre as revoluções. 14 Id., Responsabilidade e julgamento, p. 274. 15 Id., De la historia a la acción, p. 151. “O que deve fazer alguém no âmbito público se
não se interessa pelo social? Quer dizer, o que faz (...) se me deixa com a guerra e os discursos, mas os discursos não podem ser apenas palavras, devem ser discursos sobre algo.”
30
Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; e só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política. Com isso, eles tornaram-se determinantes, mas não a ponto de poder ser copiadas as formas de organização que lhe são inerentes, e sim porque certas idéias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto período, também co-determinaram as épocas para as quais seja negada uma experiência plena da coisa política.16
Se ao enfatizar o florescimento político na pólis, a autora pode sugerir que
sua concepção de história está vinculada à perspectiva de realização de poucos
grandiosos momentos onde o espaço público se organiza de modo a garantir a
plena realização das atividades humanas tal como vislumbradas na estrutura da
condição humana, donde seria viável supor que sua conceituação da história surge
como uma determinação da história a partir da correspondência com a pólis, sua
réplica à McCarthy assinala outra possibilidade de compreender a ligação entre o
histórico e o político em sua obra. Na tentativa de explicar a separação entre
público e privado, Arendt distingue a esfera política pela delimitação de assuntos
que precisam ser tratados em público. Segundo ela, há questões que não precisam
ser discutidas, que se referem às necessidades básicas dos indivíduos. São
temáticas sobre as quais todos deveriam estar de acordo. No âmbito político, os
homens podem discutir e revelar suas opiniões distintas. O ‘conteúdo’ da política
não é o mesmo que aquele da esfera social. O político “em cada momento
histórico probablemente es enteramente distinto. Por ejemplo, las grandes
catedrales fueron los espacios públicos en la Edad Media. Los ayuntamientos
llegaron más tarde...”17
Nessa passagem, a autora deixa ver que compreende a possibilidade de
pensar o histórico sem uma correspondência definitiva com a experiência grega.
Ainda que se mantenha a referência ao contexto originário do político, sua
realização não está determinada a ser imitação da pólis. Os espaços públicos
delineiam-se de modo diferenciado em momentos históricos distintos. Seria essa
possibilidade a indicação de que concebe um alargamento do topos grego, sem
que isso provoque necessariamente o esquecimento do político? Esse alargamento 16 Id., O que é política, p. 51. 17 Id., De la historia a la acción, p. 151. “em cada momento histórico provavelmente é
ineiramente distinto. Por exemplo, as grandes catedrais foram os espaços públicos na Idade Média. Os ajuntamentos chegaram mais tarde...”
31
significaria que a história arendtiana não se fixa definitivamente ao acontecimento
extraordinário? Se o caráter da exemplaridade da pólis parece ser um tanto
maleável, a menção à possibilidade de variação histórica do espaço público não
constitui o abandono da referência grega. O político, como Arendt insiste em
dizer, aparece na Grécia e permanece guardando seu sentido originário sempre
que se evoca a palavra político. O que não implica crer que em todos os períodos
históricos o político se organize exatamente como na pólis. Nesse sentido,
poderemos compreender como a revolução americana, saudada pela autora,
mostra-se como manifestação política inédita, que, ao mesmo tempo, encontra
referência no experimento político antigo e na realização da liberdade.18
Importa nesse momento destacar como Arendt combina diferentes
‘noções’ do histórico. Considerando os questionamentos quanto à separação entre
público e privado, que incidiram não apenas sobre sua retomada do contexto
grego, mas sobre sua própria forma de compreender o político como esfera
distinta do social, é preciso entender como a autora baseia sua concepção de ação
na visualização histórica desse espaço na pólis. Sua gênese da condição humana
entrevista pelas atividades do labor, do trabalho e da ação encontra de fato
correspondência na pólis grega. O sentido de sua arquitetura das atividades da vita
activa só aparece diante desse contexto histórico. Por isso mesmo a autora precisa
retomar a situação grega para explicar a condição humana. Arendt pretende
encontrar o político em sua realização, como se retomasse o fluxo vivo passado.
Essa correspondência com o contexto grego é importante principalmente para
conceber o político menos como uma teoria e mais em seu caráter performático,
que com os termos aristotélicos, a autora designa como energéia.
A correspondência é o que leva alguns autores a enfatizarem o caráter
nostálgico de sua obra e, por vezes, até idealista, considerando tratar-se de uma
visão pouco condizente com o mundo grego. André Duarte argumenta contra essa
forma de compreender o pensamento arendtiano como nostálgico. O autor acredita
que a intenção de Arendt não é conceber o passado como “ele realmente foi”, e,
tampouco, reviver o político nos moldes gregos. Mas empenhar-se numa leitura
hermenêutica que privilegia o diálogo entre as épocas.19 Duarte vê com bons
18 Id., Da revolução. Abordaremos essa experiência da revolução como novidade histórica
no capítulo 4. 19 DUARTE, A., A sombra da ruptura, p. 131.
32
olhos a empreitada arendtiana na busca pelo passado, já que não se trata de
reproduzir um passado em si. No entanto, ao enfatizar o caráter hermenêutico do
pensamento arendtiano, não observa que destacar a correspondência histórica
entre a condição humana e o contexto grego não leva necessariamente ao
veredicto de uma Arendt nostálgica.
De certo modo, parece correto sublinhar o enaltecimento de Arendt pela
pólis. A partir da visualização do florescimento do espaço público, a autora
empreende uma fixação do momento histórico na arquitetura da condição humana
e acaba por explicar toda a história do ocidente como um contínuo
obscurecimento da política. No entanto, será preciso considerar a originalidade de
Arendt, não apenas no que se refere à possibilidade singular aberta à
contemporaneidade para a retomada do passado, mas, também, acerca da
concepção de casualidade histórica. Se há uma correspondência entre a condição
humana e a “condição do cidadão grego” na pólis, e se é a partir dessa relação,
como supomos, que a autora conta a história do ocidente, a noção de liberdade
humana daí auferida não lhe permite tratar de uma história pré-definida ou de uma
história cujo sentido não podia ser outro senão esse do obscurecimento da política.
O que se revela interessante nesse ponto é que a ‘determinação’ histórica da
condição humana, dita a análise arendtiana da história, mas não define sua
interpretação como mais uma filosofia da história no sentido hegeliano.
A perspectiva histórica em A condição humana, onde Arendt empreende
realizar uma “análise histórica” pode parecer fatalista. A autora passa grande parte
da obra explicando pormenorizadamente o significado do labor, do trabalho e da
ação. Mas o sentido de tais atividades aparece quando vem à tona o esquema
histórico subjacente. Cada época reflete de modo distinto a constelação
hierárquica da vita activa.
Assim, esquematicamente falando, a Antigüidade grega concordava em que a mais alta forma de vida humana era despendida em uma polis e em que a suprema capacidade humana era a fala – dzôon politikón e dzôon lógon ékhon, na famosa definição dupla de Aristóteles; a Filosofia medieval e romana definia o homem como animal rationale; nos estágios iniciais da Idade Moderna, o homem era primariamente concebido como homo faber até que, no século XIX, o homem foi interpretado como animal laborans cujo metabolismo com a natureza geraria a mais alta produtividade de que a vida humana é capaz. Contra o pano de fundo dessas definições esquemáticas, seria adequado para o mundo em que vivemos
33
definir o homem como um ser capaz de ação; pois essa capacidade parece ter se tornado o centro de todas as demais faculdades humanas.20
Essas constelações são objeto de análise de Arendt. Se o político é a
atividade fundamental em Atenas, o mesmo não vale para a modernidade que
elevou o trabalho à atividade primordial, nem para o século XIX, marcado pela
ascensão sem precedentes do labor. Na contemporaneidade, avulta-se um
ressurgimento inusitado da ação no campo da ciência e da história, cujo caráter
diferencia-se da ação política.
2.2. O esquecimento do político e o fio da história
Para compreender a perspectiva histórica arendtiana, é preciso observar
ainda o conflito entre política e filosofia, ou entre vita activa e vida contemplativa
que perpassa a tradição ocidental. A contemplação é a atividade por excelência da
filosofia. Em Platão, se fixa definitivamente a sua superioridade diante do mundo
dos negócios humanos. Para o filósofo, a verdade não poderia ser encontrada no
espaço público. Só no mundo das idéias pode-se vislumbrá-la. “O acontecimento
que inaugurou nossa tradição de pensamento político foi o julgamento e a morte
de Sócrates, a condenação do filósofo pela polis. As perguntas que perseguiram
Platão (...) como a filosofia pode se proteger e se libertar dos assuntos
humanos.”21
Arendt retoma a leitura heideggeriana da alegoria da caverna de Platão e
entende que o problema da teoria platônica aparece principalmente no retorno do
filósofo sabedor da verdade ao mundo dos assuntos humanos, que na linguagem
platônica é o mundo das sombras. Ao retornar maravilhado do seu encontro com a
verdade, o filósofo, que deve adquirir a importância do rei-filósofo, transforma a
verdade num padrão – numa justa medida –, que passa a aplicar para orientar as
suas ações e dos outros ‘cegos’ no mundo das sombras e ignorantes da verdade. 20 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 95. Lemos ainda que “Não são as
capacidades do homem, mas é a constelação que ordena seu mútuo relacionamento que deve mudar e muda historicamente.” Ibid, p. 94.
21 Id., Compreender, p. 444.
34
Trata-se do processo de adequação da verdade apontado por Heidegger. Arendt vê
nessa adequação um problema político fundamental. Toda a vita activa encontra-
se sobre o domínio da teoria. Sua desvalorização não permite sequer que se
estabeleçam as diferenças que existem dentro da própria vita activa entre as
atividades do labor, do trabalho e da ação.22
A Antigüidade que a autora busca para compreender o político e sua
submissão é a do florescimento da pólis, do espaço político em sua plena
realização. Seus exemplos não serão Platão e Aristóteles, embora esse último
tenha papel fundamental em seus estudos. A Antigüidade evocada por Arendt é a
que traz à luz a vita activa preterida pela filosofia. Por isso, acolhe Homero,
Sólon, Heródoto e Tucídides. Nesses textos, encontra a referência ao concreto e à
realidade política e histórica. Se Heidegger retoma os pré-socráticos para
contrapor à tradição metafísica, Arendt busca a realidade política e histórica na
pólis e nos autores que tratam dos assuntos humanos do ponto de vista do mundo.
Na tentativa de livrar-se da tradicional valorização da teoria e do pensamento, a
autora enfatiza a experiência histórica para revelar a autonomia do político. Mas
não estaria a autora promovendo a superioridade do político?
A história do esquecimento do político começa já na Grécia com o enlace
estabelecido pela filosofia – essa relação de determinação entre teoria e prática
caracteriza, para a autora, o início da tradição ocidental. No entanto, apesar da
supremacia do pensamento sobre a ação, os filósofos ainda associavam a
liberdade à pólis. “Com o desaparecimento da antiga cidade-estado – e Agostinho
foi, aparentemente, o último a conhecer pelo menos o que outrora significava ser
um cidadão – a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente
político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste
mundo.”23 A indistinção entre as atividades da vita activa caracteriza um
obscurecimento que avança com o fim da diferenciação entre público e privado,
quando tudo se torna social na época moderna.
O fim da pólis e, sobretudo, a queda do Império romano do ocidente
revelam a precariedade das coisas desse mundo. A ascensão do cristianismo e a
sua concepção de que a alma é eterna em oposição ao mundo finito indica à 22 Id., Entre o passado e o futuro, p. 152. Sobre a leitura de Heidegger e Arendt da alegoria
da caverna ver MORAES, E., “Hannah Arendt. Filosofia e política.” In: MORAES, E; BIGNOTTO, N. (org.) Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias, pp. 35-47.
23 ARENDT, H., op cit, p. 22.
35
Arendt a transposição da liberdade política para a liberdade individual e espiritual.
Os tempos soberanamente religiosos dos idos medievais são marcados pela
preocupação com o transcendente, que a rigor, está fora do mundo e não diz
respeito aos homens da Terra.
Para compreender essa transformação histórica que afeta todo o desenrolar
da relação com a vita activa é preciso sublinhar a ênfase que Arendt concede aos
assuntos humanos. Ao caracterizar a estrutura das atividades humanas, a autora
trabalha com a divisão entre vida do espírito e vita activa. Todas essas atividades
são humanas. Talvez só o labor possa ser uma atividade comum entre homem e
natureza, pois é justamente aí que o homem se encontra como espécie. No
entanto, a atividade humana, por excelência não é o pensamento, como grande
parte da tradição filosófica julga. Na perspectiva arendtiana, a grandiosidade
humana, aquilo que ‘define a humanidade do homem’ é o que aparece na esfera
política, qual seja, a liberdade. A liberdade parece ser a principal característica do
homem que vêm ao mundo. A equiparação entre liberdade e política é o que
permite a muitos autores entender que a questão mais importante da obra
arendtiana é a do político. O que se refere ao político, Arendt denomina “negócios
humanos” ou “assuntos humanos”. É tudo o que se passa entre os homens no
sentido plural vislumbrado pela autora.
Quando o cristianismo concede ao homem a liberdade da alma e a
depreciação das coisas desse mundo, isto é, do mundo público, o político passa ao
segundo plano. Arendt indica a passagem bíblica “A César o que é de César e a
Deus o que é de Deus” com o intuito de revelar essa separação entre mundo
terreno e mundo divino promovida pelo cristianismo, que, de certo modo,
consegue realizar a separação teórica entre dois mundos pressuposta pela filosofia.
Se na Grécia a política tem seu lugar assegurado, esse lugar vacila com o fim da
cidade estado e, finalmente, decai com a queda do Império romano. E mesmo
Agostinho, que ainda tem a perspectiva do que é ser um cidadão não tem
esperanças a respeito do reino terreno e entrevê A cidade de Deus. Ao mundo
terreno, subjugado, resta a vitória do social que Arendt anuncia na “substituição
inconsciente do social pelo político [que] revela até que ponto a concepção
original grega havia sido esquecida”.24
24 Id., A condição humana, p. 32.
36
A história do Ocidente vista assim é eclipsada pelo obscurecimento do
político. De um momento grego de plena realização passa-se à distinta situação
romana, donde declina o político com a ascensão do cristianismo. Sob essa
perspectiva, a Idade média nada tem a oferecer. Apesar da referência à existência
de um “espaço público nas Igrejas”, não é possível, ao certo, determinar o
significado dessa formulação, considerando a ausência do tema na obra
arendtiana. O que se pode imaginar é que haja liberdade entre os homens da Igreja
ou dentro de um monastério entre os irmãos. A dificuldade de conceber um
espaço de liberdade concreta nos tempos medievais, tendo como referência a
liberdade política da pólis, se sobressai porque a própria liberdade no medievo
surge como uma questão da esfera religiosa e individual – a liberdade interior.25
O que interessa não é buscar uma correspondência histórica exata entre o
espaço público em cada momento histórico. Se nos detivermos às declarações da
autora, podemos compreender que há um esquecimento do político, mas não um
completo aniquilamento. Apenas quando fala do totalitarismo, Arendt concebe
uma organização que tenta excluir qualquer tipo de liberdade e suprimir a
possibilidade da ação. Para a história desse esquecimento é importante ver que o
momento que dá continuidade à evasão do mundo pelo cristianismo é o advento
da modernidade. Com a secularização, “os homens modernos não foram
arremessados de volta a esse mundo, mas para dentro de si mesmos.”26 Do
declínio do político pela transcendência religiosa, a autora passa a analisar o
obscurecimento do político pela moderna concepção de mundo. E observa que em
vez de voltar novamente a se preocupar com o mundo, como antes do subterfúgio
cristão, os homens arregimentam uma nova fuga do mundo. Seguindo um sentido
contrário, não alçam mais a saída pelo ‘alto’, mas preferem afastar-se do mundo,
voltando-se para si mesmos – a saída para ‘dentro’.
No texto em que fala especificamente da história e dos seus conceitos
antigo e moderno, Arendt destaca a possibilidade de uma “abertura” para o
político nessa passagem do cristianismo à modernidade. Nesse sentido, pode-se
entender sua leitura do florescimento da ciência política com Maquiavel e o
interesse que desperta nesse início da modernidade. A emergência do político e a
expressão dos pensadores políticos que tentam novamente explicar a ação trazem
25 SKINNER, Q., Liberdade antes do liberalismo. 26 ARENDT, H., A condição humana, p. 266.
37
ao cenário do renascimento os exemplos da Antigüidade clássica. A preocupação
com o mundo parece ser atualizada. “E de fato, no início da época moderna tudo
apontava para uma elevação da ação e da vida política...”27
Essa tendência é, no entanto, suplantada pela concepção moderna que
coloca em primeiro plano a dúvida quanto à capacidade humana de ver o mundo e
sua realidade. É na dúvida cartesiana que se pode encontrar a modernidade
filosófica a qual a autora se refere. No entanto, segundo ela, essa dúvida advém do
evento radical que foi o aparecimento do telescópio. Note-se que a ênfase
arendtiana sempre recai no apontamento de fatos da realidade. Tal como se
empenha em buscar a experiência concreta da pólis, em vez de basear-se apenas
no pensamento filosófico, na delimitação da modernidade, também segue esse
rumo e indica o despontamento dos eventos históricos – a descoberta do novo
mundo, a contra-reforma e o invento de Galileu - como marcos fundamentais. Do
mesmo modo, a autora concebe que é o totalitarismo e sua realidade concreta que
interpõe a ruptura com a tradição, e não as teorias filosóficas que pretendem se
desvencilhar do pensamento tradicional. Marx, Kiekergaard e Nietzsche são
considerados na esteira da filosofia ocidental. Se apresentam concepções
renovadoras, elas aparecem à Arendt menos como ruptura, que como inversão da
perspectiva tradicional. Por isso, traça uma distinção entre fim da tradição e
ruptura com a tradição. O fim está relacionado à operação intelectual da inversão
dos fundamentos tradicionais da teoria, da religião e da verdade racional. Segundo
Arendt, “Kierkgaard, Marx e Nietzsche desafiaram os pressupostos básicos da
religião tradicional, do pensamento político tradicional e da Metafísica tradicional
invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.” 28 Mas a
ruptura que produz a “quebra em nossa história” e interrompe sua “continuidade”
não advém da esfera do pensamento, mas sim do âmbito da realidade. Essa
diferenciação entre fim e ruptura revela a separação que a autora concebe entre
fatos da realidade e teorias do pensamento, indicando a valorização dos eventos
históricos. Fundamental nessa divisão é perceber que os fatos e eventos, por mais
que apareçam por intermédio dos atores humanos não podem ser entendidos como
produto da vontade de ninguém, enquanto que a teoria implica a empreitada de
27 Id., Entre o passado e o futuro, p. 110. 28 Ibid, p.53.
38
determinados autores. “A ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Não
é resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.”29
A concepção de história de Arendt precisa ser compreendida a partir dessa
importância que a autora confere à revelação dos fatos. De certo modo, tal
importância está relacionada àquela valorização dos assuntos humanos a qual nos
referimos anteriormente. Os fatos ou eventos estão no âmbito da ação. Seu
aparecimento deve-se à atividade dos atores na esfera pública. Os fatos ou eventos
só aparecem no mundo compartilhado pelos homens. Eles constituem a realidade
e tornam-se o objeto da história. Ainda não trataremos da perspectiva arendtiana
sobre a escrita da história. O intuito nesse momento é mais elaborar a sua
narrativa a respeito da história do Ocidente. Por ora, basta ressaltar que para
Arendt nem tudo o que se refere à vita activa é necessariamente histórico. A
história é a história dos feitos e eventos; e, portanto, tem uma afinidade intrínseca
com a esfera política. Nesse sentido, acreditamos que o destaque que a autora
promove sobre a realidade ‘concreta’ dos eventos acarreta a proeminência não só
do político, mas também do histórico.
Em sua narrativa da história do ocidente sob o ponto de vista do
esquecimento do político, a autora evidencia o caráter transformador dos eventos.
Arrisca-se a dizer contra a tradição do pensamento filosófico que “não são as
idéias, mas os eventos que mudam o mundo.”30 Atribui à Galileu e à sua
descoberta do telescópio importância central quando se trata de compreender as
transformações da modernidade. Arendt também destaca a relevância de outros
eventos como a descoberta da América e a Reforma. Esses eventos mudam a
maneira de ver o mundo. A filosofia cartesiana só pode ser entendida a partir
dessas mudanças históricas. O que Descartes revela em sua filosofia é o
questionamento do mundo real pelo sujeito pensante. A dúvida que recai sobre
tudo só encontra o núcleo duro do pensamento como certeza no “penso, logo
existo”. Segundo Arendt, a dúvida cartesiana é a dúvida quanto à realidade do
mundo visto pelos sentidos. O engano dos sentidos provado pelo instrumento de
Galileu, donde se conclui que, diferentemente do que vemos a olho nu, o Sol não
gira em torno da Terra, coloca em xeque toda a realidade tal como se apresenta. A
mudança de paradigma na modernidade deve-se a essa suspeita quanto à
29 Ibid, p. 54. 30 Id., A condição humana, p. 285.
39
capacidade humana de ver o real. Desde então o homem moderno passou a
‘buscar’ a verdade através dos instrumentos que fabrica para ver melhor. Arendt
mostra que a desconfiança dos sentidos e o conseqüente declínio da contemplação
provocam um deslocamento na concepção de verdade. A explicação sobre o que
uma coisa é deu lugar à compreensão do processo do que uma coisa se tornou. A
passagem do “que” para o “como” implica na substituição da contemplação da
verdade pela observação da verdade através de instrumentos específicos
fabricados pelo homem. A verdade revelada dá lugar à verdade fabricada.
Ao examinar esse deslocamento para a modernidade designado pela autora
como uma “perda do mundo”, não é possível concluir que ela se mostre saudosa
do caráter contemplativo dos filósofos. Lembre-se que o esquecimento do
político, em curso desde o fim da cidade-estado antiga, é já um traço fundamental
do pensamento platônico que evidencia a contemplação e a separação dos dois
mundos – o da verdade e o das sombras. Essa perda de mundo corresponde a seu
modo ao próprio declínio do político. Assim, a mudança de paradigma traz à tona
uma nova relação de subjugo do político. Na leitura arendtiana, o que muda é a
forma da sujeição do político. A desvalorização do mundo que se faz na filosofia
e no cristianismo em prol de uma transcendência para o mundo das idéias ou para
o mundo divino é efetuada pela introspecção na modernidade. O sujeito volta-se
para dentro de si mesmo e encontra a verdade na sua própria razão.
A era moderna é também o período que corresponde à ascensão do homo
faber. Para Arendt, a alienação do mundo é visível na expropriação das classes
camponesas. O espólio do solo priva grande parte da população de um lugar no
mundo e coloca em primeira ordem a necessidade de procurar sustento com o
próprio trabalho. A autora refere-se ao momento conhecido como crise do
feudalismo quando se tornou possível ao capitalismo entrar na fase de acúmulo de
capitais. A desvalorização da propriedade e a ênfase na riqueza móvel que se
torna renovável fonte de lucro mantenedora do processo contínuo de aumento do
capital também é a ponta do iceberg onde Arendt vê surgir a modernidade. Note-
se que a passagem para a modernidade indica-lhe a perda da estabilidade e o
início do predomínio do processo devorador, onde nada vale por si mesmo, pois
tudo adquire valor através de sua imersão no processo. Trata-se do reinvestimento
constante do capital no processo progressivo e infinito do capitalismo. Na
preponderância do homo faber ainda há a importância do produto fabricado, mas,
40
posteriormente, com a ascensão do animal laborans, o processo adquire
importância por si mesmo. Se a autora faz questão de distinguir esses dois
momentos da modernidade, o primeiro que se inicia no século XV e o outro que
começa no século XIX, deve-se destacar que a valorização do trabalho está ligada
à posterior promoção do labor. O trabalho fomenta a noção de processo. Através
da objetividade da produção controla o procedimento com início e fim, trazendo
ao mundo os artefatos materiais que lhe garantem a durabilidade artificial. Com a
decadência do homo faber, os produtos do trabalho importam menos que o
próprio processo de fabricação. O processo adquire valor por si mesmo, de tal
modo que o homem perde o controle sobre ele. É como se o feitiço virasse contra
o feiticeiro. O homem inicia os processos, mas eles assumem vida própria.
A primazia do homo faber na era moderna revela a inversão entre vita
activa e vita contemplativa. Arendt usa essa idéia de inversão diversas vezes.31
Em geral, refere-se a diferentes inversões entre a vita activa e a vita
contemplativa. Mas acredita que a modernidade promoveu uma inversão
inovadora quando elevou a vita activa à superioridade sobre a vita contemplativa.
Deve-se observar que a autora atribui caráter de novidade à moderna inversão da
hierarquia entre vita activa e vita contemplativa, que coloca a fabricação no ápice
das atividades humanas, sobretudo, porque considera que o subsídio de tal
inversão não vem da própria esfera do pensamento, mas sim da realidade. É o
evento do telescópio que provoca a transformação.
Com a inauguração da suspeita moderna, “o filósofo já não volta as costas
a um mundo de enganosa perecibilidade para encarar outro mundo de verdade
eterna, mas volta às costas a ambos e se recolhe dentro de si mesmo.”32 Essa volta
para si mesmo designada como a moderna perda do mundo é, portanto, mais
radical que a rejeição filosófica do mundo na Antigüidade. Se, em ambos os
casos, Arendt destaca o subjugo dos assuntos humanos, por outro lado, entrevê a
gravidade da situação moderna, que separa de uma vez por todas pensamento e
experiência. Os filósofos gregos, apesar de retirarem a verdade para um mundo
ideal, de modo a separar essência e aparência, ainda estavam vinculados à pólis.33
31 Arendt fala que a tradição do pensamento filosófico iniciada com Platão baseia-se numa
inversão da concepção homérica de vida após a morte. Ibid, p.305. 32 Ibid, p. 306. 33 Veja uma boa passagem em que Arendt esclarece essa diferença “a filosofia dos gregos
segue ainda a ordem estabelecida pela polis mesmo quando se volta contra ela.”
41
Assim, também se pode compreender a desvalorização cristã do mundo. Embora a
alma eterna seja o que está realmente em jogo, há com o cristianismo uma
valorização da vida na Terra. A condenação do suicídio é uma prova disso, como
atesta a autora.
A perda de mundo na modernidade é inovadora na tradição ocidental.
Embora não acarrete exatamente uma ruptura na continuidade da história. De
certo modo, a negação dos assuntos humanos pelos filósofos na Antigüidade e
pelo cristianismo encontra ecos na perda do mundo moderna, que é também uma
rejeição da realidade fugaz que aparece aos olhos humanos. Apesar de destacar a
novidade da situação moderna, Arendt enfatiza a continuidade no que se refere ao
esquecimento do político, pois é a partir dessa perspectiva da continuidade que
traça sua história do ocidente como história do declínio do espaço público.
Apenas o advento do totalitarismo interrompe essa continuidade. Se assim o faz
não é porque constitua em si uma suspensão da negação do político. Ao contrário,
na narrativa arendtiana vemos que o totalitarismo é o ápice dessa negação. É
quando se pretende isolar completamente os homens uns dos outros e excluir a
possibilidade da pluralidade através da instituição do Uno totalitário, no qual
todos devem ter a mesma opinião. A ruptura totalitária significa que o
esquecimento do político foi levado ao extremo. A partir daí não é mais possível
pensar através dos parâmetros tradicionais. Impõe-se um evento inédito.
Esta brotou de um caos de perplexidades de massa no placo político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação. A dominação totalitária como um fato estabelecido, que em seu ineditismo, não pode ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos ‘crimes’ não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referência legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História Ocidental.34
É importante distinguir os dois momentos mais recentes apresentados na
história arendtiana onde se visualizam as mudanças no trato da condição humana.
A ruptura da tradição só aparece com o advento do totalitarismo. Desde então se
enuncia a divisão entre a “era moderna” e o “mundo moderno”. Não é n’ A
condição humana que a autora traça a história dessa ruptura, pois não se preocupa
em referir-se ao totalitarismo. Note-se que Origens do totalitarismo é uma obra
34 Id., Entre o passado e o futuro, pp53-54.
42
anterior, onde Arendt busca compreender especificamente esse fenômeno. A
distinção entre era moderna e mundo moderno já está concebida, e aparece
claramente na história do ocidente contada n’ A condição humana. Ainda no
prólogo, a autora indica que “a era moderna não coincide com o mundo moderno.
Cientificamente, a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar do
século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as
primeiras explosões atômicas.”35 O mundo moderno é o mundo em que vivemos
ou o mundo em que vive Arendt na década de 1950 e que, segundo ela, veio a
tornar-se realidade desde “pouco mais de uma década”, com o domínio da
tecnologia e a capacidade humana de agir a natureza, iniciando processos naturais
que não existiam na natureza como a fissão atômica. Se desejássemos traçar uma nítida linha divisória entre a era moderna e o mundo em que agora vivemos, provavelmente encontra-la-íamos na diferença entre uma ciência que vê a natureza de um ponto de vista universal, e assim consegue dominá-la completamente, e uma ciência verdadeiramente ‘universal’, que importa processos cósmicos para a natureza, mesmo ao risco óbvio de destruí-la e, com ela, destruir o seu domínio sobre ela.36
A distinção entre a era moderna e o mundo moderno – pós-totalitário,
aparece em A condição humana através da transformação da ciência moderna em
tecnologia. É com o desenvolvimento tecnológico que a ação retorna
inusitadamente ao palco da história. Torna-se uma atividade de suma importância,
embora esteja restringida ao círculo dos cientistas. Depois consideraremos as
implicações do ensaio “Verdade e política”, onde Arendt retoma essa demarcação
e observa que, desde quando se pretende criar uma realidade histórica totalmente
fictícia, recorrendo à ocultação e deturpação dos fatos – verdades factuais –
também se está agindo história.
Por ora, é importante acompanhar os desdobramentos da história conforme
a leitura arendtiana na “condição humana”, pois a estrutura geral da história do
ocidente aparece nessa obra. A distinção entre a era moderna e o mundo moderno,
que comumente operamos como a diferenciação entre o moderno e o
contemporâneo, sugere o rumo que a história toma na atualidade. Na prática, a
história traçada pela autora só vai até a ascensão do animal laborans. Ela mesma
admite “Não discuto esse mundo moderno que constitui o fundo sobre o qual este
35 Id., A condição humana, p. 13-14. 36 Ibid, p. 281.
43
livro foi escrito”.37 No entanto, esse mundo moderno - “mundo no qual vivemos”
-, não deixa de se mostrar tanto na “condição humana” como em toda a sua obra.
Arendt tem uma preocupação clara com o mundo em que vive. Se pretende
restringir sua análise à compreensão do passado e da história, realizando uma
“análise histórica”; isso não significa que não esteja envolvida com os problemas
de seu século. Mesmo se quisesse de fato fazer uma análise ‘neutra’ não
conseguiria pelo simples fato de que todos estão de certo modo comprometidos
com sua época e seu lugar no mundo. A declaração da autora, no entanto, deve ser
entendida num outro sentido, pois ela não parece negar as intenções de
compreender o totalitarismo. Segundo Roviello, essa é a grande questão de sua
obra. O totalitarismo é o ponto central da vida e do pensamento arendtiano. A
própria retomada do passado e tentativa de compreensão do político e do histórico
parecem enraizadas no esforço de entender o que significa esse evento crucial do
século XX.38
Temos que entender seu ‘afastamento’ através da “análise histórica”, à luz
da separação que entrevê entre ação e pensamento. Quando empreende uma
“análise histórica” e não intenta prever ou prescrever qualquer sentença sobre o
futuro, Arendt está sendo coerente com sua idéia de que o pensamento não pode
orientar a ação. Assim, é possível entender as restrições da autora ao falar do
mundo em que vivemos. Não quer indicar um caminho para a ação. Tem muito
cuidado para não ser mal interpretada nessa questão.
Ressalvas à parte, o pretendido é destacar a separação que a autora faz
entre era moderna e mundo moderno, principalmente, porque essa distinção
parece de suma importância quando se tenta compreender não apenas a sua teoria
da história, mas a própria situação contemporânea da história. Ao apresentar um
panorama das diferentes épocas históricas visto sob a organização da condição
humana, Arendt destaca que a Antigüidade valorizava o zoon politikon, que cedeu
sua preponderância ao animal rationale, substituído em importância pelo homo
faber na era moderna, que, por sua vez, perde seu posto com a vitória do animal
laborans no século XIX. Observando esse quadro tem-se a impressão de que até
hoje persiste a preponderância do animal laborans. Se a história arendtiana
“acaba” com a vitória do animal laborans, é possível visualizar um
37 Ibid, p. 14. 38 ROVIELLO, A., Senso comum e modernidade em Hannah Arendt, p. 7.
44
prolongamento desse momento, que surge como seu desenvolvimento e pode até
mesmo ser considerado como uma nova situação onde reina a tecnologia e o
homem passa a agir natureza, criando processos naturais.
De certo modo, trata-se da mesma conjuntura, considerando que a
tecnologia tem seu fundamento na ciência. A separação entre moderno e
contemporâneo, apesar de estar marcada pelo totalitarismo e pelas explosões
atômicas, comporta uma ligação que é a mesma anunciada pela autora quando
chama a atenção para o fato de que o relativismo do mundo moderno não teria
sido inaugurado por Eisntein e sua teoria da relatividade. Já na premissa de
Galileu, que se baseia na desconfiança dos sentidos, estaria em jogo a
relatividade. Ver o Sol girando em torno da Terra é uma questão relativa. Depende
de onde se vê. Tal como há uma espécie de prolongamento entre a passagem da
valorização do trabalho para o labor, donde o processo controlado adquire
importância por si mesmo, existe também o contato entre o moderno e o
contemporâneo. A situação de extrema relatividade em que parece que nos
encontramos até hoje pode deitar raízes na perda do mundo, a qual acomete o
homem moderno no voltar-se para dentro de si mesmo. O telescópio, instrumento
que marca o advento moderno aos olhos de Arendt, retira do homem sua certeza
sensível. Para ver o mundo, o homem precisa ‘olhar’ através do aparato técnico. O
instrumento, por sua vez, é um produto elaborado pelo próprio homem. Seu cerne
é mais a mente humana que a possibilidade de contato com um mundo exterior,
por isso, a técnica que propicia a capacidade de ‘ver’ como se estivesse fora do
homem, estaria levando-o para longe do mundo e para perto de si mesmo.
A noção da perda de mundo moderna é fundamental no pensamento
arendtiano não apenas para compreender a modernidade, mas ainda para entrever
as possibilidades do mundo contemporâneo. Se o mundo em que vivemos parece
bastante diferente do moderno, e se a autora fala da ruptura na continuidade da
história para revelar a separação entre esses dois momentos, é preciso considerar
que essa ruptura também aparece, de certo modo, como uma espécie de situação
extrema ou limite da perda do mundo moderna. É nesse sentido que se pode
compreender a evocação de Arendt à Heisenberg, segundo o qual no mundo
contemporâneo surge como uma perda radical de sentido, pois o homem
45
“encontra apenas a si mesmo.”39 As origens desse exílio para dentro de si mesmo,
remetem à moderna perda do mundo, que acomete o homem quando desconfiado
de seus sentidos, acredita poder descobrir a verdade do mundo por intermédio de
instrumentos fabricados por sua própria mente. O que Arendt quer dizer com sua
noção de perda do mundo é que o homem perdeu a realidade do mundo,
sobretudo, a possibilidade de sua experiência sensível.
Da inversão entre vita contemplativa e vita activa, tem-se primeiramente a
valorização do homo faber, seguida da vitória do animal laborans, ou seja, uma
inversão hierárquica entre as atividades que constituem a vita activa. Com o homo
faber evidencia-se a supremacia da fabricação e do homem fabricador. Na
fabricação, o homem tem o controle do processo que inicia e finaliza com o
objetivo de alcançar um produto final. Na era moderna, o acesso à verdade passa
às mãos desse homem fabricador e torna-se ela mesma um produto. É através dos
instrumentos que o homem enxerga o mundo. Pela objetividade, concebe a
realidade. Na exaltação da competência científica do homem há a crença de que
mente (o aparelho produzido pela mente) e natureza ainda podem se conciliar. Se
o homem não pode ver a natureza, ele pode ao menos produzir instrumentos que
lhe permitem fazê-lo. Vico volta-se para a história, no afã de entender ao menos
aquilo que o homem faz. Arendt interpreta com receio essa retomada da história e
a guinada para a práxis, como se cristalizaria em Marx. Entende que nessa
concepção de Vico reside o engano, segundo o qual, o homem ‘faz’ a história, tal
como faz um objeto. Na perspectiva arendtiana, a virada para a história não
assume o atributo de um retorno ao mundo e aos assuntos humanos.
A sentença arendtiana sobre a perda do mundo na modernidade, que está
diretamente ligada ao seu julgamento acerca do obscurecimento do político na
história ocidental, encontra raízes na visualização da separação entre experiência e
pensamento. Ao voltar-se para dentro de si mesmo, o homem estaria rompendo
com a conexão entre ser e aparência. Duvidando do que lhe aparece aos sentidos,
imagina encontrar uma verdade por detrás das aparências. O problema para
Arendt é que com essa busca o homem não adentra de modo mais profundo na
realidade do mundo, ao contrário, descobre uma realidade que se torna cada vez
mais uma ‘construção’ da mente humana.
39 Ibid, p. 274.
46
Com a vitória do animal laborans esse ‘controle’ que se imagina ter sobre
o mundo começa a se esvair. Quando destaca que a ênfase deixa de iluminar o
produto final e recai sobre o processo de fabricação, Arendt indica a passagem da
concepção objetiva do homo faber para a valorização do fluxo infinito que
acompanha o processo vital vigente na atividade do labor. De certo modo, essa
mudança já parecia anunciada no início do capitalismo. A autora mostra que na
expropriação das classes camponesas retira-se a estabilidade de determinada
parcela da população, que passa a viver apenas no esforço de tentar satisfazer suas
necessidades vitais. “O que foi liberado nos primórdios da primeira classe de
trabalhadores livres da história foi o ‘labor power’, isto é, a mera abundância
natural do processo biológico...”40 O estágio seguinte é o de desvalorização geral
da estabilidade, quando a propriedade em si perde seus status de riqueza e passa a
valer menos que o fluxo de capitais. Ocorre que toda a população torna-se
‘expropriada’ de um lugar no mundo. Se os camponeses realocam a estabilidade
no pertencimento à classe, a generalização da expropriação concede à sociedade o
lugar antes ocupado pela família e pela propriedade. A essa altura, os homens
consideram-se parte de uma nação e comungam dos valores sociais que
preenchem o vazio deixado pela desvalorização da propriedade e da família. O
que se segue, segundo Arendt, é a substituição das classes e nacionalidades pela
noção de universalidade. Nesse momento, a autora entrevê o pleno sucesso do
animal laborans. Os homens imaginam-se unidos pela determinação biológica da
espécie. Teria contribuído para essa vitória, a desvalorização do princípio da
utilidade. Não é o que homem faz que importa, mas a vida em si mesma que
adquire validade. A humanidade do homem é sustentada através do princípio
natural que o iguala a qualquer outra espécie animal.
Se a autora entende que o humano guarda uma especificidade, e que,
justamente, por ter a capacidade de construir um mundo humano em oposição ao
natural e por sua competência para agir, mostrando a singularidade individual e
realizando grandes feitos, o homem se diferencia do restante do universo, ela não
pode aceitar que a humanidade do homem esteja fundamentada na sua
animalidade. No mero nascer espécie humana.
40 Ibid, p. 267.
47
Outros autores destacam esse processo de ‘desenvolvimento’ que leva o
homem a ser definido por seu aspecto biológico. Também Michel Foucault e
Giorgio Agamben seguem essa linha de raciocínio e notam a valorização do que
Arendt denomina a atividade do labor, elaborando uma relação entre essa
ascensão do biológico, o declínio do político e a experiência totalitária na
sociedade de massas. Agamben no seu Homo Sacer destaca que Arendt foi a
primeira a notar esse problema da promoção do biológico na política. Mas
percebe que a temática fica esquecida por décadas e só é retomada por Foucault,
que por sua vez, nem menciona as idéias arendtianas.41 Se Agamben concede o
merecido crédito à Arendt isso não significa que sua obra sobre a relação entre
político e biológico esteja plenamente de acordo com o caminho seguido pela
autora. Deve-se ressaltar que, apesar da questão comum, os três autores traçam
perspectivas próprias sobre o que Arendt denomina a “vitória do labor”.
Observemos os pontos principais discutidos pelos autores. Primeiramente,
é preciso entender que nem Focault, nem Agamben falam do biológico como
labor. Foucault analisa o aparecimento do poder biopolítico. Tal estudo insere-se
no conjunto de sua obra como uma continuidade de suas pesquisas sobre o
controle do corpo pelo poder disciplinador nos séculos XVI e XVII. O autor
constata o aparecimento de um novo tipo de poder no fim do século XVIII, cuja
política se volta para o controle não apenas dos indivíduos e dos “homens-corpo”,
mas pretende envolver a massa de indivíduos que se constitui desde então.
Foucault entrevê a valorização do biológico através do crescimento da biopolítica
– das políticas de controle de nascimentos, mortes e doenças. Observa que a
preocupação da política volta-se para as relações entre a espécie humana, isto é,
para o homem enquanto espécie. No curso de 1976, reunido no livro intitulado Em
defesa da sociedade, o autor relaciona o crescimento do biopoder e o
aparecimento do nazismo. “Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar
de tudo, extraordinária: é uma sociedade que generalizou absolutamente o
biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar.”42
Deve-se destacar que o importante nessa referência à Foucault é mais
explicitar a ‘continuidade’ do argumento arendtiano, segundo o qual é possível
enxergar a ascensão do labor na modernidade desde o século XIX, que aprofundar
41 AGAMBEN, Giorgio, Homo sacer, p.11-12. 42 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 311.
48
a comparação entre os dois autores. Até porque esse seria um trabalho à parte.
Apesar de existir alguns pontos comuns entre eles, não é fácil fazer uma
equiparação, sobretudo, no que se refere à questão do poder. Foucault busca
desmistificar os discursos de poder, de modo a tornar visíveis as relações
históricas concretas que lhes são subjacentes. No entanto, mesmo quando se refere
aos meandros pelos quais se efetiva o poder, retirando a exclusividade do enfoque
político sobre o Estado como detentor único e exclusivo do poder, Foucault ainda
fala de um poder que oprime e subjuga. Se o autor inova ao analisar as formas
pelas quais o controle se efetiva, estabelecendo a Microfísica do poder, parece que
ainda concebe o poder nos moldes do controle, como instâncias controladoras.
Em Arendt, o poder não tem a tradicional característica de coerção. Sua
definição indica que a máxima do poder é o “Todos contra um”, enquanto seu
exato oposto é o “Um contra todos”.43 O totalitarismo que surge, a seu ver, como
o extremo Uno não deve ser compreendido como poder, mas, ao contrário, como
ausência absoluta dele. Para Arendt, o poder emana da esfera política onde os
homens se relacionam como iguais e diferentes, ou seja, daquele espaço onde
podem ser livres e agir em concerto. Também é necessário mencionar que a
soberania em Arendt não é parâmetro para o totalitarismo, pois essa ausência
máxima de poder é uma novidade radical. Esse é um ponto importante a ser
destacado quando se trata de pensar essa vitória do animal laborans e a
compreensão arendtiana da história. Foucault e Agamben estabelecem uma
relação direta entre essa ascensão do biológico e o totalitarismo. Agamben vê até
um problema na ausência dessa conexão definitiva na perspectiva de Arendt.
Por outro lado, se as penetrantes indagações que Hannah Arendt dedicou no segundo pós-guerra à estrutura dos Estados totalitários têm um limite, este é justamente a falta de qualquer perspectiva biopolítica. (...) o que ela deixa escapar é que o processo é de alguma maneira, inverso, e que precisamente a radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em um campo) legitimou e tornou necessário o domínio total.44
43 ARENDT, H., Sobre a violência, p. 35. 44AGAMBEN, G., op cit., p.125-26. Ainda sobre essa crítica pode-se ler que “essas
dificuldades devem-se provavelmente tanto ao fato de que, em The Human Condition, a autora curiosamente não estabeleça nenhuma conexão com as penetrantes análises que precedentemente havia dedicado ao poder totalitário (das quais está ausente toda e qualquer perspectiva biopolítica)”. p.12.
49
Para compreender a crítica de Agamben é necessário esclarecer que a
vitória do labor significa para o autor que o político é tomado pela liberação da
vida nua. Liberação é mesmo uma libertação de uma forma de vida que estava
excluída e subjugada anteriormente. Agamben destaca que a política se funda a
partir da oposição entre bíos e zoé na Antigüidade. Mas acredita que a zoé – vida
da espécie, que ele chama de vida nua – sempre esteve na base do político,
incluída na exclusão que se lhe impunha.45 A exclusão da vida nua da política
baseia-se na idéia, que aparece claramente em Aristóteles, segundo a qual a
política é uma forma de vida (bíos) especificamente humana. A cisão estaria
fundada na discriminação entre homem e natureza. Deve-se observar que essa
separação que Agamben entende como metafísica é também parâmetro para
Arendt, embora o italiano trabalhe apenas com a oposição dual entre bíos e zóe,
cultura e natureza, política e vida nua; enquanto a autora apresenta a ruptura
tripartite entre mundo natural, mundo humano – construído pelo homem, e mundo
político, designando as atividades do labor, do trabalho e da ação. Essa diferença
parece ser determinante para os caminhos distintos que tomam os autores. Se
ambos concordam acerca da ascensão do biológico, não se pode dizer o mesmo
quanto aos precedentes desse fato. Agambem entende que a política se caracteriza
pela exclusão da vida nua, mas defende que essa exclusão é mesmo uma inclusão
através da qual a política “tolhe e conserva a vida nua”. Por isso, pretende refazer
a concepção de Foucault, segundo a qual o biológico passa a fazer parte da
política moderna. Para Agamben, a zoé faz parte da política, pelo menos, desde a
antigüidade. O que ocorre na modernidade é a liberação dessa vida nua, antes
restrita a um espaço de exceção.
(...) decisivo, é, sobretudo, o fato de que lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. O estado de exceção no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente sujeito e objeto do ordenamento político e dos seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele.46
45 Para uma análise sobre a teoria da exceção ver SCHIMITT, C., Teologia política. 46 AGAMBEM, G., Homo sacer, p. 16-17.
50
A partir de sua ‘descoberta’ de que a separação entre bíos e zoé funda o
aparecimento do político na Grécia, Agamben imagina estar desvelando o
fundamento oculto do político que, por sua vez, teria se rompido na modernidade.
Donde se faria visível a vida nua no político. Sua análise de Foucault tem
relevância quando mostra que a vida nua é o ponto de contato que une os estudos
do autor, que parecem divididos entre o exame do biopoder e a pesquisa sobre a
formação do sujeito moderno. A valorização do biológico não se faz presente
apenas do lado das políticas de controle das relações do homem como espécie,
mas aparece também como sustentáculo da democracia, conforme se pode ver na
concepção de direitos naturais do homem. Ao biopoder corresponde o cidadão
moderno.
Para desvelar o lugar de exceção oculto na fundação da política, Agamben
trata de analisar as teorias contratualistas da política moderna. Entende que o
soberano é o lugar oculto da exceção, pois ele está ao mesmo tempo dentro e fora
do espaço do direito. Mostra que o estado de direito baseia-se no topos da
exceção, e indica que sua sustentação “já contém, portanto, desde sempre em seu
ulterior sua própria ruptura virtual na forma de uma ‘suspensão de todo
direito’.”47 Quando a limitação se rompe, todo o direito cai por terra.
Agamben apóia-se em dois argumentos principais. Primeiro defende que a
ascensão do biológico está relacionada ao fim da metafísica da política. Para
compreendê-la deve-se entrever a dissolução do fundamento da política que é a
exclusão-inclusão da vida nua. Em segundo lugar, pretende conceber a
valorização do biológico em sua relação tanto com o totalitarismo quanto com a
democracia. Revelando a "íntima solidariedade” entre democracia e
totalitarismo.48 A liberação da vida nua define ambos os regimes. Forma tanto a
política de controle total, quanto à cidadania que se baseia no nascimento da
espécie. Se o raciocínio funciona para entender Foucault, o mesmo não se pode
dizer sobre a sua compreensão de Arendt. O problema não é que Arendt não tenha
entrevisto a biopolítica. Como o próprio Agamben observou é ela quem abre os
olhos para essa questão da ascensão do biológico. O que Arendt denomina vitória
do animal laborans perpassa a época moderna desde o século XIX em todas as
47 Ibid, p. 43. 48 Ibid, p.18.
51
esferas. A valorização do labor, que é a promoção do processo sobre o produto
fabricado pelo homem aparece na elevação da vida a supremo bem. Na concepção
arendtiana, a vitória do labor está implicada tanto nos totalitarismos quanto nas
democracias. Isso fica claro quando lemos A condição humana à luz de Origens
do totalitarismo. O comentário de Agamben se esclarece quando entendemos que,
de modo distinto da sua concepção, Arendt não acredita que totalitarismo é o
mesmo que democracia ou que soberania. Ao contrário, para ela, o totalitarismo
se destaca por sua novidade radical. Se reconhece a existência de “elementos
totalitários” na sociedade democrática e entrevê semelhanças com a fabricação da
imagem americana na época de Nixon e na preocupante caça às bruxas no período
do pós-guerra, Arendt não desterra uma equiparação entre as duas formas de
governo.
A autora tampouco poderia concordar com o fio condutor que Agamben
lança sobre a história. A exclusão da vida nua, na qual o filósofo vislumbra o
fundamento oculto da política, aparece na perspectiva arendtiana como a
separação entre público e privado que garante ao político a criação de uma esfera
distinta da necessidade. O “abismo” que os gregos percorriam entre a casa e a
cidade todos os dias era de suma importância para garantir a liberdade entre
iguais. Arendt entrevê uma liberdade positiva que se baseia na possibilidade de
expor opiniões distintas, manifestar a singularidade e agir em concerto com os
outros. Essa separação não era oculta. Devia aparecer claramente. A política
sempre soube que precisava manter-se diferenciada dos assuntos domésticos.
Onde Arendt vê o esquecimento dessa distinção, Agamben enxerga a ocultação
voluntária da exclusão inclusiva da vida nua. Por isso, as histórias que os autores
contam são tão diferentes, apesar de culminarem no ponto comum da vitória do
biológico. Deve-se notar que a perspectiva de Agamben lhe leva a concluir que a
dominação total era “necessária”. Inclusive, acredita que era isso que Arendt não
entendia. A introdução desse caráter da necessidade na história de Agamben não
encontraremos em Arendt. Para ela, o totalitarismo não estava definido desde o
esquecimento da política. Não é isso que ela quer dizer com a sua remissão à
história desse declínio do mundo público. Essa diferença crucial nos permite
destacar um aspecto fundamental da concepção histórica arendtiana, a saber, que a
história não está definida de antemão. A história trata da realização da liberdade
do homem – da sua capacidade para agir. A distinção entre democracia e
52
totalitarismo mostra como a ação humana é superior a qualquer tentativa de
determinação. Até mesmo aquela imposta pela vitória do animal laborans.
A diferença entre democracia e totalitarismo é que na democracia a
valorização da vida é ratificada pela cidadania, ou seja, a humanidade é garantida
ainda pela instituição estatal. Não há, segundo Arendt, a continuidade entre o
nascimento e a cidadania. Apesar da promoção da vida, a democracia não se
sustenta na plena realização do homem natural – essa é uma falácia na qual se
funda o Estado e a igualdade moderna. O totalitarismo, por sua vez, torna suas
vítimas matáveis justamente quando lhes retira a cidadania. Torna os homens
realmente naturais. Na perspectiva arendtiana, o totalitarismo deixa ver que o
direito literalmente natural é um perigo. Agamben refere-se ao resíduo que
aparece na passagem da vida natural à cidadania. O autor também acredita que
esse é um problema fundamental, pois entende que esse ‘resíduo’ torna possível e
até necessário o totalitarismo. Ao fundamentar-se nesse resíduo, o estado de
direito permite que as pessoas que não se encontram sob sua tutela sejam
matáveis. Tal como Arendt, Agamben sublinha que o nazismo precisou
desnacionalizar suas vítimas antes de levá-las aos campos. Desse modo, tornava-
as simplesmente vida nua; membros da espécie, que podiam ser executadas como
“piolhos”. No entanto, o filósofo italiano acredita na possibilidade de eliminação
do resíduo. Entende que na radicalização da indistinção entre político e vida nua
isso poderia se resolver.
Segundo Agamben, o retorno à política clássica, intentado por Arendt e
Strauss, só pode ter um sentido crítico, mas não pode ser a solução para conceber
uma nova política tomada pela vida nua. Agamben não vê qualquer possibilidade
de voltar atrás na indistinção entre político e biológico. Não visualiza meios de
remontar a exclusão metafísica. Divisa em Flamen Dialeb de Dumézil e Kerényi a
possibilidade de uma vida onde “esfera privada e esfera pública identificam-se
sem resíduos.”49 De uma política definida pela exclusão da vida nua, que segue
como espaço de exceção oculto, o autor vislumbra ‘no fim’ a situação da
reconciliação, que é a própria indistinção. Talvez fique mais clara a influência
hegeliana se apresentarmos o ponto em outros termos, observando que, fundada
na negação da vida nua, que torna e invade a política temos a situação
49 Ibid, p. 189.
53
contemporânea da indistinção entre política e vida nua. Situação que é a própria
negação da negação, e, de certo modo, a realização da reconciliação. Quando se
descobre o que há por trás do político; seu fundamento oculto, a metafísica fica
para trás e já não é mais possível conceber a distinção. Em Arendt, a reconciliação
também assume papel importante. Aparece como um sentido da história, mas não
como realização da negação. Até porque a autora, embora tenha alguma ligação
com Hegel, esse contato é sempre crítico. Sua ‘coruja de minerva’ anuncia fim e
início como veremos adiante.
Por ora, é preciso destacar que, mesmo a contragosto, a autora insiste na
separação de político e biológico. O pressuposto do ‘puro’ político, como o lugar
livre das necessidades da vida, acarretou à leitura arendtiana a famosa
problemática sobre a separação entre político e social. Na verdade, sua concepção
foge um pouco dessa dualidade e introduz a feliz perspectiva tripartite,
concebendo a ruptura com o biológico através da atividade humana do trabalho,
que instaura o mundo humano dos artefatos, além da separação do mundo
cotidiano pela ação, propriamente política. Assim, não há a oposição direta entre
labor e ação; e a decadência da ação não leva diretamente à promoção do labor,
mas, antes, à ascensão do homo faber. O que indica que não seria possível pensar
na inclusão do biológico no político. Segundo Arendt, a decadência do político
esfumaça a separação entre público e privado e torna tudo uma única esfera do
social. A análise interessante de Agamben pode ser compreendida a partir dessa
dificuldade que temos em conceber a dita separação imaginada por Arendt. A
dificuldade, que nós, modernos, enfrentamos para entender a separação entre
público e privado, como explicitada pela angústia de Mary McCarthy. Agamben
não acredita na possibilidade de qualquer retorno à separação, e traça suas
perspectivas baseando-se numa aceitação desse fato da impossibilidade de
distinção. Assume a tarefa de pensar uma nova política a partir daí. No entanto,
deixa de compreender que Arendt não quer o restabelecimento do mundo grego e
que sua demarcação sobre a distinção das esferas é imbuída de forte consciência
histórica.
A divergência entre os autores pode ser pensada tomando-se a questão da
“crise dos limites”, que se refere à dificuldade de indicação de parâmetros seguros
após a desconstrução da metafísica. Seria o caso de observar que para Agamben,
54
a situação contemporânea revela a impossibilidade da distinção; enquanto Arendt
ainda considera possível estabelecer determinados limites?
Roviello acredita que a “A preocupação arendtiana pelo político é
simultânea e indissociavelmente, a preocupação com o que transcende o político e
cuja formulação mais simples é a questão: ‘o que é o homem?’”50 Assim, defende
que Arendt está tratando de pensar o político e o humano dentro de certos limites.
O totalitarismo aparece como o extremo oposto do grego porque é a experiência
que tenta subverter, não apenas o político, mas a própria condição humana.
Mesmo que seja possível perceber que há em Arendt o intuito de fixar
determinados parâmetros que sugerem a especificidade do homem, sobretudo
quando apresenta a arquitetura estável da condição humana, não parece correta a
afirmação de Roviello que infere a delimitação do humano.
Quando se refere à condição humana como condição e não como essência,
Arendt quer justamente distinguir a possibilidade de variação que existe na
condição humana. Com isso, reconhece a alteração da hierarquia entre as
atividades da vita activa nos diferentes momentos históricos. Se há alguma
correspondência entre a experiência grega e a condição humana, isso não impede
a concepção de outras formas de realização do político em situações históricas
distintas. Ocorre que a delimitação arendtiana apresenta uma arquitetura que
permite demarcar limites entre o político e o não-político, mas não comporta uma
sujeição do homem à rigidez da definição “o que é o homem”. É nesse sentido que
podemos entender como Arendt rejeita essa pergunta e se atém à questão sobre
“quem é o homem”.
Em outras palavras, se temos uma natureza humana ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um ‘quem’ como se fosse um ‘quê’. (...) as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra – jamais podem ‘explicar’ o que somos ou responder a perguntas sobre o que somos, pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto.51
Se não é possível determinar “o que o homem é”, pode-se dizer que o
humano não é o animal, e tudo o que o restringe ao âmbito do labor o aproxima da
sua animalidade, ou seja, limita-o a ser membro da espécie. O trabalho como
50 ROVIELLO, A., op cit, p. 7. 51 ARENDT, H., A condição humana, p.18-19.
55
competência para instaurar um mundo de artefatos humanos, e, principalmente, a
ação como possibilidade de iniciar o novo no mundo e revelar a singularidade do
homem individual são atividades que discriminam a humanidade do homem,
embora não definam “o que é o homem”. Os limites traçados pela arquitetura da
condição humana não indicam “o que o homem é”, mas sugerem que o homem
não pode ser simplesmente um animal; um mero membro da espécie. Os limites
não aparecem como fundamentação última, para determinar “o que o homem é”,
mas surgem para demarcar a diferenciação entre o mundo humano e o natural,
mais especificamente, entre o biológico e o político.
Por isso, o esquecimento do político não destrói a humanidade dos
homens, embora produza certos homens-espécie. O mundo contemporâneo não é
um mundo apenas de animais humanos. A dificuldade para singularizar-se
enquanto homem está relacionada à vitória do animal laborans e à decadência de
um espaço autenticamente político, mas isso não significa que não seja possível
encontrar homens e que a ação esteja irremediavelmente perdida. Ela mesma traça
o perfil biográfico de alguns ‘homens’ que mesmo em “Tempos Sombrios”
puderam revelar sua ‘humanitas’.52
A análise arendtiana da ação mostra que a humanidade do homem liga-se à
sua possibilidade de se singularizar e instaurar novos começos no mundo. A
possibilidade de tornar-se uma pessoa é dada pelo nascimento, mas não é sua
continuidade direta, tal como o direito natural gostaria que fosse ao conectar vida
natural e cidadania. Para Arendt, a modernidade reduz o espaço no qual as pessoas
podem agir, pois se funda na idéia segundo a qual todos são iguais. É a igualdade
natural dos homens que está na base do direito natural. Na sociedade de massas,
reina o geral e não o particular. A singularidade está menos ligada ao espaço
público que à vida privada. Poderíamos visualizar essa perspectiva com um
exemplo simples. A princípio, todas as pessoas parecem iguais se olharmos um
grupo desconhecido. Apenas quando conversam ou agem de alguma maneira
singular essas pessoas passam a ser “tal” ou “qual”, e saem de um anonimato a
priori. O espaço público na Antigüidade é um lugar especialmente próprio ao
aparecimento das pessoas. Nesse âmbito, elas se distinguem e se singularizam
como pessoas. Deve-se notar que a decadência desse espaço não elimina
52 Id., Homens em tempos sombrios.
56
completamente a possibilidade das pessoas aparecerem umas às outras. Não joga
tudo numa zona de indistinção. O cristianismo torna essa etapa do aparecimento
público sem sentido porque faz crer que ao nascer a pessoa já é singular; é uma
alma única e intransferível. Essa projeção da vida como valor transcendental
legou à modernidade o apego à vida natural.
Se o contemporâneo é a época da indistinção, a possibilidade de distinção
por si mesma encontra-se afetada, mas não é irrealizável. Mesmo no totalitarismo,
que, na versão arendtiana, tentou ao máximo eliminar o espaço público, ainda se
pode encontrar exemplos de pessoas que se distinguiram por sua singularidade.
Arendt refere-se aqueles que enfrentaram o nazismo e da sua capacidade de agir.
E mostra a disseminação da indistinção entre os bons alemães que não souberam
diferenciar entre o certo e o errado no momento crucial do nazismo.53 A separação
entre distinção e indistinção indica a realização da capacidade de ação. Distinguir-
se é revelar a singularidade.
Assim, sempre que alguém se diferencia de seus iguais pela sua
capacidade de ação está traçando limites. Está promovendo distinção onde só
parecia haver indistinção. Note-se que, conforme a perspectiva arendtiana, a
indistinção completa é própria da esfera biológica. Os animais de uma mesma
espécie são indistinguíveis entre si. Nesse sentido, sua narrativa da história
ocidental indica como a humanidade caminha progressivamente rumo à
indistinção e à valorização do biológico, embora não seja completamente fatalista.
Arendt não desconsidera a possibilidade da ação humana em nenhum momento
histórico. Nem mesmo sob a tentativa de extirpação total da pluralidade
promovida por Hitler. Parece ser essa crença na capacidade humana de agir que
não permite que a teoria arendtiana da história seja simplesmente mais uma
filosofia da história.
Enquanto Agamben se socorre em Heidegger para defender a aceitação do
destino da indistinção, Arendt situa-se de modo distinto em meio aos autores que
pretendem acrescer a ‘desmontagem’ da metafísica.54 Entende que é preciso
considerar a possibilidade da distinção, não apenas dos homens entre si, mas
53Agamben também menciona essa conseqüência da indistinção quando discute a
incapacidade de distinguir entre forma e conteúdo da lei. A referência de ambos os autores para compreender essa incapacidade de distinção é a Segunda Crítica kantiana. AGAMBEN. G., Homo sacer, pp.65-66.
54 Ibid, p. 159.
57
também a distinção das esferas – entre o político e o biológico; entre a ação e o
pensamento. Sua resposta à metafísica não parte da fórmula da indistinção.
Rejeita os preconceitos tradicionais que impõem a hierarquia entre as esferas,
subjugando a ação ao pensamento, e defende que há uma distinção fundamental
entre pensamento e ação. A separação que vislumbra não concebe um lugar fora
do mundo (extratemporal), cuja superioridade poderia orientar as ações dos
homens. Ao contrário, quer estabelecer um bom termo para a distinção.
Segundo a autora, as ‘falácias metafísicas’ não são simples imposturas.
Remetem a questões que continuam valendo. A dualidade do mundo entrevista
pelos filósofos gregos, consagrada na separação platônica entre o mundo
verdadeiro e o mundo das sombras, pretende solucionar o problema da terrível
casualidade do aparecimento do homem na Terra e da imprevisibilidade de suas
ações, e responder ao enigma da abstração do pensamento. O que perde sentido na
desmontagem da metafísica são as respostas que foram dadas a essas dúvidas.
Arendt acredita que quando as explicações tradicionais perdem a validade, os
homens se deparam novamente com os anseios originais que as motivaram.55
É nesse sentido que a temática da história assume aspecto essencial na
obra arendtiana. Partindo do pressuposto de que o pensamento não pode orientar a
ação, pois estão fundamentalmente separados, Arendt entrevê a autonomia de
ambas as esferas e traz à tona o caráter casual da ação humana. Com isso ressalta
a contingência que subjaz na base da história. Se a ação, cuja característica
principal é ser correlata da liberdade, não é orientada pelo pensamento, não é
controlada pelo ator que age, e não é dirigida a qualquer fim específico, a história
também não caminha em nenhuma direção pré-determinada. A equivalência entre
liberdade e ação indica a conexão entre contingência e história. Como é possível
compreender a narrativa arendtiana da história ocidental, que pressupõe o
esquecimento do político, a partir dessa consideração da ação? Seria o caso de
concluir que Arendt traça uma história fatalista da trajetória da humanidade
ocidental, mas acredita na liberdade do homem? Para responder a essas perguntas
pretendemos analisar de que modo sua concepção de ação está conectada a sua
compreensão da história e do histórico.
55 ARENDT, H., A vida do espírito, p. 12.
3 O inesperado sentido da história - algumas questões de filosofia da história
3.1. A concepção arendtiana da história segundo Luc Ferry e Jacques Derrida
Detendo-se à análise da história que Arendt conta sobre o declínio do
político é possível entender que há o desenrolar de um inevitável destino selado
pelo fim da cidade-estado grega. Como se com a decadência dessa experiência
singular onde a condição humana se realiza em sua plenitude não restasse aos
homens senão o definhamento. Desse ponto de vista, a história arendtiana estaria
muito próxima daquelas narrativas que ela mesma criticava. As histórias que
seguiam um rumo como o do desenvolvimento biológico contando a ascensão e
queda dos impérios. Seria possível entender que a autora está narrando a história
do florescimento e do declínio da própria humanidade? E desse modo não estaria
concebendo uma filosofia da história, entrevendo um sentido único para a história
humana?
Luc Ferry estabelece a distinção entre pelo menos dois tipos de filosofia da
história. O primeiro tipo, que pode ser considerado como o exemplo clássico de
filosofia da história é o desenvolvido por Kant e Hegel, que concebe um sentido
subjacente à história – o ardil da natureza ou a astúcia da razão – como o motor
racional que se move às escondidas por trás da ‘melancólica casualidade’ dos
fatos. O segundo modelo de filosofia da história aparece no irracionalismo de
Heidegger e Arendt.
A discussão de Ferry tem como pressuposto o intuito de rechaçar as
interpretações fenomenológicas que entendem que o totalitarismo está
intrinsecamente ligado ao sucesso da filosofia da história hegeliana.1 Nesse
1 Nesse sentido também há o questionamento de Maurice Lagueux sobre a relação entre o
descrédito das filosofias da história e a associação entre as filosofias da história e os totalitarismos.
59
sentido, o filósofo francês traça um questionamento da interpretação arendtiana do
totalitarismo. Segundo Ferry, a acusação fenomenológica contra a filosofia da
história baseia-se principalmente na rejeição da perspectiva hegeliana que, apesar
de voltar-se para a história, concebe a totalidade do processo histórico como
racional, promovendo a idéia de que há uma necessidade causal no
desenvolvimento histórico.
La afirmación ilimitada de este principio según el cual ningún acontecimiento en el mundo ocurriría sin razón y por ende sería inexplicable. La afirmación ilimitada de este principio o, en termos hegelianos, la afirmación de la perfecta racionalidad de lo real (todo es inteligible, al menos en si) fue denunciada en sus consecuencias, sobretodo porque conducía infaliblemente a pensar la historia como um proceso continuo, excluyendo por esencia todo misterio, toda possibilidad de aparición de la novidad radical, puesto que cada acontecimiento, cada ‘etapa’, se relacionaba necessariamente com lo precedente por um nexo causal.2
A condenação da concepção racionalista estende-se às suas implicações
sobre a noção de liberdade do homem. A encarnação da astúcia da razão promove
a visão idealista da história, que a compreende a partir de uma instância exterior –
superior - a ela, acarretando o esvaziamento da autonomia do homem, que perde a
capacidade de agir por si mesmo. A crítica recai também, como descreve Ferry,
sobre a possibilidade de conceber uma realidade completamente manipulável
quando se toma como pressuposto a racionalidade do real. Na verdade, essa
última questão refere-se mais ao marxismo, que ao próprio hegelianismo, já que a
astúcia da razão não deixa tanta margem para o activismo e voluntarismo
vislumbrado por Marx, embora esse autor pretenda combinar a necessidade
histórica, que determina o processo, com o imperativo revolucionário, segundo o
qual, a classe trabalhadora deve ‘fazer’ a história com suas próprias mãos.
A crítica de base fenomenológica à filosofia da história de cunho
racionalista é vislumbrada por Ferry na obra de diferentes autores. O filósofo
Ver: LAGUEUX, M. Actualité de la philosophie de l’histoire: l’ histoire aux mains dês philosophes.
2 FERRY, Luc, Filosofia política II. El sistema de las filosofias de la historia. p.12. “A afirmação ilimitada desse princípio segundo o qual nenhum acontecimento no mundo ocorreria sem razão e por fim seria inexplicável. A afirmação ilimitada desse princípio ou, em termos hegelianos, a afirmação da perfeita racionalidade do real (tudo é inteligível, ao menos em si) foi denunciada em suas conseqüências, sobretudo porque conduzia infalivelmente a pensar a história como um processo contínuo excluindo por essência de todo mistério, toda possibilidade de aparição da novidade radical, posto que cada acontecimento, cada ‘etapa’ se relacionava necessariamente com o precedente pelo nexo causal.” Tradução livre.
60
francês destaca que o fundamental nessa crítica que se encontra tanto em
Heidegger e Arendt, como em Merleau-Ponty e Sartre, é que daí surge a
necessidade de defender uma “nova idéia de história” que venha a contrapor-se à
determinação hegeliana da história. À defesa de Hegel, Ferry quer destacar que
por trás da crítica à filosofia da história subjaz outra matriz filosófica, a saber, a
própria fenomenologia. Desse modo, a nova idéia de história aparece com a idéia
de historicidade a partir da “desconstrução” da metafísica empenhada por
Heidegger. Tal suposição se alicerça na concepção de que seria impossível
alcançar a verdade última ou apontar com clareza as estruturas ontológicas na qual
o homem se insere porque sempre está enredado nelas. Não seria viável contar
com um ponto extratemporal, de onde se poderia entrever o desenvolvimento da
razão. O máximo que se poderia perceber é a circularidade hermenêutica da qual
não se pode sair.
A crítica heideggeriana indica a fragilidade da perspectiva racionalista, e,
incide-se sobre as filosofias da história. Não é o caso de aprofundarmos aqui a
complexidade da argumentação heideggeriana, nem de acompanharmos mais
demoradamente a descrição de Ferry. Para o nosso problema da história basta
compreendermos essa oposição que aparentemente, como quer o filósofo francês,
pode-se sugerir a antinomia entre a perspectiva racionalista da história e a
irracionalista.
Na verdade, Ferry não pretende salvaguardar a filosofia da história
hegeliana. Sua intenção de retirar a culpabilidade dessa filosofia sobre ligações
com o totalitarismo associa-se à tentativa de apreender a questão das filosofias da
história num plano mais geral, referindo-se à problemática fundamental da
filosofia e da história, a saber, à controvérsia a respeito da adequação entre a
ontologia, “como estructura vacía” e o real histórico.3 Nesse sentido, o modelo
hegeliano aparece como a possibilidade de compreender o histórico a partir da
estrutura ontológica, que indica de fora da história – no fim da história - o próprio
desenvolvimento da razão no mundo, de modo que a totalidade do real adéqua-se
ao racional. A contraposição heideggeriana evoca a impossibilidade humana de
conceber qualquer ontologia, pois apenas Deus poderia fazê-lo. Ferry destaca o
uso heideggeriano do termo “onto-teo-logía”, que se refere à relação, também
3 Ibid, p. 20.
61
entrevista por Kant, entre a ontologia e a teologia. “consiste em denunciar la
ontoteología como circular e mostrar cómo, para fundar la ontologia, se vê
obligada a utilizar ya princípios de la ontologia, de modo que la fundamentación
sigue siendo puramente subjetiva y paradójica.”4
A temática de Ferry importa não apenas por suas referências específicas à
Arendt. O contexto discursivo retomado pelo autor suscita questões pertinentes ao
nosso trabalho sobre a teoria arendtiana da história. Entendemos que a conexão
entre pensamento e ação na obra da autora pode ser compreendida à luz dessa
contenda acerca da relação entre ideal e real, ontologia e histórico. A opção
arendtiana de contar a história da vita activa e buscar compreender a autonomia
do político frente ao teórico é o passo através do qual busca re-traçar o tradicional
vínculo entre ontologia e real histórico. Assim, acreditamos que é fundamental
para explicitar a teoria arendtiana da história, mostrar como a autora livra-se da
abordagem tradicional e abre caminho para vislumbrar a liberdade do homem e a
contingência histórica nos meandros da ligação entre teoria e ação. Arendt não
parece ir ao extremo de descolar completamente “real e ideal”, estabelecendo a
irracionalidade da história. Como se fosse possível contentar-se apenas com a
“melancólica casualidade” dos fatos. Sua teoria da história toma forma justamente
quando pretende rever a ligação tradicional entre pensamento e ação – que supõe a
superioridade do pensamento e descarta a realidade dos eventos –, e erigir um
novo laço entre essas instâncias, que permita salvaguardar a autonomia de ambas.
Daí surge a possibilidade de entrever sentido na história sem atá-la à absoluta
racionalidade ou irracionalidade.
Luc Ferry, no entanto, não vê a tomada arendtiana da história desse modo,
como a possibilidade de bom termo entre real e ideal. Segundo ele, Arendt é mais
uma a impingir a crítica fenomenológica sobre a filosofia da história, associando-a
ao terror totalitário. O autor acredita que essa nova versão da história, cunhada por
ela, sustenta-se na concepção da ação como um milagre, donde toda a história
aparece como algo extraordinário diante do qual o sujeito nada tem a fazer a não
ser esperar que se realize o milagre do Ser. Para o filósofo francês, essa concepção
4 Ibid, p. 19. “consiste em denunciar a ontoteleologia como circular e mostrar como, para
fundar, a ontologia, se vê obrigada a utilizar já princípios da ontologia, de modo que a fundamentação segue sendo puramente subjetiva e paradoxal.” Lacourt-Labarthe aplica o mesmo tipo de raciocínio sobre o próprio Heidegger e acusa-o de estabelecer uma onto-tipologia. Ver LACOURT-LABARTHE, P., A imitação dos modernos.
62
arendtiana, tal como a heideggeriana, pretende retirar os vestígios racionalistas da
história para visualizá-la como manifestação da irracionalidade. Numa oposição
clara à perspectiva hegeliana que concebe a astúcia da razão como o fio condutor
por trás da contingência, Arendt, que na visão de Ferry, deve ser alocada ao lado
de Heidegger nessa compreensão da história, desenvolveria sua concepção
irracionalista, baseada na exclusão do princípio de causalidade e na exaltação do
extraordinário. Ferry vê essa abordagem irracionalista como a derrocada da visão
ética do mundo. Entende que, se o sujeito não pode atrelar intenções e ações, e se
a história não tem nenhuma ‘razão’ de ser ou sentido causal, exclui-se a
possibilidade de pensar em sujeitos éticos e responsáveis. A Carta sobre o
humanismo de Heidegger seria o exemplo claro dessa perspectiva.
Ferry não fecha o seu esquema apenas na contraposição entre racionalismo
e irracionalismo, mas pretende definir cinco tipos de filosofia da história a partir
do idealismo alemão. A oposição entre a filosofia da história hegeliana e a
filosofia da história concebida pela nova abordagem histórica da fenomenologia é
a chave de leitura de seu quadro das filosofias da história. Esses dois tipos
radicalmente opostos, segundo a concepção de Ferry, constituem a antinomia
fundamental que está em jogo quando a questão é pensar a articulação entre a
teoria e o real histórico. De um lado, a totalidade racional do real, e, de outro, a
irracionalidade completa. Entre esses dois extremos o autor vislumbra ainda uma
filosofia da história a partir de Fichte, que concebe a história como resultado
práxis e acredita ser possível intervir na realidade a fim de realizar um ideal
exterior à história, qual seja, um ideal teórico. Nesse tipo de filosofia da história,
“la visión moral de la historia a consecuencia de la encarnación de la ontologia
práctica y que apunta, ya hemos visto cómo, a transformar lo real desde fuera en
nombre de um ideal universal de la razón práctica, implica ciertamiente por
esencia certa violência respecto a que lo resiste a la realización del ideal moral.”5
Pela afinidade com a violência, esse seria o tipo de filosofia da história mais
próximo do Terror, mas não do totalitarismo. A vertente que mais sugere
proximidade com o totalitarismo constitui-se como um “misto monstruoso” da
filosofia da história hegeliana e da filosofia da história fichteana. Não é apenas 5 FERRY, Luc, Op Cit, p. 23. “A visão moral da história a conseqüência desse tipo de
encarnação da ontologia pratica e que aponta, já vimos como, a transformar o real desde fora em nome de um ideal universal da razão prática, implica certamente por essência certa violência a respeito de que defende a realização de um ideal moral.”
63
teoria, como em Hegel, onde o sentido da história só pode ser visto no final; nem
simplesmente uma filosofia prática com indicação moral como em Fichte, mas “se
basa en el fantasma de una unidad de la teoria y la práxis.”6 A racionalidade do
real histórico está nas mãos de uns poucos espertos, que dirão qual é o sentido da
história. Essa é a filosofia da história marxista, que Ferry associa ao totalitarismo.
Considerando a distinção entre esses quatro tipos de filosofia da história, o autor
propõe a leitura de uma quinta possibilidade baseando-se na terceira crítica
kantiana. Trata-se da vertente aberta pela epistemologia de matriz neo-kantiana.
Ferry concebe sua última representação da historicidade a partir da combinação
pressuposta em autores como Dilthey e Weber. Tal perspectiva toma o
fundamento racionalista, não como uma lei do real, mas como um método de
análise, articulando, a seu ver, teoria e realidade de modo satisfatório. O real
histórico não tem um sentido intrínseco e rígido, ao contrário, como supõe Weber,
parece mesmo estar mais próximo de uma irracionalidade. No entanto, pode-se
auferir o sentido da história e traçar uma explicação através da racionalidade
metodológica. O sentido é atribuído a posteriori pelo estudioso.7
À luz do quadro oferecido por Ferry, pode-se entender a perspectiva
histórica arendtiana através da oposição à filosofia da história hegeliana,
constituindo-se juntamente com Heidegger como uma filosofia da história
irracionalista? Ao analisar a história traçada pela autora em A condição humana
não apareceu exatamente o contrário, qual seja, que o esquecimento da política
desenrola-se como um fio condutor, mantendo a continuidade da história narrada
por Arendt? Em que sentido seria possível coligar a perspectiva histórica
aredtiana à historicidade tal como Heidegger a concebe?
A leitura de Ferry que determina a irracionalidade da história em Arendt e
Heidegger baseia-se no pressuposto de que não há para o mestre alemão, nem para
sua aluna qualquer responsabilidade humana pela história. Sendo a história um
dado do destino, resta ao homem a possibilidade de aceitá-lo. No entanto, pode-se
notar que na antinomia concebida pelo filósofo francês, apesar da diferença
crucial entre a filosofia da história hegeliana, que apreende a totalidade do real
como racional, e a matriz heideggeriana, que se funda no irracionalismo, em
6 Ibid, p. 25. “se baseia no fantasma da unidade entre teoria e prática”. 7 WEBER, M., A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais. In:____ WEBER,
pp.79-127.
64
ambos os casos, a ação humana, como possibilidade de intervir na história, está
fora de cogitação. Tratar-se-ia, nas duas concepções, de negar a liberdade do
homem, ao invalidar sua capacidade de ação. Em Hegel, apesar da realização da
história ser a própria realização da liberdade do homem no Estado de Direito, não
há indicação de que a liberdade de ação esteja por trás dessa façanha. Ao
contrário, ao longo da história, Hegel observa que os homens agem por instinto e
paixões. É a astúcia da razão quem atua por trás dos interesses e torna possível a
realização da liberdade no fim da história. Em Heidegger, a ação é mais a
atividade do pensamento que a possibilidade de intervir no curso do destino
humano.
Para mostrar a dificuldade de conceber ação como práxis na perspectiva
fenomenológica, Ferry recorre à apresentação da noção arendtiana de ação e de
negação da causalidade. Arendt estaria arregimentando a idéia de novidade radical
para opor à concepção hegeliana da história, em que há uma continuidade causal
entre os diferentes momentos da história, cuja ligação seria possível pela
racionalidade subjacente ao processo histórico. Para Ferry, a defesa arendtiana da
novidade seria, portanto, um subsídio para negar o sentido da história.
Digamos solo por ahora que en H. Arendt, alumna y discípula de Heidegger (el que este hecho se rechace o no en razón de las opciones políticas de Heidegger, no impide que siga siendo dificilmente recusable), esta nueva idea de la historicidad, cristalizada en torno al concepto de ‘acción’, debía pasar por una verdadera destrucción del concepto de causalidad...8
Ao negar a causalidade, Arendt estaria imaginando uma nova concepção
da história baseada na valorização da descontinuidade e do extraordinário. A
história apareceria como uma “cadeia de milagres”, cujo pressuposto seria a
concepção de milagre do Ser. A principal preocupação de Ferry acerca dessa
crítica fenomenológica gira em torno da validade epistemológica e ética. Segundo
ele, desse ponto de vista da irracionalidade da história desestrutura-se não apenas
a causalidade e a concepção de sentido único e racional na história, mas a própria
possibilidade da ciência e da ética.
8 FERRY, L., op cit, p.14. “Digamos por hora que em H. Arendt, aluna e discípula de
Heidegger (que esse fato se rechaça ou não em razão das opções políticas de Heidegger, não permite que seja negado), esta nova idéia de historicidade, cristalizada em toro do conceito de ‘ação’, devia passar por uma verdadeira destruição do conceito de causalidade...” Tradução livre.
65
Uma série de questões está implicada nas considerações de Ferry. Importa
retomar algumas delas para tratar da teoria da história arendtiana. Antes, porém,
na tentativa de introduzir outra perspectiva sobre a problemática da história em
Arendt, segue-se o trajeto percorrido por Jacques Derrida, especialmente, quando
evoca a obra arendtiana como caminho para se pensar a possibilidade de uma
história da mentira, cuja possibilidade refere-se à própria possibilidade da história.
O interesse de Derrida por uma história da mentira, e, sobretudo, pelo
texto arendtiano “Verdade e política”, deve-se, não apenas ao mérito nietzscheano
da “História de um erro”, subtítulo do tópico “Como o mundo verdadeiro acaba se
tornando uma fábula”, que no Crepúsculo dos ídolos apresenta a história do
mundo verdadeiro. Qual seja, a história de como o mundo verdadeiro se tornou
fábula. Nessa narrativa, introduz-se a questão sobre a possibilidade de contar a
história verdadeira da afabulação do mundo. Para Derrida, “Vai se proceder como
se houvesse a possibilidade de uma narrativa verdadeira a respeito da história
dessa afabulação, e de uma afabulação que nada produz senão, precisamente, a
idéia de um mundo verdadeiro – o que ameaça acabar com a pretensa verdade da
narrativa.”9 Por isso, Derrida destaca o tom fabuloso de Nietzsche ao escrever
essa história, apresentando sua questão: seria possível escrever uma história da
mentira sem contar com a história da verdade? A proposição se refere, numa
consideração geral, à própria possibilidade de escrever história. Seria a história,
sempre a história da verdade?
A mentira a qual Derrida se refere não pode ser considerada simplesmente
como um erro diante do correto ou do verdadeiro. O autor alude à tradição
clássica sobre o assunto. Retoma Agostinho e Kant. Do primeiro, apreende que
mentir não é tão somente estar em erro, pois a mentira pressupõe a intenção de
enganar a outrem. De modo que há uma verdade preservada pelo mentiroso para
si mesmo, que está por trás da mentira. A mentira seria, portanto, mais subjetiva
que objetiva. O ponto é o mesmo no qual Kant funda sua razão moral. A mentira é
uma questão de consciência, e só cada um pode saber quais são as suas intenções.
Derrida sublinha com Agostinho, mas não com a segunda crítica kantiana, a
dificuldade de entendermos a mentira a si mesmo como mentira. “por razões
estruturais, será sempre impossível provar, em sentido estrito que alguém mentiu,
9 DERRIDA, J., História da mentira: prolegômenos.
66
mesmo se podendo provar que não disse a verdade.”10 O que conta na mentira é a
intenção de enganar a outrem. No sentido tradicional, o mentiroso guarda a
verdade consigo, enquanto tapeia os demais. Com Kant, Derrida busca ainda
esboçar a história do conceito de mentira na sua consideração clássica. Observa
que, o dever de dizer a verdade passa a ser formal e refere-se à humanidade como
um todo, garantindo-lhe a sociabilidade.
À evocação do sentido clássico da mentira, Derrida vincula a historicidade
da mentira, entendendo que uma história da mentira precisa considerar as
transformações e os usos do conceito. É para tratar dessa questão da historicidade
da mentira que o autor refere-se à obra arendtiana e, mais, especificamente, ao seu
trabalho “Verdade e política”, num sentido oposto à perspectiva formal e ‘a-
histórica’ de Kant. Com Arendt, Derrida destaca a transformação do conceito
clássico de mentira na modernidade, e sublinha não apenas a mutação do conceito
‘mentir’, mas a mudança na prática de mentir. Percebe que a abordagem
arendtiana sobre a mentira volta-se para a análise do mundo político. Sua tese é
que a mentira sempre foi instrumento da política, mas, na modernidade ela deixa
de ser exceção e passa a ser a regra. De modo que a intenção de mentir que se
sustenta no conhecimento da verdade dissolve-se numa mentira que não engana
apenas a outrem, mas ao próprio mentiroso. Na modernidade, o mentir é mais do
que nunca mentir a si mesmo.
Derrida observa como Arendt traça o percurso da mentira até a
modernidade, onde teria alcançado seu limite absoluto e se tornado ‘completa e
definitiva’. Esse limite absoluto da mentira não aparece como “no caso do saber
absoluto como fim da história, mas da história como conversão à mentira
absoluta.”11 Não é difícil reconhecer nessa passagem a interpretação arendtiana da
história. A mesma história que se ‘inicia’ na decadência da pólis e tem sua
culminância no totalitarismo. Interessante perceber com Derrida que o
totalitarismo não aparece como um fim da história em Arendt, tal como na versão
hegeliana da filosofia da história, mesmo que haja certa semelhança no que se
refere à continuidade da história traçada por Arendt quando conta o esquecimento
do político, que aparece como uma continuidade da decadência. Enquanto em
Hegel, surge uma continuidade do saber absoluto promovida pela astúcia da
10 Ibid, p. 9. 11 Ibid, p. 12.
67
razão, a culminância da história em sua versão arendtiana não é o último estágio
de desenvolvimento como se pudesse equivaler a realização da perfeição. Como
destacado por Derrida, essa culminância seria uma etapa limite onde a mentira
alcança sua realização, tornando-se absoluta. Nesse sentido, teria Luc Ferry certa
razão em acreditar na versão irracionalista da história arendtiana? A realização da
mentira absoluta não parece cumprir exatamente essa irracionalidade? Mas se
assim fosse a irracionalidade não seria mais o fim da história que o seu percurso?
A mesma questão que salta aos olhos quando se dedica a explicar a análise
histórica traçada por Arendt em A condição humana novamente se impõe: pode-se
compreender a teoria da história arendtiana como uma filosofia da história?
Ainda que a idéia de “conversão da história à mentira absoluta” possa
sugerir que Derrida não equipara a narrativa arendtiana ao desenvolvimento da
história em Hegel, ao acompanhar a argumentação do autor, percebe-se que, se há
a impressão de um “fim” da história na narrativa arendtiana, só é possível
compreendê-lo a partir da relação com o hegeliano “saber absoluto como fim da
história”. É quando considera a oposição entre a perspectiva arendtiana e
hegeliana, que o autor sublinha a ligação entre esses “dois fins da História, o
conceito negativo deste mal, a mentira absoluta, à positividade do saber absoluto –
seja em modo maior (Hegel), seja em modo menor (Fukuyama)”. Com a oposição
desses dois “fins” da história, o autor sugere que a versão arendtiana da história
mantém-se conectada à expectativa da verdade. “Se a mentira absoluta tem de se
exercer em consciência e no seu conceito, ela corre o risco de continuar sendo a
outra face do saber absoluto.”12 Assim, a história da mentira narrada por Arendt
permanece atrelada à concepção do “dizer a verdade”. Poder-se-ia concluir que,
para Derrida, a história da mentira está então sempre atrelada à história da verdade
porque a mentira pressupõe a noção de consciência da verdade? Ou que, tal como
os antigos supunham, a história não pode abdicar do légein tá eónta – dizer o que
é?13
Podemos ainda observar que a leitura derridiana da narrativa histórica em
Arendt traz à tona, por outro ângulo, a questão dos limites subjacentes à obra da
autora. A concepção segundo a qual o totalitarismo é o limite absoluto da mentira
revela a vinculação e a fronteira entre verdade e mentira. A negação arendtiana do
12 Ibid, p. 13. 13 Id., Os fins do homem, In:___. As margens da filosofia. p. 147.
68
totalitarismo estaria fundada na sustentação da verdade? E nesse caso qual seria o
significado dessa sustentação da verdade na perspectiva da história arendtiana?
A importância que Derrida concede ao trabalho de Arendt sobre a
transformação da concepção de mentira deve-se ao seu próprio intento de
questionar a possibilidade de escrever uma história da mentira. Seu propósito
implica perguntar pela legitimidade de contar a história da mentira. Ao levantar
esse problema com relação à história da mentira, o autor tem em vista a
dificuldade concernente a toda escrita da história. Se vislumbra na obra arendtiana
a possibilidade de conceber uma história da mentira é porque entrevê as
perspectivas de seu conceito de ação, tal como sua ligação com o conceito de
mentira. Na verdade, acredita que, caso seja possível uma história da mentira, é
prudente levar em conta não apenas a concepção arendtiana de mentira e de ação,
mas toda a sua obra.
A rigor, Derrida interessa-se pelo lado mais “desconstrutivista” de Arendt,
onde encontra pontos em comum entre seu trabalho e o da autora. Na teoria
arendtiana, parece reconhecer a tentativa de pensar a atualidade do político,
considerando o que entende como o aspecto “tecnológico-midiático” da
contemporaneidade. O que significa pensar o político em nosso tempo sem os
recursos comumente aceitos, sobretudo, aqueles que se baseiam na existência da
verdade filosófica e em preceitos morais tradicionais. O entusiasmo de Derrida
por Arendt explica-se pela existência de uma afinidade entre os autores. A questão
da mentira surge como o ponto principal desse vínculo. É na sua análise sobre a
mentira que o autor vislumbra a própria possibilidade da história. Não sem razão,
ele destaca a relação entre mentir e agir. Para Arendt, o mentiroso é um homem de
ação. Tanto agir, quanto mentir têm afinidade com a capacidade de imaginação.14
Essa é sua raiz comum que permite ao homem a criação de um mundo novo. A
mentira tal como a ação aparecem, a princípio, com um futuro aberto diante de si,
e, cada uma a seu modo, intervém no curso das coisas. Por isso, ambas têm
relação com a liberdade do homem, que baseada na contingência permite ao
homem “mudar o mundo”.
14 Derrida lembra que tanto Kant, quanto Hegel compreende a imaginação como
“imaginação produtora como experiência do tempo”. Também em Arendt, a mentira e a ação têm sua relação específica com o tempo.
69
O que Derrida não observa é que a mentira, e, especificamente, a mentira
moderna, no sentido que Arendt a concebe, acaba enredando a liberdade que lhe é
original numa teia que fecha o futuro como possibilidade do novo. A imagem
construída pelo totalitarismo no âmbito da mentira absoluta conduz a uma
situação tal que toda novidade deve ser convertida à imagem definida
previamente. Com isso, o sistema totalitário, embora fundado na mentira, que é a
princípio saída da imaginação, inibe a possibilidade de se criar um mundo
diferente desse concebido pela mentira, isto é, bloqueia a própria capacidade da
mentira e da ação, que precisam contar com um futuro aberto para existirem.
Assim, se a ação e a mentira se voltam para o futuro, ao passo que a verdade
refere-se ao passado, a mentira perde sua ligação com a novidade quando se vê
presa à imagem que cria. A questão é que a mentira precisa funcionar como se
fosse verdade, e, uma vez inventada, acaba restringindo o contato com o novo que
não condiz com sua validade. Como adverte o dito popular, para sustentar uma
mentira é preciso continuar mentindo. Arendt observa que, para sustentar uma
imagem, é preciso manipular os fatos novos, e com os totalitarismos, essa
alteração dos fatos alcança patamares inéditos.
O problema deles é que precisavam alterar constantemente as falsificações que ofereciam em substituição à história real; as circunstâncias, ao se modificarem, exigem a substituição de um compêndio de história por outro, a troca de páginas em enciclopédias e obras de consulta, o desaparecimento de certos nomes em favor de outros, ignorados ou pouco conhecidos até então. (...) Só o mentiroso ocasional achará possível aferrar-se a uma falsidade determinada com coerência inabalável; aqueles que ajustam as imagens e estórias às circunstâncias em mudança permanente se verão flutuando sobre o largo horizonte da potencialidade, à deriva, de uma possibilidade para outra, incapazes de sustentar qualquer uma de suas invencionices. Longe de conseguir um sucedâneo adequado para a realidade e a fatualidade, eles transformaram os fatos e ocorrências novamente na potencialidade da qual haviam saído anteriormente.15
Ao perder esse limite da mentira e salientar apenas sua semelhança com a
ação, qual seja, o impulso criativo para mudar o mundo, Derrida acaba exaltando
a potencialidade do mentir, e se desvencilhando da ligação arendtiana com a
verdade factual. Interessa-lhe mais a “conversão da história à mentira absoluta”
que confirmaria a existência da realidade phantasma ou espectral. Sua afinidade
com Arendt acaba exatamente nesse contorno. Derrida quer compreender o
15 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 17-8.
70
espectral, a ficção, a mentira tecnológico-midiática não como uma mentira no
sentido tradicional. Acredita que o exame arendtiano, que destaca a problemática
da imagem na política, revela possibilidades para entender a situação
contemporânea, mas ressalta que a autora não se interessa em aprofundar a
consideração desse aspecto phantasma da “modernidade teletecnológica”, pois
ainda concebe a realização da mentira absoluta como a outra face da verdade. O
que Derrida quer dizer é que Arendt não leva ao extremo a desconstrução, pois
permanece trabalhando com a idéia da vitória da verdade mesmo quando destaca a
transformação da mentira em mentira absoluta, qual seja, naquele tipo de mentira
que se confunde com a verdade pelo fato de que mentir torna-se mais que nunca
mentir a si mesmo. Apesar de conceber a importância do texto arendtiano para a
história da mentira, Derrida acaba por afastar-se de sua concepção “final”, que
julga fundamentalmente “otimista”.
O que parece comprometer o projeto de tal história da mentira, ou pelo menos sua irredutível especificidade, é um otimismo indefectível (...) falar de nosso tempo como idade da mentira absoluta, procurar se dar os meios de analisá-lo com implacável lucidez não é demonstrar otimismo. Otimista, antes, seria o dispositivo conceitual e problemático que aqui se encontra estabelecido ou credenciado. Está em jogo a determinação da mentira política, mas também, antes de tudo, a da verdade em geral, a qual deve sempre triunfar e acabar por se revelar pois, em sua estrutura, como repete freqüentemente Arendt, a verdade é estabilidade assegurada, irreversibilidade; ela sobrevive indefinidamente às mentiras, ficções e imagens.16
O autor estabelece a ligação de Arendt com uma concepção de verdade,
que não é apenas a da veracidade, mas a de verdade como estabilizadora que ele
encontra em Platão e na tradição clássica da verdade como eternidade. Tal
ligação, segundo ele, compromete a possibilidade de pensar a história da mentira e
a história em geral, pois não supõe a possibilidade da “perversão radical”. Ao
contrário, presume que a verdade resistirá. Para Derrida, essa crença na verdade,
não permite compreender o que há de mais específico na nossa época: a
prevalência do simulacro. Seria então o pensamento da autora indicado para essa
nossa tarefa de tentar compreender a história na contemporaneidade?
Nesse texto sobre a “História da Mentira”, o filósofo francês analisa além
de Arendt e outras referências clássicas sobre a mentira, um artigo de Koyré, o
qual também serviu de inspiração para Arendt, embora Derrida não mencione a 16 DERRIDA, J., História da mentira: prolegômenos, p. 34.
71
relação entre os dois.17 É certo que Koyré aparece a Derrida na mesma linha que
Arendt, mostrando a singularidade da mentira moderna e a capacidade fenomenal
de mentir do homem totalitário. Mas Koyré acredita que o totalitarismo não foi
além dos limites da mentira, ao contrário, manteve a hierarquia clássica, apenas
invertendo a validade entre verdade e mentira. Nesse caso, Hitler tem um quê de
Maquiavel, embora subverta qualquer virtú enquanto diz a verdade com a
intenção de enganar. Ocorre que, para Koyré, no totalitarismo não há o segredo
político que só o príncipe conhece. A estrutura totalitária é ela mesma fundada
numa “sociedade de segredos”. Arendt também trata dessa questão em Origens do
totalitarismo, onde caracteriza a estrutura totalitária de forma tal que lhe serve a
imagem de cebola para ilustrar o significado do segredo. Não se trata de uma
hierarquia tradicional com o chefe político no ápice de uma pirâmide. No
totalitarismo, tudo é sigiloso e ninguém conhece a ‘camada’ que lhe sucede. O
núcleo da sua arquitetura não está à vista, e sim, escondido como uma espécie de
miolo protegido pelas camadas envolventes.18
Em Koyré, Derrida encontra, no entanto, uma questão que não localiza em
Arendt. A pergunta pelos limites da mentira. Ainda há “direito de falar em
mentira” em meio a tanta mentira? Segundo Derrida, para Koyré, tal como para
Arendt, que não formula explicitamente a interrogação, ainda vale a distinção
entre verdade e mentira mesmo na situação da mentira absoluta do totalitarismo.
Essa temática parece ser o núcleo da discussão de Derrida. Sua pergunta pela
possibilidade de escrever uma história da mentira coloca em questão a própria
possibilidade de escrever uma história do ponto de vista da verdade. Como contar
a história da mentira sem o recurso ao verdadeiro? Como recorrer ao verdadeiro
num mundo de absoluta mentira? Deve-se observar que o autor não trata apenas
da possibilidade da história no sentido historiográfico. Sua questão a respeito da
história trata da própria possibilidade da história enquanto res gestae, e incide
sobre a vigência da separação história e historiografia.19
17 O artigo de Koyré é Réfléxions sur le mensoge. DERRIDA, J., Ibid., p. 26 18 ARENDT, H., Origens do totalitarismo. Para as discussões sobre a autoridade, ver
também O que é Autoridade, In: Id., Entre o passado e o futuro. 19 DERRIDA, J., op cit., p. 10. “Mas será que algum dia se tornará possível distinguir entre:
uma história (Historie) do conceito de mentira; uma história (Geschichte) da mentira, feita de todos os acontecimentos que se deram com a mentira ou pela mentira; uma história verdadeira que ordena a narrativa (Historie, rerum gestarum) dessas mentiras ou da mentira em geral? Como dissociar ou alternar as três tarefas. Não esqueçamos jamais dessa dificuldade.”
72
À pergunta sobre os limites da mentira, o autor concede outra resposta. A
possibilidade da história parece estar ligada ao reconhecimento da impossibilidade
de distinguir entre verdade e mentira. Partir da perspectiva da verdade já seria um
meio de excluir a mentira. Uma forma de limitar a história. Talvez não faça
sentido pensar o caráter espectral da contemporaneidade através da concepção de
mentira contraposta à de verdade. O espectral não é nem verdade, nem mentira,
mas se abre como uma diferença entre essas duas instâncias.
Como se sabe, em grego phántasma significa também aparição do espectro: fantasma ou alma de outro mundo. O fabuloso e o fantasmático têm um traço em comum: stricto sensu e no sentido clássico desses termos, eles não pertencem nem ao verdadeiro nem ao falso, nem ao veraz nem ao mentiroso. Antes, assemelham-se a uma espécie irredutível do simulacro ou da virtualidade. É certo que não constituem verdades ou enunciados verdadeiros propriamente ditos; tampouco são erros, enganos propositados, falsos testemunho ou perjúrios.20
Assim, sua crítica à Arendt acerca da persistência da verdade incide
também contra a concepção tradicional que identifica razão e história. O problema
é como narrar uma história sem enunciar uma verdade. Derrida parece retomar, ou
insistir na problemática já divisada em “Os fins do homem”, onde destaca a
relação essencial que persegue a metafísica, e mesmo aqueles que tentam se livrar
de suas amarras, entre o fim do homem e o desenvolvimento histórico. “Para
Husserl como para Hegel, a razão é história e não há história senão da razão.”21
Não é o caso de examinar especificamente a perspectiva de Derrida, pois
para isso seria preciso tomar sua obra como um todo. Porém, a referência ao autor
e, especificamente, ao seu texto sobre a “História da Mentira” é muito pertinente
para iluminar determinados nuances da concepção arendtiana da história, e, ainda
para introduzir alguns questionamentos contemporâneos sobre a possibilidade da
história, sobretudo, aqueles indicados na visão “desconstrucionista” que coloca
em xeque a verdade racional.
No jargão usual contrapõe-se o parâmetro moderno da história, donde a
história é perpassada pela racionalidade, seja ou não na sua totalidade como em
Hegel, à perspectiva pós-moderna, na qual a história surge sob o viés
irracionalista como uma mera casualidade. O questionamento da verdade racional
sobrevém não apenas sobre a existência da realidade em si, que deixa de ser um
20 Ibid, p. 7 21 Id.,. Os fins do homem. In: ____. As margens da filosofia, p. 147.
73
fato tornando-se uma sobreposição interpretativa, mas incide contra a capacidade
do historiador de alcançar qualquer verdade do passado, ressaltando sua condição
histórica e subjetiva. Em suma, não poderia haver uma verdade no passado porque
não há essa verdade ou porque ela é inatingível. De certo modo, Derrida interroga-
se nesses dois sentidos quando concebe que a verdade – a distinção entre verdade
e mentira - é um pressuposto limitador, senão inválido, para pensar a história.
Limita a possibilidade de compreensão daquele que escreve a história e restringe
também a própria história que acaba tendo como pressuposto a vitória da verdade.
Por isso, para o autor, ao manter a sombra da verdade, Arendt estaria reduzindo
não apenas sua possibilidade de explicar a história – que não a deixaria entender o
caráter espectral da situação contemporânea -, mas também a própria
possibilidade da história, que teria em vista um fim pressuposto pela vitória da
verdade. Nesse sentido, poderíamos entender que a narrativa arendtiana da
história do ocidente, mesmo que conte a história do declínio do político, o qual se
estende progressivamente até o absurdo completo do totalitarismo, não encontra
seu fim nesse limite. O totalitarismo, que leva ao extremo esse esquecimento,
instaura uma ruptura na continuidade da história que, embora drástica, permite o
ressurgimento da verdade. Se parece necessário pensar mais especificamente a
respeito do que Arendt entende como verdade, e não, simplesmente, concordar
com Derrida, que entende se tratar da concepção antiga da verdade como
permanência, para compreender o sentido da narrativa da história arendtiana, será
importante considerar como advém a mentira absoluta e como ela é ultrapassada.
Mesmo sem aprofundar as considerações de Derrida no quadro mais amplo
de seu trabalho para estabelecer com maior precisão seu aspecto
desconstrucionista, e a sua relação no panorama do que vem a ser entendido como
pós-moderno, vale a pena sublinhar que, apesar do questionamento sobre a
validade da verdade, o autor chama a atenção para a tentativa arendtiana de pensar
uma delimitação do político e novos espaços de responsabilidade na Universidade
e no Judiciário.22 O que parece indicar, a julgar pelo entusiasmo do autor, que ele
também se interessa em entrever no mínimo certos bastiões de responsabilidade
na situação contemporânea. Na verdade, Derrida também parece preocupado com
a ameaça sugerida por Koyré e Arendt sobre o caráter totalitário da mentira, qual
22 Sobre esse ponto ver HABERMAS, J., O discurso filosófico da modernidade.
74
seja, o perigo implícito numa completa indistinção entre verdade e mentira.
Visando resolver essa contradição, para qual a saída de Koyré e Arendt ainda seria
a opção pela validade da verdade, Derrida indica a legitimidade de uma
veracidade performativa e sugere a análise do performativo e testemunhal.
A responsabilidade ética, jurídica ou política, caso haja, consiste em decidir sobre a orientação estratégica que deve ser dada a essa problemática interpretativa e ativa, em todo caso performativa, para a qual a verdade, da mesma forma que a realidade, não é um objeto dado antecipadamente, sobre o qual se trataria apenas de refletir adequadamente. É uma problemática do testemunho, em oposição à prova, que me parece aqui necessária...23
Derrida refere-se diversas vezes ao longo de seu texto a essa possibilidade
de entender a mentira pela análise do aspecto performativo, como se pudesse
funcionar como uma alternativa à separação clássica entre verdade e mentira. O
autor explica que não pode tratar mais especificamente o tema do performativo,
mas sugere sua proximidade do testemunhal. Nota-se que, para Derrida, a mentira
“necessita de outro nome, de outra lógica, de outras palavras, requer que sejam
levadas em conta, a um só tempo, certa tecnoperformatividade da mídia e uma
lógica do phántasma (isto é, do espectral) ou uma sintomatologia do inconsciente
para as quais a obra de Hannah Arendt acena, mas ela nunca desenvolve como tal
ao que me parece.”24 Tal fenômeno pode ser compreendido na ligação do
performativo e do sintomal. A análise do testemunho e toda sua dimensão
midiática contemporânea ganha destaque. Nesse sentido, o autor examina o
discurso de Chirac sobre a ‘confissão’ de culpabilidade da França no totalitarismo.
Discurso político transmitido mundialmente. A própria política ganha outro
sentido e o caráter testemunhal – o testemunho diante de um público global –
adquire importância crucial.
Se insistimos nas observações de Derrida é porque apontam para
discussões significantes tanto para pensarmos a teoria da história arendtina,
quanto para buscarmos compreender a situação contemporânea da história. O
questionamento sobre a possibilidade da história é um ponto fundamental nessa
nossa época em que se quer acreditar no fim da história – e da historiografia
enquanto narrativa da verdade. Não apenas os ditos pós-modernos falam da perda
de horizonte que indica a realização da história, mas mesmo os que outrora 23 DERRIDA, J., História da mentira, p. 29. 24 Ibid, 25.
75
poderiam ser considerados de ‘esquerda’ demonstram-se desiludidos e já não têm
muitas expectativas sobre alternativas históricas. Afora um grande atentado ou
outro, para falar desde o 11 de Setembro de 2001 nos EUA, temos a arrastada
guerra no Iraque, o velho conflito árabe-israelense, um Chaves desacreditado na
América latina. Poucos eventos políticos de relevância extraordinária. Nada que
realmente possa valer como uma alternativa à democracia capitalista. É claro, há
muita reivindicação a ser feita dentro da própria esfera da democracia e do Estado
de Direito, mas nada que perturbe sua hegemonia. Trata-se de uma plena
realização como pensava Hegel? Obviamente não temos um mundo perfeito.
Longe disso. A desigualdade social entre os países ricos e pobres é abissal e
cresce também nas periferias dos grandes. Seria possível concordar que a
novidade política enquanto evento extraordinário tornou-se impossível? O próprio
extraordinário transfigurou-se em cotidiano? Qual seria o sentido de pensar a
história nesses termos? Permanece algum vínculo entre história e política?
Apesar de repelir a suposta relação de Arendt com a verdade, Derrida
sugere a importância da obra da autora quando se trata de compreender a
possibilidade da história. Nesse sentido, sublinha sua concepção acerca da
capacidade de mentir, que tem o mesmo fundamento da competência humana para
agir – a imaginação e a liberdade. “não existiria história em geral nem história em
particular sem ao menos a possibilidade do mentir, isto é, sem a possibilidade da
ação.”25
A ação, como também notava Ferry, ao incidir suas críticas à filosofia da
história traçada por Arendt, é o núcleo central de uma nova concepção de
historicidade. Tanto Derrida, quanto Ferry, apesar das diferenças de posição
quanto à obra arendtiana, concebem a ação como ponto imprescindível na teoria
da história desenvolvida pela autora. Interessante perceber que os dois autores,
por vias completamente distintas, concluem que Arendt engendra uma filosofia da
história. Ainda que esse termo possa indicar perspectivas tão diferentes quanto a
de Marx e a de Heidegger como defende Ferry ao explorar justamente a variedade
de experiências que se assentam sobre esse conceito.26
25 Ibid, p. 33. 26 Derrida não usa exatamente o termo “filosofia da história”, mas fala do “fim” concebido
por Arendt na realização absoluta da mentira.
76
3.2. A imprevisibilidade da ação e a indeterminação da história
A pergunta por uma filosofia da história na obra de Arendt só é válida se
considerar as diversas possibilidades do significado do conceito. De modo geral,
pode-se compreender uma filosofia da história como uma teoria que apreende o
sentido oculto da história. Tradicionalmente, o termo remonta às filosofias de
Kant e Hegel, onde se detecta uma força maior que atua por trás dos homens e
guia a história para um telos determinado. Kant refere-se ao ‘ardil da natureza’, e
Hegel fala da ‘astúcia da razão’. A partir daí, passa-se a conceituar como filosofia
da história as teorias da história que procuram entrever o sentido para o qual a
história se dirige. No entanto, não é tão simples contextualizar e determinar
quando surge e o que é a filosofia da história. Apesar do significado que se pode
ler em seu próprio nome, o qual indica que filosofia da história é uma história
compreendida em termos filosóficos; e da remissão comum a Kant e Hegel na
modernidade, não há consenso sobre o que seja filosofia da história. A diversidade
de teorias da história que podem ser entendidas como ‘filosofias da história’ leva
também a crer que não se pode falar em um único tipo de filosofia da história. O
fato é que a idéia de que a história não é um amontoado de acontecimentos casuais
e desconexos entre si é pelo menos tão antiga quanto à crença no destino. Por isso,
não sem certa razão, Karl Löwith defende a existência de uma aproximação entre
a interpretação teológica da história e as filosofias da história. Em ambos os casos,
pode-se encontrar um princípio comum, subjacente à concepção cristã do mundo,
a partir do qual se torna possível conceber uma história com início e fim. Tal
princípio é a adequação do contingente à descoberta de um sentido último da
história.27
No entanto, mesmo quando se confiava que os eventos desse mundo
tinham um sentido para além das ações humanas, ninguém poderia imaginar
conhecer qual seria esse sentido, que estava resguardado com os deuses. Ainda
que Löwith observe a substituição da transcendência pela imanência entre os
cristãos e os modernos, o que parece diferenciar as teleologias da história das
27 LÖWITH, K., O sentido da história.
77
filosofias da história é que apenas na modernidade, quando a história se torna ela
mesma um sujeito autônomo com um sentido em si, é que o homem é capaz de
‘conhecer’ e até ‘determinar’ o rumo da história. A moderna versão do sentido da
história guarda o lugar fundamental da auto-consciência que parece não existir nas
teleologias tradicionais – embora todo aquele que narre o sentido da história tenha
que se colocar num lugar concebido idealmente como “fora da história”. Na
moderna concepção hegeliana, esse lugar não é mais ‘o outro mundo’, no sentido
divino, mas antes, o lugar da plena realização da consciência. O “fora da história”
surge como um “fim da história” que não é o apocalipse. Ao contrário, é a
efetivação do saber absoluto.
Quando Luc Ferry encontra uma filosofia da história na teoria arendtiana,
destaca que o sentido da história revela-se no milagre do ser. A irracionalidade da
história aparece aos homens que não podem controlar suas ações e destinos, pois
não sabem ao certo o que fazem. O milagre do ser deve ser aceito e agraciado.
Arendt elaboraria uma teoria da história muito próxima da concepção
fenomenológica de Heidegger. Que orienta ao cuidado e à espera. De fato, há uma
semelhança entre a perspectiva histórica de Arendt e Heidegger. Onde ele vê o
destino como o esquecimento do ser, ela sublinha o esquecimento do político.
Ambos estão contando a história de um esquecimento fundamental desde os
gregos até a modernidade. A crítica à técnica e o receio da tecnologia também
aparecem nas duas obras. Arendt e Heidegger remontam aos gregos para revelar a
possibilidade de autenticidade do Ser e do político. Mas nesse retorno aparecem,
como já mencionamos, os desencontros dos autores. Heidegger recorre aos pré-
socráticos. Arendt, ao homérico, aos historiadores (Heródoto e Tucídides), e à
experiência política na pólis.28 Note-se que Heidegger procura re-encontrar o
pensamento antes da metafísica, enquanto Arendt busca a experiência histórico-
política concreta, seja nas discussões na polis, seja na leitura de historiadores e
poetas.
A leitura de Derrida, por outro lado, já não trabalha a ligação entre Arendt
e Heidegger. Em vez disso, defende que a teoria da história arendtiana revela no
28 A influência de Heidegger sobre Arendt é inegável, o que não significa dizer que a autora
o assuma integralmente. Apesar da inspiração constante de seus textos e sua presença, Arendt tece severas críticas ao mestre. O assunto inspirou muitos trabalhos acadêmicos, muitos dispostos a mostrar a divergência entre os autores, como Taminiax, que defende que a obra arendtiana é um diálogo e uma tomada de posição contra Heidegger. Retomaremos essa temática no capítulo 5.
78
seu fim um vínculo com a filosofia da história hegeliana. A realização da mentira
absoluta na história é entendida num contraponto com a efetivação do saber
absoluto. A mentira absoluta não seria o fim da história de Arendt porque seu
‘otimismo’, como supõe o autor, ainda conta com a revanche da realidade. O
“fim” da história é sempre a vitória da verdade.
As leituras de Ferry e Derrida consideram ângulos e questões distintas
sobre a obra de Arendt, mas em ambos os casos, embora por razões diferentes,
surge o veredicto de que sua teoria da história é uma filosofia da história. O que
implica dizer, pelo menos de modo geral, que a história, para Arendt, tem um
sentido pré-determinado. Seja o destino ou milagre do Ser, como define Ferry.
Seja a verdade, como sugere Derrida. Se a questão a respeito da filosofia da
história nos aparece primeiramente na análise do percurso histórico traçado por
Arendt em A condição humana, considerando que o esquecimento do político
revela-se irreversível desde o fim da cidade-estado grega, as reflexões levantadas
por Ferry e Derrida sobre a pertinência de uma filosofia da história em Arendt
realçam o problema e abrem outras perspectivas sobre a temática da história na
obra da autora.
Pode-se dizer que a pergunta pela filosofia da história incita a reflexão
sobre a teoria da história arendtiana, e explicita a relevância de considerar a
relação entre política e história. O que está em jogo na temática da filosofia da
história é como a ação se torna história, ou como a ‘melancólica casualidade’ dos
fatos adquire sentido e pode ser entendida como história. A consideração da
filosofia da história arendtiana empreendida por Ferry aparece nesse horizonte de
discussão sobre a relação entre história e política. De sua tentativa para
compreender as filosofias da história emerge o esforço de conceber algum
equilíbrio entre história e política, ou, ao menos, alguma teoria da história que não
determine ou aprisione a política numa lógica totalitária ou numa teoria sem ética.
Derrida também está imbuído dessa preocupação. A pergunta pela possibilidade
da história é uma chamada à reflexão sobre a escrita da história e a história
entendida como prática. A ênfase na relação entre o histórico e o político leva
Ferry a entender que o núcleo da teoria arendtiana da história é o seu conceito de
ação. Tal como Derrida destaca sua concepção de mentira e ação como
fundamentais na possibilidade da história.
79
A noção arendtiana de ação, como apresentada, na arquitetura da vita
activa, baseia-se na correspondência com a ação política na pólis. A ação se
realiza num espaço de pluralidade, onde os homens estão entre iguais e podem
revelar-se uns aos outros, e dar início a novos começos. Agir é, para Arendt, a
capacidade sui generis do homem; e não é o mesmo que um simples laborar ou
fazer uma obra. Não é qualquer exercício ou atividade. Refere-se ao aparecimento
dos homens no mundo, aos eventos e aos feitos. Por isso, se liga à história tal
como o trabalho está conectado ao surgimento de obras.
É em virtude desta teia pré-existente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas também é graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis.29
A ação deixa atrás de si história. Para compreender essa relação entre ação
e história é fundamental entender que a ação arendtiana nunca é simplesmente
mera realização de uma intenção. Arendt acredita que a ação é sempre um
acontecimento inesperado. Um evento que irrompe como um milagre. Note-se que
a relação com a idéia de milagre, que leva Ferry a concluir sobre a irracionalidade
da história, não significa que os homens não agem e apenas esperam as coisas
acontecerem como se “caíssem do céu”. A referência ao conceito de milagre,
Arendt quer fazê-la sem carregar seu sentido religioso. Trata-se de indicar que,
apesar dos homens agirem, terem intenções, metas, paixões, virtudes e erros,
nunca se pode determinar com certeza o que se está fazendo porque não é possível
controlar absolutamente as ações. Elas têm conseqüências, rumos, efeitos
colaterais que são imprevisíveis. A própria teia de relações pré-existente, sobre a
qual a ação incide, pode alterar completamente o rumo de uma ação. O que
Arendt quer defender com sua teoria da ação, que nos parece realmente uma teoria
da história, é que a história não está determinada por nenhum sentido prévio e
nem mesmo pode ser controlada pelo homem. Na concepção arendtiana, esse é o
preço da liberdade. Garantir a possibilidade da contingência é o mesmo que
assegurar a possibilidade da liberdade. O homem só é livre porque não há nada
determinado em relação aos feitos e eventos. Por destacar a presença de um 29 ARENDT, H., A condição humana, p. 197. Também lemos na mesma obra que “A ação,
na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história.” p.17
80
quinhão de casualidade em toda ação humana, e, com isso, afirmar a própria
liberdade da ação, a autora aufere que todo acontecimento guarda afinidade com
um milagre. O evento não está dado por nenhuma ordem causal e não é
determinado por nenhuma necessidade prévia ou sentido da história, por isso,
quando vem ao mundo, é sempre como uma imprevisibilidade. É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. (...) O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável.30
A princípio, pode fazer sentido a acusação de Ferry que toma a perspectiva
arendtiana como uma filosofia da história irracionalista. Se observarmos a teoria
política tradicional não encontramos paralelo para a noção de ação política da
autora. Ação sempre foi entendida como estratégia, a partir da consideração de
meios e fins.31 Quando Arendt retira essa base tática da ação fica difícil explicar
sua origem e sua função. “A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem
sob a direção do intelecto, nem debaixo dos ditames da vontade (...) ela brota de
algo inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de governo
por Montesquieu, chamarei de um princípio.”32 Os princípios que inspiram a ação
não se constituem como motivos. Se assim fosse já não seriam princípios, pois,
segundo Arendt, eles estão ligados às aspirações universais e não a qualquer
determinação específica de um indivíduo ou de um grupo. Os princípios só se
30 Ibid, p. 190-1. Para compreender essa valorização da contingência na obra arendtiana
parece importante destacar a especificidade do que a autora chama de eventos e feitos humanos, que vêm ao mundo a partir das ações humanas. Se há uma ligação entre imprevisibilidade, novidade, ação e acontecimento isso se deve à noção subjacente de extraordinariedade. Seria a história apenas a irrupção dos raros momentos grandiosos? Exploraremos essa temática no próximo capítulo através da comparação entre a novidade totalitária e a novidade revolucionária.
31 Pode-se entrever uma semelhança entre a concepção arendtiana e hedeggeriana de ação quando se observa a ênfase de ambos sobre a necessidade de pensar a ação sem o critério funcional. Não obstante, deve-se considerar que Arendt trata da ação política, cuja especificidade é pertencer ao âmbito dos assuntos mundanos, enquanto Heidegger refere-se à ação como atividade do pensamento. Cf. HEIDEGGER, M., Carta ao humanismo. pp. 23-5 “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a Essência do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade.” (...) “O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa.”
32 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 198.
81
revelam na ação e não antes. “eles se manifestam no mundo enquanto dura a ação
e não mais”.33
A diferença entre a leitura arendtiana e a concepção tradicional é que a
ação perde o caráter funcional; tal como o político, não é meramente a de
estratégia e poder. A autora enfatiza o ângulo da realização do político. O
momento de discussão entre pares e os feitos daí iniciados. Entende o político
como esse compartilhamento do mundo. Tudo o que possibilita estruturalmente
sua sustentação está fora de seu âmbito - não pode ser caracterizado como
político. Por isso, na pólis, Arendt observa que era necessário saltar um abismo
entre a casa e a pólis todos os dias. As esferas da necessidade e da política são
completamente distintas entre si. O mesmo estranhamento que se pode ter diante
da separação entre público e privado também costuma acometer quem tenta
compreender a ação arendtiana. A ação não é o mesmo que a intenção, nem o
mesmo que o seu fim. Não há produtos provenientes da ação. Diferentemente da
fabricação, no caso da ação não é possível entender o processo pela obra final.
Esse ponto é de extrema relevância para o entendimento da história arendtiana. Se
há uma ligação entre ação e história, e se a ação deixa atrás de si uma história, isso
não significa que a história seja o fim da ação ou seu produto, como se a ação
fosse apenas um meio; tal como acontece no processo de fabricação.
A ação só aparece em meio aos que agem em conjunto, isto é, aos pares
que podem juntos se revelar uns aos outros. É como uma espécie de
performance.34 Não sem razão Arendt compara a política ao teatro e às artes de
realização como a dança. Pois nessas formas de arte não há um produto final que
poderá perdurar como obra. O que importa é o que se passa durante o espetáculo.
A dificuldade de Ferry de compreender a ação e suas implicações para a teoria da
história arendtiana é o que lhe permite apontar sua filosofia da história como
irracionalista. Uma ação que não vale por suas intenções ou fins, e que nem
sequer pode ser controlada pelos homens pode fazer crer que só tem por trás de si
qualquer coisa de irracional.
33 Ibid, p. 199. 34 Em O que é liberdade, o caráter performático aparece com o nome de virtuosismo.
Recorrendo a noção maquiavélica da virtú, Arendt enfatiza o significado do virtuosidade. Virtuoso é aquele que sabe aproveitar as oportunidades concedidas pela Fortuna. “é uma excelência que atribuímos às artes de realização (à diferença das artes criativas de fabricação), onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela se torna independente.” Ibid, p.199.
82
Para compreender como a ação concebida por Arendt não é nem um mero
aparato instrumental, nem simplesmente qualquer atitude irracional, evocaremos a
crítica às filosofias da história rematada pela autora. De fato, sua censura tem
origem na condenação da teoria racionalista que pretende explicar a realidade,
orientar a prática e controlar a história. Pode-se observar que essa objeção baseia-
se no mesmo argumento através do qual a autora sustenta sua reprovação da
sujeição da ação pelo pensamento. O subjugo dos assuntos humanos em voga
desde a Antigüidade, manifesta-se exemplarmente na teoria platônica dos dois
mundos, e sustenta-se na concepção de que o mundo humano, onde os homens
convivem entre si, é o mundo das sombras – das aparências. Nesse mundo, no
qual tudo é transitório e imprevisível não é possível encontrar a verdade. Apenas
no mundo das idéias e essências, o filósofo tem a oportunidade de contemplar o
verdadeiro sentido. Para Arendt, a moderna teoria da história, que encontramos
em Hegel e Marx, embora tenha tentado inverter a situação da ação, valorizando a
história e a práxis, acaba também interditando a ação e vislumbrando um enlace
entre teoria e ação. A autora observa que Hegel imaginou retomar a história, e
entrever um sentido implícito nas ações humanas aparentemente casuais. O
problema é que só pôde fazer isso no “fim da história”, partindo do ponto de vista
contemplativo do filósofo. Desse modo, a ação parece determinada pelo olhar
teórico e por um sentido imanente à própria história, que no caso hegeliano é
concedido pela ‘astúcia da razão’. Na concepção marxista, o sentido da história
não aparece só no fim quando pode ser entrevisto pelo olhar teórico retrospectivo.
O sentido é determinado de antemão e se torna ele mesmo um objetivo da história
e um rumo inevitável que os homens precisam reconhecer e fazer valer. A autora
entende que as conseqüências dessa moderna concepção da história são mais
graves em Marx que em Hegel, porque para esse ainda se tratava de uma
contemplação a posteriori. O maior problema que aparece com a leitura marxista
é a possibilidade de predição do que deve ser feito.35
A partir da crítica ao modelo de ação previsível e controlável e da própria
concepção de submissão dos assuntos humanos podemos compreender melhor a
noção de ação ‘milagrosa’ na obra arendtiana. Trata-se de considerar a ação como
equivalente da liberdade. Para Arendt, o homem só pode ser livre, e, portanto, só
35 Arendt enfatiza a diferença entre Hegel e Marx
83
pode agir quando a ação não está decidida de antemão. Nesse ponto, observamos
que a possibilidade da ação e do exercício da liberdade dos homens está
intrinsecamente ligada à concepção da história. É preciso visualizar uma história
que se desenrola como casualidade, na mais pura contingência, para encontrar a
possibilidade da liberdade humana. Por isso, a busca pela autonomia do político,
ou seja, a tentativa de conceber a ação sem as amarras da teoria é a mesma que
movimenta a teoria da história arendtiana. Se Ferry percebe, com razão, que a
concepção arendtiana de ação está associada inevitavelmente a uma nova teoria da
história, peca por concluir que essa teoria seria a validação de um completo
irracionalismo. A questão que precisamos responder para compreendermos a
teoria da história arendtiana é sobre como é possível, a partir da sua concepção de
ação como liberdade, entrever algum sentido na história. Em última instância,
temos que enfrentar a pergunta pela possibilidade de sentido da existência humana
e sua irrupção milagrosa.
Para inverter essa impressão de irracionalismo que a obra arendtiana pode
suscitar, avançaremos um pouco sobre suas suposições acerca da
responsabilidade. Destacaremos o seguinte ponto: não é porque não podem
controlar completamente suas ações ou determinar a história, que os homens
podem fazer qualquer coisa como se nada fizesse diferença.
A teoria da responsabilidade arendtiana não é exatamente uma ética
propositiva, nem muito menos qualquer pretensão de desenvolvimento de uma
doutrina moral. Como bem observado por Derrida, há um sentido extra-moral que
alude à Nietzsche nas considerações arendtianas. Pelas próprias críticas ao
racionalismo exacerbado, pode-se imaginar que não é simples destrinchar a
concepção ética de Arendt. O problema é se situar dentre aqueles que pretendem
uma desmontagem da metafísica e de seus fundamentos últimos, e, ainda assim,
tentar validar a distinção entre certo e errado. Tendo em vista essa dificuldade,
devemos considerar que, quando fala de responsabilidade e da capacidade humana
de diferenciar entre o certo e o errado, a autora não se refere à ética no sentido
forte do termo.
André Duarte sugere que a questão do totalitarismo e a ruptura que
interrompe a tradição trazem à tona o problema do discernimento acerca do certo
e do errado; e acredita que é a partir daí que a autora desenvolve uma ética
84
negativa baseada na concepção política do juízo estético kantiano.36De fato, é ao
vislumbrar a dificuldade de pensamento e julgamento de tantos bons alemães que
compactuaram com Hitler que a autora desenvolve suas teorias sobre o juízo e a
responsabilidade. O que a incomoda é justamente a ‘cegueira’ da maioria da
população que não conseguiu perceber o equívoco nazista. Sobretudo, a falta de
discernimento daqueles de quem menos se esperaria. Em suas palavras
visualizamos essa angústia,
Em suma, o que nos perturbou não foi o comportamento de nossos inimigos, mas o de nossos amigos que não tinham feito nada para produzir essa situação. Eles não eram responsáveis pelos nazistas, estavam apenas impressionados com o sucesso nazista e incapacitados de opor o seu próprio julgamento ao verdicto da História, assim como eles o interpretavam. Sem levar em consideração o colapso quase universal, não da responsabilidade pessoal, mas do julgamento pessoal nos primeiros estágios do regime nazista, é impossível compreender o que realmente aconteceu.37
Na tentativa de compreender o equívoco de juízo que promoveu a
ascensão do totalitarismo, evidencia-se o próprio juízo arendtiano segundo o qual
o totalitarismo é um erro. O totalitarismo é uma temática tão fundamental no
pensamento arendtiano, que ela divide a história a partir de seu aparecimento,
vislumbrando a ruptura da tradição nesse evento. A autora tem sua vida pessoal e
profissional ligada ao evento totalitário, e tentou em várias abordagens, como
tantos outros de sua geração, compreender esse que julgava ser o acontecimento
central do século XX. A questão está presente mesmo quando não é tratada
especificamente como pudemos observar em A condição humana. Não há uma
abordagem do assunto, mas a decadência do político e a ascensão do labor
referem-se claramente ao triunfo totalitário, embora num plano mais geral da
modernidade como um todo. No entanto, a autora evita fazer uma condenação
moral do esquema totalitário, como se o regime fosse uma deturpação radical dos
valores morais celebrados pelo Ocidente.
Deve-se observar que não é por ser contrário à moral tradicional que o
totalitarismo surge como um erro. Se Arendt cobra o julgamento dos alemães,
indicando a possibilidade de distinção entre o certo do errado que, no caso do
totalitarismo, implica vê-lo como um equívoco, o erro ou o mal totalitário ao qual
36 DUARTE, A., “A dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt”, In:
ARENDT, H., Lições de filosofia política em Kant, p. 139. 37 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, pp.86-7.
85
ela se refere não é o inverso do bem, entendido como realização dos bons
costumes. A autora sugere que o totalitarismo rompeu com “nossos padrões de
julgamento”. Por isso, não podemos compreendê-lo a partir da moral tradicional,
simplesmente concebendo-o como sua inversão. Na verdade, ao contrário de
associar a moral ao juízo, acredita que, justamente por terem seguido os
parâmetros da moral tradicional, tantos “bons” alemães compactuaram com o
regime de Hitler e não conseguiram notar o equívoco que se estabelecia. Apenas
continuaram seguindo à lógica automática da obediência e substituíram o “Não
Matarás” pelo “Matarás” em vez de refletirem sobre a novidade da situação.38
Quando evoca o sentido moral, Arendt alude à moral religiosa e à moral
kantiana da segunda crítica. Nesse sentido, muito lhe marca a referência de
Eichmann a esse último texto.39 O problema para a autora é que a moral é
imperativa e formal, referindo-se ao indivíduo em sua intimidade. Apenas cada
um pode saber realmente quais são as suas intenções. O que ela observa é que a
moral, enquanto “dever”, está ligada menos à reflexão que ao seu caráter
axiomático. “As proposições morais têm sido sempre consideradas evidentes por
si mesmas, e descobriu-se muito cedo que não podem ser provadas, que são
axiomáticas.”40Para ela, a Alemanha hitlerista sofreu as conseqüências desse
apelo, pois quando o Estado instaurou a lei da eliminação isso não constituiu nada
vexatório ou produziu qualquer crise generalizada de consciência. A maioria
simplesmente aceitou a ordem do Estado e seguiu obedecendo.
O totalitarismo confirma para Arendt a idéia de que a moral não passa de
um conjunto de regras e valores permutáveis, quando faz ruir uma estrutura moral
aparentemente segura. Garante também a suposição de que quanto mais arraigado
um conjunto de regras em determinada sociedade ou indivíduo, mais fácil é a
adaptação a novas leis. As pessoas acostumadas à sujeição das normas acabam
não se questionando quando há substituição de um regimento por outro.
38 Ibid, p. 105. Ver SOUKI, N., Hannah Arendt e a banalidade do mal. 39 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém, p. 153. 40 Id., Responsabilidade e julgamento, p. 141. Embora Arendt acredite que “Por trás do
‘Deves’, ‘Não deves’, está um ‘se não’, a ameaça de uma sanção imposta por um Deus vingador, pelo consentimento da comunidade ou pela consciência, que é a ameaça de autopunição que comumente chamamos de arrependimento.” Aqueles que de fato se sentem ameaçados pela consciência e temem um desacordo consigo mesmos não estariam agindo por obrigação. Esses são os que “vivem consigo próprios”, o que no dizer arendtiano significa que esses são os que pensam e refletem. Se a moral tem um aspecto que pode levar à reflexão, ela atua mais pela obediência e coerção. Esse ponto revela todo o receio de Arendt pela moral no sentido obrigatório que apresentam as religiões e a segunda crítica kantiana.
86
O argumento arendtiano, portanto, baseia-se não no pressuposto de que o
totalitarismo simplesmente inverteu a moral e transformou o bem em mal. Sua
crítica incide sobre a própria lógica que imputa vigência à moral tradicional. O
problema é que essa lógica é regida pelo automatismo. Trata-se da aplicação de
leis. Em outras palavras, está em jogo aí todo o questionamento sobre o caráter
formal da moral kantiana. Em oposição ao automatismo e à aplicabilidade, Arendt
demanda a competência reflexiva do juízo estético. Para tal, recorre à outra face
kantiana que surge na terceira crítica. Não para tratar do prazer estético ou do
caráter do belo, mas para considerar a dimensão da ação, principalmente, o seu
aspecto de novidade. Devemos sublinhar a proposição arendtiana segundo a qual a
moral tradicional e sua lógica formal não funcionam quando uma situação
absolutamente nova interrompe seu funcionamento. Para entender a novidade
totalitária não servem nem a antiga forma de pensamento, nem os velhos
parâmetros. É nesse sentido que a autora acredita que aqueles que não
comungaram com o regime não foram os que mais respeitaram a moral
tradicional, mas sim os que não se guiavam por ela. Segundo Arendt, aqueles que
não aceitaram participar do regime foram os que disseram a si mesmos “Isso eu
não posso” e não os que consideravam “Isso eu não devo”. Os que rejeitaram a
lógica totalitária supunham que a ação não é orientada por nenhuma instância
deontológica.
Os poucos que foram capazes disso [diferenciar entre o certo e o errado] não se guiaram pelos velhos valores ou por crenças religiosas. Os poucos ainda capazes de distinguir entre o certo e o errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, e com toda liberdade (...) Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito.41
Para nosso contexto, importa destacar que a exigência do juízo e a
atribuição da responsabilidade àqueles que participaram, colaboraram ou
compactuaram com o nazismo, evidencia a imputabilidade do homem sobre suas
ações. Um dos pontos fortes do pensamento arendtiano sobre o holocausto é
distinguir-se pela acusação de responsabilidade. A autora não pretende concordar
que os líderes fizeram todo o trabalho sujo e que a população foi enganada e 41 Ibid, p. 318. Adiante, retomaremos esse tema da relação entre o caráter reflexivo do juízo
estético e a compreensão da novidade que advém abruptamente rompendo com velhos esquemas de pensamento, pois está em jogo nessa questão a própria validade da teoria de funcionar como pré-compreensão da realidade, que sempre será entrecortada pelo extraordiário e imprevisível.
87
guiada como rebanho, aliás, por isso também as suas formulações a respeito da
responsabilidade sob o totalitarismo nem sempre foram bem-vindas. Em vez de
nomear alguns culpados e salvar a nação alemã como um todo, insiste em
responsabilizar todos os que de alguma forma participaram do regime. Arendt
coloca o dedo na ferida das futuras gerações, assim como o faz com o seu povo
judeu, revelando a participação nefasta dos próprios conselhos judaicos na
organização da matança.42 Quando evoca a responsabilidade sob o totalitarismo
pressupõe que, apesar de todas as condições sombrias, havia a possibilidade de
distinguir entre o certo e o errado. Havia a escolha de participar do regime.
Na querela entre Jaspers e Arendt sobre a “questão germânica”, a qual se
refere ao problema da responsabilidade dos cidadãos comuns pelos crimes de
Estado na época do Terceiro Reich e de seu legado de erros às gerações futuras,
pode-se notar a ênfase que a autora concede à responsabilidade pessoal. Segundo
Andrew Shapp, a discordância entre os autores se fundamenta no desacordo sobre
o problema da culpa em política.
A Jasperian account of collective responsability based on sympathetic identification is closely associeted with restorative conception of poltical reconciliation in wich private and public moralites tend to be conflated. The politics of authentic self-expression that such a conflation leads to threatens an abandonment of political responsibility by guilty subjects. By contrast, Arendt’s political ethic of worldliness suggests an agonistic conception of reconciliation, which would enable citizens to assume political responsibility while resisting their identification as guilty subjects.43
Apesar de ambos afirmarem a responsabilidade dos cidadãos sob o jugo do
estado totalitário, entendendo que mesmo as pessoas comuns que não fizeram
parte da ‘engrenagem’ têm sua parcela de responsabilidade sobre o acontecido
porque compactuaram com o Estado assassino, tomam posições distintas a
42 Se, por um lado, aponta o automatismo da obediência em oposição à reflexão. Por outro,
não aceita a desculpa da burocracia como meio de livrar-se da responsabilidade. Disso podemos concluir que ela conta com a capacidade de julgamento mesmo sob auspícios totalitários. Seu argumento é o simples fato de que alguns poucos o fizeram.
43 SHAAP, Andrew., Guilty subjects and political responsability: Arendt, Jaspers and the resonance of the ‘German Question’ in politics of reconciliation, p. 750. “A questão jasperiana da responsabilidade coletiva baseada na identificação simpática está bastante associada à concepção restauradora da política de reconciliação em que as moralidades confidenciais e públicas tendem a ser combinadas. A política da autêntica auto-expressão, que tal confluência conduz, ameaça promover um abandono da responsabilidade política dos sujeitos culpados. Em contraste, a ética política da mundanidade de Arendt sugere uma concepção agonística da reconciliação, na qual os cidadãos sejam capazes de assumir a responsabilidade política enquanto resistem a identificar-se como sujeitos culpados.” Tradução livre.
88
respeito do tema. Diferentemente de Jaspers que pretende nortear a situação da
culpabilidade moral da nação alemã, Arendt acredita que não se deve tratar o
problema como uma questão de culpa coletiva, pois como a idéia de culpa aplica-
se apenas a indivíduos e suas consciências, a noção equivocada de culpa coletiva
acaba retirando a responsabilidade daqueles que realmente participaram do
regime. O argumento arendtiano sintetiza-se na concepção de que “quando todos
são culpados ninguém de fato o é”.44 Nesse sentido, a solução jasperiana,
visualizada na idéia da reconciliação espiritual, onde a culpa pode ser extirpada
pelas desculpas públicas, poderia promover a dissolução da responsabilidade
individual.
Com a atribuição de responsabilidade a todos os cidadãos, Arendt aborda
uma questão delicada e cara à política contemporânea. Considerando que se
entende que o Estado é fruto de um consenso e existe porque sancionado pelos
cidadãos, pode-se conceber que a responsabilidade política pelos atos de Estado
não é apenas de seus dirigentes, mas de todos. As pessoas comuns que nada
fizeram diretamente para movimentar a máquina nazista, por seu lado, alegam que
não havia outro jeito a não ser aceitar as políticas impostas pelo Reich.
Manifestar-se contra o regime era arriscar a própria vida. De modo que seria
necessário entender a participação como uma coação e não como uma decisão
livre e responsável. Nesse caso, a responsabilidade seria apenas daqueles
participantes convictos.
Tanto Arendt quanto Jaspers estão cientes desse problema e, por isso,
estabelecem distinções entre os cidadãos que participavam do partido ou do
governo e outros que compactuaram por omissão. Apesar de insistir na
importância da comunicação pública da culpa que possibilitaria uma reconciliação
e reparação políticas, Jaspers traça a diferença entre a culpa política ou criminal
de um lado, e a culpa moral ou metafísica, de outro. Arendt, por sua vez, embora
sugira que a omissão acaba funcionando como uma forma de permitir o sucesso
do regime totalitário e não aceite a equiparação entre obediência e consentimento,
também distingue a responsabilidade pessoal da responsabilidade legal para
especificar a responsabilidade daqueles que foram ativos na perpetração do crime.
“Pois a verdade simples da questão é que apenas aqueles que se retiraram
44 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 83.
89
completamente da vida pública, que recusaram a responsabilidade política de
qualquer tipo, puderam evitar tornar-se implicados em crimes, isto é, puderam
evitar a responsabilidade legal e moral.”45
Insistimos na ênfase que Arendt atribui à responsabilidade e ao julgamento
para mostrar a dificuldade de compactuar com a visão de Luc Ferry sobre a
irracionalidade da história e perda da ética na obra da autora. A intenção não é
desenvolver um roteiro daquilo que Duarte chama de ética negativa arendtiana.
Para tanto, seria necessário considerar mais especificamente suas análises do juízo
estético e da atividade do pensamento. O que queremos indicar é tão somente que
se, por um lado, a autora argumenta que os homens não controlam suas ações, e
que elas não se reduzem às intenções e motivações, por outro, podemos notar sua
preocupação em destacar a responsabilidade dos homens por suas ações. A ação
não aparece como um evento irracional, com o qual os homens não têm nenhuma
ligação. O intuito arendtiano é justamente buscar revelar os atores por trás da
história. Seus argumentos indicam que, diferentemente do que querem nos fazer
supor os envolvidos com o nazismo e mesmo a geração alemã do pós-guerra,
existe responsabilidade pelo Holocausto e que essa responsabilidade tem relação
com as decisões e julgamentos que os atores políticos fizeram em determinado
momento histórico. Se houve nazismo não foi apenas porque havia líderes
nazistas ou porque havia qualquer movimento automático da história que
encaminhasse para tal regime, mas sim porque houve cooperação, participação e
omissão.
Em contraposição ao movimento das modernas burocracias que, ao
esvaziarem o lugar de decisão, apresentam-se sob a ótica de um governo de
ninguém, que convém à ausência de responsabilidade, Arendt destaca a
responsabilidade dos atores por suas ações e pela história. Nesse sentido, podemos
visualizar a relação entre a moderna perda de mundo e a perda de sentido da
responsabilidade, da qual o Eichmann arendtiano é o retrato fiel.
45 Ibid, p.96. O argumento arendtiano segundo o qual “todos os governos” estão baseados
no consentimento e não na obediência sugere que todos os cidadãos estão implicados nas decisões políticas do governo. Se ela usa o pressuposto para rebater a tese do ‘dente na engrenagem’, segundo a qual, o funcionário menor não tinha opção senão obedecer ordens superiores, sua proposição acaba remetendo também a posição daqueles que “se retiram da vida pública”. A questão complicada, a qual Jaspers tenta responder assumindo a culpabilidade moral de toda a nação, é justamente se essa “retirada” é possível e se é possível eximir determinados cidadãos da acusação de compactuar de certa forma com o regime. Ibid, pp. 108-11.
90
Em Eichmann em Jerusalém, a autora faz questão de mencionar uma
réplica de Eichmann que dizia ter sido fundamental para sua permanência no
cargo do partido o fato de não ter encontrado absolutamente ninguém que fosse
contra a atuação nazista ou as deportações. Essa referência sugere o
encaminhamento do veredicto arendtiano, segundo o qual, Eichmann não refletiu
de fato sobre a situação em que se encontrava. Ele simplesmente teria seguido o
rumo da história e o curso dos acontecimentos como a maioria de seus
concidadãos. Para ela, não se tratava de estupidez ou de qualquer mal radical.
Eichmann não conseguia – e não precisava - pensar o totalitarismo. Sua
‘banalidade’ era justamente ser um homem comum ou mediano que seguia as
regras e obedecia às ordens. Curioso notar que Arendt não duvida do depoimento
de Eichmann o qual acompanhou em Jerusalém. Sua impressão foi de que ele era
limitado pela sua vulgaridade. Eichmann não tinha nada de maquiavélico. Era um
exemplo comum do ‘respeitável’ alemão que a autora tanto quis compreender.
Um homem da burocracia, pai de família e obediente, que se dizia seguidor da
moral kantiana.
Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo II de ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma outra motivação. E se a aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele nunca teria matado seu superior para ficar com seu posto. Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo.46
Eichmann é o modelo do homem moderno naquele sentido mais
caricatural do homem da burocracia. Não pensa, não reflete, e possivelmente, não
cometeria o mal com suas próprias mãos. Esse é quase um bom homem não fosse
pelo fato de ser um autômato. O problema de Eichmann é que é como se ele não
estivesse lá. Não estivesse experimentando a realidade dos acontecimentos. A
sugestão de Arendt não é justamente essa quando observa que ele sequer chegou a
decidir entre o certo e o errado? O problema de Eichmann é com certeza o
problema maior da modernidade: a perda do mundo. Evidentemente, que no caso
do totalitarismo, a tentativa é de extinção total do mundo, e, conseqüentemente, da
realidade. Ou seja, a pretensão totalitária de instaurar um substituto para a
realidade, qual seja, o próprio movimento da história. Ao mostrar que Eichmann
46 Id., Eichmann em Jerusalém, p. 310.
91
não refletiu sobre a nova situação do nazismo e simplesmente aceitou as novas
regras, seguindo uma corrente que também arrastava a maioria da população
alemã, a autora evidencia a força da nova realidade arquitetada pelo nazismo que
se apresentava como a realização da história.
Se, por um lado, Arendt aponta para o automatismo da obediência em
oposição à reflexão, por outro, não aceita a desculpa da burocracia como meio de
livrar-se da responsabilidade. Tal ‘escolha’ não pode ser obscurecida pelo
argumento da roda na engrenagem, que o advogado de Eichmann tentou emplacar,
fazendo crer que o réu era apenas um instrumento da máquina nazista. Disso
podemos concluir que ela conta com a capacidade de julgamento mesmo sob
auspícios totalitários. Seu argumento é o simples fato de que alguns poucos o
fizeram.
O que exigimos nesses julgamentos em que os réus cometeram crimes ‘legais’ é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar entre o certo e o errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas o seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta.47
O que queremos indicar com a remissão ao texto sobre Eichmann e a
discussão sobre a responsabilidade no totalitarismo é que não é possível
considerar que Arendt vê a história como um milagre, diante da qual só resta aos
homens a atitude contemplativa. Sua compreensão da ação, que leva Ferry a
determinar sua filosofia da história irracionalista, apesar de contar com o caráter
extraordinário, não deixa pensar que as ações humanas são indiferentes. Ao
apontar a necessidade da responsabilidade, ao condenar Eichmann e outros
‘respeitáveis’ alemães por participação no partido nazista, acusando mesmo os
que não atuaram diretamente nas instâncias burocráticas do regime, a autora vai
além de indicar a responsabilidade implicada na ação humana. Sugere também
que, em momentos de crise, como foram esses “tempos sombrios”, até a ausência
de ação acabou se tornando ação, porque os que nada fizeram contra Hitler, os que
não se rebelaram ou fugiram ou ajudaram a salvar algumas vidas, acabaram
compactuando com o regime e se tornando também responsáveis pelo evento.
Nesse sentido, não nos parece possível compreender a ação arendtiana como
47 Ibid, p. 318.
92
irracional e absolutamente separada da história.48 Parece que, se a autora quer
preservar a política de um enlace pela teoria e livrá-la de ser entendida como mera
instrumentalidade, não é possível imaginar que a ação da qual fala esteja fora do
alcance dos homens. O pressuposto é o inverso. A ação é a base da teoria da
história arendtiana porque, através dessa concepção, a autora reencontra os
homens por trás da história. Com ela, não se pode entender que a história, como
pensa a filosofia da história hegeliana, tem um rumo pré-definido, que é o
processo de tomada de consciência executado secretamente pela astúcia da razão.
A ação é realizada pelos homens. Se é preciso resguardar seu caráter
extraordinário isso se deve à preservação da possibilidade da própria ação. A
ausência de controle sobre a ação mostra a impossibilidade de determinar o rumo
da história. O homem age e não pode saber exatamente o que significa essa ação,
porque é livre e a história tem um futuro aberto diante de si, que é a própria
contingência. Se tudo estivesse determinado, o homem não seria livre. A crítica
arendtiana às filosofias da história, que garantem conhecer o caminho para o qual
a história se direciona, baseia-se nesse argumento. O que falta na filosofia da
história de Hegel é a liberdade do homem; é a sua possibilidade de agir
livremente, pois se observarmos bem, o homem hegeliano parece mais uma
marionete da astúcia da razão. Não é ele mesmo que tem o mérito do
desenvolvimento do saber. Na verdade, ele nem sabe de coisa alguma exceto no
fim da história quando será finalmente livre. Mais aí o homem também não tem
mais o que agir. O futuro já se transformou num presente eterno.49
Reencontramos aqui as questões levantadas com a leitura de Derrida, que
ressalta o “fim da história” narrado por Arendt como efetivação da mentira
absoluta no totalitarismo. A crítica de Derrida à Arendt sustenta-se principalmente
no argumento de que, apesar de tratar da história da mentira e apontar a conversão
48 Arendt sugere que mesmo a inação pode significar ação em situações limite como o
totalitarismo. Ver Id., A vida do espírito. 49 Id., Da revolução, p.43. A versão mais sucinta dessa crítica a Hegel. Destacando a
influência da Revolução Francesa sobre o pensamento hegeliano, Arendt desvela “Esse aspecto diz respeito ao caráter do movimento histórico, o qual, segundo Hegel e todos os seus adeptos, é, ao mesmo tempo, dialético e movido pela necessidade; da revolução e da contra-revolução, do 14 de julho ao 18 de Brumário e à restauração da monarquia, nasceu o movimento e o contra-movimento da História, que arrasta os homens em sua corrente irresistível, como um poderoso caudal subterrâneo, ao qual devem submeter-se no próprio instante em que tenham que estabelecer a liberdade sobre a terra. Esse é o significado da famosa dialética da liberdade e da necessidade, em que ambas finalmente coincidem – talvez o mais terrível, e, humanamente falando, o mais intolerável paradoxo de todo o pensamento moderno.”
93
da história à mentira absoluta no totalitarismo, a autora permanece contando com
o pressuposto da verdade. Desse modo, Arendt ainda estaria concebendo a
mentira em seu sentido tradicional, como uma oposição à verdade; e a mentira
absoluta seria apenas a outra face do saber absoluto vislumbrado por Hegel, onde
permanece em jogo a questão da consciência. A mentira absoluta só é entrevista
do ponto de vista da verdade, ou quando se tem consciência da verdade. Nesse
caso, a história da mentira ainda fulgura como a história de um erro. Derrida
aplica ao raciocínio arendtiano a própria tese de Arendt sobre a mentira. Se a
autora argumenta que a mentira tradicional está ligada à intenção de enganar e se
sustenta pela consciência da verdade por parte do mentiroso, o que sugere que a
mentira tradicional funciona como uma oposição à verdade, Derrida acredita que
Arendt, ao narrar a história da mentira, e sua transformação radical na
modernidade em mentira absoluta, guarda ela mesma a consciência da verdade, e
continua entendendo a mentira como subversão da verdade. Em última instância,
o problema seria a manutenção da dualidade entre verdade e mentira, que não
deixa pensar as especificidades de nosso mundo contemporâneo marcado pelo
caráter phantasmal.
Ao observar a análise arendtiana de Eichmann e suas considerações sobre
juízo e responsabilidade devemos ressaltar sua ênfase sobre a incapacidade de
pensar de Eichmann, tal como sua banalidade. Além disso, também vale enfatizar
a ausência de convicção dos envolvidos no nazismo. Com isso podemos voltar à
questão da mentira no totalitarismo. O fato é que para compreendermos a crítica
de Derrida, é necessário entender o que está implicado na tese de Arendt da
mentira absoluta. A referência a Eichmann é importante porque revela que não se
tratava de uma intenção de mentir ou manipular. Eichmann, como a autora
destaca, não é nada maquiavélico. Se se pode falar de mentira nesse caso, não é,
portanto, no mesmo sentido em que se caracteriza a mentira tradicional, quando o
mentiroso guarda consigo a verdade que esconde do restante do mundo. A mentira
com a qual Eichmann está envolvido não é uma mentira sustentada por sua
intenção de enganar, mas sim uma mentira que se baseia na enganosa realidade
montada pelo totalitarismo. A diferença visualizada por Arendt na mentira
moderna que aparece como mentira absoluta no totalitarismo é que não se trata
mais da mentira pontual, proferida por determinados indivíduos mentirosos que
94
subvertem a verdade. No caso do totalitarismo, toda a ordem apresenta-se como
mentirosa, pois se constitui como uma espécie de substituto da realidade.
Por fim, o que é talvez mais perturbador, se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um rearranjo completo de toda a trama factual, a criação de outra realidade, por assim dizer, na qual elas se encaixem sem remendos, falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se encaixavam no próprio contexto original, o que impede que essas novas estórias, imagens e psedofatos de se tornarem um substituto adequado para a realidade e fatualidade?50
A reivindicação arendtiana da verdade factual contrapõe a mentira
absoluta criada pelo totalitarismo. Acreditamos que essa verdade precisa ser
compreendida numa relação intrínseca com o devir contingência, pois só os novos
acontecimentos podem fazer desmoronar a realidade fictícia montada pelo regime.
É necessário entender que a crítica arendtiana aos totalitarismos coloca esses
sistemas na esteira da perda de mundo inaugurada na modernidade. Se o homem
moderno não confia mais em seus sentidos, e não mais espera ver a realidade em
si, mas apenas uma representação da realidade constituída sempre pelas categorias
limitadoras do próprio homem e pelos instrumentos técnicos por ele fabricados,
mantém uma relação indireta com a realidade. No caso do totalitarismo, que faz
crer ser o rumo determinado pelo processo histórico, forja-se uma
pseudorealidade que se apresenta como substituta da realidade, cuja origem é a
experiência entre os homens. Por isso, para o sucesso desses movimentos é
importante que os caminhos do futuro sejam traçados de antemão e os fatos
passados sejam adulterados. Assim, na antecipação do futuro e na falsificação do
passado, o totalitarismo constrói a realidade como imagem de si mesmo. E se a
criação é a potência tanto da ação, quanto da mentira, a mentira absoluta perde
essa capacidade e sucumbe à antecipação.51
Na afinidade quanto à perda da realidade vemos a ligação entre a situação
moderna e contemporânea. A perda de mundo moderna anuncia a possibilidade da
perda definitiva da realidade que se desvela no totalitarismo. Essa perda
“definitiva”, a qual Arendt denomina “mentira absoluta”, e descreve como uma 50 Id., Entre o passado e o futuro, p.313. 51 Quando Derrida propõe que deixemos de lado as duplicidades especificamente
metafísicas e sustentemos o caráter phantasmal faz crer que a realidade não representa nada além de si – converte-se em representação sobre representação. Assim, caracteriza a ausência indicada em toda “escritura”. A realidade não pode ser entendida como presença, tal como em Heidegger, a aléthea é sempre um mostrar-se e esconder-se.
95
“criação” literal da realidade, uma substituição fictícia, também aparece na
construção da imagem tão específica da era da propaganda nas democracias do
mundo livre, embora não no sentido absoluto do totalitarismo, quando desponta
como novidade. 52
Para nosso contexto, é interessante observar a relação entre a criação da
pseudorealidade e a intervenção na história. Na condição da mentira absoluta,
vemos a ilustração daquilo que a autora entende como “fazer história”. Mesmo
que a mentira, por sua afinidade com a imaginação, erija um começo, ela exclui a
possibilidade da ação e dos novos começos quando se torna mentira absoluta.
Nesse sentido, “fazer” a história é justamente inibir que a história se faça, ou que
as ações dos homens dêem início a novas histórias. A invenção totalitária mostra a
Arendt que a história não pode equivale à ficção. Não pode ser uma história com
autor. A história precisa estar aberta ao que advém, ou a própria realidade
enquanto tal. A história e a ação não podem estar presas à autoridade do
pensamento, da teoria ou da idéia.
Justamente porque notamos na objeção arendtiana ao totalitarismo o
mesmo argumento que encontramos na crítica da autoridade que se fixa na
superioridade da teoria sobre a ação, é que não podemos aceitar a hipótese de
Derrida, segundo a qual Arendt ainda estaria ligada à noção de verdade
metafísica, sustentando a duplicidade entre verdade e mentira, e contando com a
hegemonia da verdade. A acusação do autor diverge com a tentativa arendtiana de
desmontagem da metafísica. Ela se julga empenhada nesse projeto e não pretende
validar a verdade por trás das aparências, nem simplesmente inverter a autoridade
do mundo das aparências sobre o mundo das idéias. Ocorre que o problema que
Arendt vê na separação dos mundos não é propriamente a separação, que talvez
susbista à existência humana na experiência imanente do pensamento, mas a
determinação que a metafísica impõe quando decide a hierarquia entre ação e
pensamento. Acreditamos que a autora não vislumbra tão somente a validação da
instância da ação, mas também parece apontar um meio de conceber a autonomia
52 Arendt não torna equivalente totalitarismo e democracia, mas nota a presença de
elementos totalitários nas democracias contemporâneas.
96
do pensamento, entrevendo a possibilidade de uma ligação não autoritária entre
essas instâncias.53
Derrida ainda poderia ter razão, se fosse o caso de Arendt enunciar um
projeto, mas não alcançar realização. De fato, resta ainda esclarecer como Arendt
consegue visualizar sentido na história. Se com a remissão à temática do juízo e
da responsabilidade fica evidente que não se trata de irracionalidade na história,
precisamos entender como a autora pode vislumbrar uma história que não é tão
somente irracionalidade, nem racionalidade absoluta. Compreender o caráter da
novidade na história parece fundamental nesse caminho. Buscaremos elucidar o
surgimento da novidade e as implicações de continuidade e descontinuidade na
história a partir da análise da ruptura provocada pelo fenômeno totalitário e da
insurgência do novo começo apontado pelas revoluções modernas.
53 Na verdade, Derrida indica que, caso seja possível uma história da mentira, seria
prudente levar em conta não apenas a concepção arendtiana de mentira e de ação, mas toda a sua obra. Nesse sentido, destaca três pontos principais que poderiam ser considerados em Arendt: 1- sentido extra-moral presente na teoria arendtiana; 2- abordagem sobre a transformação do político em imagem; 3- busca por delimitar o político, separando-o da vida do pensamento.
4 Totalitarismo e Revolução – o aparecimento da novidade
O questionamento acerca da teoria da história arendtiana, que toma como
via a pergunta pelo sentido do devir histórico, torna urgente a análise mais
detalhada da concepção de totalitarismo e de revolução desenvolvidas pela autora.
Esses dois tipos de eventos históricos remetem, a princípio, a experiências
bastante distintas entre si. Considerando o entusiasmo de Arendt pela revolução
americana e sua realização política e o seu desprezo pela empreitada totalitária, já
é possível perceber que totalitarismo e revolução aparecem como acontecimentos
históricos opostos. Nesse sentido, a revolução pode ser entendida a partir da
proximidade com a experiência da pólis, enquanto o totalitarismo é pensado como
a tentativa de total extinção da realização do político. Não obstante a divergência
crucial entre totalitarismo e revolução, que se refere à questão da efetivação do
político, nos dois casos Arendt concebe o aparecimento da novidade no mundo.
Se, por um lado, podemos ler que o totalitarismo é marcado por seu ineditismo,
cuja imprevisibilidade rompe com a própria continuidade da história ocidental,
também encontramos a associação fundamental entre revolução e novidade.
Devemos, portanto, compreender em que sentido a autora entende a originalidade
do totalitarismo e da revolução. Acreditamos que a concepção de novidade tem
importância fundamental na obra arendtiana e norteia sua teoria da história. Para
nosso contexto, é crucial considerar que, se a autora concede tanta relevância à
noção de novidade, fica complicado imaginar sua perspectiva histórica como uma
filosofia da história. Ou seja, a possibilidade latente da novidade não permite
vislumbrar sentido a priori da história. A menos que essa novidade não tenha
relação com as ações humanas, o que parece não ser o caso. Nos interessa,
portanto, investigar se essa novidade precisa ser entendida como contingência
absoluta, e se os homens podem assumir a novidade como uma empreitada. Em
outras palavras, buscamos entender em que medida importa e existe consciência
da novidade. Seria possível falar em consciência dos atores ou a novidade só pode
98
ser vislumbrada pelo espectador que observa a história retrospectivamente? O que
evocamos com a análise da novidade é o caráter da relação entre ação e história.
4.1. O ineditismo totalitário e a realidade ficcional
Destacamos que a história contada por Arendt sobre o Ocidente tem seu
marco inicial na pólis grega onde o político se manifesta em sua plenitude no
espaço de liberdade no qual os homens podem agir e aparecer uns aos outros
através de atos e palavras. O declínio da cidade-estado antiga e a ênfase na vida
pós-morte trazida com a ascensão do cristianismo anunciam-se como o
esquecimento do político que, acentuado pela moderna perda do mundo, encontra,
de certo modo, seu acabamento na tentativa nazista de eliminar completamente a
pluralidade tornando factível um Uno total que comprime as diferenças entre os
homens. Se a pólis abre-se como um espaço ímpar no qual os homens livres têm a
possibilidade de se reunir para trocar opiniões e agir em conjunto, o totalitarismo
caracteriza-se pela supressão da liberdade pública e privada. “é como se a
pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas.”1
A concepção arendtiana do totalitarismo desenvolve-se ao longo de vários
anos. Suas reflexões sobre o tema esboçam-se nos artigos escritos durante a
década de 40 nos Estados Unidos. Nesse período, importava-lhe a temática
judaica e a sua própria condição de apátrida. Vemos nesses escritos, idéias que
tomariam corpo em Origens, mas também ecos de sua obra sobre Rahel
Varnhagen, onde já abordava a questão da judaidade.
Nesse estudo sobre Rahel e os salões da burguesia alemã, a autora também
anuncia alguns argumentos que seriam retomados para constituir o clássico
Origens do Totalitarismo. Sua tentativa de compreender o anti-semitismo e o
poder crescente do nazismo lhe sugeria o problema da assimilação como fato
1 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 518.
99
importante.2 Arendt mostra como Rahel e outros judeus equivocam-se na
compreensão da igualdade humana pregada pelo Iluminismo. A autora traça o
desenvolvimento da judaidade como problema psicológico e individual. Em
Origens, tal equívoco é entendido como comportamento a-político e como
ingenuidade política dos judeus.
Nesse trabalho sobre Rahel e o romantismo alemão, a autora anuncia sua
polêmica perspectiva segundo a qual o posicionamento judaico contribui para o
terrível destino do Holocausto. Na verdade, a falta de iniciativa política por parte
do povo judeu que não contava com um Estado para garantir sua cidadania,
combina-se com a tentativa individual de cada judeu de resolver por si mesmo o
problema de sua judaidade. O que a autora percebe é que os judeus em vez de se
assumirem como povo específico e buscarem garantir seus direitos como parte
desse povo, acabavam tentando esconder seu judaísmo ou tornar-se um judeu de
exceção, isto é um judeu que por qualidades específicas era salvo e bem-vindo à
sociedade. Arendt defende que o Iluminismo e a modernidade, com sua perda do
mundo, convêm aqueles que como os judeus queriam escamotear os dados da
realidade, ou seja, esquivar-se do fato de serem judeus. Segundo ela, a fuga de
Rahel para o interior de si mesma e a crença dos judeus, típica do Esclarecimento,
na capacidade de pensar por si mesmo, contando exclusivamente com a
competência da razão, revela-se como uma perda da realidade. Arendt destaca que
o grande equívoco de Rahel e seus contemporâneos românticos foi viver a vida
como se ela fosse uma obra de arte. Nesse sentido, indica a relação entre a
ausência de atitude política dos judeus e o fato de viverem como espectadores das
próprias vidas. “a resolução de considerar a vida e a história que esta impõe como
mais importantes e mais sérias que a própria pessoa.” Refugiar-se no interior da
razão e rejeitar a realidade dos fatos – o que em última instância era a tentativa de
negar a realidade do fato de ser judeu – era, para Arendt, uma perigosa
transformação da realidade.
sem a realidade partilhada com os outros seres humanos, a verdade perde todo o sentido. A reflexão e suas desmesuras engendram a falsidade. (...) Os fatos podem ser desintegrados em opiniões tão logo uma pessoa se recuse a consentir neles e
2 Id., Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. A base do
manuscrito data de 1933. Os dois últimos capítulos são de 1938. YOUNG-BRUEHL, E., Hannah Arendt. Por amor ao mundo, p. 96.
100
se retire de seu contexto. Eles têm sua própria maneira peculiar de ser verdadeiros: sua verdade deve ser sempre reconhecida, testemunhada.3
O que percebemos na análise arendtiana dos judeus alemães na época do
romantismo é o despontar do seu argumento sobre a perda do mundo. Na leitura
d’ A condição humana, notamos a importância que a temática adquire no
pensamento arendtiano. A perda do mundo na modernidade advém como uma
inflexão do sujeito para dentro de si mesmo.4 Na razão e não propriamente no
contato com o mundo pelos sentidos é que a verdade pode ser encontrada. Ao
discutirmos as considerações de Arendt acerca da perda do mundo na
modernidade relacionamos tal fato à superioridade da teoria sobre a ação
vislumbrada por Platão na Antigüidade, e evidenciamos a intenção arendtiana de
reverter esse quadro. De conceber a vita activa a partir de sua autonomia e não
como uma submissão à verdade vislumbrada pelo pensamento.
A constatação arendtiana da negação dos fatos e da valorização da razão
por parte dos judeus, a nosso ver, pode ser entendida dentro desse horizonte mais
amplo da sua obra, considerando a atenção da autora para a experiência de
negação dos fatos em prol da teoria na Antigüidade e na modernidade. Desse
modo, visualiza-se a relação entre o comportamento judeu, que reflete a própria
perda de mundo especificamente moderna, e o totalitarismo. Em Rahel, a autora
sugere a existência do vínculo que posteriormente enfatizaria na análise do anti-
semitismo proposta em Origens. A afinidade entre vítima e algoz, se é que
podemos tratar nesses termos a análise arendtiana da relação entre judeus e
nazistas, que, de certo modo, torna possível a ligação absurda entre ambos, parece
3 ARENDT, H., op cit., p. 21-2. Em seguida, aparece a idéia que vimos desenvolvida em
“Verdade e política”. Segundo a qual, pode-se negar um fato isolado, mas não “a totalidade de fatos que chamamos mundo”, p. 24. Essa negação dos fatos encontra raiz na perda do mundo. No caso do Iluminismo, a autora acredita que a idealização da razão torna descartável a realidade factual, sublinhando que os fatos não têm valor de prova para a razão. A perda do mundo em prol da valorização da razão implica na abstração da realidade, no exercício de julgar pelo geral e não pelo particular. O romantismo também perde a realidade quando faz o inverso, isto é, intensifica demasiadamente o particular. “cada situação é arrancada de seu contexto, refletida e vestida como uma ocorrência causal especialmente interessante. (...) cada fragmento é enormemente intensificado pela infindável reflexão, a própria vida é mostrada como um fragmento no sentido romântico”, p. 29. A ligação entre a verdade dos fatos e seu caráter testemunhamental fica claro também na seguinte conclusão: “Pois para o mundo e no mundo as únicas coisas dignas de permanência eram as que podiam ser comunicadas”, p. 91
4 TAMINIAUX, J., The philosophical stakes in Arendt’s genealogy of totalitarianism”, p. 424. O autor discute sobre a “emphasis Arendt puts on the global development of phenomena such as ‘homelessness on an unprecedented scale, rootlessness to an unprecedented.’”. “a ênfase que Arendt dá ao desenvolvimento global de fenômenos tais apátridas em escla sem precedentes e o desenraizamento sem precedentes.” Tradução livre.
101
sustentar-se nesse elo comum manifestado pela perda do mundo. Tanto judeus
como nazistas estabelecem a rejeição da realidade e a negação dos fatos. É claro
que o exame arendtiano do totalitarismo revela um caso muito mais terrível de
perda do mundo porque não consiste simplesmente na negação da realidade e na
fuga para qualquer mundo interior, ao contrário, institui uma nova realidade
fictícia e reproduz até mesmo os dados factuais. Mas nos dois casos, Arendt
detecta essa experiência da perda do mundo, que, para ela, seria a própria perda da
experiência.
Devemos destacar que o que mais nos importa nesse estudo sobre Rahel é
a proeminente distinção traçada por Arendt entre a atitude afirmativa diante da
história e o comportamento passivo. No primeiro caso, parece indicar a
possibilidade de agir politicamente e estar atento e participante à realidade do
mundo. No segundo, trata do afastamento da realidade e da submissão ao acaso ou
ao destino. Nos judeus analisados em Rahel, Arendt detecta que a fuga da
realidade promovida pela negação dos fatos através da valorização do
pensamento, seja pelo caminho da abstração ou generalização, seja pelo viés da
idealização de um momento específico, acaba tornando-os sujeitos à casualidade
dos acontecimentos e, por isso, vulneráveis ao totalitarismo. “Uma vez que se
submeta ao acaso, renuncia-se à própria autonomia...”5 Por não terem se assumido
como judeus e não terem compreendido sua própria história, os judeus
despontaram como vítimas dóceis.
O que queremos sugerir com a remissão ao texto de Rahel é a existência da
relação entre ação política e história no pensamento arendtiano. Nesse capítulo,
trataremos mais especificamente dessa relação ao explicitar o caráter da novidade
totalitária e revolucionária, mas na retomada de Rahel já fica indicada a conexão,
quando se observa a oposição que Arendt estabelece entre a “casualidade dos
acontecimentos” e a ação política. Ao evidenciar a sujeição de Rahel diante de seu
destino, a autora desvela “Mas se não a compreendermos (...) nossa história se
vingará, exercerá superioridade e se tornará nosso destino pessoal”. E, em
seguida, completa, “O que é o ser humano sem sua História? Produto da natureza
e nada de pessoal.”6
5 ARENDT, H., Rahel Varnhagen, p. 63. 6 Ibid, pp. 15-6.
102
Quando se refere à rejeição da realidade e dos fatos por parte dos judeus,
Arendt faz crer que aquele que não compreende sua história e não age sobre ela
acaba sendo levado pelo puro acontecer e tende a acreditar que o destino não lhe
permite agir. Os homens que não assumem seus destinos são arrastados pelo
processo histórico ou pela casualidade de acontecimentos que lhes aparecerá
inevitável e irresistível como um destino. Assim, a perda da realidade e dos fatos
acarreta a obstrução da ação e do próprio futuro. Em Rahel, nota que “a
antecipação de experiências, o conhecimento que precipitada e pretensiosamente
converte o futuro em passado está colocado mais uma vez, à parte da história; não
previne nada e se desvanece assim que a pessoa se rende novamente à vida,
capitula diante da vida.”7 Ao conectar a idéia da superioridade da razão à
concepção da perda da experiência, Arendt sugere a relação entre iluminismo e
filosofia da história. Nesse sentido, destaca a assimilação de Fichte por Rahel.
Segundo ela, é com Fichte que Rahel passa a supor que a “História é apenas
elucidação de uma comprovação colocada a priori.”8
A distinção entre aqueles que assumem seu destino e os que o tomam
como um fardo e passam a ser arrastados por ele, como se fossem levados por um
processo, indica a diferenciação entre os homens que agem e os que se submetem
ao acaso. Como veremos adiante, essa separação fica ratificada na disparidade
entre os homens da revolução francesa, que se deixam levar pela irresistibilidade
do processo revolucionário, e os homens da revolução americana, que
compreendem a novidade em que estão imersos e agem em nome dela.
Discutiremos ainda oportunamente como a variação entre a possibilidade de
assumir a novidade e se deixar levar pelo processo implica, em ambos os casos,
elementos que estão fora do controle dos homens. O que é necessário ter como
pressuposto nessa distinção entre os que agem e os que se submetem à História é
que não se trata da separação entre os que controlam a história à sua vontade e os
que se deixam levar pelo processo.
Para compreender a distinção entre essas duas possibilidades frente à
história precisamos considerar as características da ação conforme visualizada por
Arendt, às quais comentamos anteriormente. Tendo em vista que ação não
7 Ibid, p.93. 8 Ibid, p. 109. Arendt alude nesse sentido à crença iluminista na superioridade da razão em
detrimento dos fatos.
103
equivale à fabricação, percebemos que, mesmo que haja a possibilidade de agir,
isso não significa que o homem possa fazer a história à sua vontade. Em Arendt, o
homem que age não é senhor da história. Ao contrário, muitas vezes aqueles
atores que acreditam poder controlar a história são justamente os que perdem a
possibilidade da ação porque imaginam um sentido pré-definido para a história e
se submetem à sua realização. Ocorre que o controle sobre a história atrela-se ao
imaginado conhecimento do sentido da história. O caso extremo dessa fantasia
histórica, Arendt encontra na construção daquilo que denomina “ficção”
totalitária. Mas também os revolucionários franceses encontram-se enredados na
ficção do Povo, diante da qual perdem a oportunidade de agir.
No caso específico dos judeus, tratado em Rahel, pode-se ver que
compreender a história e assumir o destino é justamente o contrário de negar a
judaidade ou escondê-la na privacidade. Assumir o destino requer o
reconhecimento dos fatos – o fato de ter nascido judeu e a história desse povo. A
ação é possível quando compreende sua história e se posiciona diante dela.
Rejeitar a história e a sua realidade não resolve o problema, ao contrário, só
coloca os judeus à mercê da “casualidade”.
Os diversos argumentos indicados em Rahel tomariam forma acabada em
Origens do totalitarismo. Nessa obra, Arendt apresenta uma análise mais
detalhada da questão judaica e desvela que os judeus não perceberam a novidade
presente no anti-semitismo moderno.9O fato é que apenas quando teve
conhecimento da solução final, acesso aos relatos dos sobreviventes e
conhecimento da lógica dos campos, Arendt consolida sua visão do totalitarismo.
Ela mesma contava com o pressuposto segundo o qual uma história só pode ser
contada quando termina.10 Ao tentar compreender o totalitarismo e suas origens, a
autora acredita que esse movimento havia chegado ao fim.
A concepção de totalitarismo refere-se aos sistemas instaurados por Hitler
na Alemanha e por Stálin na União Soviética. Alguns críticos acreditam que
Arendt deveria reconhecer as diferenças entre a situação alemã e soviética, que
aparecem aglutinadas num mesmo conceito. A própria noção de totalitarismo foi
amplamente questionada. Interroga-se sobre a idéia que o termo suscita: a 9 Ainda em Rahel, podemos ler que “os judeus prussianos demoraram para compreender o
desastre. Viviam esperançosos com emancipação e liberação civil”. Ibid., p. 106. 10 Consideraremos esse argumento no próximo capítulo, onde discutiremos a perspectiva
teórica de Arendt acerca da história.
104
vigência da obediência total durante o regime.11 Tal perspectiva estaria negando
tanto a possibilidade de adesão consciente ao projeto nazista, quanto à capacidade
de resistência por parte de alguns. Entendemos que Arendt não acredita que o
totalitarismo tenha se efetivado plenamente. Devemos compreender a idéia literal
de totalitarismo apenas como o projeto totalitário de instaurar um Uno absoluto,
mas na prática, apesar de ter alçado poder e obtido relativo sucesso essa pretensão
não se concretizou. Ocorre que o totalitarismo só poderia ser considerado
verdadeiramente totalitário se dominasse o mundo inteiro. Arendt argumenta que
o maior inimigo do movimento é a existência do mundo não-totalitário e não
deixa de notar a possibilidade de se isentar do totalitarismo. Aqueles que não
apoiaram o regime resguardaram de certo modo a resistência à implementação da
totalidade.12
Para o nosso tema da história, é importante destacar que o totalitarismo
refere-se à tentativa de instaurar uma realidade fictícia baseada na negação e
alteração dos fatos, e, conseqüentemente, no domínio da história. Arendt sugere
que tal criação sempre se confronta com a contingência do futuro, pois, apesar de
se caracterizar como novidade, o movimento totalitário pode ser desmentido pelo
aparecimento de novos fatos. Nesse sentido, a evidência de que o totalitarismo
não se efetiva literalmente é justamente o fato do movimento precisar alterar
constantemente a história, pretendendo com isso retirar dos homens a capacidade
de agir e iniciar novos acontecimentos; e tornar realidade suas predições,
precavendo-se contra a realidade não-totalitária, que a contragosto do
totalitarismo não é eliminada definitivamente.
O que nos propomos aqui não é fazer uma história do conceito e analisar
as críticas a respeito do termo “totalitarismo”. Buscaremos compreender em que
consiste a novidade totalitária para Arendt e em que medida ela está relacionada
às ações humanas, já que seu aparecimento promove a ruptura histórica com a
tradição ocidental, conforme visualizada pela autora. A rigor, esse é o principal
argumento de Origens. O totalitarismo é uma forma de governo absolutamente 11 Arendt se dedica após escrever Origens a completar seu estudo sobre o caso do
totalitarismo soviético e sua ligação com o marxismo. Desse período temos alguns textos agora reunidos em português na publicação A promessa da política. Sobre a discussão do totalitarismo ver: LEFORT, C., A invenção democrática; KURZ, R., Totalitarismo econômico.
12 Esse é o caso clássico de Jaspers, cuja atitude de isolamento sugere à Arendt tal possibilidade de afastamento do movimento. Ver ARENDT, H., Homens em tempos sombrios. No mesmo livro, onde se encontram reunidos relatos biográficos de diferentes personalidades analisadas pela autora, encontramos a pergunta pelo que resta de humanidade no mundo totalitário.
105
nova na história ocidental. Arendt insiste na tese de que não é possível entender o
que aconteceu na Alemanha e na URSS partindo da comparação com outras
formas de governo vistas até então. Segundo ela, o totalitarismo não é um caso de
autoritarismo e não é simplesmente um fascismo.13
Acreditamos que a ênfase arendtiana na novidade do totalitarismo baseia-
se, principalmente, na constatação de uma realidade fictícia criada pelo
movimento. A autora refere-se ao caráter inédito do movimento justamente
quando trata da nova forma de governo. Entende que a novidade do totalitarismo
não está na ideologia ou na burocracia, mas na forma como organiza e estrutura
essas idéias. No caso da ideologia, Arendt mostra que o totalitarismo não se
sustenta propriamente no socialismo ou no racismo, o que significa, para ela, que
o totalitarismo não tem um apego utilitário com a ideologia. Não se trata de
acreditar cegamente na idéia. Segundo Arendt, o totalitarismo faz valer ao pé da
letra o significado de ideologia, tratando-a literalmente como a lógica da idéia.
Não foi por acaso que os dois movimentos totalitários do nosso tempo, tão assustadoramente ‘novos’ em seus métodos de domínio e engenhos em suas formas de organização, nunca prepararam uma doutrina nova, nunca inventaram uma doutrina que já não fosse popular. (...) O que distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação com que, entre as ideologias existentes, escolhem os elementos que mais se prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício.14
Tal realidade fictícia se apresenta na duplicação das instituições, cargos e
organizações. A autora acredita que a própria disposição do movimento, cuja
estrutura ela compara à imagem de uma cebola, para mostrar o arranjo do
encobrimento, onde uma camada envolve a outra, contribui para criar a
possibilidade de afastamento da realidade. “A estrutura de cebola torna o sistema
organizacionalmente à prova de choque contra a fatualidade do mundo real.”15
13 Em O que é autoridade, Arendt explica sua distinção entre o governo autoritário cuja
imagem visualiza na estrutura piramidal e o totalitarismo cuja referência análoga aparece na figura de uma cebola. A autora traça diferenças mais específicas e visualiza a singularidade da autoridade romana. Para nosso contexto, basta notar que no caso do governo autoritário, a fonte do poder está fora e acima da estrutura, enquanto, no totalitarismo, “a imagem mais adequada de governo e organização totalitários parece-me ser a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, localiza-se o líder; o que quer que ele faça – integre ele o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano, ele o faz de dentro, e não de fora ou de cima.” In: ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 136.
14 Id., Origens do totalitarismo, p. 411 15 Id., Entre o passado e o futuro, p. 137. Vale a pena acompanhar a extensão do argumento
arendtiano que aparece de modo sintetizado nesse texto O que é autoridade. “Todas as partes extraordinariamente múltiplas do movimento: as organizações de frente, as diversas sociedades
106
Essa espécie de duplicação da realidade criada pelo totalitarismo tem seu núcleo
central na manipulação da história e seu experimento radical nos campos de
concentração. Os campos são fundamentais porque concretizam a constituição
totalitária da realidade. Revelam-se como o extremo ou a realização da alteração
da realidade, onde o fato é de uma vez por todas eliminado. Os campos funcionam
como laboratórios nos quais se dispõem à realidade. Aparecem como símbolos do
controle do futuro. Através deles, o totalitarismo evidencia a efetivação da lei de
movimento da História, pois concretiza o apagamento daquilo que não condiz
com a predição de futuro vislumbrada pelo movimento. Nesse sentido, os campos
são a característica mais marcante do totalitarismo. Sua existência indica o
sucesso da extinção da liberdade pública e privada. Nos campos, os homens são
desvestidos de todos os direitos e podem ser tratados como animais, o que, para
Arendt, indica que se tornaram realmente equivalentes como membros da espécie,
cuja igualdade é um simples dado natural como supõe toda a teoria dos Direitos
do Homem.16A determinação da história, cuja prática, o extermínio nos campos
efetiva, é um ponto central para compreender como o totalitarismo se manifesta na
perspectiva arendtiana como a tentativa de eliminar a ação dos homens e instaurar
uma realidade fictícia.17
Devemos ressaltar que a autora relaciona a instauração do totalitarismo à
criação de uma realidade fictícia porque entende que essa é de fato uma realidade
‘criada’ pelos homens. Para compreender esse significado precisamos considerar a
distinção da noção de ação concebida por Arendt. Ou seja, é necessário atentar
para sua diferenciação entre o aparecimento da história real e da história ficcional.
A primeira surge de uma ligação com as ações humanas, que embora sejam
providenciadas pelos homens, não são ‘escritas’ por eles. Parece-nos que a
profissionais, os efetivos do partido, a burocracia partidária, as formações de elite e os grupos de policiamento, relacionam-se de tal modo que cada uma delas forma a fachada em uma direção e o centro na outra, isto é, desempenham o papel de mundo exterior normal para um nível e o papel de extremismo radical para outro. A grande vantagem desse sistema é que o movimento proporciona a cada um de seus níveis, mesmo sob condições e governo totalitário, a ficção de um mundo normal, ao lado de uma consciência de ser diferente dele, e mais radical que ele. Assim, os simpatizantes das frentes, cujas convicções diferem apenas em grau daquelas das demais pessoas, de tal modo que eles jamais precisam estar conscientes do abismo que separa seu próprio mundo daqueles que de fato os rodeia.” pp. 136-7.
16 Id., Origens do totalitarismo, p. 506. “A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a ‘natureza’ do homem só é ‘humana’ na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não-natural, isto é, um homem.”
17 Ibid, p. 516. “o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza.”
107
dessemelhança sustenta-se na concepção de controle sobre a história. Arendt conta
que o autor de uma história ficcional tem domínio sobre seu texto, enquanto o
ator, na história real, não sabe exatamente o significado de suas ações. Por ora,
acreditamos que basta frisarmos que a ação refere-se à concretização da
pluralidade dos homens. Ao imaginar controlar as forças da história e coadunar o
movimento totalitário ao próprio movimento da história, Arendt sugere que o
totalitarismo elimina a possibilidade da ação e se sustenta pela criação de uma
história nos moldes ficcionais.
Richard Berstein acredita que a conexão entre os textos que compõem
Origens encontra-se na contraposição entre ação e necessidade histórica, e propõe
que essa temática perpassa toda a obra da autora. “Throughout her writings,
beginnig with, and even preceding The Origins of Totalitarianism, Arendt stress
the opposition between historical necessity and political freedom.”18 Ainda que o
autor tenha razão quando observa que essa oposição é fundamental na
compreensão de Origens e na própria obra de Arendt, nos parece problemática a
dimensão que o argumento toma na sua análise intitulada “Not history, but
politics.” A dificuldade reside no seguinte: embora Arendt de fato rejeite a
necessidade histórica e a idéia moderna segundo a qual a História é entendida
como um processo autônomo dotado de sentido próprio, cujo significado pode ser
definido de antemão, isso não constitui uma completa negação da noção de
história, como pode sugerir a leitura de Berstein que apresenta o embate como a
simples oposição entre história e política, ilustrando o conflito entre necessidade e
liberdade.
Entendemos que, se aparece uma oposição entre ação e história na análise
arendtiana dos totalitarismos, isso demonstra a fundamental ligação entre essas
duas instâncias. O totalitarismo exclui a ação em favor da história porque toma a
história num sentido muito específico de processo histórico. A ação só é contrária
à história quando essa última é concebida nos moldes das filosofias da história,
onde o sentido da história e seu fim podem ser visualizados. Arendt percebe que,
ao predizer o rumo da história, e, obviamente, colocar o sucesso do movimento
em comunhão com esse rumo, os movimentos totalitários acabam concebendo 18 BERNSTEIN, Richard., The origins of totalitarianism: not History, but politics, pp. 382-
383.“Por todos os seus escritos, começando com, e até mesmo, precedendo As origens do totalitarismo, Arendt enfatiza a oposição entre necessidade histórica e liberdade política.” Tradução livre.
108
uma realidade fictícia, dada a priori pelo pensamento, que rejeita a realidade
presente, passada e futura. A obstrução do futuro, que é antevisto na antecipação
teórica e enclausurado pela organização totalitária e pela existência dos campos, é
o que garante a tentativa da eliminação da ação, e torna factível a oposição entre
ação e história. Se Berstein indica que a verdadeira inimiga da ação política é a
filosofia da história, não propõe nada além da oposição para compreender a
história no pensamento aredtiano, de modo que a história em geral aparece como
hostil à ação como o título do seu trabalho faz crer. O que queremos sugerir é que
a oposição entre ação e história revela a íntima conexão entre as elas. Se a pré-
determinação da história interrompe a possibilidade da ação, a possibilidade da
ação está ligada à existência de uma história indeterminada. Ou seja, de uma
história que não possa ser prevista pelo pensamento ou pela teoria. Ao pressupor a
história como indeterminação ou imprevisibilidade, a autora permite-se a
coerência de indicar a novidade como momento chave no aparecimento da
história. Só podemos compreender como se combinam o fato do totalitarismo
aparecer como uma enorme novidade na narrativa arendtiana do Ocidente, e, ao
mesmo tempo, constituir-se como uma novidade que almeja excluir a
possibilidade da novidade, considerando que não se trata apenas da oposição entre
ação e necessidade histórica, mas da discrepância entre duas concepções de
história.
Retomemos as considerações da autora para avaliarmos a conexão entre
totalitarismo e dominação da história. Em suas palavras:
A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos – a explanação total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro. Em segundo lugar, o pensamento ideológico, nessa capacidade, liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer. Assim, o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis (...) O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade.19
Entender o sucesso da empreitada totalitária na perspectiva arendtiana
significa visualizar a ligação sui generis que o movimento estabelece entre
19 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 523.
109
ideologia e história. A ideologia aparece mais como a lógica do movimento, e o
movimento é o próprio movimento da história conforme previsto pelo
totalitarismo. Essa ênfase no movimento revela para Arendt a submissão ao
processo histórico, mas, segundo ela, aparece aos olhos dos adeptos do
movimento como um meio de se tornar importante historicamente, de realizar
algum feito ou ao menos fazer parte de uma realização grandiosa. Nesse sentido, a
ideologia do movimento totalitário casa-se bem com a superfluidade das massas,
cujas vidas seriam destituídas de sentido. Para Arendt, o interesse das massas pela
propaganda totalitária não é simplesmente uma questão de interesse econômico ou
social. A propaganda baseada na predição da história oferece às massas um lugar
no mundo e um sentido na vida – a participação no grandioso movimento da
história, que é o próprio movimento totalitário.
o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história, mesmo ao preço da destruição. (...) A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e seus ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser reduzida a qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual eles fazem parte.20
A pretensão desse acesso não se referia apenas ao fato de participarem do
movimento, mas indicava também a reescritura da história. Ao movimento
convinha não apenas se colocar como escolhido da história e apresentar suas
relações com as forças da história, como se seu sucesso fosse a realização de um
destino, mas ainda desautorizar os manuais de história em uso, sugerindo que toda
escrita da história é produto de determinados interesses. Arendt mostra que “A
finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a
história oficial como uma fraude, expor uma esfera de influências secretas das
quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma
fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo.”21 Essa
suposição é, para Arendt, um meio de transformar a factidade da história em 20 Ibid, p. 382 e p. 401 Arendt distingue massa, ralé e povo. Sobre a massa, ela sublinha o
anonimato. Do povo, ela destaca, a convicção. A ralé não tem nenhuma coisa, nem outra. Parece mais uma espécie de escória da humanidade, que sendo frustrada agarra sua única possibilidade de aparecer no mundo. Não sem razão, a ralé se impressiona com os líderes e tem a capacidade de idolatrá-los. Eles representam tudo o que ela gostaria de ser e não é. Tanto a ralé quanto as massas são fundamentais no aparecimento do totalitarismo.
21 Ibid, p. 383.
110
opinião. De modo que se possa sobrepor com preferências a distinção entre
verdade e mentira.
A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença entre verdade e mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita.22
Considerar a ligação do totalitarismo com o movimento da história – sua
predição e alteração significa perceber que tudo o que se encontra no caminho do
vislumbrado desenvolvimento será exterminado. Arendt destaca a importância da
eliminação política e social, que precede o extermínio físico, e sublinha que, ao
predizer a história e o futuro, o totalitarismo suprime teoricamente a existência da
pessoa para depois bani-la fisicamente. O caso exemplar é o de Trotski, que foi
literalmente “morto” na história. Mas o procedimento da exclusão teórica seria o
mesmo para todos os inimigos do movimento. O alvo da eliminação é variável e
condiz com a resolução de remover os empecilhos no caminho da realização
histórica. A existência dos campos sugere que ao totalitarismo “tudo é possível”
porque a manipulação ou criação da realidade torna-se acabada quando de fato se
‘altera’ a história, isto é, se extermina a parte da história para se submeter ao seu
movimento.
Precisamos destacar que o enredamento entrevisto por Arendt entre a
predição da história e a alteração da história – alteração que inclui a falsificação e
exclusão de fatos, tal como a exclusão de pessoas, ou seja, o extermínio físico –
que culmina com o totalitarismo no poder, é pressuposto a partir da distinção entre
o totalitarismo no poder e o período que o antecede. Apenas quando está no poder
o movimento tem a possibilidade de alterar e falsificar a história. Por isso, a
autora entende que o totalitarismo só estaria completo, ou seja, só seria realmente
total se seu poder se alastrasse pelo mundo todo. Essa separação é importante para
compreendermos também a diferenciação concebida pela autora entre elementos
totalitários e totalitarismo. Isso porque é possível encontrar na explicação
arendtiana afinidades entre o imperialismo e o totalitarismo. E, como notamos
22 Idem.
111
anteriormente, entre a própria perda de mundo moderna e o totalitarismo, que de
modo semelhante se sustenta na rejeição da realidade. Tal separação entre
elementos totalitários e totalitarismo, e mesmo a separação entre o movimento
totalitário e o totalitarismo no poder indicam a impossibilidade de confundirmos
totalitarismo e democracia. Ainda que possamos ler que “As tendências
totalitárias do macarthismo nos Estados Unidos também vieram à tona claramente
na tentativa de não apenas perseguir os comunistas, mas de forçar todo cidadão a
provar que não era comunista.”23; isso não significa que Arendt defenda a
equivalência entre democracia e totalitarismo.
Essas distinções são importantes no sentido de esclarecer a novidade e a
especificidade do totalitarismo. O que sustentamos é que a lógica da ideologia
atrelada à noção de “chave da história” são os elementos principais para entrever a
novidade do totalitarismo. A ideologia, o anti-semitismo, a superfluidade das
massas, o racismo são elementos que existem antes do totalitarismo e não são
propriamente totalitários. Arendt confessa que “A propaganda totalitária
aperfeiçoa as técnicas da propaganda de massa, mas não lhe inventa os temas.
Estes foram preparados pelos cinqüenta anos de imperialismo e desintegração do
Estado nacional, quando a ralé adentrou o cenário da política.”24
Se o caráter inédito do totalitarismo não exclui a conexão com os eventos
que lhe antecedem, isso é possível porque a autora vislumbra nesse movimento a
combinação dos velhos temas com a nova forma do totalitarismo. Devemos
sublinhar que para constituir seu conceito de novidade totalitária, Arendt observa
a novidade não apenas do totalitarismo – ainda que nesse caso, o totalitarismo é
que traga a novidade radical. Ocorre que ela também demarca uma mudança na
forma do anti-semitismo e do imperialismo. A novidade do totalitarismo é
precedida pela novidade do anti-semitismo e do imperialismo.
O anti-semitismo que aparece no totalitarismo não pode ser entendido
simplesmente como uma discriminação religiosa ou social, mesmo que sua
história remonte ao período medieval ou ao próprio aparecimento do judaísmo e
da sua doutrina do povo eleito. A transformação aparece num anti-semitismo que
não é ligado exatamente nem à xenofobia nem ao nacionalismo exacerbado.
23 Ibid, 40, n. 36. 24 Ibid, p. 400.
112
A novidade totalitária nesse caso é usar o anti-semitismo tradicional em
adequação à sua teoria do movimento da história. Devemos notar como a autora
constrói seu argumento entrelaçando o surgimento da novidade do anti-semitismo
moderno que se tornou ideológico com a novidade do anti-semitismo totalitário
que, segundo ela, se ligou mais ao movimento implícito na lógica ideológica que
ao conteúdo da ideologia, o qual tem a capacidade de movimentar paixões e
sentimentos. A questão é que os nazistas não parecem realmente acreditar que os
judeus sejam o mal da terra; não querem exterminá-los por puro racismo ou
porque sejam ativos politicamente. Note-se que Arendt não duvida de Eichmann
quando ele diz que não tinha nenhum ódio pessoal pelos judeus.25 A tentativa da
autora parece ser a de permitir que compreendamos como toda a novidade
totalitária se instalou sem que os homens envolvidos no movimento figurassem
como atores políticos. A dificuldade é entender o que move o totalitarismo se não
é a vontade dos líderes e muito menos a paixão, o ódio ou os interesses de seus
adeptos. Esse parece ser o ponto central da tese arendtiana, onde vemos que o que
move o totalitarismo é o próprio movimento.26 A terrível novidade, que leva os
homens a fazer o mal “quase sem querer”, a exterminar sem paixão, a matar sem
que haja culpa ou inimigo no sentido tradicional, aparece como:
Supremo desprezo pelas conseqüências imediatas e não a falta de escrúpulos; desarraigamento e desprezo pelos interesses nacionais e não nacionalismo; desdém em relação aos motivos utilitários e não a promoção egoísta do seu próprio interesse; ‘idealismo’, ou seja, a fé inabalável num mundo ideológico fictício e não o desejo de poder – tudo isso introduziu na política um fator novo e mais perturbador do que teria resultado da mera agressão.27
Essa novidade não teria sido possível se não arregimentasse elementos pré-
existentes. No caso dos judeus, a autora detecta como fator importante para terem
sido tomados como inimigos o fato de haver um anti-semitismo anterior ao
totalitarismo, cuja ideologia atingia as massas. Outro ponto importante na
objetivação do alvo judeu refere-se à idéia anti-semita segundo a qual havia um
25 Id., Eichmann em Jerusalém. 26 Canovan procura distinguir atores políticos em Arendt. “The paradox is while she
welcomed direct action by the people, she also feared and deplored a lot all actual cases of grassroots mobilizations.” In: CANOVAN, M., The people, the masses and the mobilization of power: the paradox of Hannah Arendt’s ‘populism’, p. 403. “O paradoxo é enquanto deu boas-vindas à ação direta pelos povos, ela igualmente temeu e lamentou muitos casos reais de mobilização das bases.” Tradução livre.
27 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 468.
113
plano judaico de dominação mundial. A falácia dos “Protocolos de Sião” aparece
como uma contraposição que justifica e legitima a realidade ficcional erigida pelo
nazismo. “o fato é que os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos
judeus e precisasse de uma contraconspiração para se defender.” Para Arendt, a
idéia de que os judeus tinham uma conspiração secreta para dominação do mundo
funcionou como realidade para os nazistas que erigiram seu sistema similar e
contrário ao suposto projeto judaico. 28
Na análise do imperialismo também é possível destacar o método de
diferenciação usado por Arendt para separar o imperialismo moderno de seus
possíveis ancestrais, tais como o imperialismo grego ou romano e a empresa
colonial do século XV. A autora sugere que o imperialismo do século XIX pode
ser caracterizado como o primeiro governo verdadeiramente burguês da história.29
Isso significa que apesar das revoluções modernas serem entendidas com razão
como revoluções burguesas somente agora o governo é regido pelos princípios
econômicos. Trata-se de um governo regido por comerciantes. Pode-se perceber
que muitos pontos destacados nesse estudo do imperialismo são semelhantes
aqueles que posteriormente seriam evocados n’ A condição humana para conceber
a modernidade.30 A política que sucumbe ao econômico e ao processo infinito de
acumulação de riqueza assinala o esquecimento da política como o espaço da
pluralidade e da participação dos homens no espaço público. Para Arendt, essa
política imperialista, não é de fato política, mas meramente expansão econômica.
28 Ibid. p, 412. A autora também mostra como as fábulas em torno dos judeus encontram
eco na própria concepção judaica de entender-se como povo eleito. Canovan também destaca esse ponto: “Arendt claims that totalitarianism movements succeded because they gave lost individuals the ‘sense of having a place in world’, and that they provided an alternative world based on fictions such as the Jewish conspiracy and the Aryan race.” CANOVAN, M., op cit, p. 408. Arendt reivindica que os movimentos totalitários foram bem sucedidos porque deram a indivíduos perdidos ‘o sentido de ter um lugar no mundo', e que forneceram um mundo alternativo baseado em ficções tais como a conspiração judaica e a raça ariana.” Tradução livre.
29 Arendt menciona a conhecida tese de Lênin sobre o “imperialismo” como último estágio do capitalismo, e acredita estar contrapondo-a quando propõe que o imperialismo não é o último estágio, mas o primeiro governo verdadeiramente burguês, cujos princípios políticos são puramente econômicos. Curioso notar que o argumento de Lênin também se origina dessa constatação do predomínio econômico. Arno Mayer, por seu turno, convocaria a pensar em outro sentido, que denomina político, a permanência das forças do antigo regime, e desvela uma hipótese radicalmente distinta onde concebe o imperialismo e a Primeira Guerra Mundial como resistência das forças tradicionais. MAYER, A. A força da tradição.
30 Taminiaux aponta essa semelhança entre Origens do totalitarismo e A condição humana. Analisando o prefácio da primeira edição comenta: “I will then try to detect in book itself the anticipation of several key topics articulated in ‘The Human Condition’”. In: Taminiaux, J., op cit, p. 424. “Eu tentei detectar no livro a antecipação de diversos tópicos e chaves articulados na ‘Condição Humana’”. Tradução livre.
114
Tal como notamos na passagem entre a supremacia do “homo faber”, para quem
os artefatos produzidos pelos homens ainda tinham valor, para o “animal
laborans”, quando o processo de fabricação se torna mais importante que o
produto final, o imperialismo funda-se na noção de progresso e de expansão e
refere-se à mesma situação na qual “a riqueza tornou-se um processo interminável
de se ficar mais rico.”31 No exame do imperialismo, fica mais evidente que n’ A
condição humana a separação entre a noção de progresso dos revolucionários do
século XVIII, que ainda se baseava na emancipação do homem, e o progresso que
se torna um sujeito e aparece como um processo infindável e irresistível ao qual
os homens sucumbem.32 Quando os homens, seus artefatos e seu capital perdem
valor, Arendt entrevê o aspecto de superfluidade que adquirem. Capital supérfluo,
de um lado, homens supérfluos, de outro, permitem a união que torna possível o
imperialismo. A superfluidade é um ponto comum entre imperialismo e
totalitarismo, embora não possamos inferir disso que o imperialismo seja a causa
do totalitarismo na análise traçada por Arendt.
Do mesmo modo, a autora examina o surgimento de um “mundo
fantasma” com o avanço da empreitada do imperialismo ultramarino. Tal
realidade se assemelha à concepção da realidade fictícia instaurada pelo
totalitarismo. Apesar da afinidade, Arendt não estabelece nenhum vínculo
determinante entre esses acontecimentos, como se a experiência fantasma na
África pudesse figurar como uma espécie de razão da instauração da realidade
fantasma do totalitarismo. No entanto, o encontro dos aventureiros- “subproduto
da sociedade civilizada” – com o ‘outro’ mundo de tribos e povos africanos
aparece em Origens como uma espécie de realidade experimental para o
totalitarismo. Ao comentar o caso dos bôeres, a autora analisa o contraste entre
natureza e história. O mundo dos nativos aparece como o mundo sem lei e sem
história. É claro que não se trata de pensar a própria história do continente
africano, mas a situação do ponto de vista do indivíduo europeu que se vê alheio
no novo mundo.33 Em Conrad, Arendt encontra a compreensão dessa experiência.
31 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 174. 32 Ibid. p. 173. Habermas prefere trabalhar com a distinção entre modernidade e
modernização. Tal distinção parece interessante, sobretudo, porque permite a diferenciação entre as possibilidades propostas nas revoluções modernas e um posterior momento de valorização do progresso. Ver O discurso filosófico da modernidade.
33 Tanto Berstein quanto Canovan mencionam essa abordagem arendtiana que exclui a história dos nativos.
115
Esse homem pré-histórico nos amaldiçoava, implorava ou dava boas-vindas? Quem poderia saber? Entre nós e o meio ambiente não havia qualquer entendimento; passávamos por eles como fantasma, cheios de espanto mas secretamente apavorados (...) O encontro com esse mundo “rodeados por uma natureza hostil, deparavam-se com seres humanos que, vivendo sem um determinado alvo para o futuro e sem um passado que incorporasse suas realizações, pareciam-lhes tão incompreensíveis como loucos num hospício.34
Essa sensação de ser um fantasma permite também a constituição de uma
realidade fantasma para esses europeus que se encontram agora num mundo sem
lei - ao menos sem as leis às quais deveriam se dobrar -, no qual podem realizar
suas fantasias, explorar e extorquir.
Se o anti-semitismo e o imperialismo figuram como Origens isso não quer
dizer que sejam causa do totalitarismo ou que já sejam de certo modo totalitários.
Para Arendt, o totalitarismo aparece como novidade radical. Nesse caso, como
poderíamos entender a busca arendtiana pelas Origens do totalitarismo? Qual a
relação do imperialismo e do anti-semitismo com o totalitarismo? Alguns autores
acreditam que o termo Origens é enganoso por remeter à noção de causalidade. A
própria Arendt se refere a essa problemática.35Acreditamos que Origens ainda é
um termo válido quando se destaca que não tem o mesmo sentido de causa.
Quando Arendt busca encontrar as Origens do totalitarismo almeja ter uma
compreensão sobre a possibilidade do fenômeno totalitário. Nesse sentido, a
apreensão das origens não aparece como uma determinação causal entre passado e
futuro, como se o imperialismo e o anti-semitismo tivessem produzido
inevitavelmente o totalitarismo.
A ligação entrevista por Arendt entre imperialismo, anti-semitismo e
totalitarismo não é de necessidade, mas de possibilidade. O imperialismo e o anti-
semitismo tornaram possível o aparecimento do totalitarismo, mas não impuseram
sua ascensão. Note-se que a análise arendtiana abre espaço para a própria
contingência da história e suas particularidades. Decerto houve imperialismo sem
anti-semitismo, e imperialismo sem totalitarismo em muitos lugares. Além disso,
é preciso sublinhar que a noção de origem implica a fundamental concepção 34 Ibid, p. 221. Quando se refere à ausência de história, a autora quer indicar que o
confronto com esses povos dos quais não se conhecia nenhuma história, permitiu aos europeus tomá-los como parte da natureza. Lemos que “O termo ‘raça’ só chega a ter um significado preciso, quando e onde os povos com história conhecida se defrontam com tribos das quais não têm nenhum registro histórico e que ignoram sua própria história.” Ibid, p. 222.
35 ARENDT, H., Reply to Voegelin, p. 78.
116
arendtiana acerca da separação entre causa e efeito. Na verdade, ao observar o
totalitarismo, a autora entrevê que há algo nesse evento que é de fato inexplicável.
A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. (...) Assim, deve ser possível, por exemplo, encarar e compreender o fato, chocante decerto, de que fenômenos tão insignificantes e desprovidos de importância na política mundial como a questão judaica e o anti-semitismo se transformaram em agente catalisador, primeiro do movimento nazista; segundo, de uma guerra mundial; e, finalmente da construção de centros fabris de morte em massa. Também há de ser possível compreender a grotesca disparidade entre a causa e o efeito que compunham a essência do imperialismo.36
Diante da assustadora realidade do totalitarismo, Arendt intui que o evento
inaudito ou o fato inédito não pode ser explicado completamente por nenhuma
causa, razão ou intenção. Há algo na realidade do acontecimento totalitário – e de
todo acontecimento - que não se deixa apreender. Esse algo é o próprio ineditismo
do evento que lhe caracteriza como novidade. A disparidade observada pela
autora entre as causas e os efeitos do totalitarismo indica não apenas que não há
uma conexão direta entre causas e efeitos, de modo que causas insignificantes
podem ser agentes catalisadores de grandes tragédias, mas também que o futuro
não pode ser compreendido diretamente pelo passado que o antecede. Por mais
que seja importante explicar as mudanças trazidas pelo imperialismo e as
possibilidade abertas pelo anti-semitismo moderno, isso não explica com certeza
por que aconteceu o totalitarismo.
Por surgir como um evento radicalmente novo, que não pode ser entendido
através dos modelos tradicionais de governo, o totalitarismo requer um conceito
‘novo’ e “a escolha de um termo inédito”. Ou seja, um novo meio de compreender
o evento, que parece se caracterizar como autoritarismo, ditadura ou fascismo,
mas se constitui como uma experiência diferente e singular. O problema é como
conceber a novidade com as categorias “velhas” do pensamento. Deve-se observar
que a novidade não advém da esfera do pensamento. Ao contrário, o totalitarismo
aparece como uma realidade singular, única, que obriga à renovação das idéias e
concepções tradicionais. Como nota Castoriadis:
36 Id., Origens do totalitarismo, p. 12
117
Está implícito na análise de Arendt o pressuposto de que nós enfrentamos aqui algo que não apenas transcende as "teorias sobre a história" herdadas, mas transcende qualquer "teoria". Na verdade, o totalitarismo é, a esse respeito, o exemplo monstruosamente privilegiado e extremo daquilo que é verdade para toda a história e para todos os tipos de sociedade.37
Tal observação indica que a realidade da qual atos e eventos emergem é o
âmbito original da novidade. É na história que se revela o imprevisível. Por isso, a
autora insiste na diferenciação entre fim da tradição e ruptura com a tradição.
Apenas um acontecimento, ou seja, alguma coisa da ordem da ação, poderia
esfacelar a tradição fundada na superioridade do pensamento. O pensamento só
pode inverter teoricamente as hierarquias tradicionais, mas não tem a capacidade
de esfacelar a tradição justamente por ser pensamento. Aqui encontramos um
argumento fundamental para entender o pensamento arendtiano e sua teoria da
história. A teoria não pode indicar ou orientar a realidade porque a realidade
guarda um caráter imprevisível e o que acontece de realmente novo não pode ser
pensado pelas categorias usuais de pensamento. A imprevisibilidade dos fatos e a
possibilidade da novidade é o que sustenta a proposição de Arendt acerca da
autonomia entre ação e pensamento. Veremos ainda que a relação entre teoria e
novidade ou entre pensamento e ação coloca em xeque a conexão direta entre
passado e futuro. A novidade surge como uma ruptura com o processo
subseqüente e por isso não pode ser explicada por modelos veiculados pela
tradição do pensamento. Nesse mesmo sentido, distinguiremos a novidade
revolucionária analisada pela autora. Por ora, devemos observar que a dificuldade
de lidar com a novidade aparece não apenas para os historiadores que
posteriormente tentam entender o que aconteceu, mas foi também, decisiva para o
julgamento equivocado das pessoas envolvidas no evento. Os próprios
contemporâneos do totalitarismo não entendiam direito o que se passava. Nesse
sentido, também podemos compreender a afirmativa, segundo a qual “as ‘pessoas
normais’ se recusam a crer que tudo seja possível.”38 Contando com seus
tradicionais esquemas e conceitos de pensamento não era possível entender a
37CASTORIADIS, C., Os destinos do totalitarismo. In: ____. Os destinos do totalitarismo e
outros escritos. 38 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 491.
118
novidade que o totalitarismo representava. Não se imaginava a alteração da
história que estava em jogo.
O chocante que vêm à tona com o absurdo totalitário não é simplesmente o
absurdo do totalitarismo, mas o absurdo de todo inaudito. Se falássemos com os
termos de Luc Ferry, poderíamos dizer que não é o totalitarismo que é irracional –
sua empresa, aliás, é perfeitamente racional e organizada de modo técnico -, mas
seu aparecimento, e suas conseqüências, que não podem ser equiparadas às suas
causas é que parecem ser irracionais. O problema é que, nesse caso, a
“irracionalidade” não seria uma especificidade do totalitarismo, mas a própria
lógica da história. A irracionalidade estaria ligada ao aparecimento do inaudito, e
estaria implícita na realidade em si mesma; em todo acontecimento que surge no
mundo. Mas Arendt não parece deixar margem para supormos que a história é
irracional. De certo que ela recusa o racionalismo absoluto no sentido hegeliano
donde “todo real é racional”, considerando as conseqüências que tal abordagem
pode acarretar, sobretudo no que se refere à determinação antecipada da história.
Não obstante, o aspecto inédito no qual se funda a realidade, qual seja, a
possibilidade de advir a novidade, não deve caracterizar-se como irracionalidade.
Até porque a realidade é justamente aquilo que é partilhado por uma pluralidade
de homens, aquilo que pode ser posto em palavras. Arendt sublinha a coerência
lógica sob a qual a realidade fictícia do totalitarismo se sustenta. Em
contraposição, defende que a realidade na qual se desvelam os fatos em sua
contingência é aparentemente menos coesa. Sua coerência não é como a ficcional,
onde o sentido é traçado de antemão. Não obstante, o sentido ficcional predito
pelo totalitarismo tem sua coerência sempre perturbada pela contingência do
futuro. Desse modo, Arendt sustenta que a realidade acaba deixando entrever um
sentido que não está pré-determinado, que acaba sendo mais coerente que o
sentido previsto de antemão, que não se adéqua às novidades imprevistas.39
Para entender a originalidade totalitária precisamos notar em que medida
os homens estão envolvidos no empreendimento dessa novidade. A questão é que
a novidade do totalitarismo parece ser entrevista mais do ponto de vista histórico
que da perspectiva dos atores políticos. Não que os atores não visualizassem a
empresa monumental na qual estavam se inserindo com o intuito de transformar a
39 Retomaremos essa discussão sobre o sentido da realidade no próximo capítulo, onde
também devemos procurar examinar mais especificamente a noção arendtiana de ficção.
119
história. Ocorre que Arendt, ao defender que essa “novidade” histórica significava
para os atores menos a possibilidade de iniciar algo novo no mundo, e mais a
necessidade de se adequar ao rumo pré-determinado da história, retira a
competência da ação das mãos das pessoas envolvidas no totalitarismo. Assim,
observamos que a autora consegue entrever a maior novidade da história do
ocidente, conforme a sua narrativa dessa história, sem que precise dar crédito à
ação política daqueles que se empenharam nessa criação. Entendemos que Arendt
compõe esse quadro do aparecimento da novidade sem ação enfatizando a
imobilidade dos atores e a valorização do processo da história.
Toda a empresa totalitária concebida por Arendt se funda menos na
vontade, nos interesses e paixões dos atores políticos que no movimento
autônomo da história. Veja nesse sentido o argumento sobre a falta de convicção
dos membros do partido. Ainda que seja possível entender que abrir mão de agir e
corroborar para o desenvolvimento das forças preditas da história está relacionado
ao interesse de se tornar importante, ascender socialmente ou encontrar um
sentido na vida, a autora insiste em destacar que
a forma totalitária de governo muito pouco tem a ver com o desejo de poder ou mesmo com o desejo de uma máquina geradora de poder, com o jogo do ‘poder pelo amor ao poder’ que caracterizou os últimos estágios do domínio imperialista. (...) O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).40
A anulação da ação pode ser entrevista principalmente na adesão por parte
dos atores ao movimento, que é, segundo a perspectiva arendtiana, uma submissão
ao processo histórico. Nesse sentido, até mesmo a autoridade do líder acaba
enredada pela força maior da história. A diferença entre a hierarquia autoritária e
totalitária revela que o líder totalitário não está fora e acima do movimento. Ao
40 Ibid, p. 526 e 456-7. Para Arendt, a falta de convicção se revela quando o mundo fictício
é destronado e não restam entusiastas do programa nazista. Ela não trabalha com a possibilidade de que a derrota histórica dos totalitarismos faça seus adeptos se esconderem e reverem seus discursos. Também não aborda o fato do suicídio de diversos líderes no sentido de adesão ao programa. Considerando a perspectiva arendtiana, essas mortes aparecem como fuga da responsabilidade. Tal leitura aparece ainda no caso de Eichmann. A autora não sugere que ele era um mentiroso, mas, ao contrário, acredita que realmente não tinha ódio pessoal pelos judeus e contava com a leitura moral kantiana. Traço marcante na interpretação arentiana do totalitarismo, que sustenta seu argumento sobre a novidade é justamente esse. A novidade metodológica é que Arendt não rejeita o depoimento dos nazistas, ao contrário, para entender sua nova lógica toma-os ao pé-da letra.
120
contrário, ele é seu núcleo de sustentação. Sua figura atinge todas as camadas da
hierarquia e “o desejo do Führer é a lei do partido”, mas também se encontra
subjugado pelo movimento e, ao profetizar a história e pôr-se à disposição de suas
forças, precisa respeitar a coerência do processo, onde ‘o direito é aquilo que é
bom para o movimento’.41
Arendt percebe que o líder liga o movimento ao mundo real, pois se
constitui como sua figura pública mais eminente. Desse modo, o mundo não-
totalitário supõe que ele é o responsável pelo movimento, que ele o controla
absolutamente e “sabe o que está fazendo”42 Mas esse é mais um equívoco
propiciado pelos velhos esquemas teóricos. Ocorre que o mundo exterior julga o
totalitarismo sem considerar a sua novidade e toma-o como mais um caso de
autoritarismo ou ditadura. O que leva a autora a argumentar que os líderes
totalitários não são os velhos manipuladores maquiavélicos, que comandam tudo à
sua vontade por trás dos panos, é a constatação de que o líder totalitário não passa
a ser a fonte da autoridade. A novidade é que o movimento funciona como a
própria encarnação da lei. “o totalitarismo introduziu um princípio inteiramente
novo no terreno das coisas públicas que dispensa inteiramente o desejo humano de
agir, e atende à desesperada necessidade de alguma intuição da lei do movimento,
segundo a qual o terror funciona e da qual, portanto, dependem todos os destinos
pessoais.” 43
Como poderíamos entender essa novidade do totalitarismo em consonância
com a teoria arendtiana da ação? Se constatamos que ação enquanto início de
alguma coisa nova no mundo não é o mesmo que a ficção totalitária, onde está a
diferença crucial? Se na pólis, a autora vislumbra a conexão entre a capacidade
41 Ibid, p. 424; 461. 42 Ibid, 425. Margaret Canovan fala desse paradoxo do totalitarismo se constituir como
novidade, mas não ser a novidade da ação. “In other words, totalitarianism illustrated the human capacity to begin, that power to think and act in ways that are new, contingent, and unpredictable that looms so large in her mature political theory. But the paradox of totalitarian novelty was that is represented an assault on that very ability to act and think as unique individual. CANOVAN, M. The Cambridge companion to Hannah Arendt, p. 27. “Em outras palavras, o totalitarismo ilustra a capacidade humana para começar, o poder para pensar e agir de modo novo, contingente e sem precedents que se aproxima-se em garnde medida da sua teoria política madura.” Tradução livre.
43 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 520. Para Arendt, o totalitarismo se difere dos governos fundados na lei positiva porque interrompem a discrepância entre a fonte da lei (a autoridade) e a lei. Essa temática também aparece na discussão sobre a revolução, que veremos adiante, onde é retomada para diferenciar a revolução francesa da americana. Segundo ela, o totalitarismo “Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei.” Ibid, p. 515.
121
humana de agir e a possibilidade de iniciar algo novo no mundo, no caso do
totalitarismo o surgimento da novidade não está relacionado a essa competência
humana, representando, ao contrário, a abdicação e a submissão da liberdade do
homem. Em outras palavras, ainda que promova a novidade, o membro do partido
e nem mesmo o líder podem ser considerados homens de ação. Nesse sentido,
também não convém compreender o totalitarismo como a extrema realização da
vontade. Como se o homem pudesse de tudo dispor e dominar. É certo que Arendt
entrevê a enorme disposição do totalitarismo para alterar a história e erigir uma
realidade fictícia na qual “tudo é possível”, mas parece que os atores que colocam
em andamento essa empresa acabam enredados no processo do movimento. Ao
predizerem a história e criarem uma realidade baseada na mentira, na perda do
mundo e na alteração dos fatos, os ‘atores’ deixam de agir para comportarem-se
de acordo com o previsto. Não há mais abertura para pluralidade porque há uma
única opinião, tal como não existe espaço para a novidade, pois o futuro está
decidido de antemão. Se é possível encontrar um impulso criativo no
totalitarismo, como destaca Derrida quando compara a essência comum da ação e
da mentira, vemos que esse impulso encerra a si mesmo ao erigir uma realidade
falsa cujo desígnio é conhecido teoricamente pelos homens mesmo antes de
adentrarem a esfera da vita activa. O problema é que esses homens, mesmo que
tenham se colocado ao serviço das forças da história ou da natureza acabaram
‘fazendo’ história. Ou seja, mesmo que tenham se enredado na realidade fictícia e
criado um regime no qual a liberdade foi suprimida eles foram livres para criá-la.
Sustentamos que a perspectiva arendtiana apóia-se na idéia, segundo a
qual, a equiparação da vontade ao destino histórico acaba promovendo a própria
perda da realidade da história e a possibilidade da ação. De modo que, em termos
lógicos, é possível concluir que o homem que faz história à sua vontade não age e,
conseqüentemente, não “faz” história alguma, mas comporta-se de acordo com a
teoria imaginada na antecipação. Assim, o totalitarismo aparece como um feito
que apesar de deixar atrás de si um dos maiores ‘feitos’ da história ocidental, que
é a ruptura de sua continuidade, não trata de atores ou da construção de um espaço
político comum no qual a pluralidade possa se realizar. A novidade surge, senão à
revelia dos atores, impondo-se contra a ação. Entrevisto desse modo, o
totalitarismo só aparece como novidade e inaudito pela tentativa de eliminar a
própria possibilidade da novidade.
122
4.2. Diante da novidade: o caso dos revolucionários modernos
Para ampliar o entendimento do fenômeno da novidade na obra arendtiana
e o seu significado para a sua compreensão da história, trataremos de sua teoria
acerca das revoluções modernas. Acreditamos que na comparação entre o
surgimento da novidade revolucionária na América e na França, Arendt elucida
historicamente a temática da novidade, pois é nesse texto que a novidade aparece
claramente como uma edificação promovida por atores políticos.
A teoria arendtiana sobre a revolução figura como importante referência
no rol das obras adotadas pelos historiadores. Além de tratar de temática
fundamental na história, a abordagem da autora permite um questionamento não
apenas da revolução, mas ainda sugere uma leitura particular da modernidade.
Inclusive, distancia-se da própria versão de modernidade que encontramos n’ A
condição humana, onde o significado da ‘perda do mundo’, e do esquecimento do
político são enfatizados. Apesar da notoriedade, não é comum encontrar quem
concorde com o argumento central dessa obra que relega a Revolução Francesa ao
segundo plano associando-a aos interesses sociais, e exalta a experiência política
na Revolução Americana. O livro de Arendt, Da revolução, publicado em 1962,
com apoio da Fundação Rockefeller, “sob os auspícios do programa Especial
sobre a Civilização Americana”44, pode ser visto como uma elevação do
americanismo no contexto de guerra fria. A mesma acusação é lançada contra
Origens do totalitarismo onde a autora critica o regime de Stálin. Se foi possível
acreditar que, num mundo dividido entre duas grandes potências, acusar o
totalitarismo soviético era defender o capitalismo liderado pelos Estados Unidos e
seu estilo de vida moderno fundado no desenvolvimento da técnica, o
aparecimento d’ A condição humana deixou evidente que a questão em jogo no
totalitarismo implicava a própria modernidade como um todo. E Arendt não
deixou de apontar a existência de elementos totalitários nas democracias
ocidentais. Fato é que, apesar do MacCarthismo, de Nixon e da guerra fria, os
Estados Unidos parecem ter mantido uma tradição de liberdade, principalmente
44 Como indica Arendt nos Agradecimentos do livro.
123
no que se refere à liberdade de expressão. A perspectiva arendtiana, no entanto,
não demonstra a intenção de simplesmente exaltar a América, embora acabe por
destacar a grandeza herança da experiência política dos “Pais Fundadores”.
Para nosso trabalho de compreender a concepção de história arendtiana, o
Da revolução aparece como texto fundamental, onde se desenvolve o exame da
ligação entre o passado e o futuro propiciado pelo advento da novidade
revolucionária. Na tese famosa e central sobre a “derrapage” da Revolução
Francesa que perde o foco político e se volta para a reivindicação social,
acreditamos que está explícita a concepção de modernidade e a interpretação da
história defendida por Arendt. A Revolução Francesa, que consta como a grande
revolução moderna nos anais de história, evoca não apenas a imagem da
revolução, mas também a da modernidade. Para Arendt, nem a Revolução
Gloriosa, na Inglaterra, nem a Revolução Americana alcançaram a notoriedade da
Revolução Francesa quando se trata de evocar o sentido revolucionário. Quanto
ao evento da independência nos Estados Unidos, inclusive, a historiografia ainda
se questiona sobre a validade de considerá-lo como uma revolução.45
A argumentação arendtiana arregimenta-se para mostrar que essa
equivalência entre revolução e revolução francesa, que permite ao processo
revolucionário francês ser tomado como “exemplo” de revolução e paradigma
para atestar a existência da revolução em outras situações, deve-se ao seu aspecto
de irresistibilidade, que, por sua vez, é íntima da noção de modernidade como um
processo autônomo. A irresistibilidade detectada por Arendt refere-se à
irrevogabilidade do movimento revolucionário, que uma vez em curso parece ser
tomado por forças próprias e necessárias.
Na busca pelo aparecimento da palavra revolução em sentido moderno, a
autora encontra a cena do diálogo entre Luís XVI e o duque La Rochefoucauld-
Liancourt na noite da queda da Bastilha, no qual o duque caracteriza o movimento
como uma revolução, contrapondo a pergunta do rei que imaginava tratar-se de
uma revolta. Segundo Arendt, “aqui, talvez pela primeira vez, a ênfase deslocou-
se inteiramente do determinismo de um movimento giratório cíclico para a sua
irresistibilidade. O movimento ainda é visto através da imagem dos movimentos
45 Arendt sugere que a associação entre revolução e libertação social é tão forte que leva a
supor não ter havido revolução na América. Ibid, p. 20.
124
das estrelas, mas o que é enfatizado agora é que está além do poder humano detê-
lo, e, como tal, é uma lei em si mesma.”46
No caso da Revolução Francesa, essa irresistibilidade é representada pela
massa de pobres que teriam forçado a entrada no mundo político, indicando a
ausência de controle sobre o movimento da revolução. Quando sublinha a
‘derrapage’ da revolução Francesa que se vê arrastada para o problema social,
Arendt está mostrando que a questão da revolução deixa de ser a vigência da
liberdade e a demanda da instauração da república, e passa a ser resolução da
libertação da miséria, a seu ver, um ponto pré-político. Mas o que está em jogo
com a noção de irresistibilidade é não apenas o aparecimento das massas e da
miséria no cenário político, mas a caracterização do próprio processo
revolucionário como curso irresistível e irrevogável dos eventos. O turbilhão da
massa indica o próprio turbilhão do processo revolucionário, que será entendido
como o processo histórico em si. Tal noção ficou intrinsecamente associada à
concepção moderna de revolução e constitui a base do moderno conceito de
história, cuja versão mais bem acabada surge para Arendt com a “Filosofia da
História” de Hegel. A autora sugere que essa obra é a “conseqüência de maior
alcance da Revolução Francesa”.47
Se em ambos os processos revolucionários, a idéia de irresistibilidade é
importante para compreender o surgimento da novidade, o conceito tornou-se
intimamente ligado ao curso revolucionário na França, onde os homens
surpreendidos pela novidade teriam sido arrastados por uma força maior, que
passou a ser identificada como “a força da História e da necessidade histórica”.48
Deve-se notar que o caráter de irresistibilidade que tomou o processo
revolucionário francês não aparece no início da revolução, quando se imaginava
restaurar a ordem. Apenas com a inesperada insurreição popular, ficou evidente
que os objetivos e intenções dos primeiros homens da revolução, cujo
entendimento ainda equacionava revolução e restauração, sucumbiram ao curso
dos eventos.49 Para Arendt, essa corrente subterrânea que toma conta do rumo da
46 Ibid, p. 38. 47 Ibid, p. 41. 48 Idem. 49 Para compreender a novidade da revolução, a autora busca mostrar a diferença no uso
moderno da palavra. Arendt conta que, originalmente, revolução significava restauração. Tratava-se de um conceito da astronomia que indicava o movimento natural e cíclico, eternamente repetido pelos astros. “o movimento regular, sistemático e cíclico das estrelas, o qual, era visto que todos
125
revolução francesa não desponta nos eventos da revolução americana. Vejamos
como a autora marca essa distinção entre o caso francês e americano. Referindo-se
inicialmente à revolução na França, ela percebe que:
O que apareceu com mais nitidez nesse espetáculo foi que nenhum dos participantes podia controlar o curso dos acontecimentos, e que esse curso tomou uma direção que pouco ou nada tinha a ver com os objetivos e metas intencionais dos homens que, pelo contrário, se viam obrigados a submeter sua vontade e objetivos à força anônima da revolução, se é que queriam realmente sobreviver. (...) Contudo, precisamos apenas lembrar dos rumos da Revolução Americana, onde aconteceu exatamente o oposto, e recordar o quanto era forte o sentimento de que o homem é o senhor de seu destino, que impregnava todos os seus atores, pelo menos no que diz respeito ao governo político, para entender o impacto que o espetáculo da impotência do homem em face do curso de sua própria ação deve ter tido.50
O que queremos destacar é que a distinção arendtiana entre a revolução
francesa e a revolução americana baseia-se na premissa segundo a qual a
revolução americana realiza a experiência política plena, enquanto a revolução
francesa ‘perde’ o rumo político e é arrastada pelo processo histórico. É nesse
sentido que podemos entender a separação entre a submissão às forças autônomas
e irresistíveis da história, e a ação política promovida pelos homens, que não se
deixam levar pelo movimento independente da história, mas influenciam, eles
mesmos, esse movimento.
Ao menos duas questões importantes para o nosso contexto emergem
dessa diferenciação. A primeira refere-se à especificidade da realização do
político na revolução americana, que permite à autora sublinhar a notoriedade
desse evento. Considerando que a extraordinariedade da revolução americana é o
aparecimento da liberdade, tal como vislumbrado na pólis grega, parece
necessário cogitar se a história em Arendt não se apresenta como uma repetição
do mesmo. Outro ponto que precisamos considerar nessa distinção entre as
revoluções é a relação entre ação e história. Fica claro que na revolução americana
está em jogo a ação dos homens, em contraposição à determinação da História,
que emerge como curso autônomo na Revolução francesa. Encontramos essa
oposição também na discussão de “Origens”, onde vimos a relevância da noção de
processo para o argumento sobre a instituição do totalitarismo como uma
sabiam que não dependia da influência do homem e que era, portanto, irresistível, não era certamente caracterizado nem pela novidade, nem pela violência.” Ibid, p. 34.
50 Ibid, p. 41.
126
realidade fictícia baseada no movimento das forças da história. Ao visualizarmos
a mesma temática do processo autônomo da história no caso da Revolução
Francesa, devemos notar que a irresistibilidade também enreda os homens, e os
submete ao movimento histórico, embora isso não signifique que o terror
revolucionário francês seja equivalente ao terror totalitário, pois no totalitarismo a
história autônoma era pré-determinada. Nesse quadro, em que observamos a
relação ator-história na revolução americana, na revolução francesa e no
totalitarismo, configuram-se três perspectivas. Na revolução americana, os
homens agem e edificam a novidade através da fundação da república. Na
revolução francesa, os atores deixam-se levar pela irresistibilidade da História e
não se posicionam frente à novidade. No totalitarismo, além da submissão às
forças da história, concebe-se a pré-determinação do seu movimento para a
criação de uma realidade fictícia que pretende eliminar a possibilidade da ação.
Quando diferencia a Revolução Americana da Francesa, contrapondo a
tradição de hegemonia desse último episódio, Arendt não pretende negar o
atributo revolucionário do evento francês. Quer mostrar como a noção de
revolução ficou presa à idéia da irresistibilidade, a ponto de evocar mais o
processo revolucionário que uma mudança original do curso dos eventos. Isso não
quer dizer que o caso francês não possa ser considerado uma revolução. A autora
não deixa de caracterizar a revolução francesa como uma revolução, atribuindo-
lhe caráter de novidade. No entanto, observa que os revolucionários franceses não
souberam aproveitar o aparecimento da novidade. Não tiveram capacidade de
lidar com o aspecto inédito da novidade para tornarem-se como os revolucionários
americanos “senhores dos seus destinos”. Importa-nos observar como a autora
sugere a novidade de ambas as revoluções ao mesmo tempo em que sublinha a
ação dos americanos e a submissão dos franceses frente à novidade. O que
precisamos compreender é como o surgimento da novidade relaciona-se com a
ação dos atores, e de que forma essa conexão torna-se histórica. Ao considerar o
caráter de novidade em ambas as revoluções e distinguir as reações dos
revolucionários diante da novidade, Arendt indica que há algo na novidade que
irrompe de forma contingente e independente das intenções dos atores. Inclusive,
ela sublinha que em nenhum dos lados do Atlântico almejava-se fabricar a
novidade, sugerindo que tal ruptura não surge como realização da vontade dos
revolucionários.
127
Pode-se notar que, já, na introdução do livro, o intuito arendtiano ao
comentar o legado do século XX, marcado irrevogavelmente pelas guerras e
revoluções, é separar esses dois tipos de violência. A característica fundamental
nessa diferenciação é a modernidade das revoluções e sua relação com o
aparecimento da liberdade. “as guerras se incluem entre os mais antigos
fenômenos do passado de que se tem registro, ao passo que as revoluções, em seu
sentido próprio, não existiam antes da idade moderna. (...) Contrariamente à
revolução, o objetivo da guerra, apenas em raros casos, estava ligado à noção de
liberdade”.51
Arendt não nega que pode haver proximidade entre guerras e revoluções e
considera que as revoluções muitas vezes começam com guerras ou terminam em
guerras. O ponto comum entre guerras e revoluções é o uso da violência. O que as
distingue é surgimento da novidade e a instauração da liberdade. Segundo Arendt,
as revoluções não devem ser compreendidas como meras mudanças, pois se
caracterizam- pelo aparecimento do “inteiramente novo”.52 Se antes da
modernidade existiam lutas, guerras e mudanças políticas acompanhadas de
irrupções violentas, a autora acredita que essas eram ainda transformações
diferentes das revoluções porque “As mudanças não interrompiam o curso daquilo
que a Idade Moderna passou a chamar de História” 53
O ponto importante é compreender o caráter de novidade que as
revoluções apresentam. A autora indica que a novidade das revoluções modernas
está ligada à introdução de um “novo princípio”. Retomaremos suas proposições
para entrever em que medida esse novo princípio vêm à tona por intervenção das
ações humanas. Além disso, também é preciso avaliar o caráter dessa novidade.
Trata-se de uma novidade absoluta, que se apresenta como um ineditismo segundo
o qual se visualiza uma ruptura na continuidade da história ou de um “novo
princípio”, que representa menos uma experiência inédita que uma nova
combinação histórica?
A idéia de que as revoluções modernas introduzem uma ruptura histórica
fundamental a partir da qual a própria concepção de história se reorienta em
direção ao
51 Ibid, p. 10 52 Ibid, p.17. 53 Idem.
128
futuro, abdicando da experiência passada, está intimamente ligada à consciência
da novidade reivindicada pelos homens modernos.
Habermas enfatiza que a modernidade se sustenta na reflexão concretizada
pela consciência histórica, que permite o desenvolvimento de sua auto-
normatividade. Por conceber a si mesmo como novidade, a era moderna abdicou
de sua sustentação no passado histórico e precisou fundar suas próprias origens.
“a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época seus
critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.”54
Nesse sentido, Reinhart Koselleck explica o ineditismo dos tempos modernos
através da imagem da separação entre o “campo de experiências” e o “horizonte
de expectativas”.55 O autor sugere que a modernidade torna ultrapassada a noção
de continuidade histórica vigente na perspectiva da “História mestra da vida”, que,
pelo menos desde Cícero, funda-se na concepção segundo a qual o passado pode
orientar o futuro. Desde então a história pôde ser entendida como o singular
coletivo que designa um processo único dotado de sentido autônomo.56 Essa
noção de processo está intimamente relacionada à concepção de progresso e à
expectativa de um por-vir eterno.
Comumente se entende que um dos pontos fortes da modernidade é a
capacidade humana de criar o novo. A própria modernidade se entende desse
modo e se desligando dos valores tradicionais, imagina se auto-fundamentar. A
idéia da revolução de inovar o calendário e começar a marcar o tempo a partir da
irrupção revolucionária indica essa auto-sugestão. Justamente por se deparar com
a construção da novidade as revoluções têm que responder pela fundamentação do
novo começo.
Ocorre que a necessidade de legitimidade da modernidade que se vê
desamparada da tradição, permite o soerguimento da História em sua totalidade
como fundamentação dos novos tempos. Arendt observa que a nova concepção de
História, embora estabeleça o descrédito da consideração cíclica, segundo a qual o
passado legitima e guia o futuro, “longe de começar com um novo princípio,
apenas recaiu num estágio diferente do seu ciclo, seguindo um curso pré-ordenado
pela própria natureza dos acontecimentos humanos, e que era, portanto, imutável 54 HABERMAS, J., O discurso filosófico da modernidade, p. 12. 55 Koselleck, R., Futuro passado, p. 319. 56 Koselleck apresenta também em seu Crítica e crise a conexão entre a movimentação
revolucionária e a crise política.
129
em si mesmo.”57 A possibilidade de considerar a História uma totalidade permite
que a “experiência” deixe de ser transmitida pelo passado e possa se revelar no
processo histórico em si mesmo. A consciência de se saber novidade abre aos
modernos a possibilidade de tomar a história como uma totalidade a qual pode ser
entrevista unicamente pelo excepcional presente moderno. Tal concepção dos
novos tempos valida a associação entre consciência histórica e filosofia da
história. “Koselleck mostra como a consciência histórica, expressa no conceito de
‘tempos modernos’ ou ‘novos tempos’, constituiu uma perspectiva para a filosofia
da história: a presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a partir do
horizonte da história em sua totalidade.”58 As considerações de Arendt, de certo
modo, também se encaminham nesse sentido, de observar que a novidade
instaurada pela revolução sucumbe às filosofias da história. Se permanecer presa a
uma totalidade de sentido que pode ser vislumbrada pelo filósofo, a História
subsume novamente a ação ao conhecimento, embora a origem da autoridade
tenha se transferido teoricamente do passado para o futuro.59
O problema da auto-fundamentação é um dos paradoxos da modernidade,
que se vê livre para se sustentar por si mesmo, mas permanece carente de
encontrar sentido para sua nova liberdade. A consciência histórica de se entender
livre encontra-se num beco de onde sai ora para o fim da história como no caso
hegeliano, ora para o progresso sem fim, vislumbrado por Kant. O certo é que a
impossibilidade de recorrer aos firmes pilares da tradição e suas concepções
absolutas jogam a modernidade no olho do furacão desencadeado pelo processo
que ela mesma abriu. Habermas esboça esse embaraço e apresenta a solução
baudeleriana para o impasse da modernidade. “o ponto de referência da
modernidade torna-se agora uma atualidade que consome a si mesma, custando-
lhe a extensão de um período de transição (...) O presente não pode mais obter sua
consciência de si com base na oposição a uma época rejeitada e ultrapassada, a
uma figura do passado. A atualidade só pode se constituir como o ponto de
intersecção entre o tempo e a eternidade.”60
57 ARENDT, H., Da revolução, p.17. 58 Ibid, p.10. 59 Apesar de apontar a problemática das filosofias da história Arendt faz questão de
distinguir Hegel de Marx, entendendo que apenas para o segundo, a possibilidade de se vislumbrar o significado da totalidade da história funciona exatamente como experiência.
60 Habermas, J., op cit, p.14.
130
Se, para Habermas, Baudelaire ainda procura contar com o absoluto da
eternidade para resolver o enigma da transitoriedade moderna, estabelecendo a
conexão entre o presente e o eterno, na atualidade da obra de arte, o autor
descobre em Benjamin outra possibilidade de estabelecer a fundamentação da
modernidade, mantendo aberta a potência da novidade. Habermas acredita que
Benjamin retoma a idéia de atualidade para dar-lhe outro sentido, o qual se trata
de “retraduzir essa experiência estética fundamental em uma relação
histórica.”61O tempo-presente pela atualização do passado teria a capacidade de
interromper o continuum da história e introduzir significado no tempo
“homogêneo e vazio”, que tornou a novidade mero processo. Nessa noção de
atualização, Benjamin estaria recuperando a competência da novidade de se auto-
fundamentar, e, desse modo, resolvendo a equação da ligação entre passado e
futuro.
Entendemos que Habermas tem razão quando detecta a tentativa
benjaminiana de responder à dificuldade moderna de auto-fundamentação, que
não é outra senão a própria dificuldade de legitimação e orientação advinda da
ruptura com o passado e do conseqüente enigma do progresso que devora a
potência do novo num infinito processo de superação. Certo é que Benjamin
vislumbra na sua noção de atualização a possibilidade da combinação entre futuro
e passado, preservando o vigor da novidade. Não discutiremos aqui a validade de
tal proposição. Rainer Rochlitz questiona em vários pontos o projeto e destaca a
permanência da perspectiva messiânica de Benjamin, enquanto Habermas surge
como entusiasta dessa alternativa.62 Sem omitir a influência benjaminiana sobre a
obra de Arendt, nos deteremos à tentativa de elucidar sua compreensão da
novidade através da sua leitura das revoluções modernas.
O que precisamos entender é como a autora entende a novidade
revolucionária já que não a aborda nos termos que tradicionalmente entendemos a
modernidade, como uma ruptura radical entre passado e futuro, mas, ao contrário,
mostra como o revolucionários evocam experiências passadas para erigir sua auto-
fundamentação, sem que isso caracterize alguma manifestação de nostalgia ou
conservadorismo. Na análise arendtiana das revoluções visualizamos desenvolver-
61 Ibid, p. 17. 62 ROCHLITZ, R., O desencantamento da arte. p.348-9.
131
se um sentido singular da novidade, que tenta preservar a experiência do novo,
mesmo quando indica a necessidade da fundação.
Para compreendermos essa experiência nova e o caráter de sua novidade é
necessário examinar o que a autora quer dizer quando associa a novidade menos
ao novo absoluto e mais à nova experiência de ser livre.
O que a revolução trouxe à luz foi essa experiência de ser livre, e essa foi uma experiência nova, embora não na História do mundo ocidental – foi bastante comum na Antigüidade greco-romana -, mas em relação aos séculos que separam a queda do Império Romano do advento da Idade Moderna. E essa experiência relativamente nova, pelo menos para aqueles que a viveram, foi, ao mesmo tempo, a experiência da capacidade do homem para iniciar alguma coisa nova. Essas duas coisas juntas – uma nova experiência que revelava a capacidade do homem para a novidade – estão na base do enorme pathos que encontramos tanto na Revolução Americana como na Francesa...63
O que intriga e torna, a nosso ver, a perspectiva da novidade arendtiana
singular é justamente a ligação que a autora estabelece entre o novo e o passado.
Ao indicar que a novidade da revolução não é tão nova porque remete à política
greco-romana não acreditamos que Arendt esteja renegando a possibilidade da
novidade. A ligação entre novidade e liberdade evidencia um particular enlace que
aponta para a singularidade da sua concepção de novidade.
A autora não nega que a “Liberdade, como fenômeno político, foi
contemporânea das cidade-Estados gregas. Desde Heródoto, ela foi entendida
como uma forma de organização política em que os cidadãos viviam juntos em
condições de não-mando, sem uma distinção entre governantes e governados.” Se
isso revela, como ela mesma admite, que a liberdade das revoluções modernas não
é nenhum acontecimento absolutamente inédito, também indica outra
possibilidade para a novidade moderna. Diferentemente dos que conceberam a
modernidade como ruptura radical e destacaram a liberdade negativa como uma
de suas grandes conquistas, Arendt entrevê nas revoluções modernas, o
aparecimento da liberdade positiva cuja origem remonta à pólis. Ou seja, a autora
se desvencilha da compreensão comum das revoluções, distinguindo direitos civis
e liberdade, tal como diferencia libertação e liberdade. Não é na defesa da “vida,
liberdade e propriedade” que ela encontra o sentido das revoluções, mas sim, na
liberdade efetiva e positiva que “significa participação nas coisas públicas, ou
63 ARENDT, H., Da revolução, p. 27.
132
admissão ao mundo político”.64 A novidade da revolução não pode, conforme a
perspectiva arendtiana, ser caracterizada simplesmente como um objetivo ou um
projeto “Se a revolução tivesse tido como meta apenas a garantia dos direitos
civis, não teria, com isso, visado à liberdade, mas tão-somente a libertação dos
governos que tivessem extrapolado seus poderes e infringidos direitos antigos e
bem enraizados.”65
César Augusto Ramos discute sobre o caráter da modernidade da liberdade
a qual Arendt se refere como liberdade política. Sua questão é “Como conciliar a
idéia de liberdade política (e, conseqüentemente, ausência da liberdade do querer)
com a concepção da liberdade como um começar de novo, na qual o livre querer
do sujeito criador é um componente fundamental da ação, culminando com a idéia
kantiana da liberdade como espontaneidade?” Apesar de destacar que a estratégia
da autora para conciliar a liberdade antiga e moderna é a de se desvencilhar do
“elemento individualista da autarquia e da autonomia”, Ramos conclui acerca da
primazia da liberdade moderna baseada na espontaneidade. “De qualquer forma,
não é mais possível viver a ‘bela eticidadade grega’ com a sua forma de aparecer
(política) da liberdade. Resta, então, a liberdade dos modernos de começar.”66
Num sentido diferente, como o próprio Ramos se refere em nota, André
Duarte destaca que Arendt concebe a liberdade revolucionária em consonância
com a liberdade na polis. “O objetivo da revolução era justamente a fundação de
um espaço da liberdade em que ela pudesse aparecer e se tornar visível a todos,
como na Antigüidade.”67 De nossa parte, entendemos que Arendt não pressupõe a
contradição entre uma liberdade antiga e moderna tendo como eixo o querer do
sujeito, conforme estabelece a análise de Ramos. Até porque a espontaneidade e a
capacidade de agir não estão ligadas à vontade de um único sujeito. A capacidade
de começar, que é a própria competência da ação, não se refere à objetividade,
mas à intersubjetividade. Por outro lado, também não acreditamos que a situação
revolucionária deva ser considerada uma mera repetição da experiência da
liberdade da pólis.
64 ARENDT, H., Da revolução, p. 26. 65 Idem. 66 RAMOS, César Augusto, O conceito (político) de liberdade em Hannah Arendt, In:
DUARTE, A., LOPREATO, Christina, MAGALHÃES, Maria Brepohl de, A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt, p. 181-184.
67 DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura, p. 291.
133
Por enfatizar a afinidade entre revolução e liberdade em seu sentido
positivo, Arendt acredita que o ponto principal das revoluções modernas é a
decisão sobre a forma de governo e sua fundação; e argumenta que a libertação,
como extinção da opressão poderia se concretizar ainda sob os ditames do regime
monárquico, enquanto a liberdade exigia uma nova forma de governo para se
consumar. “necessitava da formação de uma nova, ou antes, redescoberta forma
de governo; exigia a constituição de uma república.”68 A fundação da república
aparece como ponto fundamental na revolução e sua implementação é ao mesmo
tempo a instauração da liberdade e a realização da liberdade de iniciar dos
homens.
Notemos que, se a ênfase na questão da fundação da república parece ser o
núcleo da teoria arendtiana da novidade revolucionária, tal fato precisa ser
relacionado à própria necessidade de auto-fundamentação da modernidade. O que
vemos em Da revolução é justamente o esforço de Arendt para revelar a
competência dos revolucionários americanos na experiência da novidade. Se a
autora designa-os como “senhores do seu destino” em contraposição aos franceses
que sucumbiram à irresistibilidade do processo, isso se deve à perspicácia dos
primeiros para a fundação da república. A capacidade de fundação é a
competência para a experimentação do novo. É a possibilidade de se auto-
fundamentar sem perder a potência da novidade ou sucumbir ao processo infinito
do progresso. É a possibilidade de estabelecer uma nova constelação entre
passado e futuro sem limitar o futuro à orientação do passado ou ter o futuro
devorado pela transitoriedade.
Entendendo a novidade mais como uma nova constelação que como
novidade absoluta, podemos inferir que a experiência de ser livre, vislumbrada
por Arendt nas revoluções modernas, não é mera imitação do passado. Não se
trata de ser livre novamente, mas de uma nova experiência da liberdade, na qual
“a ânsia de libertar e de construir uma nova morada onde a liberdade possa
habitar, é algo sem precedentes e sem paralelo em toda a História anterior.”69
68 ARENDT, H., Da revolução, p. 26. A questão da institucionalização do político é
controversa em Arendt, pois em A condição humana a pólis aparece mais como o espaço de relação entre os iguais e a estruturação legislativa é concebida como instância pré-política. Em Da revolução, a autora procura relacionar a fundação à ação. Se a novidade surge como a fundação de um governo, donde se erige a liberdade, ela não pode ser entendida como novidade radical. Tal liberdade existia na polis, onde também se afirmava “pela ‘instituição artificial’ da pólis.
69 Ibid, p. 28.
134
A tentativa de compreender como a autora apreende essa nova ligação
entre passado e futuro está intimamente ligada à preocupação de analisar sua
concepção de história, pois se a liberdade e a política caracterizassem-se sempre
do mesmo modo seria possível entender a história arendtiana como uma história
do mesmo. O que nos faz acreditar no contrário é a proeminência que a novidade
adquire em sua obra. A referência ao passado não indica repetição, nostalgia ou
conservadorismo. Antes, revela um caráter singular da novidade concebida pela
autora. Sua preocupação em salvaguardar a potência do novo e entrever a
possibilidade de fundamentação sem os ditames da tradição.
Primeiro destacaremos como a novidade revolucionária aparece à revelia
das intenções humanas, para depois indicarmos como a capacidade de fundação se
liga à competência para a experimentação do novo. Donde concluiremos que
experimentar o novo é assumir sua potência. Se os americanos aparecem como
“senhores de seus destinos” isso não significa que controlem à sua vontade a
história. Ao contrário de indicar o domínio sobre a história, o esforço arendtiano
direciona-se para mostrar como os homens, apesar de serem capazes de iniciar a
novidade no mundo, não controlam absolutamente a história que se desenrola de
suas ações. Tal ponto aparece claramente quando avalia a posição dos atores
envolvidos nas revoluções.
A autora desvela como os homens das revoluções não imaginavam
inicialmente produzir transformações radicais na história. Seus interesses se
voltavam para a restituição da ordem, e, por isso, a palavra revolução, no sentido
original da movimentação dos astros, se fazia aplicar perfeitamente. Como sugere
a diferenciação arendtiana entre liberdade e libertação: a liberdade não era
objetivo da revolução. Tratava-se, antes, de mudar a pessoa que usurpava ou
abusava da autoridade. “(...) é essa aversão a inovações que ainda ecoa na própria
palavra revolução, um termo relativamente antigo que só lentamente adquiriu
novo significado.”70 A novidade ou “o enorme pathos de uma nova era”
manifesta-se quando a revolução atinge o “ponto sem retorno”.
Devemos destacar aqui a contraposição arendtiana à idéia de que a
revolução corrobora com a noção segundo a qual o homem faz a sua própria
história. Os atores da revolução não se mostram como atores que objetivam a
70 Id., Da revolução, p. 33
135
derrocada da velha ordem e a construção da nova por sua própria conta. De certo
modo, também esses atores são pegos de surpresa pela imprevisibilidade dos
fatos. “Nada poderia estar mais distanciado do significado original da palavra
revolução do que a idéia que se apoderou obsessivamente de todos os
revolucionários, isto é, que eles são agentes num processo que resulta no fim
definitivo de toda uma velha ordem, e provoca o nascimento do novo mundo.” 71
O que fica evidente é que a novidade da revolução vem à tona sem que os
atores pretendam transformar a antiga ordem. A mudança provocada pela
revolução não encontra razão na motivação dos atores. A dúvida é como Arendt
explica o aparecimento da novidade sem estabelecer a conexão tradicional que
vincula causalmente atores e eventos.
A irrupção do novo está ligada menos a uma empreitada por parte dos
homens que a uma oportunidade imprevisível, a qual a autora denomina ‘boa
sorte’. Se os americanos são mais privilegiados que os franceses no que se refere
ao destino, o fato é que, em ambos os casos, revela-se uma ocasião propícia para a
novidade. Trata-se aí, segundo a autora, do próprio contexto de crise. As
revoluções estão intimamente relacionadas ao vazio deixado pela perda da
autoridade; “elas são a conseqüência, e nunca a causa da decadência da autoridade
política”72.
A sorte dos americanos, ou o contexto no qual surge a revolução
americana é sem dúvida, para Arendt, mais favorável que o francês. Faz diferença
o fato de que a Revolução Americana surge da luta contra a “monarquia limitada”,
ao passo que a Francesa se opõe ao absolutismo. Além disso, são importantes para
a experiência revolucionária americana: o passado colonial de “autogoverno” e o
fato de que a miséria era desconhecida na América.73 Segundo a autora, a
singularidade da situação americana confirma que o Novo Mundo, por razões
peculiares se constitui como um cenário propício ao aparecimento da liberdade,
pois a questão da miséria era um grande problema em todo o mundo, exceto na
71 Ibid, p. 34. 72 Idem. Para explicar a questão da autoridade a autora remonta à edificação da trindade
romana, baseada na religião, na autoridade e na tradição. A perda da religião e da tradição são anteriores à perda da autoridade, e, de certo modo, constituem seus precedentes no sentido literal do termo.
73 É inegável a singular boa sorte da Revolução Americana. Ela ocorreu em um país que desconhecia a miséria popular, e entre um povo que tinha uma larga experiência de autogoverno; certamente, uma de suas maiores graças foi a revolução ter sido conseqüência de um conflito com uma ‘monarquia limitada’.” Ibid, p. 125.
136
América, onde havia pobreza, mas não miséria. Nessas condições privilegiadas, os
homens puderam pensar em resolver a ordem política, e não a ordem social.74
A remissão à concepção de ‘boa sorte’ pode ser entendida como o contexto
em que a revolução eclode, embora seja importante compreender que a noção de
sorte remete à idéia de casualidade. Com a noção de ‘boa sorte’, entendemos que
Arendt sugere a combinação entre as forças contingentes e a ação dos homens.
Isso fica manifesto se considerarmos que a autora não está contando com a
conexão causal entre a crise da autoridade e a revolução. A ‘boa sorte’ que
desencadeia a revolução precisa contar com a competência para a ação por parte
dos homens. É necessário que existam homens preparados para assumir a
fundação do novo.
A tomada de consciência da novidade aparece então como ponto
fundamental para que os homens se empenhem nessa nova empresa em que estão
lançados. Quando fala da tomada de consciência, a autora está se referindo ao
momento em que os homens tanto na América, quanto na França se deram conta
de que os eventos que estavam experimentando constituíam-se como novidade.
Trata-se do momento em que tiveram consciência do “ponto do não retorno”.
Quando perceberam que não era o caso de uma restauração, mas de uma
revolução. Ou seja, quando “revolução” adquiriu seu sentido novo e moderno.
Arendt destaca que a novidade não era em nenhum dos dois países a
pretensão original dos homens da revolução, e enfatiza que a questão da novidade,
de certo modo, se impôs aos revolucionários, traçando uma diferença fundamental
entre a reação diante dos acontecimentos. Na América, os homens tornaram-se
“senhores de seus destinos”, enquanto na França, concordaram em se ver
arrastados pelo curso inevitável da revolução. Nesse sentido, não podemos perder
de vista que, apesar de evocar a contingência dos eventos que levou os homens 74 Arendt acredita que a questão da escravidão não era um problema social. Ocorre que era
como se ela “não existisse” Ibid, p. 57. Com relação à miséria, Arendt entende que um dos maiores problemas é que sua presença traz para a cena pública a questão da compaixão. A euforia de sentimentos que tomou conta da revolução francesa acaba tornando os revolucionários “curiosamente insensíveis à realidade em geral”. Ibid, p. 71. O ponto central é que Rousseau e Robespierre levaram para a política as dificuldades concernentes à alma e ao coração. Arendt acredita que o mundo público é o lugar onde ser e aparência realmente são uma única e mesma coisa. Em outras palavras, em política não podemos julgar senão pelas aparências. Não é possível tratar de intenções e sentimentos, esses são da esfera privada e quase sempre deturpados quando aparecem em público. Para essa distinção, ver , em especial, p.77-78. Podemos notar ainda que a discussão sobre sentimentos que não aparecem em público remonta a questão das forças ocultas por trás da história. Toda caça às bruxas, baseia-se no pressuposto de que existem segredos e conspirações. A própria história como um todo é pensada nesse sentido de intriga. Ibid, p.83.
137
das revoluções ao ponto sem retorno, a autora caracteriza a diferença entre o caso
francês e o americano pela capacidade de ação dos homens do novo mundo.
O que está em questão nessa distinção entre a Revolução Americana e a
Francesa é a capacidade de experimentar o novo. É como se houvesse duas
possibilidades diante da novidade dos acontecimentos: 1- ser arrastado pela
necessidade histórica; 2- assumir a potencialidade do novo e fundar um novo
começo. Crucial na diferença entre essas duas opções é a aptidão para
experimentar a novidade. Tal aptidão parece estar relacionada à disposição para
enfrentar a realidade dos acontecimentos e assumir a potência do novo.
Para Arendt, os franceses não souberam edificar a novidade. Foram
envolvidos pelas reivindicações sociais e arrastados pela necessidade histórica.
Desse modo, perderam o “momento histórico”, ou a oportunidade de iniciar o
novo – de instituir a fundação da novidade. Nesse ponto, a autora destaca que “a
revolução mudara de rumo; não buscava mais a liberdade; seu objetivo agora era a
felicidade do povo.”75Mas o que diferencia franceses e americanos nessa
experimentação? O que permite aos americanos assumir a novidade e aos
franceses negá-la quando aderem ao processo? O que constitui essa adesão?
A distinção entre pensamento e ação nos sugere mais uma vez a pista para
compreender essas duas possibilidades de que dispõem os revolucionários. Ao
conceber a empresa da fundação, Arendt indica a relação entre a competência para
a novidade e a experiência da realidade dos acontecimentos.
A partir daí, os homens, arrebatados à sua revelia nos vendavais revolucionários, para um futuro incerto, assumiram o lugar dos orgulhosos idealizadores que intentaram construir novos lares com base no saber acumulado de todas as épocas pretéritas, na forma como o entendiam; e, com esses iniciadores, desapareceu a confortadora confiança de que um novus ordo saeclorum podia ser erigida com idéias, segundo um modelo conceitual, cuja verdade era assegurada pela própria antigüidade. Não o pensamento, apenas a prática, apenas a aplicação poderia ser nova.76
Na oposição entre o “modelo conceitual” e a experiência, a autora desvela
que apenas essa última poderia ser nova. A aplicação de um modelo ou de uma
teoria pronta aparece como um obstáculo à experimentação da novidade. É nesse
sentido que Arendt arremata a argumentação sobre a diferença entre as revoluções
75 Ibid, p. 48. 76 Ibid, p.45. Arendt diz que na América também não se fundou um “novus ordo
saeclorum”.
138
francesa e americana. Se a questão da novidade manifesta-se inicialmente em
ambas as revoluções, os franceses deixaram-se enredar pela necessidade histórica
porque aplicaram a teoria para entender o que se passava. O que detectamos na
interpretação arendtiana é que os revolucionários franceses tiveram dificuldade de
experimentar a novidade da revolução porque encobriram a nova realidade com
seus “velhos” aparatos teóricos. Seu questionamento incide sobre a dificuldade da
experimentação do novo. Observamos que, ao evocar o caso francês,
considerando essa alternativa de dar significado à novidade por intermédio de
teorias prontas, Arendt indica que o passado continua, de certo modo, orientando
o futuro. Não exatamente nos moldes da “História mestra da vida”, mas ainda
como uma espécie de entrave para a experiência da novidade.
De certo modo, reencontramos aqui a mesma problemática que detectamos
quando tentamos compreender o totalitarismo. A tensão entre o “modelo
conceitual” e a experiência nova. Devemos observar que tal tensão é o próprio
conflito entre teoria e ação, cuja origem a autora remonta ao erguimento da
tradição. Desse modo podemos entender que, quando Arendt caracteriza os
franceses como espectadores de sua própria história, indica que, ao contrário de
agirem e experimentarem a novidade, refugiaram-se no conhecimento teórico pré-
definido para explicar o que se passava e, com isso, perderam a própria novidade
da experiência. É nesse sentido que Hegel aparece a Arendt como a versão mais
bem acabada da revolução francesa. Sua história revela a possibilidade de
observar a história do ponto de vista do fim da história – quando a ação já acabou.
Franceses e americanos distinguem-se porque os primeiros tornaram-se
espectadores de sua própria história, enquanto os americanos foram homens de
ação que fundaram o novo começo.77 Isso significa que, diante do abismo da
novidade, os franceses recuaram e continuaram buscando a ‘orientação’ do
passado através dos “modelos conceituais” pré-concebidos.
Acreditamos que esse embaraço em presença do novo, o qual estamos
denominando como dificuldade de experimentar a novidade, alude ao enigma da
auto-fundamentação. Assim, aparece a subsunção da novidade pelas forças da
história no caso francês, e a possibilidade de salvaguardar a potência da novidade
77 Precisamos destacar que nessa diferenciação entre espectadores e homens de ação está
explícita mais uma vez a separação entre pensamento e ação, tal como a ênfase à experiência real da história.
139
no caso americano. Delineiam-se, a partir das distintas possibilidades diante da
novidade, duas formas de se relacionar com o passado, às quais estão referidas a
duas concepções distintas de poder.
O ponto central é que a novidade da república francesa acabou sendo
legitimada pela mesma recorrência à idéia de absoluto, na qual também se firmava
a monarquia. Arendt defende que o topos divino como instância que sustenta o
poder é substituída pela noção de Nação, igualmente angariada dentre as
concepções absolutas, ou seja, dentre aquelas idéias universais que não encontram
correspondente na experiência real dos homens. A crítica arendtiana é sobre o
recurso francês de sustentar a autoridade do novo corpo político na Vontade geral
do povo e na noção de nação homogênea. 78 Para Arendt, essas noções são tão
abstratas quanto à idéia do governo absoluto, que figura na monarquia. O
problema é que a legitimidade permanece sendo uma fonte exterior ou absoluta e
não uma força que provenha realmente dos homens em conjunto, pois a vontade
geral é uma concepção teórica que arregimenta artificialmente uma Vontade
única. Ao contrário de uma construção teórica, na América, a autora observa que
o próprio processo revolucionário baseado no esforço conjunto dos homens livres
deu sustentabilidade ao novo corpo político.
Devemos notar que Arendt está tratando de duas concepções de poder. No
caso francês, refere-se ao poder no sentido tradicional, entendido como uma
instância superior e exterior ao corpo político. Na situação americana, enxerga o
poder proveniente da ação, surgido do esforço conjunto dos homens. Conforme
essa separação a Constituição na França aparece como limitadora dos poderes do
governante, enquanto na América, representa o sentido originário da revolução, e
evoca menos a noção de limite que de instituição do poder. Sobre os
revolucionários americanos sugere que “a questão principal, para eles, não era
certamente como limitar o poder, mas como estabelecê-lo, ou seja, não como
limitar o governo, mas como fundar um novo.”79 Tal distinção concebida por
Arendt alude à disparidade entre uma Constituição efetivada como ato formal de 78 A crítica arendtiana à legitimação da nação com base na ‘busca de um passado comum’
revela a necessidade da sua sustentação numa forçosa homogeneidade. No caso americano, “O esforço conjunto nivela, com muita eficácia, tanto as diferenças de origem, como as de qualidade.” Ao observar o sucesso da empreitada americana, a autora não menciona que seria mesmo inviável para os novos americanos basear sua nova nação no passado comum, pois esse provavelmente remeteria à origem européia da qual precisavam se afastar.
79 ARENDT, H., Da revolução, p. 118. Esses dois sentidos de poder, Arendt encontra em Rousseau e Montesquieu.
140
governo, que estabelece a supremacia do poder representativo; e uma Constituição
baseada na experiência do poder constituinte, que mantém o vínculo do qual se
originou. Se, na América, a Constituição aparece como a fundação da autoridade,
na França, o ato de constituir perdeu o significado revolucionário e começou a
funcionar como “ausência de realidade e de realismo, com sua excessiva ênfase no
legalismo e nas formalidades.”80 Em comparação com a sucessão de Constituições
que se seguiu ao processo revolucionário francês, a autora indica que nos Estados
Unidos a Constituição e a Declaração de Independência compõem-se como ação,
enquanto na França tornou-se letra morta. Segundo Arendt, a própria oposição
entre o ato de constituir e a constituição nos é legada por essa oposição que o
poder constituinte e o poder constituído tomaram na França. O processo
americano de Independência e a fundação de um novo corpo político revelariam a
possibilidade contrária por se constituir como um processo de autonomia e
participação política dos estados.
Quando Habermas sugere que a concepção de poder arendtiana está
fundada na idéia do contrato, e indica que a autora “A fim de assegurar o núcleo
normativo de uma equivalência original entre o poder e a liberdade, ela prefere
recorrer, em última análise, à figura venerável do contrato, que ao seu próprio
conceito de práxis comunicativa. Retrocede, assim, até a tradição do direito
natural.”81, desconsidera justamente a distinção entre os dois tipos de poder
traçada por Arendt. Ou melhor, acredita que a autora, apesar de enfatizar a
competência da ação - que Habermas denomina “práxis comunicativa” - acaba
recorrendo à noção de contrato para validar o poder. Entendemos que, se Arendt
não rejeita inteiramente a noção de contrato, e como destaca Habermas, até utiliza
esse termo para falar do acordo baseado nas promessas mútuas entre os homens
livres que fundam o espaço onde a liberdade pode se efetivar, isso não significa
que esteja retomando a matriz jusnaturalista, da qual se aparta por entender que
seu fundamento ainda é um absoluto transcendental. O que a autora enfatiza no
episódio americano, e que lhe permite inclusive falar em contrato sem se vincular
ao direito natural, é a experiência da ação. Segundo ela, uma coisa é o
estabelecimento formal da lei; outra é a lei que se estabelece mediante a
pluralidade.
80 Ibid, p. 101. 81 HABERMAS, J., O conceito de poder de Hannah Arendt, In: Habermas, p. 118.
141
O que devemos destacar é que Arendt, diferentemente do que conclui
Habermas, não joga a legitimação do corpo político para a vontade dos
indivíduos.82 Como se, por livre vontade, eles concedessem autoridade ao novo
governo, ao qual passariam a obedecer. Não é esse tipo de contrato que visualiza
na América. Ao contrário, entrevê a formação de um “esforço conjunto” que por
permanecer sendo conjunto mesmo quando há um acordo formal sustenta a
novidade e não fixa nenhum absoluto exterior ao corpo político donde possa
auferir autoridade. Pode-se notar que a questão da novidade para Arendt implica,
não apenas, numa boa sorte do destino, mas, sobretudo, na capacidade de
experimentar o devir sem parâmetros que lhe imprimam o caráter de futuro
antecipado. O que entrevemos na análise arendtiana é justamente a combinação da
história como “milagre”, que está aberta à contingência, e a possibilidade de ação,
que aparece como uma “oportunidade de agir”.83 A história não é somente uma
“melancólica casualidade” diante da qual os homens se vêem anulados, nem uma
pura racionalidade, que os sucumbiria da mesma forma; mas o cruzamento entre a
contingência e a ação.
Da busca francesa pelo absoluto e da aplicação dos modelos conceituais
não se pode concluir que a autora se recuse a considerar a importância da
experiência do passado para a experimentação da novidade. A competência para
experimentar a novidade, que, no caso dos revolucionários, é a capacidade para
fundar a novidade, passa pela aptidão para estabelecer uma nova constelação entre
passado e futuro. A rejeição à orientação teórica na experimentação da novidade
não significa que Arendt acredite que os revolucionários americanos fizeram
surgir do zero sua capacidade de tornarem-se “senhores de seu destino.”84Ao
82 Se a autora fala em pacto ou contrato não quer dizer que a América apareceu como
“aquele primórdio” evocado nas teorias de contrato. Ao contrário, Arendt acredita que a experiência americana influencia as teorias contratualistas embora os teóricos não mencionem essa relação. A autora fala na diferença entre dois tipos de contrato. Um em que há participação efetiva e recíproca, e outro em que as pessoas renunciam a participação direta em nome do governo. No primeiro caso, o poder só existe enquanto as pessoas estiverem reunidas em ‘esforço conjunto’, enquanto no segundo, há a separação entre governo e governados, que se tornam politicamente inexistentes. Em Hobbes, visualizamos esse contrato onde se abdica do poder em nome de um governo. Em Montesquieu, parece estar a concepção segundo a qual o poder não precisa ser legitimado de fora do corpo político; a própria “lei é relativa”. Para essa discussão ver ARENDT, H. Da revolução, p. 152-157. Em Direito e democracia encontramos uma leitura um pouco diferente sobre a concepção de poder de Arendt que Habermas havia concluído tratar-se de matriz contratualista. Nesse texto, o autor privilegia a concepção pluralista de Arendt.
83 Ibid, p. 45. 84 A autora observa que a dificuldade de compreender a novidade da revolução e empenhar-
se na fundação do novus ordum saeclorum também atingiu os americanos. Trata-se da dificuldade
142
contrário, reconhece que “permanece ainda a dificuldade, mais séria em nosso
contexto, de que pouca coisa existe, na forma ou no conteúdo das novas
constituições revolucionárias, que seja realmente nova, nem muito menos
revolucionária.”85 Sublinhando a validade da cultura dos “Pais Fundadores”, a
autora revela que para fundar o novo corpo político os americanos foram buscar
na História “todos os exemplos, antigos e modernos, reais ou fictícios, de
constituições republicana.”86Admite também como foi fundamental para a
revolução americana a experiência colonial de acordos e pactos.
Em outras palavras, o que aconteceu na América colonial antes da revolução (e que não aconteceu em nenhuma outra parte do mundo, nem nos antigos países nem nas novas colônias) foi, teoricamente falando, que a ação levou a formação do poder, e que o poder foi mantido vivo e atuante pela aplicação dos instrumentos de promessa e de pacto, então recentemente descobertos. (...) com uma experiência acumulada de um século e meio de formação de acordos e pactos, ao, se erguerem num país que estava articulado, de cima para baixo – desde as províncias ou Estados até as cidades, municípios, vilas e comarcas -, em organismos devidamente constituídos, cada um deles formando uma comunidade com características próprias, com representantes ‘livremente escolhidos pelo consentimento de amigos e vizinhos benquistos’87
O que sustenta a diferenciação entre o caso francês e o caso americano não
é, portanto, a questão da aplicação ou da rejeição do passado. Trata-se, antes, da
forma como o passado é retomado. Importante é o modo como se dá esse encontro
da teoria com a nova realidade. Na França, Arendt vê um passado que abafa o
futuro e a experiência da novidade, seja pela orientação conceitual pré-existente,
de “traduzir” em palavras a novidade da experiência em questão. A necessidade de se recorrer ao aparato conceitual pré-existente. “No que concerne a Jefferson e aos homens da Revolução Americana – de novo, com a possível exceção de John Adams -, a verdade de suas experiências raramente transparecia quando falavam de generalidades.” Tal problemática persegue os revolucionários a ponto de Arendt entrever nesse ponto indícios do fracasso da revolução americana em perpetuar sua fundação. No próprio documento da Constituição ela aponta a alteração da concepção de “felicidade pública”, que carrega consigo a noção da participação na vida pública, pela idéia de “busca da felicidade”, cujo sentido indica a possibilidade de sucesso na vida privada. Mesmo na América, onde visualiza o sucesso da revolução, no que se refere a sua “verdadeira finalidade”, qual seja, a fundação do novo corpo político, a autora também percebe que a tarefa de “perpetuar o princípio” e imortalizar o espírito da revolução viu-se fracassada. Lemos ainda que “Essa falta de nitidez e precisão conceituais, no que tange às realidades e experiências existentes, tem sido o anátema de toda a história ocidental desde que, após a época de Péricles, os homens de ação e os homens de pensamento apartaram-se uns dos outros, e o pensamento emancipou-se completamente da realidade, e, em especial, da realidade e experiência política.”
85 Ibid, p. 114. 86 Ibid, 120. 87 Ibid, p. 140-1. Essa experiência tem, inclusive, origem pré-colonial, pois o “acordo” que
surgiu entre os homens que vieram se fixar no novo mundo entrou em vigor ainda no navio, antes de aportar nas novas terras.
143
seja pela nova noção de totalidade da História. Na América, a experiência do
passado não devora a novidade. Como os americanos conseguiram esse feito de
estabelecer uma nova ligação entre passado e futuro? Como Arendt defende essa
hipótese?
Na América, ela vislumbra o esforço conjunto para uma auto-legitimação
que revela também a autonomia do político. Não é o pensamento teórico ou
qualquer modelo conceitual enviado pelo passado que orienta a ação. Sendo a
própria ação equivalente à liberdade isso significa que ela é livre de qualquer
orientação teórica e de todo vínculo autoritário com o passado. Assim, em
Arendt, a busca do passado por parte dos americanos não aparece como a tentativa
de imitação, mas revela a preservação da possibilidade da novidade.
Foi apenas no decorrer das revoluções do século XVIII que os homens começaram a tomar consciência de que um novo princípio podia ser um fenômeno político, podia ser a conseqüência daquilo que os homens tinham feito e que, conscientemente, se dispuseram a fazer (...) A novus ordo saeclorum não era mais uma bênção advinda do ‘grande plano’ de desígnio da Providência’, e a novidade não era mais a vaidosa e simultaneamente assustadora posse de alguns. Quando a inovação alcançou o mercado público, tornou-se o início de uma nova História, desencadeada – ainda que involuntariamente – por homens de ação, a ser encenada posteriormente e ampliada e difundida pela sua posteridade.88
O passado aparece aos revolucionários como inspiração para as questões
do presente, mas não há dúvida sobre a novidade da situação revolucionária. Os
revolucionários se orgulhavam de sua glória, por isso consideravam a si mesmo
“iluminados”. Ao evocar o passado, seja o da experiência colonial, seja o de
Roma, não deixam de ser modernos. A estratégia para combinar passado e futuro
de modo a preservar a novidade é inverter o tradicional rumo da orientação do
futuro pelo passado. O eixo deixa de ser a transmissão de valores e experiências
do passado ao futuro, para se tornar a retomada do passado pelo futuro.
Quando eles se voltaram para os antigos, foi porque descobriram neles uma dimensão que não fora legada pela tradição – nem pelas tradições de costumes e instituições, nem pela grande tradição do pensamento e concepções ocidentais. Portanto, não foi a tradição que os vinculou os primórdios da história ocidental,
88 Ibid, p. 37-8. “no transcurso de ambas as revoluções, os seus agentes tomaram
consciência da impossibilidade de restauração e necessidade de se aventurarem numa empresa inteiramente nova.” Ibid, p. 36
144
senão, ao contrário, suas próprias experiências, para as quais necessitavam de modelos e precedentes.89
Arendt acredita que o maior exemplo para os “Pais Fundadores” foi a
fundação de Roma, onde encontraram semelhantes perplexidades acerca da
questão do início. Segundo ela, com esse caso, os americanos entenderam que
poder e autoridade não são equivalentes. O poder emana do esforço conjunto e a
autoridade se fixa numa determinada instância. Em Roma, era o Senado que
corporificava a autoridade. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte cumpriria esse
papel.
Para marcar a diferença entre romanos e americanos e sugerir que não se
trata da mesma história, Arendt destaca que no caso da fundação de Roma ainda
se recorria à idéia de uma refundação, cuja validade, em última instância, referia-
se à restauração da cidade eterna e de Tróia. “Seja como for ou possa ter sido,
quando os americanos decidiram alterar o verso de Virgílio, de Magnus ordo
saeclorum para novus ordo saeclorum, foi porque haviam admitido que não era
mais uma questão de fundar “Roma mais uma vez”, mas de fundar uma “nova
Roma”90. A autora entrevê na Revolução Americana a possibilidade de encontrar
a inspiração e ensinamento no passado sem perder a especificidade histórica da
novidade. A experiência romana servia aos americanos não por ter sido legada
pela autoridade da tradição, mas porque os revolucionários acreditavam estar
numa situação semelhante àquela enfrentada pelos romanos quando precisam
fundar sua própria tradição.
O que precisamos compreender é como esses contextos históricos distintos
se relacionam, buscando avaliar se a analogia entre passado e futuro indica a-
historicidade. A autora demonstra a analogia entre a Revolução Americana e a
fundação de Roma considerando a importância das lendas de fundação. Arendt
observa que o recurso da narrativa de lendas e heróis incide como forma de
legitimar o início ou o re-início da história. Para ela,
“Se algum ensinamento pôde ser colhido dessas lendas, foi o de que nem a liberdade é o resultado automático da libertação, nem o novo começo é a conseqüência automática do fim. A revolução – assim, pelo menos, deve ter
89 Ibid, 158. “O que consistia em “extraordinária capacidade de olhar para o passado como
uma visão compreensiva dos séculos vindouros.” 90 Ibid, 170.
145
parecido a esses homens – foi precisamente o legendário hiato entre o fim e o princípio, entre um não-mais e um ainda-não.”91
A autora destaca que o hiato entre o não-mais e o ainda-não parece sempre
com um momento fora do tempo, pois se trata de uma ruptura com um processo
em curso. Reportando-se a Kant, ela lembra que “o problema do novo” refere-se
àquilo que não pode ser explicado de acordo com uma série precedente. O que
significa que o novo é a ruptura com seus antecedentes causais.92 A sensação de
que ele está fora do tempo deve-se justamente a esse rompimento com o que lhe
antecede e, conseqüentemente, com que lhe sucede. “É da própria natureza de um
início conter, em seu âmbito, uma certa dose de arbítrio. Além de não estar preso
a nenhuma cadeia explícita de causa e efeito, uma cadeia na qual cada efeito se
transforma imediatamente na causa de futuros desdobramentos, o início parece
não ter nada em que se apoiar; é como se ele surgisse de um vazio, fora do tempo
e do espaço.”93
Essa concepção do hiato temporal, que não é nenhum momento
absolutamente fora do tempo, mas sim a ruptura com uma série predecente, lhe
permite comparar a ruptura instaurada pela novidade ao ausentamento
momentâneo da realidade próprio da atividade do pensamento. O que nos
interessa agora é perceber que a relação entre as circunstâncias inéditas deve-se à
similitude da perplexidade do início, que acompanha o aparecimento da novidade.
Se, por um lado, isso pode sugerir que o problema da novidade é sempre o mesmo
em Arendt; por outro, não quer dizer que a novidade seja destituída de seu
potencial original.
Para esclarecer a perplexidade do início, tradicionalmente se recorreu à
concepção absoluta do iniciador que está fora da ordem iniciada, ou seja, contou-
se normalmente com uma noção de Deus. No entanto, Arendt não se aproxima da
discussão sobre o enigma do início como se fosse possível encontrar resposta
definitiva para essa questão. A meu ver, um de seus melhores insights, sobretudo,
quando se considera a questão da história, refere-se a essa abordagem da
novidade. Seu esforço opera para desfazer o engano de que há um princípio
absoluto ou uma causa primordial de toda a história e existência humana. Nesse 91 Ibid, 165. 92Nesse sentido, podemos ver que se levarmos ao pé da letra a equivalência entre agir e
iniciar, o que está em jogo é a perplexidade da novidade, do re-start. Id., A vida do espírito, p.201. 93 Id., Da revolução, p. 165.
146
sentido, acredita que “essa última parte da tarefa da revolução – encontrar um
novo absoluto para substituir o absoluto do poder divino – é insolúvel, pois o
poder, sob condição da pluralidade humana, nunca pode atingir a onipotência, e
leis que se baseiam no poder humano nunca podem ser absolutas.”94 Se a autora
contraria a preocupação comum dos filósofos de pensar no fim e na morte do
homem e volta-se para a tentativa de compreender as perplexidades causadas pelo
início, isto é, concentra-se no enigma do aparecimento misterioso da existência
humana, não o faz com a ilusão de dar respostas sobre o surgimento do homem.
Na verdade, sua apropriação da diferenciação agostiniana entre princípio e início
mostra que seu intuito é considerar a questão do início justamente sem ter que
dispor de um princípio absoluto para o aparecimento da humanidade. Por isso,
Arendt trata mais da novidade como um nascimento que como surgimento da
existência. Assim, mesmo quando sua análise parece buscar uma sustentação
ontológica para legitimar a possibilidade do início, considerando que o homem é
dotado da capacidade de iniciar, consegue relacionar o início como o
aparecimento factual do homem no mundo ligando-o a uma continuidade pré-
existente: o próprio mundo que existia antes do nascimento de qualquer um.
Nesse sentido, se todo início é uma ruptura; também é sempre a possibilidade de
um re-início. Isso significa que o novo não adquire aspecto de causa primeira, ao
contrário, desponta sempre como a instauração do “entre” o passado e o futuro.
De modo que a novidade é menos um novo radical que o rompimento de uma
determinada ligação de continuidade entre passado e futuro e a constituição de
uma nova continuidade. A questão não é discutir se a novidade já existia ou se
havia elementos do que agora é a novidade em seus antecedentes, ou se vigora a
permanência do antigo. Tal como dizer que o novo tem causa no antigo, coisa que
os historiadores geralmente pressupõem. O importante é a nova constelação que
surge na ligação entre passado e futuro.
Na revolução americana, a empreitada de fundação deixa de se referir a
qualquer instância superior e legitima-se pela própria ação dos homens. O que na
linguagem arendtiana quer dizer que a fundação surge no mundo. Em meio à
pluralidade. Para a autora, essa fundação se constitui, não como um novo
absoluto, uma legitimidade superior que está fora do tempo e da história, mas sim
94 Ibid., p. 31.
147
como uma nova relação de continuidade. Arendt aponta a distinção ao mencionar
a quarta Écloga da Eneida de Virgílio, onde o início é evocado pelo nascimento de
uma criança que não é a salvação ou o início radical da história, mas o nascimento
e uma criança na continuidade da história, a qual está ligada às glórias e feitos do
pai. A peculiaridade está menos ligada ao nascimento singular do messias que à
própria singularidade de todo nascimento. “afirmação da divindade do próprio ato
de nascer e de que a salvação potencial do mundo está no próprio fato de que a
espécie humana contínua e perpetuamente regenera a si mesma.”95
Para o seguimento desse trabalho deixamos destacados dois pontos. Se a
novidade tem seu referencial na noção de ruptura, a capacidade de experimentar o
novo e a competência para a fundação revelam que, para a autora, a novidade
envolve mais que a perda da continuidade: sua singularidade é constituir-se como
uma nova constelação que se instaura entre o passado e o futuro. Essa nova
ligação, por sua vez, também nunca pode se considerar definitiva. Possivelmente,
ela será desestabilizada pelo advento de uma nova novidade. Nesse sentido, a
história concebida pela autora apresenta-se mais como um mosaico de inícios e
fins – instauração e rupturas de processos históricos -, que como um único
processo. O que precisaremos entender é como Arendt pode conciliar essa noção
da novidade com sua narrativa do esquecimento do político na tradição, ou seja,
com a sua leitura da história ocidental, onde parece desenvolver-se num sentido
único, pelo menos, até a ruptura totalitária.
95Idem.
5 O espetáculo da história
Numa carta ao seu então professor Jaspers, a jovem Arendt contesta já em
1926 a utilidade da história.
Só entendo a história a partir do terreno em que eu mesma me encontro (...) tento interpretar a história, compreender o que se exprime nela a partir do que já sei pela minha experiência. Do que consigo compreender assim, eu me aproprio, o que não compreendo, rejeito. Ora, se entendi bem o seu seminário, encontro-me diante da seguinte questão: Como é possível a partir da interpretação da história assim concebida, tirar algo novo da história? A história não constitui dessa maneira uma simples série de ilustrações para o que quero dizer, e para o que já sei mesmo sem a história? Imergir-se na história significaria então apenas encontrar uma mina de exemplos apropriados?1
Em tal fragmento, pode-se notar seu anseio, impulsionado pelo curso de
seu orientador, autor de Origem e meta da história, de compreender a história a
partir da consideração profunda sobre a novidade.2 Observamos que nessa
passagem anuncia-se o vigor que a temática da história tomaria em sua obra. A
pergunta chave é sobre como “tirar algo novo da história”. Esse questionamento
ao qual o desenvolvimento da noção de história arendtiana está ligado, sugere o
re-exame da concepção de historicidade, segundo a qual o homem não pode “sair”
da história para conhecê-la, já que o mundo se abre para ele na história.
Debatendo com essa idéia da história como historicidade que não é nenhuma
excepcionalidade do pensamento jasperiano, mas uma noção desenvolvida,
principalmente por Heidegger, e que se tornou uma espécie de consenso para a
nossa época que não conta mais com os auspícios da verdade metafísica, Arendt
interpõe o status da novidade. Todo o seu esforço de tentar explicar o
aparecimento da novidade na história humana parece estar relacionado à pretensão
de apresentar uma concepção da história que não se restringe à experiência da
historicidade.
1 ARENDT, H.; JASPERS, K., Correspondance, 1926-1969, p. 33-34. Tradução extraída
de ADLER, L., Nos passos de Hannah Arendt. 2 JASPERS, K., Origem e meta da história. O texto de Arendt sobre essa obra é “Karl
Jaspers: uma laudatio” In: ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p.67-75.
149
A suposição de que a noção de novidade está intimamente relacionada à
concepção de história arendtiana revela a ligação entre ação e história que
anunciávamos anteriormente. Tal conexão se mostra tanto na possibilidade da
ação de iniciar a novidade no mundo, quanto na capacidade da história, enquanto
historiografia, de compreender a história que a ação deixa atrás de si3. Nesse
capítulo buscaremos analisar essa ligação a partir da análise das considerações
teóricas de Arendt acerca da historiografia e do historiador. Tal exame visa
explicar como a autora pode narrar a história ocidental do ponto de vista da
continuidade da tradição, contando a história do esquecimento do político e, ao
mesmo tempo, sugerir a descontinuidade da história, através da ênfase na
novidade, a qual, como entendemos, sustenta sua indicação acerca da separação
entre história real e escrita da história. Acreditamos que, ao entender como a
autora pode conjugar a grande narrativa da tradição com proposições teóricas que
remetem à noção de descontinuidade da história, poderemos anunciar algumas
conclusões sobre a concepção de história em sua obra, que indicam possibilidades
para a reconsideração da situação da historiografia na contemporaneidade.
5.1. Considerações teóricas
O que denominamos “considerações teóricas” de Arendt sobre a história e
a historiografia se constitui de fragmentos ao longo de sua obra. Tais referências a
respeito da historiografia aparecem principalmente n’A condição humana, em
“Compreensão e política”, nas narrativas biográficas de Homens em tempos
sombrios, e, em “Verdade e política”. Não obstante, encontramos comentários e
sugestões sobre a especificidade da história em muitos outros textos da autora, os
quais estão devidamente considerados nessas indicações à concepção da história
arendtiana. Nesse momento, não trataremos ainda das implicações do seu texto
mais conhecido acerca da historiografia, que provavelmente é aquele sobre “O
Conceito de história – antigo e moderno”. Sem dúvida, esse último é o que tem
3ARENDT, H., A condição humana, p. 197.
150
maior fôlego no enfrentamento direto da questão da história, e, dada sua própria
estrutura, que revela a modificação histórica da própria idéia de história,
preferimos examiná-lo separadamente. Ocorre que, apesar de encontrarmos
sugestões teóricas sobre a história nesse trabalho, ao narrar a história da história
ele acaba compactuando com o ‘modelo’ da grande narrativa proposto n’A
condição humana. Nos outros textos, as considerações teóricas indicam mais
explicitamente a concepção arendtiana de uma história fragmentada.
O que há em comum nas indicações teóricas acerca do histórico que
aparecem nesses diferentes trabalhos de Arendt é uma clara separação entre a
história real, na qual os atores estão envolvidos, e a historiografia, a qual é
também referida pela atividade do historiador ou do storyteller de narrar uma
história. Veremos como tal diferenciação pode ser compreendida de acordo com a
distinção mais geral que vigora na obra arendtiana entre as atividades da vita
activa e as atividades da vida do espírito. Devemos observar, primeiramente, que
a história real não é exatamente a geschichte vislumbrada pelos modernos como
um processo autônomo dotado de sentido próprio. Ao contrário, ao sugerir que a
história real é a história ‘encenada’ pelos atores, a autora não está indicando a
existência de uma outra realidade mais real. Assim como destacamos na análise da
narrativa da história do ocidente, é preciso lembrar que, se Arendt busca distinguir
ação e pensamento, não pretende conceder validade às falácias metafísicas, as
quais ela mesma se empenha em desmontar. Retomemos seu texto para notar a
diferenciação entre história real e história narrada.
É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, (...) é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis. Essas histórias podem depois ser registradas em documentos e monumentos; podem tornar-se visíveis em objetos de uso e obras de arte; podem ser contadas e recontadas e transformadas em todo tipo de material. Por si, em sua realidade viva, possuem natureza totalmente diferente de tais reificações.4
A separação entre a história real e a história narrada, que como indica a
passagem, é a mesma distinção que existe entre a ação e a reificação da história,
se sustenta pela idéia segundo a qual o ‘fluxo vivo’ ou a ‘realidade viva’ do
evento não pode ser completamente materializada. Tal diferenciação pode ser
4 Ibid., p. 196-7.
151
entendida como a separação entre a perspectiva do ator, que, para Arendt, “nunca
sabe exatamente o que está fazendo” e a posição do espectador, que olha a história
“de fora” quando a ação já chegou ao fim.
A constatação da perplexidade da fugacidade do fluxo vivo da ação
sustenta a distinção entre ‘quem’ alguém é e “o que” alguém é. Para a autora, o
“quem” só se manifesta aos outros durante a ação; é como um daimon grego, que
está por cima dos ombros de cada um, não pode ser visualizado pelo ator, mas
apenas por aqueles que comungam o espaço público com ele. Uma possibilidade
de se aproximar do ‘quem’, e a única maneira possível do ator compreender quem
ele é e o significado de sua ação, é através da reificação da história. O problema é
que, sempre que se tenta dizer quem alguém é, são evocados adjetivos que não
têm a capacidade de conceber a singularidade de cada um e generalizam o ‘quem’
pela determinação do ‘que’. Na tentativa de se aproximar ao máximo do fluxo
vivo da ação, Arendt sugere que a mímesis, no sentido determinado por
Aristóteles, de repetição da ação, aparece como a forma mais adequada. Não
podemos deixar de destacar que, para a autora, as atividades mais apropriadas
para realizar a transposição do fluxo vivo são as artes performáticas, dentre as
quais são mencionadas o teatro e a música. A ênfase nessas modalidades artísticas
deve-se sobretudo à semelhança com o fluxo vivo, elas mesmas são atividades
que não produzem nenhum produto. A historiografia, que é a produção escrita da
história, pode se empenhar em narrar a vida da pessoa na tentativa de revelar seu
‘quem’. Arendt indica que o estilo biográfico é o mais adequado para aqueles que
pretendem revelar quem uma pessoa foi. Nesse sentido, alguns autores entendem
que ela mesma executa o exercício de storyteller ao empreender a narrativa da
vida de diferentes personalidades em Homens em tempos sombrios.5 No entanto,
não podemos entender que mímesis se reduz à mera imitação da ação. Se assim
fosse, como se explicaria que “A ação só se revela plenamente para o narrador da
história, ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre
sabe melhor o que aconteceu do que os próprios participantes.”?6 É importante
sublinhar que, ao fazer referência à concepção aristotélica da mímesis, a autora
não supõe que a ‘imitação’ seja o retorno da ação em si, pois se trata, mesmo nas
5 LAFER, C., Hannah Arendt: vida e obra., In:ARENDT, H. Homens em tempos sombrios.
pp.233-249. 6 ARENDT, H., A condição humana, p. 204-5
152
artes performáticas, de uma re-apresentação. Arendt também demonstra
desconfiança acerca da possibilidade de explicar todo tipo de arte a partir do
esquema mimético. Segundo ela, “no próprio tratado, fica evidente que Aristóteles
foi buscar no drama o modelo da ‘imitação’ na arte; a generalização do conceito
para torná-lo aplicável a todas as artes parece-me inadequada.”7 Assim,
entendemos que a tentativa de retomar o fluxo vivo dos eventos pela escrita da
história aparece mais como a possibilidade de reconciliação, ou seja, de
compreender o sentido da ação, que como pura imitação.8 A historiografia, que se
destaca em Arendt, por não se constituir apenas como a escrita de uma estória,
mas por contar a verdade dos fatos, insurge como a possibilidade de referir-se à
singularidade do evento, como na imitação, e, ao mesmo tempo, indicar a
possibilidade de sentido. “Na medida em que o contador da verdade dos fatos é
também um contador de estórias, ele efetiva aquela ‘reconciliação’ com a
realidade que era compreendida por Hegel, o filósofo par excellence, como o fim
último de todo pensamento filosófico e que, de fato, tem sido o motor secreto de
toda a Historiografia que transcende a mera erudição.”9
No intuito de apontar a especificidade da ação, Arendt vislumbra a
possibilidade de diferenciar a ação em si, tanto das motivações individuais dos
atores, por um lado, como dos seus possíveis significados, de outro. Como
evidenciamos anteriormente, há dificuldade, por parte dos leitores de Arendt, de
entender essa autonomia da ação. Decerto que, se concebida esquematicamente,
como se funcionasse apenas do mesmo modo que uma separação metodológica
proposta pelo estudioso diante da realidade, a proposta arendtiana seria refutável
pelo corrente argumento que aponta para a concretude das coisas. Poder-se-ia
dizer que sua suposição tem sentido, mas não revela a realidade da experiência.
Quando destacamos que a distinção entre ação e história baseia-se no pressuposto
segundo o qual há uma diferença entre a experiência do “fluxo vivo” e a
7 Ibid, p. 200, nota. 11. 8 Costa Lima argumenta que a mímesis não é simples imitação, mas sempre uma mimesis
produtiva, onde está em jogo uma diferença entre o ‘original’ e a ‘cópia’. André Duarte também interpreta nesse sentido a noção arendtiana de mimesis ao remeter à noção de diálogo com o passado. Para o autor, trata-se de mais de uma leitura hermenêutica do passado do que de sua retomada ‘como ele realmente foi’. Ver: LIMA, Luiz Costa., Mímesis desafio ao pensamento; DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura.
9 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 323. Seguindo texto arendtiano, encontramos uma indicação sobre o significado da reconciliação, que menos que a conciliação entre essência e aparência surge como “a aceitação das coisas tais como são.”
153
reificação desse fluxo, podemos perceber que a hipótese arendtiana se ampara no
distanciamento temporal entre o vivido e o pensado, como tradicionalmente se
apresenta. Na perspectiva de Arendt, essa diferenciação não deve ser considerada
nesses termos, pois o pensamento, para ela, também se manifesta como “fluxo
vivo”, e, aparentemente, nesse âmbito, encontram-se os mesmos dilemas da
transposição do “fluxo vivo” para a “coisa morta” – a reificação. Referindo-se à
tendência contemporânea de enfatizar o aspecto ativo do pensamento, Arendt
indica que “atividade e ação não são a mesma coisa, e o resultado da atividade de
pensar é uma espécie de subproduto com respeito à própria atividade.” 10
A semelhança observada na consideração do “fluxo vivo” da ação e do
“fluxo vivo” do pensamento não opera a equiparação entre pensamento e ação,
embora permita que a autora refira-se a ambas as atividades através da remissão à
noção de “hiato temporal”. Vimos que a idéia de “hiato” pode ser compreendida
como a suspensão da continuidade temporal na qual os homens estão
imediatamente inseridos. O que nos interessa agora é apontar a conexão entre a
idéia de “fluxo vivo” e “hiato”. Tanto quando trata do fluxo vivo da ação, quanto
quando menciona o fluxo vivo do pensamento, Arendt está indicando a existência
de um tipo de experiência que não se passa na vivência comum do tempo, onde os
homens contam normalmente com a continuidade e com a sucessão. A ação e o
pensamento, cada um a seu modo, caracterizam-se, frente a essa continuidade,
como uma descontinuidade, isto é, uma ruptura do encadeamento entre passado e
futuro. O pensamento é designado como hiato porque supõe um afastamento
momentâneo da realidade, onde o ego pensante pode reencontrar e recombinar
passado e futuro. Ao romper com a ligação sucessiva entre passado e futuro
insurge como uma ruptura temporal. A ação, por sua vez, é a ruptura da
continuidade histórica entre passado e futuro, pois, ao se constituir como
novidade, revela o início ou o re-início de alguma nova ‘história’. A diferença
fundamental entre essas duas possibilidades de escapar do tempo da continuidade
é que o pensamento se dá no alheamento do mundo, enquanto a ação acontece na
pluralidade. Se observarmos essa relação entre “fluxo vivo” e “hiato” e
considerarmos o aspecto temporal que lhe é imputado, qual seja, a possibilidade
10 Em Algumas questões de Filosofia moral, Arendt trata especificamente da possibilidade
da transposição do fluxo vivo do pensamento em produtos. In: ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 171.
154
de constituir-se como uma experiência de tempo distinta da vivencia comum da
continuidade, podemos inferir que a diferença entre “fluxo vivo” e reificação, e,
conseqüentemente, entre história real e história narrada, não indica a separação
entre a realidade em si e a representação da realidade, antes concebe duas formas
de experimentar o tempo, sem perder de vista que a experiência do tempo só pode
ser uma experiência humana dentro do mundo. A oportunidade de evasão
momentânea pela atividade do pensamento e a capacidade de iniciar a novidade,
indicam a possibilidade de afastar-se do mundo, mas não supõem uma saída
definitiva, como se houvesse outra realidade mais verdadeira a ser vislumbrada
pelas idéias. Assim, a ‘fugacidade’ que compõe o ‘fluxo vivo’, que não pode ser
completamente reificada, indica não apenas a dificuldade de apreender a realidade
viva, mas mostra a possibilidade de concebermos essa realidade “viva” menos
como coisa morta, e mais como uma forma distinta de experimentar o tempo.
Teremos a oportunidade de avançar nessa comparação entre pensamento e ação ao
analisarmos a questão da historicidade. Por ora, interessa prosseguirmos na
apresentação de um quadro geral das considerações teóricas de Arendt a respeito
da história. Devemos entender que, a separação entre a história real e a história
narrada, que se refere à distinção entre “fluxo vivo” e reificação, coaduna uma
série de outras suposições acerca da história.
N’A condição humana, Arendt traça a diferenciação entre história real e
história narrada através do argumento de que a primeira é da ordem da
contingência, enquanto a segunda, deve seu aparecimento à presença de um autor.
“as histórias reais, ao contrário das que inventamos, não têm autor.” (...) “A
diferença entre a história real e a ficção é precisamente que esta última é feita,
enquanto a primeira não o é.”11 Importa-nos perceber que a escrita da história,
diferentemente da história real, que decorre da ação, é colocada lado a lado com a
ficção no que se refere à presença da autoria porque ambas representam, para a
autora, possibilidades de reificação. A capacidade de transformar a história real
num produto reificado – a história escrita -, de acordo com a estrutura da vita
activa apresentada por Arendt, pode ser inscrita como atividade do homo faber.
Ou seja, a história escrita, tal como a ficção ou obra de arte, é considerada, em sua
materialidade, como um produto fabricado pelo homem. São atividades com
11 Arendt usa a formulação “resultante da ação” para mencionar a história real; enquanto a
história ficcional é um produto de um determinado autor. Id., A condição humana, p. 198.
155
início e fim bem definidos, controlados pelo fabricador que opera o produto. Por
certo, sua análise não ignora a especificidade do ‘produto arte’, diante de outros
produtos, cuja produção visa tão somente ao uso. 12 Nesse sentido, tanto a obra de
arte, quanto a história escrita apresentam-se como ‘produtos’ especiais que
sustentam a durabilidade do mundo. A questão é que, além da materialidade
desses produtos, precisamos entender que sua produção nunca é meramente uma
reificação. Ou seja, apenas uma atividade do homo faber. N’A vida do espírito,
Arendt preocupa-se mais especificamente com a temática da passagem do
pensamento ao produto artístico, mas sua tendência é ainda considerar que a
experiência viva do pensamento resiste à completa transposição material.13 O que
nos importa é indicar que a historiografia surge como uma atividade intelectual,
que se empenha na tarefa de compreender a história real, erigindo ela mesma um
produto que é a história escrita. Diante disso, faz-se necessário explicar não
apenas como é possível a reificação da história, mas também como esse produto
lançado pela atividade do historiador se interpõe no mundo. Seguimos na análise
da primeira questão.
Voltemo-nos para a semelhança entre a produção historiográfica e a
produção artística. Arendt não sugere equivalência entre essas atividades, embora
insista em destacar a presença do autor em ambos os casos. Se n’A condição
humana aparece essa delimitação da história real e da história escrita, que tem por
base a distinção entre ator e autor, vemos ainda em diversos textos a conexão
entre a produção artística e a produção historiográfica, no que se refere à
capacidade de engendrar sentido às ações. Nesse quesito, a autora indica,
sobretudo, a afinidade entre historiografia e poesia, mas também alude à literatura,
quando menciona, por exemplo, o texto de Faulkner sobre a Primeira Guerra
Mundial, destacando sua competência para revelar o sentido do evento.14 Tendo
12 Devemos considerar que a arte não é apenas um produto, ou seja, não é um produto que
está sob o controle absoluto do seu fabricador. A obra de arte nunca corresponde integralmente à intenção do artista. LAFER, C. Da Dignidade da Política: sobre Hannah Arendt, In: ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 9-27.
13 Ver também em Algumas questões de filosofia moral, In: ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 162. “na medida em que o pensamento é uma atividade ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados de objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso por alguma necessidade e carência humana.”
14 “O livro de Faulkner, Uma Fábula (1954) supera em discernimento e clareza quase toda a literatura sobre a Primeira Guerra Mundial pelo fato de que o seu herói é o Soldado
156
em vista a similitude entre historiografia e ficção, Arendt remete à origem comum
dessas atividades. Segundo ela, a cena de Ulisses ouvindo sua própria história na
corte dos feácios é paradigmática tanto para a poesia quanto para a história. Sua
sugestão fundamenta-se no pressuposto segundo o qual tanto a escrita poética,
quanto à escrita da história estão separadas, e, ao mesmo tempo, constituem-se
apenas na relação com a ação, pois sua tarefa é dotar de sentido o que outrora era
mera contingência.15 O importante é notar que para a narrativa, seja ela histórica
ou ficcional, está sempre em jogo a noção de reconciliação com a ação. De modo
que a separação entre a história real e a história escrita nunca é definitiva.16
Não obstante a semelhança entre história e ficção, deve-se destacar que
Arendt não se situa dentre os autores que vislumbram uma equiparação entre os
dois tipos de produção, a qual acarreta a impossibilidade de distinguir qualquer
verdade no âmbito da história. Tal questão parece se esclarecer em “Verdade e
política”, onde a autora defende a existência da verdade factual e distingue o
narrador da verdade dos fatos de outros narradores. Nesse texto fica em evidência
a tarefa das “Ciências Históricas e as humanidades, que têm a obrigação de
descobrir, conservar sob guarda e interpretar a verdade dos fatos e os documentos
humanos, têm relevância politicamente maior.”17
Vale lembrar que já em Origens do totalitarismo, a autora apontava para a
tentativa totalitária de controlar o rumo da história através da predição do futuro,
Desconhecido.” Id., A condição humana, p. 193. Em Homens em Tempos Sombrios, a autora também mostra a mesma opinião. Ver em especial “Após a Primeira Guerra Mundial, tivemos a experiência de ‘dominar o passado’, com uma enxurrada de descrições sobre a guerra, imensamente variadas em tipo e qualidade; naturalmente isso não ocorreu apenas na Alemanha, mas em todos os países atingidos. Contudo, deveriam se passar quase trinta anos antes que surgisse uma obra de arte que apresentasse a verdade íntima do acontecimento de um modo tão transparente que se podia dizer: Sim, é como foi. E nessa novela, A Fable (Uma Fábula) de William Faulkner, descreve-se muito pouco, explica-se menos ainda e não se ‘domina’ absolutamente nada; seu final são lágrimas pranteadas também pelo leitor, e o que permanece para além disso é o ‘efeito trágico’ ou o ‘prazer trágico’, a emoção em estilhaços que permite à pessoa aceitar o fato de que realmente poderia ter ocorrido algo como aquela guerra.”Id., Homens em tempos sombrios, p. 27.
15 Nesse sentido, lemos que “A História como uma categoria de existência humana, é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero. Não historicamente falando, mas poeticamente, Ulisses, na corte do rei dos Feácios, escutou a estória de seus próprios feitos e sofrimentos, a história de sua vida, agora algo fora dele próprio, um ‘objeto’ para todos verem e ouvirem. O que fora pura ocorrência tornou-se agora ‘História’”. Id., Entre o passado e o futuro, p. 75.
16 Não trataremos aqui de procurar diferenciar, seja na obra arendtiana ou teoricamente, poesia e ficção. Para nossa questão da história parece bastar, tomar de um lado o texto histórico e de outro o texto ficcional. Luiz Costa Lima aborda a especificidade dessa questão em História, ficção e literatura. Para a discussão sobre ficção ver também KERMODE, F. The sense of an ending.
17 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 322.
157
falsificação de dados e do próprio extermínio dos judeus, indicando a construção
de uma realidade paralela, a qual era designada como “realidade fictícia”. A
concepção da “realidade fictícia”, que se sustenta pela supressão da contingência
inerente à realidade humana, baseia-se na hipótese de que o totalitarismo não
preserva a diferença existente entre a história real e a história escrita. A “realidade
fictícia” nada mais é do que a superposição da história real e da história escrita.
Seu empreendimento é tornar indistinguível a posição do ator e do autor da
história. Se apresentando como aquele que conhece o rumo da história, o
totalitarismo assume a perspectiva do autor da história – daquele dirige sua trama
-, sem deixar de ser também ator da história. O termo fictício, portanto, já
indicava a separação, que não era respeitada, entre história real e história escrita.
Não podemos deixar de sublinhar que a efetivação da “realidade fictícia”
instaurada pelo totalitarismo está ligada à aspiração de converter a história real em
mero produto humano, ou seja, eliminar a diferença entre história real e história
escrita.
O uso da designação “fictícia” n’A condição humana, que se interpõe na
descrição da divisão entre história real e história escrita, compartilha do
significado já referido em Origens do totalitarismo, mas não para assinalar a
superposição sugerida no estudo sobre totalitarismo. Ao contrário, visa demarcar a
distinção entre ator e autor, estabelecendo teoricamente a diferença entre história
real e história escrita. O que deve ser entendido nessa remissão ao ficcional é o
propósito da limitação entre história real e escrita da história. A partir da
comparação entre os textos de Arendt, podemos inferir que a ficção só pode
existir quando concebida a diferença entre ator e autor, e a “realidade fictícia” não
é o mesmo que o produto da ficção, mas antes, o abandono da diferença entre
história real e história narrada.18 Assim, quando aparece a designação “realidade
ficcional” que, nos termos arendtianos tem o mesmo sentido de realidade
mentirosa, não precisamos nos assustar suspeitando que a autora imagina a
equivalência entre ficção e mentira. O que é idêntico à mentira não é a ficção, mas
sim, a realidade ficcional que o totalitarismo erige suplantando a diferença
18 Nesse sentido, também é interessante mostrar a possibilidade de pensar a ficção menos
nos termos da relação entre realidade e representação da realidade, e mais a partir da diferença entre ator e autor. Resta responder às análises que consideram a posição do autor como a de um ator de segunda instância - o observador que vê a si mesmo. Ver FOUCALT, M., As palavras e as coisas.
158
fundamental entre a “realidade” e a ficção. O termo “realidade fictícia” parece
designar literalmente o que expressa, a saber, a edificação de uma tentativa de
tornar a ficção uma realidade.
Ao descartar a separação arendtiana entre ficção e não-ficção,
considerando que o importante com relação à estória é apenas a produção de
sentido que propicia a durabilidade do mundo, George Kateb acaba por concluir
que a autora não tem como sustentar a distinção entre a realidade ficcional
instituída pela ideologia totalitária e a realidade fundada pelo contador de estórias,
pois ambas podem ser compreendidas como possibilidade de “criação” da
realidade. O que a leitura perspicaz de Kateb sugere é que o contador de estórias
em Arendt é o responsável pela edificação de sentido daquilo que se entende por
realidade. É ele que, ao compreender o sentido das ações, narra estórias que
permitem aos homens “estar em casa nessa terra”, ou seja, conceber a realidade
como fundamentalmente humana. Observando a diferenciação entre verdade e
sentido seguida pela autora, Kateb mostra que o storyteller deve “reveals meaning
withouth committing the error of defining it”. De modo que a narrativa do
contador de estórias aparece como “the case that meaning is never truthful and,
worse, that truth is always meaningless. The quest for meaning is a self-enclosed
language game, just as quest for knowledge is.”19 A questão de Kateb está
diretamente relacionada à caracterização do historiador como aquele que narra
uma estória. Ao cunhar o termo comum storyteller para tratar dessa aproximação
e indicar que o historiador não é o descobridor de uma verdade que está escondida
no processo histórico, a autora deixa a impressão de que não há separação entre o
ficcionista e o historiador. Desse ponto de vista, talvez a argumentação de Kateb
tenha sentido. Sua dúvida se refere à possibilidade da distinção entre a realidade
fictícia do totalitarismo e a realidade real não totalitária. Sua proposição incide
também sobre a invalidade da perspectiva metafísica. Grosso modo, sua questão
tem certa semelhança com a suposição de Derrida, e versa sobre a limitação do
real. Segundo ele, se o sentido é uma atribuição indeterminada que cada época
tem de si, não se pode delimitar a metafísica como uma falácia ou o totalitarismo
19 KATEB, G., Ideology and storytelling, p. 325-329. “revelar o sentido sem cometer o erro
de defini-lo (…) o caso em que o sentido nunca revela a verdade e, pior, a verdade é o mesmo que sentido. A questão do sentido está auto-referida num jogo de linguagem que é a questão do conhecimento.”
159
como uma realidade fictícia, tratar-se-ia, ao invés disso, de realidades distintas,
nas quais estão implicadas visões de mundo distintas.
O que podemos retorquir, de imediato, em Kateb é o fato de sua análise
não evocar a separação entre história real e escrita da história. Tudo funciona
como se a atribuição de sentido fosse aleatória, ou se referisse apenas à intenção
ou compreensão de mundo dos contadores de história. Ao não discernir que a
escrita da história versa sobre a ação, e está amparada, em Arendt, pela separação
entre ação e história, toda a realidade parece uma ‘criação’ da atividade
intelectual. A indistinção entre o ficcionista e o historiador, que não permite notar
a especificidade do “contador da verdade dos fatos [que] é também um contador
de estórias”20, para usar os termos arendtianos, confere maior plausibilidade à tese
de Kateb, mas implica num afastamento maior acerca das proposições da autora.
Se as histórias conferem sentido à realidade, devemos ter em mente que, para
Arendt, elas não fazem aparecer a realidade, pois a realidade se refere à
experiência da pluralidade – é o que se passa entre os homens. Por isso, a
insistência da autora em enfatizar a experiência das ações e indicar que a história
só acontece quando os homens agem – dadas as ações reais dos homens. Lembre-
se que, na perspectiva arendtiana, não é a teoria que muda o mundo, mas as ações
dos homens. No entanto, se considerarmos, conforme as suposições da autora, que
é possível falsificar dados e alterar a história, fica mesmo difícil distinguir entre
realidade e realidade fictícia, pois a própria verdade de fato, nesse caso é uma
mentira considerada verdade.
Vimos, ao evocar o texto de Derrida, que, por sua vez, acredita que essa
remissão à verdade de fato não resolve o problema da verdade e entende que a
autora precisa contar com uma noção de verdade absoluta para designar o
totalitarismo como mentira absoluta, que uma das possíveis soluções de Arendt
para não se enredar num universo onde não é mais possível discernir entre
realidade e realidade fictícia - ou entre verdade e mentira - é a indicação da
inverossimilhança da realidade fictícia. Para a autora, havendo ainda um mundo
não-totalitário e a possibilidade de iniciar a novidade no mundo, o totalitarismo
precisaria constantemente rever seus prognósticos e falsificações acerca da
história, pois os novos acontecimentos poderiam deixar sem sentido a realidade
20 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 323.
160
fictícia rigidamente coerente. Nesse sentido, observamos que, apesar de não ter
um sentido pré-determinado ou secreto, a história real deixada pela ação tem uma
coerência própria. Entretanto, a resposta ainda contava com a existência de um
mundo não-totalitário, ou seja, a mentira absoluta não é absoluta no sentido de
que não há possibilidade de discernimento entre a realidade e a realidade fictícia –
como se tudo estivesse tomado por essa realidade totalitária. A situação a qual
tanto Derrida quanto Kateb fazem referência é aquela onde não se pode distinguir
entre verdade e mentira, ou entre realidade e realidade fictícia, pois toda
compreensão de mundo tem o mesmo valor, e não há nada fora da história para
definir parâmetros. Derrida observa que Arendt não leva ao extremo sua indicação
da indistinção, enquanto Kateb infere o oposto ao notar que a autora não tem
como sustentar a diferença entre as diferentes realidades. O que está em questão é
se Arendt comunga da versão dita pós-moderna da história, para a qual tudo é
interpretação ou ainda defende a possibilidade de uma verdade em si. Kateb, ao
entender que a proposta da autora é compreender o mundo como linguagem,
acaba propondo uma leitura mais “pós-moderna” para a autora, onde toda a
designação de mundo seria discursiva.21 Derrida, como notamos em outro
momento, tem a conclusão inversa.22
O que precisamos explicar é como a autora pode enfatizar a prioridade do
sentido e da compreensão em oposição à noção de verdade absoluta, e ainda não
recair num extremo relativismo. Ou seja, como pode rejeitar a concepção da
verdade absoluta e admitir a existência da verdade de fato e da realidade do
mundo. Com a distinção entre história real e escrita da história, observamos que
Arendt pretende indicar uma saída para a consideração da história como verdade
absoluta. Como destacamos, não há na suposição da história real, nenhuma
referência ao desenvolvimento de uma verdade absoluta, como se dos assuntos
humanos fosse possível tirar alguma verdade eterna. Ao contrário, sendo a história
real, os feitos e eventos que a “ação deixa atrás de si”, ela só pode ser concebida
diante da liberdade do homem. Tendo como pressuposto que é uma história
indeterminada, cujo fundamento é a contingência. Nada do que acontece deve
necessariamente acontecer. A verdade que se pode encontrar na história é apenas a
21 Falamos aqui da proposição de Kateb em Hannah Arendt: poltics, conscience, evil, onde
o autor defende que a ação arendtiana refere-se apenas ao plano discursivo. 22 Para melhor detalhamento das proposições de Derrida ver cap. 3.
161
verdade do fato, que é uma verdade retrospectiva. Ocorre que se a história real
está na esfera da contingência, a história escrita precisa compreender como um
acontecimento pôde aparecer dentre as diversas possibilidades configuradas.
A suposição arendtiana é que a história real, na maior parte das vezes, foi
entendida como se fosse regida por um autor, enquanto, o que ocorre é que os
atores não são autores de sua história. Não seria viável objetivar o rumo dos
assuntos humanos, pois nessa esfera impera a liberdade do homem e a
possibilidade de advir a novidade. Considerar a história como se houvesse uma
consciência por trás dela foi, para Arendt, o grande engodo das filosofias da
história, mas não só delas, pois esse engano seria a ilusão comum à própria
tradição do pensamento e se refere ao “desconcertante problema de que, embora a
História deva sua existência aos homens, obviamente não é ‘feita’ por eles.”23
Nesse sentido, a autora entende que esse equívoco que conduziu durante muito
tempo as análises e aproximações do mundo dos assuntos humanos é basicamente
o mesmo desde Platão. O problema é explicar a ação do ponto de vista do
pensamento, donde a pluralidade dos homens é abordada como se constituísse
uma singularidade plenamente consciente de seus atos – um homem que faz a
história. A alternativa arendtiana para amenizar a dificuldade de tomar a história
como se houvesse alguém por trás dos bastidores, é indicar a “natureza política da
História”, mostrando que a história é a “história de atos e feitos, e não de
tendências e forças ou idéias – que a introdução de um ator nos bastidores que
vemos em todas as filosofias da História.”24
A separação entre história real e escrita da história não nos parece
constituir uma separação absoluta, como se indicasse que as instâncias do político,
na qual os atores agem, e da historiografia, na qual os autores escrevem, fossem
totalmente desconectadas. Nesse sentido, a importância do interesse arendtiano
pelo político, não é contrária, nem se sustenta sem uma reconsideração da
historiografia. A questão da autonomia da ação está diretamente relacionada à
tematização da história, e não apenas porque podemos nos referir à história de seu
surgimento e de seu esquecimento, mas, antes, porque a ação e a liberdade do
23 ARENDT, H., A condição humana, p. 198. 24 Idem. Lemos ainda que “A perplexidade é que em qualquer série de eventos que, no
conjunto, compõem uma história com significado único, podemos, quando muito isolar o agente que imprimiu movimento ao processo; e embora esse agente seja muitas vezes o ‘herói’ da história, nunca podemos apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final” Idem, p. 197.
162
homem de começar só podem vir à tona quando a história real não é equivalente à
história escrita. A distinção entre essas esferas, que separa ator e espectador, é o
que concede a Arendt a ocasião de defender a autonomia da política. No nosso
entendimento, essa distinção surge também como a requisição da especificidade
da história. Tanto num caso, como no outro, trata-se da valorização, diante da
tradição de uma retomada dos assuntos humanos.
Para a história, enquanto historiografia, essa proposição pode significar a
defesa da particularidade da escrita da história frente à tradição do pensamento
filosófico, além de revelar um questionamento das associações com a sociologia e
outras disciplinas que tem uma perspectiva geral acerca dos assuntos humanos.
Em outras palavras, indicar que a historiografia é perpassada pelo exame da
singularidade dos acontecimentos e que sua preocupação não deve ser a
descoberta de verdades eternas ou proposições universais. Seu objeto é a própria
novidade que surge no mundo pela ação dos homens.
O novo é o domínio do historiador que, ao contrário do cientista natural, preocupado com acontecimentos sempre recorrentes, lida com eventos que sempre ocorrem somente uma vez. Esse novo pode ser manipulado se o historiador insiste na causalidade e arroga-se a capacidade de explicar os eventos por meio de uma corrente de causas que nele culminou. (...) É tarefa do historiador detectar esse novo inesperado com todas as suas implicações, em qualquer período, e trazer à luz a força total de sua significação.25
Reconhecer sua especificidade é perceber que sua perspectiva é
inevitavelmente retrospectiva. Assim, a escrita de uma história só se inicia quando
a ação já chegou ao fim. Sua tarefa é conceder ao mundo o sentido da história, que
não pode ser vislumbrado pelos atores, que, envolvidos no processo, não têm
condição de compreender o significado da história que colocam em ação.
Todo relato feito pelos próprios atores, ainda que, em raros casos, constitua visão fidedigna de suas intenções, finalidades e motivos, não passa de fonte útil nas mãos do historiador, e nunca tem a mesma significação e veracidade da sua história. (...) para o ator, o sentido do ato não está na história que dele decorre. Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e ‘faz’ a história.26
O que precisamos entender é como o historiador pode conceber o
significado da história se não há nenhum sentido ‘escondido’ por trás das ações – 25 ARENDT, H., “Compreensão e política”, In: A dignidade da política, pp. 49 e 50. 26 Id., A condição humana, p. 204-5
163
se não há sentido há ser desvendado? A princípio pode parecer que a sugestão
arendtiana se assemelha a argumentação de Max Weber e dos neo-kantianos para
quem o sentido da história só é dado a posteriori pela teoria. Seria o caso de
Arendt também estar concebendo desse modo a atribuição de sentido pelo
historiador? Na verdade, contamos com outra hipótese. A autora não supõe que a
história real possa adquirir significado simplesmente pelo uso do método. O
historiador pode atribuir sentido às ações não porque arregimenta um sentido com
sua explicação teórica onde coaduna certos fatos e ocorrências que a princípio
constituem mera casualidade, mas porque um sentido a ele se revela.
Em “Compreensão e política”, a autora deixa claro que não é o historiador
que ‘inventa’ uma história de acordo com seus parâmetros subjetivos, ao
contrário, é o próprio evento que exige uma história. Sua proposição é a de que o
próprio acontecimento deixa ver a história a ser narrada. Podemos citar suas
palavras para mostrar que o evento e sua singularidade constituem a própria
possibilidade de sentido “Sempre que ocorre um evento grande o suficiente para
iluminar seu próprio passado a história acontece. Só então o labirinto caótico dos
acontecimentos passados emerge como uma estória que pode ser contada, porque
tem um começo e um fim.”27
O que chama a atenção nessa passagem é a explicitação da conexão entre
acontecimento e história, que esclarece melhor a noção desenvolvida n’ A
condição humana onde vimos a elaboração da relação intrínseca entre história real
e escrita da história. Considerando que a ação se define como a possibilidade da
novidade, Arendt estabelece que ela mesma interpõe uma ruptura que delimita o
fim de uma história e o início de outra. Se tomarmos rigorosamente essa
proposição, poderemos visualizar o seguinte encaminhamento: a ação interrompe
uma determinada continuidade histórica e abre a possibilidade de um novo
processo cujo sentido só se revelará no seu final. Desse modo, a história a ser
contada já está indicada pela novidade da ação. Ao conceber sua teoria da história,
Arendt visa resguardar, como estamos indicando ao longo desse trabalho, a
possibilidade da novidade, ou seja, não pretende subordinar a ação ao
pensamento. A história não aparece como processo autônomo, nem pode ser
27 Id., A dignidade da política, p. 49. A rejeição da causalidade e da aplicação de categorias
gerais visa libertar a historiografia para que possa entrever “a luz ‘natural’ que a própria história oferece”. Ibid., p. 50.
164
determinada pela teoria. A história só existe na medida em que o homem age. Isso
não significa exatamente que a história é composta apenas de momentos
extraordinários, que como a própria autora explica, não são tão comuns. A
suposição é a de que a ocorrência do evento efetiva a passagem da esfera da ação
para o âmbito da história. Seu pressuposto é que para um evento se realizar ele
precisa deixar de ser mera possibilidade. É como se a sua efetivação matasse as
diversas possibilidades que estavam em jogo para os atores. Em outras palavras, a
concretização de um evento o retira imediatamente do possível e torna-o fato. Ao
acontecer, a ação sai da ordem da contingência para estabilizar-se como
necessidade. Não é a narração ou o historiador que produz a história ao escrever
sobre ela como pode sugerir a passagem de “Verdade e política”, onde vemos que
“Aquele que diz o que é – légei ta conta – sempre narra uma estória, e nessa
estória os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem um sentido
humanamente compreensível.”28 Essa história só pode ser narrada porque o
evento se concretizou. Porque “o que é” já pode ser identificado como “o que é”,
ou seja, perdeu seu aspecto de contingência para constituir-se como fato
irreversível.29
Daí as atenções arendtianas acerca da história caracterizarem-se como
tentativas de compreender o irrevogável, ou seja, aquilo que aconteceu e não pode
ser modificado. O evento tendo se tornado acontecido passa a ser um fato. É nesse
sentido que a história é sempre um post facto e a atividade do historiador, de
narrar o que aconteceu e compreender o acontecido, deve ser entendida como um
olhar retrospectivo. A história a ser escrita, portanto, está intrinsecamente ligada
ao acontecido, que ao passar da contingência à necessidade já se torna história. O
sentido só pode ser vislumbrado depois que a novidade interrompeu a história e
interpôs uma história com início e fim. A história não é exatamente a história do
evento, mas a história iluminada pelo evento. Tal valorização do acontecimento,
que enfatiza a preponderância do particular ante o geral, sustenta todo o
28 Id., Entre o passado e o futuro, p. 323. 29 Arendt explicita esse argumento ao analisar a filosofia de Duns Scottus. “Uma coisa pode
ter acontecido bastante ao acaso, mas uma vez que tenha vindo a ser e que tenha assumdo realidade, perde seu aspecto de contingência e apresenta-se à nós com aspecto de necessidade. (...) Uma vez que o contingente aconteceu, não podemos mais desembaraçar os fios que o enredaram até que se tornasse um evento – como se pudesse ainda ser ou não ser.” Id., A vida do espírito, p.289.
165
argumento arendtiano contra a concepção moderna de história e sua versão mais
bem acabada da filosofia da história.
A constatação acerca da existência do fato contraria a atual concepção em
voga na historiografia, segundo a qual privilegia a retomada do passado como
interpretação do passado e rejeita a noção da realidade do fato passado. Ao rever a
validade do fato e conceber a escrita da história a partir da separação com a
história real, pode-se imaginar que Arendt esteja na contramão das teorias
contemporâneas da história que sequer contam mais com a idéia de que o passado
de fato é passado.30
A sustentação da versão factual da história não se faz sem a consideração
de que o passado só é retomado pela interpretação e de que na escrita da história
está sempre em jogo a posição do historiador e sua historicidade. O que Arendt
parece querer resguardar com sua noção de história é a própria existência comum
no mundo. Menos que pensar a história como mera historiografia e produção
intelectual, como se o historiador pudesse de fato “fazer” história; a autora supõe
que os assuntos humanos compõem a realidade do mundo. Nossa leitura mostra
que, para Arendt, a rejeição dos fatos é o mesmo que a negação da possibilidade
de agir dos homens. A consideração da pluralidade do mundo e da liberdade do
homem de iniciar a novidade no mundo não pode ser entendida meramente como
construção conceitual ou atividade do pensamento. A história não pode ser
equivalente à interpretação historiográfica porque o que a movimenta é o agir dos
homens. A história é a história das ações – dos feitos, dos acontecimentos e dos
inícios promovidos pela ação humana.
Assim, do mesmo modo que concebe a ação como o que se passa entre os
homens, a autora entende que a história é a história dos homens, e não do Homem,
como sugeria o conceito moderno de história no seu afã de integrar toda a
humanidade. Essa proeminência da noção da pluralidade, que garante a
singularidade da concepção arendtiana de ação e sua defesa da autonomia dos
negócios humanos em relação ao pensamento, é, como supomos, o fundamento da
sua concepção de história, que pode ser concisamente enunciada na proposição de
que a história
30 Veremos um exemplo dessa posição mais adiante em Merleau-Ponty.
166
tem muitos começos, mas nenhum fim. O fim, em qualquer sentido estrito e definitivo da palavra, só poderia ser o desaparecimento do homem da face da Terra. Pois o que quer que o historiador chame de fim, seja o fim de um período, de uma tradição, ou de toda uma civilização, ele é um novo começo para aqueles que estão vivos (...) uma história que nunca pode acabar, por ser a história dos seres, cuja essência é começar.31
A história não surge com um processo singular e autônomo. A ligação
entre ação e história revela que a história, tal como a existência dos homens, é
marcada pela pluralidade. Através da idéia de que a história é uma história de
muitos inícios e nenhum final, a teoria da história arendtiana revela sua ênfase na
descontinuidade da história. A história aparece como um mosaico constituído de
uma pluralidade infinita de histórias. Compondo-se como “o livro de histórias da
humanidade”.32 Nesse sentido, Arendt parece indicar a possibilidade de existir um
lugar “fora” da história, que não é nem outro mundo da verdade, nem um ponto de
vista arquimediano, como aquele vislumbrado no fim da história de Hegel. A
história ainda pode ser vista como um ‘espetáculo’, e, aliás, a suposição
arendtiana, é que ela só pode mesmo ser concebida dessa forma – da perspectiva
do espectador -; sem que isso signifique que o homem tenha desvendado uma
verdade absoluta. O que precisamos observar é que a história perde sua aura
divina – em outras palavras, deixa de ser pensada como um processo autônomo
dotado de sentido próprio o qual poderia ser visualizado no fim da história -, para
ser admitida como a relação entre a história real, lançada pela ação, e a história
escrita, narrada pelo historiador. Nessa concepção, a historiografia não insurge
como interpretação que perde de vista a realidade à qual corresponde, como se
passasse a ter o significado de mera representação. Ao tematizar a história, Arendt
já não conta com a abordagem tradicional que supõe a duplicidade entre essência
e aparência, por isso, não se deve entender que a tarefa do historiador seja buscar
a realidade do passado ou reproduzi-lo. Se, em comunhão com as teorias pós-
modernas da história, a autora, que também se vê empenhada na desmontagem da
metafísica, alude à tarefa interpretativa do historiador, isso não exprime a
subjetivação da história ou a possibilidade de confundir verdade e mentira. A
autora não descarta as discussões que indicam a impossibilidade de haver fatos
sem interpretações, mas, antes argumenta que
31 ARENDT, H., A dignidade da política, pp. 51 e 52. 32 Id., A condição humana, p. 197.
167
esta e muitas outras perplexidades inerentes às Ciências Históricas são reais, mas não constituem argumento contra a existência da matéria fatual, e tampouco podem servir como uma justificação para apagar as linhas divisórias entre fato, opinião e interpretação, ou como uma desculpa para o historiador manipular os fatos a seu bel-prazer.33
Entendemos que a admissão da autonomia da ação em Arendt acarreta sua
compreensão da especificidade da história porque a história não se apresenta
como um ‘constructo’ intelectual sem correspondência na realidade. O historiador
não pode ‘criar’ o acontecimento. O que lhe resta é narrar e compreender essa
história legada pela ação, isto é, contar a história real sob a forma da história
escrita. Por isso, a “ciência” histórica, vislumbrada por Arendt baseia-se na
análise da novidade, ou seja, do inesperado, do singular. Sua especificidade é
tentar compreender como a novidade pôde aparecer no mundo. Na perspectiva
arendtina isso significa que o historiador deve propiciar a reconciliação com o
fato. Sua tarefa é explicar como o possível se tornou necessário. Ao contar a
história, deixa ver como a novidade vem ao mundo, isto é, como o acontecido se
afirma em meio à contingência. Aludindo à importância de compreendermos o
totalitarismo, Arendt indica a validade do próprio exercício da compreensão
diante da novidade, segundo ela, “ao compreendermos o totalitarismo não
estaremos perdoando coisa alguma, mas, antes, reconciliando-nos com um mundo
em que tais coisas são definitivamente possíveis.”34
Ao assumir o lugar da transposição da história real para a história escrita, o
historiador faria uma espécie de reconciliação com a realidade, a qual Arendt,
define também como compreensão. “E os olhos do historiados representam
somente o olhar cientificamente treinado da compreensão humana; só podemos
compreender um evento como o final e a culminação de tudo o que aconteceu
antes, como o ‘preenchimento dos tempos’”.35 Ao designar ao historiador a tarefa
da compreensão por excelência, ou seja, considerar que a compreensão, que é a
possibilidade de todos, é a ocupação específica do historiador, Arendt esclarece
como ação e compreensão são como duas faces da mesma moeda.
33 Id., Entre o passado e o futuro, p. 296. 34 Id., A dignidade da política, p. 39. 35 Ibid., p. 50.
168
Se a essência de toda a ação, e em particular da ação política, é fazer um novo começo, então a compreensão se torna o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição, diferente de muitas outras, que permite aos homens de ação (e não aos que se engajam na contemplação de um curso progressivo ou amaldiçoado da história), no final das contas, aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe.36
Na articulação entre ação e compreensão, donde a compreensão surge
como uma espécie de reconciliação, a história e o historiador adquirem posição de
destaque na obra arendtiana. Nesse sentido, Odílio Aguiar sugere que, em Arendt,
“o filósofo tem que se tornar um storyteller, pois não adianta mais partir de uma
universalidade dada aprioristicamente, uma vez que o sentido só emergirá na
medida em que o pensamento se debruçar sobre os acontecimentos”.37
De fato, a aposta no storyteller se faz na contramão da tradicional ênfase
no filósofo e no ponto de vista geral do teórico. O filósofo arendtiano não
encontra nenhum lugar especial como aquele reservado a ele na concepção
tradicional do pensamento. Até mesmo porque a presunção de conhecer a verdade
que deslocava o filósofo do mundo, pelo menos desde Platão, era o que garantia
seu status específico. Voltando-se contra a primazia do pensamento sobre a ação,
Arendt recusa também a idéia da torre de marfim. No entanto, não parece que a
autora renegue a filosofia como uma atividade específica. O problema não está em
ser filósofo ou não, mas em tomar a perspectiva geral ou a noção de validade
universal como orientação para compreender os assuntos humanos. O pensamento
ainda pode ser a sua tarefa. Mas será compreendido menos como uma atividade
especial que pode entrever a verdade do mundo, e mais como um exercício
improdutivo e sem finalidade, que como a “teia de Penélope se faz de dia e se
desfaz à noite”.38
O que se mostra evidente na proposição de Aguiar, apesar de não
concordarmos com suas conclusões que indicam a confluência de filosofia e
história na atividade do storyteller, é o papel fundamental da história e do
historiador. É certo que a história não pode ser tomada como processo autônomo,
nem o historiador como um cientista natural que observará a regularidade dos
36 Ibid., p., 52. 37AGUIAR, Odílio Alves. “Pensamento e Narração em Hannah Arendt”, p. 216. In:
MORAES, E. e BIGNOTTO, N. (org.). Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias. Também é o que suspeita Kateb quando revela: “I think that for Arendt only stories or other intellectual modes can be construed as stories are meaningful.” KATEB, G. Ideology and storytelling, p. 330.
38 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios.
169
eventos. Justamente para marcar essa diferença, Arendt cunha o termo storyteller.
Seu intuito é mostrar que a atividade do historiador não pode ser concebida como
possibilidade de revelar a verdade, como se houvesse uma estabilidade ou uma
verdade geral por trás da melancólica casualidade dos fatos. Ou seja, sugere que
os assuntos humanos não podem ser considerados do ponto de vista de uma
verdade eterna – aquela imaginada pela tradição metafísica.
A noção de que o historiador é um contador de histórias indica que não há
verdade absoluta por trás da história; e arremata sua configuração para a
concepção de que há uma separação entre história real e história narrada. É a
partir da configuração dessa distinção que o historiador aparece como aquele que
pode realizar a reconciliação com a realidade. Tal referência à realidade e à noção
de reconciliação indica a possibilidade de compreender o sentido dos fatos e feitos
que são originalmente do âmbito da contingência. Reconciliar-se significa para
Arendt não apenas a possibilidade de perdoar, mas, principalmente, a
oportunidade de entender como um evento ocorre de determinado modo, mesmo
podendo ter sido realizado de outras formas. O que faz a reconciliação tão
importante na teoria arendtiana é que, se a ação está na esfera da possibilidade e
da liberdade, a história passa ao ângulo da necessidade, pois uma vez ocorrido um
fato, as possibilidades estão mortas. Nesse sentido, Arendt parece ainda carregar
algum resquício da interpretação hegeliana da história onde a “coruja de Minerva
só alça vôo ao entardecer”. 39
No entanto, devemos atentar para o fato de que o ‘fim’ da história
arendtiano não se apresenta como culminância do saber absoluto, nem como
qualquer ‘fim’ definitivo, como se houvesse uma realização da história. Ao
contrário, para ela, enquanto houver novos homens recém-chegados ao mundo,
vem com eles sempre a possibilidade de novos eventos e novas histórias. Se ainda
é fundamental para Arendt a noção de fim da história e de reconciliação, se é
nesse quadro que a historiografia parece encontrar seu lugar na teoria da história
arendtiana, não podemos deixar de notar que à idéia de fim, a autora interpõe a
noção de começo. De modo a sugerir ao historiador que se oriente mais pela 39 Arendt define a compreensão como “um processo complexo, que jamais produz
resultados inequívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo. (...) “a atividade da compreensão é necessária; se jamais pode inspirar diretamente a luta ou fornecer objetivos que do contrário estariam ausentes, por outro lado pode, por si só, conferir-lhe sentido.” ARENDT, H., A dignidade da política, p. 39.
170
compreensão da novidade que pela detecção dos fins. Ao contrário de Hegel que
vislumbra a possibilidade da reconciliação no fim da história, Arendt propõe que a
reconciliação se inicia quando um evento vem à tona e juntamente com ele uma
história se ilumina. Assim, sua hipótese é a de que, tal como a infinita
possibilidade da novidade, que está inscrita no aparecimento dos homens na
Terra, a história real – que surge das ações humanas – não pode encontrar um fim.
É fato que a conceituação da história como “a história de muitos inícios e nenhum
final” precisa contar com a suposição da interrupção da história, que é, de certo
modo, o fim de uma determinada continuidade, mas o fim, nessa perspectiva,
sendo apenas o fim de uma continuidade histórica, não se constitui como fim
definitivo, e revela que, no hiato entre uma história e outra, pode se efetivar a
compreensão da ação, qual seja, a escrita da história. Assim, o lugar da
reconciliação que em Hegel é um lugar ‘fora’ da história, em Arendt aparece
como um espaço ‘entre’ as histórias, que se caracteriza ainda como um lugar
‘fora’ da história, mas não se compromete teoricamente com a perspectiva
hegeliana do fim da história. A ênfase na novidade nos mostra que a história
traçada por Arendt, como sugerimos antes, não parece uma determinação da
história. Ao contrário, seu suposto fim surge, na verdade, como a possibilidade de
um recomeço.
O que precisamos entender é como essa versão da descontinuidade da
história se adéqua à sua grande narrativa da história ocidental, pois por mais que
possamos imaginar que a tradição do pensamento político, abordada por Arendt
seja apenas uma história dentre outras, o fato é que sua história abrange quase a
totalidade da história conhecida e, em termos gerais, não se difere de outras
grandes narrativas que traçam o desenvolvimento da história ocidental.
Seyla Benhabib supõe haver certa contradição entre a ênfase arendtiana na
descontinuidade, de um lado, e na continuidade, de outro.40 A autora relaciona
essa divergência às influências distintas de Benjamin e Heidegger sobre Arendt.
De fato, chama a atenção que muitas das considerações teóricas arendtianas
assemelhem-se às proposições benjaminianas, sobretudo, no que se refere à
valorização do evento como aquele que “ilumina” o passado e na proeminência de
uma historiografia retrospectiva. Tal como Benjamin, Arendt entende que a
40 BENHABIB, S., The reluctant modernism of Hannah Arendt.
171
história “se faz a contrapelo”.41 Toda a sua tentativa de se desvencilhar da noção
de processo e progresso, que constitui a perspectiva moderna da história, encontra
eco no trabalho de seu amigo. Ambos procuram enfatizar a singularidade do
acontecimento como a novidade que dá sentido à história. Como vimos na leitura
de Habermas sobre Benjamin, trata-se da tentativa de salvar o significado da
novidade mediante o continuum aparecimento de novidades mais novas – sair da
tempestade do progresso, que conforme a metáfora benjaminiana do quadro de
Klee arrasta tudo para o futuro.42 O anseio de conceber a história menos como
“tempo homogêneo e vazio” e mais pelo aspecto qualitativo do evento que
interrompe a continuidade do processo autônomo realmente parece aproximar
Arendt e Benjamin. A alternativa de Benjamin para a tempestade surge como a
possibilidade de atualização do passado, que é retomado como num “salto de
tigre” e se caracteriza como um tempo-agora. Arendt também vislumbra a saída
da continuidade através da irrupção da novidade, e também sugere a possibilidade
da retomada do passado pelos homens de ação diante da experiência da novidade.
Mas, nesse sentido, qual seja, no intuito comum de encontrar uma opção que se
interponha à concepção moderna da história, Arendt não observa contradição
entre Benjamin e Heidegger. Ela mesma aponta a afinidade entre os dois autores
acerca do anseio de tentar retomar o passado sem o fio autoritário da tradição. Daí
ser possível, como sugere André Duarte, considerar a perspectiva histórica de
Arendt, a partir da inspiração benjaminiana e heideggeriana, como o esforço
hermenêutico de retomar o passado.
Benhabib, por sua vez, ao indicar a suposta contradição, sublinha a
importância da ruptura da continuidade na versão de Benjamin e a manutenção da
continuidade na história concebida por Heidegger como história do esquecimento
do Ser. Descartando a hipótese da contradição, nosso estudo volta-se mais para
observar que, de fato, Arendt traça considerações teóricas acerca da história que
privilegiam a descontinuidade, e, ao mesmo tempo, conta a história do
esquecimento do político, apresentando uma grande narrativa da história do
ocidente. Não obstante, nossa suposição é sobre a existência de uma
complementaridade entre a concepção da continuidade e da descontinuidade no
conceito de história de Arendt, a qual, só se sustenta se considerarmos a referência
41 BENJAMIN, W., Sobre o conceito da história. 42 Comentamos o texto de Habermas no cap. 3.
172
histórica da sua compreensão da história. Em outros termos, acreditamos que para
entender como a autora pode narrar a história da continuidade e conceber a
fragmentação teórica da história precisamos considerar sua narrativa sobre a
história da história, ou seja, historicizar sua própria teoria da história. Antes de
prosseguirmos com essa argumentação, no entanto, avaliaremos a possibilidade de
conceber a teoria da história arendtiana como uma proposta hermenêutica.
5.2. História e historicidade
Delimitar as orientações hermenêuticas de Arendt é uma tarefa que se
amplia porque dela se exige também alguma demarcação da própria noção de
hermenêutica. Acredita-se que a hermenêutica tomou novo fôlego e despontou
como possível rumo para as ciências do espírito com Schleierrmacher e Dilthey.
Tanto Paul Ricouer quanto Gadamer destacam esse ressurgimento proveniente da
“fusão da exegese bíblica, filologia clássica e jurisprudência.”43 O que mais nos
interessa, no entanto, é considerar a noção de historicidade que se tornou idéia
central para a hermenêutica contemporânea.
Defendendo o que chama de uma leitura positiva de Heidegger, Vattimo
propõe que a hermenêutica contemporânea se delineia sobretudo depois de
Heidegger e não pode ser entendida sem sua referência à superação da metafísica.
Nesse sentido, observa que a hermenêutica apresenta outra concepção de
‘verdade’ que não é mais a verdade como adequação suposta pela metafísica. A
dissolução metodológica da verdade “termina por construir uma teoria geral da
interpretação que a faz coincidir com toda experiência humana no mundo.”44
Vattimo explica que a noção científica kantiana também distinguia uma
realidade que aparecia ao homem como interpretação, i. é., mediante determinadas
categorias a priori. Mas, nesse caso, como no neokantismo ainda há referência a
uma realidade “separada” da interpretação humana, com Heidegger, a
correspondência entre sujeito e objeto que constitui a distinção entre veracidade e
43 RICOUER, P., Do texto à acção. p. 38. 44 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 16
173
falsidade está sempre relacionada ao fato do Dasein estar lançado numa pré-
compreensão. Há uma abertura ‘ontológica’ que não é verificável nos termos da
ciência. Daí não ser possível, para o filósofo italiano, conceber a hermenêutica
sem levar em conta a concepção niilista desenvolvida por Nietzsche, segundo a
qual, “não existem fatos, só interpretações, e esta também é uma interpretação.”45
No entanto, o autor acredita que “A hermenêutica não é apenas uma teoria
da historicidade (dos horizontes) da verdade; é ela mesma uma verdade
radicalmente histórica. Não pode pensar-se metafisicamente como descrição de
uma estrutura objetiva qualquer do existir, mas só como exposição a um envio,
aquele que Heidegger chama Ge-Schick.”46 A retomada de Heidegger, a qual o
autor denomina positiva, baseia-se na suposição de que a hermenêutica não pode
ser considerada nem uma metatoria no jogo das interpretações, nem mais uma
interpretação dentre outras, pois em ambos os casos recairia na ‘armadilha’
metafísica de vislumbrar uma explicação total. A solução encontrada por Vattimo
na sua leitura de Heidegger é conceber a verdade histórica da hermenêutica sem
resumi-la à versão historicista, que decai no relativismo. Isso significa que a
verdade da hermenêutica só tem sentido do ponto de vista do fim da metafísica:
o que o hermenêutico oferece como ‘prova’ da própria teoria é uma história, seja no sentido de resgestae, seja no sentido de história rerum gestarum, e talvez também, realmente, no sentido de uma ‘fábula’ ou de um mito, já que se apresenta como uma interpretação (que pretende validade até apresentar-se uma interpretação concorrente que a desminta) e não como uma descrição objetiva de fatos.47
Para nosso tema da concepção de história de Arendt, não vale aprofundar a
discussão sobre a leitura que Vattimo faz da obra de Heidegger, nem retomar
interpretações sobre o texto do filósofo alemão. Referimo-nos às análises do autor
italiano com intuito de acenar para a temática da hermenêutica. Sua abordagem
nos parece satisfatória sobretudo na caracterização da hermenêutica
contemporânea que deve ser pensada a partir do niilismo nietszcheano e da
filosofia heiddegeriana. Vattimo não é o único a reconhecer a especificidade da
45 Ibid., p. 25. 46 Ibid., p. 19. 47 Ibid., p. 22. Embora em certo momento o autor admita que a versão hermenêutica
apareça como uma “interpretação mais persuasiva do historicismo” Ibid., p. 23.
174
hermenêutica contemporânea através da ênfase na obra de Heidegger e, mais
particularmente, na sua noção de historicidade.
Ao examinar as relações entre fenomenologia e hermenêutica, Ricouer
também sustenta que há uma relação fundamental entre a concepção hermenêutica
e a tese de Heidegger. Vale a pena citar a passagem onde estabelece uma
delimitação da hermenêutica contemporânea:
a hermenêutica pretende, precisamente, radicalizar a tese husserliana da descontinuidade entre fundação transcendental e fundamento epistemológico (...) É esta radicalidade da questão que faz remontar da idéia de cientificidade à condição ontológica de pertença, pelo que aquele que interroga faz parte da própria coisa sobre a qual ele interroga.48
Embora aceite a proposição heideggeriana da abertura do mundo como
estrutura ontológica que subjaz à separação científico-metodológica entre sujeito e
objeto, Ricoeur apresenta-se mais ao lado de Gadamer ao evocar a autonomia do
texto. Sua tendência é admitir que a pré-compreensão tem o mesmo significado de
pertencimento à tradição.
Valorizando a reviravolta preconizada por Heidegger no âmbito dos
estudos hermenêuticos e nas discussões a respeito da especificidade das ciências
históricas, Gadamer sugere que a pré-compreensão a qual está referida
ontologicamente toda possibilidade de conhecimento aparece determinada pela
situação histórica de cada época, que não existe separada de um diálogo com as
épocas que lhe antecederam. Assim, o horizonte histórico no qual o mundo se
abre para cada homem e para cada época não se constitui simplesmente como a
referência historicista. Para Gadamer, a hermenêutica permite considerar de modo
distinto a “distância temporal” que afligiu os historicistas. Ao contrário de
caracterizar-se como um empecilho para alcançar a experiência vivida do passado,
a “distância temporal” é uma vantagem para a compreensão, “Não é uma distância
a percorrer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumulam formando
48 RICOUER, P., Do texto à acção, p.55. Essa pertença é a própria finitude do Dasein
conforme entrevista por Heidegger. A menção à Gadamer se justifica pelo seguinte argumento de Ricouer. “A relação intersubjectiva curta encontra-se coordenada, no interior da conexão histórica, com diversas conexões intersubjectivas longas, mediatizada por instituições diversas, por funções sociais, por instâncias coletivas (grupos, classes, nações, etc.). O que sustenta estas relações (...) é a transmissão ou uma tradição histórica da qual o diálogo é apenas um segmento.” Ibid., p. 57.
175
uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que trazemos conosco de nosso
passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição.”49
Ricouer afina-se com a noção gadameriana da “distância temporal” e
também sugere que “a hermenêutica pode mostrar a necessidade de uma crítica
das ideologias, mesmo que esta crítica nunca possa ser total, exatamente devido à
estrutura da pré-compreensão.”50Sua tese sobre a autonomia do texto permite-lhe
vislumbrar a hermenêutica como interpretação, que, sem se constituir pelo aspecto
subjetivista ou objetivista, guarda a possibilidade do distanciamento do vivido.
Desse modo, imagina poder conciliar a hermenêutica em seu sentido da pré-
compreensão com a ‘crítica das ideologias’. A dificuldade é entender como esse
projeto combina a noção de pré-compreensão, que indica um pertencimento
insuperável caracterizado pela finitude humana, com a perspectiva da ‘crítica das
ideologias’, onde é fundamental a noção de distanciamento e da ruptura com a
continuidade da história.51
Habermas indica como a leitura gadameriana pode se constituir como uma
“urbanização” de Heidegger. O fato é que a própria possibilidade de considerar
uma “distância temporal” na ordem da pré-compreensão parece já indicar certo
afastamento da noção heideggeriana de historicidade.52 O problema é justapor a
moderna concepção de história, a qual está ligada intrinsecamente à noção de
“consciência histórica”, que, por sua vez, revela a separação entre o vivido e o
pensado, à contemporânea teoria da historicidade, cujo argumento fundamental
versa sobre a existência da pré-compreensão. Nas palavras de Heidegger, “A
análise da historicidade da pre-sença busca mostrar que esse ente não é ‘temporal’
porque ‘se encontra na história’ mas, ao contrário, que ele só existe e só pode
existir historicamente porque, no fundo do seu ser, é temporal.”53
49 GADAMER, H., O problema da consciência histórica, p. 68. 50 RICOUER, P., op cit., p. 61. 51 Ibid., p. 43. 52 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 15. A proposição de ‘urbanização’ de
Heidegger também encontra eco no fato de Gadamer levar as considerações heideggerianas para o plano metodológico do qual aquele tentava se livrar. A discussão sobre a especificidade das ciências do espírito e a questão do seu método ser a própria compreensão co-extensiva a todos, Heidegger havia deixado de lado desde que concebeu a historicidade como problema ontológico, ou seja, desde que vislumbrou a historicidade como possibilidade para a historiografia.
53 HEIDEGGER, M., Ser e tempo, p. 181. Seu esforço é apontar que a historicidade está dada antes da separação historiográfica que sustenta a historiografia – por isso não é necessário falar em reconciliação – já parte de uma unidade ‘primordial’ entre ser e homem. Se bem que quando trata da história do ser – sua perspectiva também se assemelha à da reconciliação – sem usar esses termos a história aparece como a história do esquecimento do ser e a época da superação
176
A proposta de Gadamer, no entanto, ainda deve ser entendida a partir das
suposições heideggerianas, pois, mesmo que considere a possibilidade da
‘distância temporal’, ela surge mais como o afastamento reflexivo para um
diálogo com tradição, a qual permanece mais como uma “continuidade viva” do
que como o “peso morto” do passado. Ricouer, apesar do empenho em mostrar
que o “texto representa a mediação entre a pré-compreensão do mundo da ação e a
refiguração referencial da realidade quotidiana operada pela própria intriga”,
também permanece bem próximo das referências de Heidegger. Parece que, nesse
sentido, podemos compreender o pressuposto lingüístico de sua obra, que sugere
que “os próprios discursos são ações, por isso mesmo é que o laço mimético – no
sentido mais aditivo do termo - entre o acto de dizer (e de ler) e o agir efetivo
nunca se rompe completamente.”54
O importante para nosso tema do conceito de história em Arendt é
perceber que o problema da continuidade e descontinuidade da história está
diretamente ligado ao desenvolvimento da noção de historicidade heideggeriana.
Para alcançarmos algum juízo sobre o caráter hermenêutico de sua teoria, faz-se
necessário remeter à leitura arendtiana do filósofo alemão.
Como já foi notado por diversos autores a relação intelectual entre Arendt
e Heidegger é dúbia. Por um lado, a autora, que foi sua aluna e leitora das mais
perspicazes, não deixa de manter admiração pela capacidade heideggeriana de
pensar e de despertar o pensamento. Por outro, sua interpretação de Heidegger não
é simplesmente elogiosa. Arendt critica a distinção entre o modo de ser próprio e
o modo de ser impróprio, cujo pressuposto, a seu ver, seria o apartamento entre o
mundo comum, onde se encontram os homens, e um “Eu” solitário, ao qual o
mundo se revela. O que ela observa é que a experiência autêntica do mundo
vislumbrada por Heidegger só existe a partir do isolamento do mundo. “Com a
experiência da morte como nadidade eu tenho a oportunidade de devotar-me
exclusivamente a ser um Eu e, de uma vez por todas, libertar-me do mundo
circundante.”55 Mais especificamente é ao tornar-se um ser para a morte que o
da metafísica surge como a possibilidade de não esquecer que a diferença ontológica possa ser esquecida – é um fim da história que aponta para a cisão original – que se não é entre essência e aparência é da própria alethea como velar/desvelar.
54 RICOUER, P., Do texto à acção, p. 18. 55 ARENDT, H. O que é filosofia da existenz?, In: A dignidade da política, p.32.
177
Dasein alcança essa possibilidade. “Apenas na realização da morte, que o retirará
do mundo, o Homem tem a certeza de ser ele próprio.”56
Supõe-se que o julgamento mais ferrenho de Arendt sobre Heidegger surge
antes da reabilitação de sua amizade na década de 1950. No entanto, entendemos
que o argumento fundamental que aparece em todas as análises que a autora
apresenta sobre seu antigo professor se mantém praticamente o mesmo – é esse
que aponta a discrepância entre a experiência do Dasein e da pluralidade. Desde
seus primeiros comentários acerca das concepções heideggerianas até seus últimos
textos sobre o autor, Arendt sugere que Heidegger continua contando com a
supremacia do pensamento que afligiu a tradição. Seu modo particular de fazê-lo é
tornando o pensamento equivalente à ação. Em meio às ruínas da antiga harmonia pré-estabelecida entre Ser e pensamento, entre essência e existência, entre o ser existente e o Quê do ser existente concebível pela razão, Heidegger afirma que ele encontrou um ser no qual essência e existência são imediatamente idênticos e este ser é o Homem. Sua essência é sua existência. (...) O Homem como identidade de Existenz e essência pareceu ter fornecido uma nova chave para a questão relativa ao Ser em geral. Basta apenas recordar que para a metafísica tradicional Deus era o ser em quem essência e existência coincidiam, em quem pensamento e ação eram idênticos e que por isso era interpretado como o fundamento em-um- outro-mundo para todo Ser deste mundo – para compreender quão sedutor era esse esquema.57
Apesar de toda a desmontagem da metafísica e de toda tentativa de escapar
das denominações tradicionais que erigiam o “esquecimento do ser”, na
interpretação arendtiana destaca-se uma aproximação entre Heidegger e Platão.
“Assim reencontramos a velha hostilidade do filósofo em relação à polis nas
análises heideggerianas da vida cotidiana normal em termos de das Man (o ‘eles’
ou o domínio da opinião pública, em oposição ao ‘eu’), em que o âmbito público
tem a função de ocultar a realidade e até impedir o surgimento da verdade.”58 Tal
abordagem ganha sentido ao se considerar as opções políticas desses filósofos. A
participação heideggeriana no nazismo e a proximidade entre Platão e a tirania. O
que Arendt sugere é a possibilidade de haver relação entre a negação do mundo
pelo pensamento e a dificuldade de discernimento político dos filósofos. A autora
56 Ibid., 31. 57 Ibid., p. 29. Isso não significa que Arendt entenda o pensamento heideggeriano como um
novo aparecimento da metafísica. Ao contrário, reconhece, como veremos a seguir, a extrema consciência da finitude que sua compreensão ontológica apresenta.
58 ARENDT, H., Compreender. Formação, exílio e totalitarismo, p. 448.
178
chega a mencionar esse problema da separação entre ação e pensamento como se
fosse um vício profissional dos filósofos, sua “deformação profissional” que leva
a atividade solitária do pensamento a isolar-se radicalmente da noção plural em
que a existência se apresenta.
A ambigüidade com relação à obra heideggeriana, que tantas vezes foi
interpretada como se fosse simplesmente uma questão pessoal de Arendt com
Heidegger, deve ser considerada a partir das proposições gerais que a autora
indica acerca da relação entre pensamento e ação. Não nos parece que Arendt
incida a crítica ao isolamento do Dasein, e, posteriormente, defenda os préstimos
do pensamento, reconhecendo a grandeza do seu mestre de outrora.59
O importante é perceber que a autora não muda completamente sua
perspectiva sobre Heidegger, quando exalta que “o pensamento tornou a ser vivo,
ele faz com que falem tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que
eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava.”60
Mesmo reconhecendo o valor de suas indicações sobre a atividade do pensamento,
e admitindo a proeza de sua obra na história da filosofia, Arendt permanece
endossando as conseqüências políticas de ele ter desconsiderado a relevância da
pluralidade dos homens. Até seus últimos textos sobre o autor, ela segue
enfatizando que a abertura de mundo se realiza em oposição à pluralidade. “O eu,
que, pensando ‘se sustém em si mesmo’ na tempestade desencantada, como diz
Heidegger, e para quem o tempo literalmente pára, não só não tem idade, como
também ainda que sempre um eu especificamente diferente, não tem
particularidade.”61 A idéia de que o ego pensante em Heidegger está ligado a um
tempo que pára indica como a autora ainda entende a temporalidade à qual o
filósofo se refere como o tempo da eternidade, que tradicionalmente esteve
associado à possibilidade de vislumbrar a verdade do mundo.
59 Ettinger imagina que a suposta mudança de posição de Arendt com relação a Heidegger
indica uma própria virada na trajetória de seu trabalho, que se volta tardiamente para a análise de temas mais “filosóficos” como as “atividades do espírito”. VER ETTINNGER, E., Hannah Arendt, Martin Heidegger. André Duarte, apesar de indicar o quadro mais amplo da discussão arendtiana acerca da tensão entre pensamento e ação, também acaba sugerindo uma leitura baseada nas relações pessoais entre Arendt e Heidegger quando destaca a mudança na abordagem da autora com relação ao seu antigo mestre desde a década de 1950 – época em que reatam relações. “A partir do início dos anos cinqüenta, após a sua reconciliação pessoal com Heidegger, Arendt chegaria a uma avaliação mais equilibrada a respeito do legado teórico de seu antigo mestre para repensar a política.”, In: DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura. p. 327.
60 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 223. 61 Ibid., p. 226.
179
Se há um elogio à atividade do pensamento vislumbrada pelo filósofo, isso
se deve ao fato de Arendt conseguir separar a validade da concepção
heideggeriana do pensamento, que não pode produzir nenhuma verdade, da sua
recaída por Hitler, isto é, da sua empreitada no mundo dos assuntos humanos. É o
significado acerca da improdutividade do pensamento que a autora retoma de
Heidegger. Interessa-lhe a concepção do pensamento que “se comporta com
relação a seus próprios resultados de forma destrutiva, isto é, crítica.”62 Esse
significado, porém, recebe uma realocação dentre as atividades da vida do
espírito, que, por sua vez, na sua concepção, estão separadas das atividades da vita
activa.
Se entendemos que a autora compartilha da perspectiva hermenêutica até
onde concorda com Heidegger, devemos apontar quais seriam os resquícios
heideggerianos em sua obra para mostrar como as hipóteses do filósofo são
apropriadas. Evidentemente, não se trata aqui de fazer uma análise exaustiva nesse
sentido, como, por exemplo, pretendem os trabalhos que se dedicam
especialmente a analisar a relação entre os autores.63 Nos contentaremos em
avaliar em que medida essas críticas à concepção de isolamento do Dasein e à
participação política de Heidegger no nazismo acarretam a rejeição arendtiana da
concepção de historicidade para conceber sua própria noção de história.
Devemos entender que, se Arendt não concorda com a perspectiva de
isolamento do Dasein, nem com sua suposta transferência para uma concepção
histórica, que, segundo ela, acarreta uma visão unificada da política que sugere a
compreensão da história a partir de categorias mitologizantes como povo e
destino, ou, finalmente, conflui para a sustentação de uma história do Ser onde os
homens em sua pluralidade são destituídos de liberdade, a autora aprende com
Heidegger a necessidade de considerar a finitude humana. Daí fica a dúvida sobre
como Arendt toma para si a concepção de finitude, da qual não abre mão, como
vemos em toda sua crítica acerca da supremacia do pensamento e das tentativas de
fundar qualquer absoluto, e, ao mesmo tempo, não compartilha da idéia de que a
história é sustentada pela noção de historicidade?
62 Ibid; p. 225. 63 Veja TAMINIAUX, J., The thracian maid and the professional thinker. Arendt and
Heidegger; VILLA, D. Arendt and Heidegger: the fate of the political.
180
Primeiro é preciso considerar que a autora observa a equivalência entre a
concepção de historicidade e o desenvolvimento da argumentação ontológica de
Heidegger através da qual o autor concebe a estruturação do Dasein. Para ela, o
filósofo desenvolve a noção de finitude, segundo a qual, não pode haver
perspectiva absoluta ou fora da história. “O verdadeiro representante dessa
filosofia continua a ser Heidegger, que, em Ser e Tempo (1927), já havia
formulado a ‘historicidade’ em termos ontológicos, e não antropológicos, e em
anos mais recentes passou a compreender a ‘historicidade’ como ser portado a seu
fim (...) de modo que a história humana, para ele, coincidiria com a história do Ser
que aí se revela.”64
Devemos considerar ainda que, para a autora, a proposta fenomenológica,
desde Husserl está ligada à tentativa de reabertura da história. Trata-se da
possibilidade de libertar-se da suposição acerca da existência de um lugar fora da
história donde fosse possível reconsiderá-la, que permite à filosofia e à
historiografia reencontrarem os assuntos humanos. Nas palavras de Arendt, “A
insistência de Husserl nas ‘próprias coisas’ – que elimina essa especulação vazia e
prossegue separando o conteúdo fenomenologicamente dado de um processo de
sua gênese – teve uma influência libertadora à medida que o próprio homem, e
não o fluxo histórico, natural, biológico ou psicológico para o qual ele é sugado,
pode novamente tornar-se um tema de filosofia.”65
Em Heidegger, a autora também evidencia o intuito de compreender a
existência a partir da concepção da finitude. Devemos destacar que na
argumentação arendtiana a noção de finitude surge como a possibilidade de
considerar os assuntos humanos em sua perspectiva própria. O que sustenta esse
entendimento é a suposição de que a ação, diante da finitude, pode começar a ser
considerada em seus próprios termos, sem ser submetida à supremacia do
pensamento e às supostas verdades absolutas por ele vislumbradas. Surge a
possibilidade de entender que os negócios humanos não são regidos por nenhuma
verdade subjacente. Em outros termos, observar que não há nada por trás dos
acontecimentos seria o grande feito da consideração da finitude. No entanto, se
essa noção, que sustenta a ‘nova’ idéia de historicidade, surge como elemento
fundamental para a libertação da ação e da história, ao constatar que, em
64 ARENDT, H., Compreender. Formação, exílio e totalitarismo, p. 448 65 Id., A dignidade da política, p 18.
181
Heidegger, ela está ligada fundamentalmente ao “Eu isolado”, Arendt refuta suas
implicações. “Aqui surge o conceito de historicidade, o qual, apesar da nova
aparência e maior explicitação, e a despeito de sua evidente proximidade com o
âmbito político (porque nega o absoluto) compartilha com o conceito anterior de
história a mesma incapacidade de atingir o ponto fulcral da política – o homem
como ser de ação.”66
Ao considerar a reviravolta da noção de historicidade heideggeriana como
possibilidade para retomada dos assuntos humanos, Arendt não deixa de notar,
portanto, o que seria a tendência dessa filosofia para reapresentar o esquecimento
do político ou a subordinação da ação. Em sua primeira abordagem sobre
Heidegger, já apontava o “quão sedutor era o seu sistema” pela equiparação entre
pensamento e ação, cuja unidade, a metafísica vislumbrava em Deus.67 O
problema é que a mesma consideração da finitude, que pode garantir a autonomia
da ação, provém da descoberta de que no homem, essência e aparência não se
separam. Para Arendt, essa suposição leva à conclusão de que pensamento e ação
não se distinguem. O pensamento passa a ser entendido como um acontecimento,
e a rejeição do mundo comum pelo “Eu isolado” desponta literalmente como
“abertura de mundo”. Ou seja, como se o mundo não existisse independente do
pensamento – sem se constituir como uma interpretação do pensamento. Ao
detectar a equivalência entre ação e pensamento na noção de historicidade, a
autora indica a relação com a moderna concepção de história, revelando que a
constatação da finitude não livrou Heidegger de decair no equívoco comum dos
filósofos, que tomam o mundo pelo pensamento. “A transformação do conceito de
história em historicidade surgiu com a concepção moderna sobre a ligação entre
pensamento e acontecimento, e como tal não é de forma alguma monopólio do
pensamento heideggeriano, embora seja em Heidegger – cuja filosofia posterior
atribuirá um papel cada vez maior ao ‘acontecimento’ (das Ereignis) – que a
coincidência entre pensamento e acontecimento se evidencie com maior
clareza.”68
66 Id., Compreender. Formação, exílio, totalitarismo, p. 449. 67 Id., A dignidade da política, p. 29. 68 Id., Compreender. Formação, exílio, totalitarismo, p. 449. Consideraremos a questão da
passagem do conceito moderno de história à ênfase na historicidade que aparece na consideração contemporânea no próximo tópico onde discutiremos a própria história da história traçada por Arendt.
182
Para reconhecer a apropriação e rejeição de Heidegger, e de sua noção de
historicidade, talvez seja possível observar que Arendt exalta suas intenções de
reconsiderar a filosofia a partir da finitude, mas desconfia de seu sucesso nesse
projeto. Assim, poderíamos entender porque a autora retoma a perspectiva da
finitude, mas não quer se comprometer com a arquitetura da abertura de mundo do
“Eu isolado” ou de sua relação com a totalidade entrevista como povo, destino ou
história do ser. Acreditamos que, para ela, Heidegger compromete seu próprio
anseio de conceber a existência a partir da finitude.
Ao concluir sua análise sobre Arendt e Heidegger, notando como a autora
reintroduz o professor de Marburg “para o seio de um pensamento cuja vocação
para a tirania teria em Kant a sua notável exceção”, ou seja, para a tradição do
pensamento filosófico que sustenta a primazia do pensamento e seu caráter
absoluto, Edgar Lyra alude à insistência de Heidegger na consideração da finitude.
“Numa exata contrapartida, Heidegger ergueria com François Fédier, por ocasião
da comemoração desses mesmos oitenta anos, um brinde à finitude – à
constitutiva finitude.” 69 Com essa referência, Lyra indica a possibilidade da
contraposição à interpretação arendtiana. De fato, o próprio Heidegger jamais
admitiria estar arregimentando o status absoluto do pensamento, já que seu
propósito, como até mesmo Arendt revela, era justamente o contrário. Não
retomaremos aqui o texto heideggeriano para contradizer a interpretação da
autora. Concentraremo-nos na leitura arendtiana e no significado para o seu
conceito de história.
O importante é analisarmos qual é a alternativa que Arendt apresenta a
essa versão do pensamento como ação, já que ela também compartilha da idéia da
finitude. Entendemos que sua opção é trabalhar com a noção de finitude, ligando-
a diretamente à existência da pluralidade.70 Tal conexão, no entanto, não perde de
vista a necessidade de especificar as esferas do pensamento e da ação. Numa
análise sobre Jaspers, Arendt mostra que não se trata de considerar tudo do ponto
69 Ver LYRA, E., “Arendt e Heidegger. Pensamento e juízo”, In: MORAES, E. e
BIGNOTTO, N. (org.) Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias, p. 107 Arendt sublinha a pretensão de Heidegger de reconhecer a validade das estruturas cotidianas com a idéia de ser-no-mundo. Nesse sentido, podemos ler a passagem que se segue: “Todavia, visto que Heidegger nunca expôs as implicações de sua posição a esse respeito, talvez seja presunçoso atribuir demasiada importância a esse seu uso da forma plural.” In: ARENDT, H., Compreender, p. 459.
70 Nesse sentido, concordamos que Richard Bernstein tem razão em destacar a pluralidade como o ponto principal na distinção entre Heidegger e Arendt.In: BERSTEIN, R. Arendt response to Heidegger.
183
de vista plural. “para a filosofia de Jaspers, a comunicação constitui o centro
‘existencial’ e se torna efetivamente igual à verdade (...) à qual supõe uma fé na
compreensibilidade de todas as verdades, junto com a boa vontade de ouvir e
revelar, como condições primárias do autêntico convívio humano.”71 Se a autora
critica em Heidegger a ênfase no “Eu isolado” da pluralidade, também não parece
admitir que o pensamento está subordinado à pluralidade, como se fosse o
equivalente da opinião. O direcionamento de Arendt diante do reconhecimento da
finitude não a leva a abolir a separação entre os dois mundos – da essência e da
aparência – como se concluísse que tudo não passa de ação. Sua proposição é
entender como nesse mundo em que o “Ser é igual à aparência”, em que não é
possível determinar nenhuma verdade absoluta, deve se compreender a diferença
entre ação e pensamento. A questão é que Arendt não concebe a necessidade de
revirar a hierarquia tradicional entre pensamento e ação, nem pretende tornar
equivalente essas atividades. Sua sugestão de considerar a esfera dos assuntos
humanos implica a proposição da manutenção da tensão entre ação e pensamento.
A autora reconhece que a atividade do pensamento requer um afastamento do
mundo e dos homens, ou seja, da experiência da pluralidade; mas não entende que
esse afastamento constitua-se como o erigimento de um mundo superior das idéias
ou qualquer morada do pensamento que legitime a “torre de marfim” dos
intelectuais. O afastamento do pensamento é momentâneo e nunca pode ser
definitivo. Se quando pensa, o homem se ausenta inevitavelmente da realidade,
i.é, da presença dos outros, e recolhe-se para um encontro consigo mesmo, o fato
é que ninguém pode se isolar definitivamente. Talvez apenas o louco possa perder
completamente a noção da realidade, e ‘criar’ um mundo próprio ou uma
realidade paralela. O problema com relação aos filósofos que imaginam “morar”
num mundo próprio das idéias é justamente que esse mundo não existe, e que tão
logo o pensador acredite vislumbrar a “verdade” ele acaba entrevendo a
possibilidade de “adequá-la” à realidade. É nesse sentido que Heidegger “trai”
suas próprias suposições quando concebe o “destino comum do povo” e o
surgimento do nazismo. Quando, nas palavras de Arendt, “a tentar lançar mão de
confusões mitologizantes como Povo e Terra como fundação para seus Eus
isolados.”72
71 ARENDT, H., Compreender, p. 457. 72 Id., A dignidade da política, p. 32.
184
Para a autora, a retomada da concepção metafísica dos dois mundos surge
não apenas como um problema ultrapassado, mas como a questão a ser
compreendida. O fato não é que o espírito não seja ‘invisível’, mas que não está
em outro mundo. Por isso, a análise arendtiana se encaminha para o apontamento
de que “quando pensamos” não estamos em outro lugar, e, sim, fazemos outra
“experiência temporal”. Sua formulação “quando estamos quando pensamos”
sugere a tentativa de retomar com novos olhos o velho problema da atividade
espiritual. Arendt reconhece que Merleau-Ponty abordou a temática da relação
entre o visível e o invisível que, para ela, indicam respectivamente a esfera da
pluralidade e o âmbito do pensamento. No entanto, observa que, por admitir,
como ela, que “Ser e aparência” coincidem, o autor acaba tomando o pensamento
pelo seu aparecimento. A passagem sobre Merleau-Ponty é a seguinte:
Como certa vez, Merleau-Ponty formulou, ‘só posso escapar do ser para o ser’, e já que ser e Aparência coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo.73 A argumentação arendtiana se distingue pela inquirição acerca da
possibilidade das atividades espirituais aparecerem no mundo. Sem desconsiderar
a primazia da aparência, sua tentativa é explicar a especificidade das atividades do
espírito – pensar, querer e julgar -, cujo aspecto principal é a invisibilidade, num
mundo primariamente visível. Nas atividades espirituais observa-se a retirada do
“eu” do mundo das aparências. Para a autora, trata-se de considerar a
particularidade dessas atividades “invisíveis”, especificando que, ao realizá-las, o
homem não deixa de “ser desse mundo de aparências”, mas se alheia
momentaneamente dele. Nesse sentido, suas conclusões apontam menos para
vislumbrar a “aparência” do pensamento e mais para conceber de que modo a
atividade espiritual se afasta do mundo. Por isso, dizemos que a separação não é
definitiva.
Ao conceber o pensamento como um afastamento do mundo, Arendt
concorda com Platão, para quem essa atividade é solitária e surge, como ela
73 Id., A vida do espírito, p. 20.
185
mesma observa, como um “estranhamento do mundo”. É por essa via em que o
pensamento aparece como um descolamento do mundo que se pode entrever a
semelhança entre sua definição e a de Heidegger. O pensamento surge como a
possibilidade de afastar o presente e aproximar-se do distante. “Se, por exemplo,
encontra-se um homem face a face, ele é percebido de fato em sua corporeidade,
mas não se pensa nele.”74 Nesse mesmo sentido, encontramos uma justificativa
para o argumento de que aquele que não está envolvido na ação pode ter uma
melhor compreensão do acontecimento, “muitíssimas vezes é só na lembrança
retrospectiva, quando a impressão não mais nos pressiona, que as coisas que
vimos tornam-se totalmente próximas, como se então revelassem pela primeira
vez o seu sentido, pois não estão mais presentes.” 75
A abordagem arendtiana da atividade do pensamento é muito semelhante
àquela efetivada por Heidegger. A diferença desponta quando Arendt insiste em
designar a “saída” do pensamento como um ausentamento momentâneo da
realidade. Se atentarmos para a imagem do tempo do pensamento concebida pela
autora como uma diagonal que surge como resultante das forças que se chocam
entre o passado e o futuro, poderemos vislumbrar mais concretamente a existência
de um ponto de contato entre o pensamento e a realidade. É a partir da parábola de
Kafka que a autora evoca essa representação.
Ele tem dois adversários: o primeiro, acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro, ajuda-o na luta com o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite -, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si.76
A partir desse texto, Arendt indica a tradicional concepção do tempo,
donde subjaz a idéia de que é possível saltar para fora dele - o sonho de fugir para
uma região acima e fora do campo de batalha. Para ela, esse é a antiga quimera
metafísica de encontrar uma região segura fora do mundo dos assuntos humanos
para poder anunciar a verdade – “um lugar neutro adequado ao pensamento.” A
74 Ibid., 227. 75 Idem. 76 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 33.
186
interpretação arendtiana da história de Kafka se destaca principalmente por
conceber que a presença d’“ele” acaba produzindo um paralelogramo de forças,
donde sai uma diagonal rumo ao infinito do ponto de contato entre as duas outras.
Andar por essa diagonal é instalar-se entre o passado e o futuro. Esse é o lugar em
que estamos quando pensamos. Ou melhor, o tempo em que estamos quando
pensamos. Importa-nos destacar que a diagonal infinita pela qual transita está
irremediavelmente ligada ao mundo – ao presente. Na imagem da diagonal que
revela a especificidade do tempo do pensamento vemos que, apesar de se
constituir como uma saída da realidade, ou seja, uma saída do tempo contínuo
entre passado e futuro, a atividade de pensar mantém sempre um ponto de contato
com a realidade – que está geometricamente representado no paralelogramo
vislumbrado por Arendt como o ponto comum entre a linha do passado, a linha do
futuro e a própria linha diagonal que se refere ao pensamento.
O que não podemos esquecer é que todo esse desenvolvimento é sobre a
atividade do pensamento. O que está entre o passado e o futuro e desponta pela
capacidade de recombiná-lo à vontade é o ego pensante. É ele que está livre da
continuidade do tempo cotidiano. Se essa fosse a única experimentação do tempo
considerada por Arendt, de fato, poderíamos concordar que sua perspectiva segue
a noção de historicidade e sua compreensão da história é hermenêutica. Mas não é
isso que ocorre. Sustentando a existência da separação das atividades, a autora não
abre mão de considerar a existência do mundo. Não do ponto de vista do ego
pensante, que é solitário, mas da perspectiva da pluralidade. Ao considerarmos o
pensamento como atividade do ego pensante que se ausenta momentaneamente da
realidade é certo que persiste a semelhança com a definição do pensamento por
Heidegger. Encontramos a variação arendtiana na demarcação do vínculo com a
realidade. Outra forma de detectarmos esse vínculo é através da remissão à noção
de compreensão arendtiana. Para nosso contexto, essa via é ainda mais
importante. Basta lembrarmos que, para a autora, a compreensão é a tarefa por
excelência do historiador. Tal como Heidegger, Arendt distingue ciência e
compreensão propondo que
A compreensão precede e sucede o conhecimento. A compreensão preliminar está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão, que o transcende têm isso em comum: conferem significado ao conhecimento. (...) A verdadeira compreensão sempre retorna aos juízos e preconceitos que precederam e orientaram a investigação estritamente científica. As ciências podem apenas
187
iluminar, mas nunca provar ou refutar a compreensão preliminar da qual partem.77
Pode-se entender que Arendt estaria revelando as perplexidades inerentes
ao “círculo hermenêutico” nessa tematização da compreensão, a qual, por sua vez
surge como possibilidade inevitavelmente ligada a uma pré-compreensão. No
entanto, é nessa conexão entre compreensão e pré-compreensão, que aqui
aparecem designadas como compreensão preliminar e compreensão verdadeira
que está traçada mais uma vez a concepção arendtiana da relação entre o
pensamento e a pluralidade. A ligação é aí entrevista como a conexão insuperável
entre o especialista e o senso comum. “Se o cientista, desorientado pelo próprio
labor de sua investigação, começa a bancar o especialista em política e a desprezar
a compreensão popular da qual partiu, ele perde de imediato o fio de Ariadne do
senso comum, a única coisa que pode guiá-lo com segurança por entre o labirinto
de seus próprios resultados.”78 Ao sugerir que a pré-compreensão a qual se liga o
pensamento é o senso comum ou a compreensão popular, Arendt marca seu
afastamento da concepção hermenêutica heideggeriana, e direciona-se para uma
aproximação, ou melhor, para uma apropriação do juízo estético kantiano. O que
está em questão no apontamento da compreensão comum é a demarcação entre o
mundo real e os devaneios teóricos que deixam de corresponder à experiência. O
‘senso comum’ é importante para manter o elo com a realidade e não deixar que o
cientista ou o pensador se perca “em meio às nuvens da especulação”79. O intuito
arendtiano é a impropriedade do pensamento que deixa de corresponder à
experiência. A visualização da ligação entre ação e compreensão está mais em
Kant que em Heidegger. Nesse sentido, é importante destacar que em Kant, não
apenas na sua obra, mas na dignidade de seus juízos políticos, Arendt vislumbra
uma rara competência entre os filósofos. Trata-se da capacidade de assumir a
perspectiva de espectador – de julgar coerentemente os eventos.80 É na sua
apropriação do juízo estético, que a autora busca a ligação entre ação e 77 Id., Compreensão e política. Precisamos destacar que a solidão da atividade do
pensamento, para aquele que está pensando, na verdade, surge como um diálogo intenso do eu consigo mesmo. Esse diálogo que já se abre no dois-em-um também se sustenta pela representação das possíveis opiniões dos outros.
78 Id., A dignidade da política, p. 42. 79 Ibid., p 43. 80Arendt elogia a capacidade kantiana de compreender a revolução francesa. Apesar disso,
não compartilha da filosofia da história de Kant, na qual vê excluída a ação humana em prol do ardil da natureza. Ver ARENDT, H., Lições de filosofia política em Kant.
188
compreensão. O fato é que Arendt não poderia estar de acordo com Heidegger no
que se refere à manutenção do contato com a realidade, se suas críticas ao filósofo
incidem justamente sobre esse ponto. A leitura arendtiana de Heidegger converge
para mostrá-lo como uma espécie de especialista que perdeu contato com o
mundo – primeiro, ao estruturar a abertura de mundo através da oposição do “eu
isolado” em relação aos outros; depois, ao associar-se ao nazismo e concebê-lo
como destino do povo; e ainda, quando tematiza a ‘história do Ser’, na qual o
homem que age parece mero figurante; onde a liberdade humana sucumbe ao
destino do Ser.81
Para a discussão sobre o aspecto hermenêutico da concepção de história
arendtiana, é crucial percebermos que a recusa da noção de historicidade
heideggeriana, que se constitui mais como sua delimitação ao âmbito do
pensamento que como uma completa rejeição, não permite que Arendt trabalhe
com a suposição da equivalência entre história e hermenêutica. A indicação sobre
a existência do mundo comum, que é o mundo de aparências – e único mundo que
existe -, comporta a consideração de uma outra noção de história. Diferentemente
de Gadamer que entrevê a relação entre pré-compreensão e compreensão como a
possibilidade de um diálogo entre as épocas através da proposição de que a pré-
compreensão é o pertencimento à tradição. E distintamente de Ricouer, que
pretende considerar a separação entre pré-compreensão e compreensão pelo
distanciamento do texto. A saída de Arendt para não se render às perplexidades do
isolamento do “Eu” ao qual o mundo se abre, não é necessariamente negar que
haja uma historicidade, a qual seria uma temporalidade subjacente à
historiografia, mas apontar que essa concepção de temporalidade não pode advir
de um isolamento definitivo, ou de uma rejeição da pluralidade.
Deve-se sublinhar que Arendt não ignora o que seria a tentativa
heideggeriana de transpor a concepção singular para a plural. Resumida por
Vattimo como a “passagem do mundo, como estrutura da pre-sença, para os
mundos, como aberturas históricas do ser.”82Mas entende que a adaptação de uma
81 Não sem razão, a concepção de história de Heidegger concebida como história do ser
precisa se desfazer da semelhança com a história de Hegel. Tanto Arendt, como Vattimo abordam essa temática.
82 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 40. Vattimo sublinha “em Ser e Tempo, mundo é usado sempre no singular (o homem é pre-sença, i. é, ser no mundo), e, no ensaio sobre a Origem da obra de arte (1936) torna-se “um” mundo. (...) Heidegger esforça-se por apreender, não as estruturas (objetivas, metafísicas) da existência, mas o sentido (da história) do Ser, tal como se
189
estrutura, que se contrapõe à pluralidade, à noção de história acaba por produzir
conceituações equivocadas como a de povo, destino e de história do ser. O que
podemos notar é que para Arendt, não é possível adequar a perspectiva individual
à plural. Essa transposição não evidencia o aspecto realmente plural da existência.
A crítica à tomada da pluralidade como povo também surge na sua análise da
revolução francesa. A autora rejeita a possibilidade de considerar a pluralidade
como uma coletividade, que, para ela, seria um meio de não reconhecer o caráter
realmente plural dos homens, e sim, uma forma de adequar a pluralidade ao
modelo singular. A alternativa arendtiana não nos parece ser a concepção de uma
passagem do singular para o coletivo, mas, antes, a indicação de que a
singularidade e a pluralidade estão inevitavelmente ligadas.
Para Arendt, o pensamento é a possibilidade de evadir-se
momentaneamente da realidade, mas isso não quer dizer que a partir desse
afastamento o pensador possa retornar ao mundo imaginando conhecer a verdade
por trás dos assuntos humanos ou querendo ditar o que fazer. O pensamento em
questão é uma atividade destrutiva, não pode estabelecer nenhuma orientação da
ação. Por não existir nenhuma ligação entre pensamento e verdade – a não ser
aquela em que o pensamento coloca em questão a possibilidade da verdade – é
difícil caracterizar essa separação entre ação e pensamento concebida por Arendt
como a antiga divisão entre aparência e essência. A capacidade de evasão pelo
pensamento surge menos como duplicação do mundo e mais como a possibilidade
de experimentar o tempo de forma distinta. Para que em sua experimentação
específica do tempo, o ego pensante não se desligue do mundo, a sugestão
arendtiana é que ele nunca perca de vista o senso comum do qual partiu. O senso
comum, para ela, é uma espécie de senso de realidade, que funciona como um
sexto sentido. Em Kant, a autora encontra a referência teórica mais consistente a
respeito do senso comum. Isso se deve ao fato de que, segundo a sua leitura, o
juízo de gosto só pode ser fruído em meio à pluralidade. Acreditamos que a
interpretação arendtiana de Kant diferencia-se por não aceitar que o juízo acerca
do belo seja mudo – ao contrário, sua ênfase é justamente sobre a possibilidade de
determinou na época da metafísica completada, que é a modernidade, i. é, a idade da ciência e da técnica.”
190
dizer “Isso é belo!”.83 Não nos interessa aqui desenvolver os pontos que sustentam
essa argumentação. O importante para nossa temática da história é destacar a
relação de contraposição e ligação que a autora vislumbra entre a perspectiva
plural da experiência e a singular do pensamento.
Quando estou pensando saio do mundo das aparências, mesmo que o meu pensamento lide com objetos comuns dados pelos sentidos, e não com invisíveis como os conceitos ou as idéias, o antigo domínio do pensamento metafísico. (...) pensar sempre lida com objetos que estão ausentes, afastados da percepção direta dos sentidos. Um objeto do pensamento é sempre uma representação, isto é, algo ou alguém que está realmente ausente e presente apenas para o espírito que, pela imaginação, pode torná-lo presente na forma de uma imagem.84
Por iluminar a coexistência dessas duas esferas, entendemos que a
conceituação da história em Arendt não pode resumir-se à consideração da
historicidade. Ao negar a equivalência entre ego pensante e pluralidade,
enfatizando que o afastamento do mundo pelo pensamento não lhe torna senhor de
nada, mas apenas se constitui como um alheamento da realidade, a autora se
recusa a compreender a existência a partir do pensamento. Distinguindo entre
ação e pensamento, Arendt separa vantajosamente, ao que parece, a temporalidade
do ego pensante e a temporalidade da história. A experiência do pensamento, que
é do âmbito do singular e a vivência no mundo que se dá no plural. “A principal
distinção, em termos políticos, entre Pensamento e Ação reside no fato de que,
quando estou pensando, estou apenas com meu próprio eu ou com o eu de outra
pessoa, ao passo que estou na companhia de muitos assim que começo a agir.”85
Essa separação que, como vimos, nunca é definitiva, trata-se, portanto, mais de
uma reconsideração da teoria platônica das idéias. Apesar de não visualizar a
existência de dois mundos, Arendt trabalha com a suposição da vigência de dois
âmbitos que se distinguem e se conectam entre si. Podemos observar que sua
teoria acerca da separação entre história real, proveniente da ação, e escrita da
história está incluída nessa relação mais ampla entre o visível e o invisível. Nossa
objeção acerca da suposição de que a noção arendtiana da história é hermenêutica
se sustenta justamente no reconhecimento dessa distinção entre a experiência
83 A análise arendtiana de Kant valoriza o aspecto a comunicabilidade do juízo do belo.
Lyotard, em sua conhecida obra sobre o assunto, entende se tratar de uma ênfase na sociabilidade. LYOTARD, J., Lições sobre a analítica do sublime.
84 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 232. 85 Ibid., p.171.
191
singular do pensamento e a experiência plural no mundo. A história não pode ser
simplesmente a história do ego pensante ou a história concebida pelo pensamento.
A história tem um correspondente real que se refere à existência do mundo e das
ações humanas.
Mesmo quando Arendt assinala a importância da experiência singular do
tempo que está circunscrita pelo intervalo temporal entre o aparecimento e o
desaparecimento da pessoa no mundo, indicando que a própria possibilidade da
historiografia está relacionada ao desencadeamento de uma história com início e
fim que se interpõe pelo nascimento e morte de cada um, a autora contrapõe essa
noção de tempo circunscrita ao caráter objetivo do tempo do mundo, considerando
que os homens são “seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que
a eles sobreviverá.” Por um lado, o tempo finito parece ter certa primazia pelo fato
de que “fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais”86. Isso torna o
fundamento da noção de história de Arendt próxima da perspectiva heideggeriana
da historicidade, pois a autora admite que a própria possibilidade da historiografia
está relacionada ao fato de a vida individual ser concebida com início e fim. Por
outro lado, essa historicidade radicada na experiência singular da temporalidade
não define a concepção de tempo e de história. Se parece existir algum
fundamento ontológico da história em Arendt, como pode sugerir a ênfase na
potencialidade do nascimento humano, é apenas entre os homens que a história se
realiza. Do mesmo modo, a experiência da historicidade não determina a
existência do mundo. A questão é que mesmo que possa ser identificada a
validade da perspectiva individual, ela só tem sentido quando compreendida como
um intervalo temporal inserido numa continuidade mundana sem começo ou fim
definidos. O que nos termos de Arendt deve indicar que a temporalidade de cada
um está sempre relacionada à pluralidade, ou ao fato de que ninguém está sozinho
nesse mundo. “Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no
singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas
os homens é que habitam este planeta.”87
Observando o destaque da noção de pluralidade podemos reencontrar o
argumento principal que sustenta a divisão da história entre atores e espectadores.
A própria existência da pluralidade garante que todos podem ser ao mesmo tempo
86 Id., A vida do espírito, p. 18. 87 Ibid., p. 17.
192
atores e espectadores porque estão sempre vendo os outros e sendo vistos por eles
na medida em que agem - “percebendo e sendo percebidos - ao mesmo tempo”.88
Devemos lembrar que toda a crítica arendtiana à moderna concepção da
consciência se baseia nessa idéia de que o homem em sua singularidade não pode
assegurar a realidade do mundo.
Considerando essa distinção, compreende-se porque Arendt reelabora uma
idéia que parece ultrapassada no campo da história e da filosofia: a separação
entre história real e historiografia. Entendido que a história real é proveniente da
ação e a historiografia é uma atividade do espírito, podemos perceber que isso não
sugere a existência de uma realidade mais verdadeira por trás das aparências –
uma verdade do fato que a historiografia ressuscitará. A vantagem da concepção
de história arendtiana é trazer novamente à tona a possibilidade de considerar o
passado como aquilo que irrevogavelmente passou, sem que isso inspire qualquer
pretensão metafísica de conhecer ou reproduzir a totalidade do que foi. A autora
não nega que há interpretação do fato, mas entende que não se pode rejeitá-lo
completamente como se fosse uma mera criação do pensamento. Em Arendt, o
tempo que não passa é o do ego pensante. Apenas na consciência pode-se
conglomerar passado, presente e futuro. O tempo do mundo está inevitavelmente
submetido à fugacidade. Por isso a história ainda tem a tarefa de conceder
permanência às ações humanas. Justamente porque o passado passa é que a
história tem um lugar. Nesse sentido, entendemos que a distinção entre
pensamento e ação, que visa revelar a autonomia de ambas as esferas, possibilita
que a história seja considerada em seus próprios termos e deixe de ser entendida
apenas como historicidade. O que inferimos com Arendt é que a historiografia,
embora seja capaz de instituir a durabilidade especificamente humana no mundo,
não pode ser tomada como uma espécie de macro-consciência humana. O fato do
tempo passar não significa que haja um curso retilíneo que torna o presente
conseqüência do passado e o futuro conseqüência do presente, como se pode
imaginar através da concepção tradicional do tempo em que passado, presente e
futuro estão necessariamente encadeados. Merleau-Ponty contrapõe a versão
comum da experiência temporal à noção de uma temporalidade originária, onde a
“consciência desdobra ou constitui o tempo”.
88 Idem.
193
Diz-se que o tempo passa ou escoa. Fala-se do curso do tempo. A água que vejo passar preparou-se, há alguns dias na montanha, quando a geleira derreteu, no presente ela está diante de mim, ela vai em direção ao mar onde se lançará. Se o tempo é semelhante a um rio, ele escoa do passado em direção ao presente e ao futuro. O presente é a conseqüência do passado, e o futuro é a conseqüência do presente. Essa célebre metáfora é na realidade muito confusa. Pois a considerar as próprias coisas, a fusão das neves e aquilo que daí resulta não são acontecimentos sucessivos, ou, antes, a própria noção de acontecimento não tem lugar no mundo objetivo.89
A perspectiva de Merleau-Ponty, até certo ponto, bastante próxima da
concepção heideggeriana, indica que o próprio homem é um ser temporal. A
leitura arendtiana não se volta para defender a existência de um tempo natural que
exista sem a presença humana. A diferença, ao que nos parece, é que a autora se
esforça por conceber a presença humana não somente do ponto de vista singular
da consciência e da vida individual, mas considerando a presença da pluralidade
de homens. Assim, ela poderia concordar que “o tempo não é um processo real,
uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar”, mas talvez não aceitasse
exatamente a conclusão do argumento do filósofo francês que desfecha seu
raciocínio sugerindo que o tempo “nasce da minha relação com as coisas.”90
Devemos observar que, se há alguma discrepância entre a concepção arendtiana
do tempo e da história em relação à Heidegger e à Merleau-Ponty isso não ocorre
porque a autora necessariamente negue a idéia de que o tempo existe devido à
presença humana, mas, sobretudo pelo fato de tentar compreender, para além da
percepção original e singular do tempo da consciência, como os homens instituem
o tempo no mundo. Nesse sentido, Arendt desvela como a ação humana, surgida
da pluralidade, tem a capacidade de instituir o tempo. Ao infringir um início ou
um re-ínicio os homens concretizam, não para si, mas para eles mesmos, a noção
de início e fim. Não apenas o homem se abre na temporalidade. O próprio mundo
tem um tempo próprio e objetivo, que não é o tempo natural, mas o tempo
instaurado pelos homens.
Para visualizarmos a importância da noção arendtiana para a teoria da
história contemporânea vale a pena mencionarmos que desde o fim das grandes
narrativas, ou seja, desde que a história deixa de ser concebida como um processo
89 MERLEAU-PONTY, M., Fenomenologia da percepção, pp. 555 e 550. 90 Ibid., p. 551. Sobre Heidegger, ver p. 573.
194
que pode ser apreendido na sua totalidade, a historiografia se rendeu aos encantos
da hermenêutica. Pareceu-lhe em geral bastante apropriado entender que escrever
história e fazer história são procedimentos indistinguíveis, pois, tendo em vista a
impossibilidade do historiador de alcançar um ponto de vista absoluto ele estaria
irrelutavelmente preso à sua época, ao seu aparato cultural e teórico, e ainda à sua
própria subjetividade. É certo que a equivalência entre história e escrita da
história, cuja tendência é conceber a história como mera interpretação,
desenvolve-se por rumos distintos e alcança formulações diversas em diferentes
obras. Observemos rapidamente dois exemplos.
No curso Em defesa da sociedade, Foucault avança no desenvolvimento da
sua teoria sobre a “insurreição dos saberes” que pretende alocar historicamente
todo discurso. Traçando uma análise da teoria da soberania, o autor sustenta que,
na saída da Idade Média, com a centralização do estado e o monopólio da guerra,
surge um novo discurso histórico-político que se contrapõe ao discurso filosófico-
jurídico vigente desde os gregos. Este último refere-se às concepções universais e
gerais, enquanto o primeiro sugere a natureza parcial de qualquer discurso.
Contrário a idéia de uma verdade absoluta ou de um sujeito universal, o discurso
histórico-político conta com o pressuposto de que “aquele que fala, aquele que diz
a verdade, que narra a história, aquele que recobra a memória e conjura os
esquecimentos, pois bem, este está forçosamente de um lado ou de outro: ele está
na batalha, ele tem adversários, ele trabalha para uma vitória particular.”91 O novo
discurso guarda em si mesmo a forma da guerra de modo que o saber teria se
tornado uma arma. Se não há a possibilidade de conceber uma teoria neutra, todo
discurso é a defesa de uma perspectiva; o pensamento é ação. Corroborando com
essa idéia, o próprio Foucault, seguindo nitidamente o Nietzsche da Genealogia
da moral, não supõe que seu discurso seja o verdadeiro. 92 Seu texto, que encontra
a origem do discurso histórico-político no período pós-medieval, apresenta-se
como um projeto genealógico, que é ele mesmo um discurso entre outros. “Trata-
se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não-legitimados, contra a instância teórica unitária que pretendia
91 Ibid,. p, 60. 92 A idéia de que fazer história e escrever história são uma única e mesma coisa aparece na
interpretação da história por Marx, donde a história surge inevitavelmente como a história da luta de classes. Arendt observa esse fato e, inclusive, entende que essa idéia dá margem a manipulação da história efetivada pelo totalitarismo. Ver cap. 3.
195
filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,
em nome dos direitos de uma ciência que será possuída por alguns.”93
Hayden White ilustra por outro ângulo a tendência contemporânea de
tomar história e escrita da história como esferas equivalentes. Sua hipótese é de
que a história é sempre uma criação do historiador. O que significa que “não pode
haver história propriamente dita sem o pressuposto de uma meta-história
plenamente desenvolvida, pela qual se possa justificar aquelas estratégias
interpretativas necessárias para a interpretação de um dado segmento do processo
histórico.”94 Para White, existe um certo consenso acerca do caráter interpretativo
da historiografia, o qual se fundamenta nas próprias limitações acerca da
possibilidade de apreensão e representação do passado. O autor sugere que a
historia é sempre “menos e mais que o passado”, White indica que o “registro
histórico é ao mesmo tempo compacto demais e difuso demais”,95 ou seja, por um
lado, não pode abranger a totalidade dos fatos e, por outro, ao se constituir como
representação histórica, compõe-se de inferências, ilações e sínteses que
arregimentam a forma do acontecido. Sua discussão gira em torno da demarcação
das possibilidades narrativas da historiografia.96
Para Arendt, a historiografia concebida como ação, donde se superpõem o
acontecimento e a sua interpretação, levaria a disputa de interpretações a adquirir
uma realidade que ela não tem. Devemos reparar que a autora não nega o caráter
interpretativo da história e, provavelmente, estaria de acordo com a noção de que
“Não vivemos estórias, mesmo que confiramos sentido à nossa vida moldando-a
retrospectivamente.”97 No entanto, sua argumentação visa sublinhar que o fato de
a historiografia ter aspecto interpretativo, por se tratar da elaboração de uma
93 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 13. Tomando partido do discurso histórico-
político, Foucault critica Hegel, argumentando que sua suposta retomada da história, na verdade é uma “colonização do discurso histórico-político”, pois o pressuposto do filósofo é ainda a teoria do discurso filosófico-jurídico. Ibid., p. 69.
94 WHITE, Hayden, Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura, p. 67. 95 Ibid; p. 65. 96 Nesse sentido, o autor menciona a diferença sobre a versão positivista de Hempel e a
perspectiva narrativista, indicando que ambos os casos, trata-se de interpretação da história. White observa que, para Hempel, a história é uma ciência nomológico-dedutiva, como todas as ciências, e para os narrativistas a produção de sentido historiográfica não é explicativa, mas advém da própria narrativa construída pelo olhar retrospectivo do historiador sobre os acontecimentos. As referência de White são: HEMPEL, C., Explanation in science and in history. GALLIE, W. B., Philosophy and historical understanding; MINK, L.O., The autonomy of historical understanding; DANTO, A. Analitical philosophy of history. DRAY, Philosophical analysis and history. Ibid; p. 70-1.
97 Ibid., p, 106.
196
história, não indica que o historiador seja o criador da realidade. Como pode
sugerir a argumentação de White, onde “(...) com vistas a criar com eles uma
estória compreensível, o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico
de uma estrutura de enredo”.98
Devemos observar que a autora não procura reabilitar a verdade positiva
do fato. Vimos anteriormente que, para Arendt, poesia e historiografia estão do
mesmo lado, constituindo-se como possibilidade de reificar o sentido da ação. Sua
argumentação não quer provar a realidade da historiografia e a ‘invencionisse’ da
ficção, ao contrário, em ambos os casos está mantida a relação com a realidade da
ação. O interessante na posição arendtiana é que detectar o elemento ficcional na
historiografia não significa colocar em questão a realidade do acontecimento. A
proposição acerca da separação entre história real, proveniente da ação, e escrita
da história não pode ser compreendida nos termos da discussão sobre a oposição
ou equivalência entre história e ficção. Tanto o historiador quanto o ficcionista
são autores da história e diferenciam-se dos atores da história.99 Em Arendt, a
conexão entre história real e historiografia existe como um laço interpretativo,
mas não se caracteriza como justaposição. Seu intuito volta-se mais para indicar a
importância da distinção entre as duas esferas e a sua possível ligação em bons
termos, que para determinar quais são as estratégias narrativas às quais o
historiador pode recorrer. Sua preocupação é mostrar que tomar fatos por
interpretações é um equívoco grave, que permite a ‘construção’ de realidades
fictícias como as totalitárias.
A diferença fundamental é que, para White, o historiador cria o sentido,
enquanto em Arendt, ele vislumbra o sentido. Se White pode recair num
relativismo sociológico, ao assumir que as possibilidades de contar uma estória
não são infinitas, mas estão ligadas ao horizonte do historiador e de seu tempo,
donde se avultam “os modos de urdir o enredo, os modos de explicação e os
modos de implicação ideológica”100 e, ao indicar com Mannheim, que não existe
98 Ibid., p. 108. 99 Se a ficção pode construir um personagem que seja o autor da história nunca apreende de
fato a realidade viva da existência do autor. 100 “Assim, a interpretação entra na historiografia pelo menos de três maneiras:
esteticamente (na escolha de uma estratégia narrativa), epistemologicamente (n escolha de um paradigma explicativo) e eticamente (na escolha de uma estratégia pela qual as implicações ideológicas de uma dada representação possam ser deduzidas para a compreensão de problemas sociais do presente).” WHITE, H., loc. cit. p, 89. As opções para a urdidura estética apresenta pelo autor são: romance, comédia, tragédia e sátira. Os modos de explicação são: idiográfico,
197
uma “historiografia contemplativa”.101 A alternativa arendtiana sobre a
possibilidade do sentido da história advir dos próprios acontecimentos pode
parecer ultrapassada ou nostálgica. Como o historiador pode detectar a grandeza
dos feitos humanos? Sua proposta não seria a retomada da concepção antiga da
história?
Desde o seu aparecimento na Grécia, o historiador é aquele que diz o que é
– légei ta conta. Sua tarefa é primordialmente ver e contar o que aconteceu, ou
seja, testemunhar acerca da realidade do mundo. Arendt recorre à concepção
grega do historiador como aquele que “salva do esquecimento” para conceder-lhe
responsabilidade pela durabilidade do mundo. Se é na convivência entre pares que
é possível afirmar a presença do mundo, em última instância, isso sugere que a
realidade do mundo é dada aos olhos, que não existe nada por trás do que aparece.
A noção de que o mundo é o que se abre entre os homens significa justamente que
a realidade é confirmada pelo testemunho.
Nosso intuito volta-se para o esforço de retomar a narrativa da história da
história traçada pela autora. Tendo em vista a pergunta acerca da influência da
concepção antiga de história no desenvolvimento de seu próprio conceito de
história.
5.3. História da história
Entendendo que para compreender a concepção da história arendtiana é
necessário remeter à própria história da história traçada pela autora, nos
reservamos a tarefa de considerar separadamente o desenvolvimento da noção de
história apresentado no seu trabalho sobre o “Conceito de história – antigo e
moderno”. Para acompanhar a narrativa sobre o nascimento da escrita da história
na Grécia e seu definhamento até a contemporaneidade, é importante ter em mente
organicista, mecanicista e contextualista. Os modos de implicação ideológica são: anarquista, conservador, radical e liberal.
101 White refere-se ao ensaio O pensamento conservador e à obra Ideologia e utopia. “O sociólogo do conhecimento Karl Mannheim asseverava que as diferentes posições no espectro ideológico das sociedades modernas, com suas divisões de classe - liberal, conservadora, radical e anarquista (ou niilista) – traziam consigo sua própria forma de consciência temporal e social e uma noção particular da extensão com que os processos históricos eram suscetíveis de análise racional ou se opunham a esta.” Ibid,. p. 87.
198
o traçado arendtiano da história do Ocidente que analisamos no primeiro capítulo
desse trabalho, pois, como supomos, a autora concebe de modo semelhante o
esquecimento do histórico – escrita da história – e do político.
Podemos notar que, apesar de comumente se supor que a modernidade e a
concepção moderna de história deram cabo da versão antiga da história, na qual
“o passado orientava o futuro”, esse não é o pressuposto arendtiano.102 Sua leitura
aponta para a ruptura da tradição apenas na contemporaneidade. Isso não significa
que a autora não estabeleça uma diferenciação entre a concepção antiga da
história e a moderna. Mas sua distinção, certamente, não é a tradicional. A
narrativa da história do Ocidente traçada por Arendt, a qual se distingue por
contar a história da tradição do pensamento político e do esquecimento da origem
do político no qual se funda, tem como um de seus pilares a concepção de que a
tradição que se inicia com Platão, e se estabelece definitivamente com o fim da
pólis na Grécia, encontrou a ruptura de sua continuidade com o advento dos
totalitarismos. Na ruptura da tradição, a autora vislumbra a possibilidade de
reencontrar o passado sem o “fio condutor” que determinava o encadeamento
entre passado e futuro e que, como sabemos, pelo menos, desde de Cícero, está
definido prontamente no adágio da “História mestra da Vida”.
O que precisamos sublinhar é que a separação arendtiana entre a noção de
história antiga e moderna segue o pressuposto que norteia sua narrativa da história
do florescimento do político na pólis e de seu posterior esquecimento, ou seja,
conta com a ruptura da tradição apenas na contemporaneidade, e não na
modernidade. Não sem razão suas referências à Tocqueville e seu famoso
presságio que revela que “quando o passado não orienta mais o futuro o homem
vagueia na escuridão”, aparece quando a autora se refere à ruptura instaurada
pelos totalitarismos.103 A História concebida pelos modernos como um processo
102 Essa concepção usual sobre a passagem da história mestra da vida para a história em sua
versão moderna, concebida como processo autônomo dotado de sentido, encontramos claramente em Koselleck, no seu “Futuro passado”, especialmente no capítulo “Historia Magistra Vitae”. A noção de história, que se convencionou chamar de “História Mestra da Vida”, cujo exercício visava conceber a história como material exemplar para as gerações futuras, funda-se na concepção cíclica do tempo da Antigüidade. Entendia-se que o passado poderia orientar o futuro porque havia semelhança e continuidade entre as épocas. A natureza humana era a mesma e garantia a equivalência das situações. Ver JASMIN, M, Alexis de Tocqueville. A historiografia como ciência da política.
103 Nesse sentido a autora evoca o poema de René Char “Notre héritage n’est precede d’aucun testament - “Nossa herança nos foi deixada sem testamento algum” In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro, p. 28. Ao comentar a perda do tesouro dos homens da resistência
199
autônomo dotado de sentido não vigora na leitura arendtiana da historiografia
como a concretização da libertação da tradição. Nossa suposição é que Arendt
observa na constituição da História como processo o erigimento de uma nova
versão do absoluto que determina a ação. Como vimos anteriormente, reside nesse
ponto toda a sua crítica às filosofias da história. O fato é que se a tradição do
pensamento político toma forma com a instituição da supremacia da teoria que
pode indicar a ação o que deve ser feito, a História moderna não seria uma
valorização da ação e dos assuntos humanos concretos, como queriam Hegel e
Marx, ao contrário, para Arendt, a História vislumbrada nos moldes do processo
autônomo caminha para destituir qualquer consideração da liberdade humana – a
possibilidade dos homens de agir por si mesmos em total contingência.
Apesar de a autora não nomear uma subversão do esquecimento da
história, fica claro que o conceito moderno de história é inferior ao conceito
antigo. De todo modo, importa-nos perceber que o lugar da história só pode ser
apreendido quando pensado em relação ao político. Acreditamos que a narrativa
do destino comum do político e do histórico torna nítida a suposição que viemos
defendendo até então. De que não há no pensamento arendtiano uma oposição
entre política e história, mas, ao contrário, justamente, a noção de que as origens
do político e do histórico estão referidas entre si e podem ser encontradas na
Grécia clássica.
Mostrar como a história da história está ligada à narrativa da história do
ocidente como esquecimento do político requer a consideração do
desenvolvimento do conceito de história. Entendemos que há na delimitação
conceitual arendtiana sobre a história – no estudo sobre o conceito antigo e
moderno - uma história acerca da noção de história em diferentes épocas da
história ocidental. Assim como entrevimos uma narrativa de Arendt sobre o
esquecimento do político, destacaremos sua abordagem da história da história,
explicitando as diferenças entre a noção antiga e moderna de história, que em
muito se assemelham às distinções do político nos respectivos períodos, de modo
francesa, que era a própria experiência da liberdade que existiu entre eles, Arendt reafirma a necessidade da ação ser salvaguardada pela história. “o ‘acabamento’ que de fato todo acontecimento vivido precisa ter nas mentes dos que depois deverão contar a história e transmitir seu significado deles se esquivou, e sem este acabamento pensado após o ato e sem a articulação realizada pela memória, simplesmente não sobrou nenhuma história que pudesse ser contada.” Ibid., p. 32. Para Arendt, a tradição fazia a transposição entre o passado e o futuro. Sua ruptura, que abre a possibilidade para a autonomia da ação, também insurge como uma perda de sentido.
200
a indicar como a autora, na verdade, conta uma história sobre o sentido do
histórico. Considerando um quadro geral, podemos apontar pelo menos a
referência a cinco conjunturas distintas entre si, donde figuram a Grécia clássica, a
romana, a cristã, a moderna e a contemporânea. Como a opção da autora é focar
sua atenção na distinção entre o conceito antigo e moderno de história e examiná-
lo através de tópicos temáticos, não é possível traçar com tanta clareza um quadro
cronológico como o que aqui estamos tentando fazer para acompanhar sua
narrativa. Não obstante, acreditamos que essa elaboração deixa ver como se
constitui sua própria noção de história, que se concilia com sua teoria do político.
O mais importante nessa sucessão cronológica é perceber que na história da
história surge a mesma temática do declínio. Arendt não chega a falar
explicitamente em decadência, mas fica evidente que o conceito moderno de
história, que implica a “monstruosidade dessa transformação”, está ligado à perda
de mundo especificamente moderna, e aparece também como um definhamento da
história, quando comparado ao seu lugar grego. O surgimento do conceito de
processo histórico autônomo, dotado de sentido próprio, que deixa de se referir às
ações humanas em sua singularidade para encontrar as forças ocultas que movem
a história, aparece como um empobrecimento em relação à concepção antiga da
história que garante a permanência da grandeza humana na narrativa de suas
ações.
A autora evoca o aparecimento da escrita da história na Grécia, onde surge
como uma espécie de atividade “complementar” à ação, pois é ela que não
permite que sua grandeza seja esquecida e, ao mesmo tempo, garante-lhe um
sentido que não pode ser concedido pelos atores. Desde os romanos, quando a
história assume claramente a função de orientar a ação, tornando-se “história
mestra da vida”; mas, sobretudo, na antigüidade tardia, onde Arendt visualiza que
a história deixa de ser a escrita sobre a ação e passa a ser um processo de ascensão
e decadência semelhante aos processos biológicos, a historiografia demonstra seu
declínio.
Retomaremos essa história, procurando analisar os principais aspectos que,
segundo Arendt, marcam a concepção de história das diferentes épocas,
especialmente, as mais bem delimitadas na sua leitura; a antiga e a moderna. Tal
exame tem em vista, não apenas compreender as divergências entre o conceito
antigo e moderno de história, mas, principalmente, entender o que caracteriza o
201
histórico para Arendt. Nossa ênfase sobre o período contemporâneo não tem outra
razão senão visualizar o diagnóstico da autora acerca do histórico em nossa
época.104 Seria possível imaginar que, após a derrocada das filosofias da história e
da desmontagem da metafísica a história redescobrisse seu status antigo? Qual o
significado da ruptura da tradição para a historiografia?
Para termos uma idéia geral do aparecimento do histórico e da mudança de
sentido do conceito de história desde a Antigüidade tardia, o que configura, como
supomos, uma espécie de ‘esquecimento’ do histórico; devemos ter em vista o
amplo panorama do desenvolvimento histórico da noção de história. Se o seu
despontar pode ser visualizado na Atenas clássica, o sentido da história se
modifica com os romanos e os cristãos, e transforma-se na versão moderna e
contemporânea. Traçaremos não mais que um quadro geral, examinando o
significado e as implicações de compreender a história da história através da
variação histórica de seu sentido.
Comecemos pela remissão ao contexto antigo, mais explicitamente à
situação do surgimento da história na Grécia clássica. Tal como outrora indicava o
florescimento do político na pólis, Arendt também não deixa de louvar a
concepção grega de história. Remete ao seu nascimento com Herótodo, mas não
deixa de evocar sua origem metafórica em Homero. Ao encontrar o paradigma da
história e também da poesia na mesma cena da narrativa da estória de Ulisses na
corte dos feácios, Arendt reconhece que está em jogo aí a idéia de catarse que
seria tomada para a tragédia grega e a noção de reconciliação.105O que devemos
sublinhar é que a escrita da história que surge na Grécia assume uma espécie de
lugar complementar à política. Ou seja, destacar que é mediante à fugacidade e à
fragilidade da ação que se interpõe o histórico como a possibilidade de “salvar do
esquecimento”.
104 “Histórico” aqui está se referindo à escrita da história, ou como alguns preferem
denominar, à historiografia. 105 Quando fala do nascimento da história, Arendt está falando da escrita da história.“A
História como uma categoria de existência humana é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero” ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 74. É preciso lembrar também que o início da história como escrita da história ao qual alude não se trata propriamente de um início histórico. Nesse sentido, o paradigma vislumbrado por ela é uma imagem poética. De todo modo, é comum tomar o aparecimento da historiografia na Grécia com Heródoto, designado por Cícero como pai da história.
202
A escrita da história surge não como uma oposição à ação, mas como uma
espécie de “acabamento” que preenche pelo menos algumas de suas lacunas.106 É
na história que a ação ganha durabilidade e sentido. A cena paradigmática de
Ulisses revela justamente a possibilidade do herói da história ser ao mesmo tempo
aquele que houve sua história e compreende o seu significado. “O motivo humano
mais profundo para a História e a Poesia surge aqui em pureza ímpar: visto que
ouvinte, ator e sofredor são a mesma pessoa (...) Isso significa que foi possível
para o ator vislumbrar o sentido da ação. Na narrativa da estória, o herói enxerga
seu próprio “quem” que se revela na ação, mas que durante seu desenrolar está
oculto aos seus olhos.”107
Nessa retomada do nascimento do histórico, quando concebe o conceito
antigo de história, Arendt deixa ver quase completamente suas próprias
considerações teóricas acerca da história. As indicações sobre a caracterização da
história e da tarefa do historiador surgem mais claramente como o conceito antigo
de história. Decerto, muitas vezes, temos a impressão de que a autora se refere à
história como se falasse do conceito antigo de história, e vice-versa, quando trata
do conceito antigo parece indicar “o” lugar da história, tal como sua menção ao
político carrega consigo a alusão à experiência do político na pólis. A sensação de
que há uma equivalência entre a posição arendtiana e sua interpretação dos gregos
é o que sustenta as hipóteses que apontam o aspecto nostálgico de seu
pensamento. A análise do conceito do histórico também pode suscitar essa
suposição. Tal como o político, o histórico, como escrita da história, é
contemporâneo dos gregos. Do mesmo modo, pode-se imaginar que a constatação
desse surgimento “fixa” um lugar do histórico, diante do qual as alterações
sofridas em outras épocas indicam declínio do sentido original. Como se as
concepções cristã e moderna da história figurassem como decadência do histórico,
cuja culminação surge na versão totalitária da história que, para a autora, subverte
completamente a noção de história, retirando-lhe não apenas a tarefa de atribuição
106 O termo “acabamento”, a autora utiliza para falar da necessidade da ação, que é fugaz
por excelência, ser salvaguardada do esquecimento. 107 O que a história torna visível e reifica no fim da história é a identidade do ator que só
pode ser entrevista pelos seus pares. Arendt sintetiza essa concepção do “quem” na menção ao daimon grego, que uma pessoa carrega consigo por toda a vida sem poder identificar. Se a polis pode guardar a continuidade da memória pelo testemunho, a história pode prover a durabilidade do “quem” pela narrativa.
203
de sentido e reconciliação, mas inferindo a justaposição entre ação e história –
entre a história real e a escrita da história.
Esse ‘esquecimento’ do histórico que, como supomos, caminha no mesmo
passo do esquecimento do político, começa, principalmente, na Antigüidade tardia
quando a história deixa de se constituir como uma série de histórias que narram e
compreendem a ação e passa a caracterizar-se como um processo linear com
início e fim. Certo é que já na perspectiva romana da história a autora constata
uma variação da concepção grega. Arendt sugere que no caso da história romana
os eventos servem de exemplos para orientar a ação, como se fossem
padronizados, enquanto, na situação grega, o caráter exemplar dos eventos
históricos está mais ligado à tarefa de despertar a grandeza, mas não de dizer o
que deve ser feito.108A expressão da autora é de que na historiografia grega, os
exemplos podem servir como uma espécie de ‘estalão’, enquanto na romana trata-
se da condução da ação.
O que devemos observar é que a remissão ao conceito antigo comporta a
separação entre gregos e romanos e, ao mesmo tempo, supõe a semelhança entre
ambos. Arendt não nega que tanto na noção grega quanto na romana está em
questão a ‘lição de cada evento’; sua leitura enfatiza menos a repetição da história
e a temática da natureza humana, e mais a grandeza do evento em sua
particularidade. Assim, considerando a diferença fundamental no que se refere à
orientação da ação, acreditamos que a autora adota o ‘conceito antigo’ para gregos
e romanos por entender que, nos dois casos, a história é a história do particular –
dos feitos humanos provenientes da ação -, em oposição, à concepção moderna,
que privilegia o processo em detrimento do evento. Para Arendt, o que marca a
perspectiva antiga da história é o fato do acontecimento ter sentido por si mesmo e
não precisar se encaixar numa cadeia causal para adquirir significado.
O que é muito mais relevante é que as historiografias grega e romana, por mais que difiram uma da outra, dão ambas por assente que o significado ou, como diriam os romanos, a lição de cada evento, feito ou ocorrência revela-se em e por si mesma (...) causalidade e contexto eram vistos sob a luz fornecida pelo próprio evento, iluminando um segmento específico dos problemas humanos; não eram considerados como possuidores de uma existência independente.109
108 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 99. 109 Ibid., p. 96.
204
Na preocupação em contrapor o conceito antigo e moderno de história, a
autora não aprofunda seu exame acerca da distinção da noção de história grega e
romana. A referência a essa diferenciação aparece na tentativa de desvencilhar
Agostinho da versão moderna da história. Arendt argumenta que, em matéria de
história secular, Agostinho pensa como os romanos, isto é, baseia-se no
pressuposto da história exemplar, segundo o qual a história “permanece um
repositório de exemplos, e a localização do evento no tempo, dentro do curso
secular da história, continua sem importância (...) nenhuma verdade
fundamentalmente nova será jamais novamente revelada por tais eventos
mundanos.”110 Sem negar que, ao conceber o aparecimento de Cristo como ponto
de inflexão, Agostinho supõe a singularidade do evento, Arendt acredita que o
caráter único do nascimento do Messias não indica a possibilidade de vislumbrar
uma história baseada na novidade. O milagre cristão é o único acontecimento
irrepetível da história. O milagre se refere ao plano extraterreno e não ao mundo
humano.
Na passagem pela temática da história em Agostinho, a autora aponta a
diferença não apenas entre a historiografia grega e romana, supondo que a última,
funda-se no pressuposto da orientação da ação, como também sugere a
especificidade da perspectiva cristã da história. Qual seja, a historiografia cristã
tem a preocupação com o extra-mundano. Seu foco é narrar a história milagrosa.
Para Arendt, esse dado é fundamental, pois ao conceber o nascimento da
historiografia na Grécia, indica que seu desígnio está associado à ação, isto é,
trata-se da tentativa de salvaguardar os feitos humanos e dotar-lhes de sentido. A
complementaridade da ação sugere que a historiografia é uma atividade que,
embora não deixe de ser intelectual, está extremamente próxima dos assuntos
humanos. Assim, considerando que a historiografia cristã interessa-se menos pelo
que se passa entre os homens e mais pelo que transcende o mundano, a autora
nota aí o decaimento do histórico. Fato que já se anuncia, de certo modo, desde a
leitura romana da historiografia, que privilegia a narrativa histórica como forma
de orientação. Há ainda outro ponto que se mostra nessa retomada de Agostinho.
Para diferenciá-lo dos modernos, a autora sugere que a novidade presente em sua
concepção de história é a idéia cristã do milagre, e não a noção moderna que
110 Ibid., p. 99.
205
concebe o próprio processo histórico como uma continuidade sustentada pela
irrepetibilidade dos fatos.
O que os intérpretes modernos tendem a esquecer é que Agostinho reclamava essa singularidade que soa tão familiar a nossos ouvidos, somente para esse evento – o evento supremo na história humana, quando a eternidade se quebrou no decurso da mortalidade terrena; ele jamais pretendeu essa unicidade, como o fazemos, para eventos seculares ordinários. (...) Para nós, por outro lado, a história assenta-se sobre o pressuposto de que o processo, em sua secularidade mesma, nos conta uma estória, com direito próprio e de que, estritamente falando, repetições não podem ocorrer.111
Para além da discussão sobre a existência de uma filosofia da história
cristã, interessa-nos destacar que, ao evocar, a questão da ‘modernidade’ de
Agostinho, Arendt parece contar com a clássica divisão entre a historiografia
antiga e moderna, donde esta última surge como um processo infinito, linear e
irrepetível. O problema que se apresenta é o seguinte: se a autora supõe que a
novidade histórica no âmbito secular está ligada à noção moderna da história,
segundo a qual a história é um processo de fatos inéditos, como podemos entender
sua argumentação sobre a singularidade do evento na historiografia antiga, a rigor,
na historiografia grega?
Se podemos compreender que existe a postulação da separação entre as
concepções da história grega, romana, cristã e moderna, resta entender como, ao
mencionar que Agostinho concebe a história secular como exemplar, Arendt
diferencia antigos e modernos não apenas pela separação entre primazia do
evento, de um lado; e ênfase no processo, de outro; mas indica que, para nós,
modernos, a história não existe sem a possibilidade da novidade, dando a entender
que a novidade é especificamente moderna. A dúvida certamente recai também
sobre a possibilidade de conciliar essa diferenciação entre antigos e modernos
com a sua interpretação da ação, estabelecida n’ A condição humana como
competência para iniciar a novidade no mundo. A concepção antiga da história
não deveria diante dessa definição da ação estar intrinsecamente ligada à noção de
novidade? Afinal, em que Arendt se aproxima e se afasta da perspectiva corrente,
segundo a qual a história até a modernidade é basicamente a experiência da
111 Ibid., pp. 98 e 100. Agostinho e a noção cristã da história também se diferem do
conceito moderno porque no seu caso contam com um mundo com início e fim, enquanto, na versão moderna a história surge como um processo infinito.
206
“história mestra da vida”, quando tal noção é substituída pela idéia de que a
história é um processo autônomo dotado de sentido e seus eventos são
irrepetíveis?112
Para responder a essas perguntas é preciso esclarecer em que consiste a
singularidade do evento que perpassa a noção de historiografia antiga, tal como
avançar na narrativa do declínio do histórico que alcança a contemporaneidade.
Na análise da historiografia antiga e de seu significado, podemos perceber o que
sustenta para Arendt a valorização do extraordinário em relação ao comum e
cotidiano. Comentamos tal divisão ainda no primeiro capítulo desse trabalho, ao
examinarmos a distinção entre trabalho e ação. A natureza aparece como um ciclo
biológico de eterna repetição, o qual é rompido pelo erigimento do mundo
artificial construído com o trabalho humano e pelo aparecimento das ações e
feitos que os homens iniciam no mundo. No caso antigo, a autora indica que a
história serve para conceder ao homem uma imortalidade especificamente humana
num mundo natural onde tudo é eterno menos o homem, cuja vida individual, e
não a vida natural da espécie, é dotada de início e fim. A imortalidade é alcançada
quando essa vida expõe uma grandeza digna de ser narrada para a posteridade. O
que está em questão na historiografia antiga que pretende ‘salvar do
esquecimento’ é, portanto, a possibilidade de surgir uma durabilidade
especificamente humana, concretizada pelos homens.
Acreditamos que, para entender essa clivagem arendtiana entre o conceito
antigo e moderno, devemos mostrar como ela se apóia menos na ênfase da
modernidade como arauta da novidade e mais na suposição de que a versão
moderna da história surge como um processo, que apesar de infinito e irrepetível,
se mostra mais como uma construção teórica que como uma consideração dos
assuntos humanos.113 Seguindo sua proposta de sublinhar a relação entre história e
natureza, tanto na versão antiga, quanto na moderna, Arendt destaca que na
Antigüidade, o homem era o único ser mortal diante de um universo eterno, ou
seja, era o único que tinha início e fim bem definidos pela vida individual de cada
pessoa, em oposição à eternidade biológica das outras espécies. Como espécie, o
homem também era eterno, mas, justamente aquilo que lhe diferenciava do 112 KOSELLECK, R., Futuro passado. 113 No capítulo anterior também procuramos, mais especificamente, destacar como a
modernidade subsume a potencialidade da novidade, conjugando os eventos num processo autônomo dotado de sentido.
207
universo biológico era o que lhe retirava essa eternidade, qual seja, a sua finitude.
Se lembrarmos que a ação também se distingue a partir dessa distinção do
biológico, vemos como ação e história estão do mesmo lado. Arendt refere-se à
capacidade do homem de ‘rasgar’ o ciclo sempterno da natureza, não através de
produtos, mas pela implantação de feitos legitimamente humanos – eventos
desencadeados pela ação dos homens. É a história, ou a escrita da história, que
salvaguarda os feitos e lhes confere sentido, dando-lhes a possibilidade da
durabilidade e imortalidade. O que significa a possibilidade de encontrar uma
eternidade especificamente humana, a qual não se designa por eternidade porque
justamente não deve tratar-se de uma duração fora do tempo humano.114 Essa
durabilidade propriamente humana é designada como imortalidade. A
complementaridade entre ação e história é o que constitui a possibilidade de
instaurar uma ‘continuidade’ propriamente humana. Devemos perceber que a
‘continuidade’, nesse sentido, só existe porque interpõe uma ruptura num processo
em curso, seja ele o ciclo natural ou o ciclo cotidiano. Nesse sentido, a ênfase no
extraordinário revela não apenas o caráter da ação, mas a sua relação com a
história.
Tais referências ao conceito antigo de história são bastante semelhantes
àquelas que tratamos no tópico designado como ‘considerações teóricas’. O
importante agora é destacar que a valorização do extraordinário que é a ação,
constitui o objeto da escrita da história e fundamenta a designação arendtiana
acerca do conceito antigo de história. A conexão entre ação e história e a ênfase
no evento não permitem que Arendt considere qualquer ligação primordial entre
história e filosofia. Para ela, a história está ligada à particularidade desde o seu
surgimento.115 Nesse sentido, vemos que ela defende como poucos autores a
especificidade da história. Uma história intrinsecamente ligada ao mundo, que não
pode se desconectar completamente dos eventos e feitos, ou seja, da realidade
particular que é o seu tema. Quando se torna filosófica ou sociológica, e enfatiza a
análise geral e teórica em detrimento da experiência concreta, a história perde sua
virtude e autonomia e, inclusive, pode se transformar em outra coisa, como
acontece com as filosofias da história. Oportunamente retomaremos a indagação 114 N’A condição humana, Arendt dedica um tópico especial para a questão da
diferenciação entre eternidade e imortalidade. 115 Arendt não compartilha da visão, defendida, entre outros, por Cochrane, de que a
história surge da filosofia. ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 69-70, nota 1.
208
sobre a possibilidade de haver nesse surgimento da história na Grécia a fixação do
lugar da história, o qual estaria indicado pela possibilidade de reconciliação com a
ação e pela capacidade de assegurar a permanência e durabilidade do mundo. A
própria idéia de um declínio do histórico já anuncia essa possibilidade.
Avaliemos o desenvolvimento do conceito de história. Arendt parece
supor que apenas na antigüidade tardia o histórico começa a declinar, quando
passa a ser concebido como uma narrativa de ascensão e queda, semelhante ao
curso biológico. “O movimento histórico começou a ser construído à imagem da
vida biológica.”116 O importante nessa passagem é o aparecimento de uma noção
linear de história que marcará profundamente a transição entre a concepção
antiga, que privilegia os feitos dos homens, ou seja, ainda se volta para a ação, e a
noção moderna em que o processo por si mesmo adquire validade. Visualizamos
nesse período, desde a Antigüidade tardia até a modernidade, o traço comum da
perspectiva linear da história. Afirmada pela concepção cristã, segundo a qual a
história tem um início e um fim determinados.
O declínio narrado por Arendt com a ascensão da versão cristã da história
pode ser designado como o desinteresse pelos assuntos humanos. O problema é
que seu objeto não é mais a ação humana, como na historiografia grega, mas, sim,
o milagre divino – não se trata mais de assegurar a imortalidade, mas de lembrar
para a eternidade. Nesse sentido, o fato de constituir-se como uma religião de
memória (“Fazei isso em memória de mim.”) como destacado por Jacques Le
Goff não torna imediata a conexão com a história.117 Ocorre que a lembrança dos
fatos e feitos na história cristã não são exatamente façanhas humanas. A história,
nesse caso, não teria relação com a possibilidade da imortalidade, mas seria uma
versão da eternidade. Arendt sublinha a passagem bíblica que sugere a separação
entre o mundano e o divino para mostrar a renúncia aos assuntos humanos.
Devemos notar que é esse desapego pelo mundo dos homens que caracteriza o
afastamento do histórico.
Decerto que, apesar de refutar a consideração de Agostinho como versão
moderna da história e questionar a relação da perspectiva cristã com a moderna, a
autora não descarta que, em ambos os casos, há a rejeição da ação, pois a História,
entendida no sentido moderno como processo autônomo aparece ainda como uma
116 Ibid., p.72. 117 LE GOFF, J., História e memória.
209
pseudo-divindade, que também desconsidera o agir humano em prol da
valorização de um sentido superior e eterno. Mas isso não significa que defenda
que a versão cristã possa ser identificada como uma filosofia da história. É
importante notar que, para Arendt, o conceito moderno de história, diferentemente
da concepção cristã, que conta com a suposição de uma vida eterna, é baseado na
secularização da história. Sem considerar esse aspecto não seria possível entender
como o conceito moderno surge com a noção de que a história é um processo
infinito, sem início e fim definidos. O fato é que a transformação do sentido da
história parece mais ser uma perda de sentido – já que no mundo grego a história
tinha a tarefa fundamental de deixar o homem em casa nessa terra. Com o
cristianismo a história serve para mostrar que essa terra é apenas uma passagem
para a vida eterna; o mundo não é sua casa. Nos termos de Arendt, trata-se de
uma subjugação dos negócios humanos. Assim, a mesma declinação do político
surge na decadência do histórico e, em ambos os casos, o declínio é uma espécie
de esquecimento dos assuntos humanos; uma desconsideração de sua perspectiva
finita em prol da supremacia da teoria ou da religião. A conexão entre ação e
história revela que na perspectiva arendtiana a história só tem sentido num mundo
finito, pois é eminentemente humana e precisa ser concebida dessa forma.
Lembremos que entre o fim da proeminência do cristianismo e o início da
época moderna, quando a História ainda não havia tomado o lugar do absoluto
religioso, a autora vislumbra o florescimento das filosofias políticas. “E de fato,
no início da época moderna tudo apontava para uma elevação da ação e da vida
política, e os séculos XVI e XVII tão ricos de novas filosofias políticas, eram
ainda inconscientes de qualquer ênfase especial na História enquanto tal.”118 A
semelhança entre a situação de admissão da mortalidade na Antigüidade e na
época do renascimento que por essa razão se identificava mais com os antigos que
com o tempo medieval do cristianismo, onde a vida é imortal dentro de um mundo
mortal, é o que permite, segundo a autora, a possibilidade do nascimento de uma
ciência política. “Politicamente falando, dentro do próprio reino secular, a
secularização não significava senão que os homens haviam de novo se tornado
mortais.”119 Se levássemos adiante a proposição arendtiana, poderíamos retomar
nesse mesmo sentido o “reaparecimento” da historiografia com Maquiavel e
118 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, 110. 119 Ibid., p. 110.
210
Guicciardinni. Tal ressurgimento da produção historiográfica corrobora com a sua
leitura acerca do interesse pelos assuntos humanos e reafirma a relação
complementar entre ação e história. Onde há ação, ou seja, quando o homem é
livre para erigir feitos especificamente humanos, surge com esses feitos uma
história a ser narrada e, portanto, a história escrita.
Importante para seguirmos o fio da narrativa do declínio da história é
perceber como a versão moderna surge como uma nova relação entre o homem
mortal e o processo infinito, qual seja, entre finitude e infinitude. A autora entende
que tanto a concepção antiga, quanto a moderna estão diretamente relacionadas às
noções de natureza de suas épocas. “(...) os mais recentes progressos nas Ciências
Naturais. Eles nos reconduziram à origem comum da natureza e da história na
época moderna e demonstraram que seu denominador comum jaz de fato no
conceito de processo – tanto quanto o denominador comum à natureza e à História
na Antigüidade se assentava no conceito de imortalidade.”120 A comunhão entre o
conceito antigo e o moderno, no que se refere à relação entre história e natureza,
no entanto, revela para Arendt, o grande engano da modernidade que pretende
sustentar a “imortalidade” e a infinitude da humanidade no desenvolvimento
‘eterno’ da espécie. Tão logo fala da semelhança da noção de imortalidade antiga
e moderna, a autora distingue prontamente seus significados.
Arendt aponta a “realização” do conceito moderno de história, que traz
para o plano terreno a noção de infinitude do processo, produzindo uma noção de
imortalidade humana. A vantagem da noção moderna é não conceber fim e a
desvantagem é garantir a imortalidade pelo processo fluido e não na estrutura fixa
como se fazia na Antigüidade. No entanto, é justamente essa noção de
imortalidade que será alvo de sua crítica. Ao observar a grandeza que a
modernidade concede ao próprio processo, a autora indica que tal noção se refere
“à mera seqüência temporal”.121 Se a história moderna aparece como um processo
infinito isso não é nada diferente do processo natural da espécie. Da eternidade
biológica. “Foi portanto no decurso da busca de um âmbito estritamente secular
de duradoura permanência que a época moderna descobriu a imortalidade
potencial da espécie humana.” 122
120 Ibid., p. 93. 121 Ibid., p. 97 122 Ibid., p.
211
Notamos que a orientação da autora é divisar a relação entre história e
natureza tanto na Antigüidade como na modernidade, mostrando que, para os
antigos, a história é a possibilidade de conquistar pelos eventos grandiosos a
imortalidade terrena em meio a uma natureza eterna; enquanto para os modernos,
a história é um processo infinito tal como o processo de natureza. Se há uma
conexão entre história e natureza em ambos os casos, parece que na Antigüidade
ainda há uma contraposição entre homem e natureza, que pretende ser subsumida
na modernidade. Devemos perceber como é considerável nessa distinção a noção
de tempo humano e tempo natural. A questão da natureza não aparece no
argumento arendtiano seguida de qualquer discussão sobre o caráter de natureza.
Pode-se entender que essa não é a problemática da autora. O “tempo natural”
aparece praticamente como uma ausência de tempo, dado o aspecto eterno do
ciclo natural. Em oposição ao tempo natural surge o tempo humano que, marcado
pela própria finitude, caracteriza-se pela mutabilidade. O homem só está preso à
eternidade do tempo biológico enquanto ser da espécie. Mas, considerando que a
humanidade do homem se distingue, em Arendt, pela possibilidade do homem se
diferenciar dos seus iguais, o tempo propriamente humano é aquele onde o
homem interpõe sua diferença. Assim, podemos inferir que o tempo
especificamente humano na concepção de Arendt é o tempo da ação e da história,
supondo, então, que na proposição arendtiana o tempo natural ou o tempo eterno é
uma espécie de não-tempo. A temporalidade constitui-se pela própria interposição
do humano – da ação - sobre o ‘tempo natural’. 123 Nesse caso, a moderna versão
da história, na verdade, deixaria de se constituir como a instituição do tempo para
se tornar um processo atemporal – infinito e eterno. Por essa razão, apesar da
valorização da novidade trazida pela modernidade, os eventos e ações humanas
não são considerados em sua singularidade. Mesmo se caracterizando como um
processo onde repetições são impossíveis, isso não significa necessariamente a
retomada da ação pela história porque não é a ação que “deixa a história atrás de
si”, mas o processo que converte toda ação e todo fato automaticamente em
história. De modo que, o que parece ser uma emancipação do histórico na
modernidade, se constitui mais como uma ‘naturalização’ da história.
123 Lembramos aqui a distinção entre Arendt e Merleau-Ponty abordada anteriormente. Em
Arendt, a interposição do tempo mundano pelo homem se faz pela ação e não pelo pensamento, embora essa atividade também tenha sua temporalidade específica.
212
Para além de traçar a temática do tempo na obra arendtiana, cuja
profundidade renderia outro trabalho, nosso intuito ao apontar a relação concebida
pela autora entre história e natureza, é indicar que a conexão entre essas duas
instâncias, que se mostra, na Antigüidade, como uma verdadeira oposição e, na
modernidade, se encaminha mais para uma justaposição, refere-se à relação entre
finitude-infinitude. A leitura de Arendt acerca do desenvolvimento do histórico e,
do político, implica na visualização dessa relação ao longo da história. A partir daí
é que se coloca a questão da conexão entre ação e pensamento. Devemos observar
que tudo o que se refere à finitude evoca os assuntos humanos em sua
especificidade. Reconhecer a finitude é perceber a particularidade da ação. A
infinitude é entrevista pelo princípio de considerar o mundo como se fosse
possível estar fora dele. A autora rejeita a concepção do absoluto, própria da
infinitude, por entender que a finitude é a única perspectiva que os mortais podem
ter.124
No caso do exame da ação e da história, podemos entender porque ambas
as narrativas aparecem como histórias da decadência. Ocorre que, para a autora, a
antigüidade reconhece a finitude humana, por isso, concede enorme importância à
grandeza das ações e à imortalidade alcançada pela história. Mas a importância da
ação perde lugar quando, em meio aos anseios de resolver a perplexidade dos
mortais, ou seja, de escapar de sua finitude, o homem lança mão da concepção do
absoluto, seja pela idéia da verdade do pensamento ou da revelação divina. A
versão moderna da história que se sustenta na concepção da infinitude do
processo, constitui, segundo a interpretação arendtiana, menos uma retomada dos
assuntos humanos e mais uma nova roupagem do absoluto. A suposição de que a
História mesma é autônoma e dotada de sentido já indica que o relevante não são
as ações humanas, mas o sentido que se revela na sua totalidade. A autora faz
questão de enfatizar como a história antiga volta-se para ‘salvar do esquecimento’
grandes feitos humano e, nesse sentido, lida com o particular, ao contrário da
historiografia moderna que, acreditando ser a história um processo autônomo
dotado de sentido, privilegia o geral. “O que o conceito de processo implica é que 124 Nesse sentido, Arendt lembra que “Kant compreendeu que não pode haver nenhuma
verdade absoluta para o homem, pelo menos no sentido teórico. Certamente estaria preparado para sacrificar a verdade à possibilidade da liberdade humana, pois se possuíssemos a verdade, não poderíamos ser livres.” ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 32-3 Embora a autora entenda que em Kant ainda há a remissão ao absoluto do imperativo categórico, que “se situa acima dos homens”.
213
se dissociaram o concreto e o geral, a coisa ou evento singulares e o significado
universal. O processo, que torna por si só significativo o que quer que porventura
carregue consigo, adquiriu assim um monopólio de universalidade e
significação.”125
A caracterização do conceito moderno é feita justamente pela ênfase na
auto-referencialidade do processo. Note-se que, se a grandeza dos feitos na
Antigüidade aparece como um acontecimento que pode ser facilmente detectado
por todos, e, por isso mesmo se refere ao testemunho e à convivência dos homens,
na modernidade a dificuldade volta-se justamente para a distinção da grandeza.126
Certo é também que a grandeza dos eventos perdem sentido por si mesmas e
passam a estar relacionada ao processo geral da história. Se não é possível
enxergar ou testemunhar a grandeza, isso não faz tanta diferença porque a
particularidade dos eventos perde ‘autoridade’ para a sucessão temporal. A
história deixa de ser uma história especifica para se tornar a História única, dotada
de sentido próprio e autônomo. O problema quanto à determinação da grandeza só
reaparece quando cai por terra a noção de História como processo e torna-se
necessário distinguir o que será tema da historiografia. Tal incapacidade de
solucionar o impasse leva a historiografia a considerar que tudo possivelmente
pode ser tema de uma narrativa histórica. Mas esse já é um problema
contemporâneo, que indica a superação das filosofias da história.
Quanto à versão moderna da história descrita por Arendt, é necessário
considerar ainda que sua argumentação sugere que a tentativa de ‘extinção do eu’
– a qual a autora descreve com Droysen como “objetividade eunuca” -está ligada
à desconfiança moderna sobre a apreensão sensível. 127 “o nascimento da moderna
125 Id., Entre o passado e o futuro, p. 96. 126 Arendt entende que é ao considerar a dificuldade de conhecer a verdade da natureza,
que Vico imagina a possibilidade do contentamento com o conhecimento da história, pois nesse caso os próprios homens a fazem e podem, conseqüentemente, explicá-la. Nesse inicial redirecionamento para a história, a autora observa o equívoco no qual se fundamenta. A idéia de que o homem faz história assim como fabrica um produto. Marx levaria essa concepção ao extremo, imaginando que por fazer história, o homem pode movimentá-la ao seu gosto e predizer o futuro.
127 Para Arendt, a ciência moderna desloca a pergunta do que é para como se deu para o processo. Analogamente, a história deixou de contar a história dos feitos e tornou-se um processo feito pelo homem. ARENDT, H., op. cit., p. 89 Arendt defende que a ciência histórica moderna, em seu anseio de ser considerada uma ciência, acaba buscando referências científicas medievais e aristotélicas, onde vigorava a noção da ‘extinção do eu’. A autora acredita que tal busca pela neutralidade do sujeito foi descartada pelas próprias ciências naturais, que reconhecem o caráter subjetivo das perguntas científicas através das quais o pesquisador se envolve com seu objeto. “O problema da objetividade científica tal como foi colocado no século XIX, devia-se à auto-
214
idéia de História não apenas coincidiu como foi poderosamente estimulado pela
dúvida da época moderna acerca da realidade de um mundo exterior dado
‘objetivamente’ à percepção humana como um objeto imutado e imutável.”128A
corrida para munir-se de artefatos ou métodos para alcançar a realidade que está
escondida dos olhos humanos caracteriza a moderna perda de mundo entrevista
por Arendt.
Daí vemos a correlação entre a história do esquecimento do político,
profundamente marcada pela concepção da moderna perda de mundo, que é a
própria perda da realidade sensível, e o desenvolvimento do sentido do histórico
no exame da distinção entre os conceitos de história propostos pela autora. Se
prosseguirmos na analogia com a narrativa arendtiana da história do ocidente,
podemos inferir que essa valorização do processo em sua autonomia indica a
mesma suposição do declínio do político para a decadência do histórico. A
sugestão de considerar a história a partir da imparcialidade em vez de tentar a
imposição de uma neutralidade absoluta, senão impossível de ser alcançada,
também suplantada pela idéia segundo a qual o homem está sempre envolvido
com uma pré-compreensão do mundo, endossa ainda mais a possibilidade de
tratar-se de uma narrativa da decadência do histórico, pois a imparcialidade
concebida por Arendt ainda é para ela uma solução grega. Devemos notar que a
alternativa arendtiana para o impasse da objetividade não é apontar a existência de
uma subjetividade ou de um aparato cultural irrevogável. Se, por um lado, há a
idéia moderna de que o homem precisa abster-se de si mesmo, alcançar uma
objetividade para conhecer o que “de fato aconteceu”, como se fosse possível
encontrar um lugar fora da história para dizer a verdade sobre ela, por outro lado,
a versão historiográfica contemporânea se encaminha para estabelecer a
contraposição dessa possibilidade, sustentando que, ao contrário da objetividade,
o sujeito que pretende avaliar a história está irremediavelmente arraigado nela, de
modo que sua narrativa é sempre uma interpretação. É contra essas duas
possibilidades que a autora supõe a retomada da perspectiva antiga da
imparcialidade, que teria sido desenvolvida por Heródoto quando conseguiu
incompreensão histórica e à confusão filosófica em tão larga medida que se tornou difícil reconhecer o verdadeiro problema em jogo, o problema da imparcialidade, de fato decisivo não somente para a ‘Ciência’ da História como para toda Historiografia oriunda da poesia e do contar histórias.” Ibid., p. 81.
128 Ibid., p. 83.
215
contemplar na sua narrativa diferentes pontos de vista – como o de gregos e
troianos.
Para concluir acerca do significado do declínio moderno diante da versão
antiga da história, precisamos compreender a passagem do moderno ao
contemporâneo. Só podemos fazê-lo remarcando que, se a ênfase no processo
acena para a possibilidade de retomar os assuntos humanos, a leitura arendtiana é
pessimista quanto à tentativa moderna de conciliar política e história. Segundo
ela, esse anseio, que encontra sua versão mais bem acabada na obra de Hegel, se
constitui ainda como uma valorização da teoria em detrimento da ação porque os
negócios humanos não são considerados em sua particularidade. A grandeza do
evento e seu caráter de novidade subsumem ao sentido que subjaz ao processo e
que pode ser entrevisto quando se avalia a totalidade da história. “Durante longo
tempo, pareceu que essas inadequações e perplexidades no seio da vita activa
poderiam ser resolvidas ignorando as peculiaridades da ação e insistindo na
‘significatividade’ do processo da história em sua totalidade, que parecia dar à
esfera política aquela dignidade e redenção final da ‘melancólica casualidade’ tão
obviamente exigidas.”129 A preponderância do geral sobre o particular que marca
o conceito moderno de história revela que a ação continua a não ter sentido em si
mesma. Desse modo, notamos que a passagem para a moderna versão da história
e a conseqüente arregimentação das filosofias da história que, supostamente,
apontam a proeminência da história em detrimento da política, não caracterizam,
para Arendt, apenas o decaimento do político, mas também o próprio declínio do
histórico. Não podemos imaginar que o erigimento do histórico como processo
único indique a rejeição de Arendt à história, ao contrário, trata-se do surgimento
de novo sentido de história que se interpõe para o declínio do sentido antigo da
história.
Avancemos para o encontro do quadro contemporâneo da história. Ao
concebê-lo, devemos ter em vista que a referência ao “contemporâneo” se faz a
partir distinção arendtiana entre a “época moderna” e o “mundo moderno”. Tal
diferenciação já está delimitada n’A condição humana, como assinalamos ao
examinar sua narrativa sobre a história do ocidente, e indica o contexto que se
delineia a partir das fissões atômicas, tomando forma no pós-guerra. Usamos a
129 Ibid., p. 120-1.
216
expressão contemporâneo com o intuito de melhor situar essa noção de mundo
moderno. Nesse sentido, consideramos que a contemporaneidade de Arendt ainda
é, de certo modo, a nossa. No texto sobre “O Conceito de História” essa
contemporaneidade é caracterizada pela indiferença quanto à questão da
imortalidade. “Hoje, é difícil entendermos que essa situação de mortalidade absoluta pudesse ser insuportável aos homens. Contudo, voltando o olhar para o desenvolvimento da época moderna até o início de nossa própria era, o mundo moderno, vemos que se passaram séculos, antes que nos acostumássemos à noção de mortalidade absoluta, a ponto de não mais nos incomodar a sua idéia e de não mais ser significativo o antigo dilema entre uma vida imortal individual em um mundo mortal e uma vida mortal em um mundo imortal.”130
Na situação contemporânea, a interposição que fundamentava a relação
entre história e natureza se transforma radicalmente. O que constituía a tarefa da
história na antigüidade e na modernidade, qual seja, garantir a durabilidade do
mundo, perdeu a própria razão de ser. Se, na Antigüidade, a história sustenta-se
pela conexão entre o homem mortal e o mundo imortal, e na modernidade, surge
como um processo que garante a infinitude do homem; no contexto atual, em que
tanto o homem quanto o mundo tornaram-se mortais, seu lugar encontra-se
esvaziado. Se a chave para a concepção da história foi a concepção de natureza, o
que a perda de sentido da imortalidade pode significar? O fim da história menos
no sentido hegeliano e mais no sentido de uma falta de necessidade da história?
Precisamos destacar que, no contemporâneo, natureza e história ainda
estão intimamente ligadas. O conceito que perpassa ambas as esferas é o de ação.
Arendt indica a passagem para o “mundo moderno” destacando a produção das
fissões atômicas. Sua sugestão é de que, quando começa a iniciar processos
‘naturais’ que não existem na natureza, de certo modo recriando a natureza, o
homem levou a capacidade de iniciar, a princípio uma competência política, para
a esfera da natureza. Assim, ao desencadear processos que ele mesmo não
controla, iluminou a possibilidade de ‘agir natureza’. No âmbito do histórico, a
autora também encontra o desígnio contemporâneo de ‘agir’ com a referência à
130 Ibid., p.109. No mesmo sentido, lemos ainda que “A antiga confiança na maior
permanência do mundo que na de indivíduos humanos, e nas estruturas políticas como uma garantia de sobrevivência terrena depois da morte, não retornou, desvanecendo-se dessa forma antiga oposição de uma vida mortal a um mundo imortal. Agora tanto a vida quanto o mundo tornaram-se perecíveis, mortais, fúteis.” Idem.
217
criação da realidade fictícia do totalitarismo. Desde que deixou de ser uma história
sobre a ação, para se transformar num processo, já estava em curso a
transformação do sentido da história, mas apenas com a ruptura totalitária, se
afigurou a capacidade de ‘agir’ história, ou seja, de pôr em curso uma realidade
que originalmente não existia, a história se separou completamente do mundo
dado para ‘criar’ um outro mundo – uma realidade inventada.
Esses processos, após como que devorarem a sólida objetividade do dado, terminaram por destituir de significado o único processo geral que originalmente lhes fora concebido com o fito de lhes dar significado, e para agir, por assim dizer, como o espaço-tempo terreno no qual todos eles poderiam fluir, libertando-se, assim, de seus conflitos e exclusividades mútuos. Foi o que aconteceu ao nosso conceito de história, como foi o que sucedeu ao nosso conceito de natureza. Na situação de radical alienação do mundo, nem a história nem a natureza são em absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e da obra humana no senso mais lato, que incluiria toda a história – deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem mundo comum que a um só tempo os relacione e separe ou vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa.131
Mediante sua argumentação baseada na relação entre natureza e história,
pode-se entrever que o destino comum da perda de sentido evidencia os dois lados
de uma mesma moeda. De qualquer modo, nos importa que o fim da história
assim descrito como perda de sentido da história não se compara ao fim da
história hegeliano entrevisto como fim de um processo. Desponta, sim, como a
perda da conexão com a realidade.
Claro que a divisão entre o moderno e o contemporâneo, como
observamos na análise d’ A condição humana, pode parecer tênue quando se nota
que o contemporâneo irrompe como uma espécie de prolongamento do moderno –
como aquele que leva o moderno às últimas conseqüências. Essa leitura fica
evidenciada se entendermos que o totalitarismo fabrica a história mais ou menos
nos moldes teóricos supostos pelas filosofias da história. No entanto, Arendt
insiste em registrar a novidade do movimento totalitário. Seu aparecimento
interrompe a “continuidade da história ocidental”. Desde então podemos falar em
outra época, onde se vê o ultrapassamento da temática de Kant e Hegel. “Hoje em
dia, a maneira hegeliana e kantiana de reconciliamento com a realidade através da
compreensão do significado mais profundo de todo o processo histórico parece
131 Ibid; p. 126.
218
tão completamente refutada como a tentativa simultânea do pragmatismo e do
utilitarismo de ‘fazer história’ e impor à realidade o significado e a lei
preconcebidos pelo homem.” 132
Arendt conta, portanto, com a especificidade e singularidade da situação
contemporânea e nota que seu despontamento revela um novo sentido de história,
o qual se sustenta na idéia de que a história real e a história escrita constituem um
só evento. Reencontramos o contexto da valorização da historicidade na indicação
sobre a superação da problemática das filosofias da história.133 Se a concepção
moderna da história ainda guardava algum vestígio da separação entre a ação e a
escrita da história, como poderíamos supor pela necessidade de vislumbrar um fim
da história e a possibilidade de reconciliação, depois da completa ‘criação’ da
história erigida pelo totalitarismo, qualquer versão da história torna-se de
realidade. O problema daí decorrente é a confusão entre mundo e interpretação do
mundo.
A transformação do conceito de história moderno na versão
contemporânea está indicada pela autora desde o seu exame do totalitarismo.
Concebendo o movimento como uma radical perda de realidade e imposição de
uma realidade fictícia, Arendt defende que a novidade do totalitarismo é a própria
possibilidade de destituir de sentido a história. Sua novidade constitui-se mesmo
como uma nova concepção da história, a qual se sustenta na justaposição entre a
história real proveniente da ação e a escrita da história.
Em meus estudos do totalitarismo, tentei mostrar que o fenômeno totalitário, com seus berrantes traços anti-utilitários e seu estranho menosprezo pela fatualidade, se baseia, em última análise, na convicção de que tudo é possível, e não apenas permitido, moralmente ou de outra forma, como com o niilismo primitivo. Os sistemas totalitários tendem a demonstrar que a ação pode ser baseada sobre
132 Ibid; p.122. Sobre a perda de sentido da história na contemporaneidade, Arendt indica
também a importância do desenvolvimento da tecnologia. Se a guinada moderna para a valorização da história estava relacionada à inabilidade para perceber a realidade através dos sentidos, que leva à separação entre o domínio da natureza e a esfera dos assuntos humanos pela linha da suposta possibilidade de fazer história, a situação pós-guerra desvela um novo contexto. O homem torna-se apto a “fazer” natureza tanto quanto poderia imaginar que “fazia” história. O homem não precisa mais, como pensava Vico, dotar de importância a história porque não ‘faz’ natureza. Ibid; p.123.
133 E a própria noção de historicidade vem tentar reabrir ou redescobrir os assuntos humanos que permaneceram subjugados ao processo histórico. Assim podemos entender melhor a referência de Arendt acerca da libertação da história promovida ainda por Husserl.
219
qualquer hipótese e que, no curso da ação coerentemente guiada, a hipótese particular se tornará verdadeira, se tornará realidade fatual e concreta.134
A perda de sentido no caso da história e da historiografia que parece
indicar seu fim refere-se à possibilidade de a história ser mera interpretação. O
sentido, o qual a história revelaria, não está mais na ação particular, como na
Antigüidade, nem no processo como um todo, como na versão moderna, mas na
‘criação’ da história, que se interpõe, ao mesmo tempo, como história e
historiografia. O que a historiografia teria admitido com a aceitação de que o
homem não pode conhecer o passado porque está irremediavelmente lançado
numa abertura histórica, seria a possibilidade de tomar a história pela
historiografia. Nos termos de Arendt, o dado pela interpretação, isto é, a ação pelo
pensamento.
Se o seu percurso sobre o desenvolvimento do conceito de história
encontra um fim tão desanimador que nos pusemos a caracterizá-lo como a
narrativa de um declínio, isso não significa que a autora tome a história por
encerrada. Não há alternativa para a história nesse texto sobre “O Conceito de
história. No entanto, se considerarmos suas indicações sobre a amplitude da
ruptura da tradição, veremos que a perda da orientação do futuro pelo passado,
abre também novas possibilidades para a concepção da história.
No caso da historiografia, parece que o otimismo que ronda sua obra pode
ser entrevisto pela suposição de que com a ruptura da tradição seria possível
redescobrir o passado. Tal abertura é a própria perda da autoridade do fio
condutor que ligava passado e futuro, diante da qual a contemporaneidade insurge
como perda do mundo, mas também manifesta nova potencialidade. A quebra do
absoluto que fechava a História num processo autônomo deixa a ligação entre
passado e futuro sob responsabilidade dos homens. A indicação da relação entre a
ruptura da tradição e as possibilidades por ela abertas encontra-se, sobretudo, em
passagens sobre Benjamin e Heidegger. Em Heidegger, a autora destaca que
“exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado.”
134 ARENDT, H., op cit., p.123. Explicando seu argumento, a autora conclui :“Em outras
palavras, o axioma do qual partiu a dedução não precisa ser, como supunham a lógica e a metafísica tradicionais, uma verdade auto-evidente; ele não necessita sequer se harmonizar com os fatos dados no mundo objetivo no momento em que a ação começa; o processo da ação, se for coerente, passará a criar um mundo no qual as hipóteses se tornam axiomáticas e auto-evidentes.” Ibid; p.124.
220
Em Benjamin, analisa a tentativa de “descobrir novas formas de tratar o passado”
diante da perda da autoridade.
A íntima afinidade entre a ruptura da tradição e a figura aparentemente extravagante do colecionador que reúne seus fragmentos e restos dos destroços do passado talvez seja melhor ilustrada pelo fato, espantoso apenas à primeira vista, de que provavelmente não houve nenhum período antes do nosso em que as coisas velhas e antigas, há muito tempo esquecidas pela tradição, tornaram-se material didático geral, distribuído a escolares de todos os lugares em centenas de milhares de exemplares. (...) Sem percebê-lo, Benjamin realmente tinha mais em comum com o notável senso de Heidegger para os olhos e ossos vivos que marinhamente se transformaram em coral e pérolas, e como tal só podiam ser recolhidos a alçados ao presente com uma violência ao seu contexto...135
A aguda consciência arendtiana acerca da especificidade da situação
contemporânea é o que nos impulsiona a conceber, menos uma tensão que uma
complementaridade entre sua abordagem da história, que ora aparece como a um
apanhado de histórias fragmentadas, ora como uma grande narrativa da história
ocidental. A autora observa como na ruptura da tradição, a história parece surgir
novamente como uma série descontínua de histórias. Nesse sentido, apontávamos
a semelhança entre o que denominamos suas “considerações teóricas” e sua
delimitação do conceito antigo de história. Em ambos os casos, os homens estão
livres de um processo geral que determine o sentido da ação. Nos termos de
Arendt, podemos entender também que os seres humanos se tornam novamente
mortais, pois lhes é devolvida a capacidade de agir e iniciar a novidade no mundo
e a potencialidade da escrita da história. A tendência dos intérpretes arendtianos
para explicar o aparecimento de uma história descontínua é evocar o aspecto
hermenêutico de sua leitura e sustentar que se trata da possibilidade do diálogo
entre passado e futuro. Embora existam também aqueles que permanecem
acreditando numa re-leitura da concepção antiga. Vimos na secção anterior porque
rejeitamos a idéia de que a concepção de história de Arendt seja meramente uma
perspectiva hermenêutica. Precisamos ainda de mais algumas palavras sobre a
questão da similitude com o conceito antigo de história.
Reencontramos aqui a temática lançada no início desse trabalho sobre a
existência de uma estrutura da condição humana que nos parecia corresponder à
condição do homem grego configurado por Arendt. A questão para nosso contexto
da história é entender o que sustenta o otimismo da autora no que se refere às 135 Id., Homens em tempos sombrios, p. 223, 166 e 172.
221
possibilidades trazidas pelo contemporâneo. Responder a esse ponto significa
esclarecer em que consiste a semelhança entre o conceito antigo de história
traçado por Arendt e sua própria concepção da história, considerando a
possibilidade de haver uma conceituação teórica do histórico que não corresponda
exatamente a um sentido histórico de uma determinada época. A questão é como
elucidar a impressão do resíduo ‘estrutural’ que permeia a obra arendtiana. Não é
ainda a potencialidade da condição humana, sua capacidade de agir e constituir
durabilidade do mundo pela escrita da história que sustentam a contraposição ao
diagnóstico do fim da história? Em outros termos, não é o elemento trans-
histórico, fundado na correspondência com a situação grega, que vem nesse fim
da história acenar a salvação?
Parece que agora podemos retomar a questão em melhores termos. Se
entendermos que a concepção de ação, como capacidade humana de iniciar a
novidade no mundo, e a conceituação da história, como a história de muitos
inícios e nenhum final, correspondem ao contexto grego vislumbrado por Arendt,
e acabam por constituir a própria estrutura da existência do homem no mundo,
podemos supor que a autora, apesar de conceber a variação histórica da ação e do
sentido da história, não admite a completa deturpação dessa estrutura. Em outras
palavras, continuaria apostando na “saída” do declínio porque contaria com a
potencialidade invariável da ação e da história. Nesse sentido, poderíamos
entender que a autora mantém seu otimismo porque considera a potencialidade
humana, em última instância, incorruptível. O problema dessa suposição, que
parece ser a base do argumento de Derrida, é encontrar na obra arendtiana
qualquer garantia para a permanência do humano.136 Toda a consideração teórica
de Arendt está sujeita à história. Se não fecha a história no diagnóstico do declínio
e insiste sobre a capacidade de agir isso não significa que o esquecimento seja
parte constituinte do ser, como se o decaimento fosse uma espécie de destino
histórico, nem que haja qualquer certeza sobre a permanência da ação e da
história.
Ao demarcar a diferença entre a condição humana e a natureza humana,
sustentando que o homem pode transformar sua própria condição, a autora revela
que a grande validade desse conceito é justamente comportar a possibilidade da
136 Sobre a crítica de Derrida a Arendt, veja capítulo 3.
222
mudança histórica, de abranger a potencialidade do homem para a novidade. Não
se trata de acreditar que os homens mantêm uma secreta capacidade de
regeneração mesmo nos tempos mais sombrios e que no fim das contas tudo acaba
bem. Se Arendt pode contar com a capacidade da ação e da história é mais porque
elas sobreviveram às tentativas de transformá-las completamente e menos por
serem a-históricas.
O diagnóstico sobre a perda de sentido da história não se caracteriza como
um fim da história, não porque a autora esteja esperando o “fim” do progresso, ou
ainda esteja contando com a revelação da verdade, como pôde supor Derrida.
Notamos anteriormente que, apesar de definir o totalitarismo como realidade
fictícia e mentira absoluta, Arendt não entende que o totalitarismo tenha sido
realmente total, pois para isso teria que abarcar todo o globo e de fato extinguir a
capacidade humana de ação, e alterar completamente toda a história humana. Ao
vislumbrar que a condição humana não foi inteiramente transformada, a autora
não quer dizer que isso seja impossível, mas que isso não aconteceu, apesar da
intenção total dos totalitarismos. Assim, acreditamos que suas considerações
teóricas não devem ser tomadas como idéias a-históricas, como se pairassem
acima dos acontecimentos. Ao contrário, suas indicações encontram ecos na
realidade dos contextos históricos. Suas proposições não são feitas de fora da
história. Aliás, essa é justamente a posição que a autora abomina. Parece que, se
concluíssemos que a estrutura da condição humana ou uma teoria geral da história
salva a história de ser pura decadência, estaríamos radicalmente contra as
suposições da própria autora. Se não há uma teoria isolada do mundo, através da
qual o histórico pode ser definido, isso também não significa que o histórico seja a
equivalência ao sentido da história definido por cada época.
Ao entrever que uma história só pode ser narrada quando chegou ao fim,
Arendt vislumbra a alocação de um “fora” da história que não é um fim da
história. Ou seja, imaginando que só se pode compreender o que já alcançou seu
termo, ela acredita poder separar pensamento e ação, indicando um “lugar” para o
surgimento da teoria, e, conseqüentemente, de sua própria teoria da história.
Assim, a história do totalitarismo só pode se contada porque chegou ao fim. A
ruptura da continuidade só significa o fim de uma história específica e não um fim
definitivo, isto é, a ruptura revela a abertura do “entre” uma história e outra, que
configura o “livro de histórias da humanidade”.
223
Desse modo, a nossa argumentação acerca da existência de uma
complementaridade entre o que denominamos “considerações teóricas” sobre a
história e a própria narrativa arendtiana da história, só é válida quando se explica
que, nesse caso, a noção teórica não é uma formulação que paira acima da
realidade histórica, ao contrário, só podem ser compreendidas à luz das alterações
do sentido da história ao longo do tempo. Reconhecer o aspecto histórico de sua
conceituação da história significa também observar que a sua perspectiva só pode
advir no fim da história narrada. Ocorre que a complementaridade entre a
perspectiva da descontinuidade da história, que parece sustentar a idéia de que “a
história é a história de muitos inícios e nenhum final”; e a abordagem da história
do declínio do político e do histórico, que se ampara na continuidade da grande
história ocidental, insurge justamente no fim da história ou no fim da sua narrativa
da grande história ocidental.
Ao comentar a referência de Arendt à cena de Ulisses como episódio
paradigmático para a história, Hartog se pergunta não pela validade da afirmação,
mas pela sua jurisdição. Para quem ela vale? O autor acredita que ela vale
certamente para nós – pós-hegelianos -, e para nossa concepção de história.137
Nesse mesmo sentido, acreditamos que a concepção de história arendtiana não
encontra equivalência no conceito antigo, nem tampouco no sentido moderno, tal
como também não corrobora com as tendências contemporâneas ou figura como
uma proposta teórica a-histórica.
A perspectiva arendtiana da história não é meramente uma reabilitação da
versão antiga da história ou uma adaptação da concepção moderna, nem
simplesmente uma confirmação das tendências contemporâneas da hermenêutica e
historicidade. Se ela concebe com louvor o mundo antigo, a ponto de traçar uma
narrativa do declínio do sentido da história desde a antigüidade tardia até a
completa corrupção pelo totalitarismo, isso não significa que esteja imaginando
qualquer possibilidade de retornar ao mundo antigo. Arendt tem plena consciência
da especificidade de nossa época. Em suma, para evocar a perspicaz análise de
Hartog, seu conceito de história se constitui originalmente como uma perspectiva
pós-hegeliana. Responde diretamente à derrocada das filosofias da história. A
questão é que a própria ruptura da tradição e da continuidade da história é que
137 HARTOG, F., Os Antigos, o passado e o presente, p. 21-22.
224
dota de sentido a possibilidade de uma história fragmentada. Apenas após a
‘coruja de minerva’ hegeliana alçar vôo, o sentido de fim da história pode vir à
tona e aparecer como o próprio caráter retrospectivo da história, o qual toma
forma de ‘fins’ da história na versão arendtiana.
Por mais que conceba a tradição com suas múltiplas tendências, a autora
apresenta uma grande narrativa sobre a história ocidental, que se inicia na Grécia
e termina com os totalitarismos no século XX, abarcando praticamente a
totalidade do que se entende como história ocidental. A noção de que a história é
constituída por uma diversidade de histórias, a qual se caracteriza como uma
história de muitos inícios e nenhum final, portanto, só adquire sentido fora daquilo
que se convencionou chamar de tradição que, em si mesma, interpõe a
continuidade autoritária entre o passado e o futuro. Na narrativa de Arendt sobre a
história ocidental, encontramos esse ‘fora’ da tradição em seu ‘antes’ e seu
‘depois’. Não sem razão há a impressão de existir uma semelhança entre o grego e
o contemporâneo. Na verdade, é nesses períodos que a autora encontra a
potencialidade da ação e da história livre da orientação de qualquer instância
absoluta. Além desses momentos, a autora também analisa, ao longo de sua obra,
outras circunstâncias em que os homens tiveram que lidar com a novidade dos
acontecimentos sem serem prescritos pelo fio da tradição. Menciona as
possibilidades abertas no curto período de transição entre a idade média e o
renascimento, quando pareciam florescer novas filosofias políticas. Ocasião em
que, como notamos, irrompe novamente o interesse pela história. Sem falar das
revoluções, que aparecem como situações excepcionais em que a tradição perde a
validade.
Apesar da semelhança entre as irrupções da liberdade, defendemos que em
Arendt não há equivalência entre os períodos.138 No caso da historiografia, mesmo
que possamos visualizar afinidades entre a fragmentação antiga e contemporânea
da história, não temos como negar que se referem a circunstâncias distintas.
Ocorre que apenas quando vislumbramos a grande narrativa que se interpõe à
perspectiva descontínua da história, é que temos a oportunidade de encontrar o
ângulo através do qual a concepção histórica de Arendt parece adquirir seu devido
vigor. Uma concepção da história que não pode estar fora da história, mas que
138 Desenvolvemos essa questão no capítulo 4, ao analisar o caráter da novidade em sua
obra.
225
mantém a consciência de sua própria época. Apenas do descrédito do fim da
história pode surgir a noção de ‘fins’ desenvolvida pela autora.
A distinção da conceituação arendtiana da história é justamente notar que
o fim do fim da história não deve levar embora consigo a noção de fim que indica
a brecha temporal através da qual se pode compreender a história, mas antes,
deixar ver que a sensação epigonal de nossa época está relacionada à própria
perspectiva do historiador, que por ser retrospectiva, sempre vê as coisas a partir
do ‘hiato” que se abre entre o passado e o futuro.
A vantagem de tal concepção é entrever que essa posição do fim da
história é apenas o lugar “entre” as histórias que compõem a realidade do mundo e
que sua “história” real não pode ser um processo autônomo dotado de sentido com
início e fim. O grande legado aos historiadores é a possibilidade de novamente
falar do passado, dos fatos e eventos sem a carga metafísica da verdade absoluta
que esses conceitos carregavam. A grande novidade é que mais uma vez e, agora,
de modo totalmente diverso, pode-se falar de uma história de atores e
espectadores. Em suma, da capacidade da história assumir-se como espetáculo.
6 Conclusão
Com o intuito de compreender o conceito de história na obra arendtiana,
procuramos analisar a grande narrativa do declínio do ocidente traçada pela autora
e, em especial, aquela que se refere à decadência do histórico, buscando explicar
em que medida essa história contínua poderia se conciliar com suas indicações
sobre a fragmentação da história na contemporaneidade, que vigora desde a
ruptura da tradição. A preocupação inicial era examinar se a concepção de Arendt
poder-se-ia constituir como mais um caso de filosofia da história. Por isso as
questões principais giravam em torno da sua concepção do quadro grego, donde
vislumbra o surgimento do político e do histórico, e seu decorrente definhamento.
Na correspondência entre a arquitetura da condição humana e a condição do
homem grego, que leva à inevitável ligação com o contexto histórico ateniense,
encontramos a base da noção de história arendtiana. Ao mesmo tempo em que
exercitava sua consciência histórica, relacionando o surgimento do político e do
histórico à situação em que apareceram, Arendt parecia contar com categorias a-
históricas ao interpretar a história do ocidente como um definhamento desse
florescimento grego. Por que não considerar que cada época tem uma
compreensão distinta do político e do histórico, admitindo que não é possível
apontar de modo definitivo qual seria a noção mais verdadeira ou mais adequada?
Nos termos de Derrida, essa indagação é equivalente ao questionamento sobre a
possibilidade da corrupção irreversível ou sobre a impossibilidade de distinguir
entre o verdadeiro e o falso.
Analisando a ênfase que a autora concede à noção de novidade, pudemos
notar que sua concepção do histórico não condiz com nenhuma definição de
filosofia da história. O sentido da história que ainda persiste em sua abordagem
não aparece como um sentido pré-determinado da história, nem como um sentido
que pode ser atribuído metodologicamente pelo estudioso. Seu encaminhamento
se delineia justamente para negar tanto as filosofias da história no sentido
clássico, como aquelas desenvolvidas por Kant e Hegel, quanto à possibilidade do
sentido constituir-se como um puro investimento do historiador. Arendt também
227
não concorda com a idéia de que não é possível compreender a história como se
não houvesse nenhum sentido nos acontecimentos realizados pelos homens. Nem
comunga da opinião segundo a qual a historicidade suplanta a história.
Para a autora, a história não está dada de antemão. Os homens não são
marionetes do destino. Não há nenhuma estrutura invisível por trás dos eventos
casuais que lhes garanta um sentido determinado. Ao agir o homem é livre. No
discurso arendtiano, isso significa que é a contingência que assegura a liberdade.
O futuro precisa ser indeterminado. Mas como conciliar a possibilidade de sentido
e a indeterminação da história senão por intermédio do sujeito que aponta o
sentido. O que detectamos como ponto crucial para a definição da história em
Arendt é que em vez de levar adiante a oposição entre necessidade e acaso, a
autora reinterpreta o dilema. É na sua argumentação sobre a redefinição da relação
entre ação e pensamento que encontramos o desenvolvimento de sua conceituação
da história. Ela mostra como, pelo menos, desde Platão, os negócios humanos
foram rejeitados por não conterem estabilidade suficiente para configurarem uma
verdade, que era concebida como aquilo que não varia no tempo. A forma da
verdade era essencialmente uma forma atemporal baseada na idéia de eternidade.
Assim, a autora observa que a tradição ocidental se funda na negação do que é
fugaz e passageiro, mais especificamente, na submissão do político ao teórico.
Supondo conhecer a verdade, a teoria imaginou que poderia orientar a ação dos
homens, indicando-lhes o que fazer. Para Arendt, esse enlace da ação humana
enunciado pela versão platônica da alegoria da caverna, revela o momento inicial
do aprisionamento da ação e, portanto, da liberdade humana de agir, pelo
pensamento teórico. A proposição arendtiana acerca da autonomia da ação e do
pensamento requer uma revisão dessa relação entre ação e pensamento.
A concepção de história em Arendt só pode ser entendida mediante a
pretensão de considerar os assuntos humanos em sua dignidade própria. Nesse
sentido, a história é compreendida a partir de sua afinidade com a ação. Os
homens deixam atrás de si a história de feitos e eventos que desencadearam com
sua capacidade de agir e iniciar a novidade no mundo. O surgimento do evento
como o início de alguma coisa nova no mundo estabelece uma história que pode
ser contada, pois ilumina o início e o fim de um processo subseqüente ao começar
uma nova série. O evento é o limite da história. Com seu aparecimento a história
se torna visível. Isso não significa que a história seja qualquer estrutura invisível
228
pré-determinada, mas sim que os atores não tem consciência do sentido da história
que desencadeiam com suas ações. O que é uma outra forma de dizer que os
atores são livres e a história não está pronta de antemão como se fosse um destino
ou um desígnio. Considerando que apenas os espectadores podem visualizar a
história com início e fim, a autora indica que os atores realmente “nunca sabem
exatamente o que estão fazendo”, pois uma história só pode ser compreendida
quando chega ao fim. A possibilidade de visualizar e interpretar uma história não
é simplesmente uma competência teórica à qual o estudioso poderia recorrer. O
espectador está de fato “fora da história”, não porque consiga alcançar uma
postura neutra, mas porque a história que entrevê já acabou. Se fosse ele mesmo
um ator nessa história não teria a mesma capacidade para compreender os eventos.
A separação entre a história real, proveniente da ação, e a história narrada,
se funda nessa distinção entre atores e espectadores, que, em última instância,
remete ao afastamento entre ação e pensamento. Sendo derivada da ação, a
história real se origina na esfera da pluralidade. Ao agir, os homens “fazem
história”, mas não no sentido imaginado por Marx. Arendt nega a noção segundo
a qual a história é realmente feita pelo homem como se fosse um produto. Para
ela, o que os homens fazem é concretizar sua capacidade de agir, ou seja, eles
agem e com isso acabam “fazendo” história. Não como se a controlassem
absolutamente, e, sim, como atores que não conhecem o completo significado de
suas ações. Devemos observar que, nessa concepção, a autora resguarda a noção
da casualidade, preservando a contingência e a liberdade dos homens, sem
descartar a possibilidade de sentido inscrita na história.
Ao poupar o caráter contingencial da ação, estabelecendo a equivalência
entre ação e liberdade, Arendt não sugere que o homem possa fazer qualquer coisa
e que se trate de uma contingência radical. Sua proposição é rejeitar a existência
de uma instância superior à ação, que lhe garanta sentido de fora, conservando a
possibilidade dos homens serem livres para traçar sua história e seu destino. Se os
atores não têm controle sobre suas ações não significa que não sejam responsáveis
por suas escolhas. A autora é veemente: os homens são livres e têm a capacidade
de agir sem que haja qualquer divindade ou desígnio secreto orientando suas
ações ou o rumo que elas devem tomar. Os homens escolhem agir e respondem
pelos eventos que desencadeiam e pela história que traçam, mesmo quando não
sabem ao certo seu significado.
229
Nossa defesa é a de que a autora é bastante consciente do fato de que o
descrédito das filosofias da história leva consigo qualquer noção de racionalidade
absoluta da história. Sua obra nos deixa perceber como a noção da historicidade
não resolve completamente a questão do vazio de sentido que resta aos
acontecimentos destituídos de um telos específico ou de um processo geral de
desenvolvimento. Assim, apesar das diferenças fundamentais entre a subordinação
dos assuntos humanos pela teoria platônica, o enlace moderno dos fatos num
processo autônomo dotado de sentido, e a tentativa hermenêutica de considerar a
equivalência entre homem e temporalidade, todas essas concepções acabam
promovendo de uma forma ou de outra um tolhimento dos assuntos humanos e
daquilo que lhe é essencial – a liberdade do homem e a particularidade do
acontecimento. Nesse sentido, a retomada arendtiana dos negócios humanos – da
especificidade da esfera da ação – e da história estão intimamente relacionadas.
Sua resposta acerca da perplexidade da contingência não visa sucumbi-la numa
filosofia da história ou negá-la como a concepção platônica pode sugerir; nem
mesmo pretende considerá-la como uma manifestação do pensamento para, de
certo modo, amarrar sua imprevisibilidade. Arendt não concebe a história como
uma coibição da ação. Como uma instância que determine seu sentido e a faça
parecer menos casual. Talvez possamos dizer que ela ainda vem aparar as arestas
da contingência e nos salvar da radical perda de sentido do mundo, aliás, é nesse
sentido que Benhabib menciona o poder de redenção da narrativa.1
A ênfase arendtiana na ação, ao contrário de negar a história, alavanca
nova possibilidade de compreendê-la. Compactuando com as vertentes
contemporâneas, não há na sua concepção da história um sentido a priori
incrustado no processo ou que corra escondido da percepção humana, mas
também não há a possibilidade de dotar a história de sentido através da narração,
como se aquele que escreve a história tivesse algum poder de criar o sentido. Para
Arendt, imaginar isso é indicar o caminho para a sobreposição entre história real e
história escrita. Ou seja, não respeitar a própria autonomia da ação, fulminando-a
com um sentido inventado pelo pensamento. O que observamos é que a autora não
rejeita simplesmente a “invenção” de sentido das filosofias da história, mas
também a “criação” de sentido pelo autor da história. Se é certo que ela destaca a
1 BENHABIB, S., Hannah Arendt and the redemptive power of narrative. Social Research,
vol.57, n.1, p. 167-96.
230
semelhança entre ficção e historiografia, isso não significa que o sentido da
realidade possa surgir apenas da imaginação daquele que compõe a história. Aliás,
tanto a escrita ficional como a escrita da história estão do mesmo lado no que se
refere ao acontecimento, qual seja, o lado reverso da ação. Ambas preservam a
separação entre autor e ator da história. Nesse sentido, a autora destaca a
possibilidade da reconciliação e compreensão do acontecido tanto na escrita
historiográfica como na ficcional, embora indique que a especificidade da
historiografia, que está irremediavelmente ligada à verdade factual.2
O destaque de Arendt à noção de ação está irremediavelmente ligado à sua
concepção de história porque sua suposição é a de que ao agir os homens dotam a
realidade de sentido – mesmo sem saber exatamente que sentido é esse. Não há
um sentido a priori, nem um sentido a posteriori que possa ser traçado pelo
escritor. O sentido surge exatamente quando a ação se interpõe, ou seja, quando
um evento se realiza eliminando, com a sua concretização, o horizonte de
possibilidades no qual se inseria para garantir a contingência dos fatos e a
liberdade do homem. Por isso, a autora sublinha a separação entre ação e
historiografia, ou entre a história real proveniente da ação e a história escrita, que,
em última instância se refere à distinção entre atores e autores da história. Essa
distinção ampara sua rejeição das filosofias da história tanto daquelas clássicas,
que supunham, para falar com Walsh, o sentido da história, como aquelas que
acreditavam poder visualizar o sentido depois do processo desenvolvido, às quais
imaginavam encontrar um sentido na história.3Além disso, fundamenta sua
argumentação sobre o engano de tomar a ação dos homens como um coletivo
singular – a humanidade, ou a História.
A historiografia procura, ao tentar compreender os feitos e realizações dos
homens, trazer um sentido ao mundo, tornando visível o que aos olhos dos atores
não é perceptível – aquele sentido que está instituído quando a história acontece
ou quando a ação irrompe. Mas o historiador não está ele mesmo isento da
companhia alheia. Mesmo sendo um espectador, por excelência, como quer
2 O importante é observar que, mesmo sem detalhar a questão das semelhanças e diferenças
entre historiografia e ficção, Arendt não sugere nem que se tratam do mesmo tipo de narrativa, nem que sejam completamente distintas, como se a história visasse à compreensão da realidade e a ficção fosse simples invencionisse. Em ambos os casos estão em jogo tentativas de interpretar a realidade.
3 WALSH, W. H. “Sentido” em História. In: GARDINER, P., Teorias da história, p. 359-374.
231
Arendt, ele não pode estar sozinho assistindo ao espetáculo. Em suma, ele não
pode assumir a posição que se pensava ser a de Deus, não pode achar um lugar
fora do tempo humano. O importante nessa tentativa arendtiana de reconsiderar a
possibilidade de separar atores e espectadores é justamente que ambos estão no
mundo. Talvez ainda possamos duvidar que o historiador não se torna mais um
ator dentre outros quando escreve história, e considerar que sua narrativa não
deixe de ser apenas uma interpretação da história dentre várias formas possíveis
de compreender o que se passou entre os homens. Assim, poderíamos findar como
Reiner Rochlitz que em seu livro sobre Benjamin supõe que o autor concebe o
“processo de desencantamento ligado a uma exigência recorrente de salvação.”4
No entanto, é também nesse sentido que Rochlitz destaca o messianismo
benjaminiano. Não há messianismo em Arendt. Mesmo que seja possível dizer
que ainda há salvação, sua perspectiva, como notou Roviello está mais para a
exaltação do humano.5 A ênfase arendtiana sobre o humano só pode ser
compreendida quando se concebe o caráter plural de sua consideração. A autora
não glorifica o deus homem. Ao contrário, quer justamente humanizar o homem
abstrato, identificando seu aspecto mais concreto, o qual indica que o homem não
existe sozinho, mas está imerso num mundo plural. É o mundo entre os homens
que sustenta a humanidade do homem. É o fato de que um homem é sempre
“igual e diferente” de todos os outros com quem compartilha o mundo. O que
viemos supondo nesse trabalho é exatamente que, para entender a concepção
arendtiana da história, não se pode perder de vista essa relação entre o homem e o
mundo que se abre entre os homens – ou a noção de homem no singular e de
homem no plural. A história não é meramente a experiência que o homem
compartilha com seus “iguais e diferentes”, nem apenas a escrita da história. A
história enquanto historiografia se torna possível pela confluência e pela
separação da ação.
Essa separação nem sempre foi evidenciada pelos intérpretes de Arendt.
Parece que na esteira da retomada heideggeriana da hermenêutica se valorizou a
idéia de que a concepção arendtiana da história também se fundava com Faulkner
4 ROCHLITZ, R., O desencantamento da arte, p. 349. 5 ROVIELLO, A. M., loc. cit.
232
na noção de que “O passado não está morto, e nem mesmo é passado”.6
Enfatizando esse viés hermenêutico, o qual não podemos ignorar que realmente
existe na obra arendtiana, pouco se explicou sua suposição sobre a verdade do fato
e a irreversibilidade do acontecido. Vejamos como sua biógrafa mais ilustre
Elizabeth Young-Bruehl explica em determinado momento a questão.
Comentando um trecho de Arendt, onde a autora menciona a irrevogalidade do
passado, Bruehl supõe que a concepção de um “passado que passa” não condiz
com a perspectiva da autora. Sua solução é considerar que a “passagem cheia de
apreensão, tão estranha a convicção de Arendt de que a retomada do passado é
sempre possível desde que haja quem conte a história”. A interpretação da
biógrafa tende a reduzir o comentário arendtiano a uma situação específica – o
contexto sem precedentes dos anos 1960 -, destacando que “Na vida e na obra de
Hannah Arendt, também [há] provas da lapidar percepção de Faulkner”.
As palavras de Arendt, consideradas por Bruehl, podem ser aqui retomadas
“em que, entre os muitos acontecimentos sem precedentes desse século, o rápido declínio de poder dos Estados Unidos deveria merecer a devida consideração. Este, também, é quase sem precedentes. Podemos muito bem estar diante de um desses momentos críticos e decisivos da história que separam eras inteiras umas das outras. Para os contemporâneos, enredados, como estamos, nas inexoráveis exigências da vida diária, as linhas divisórias entre as eras dificilmente estarão visíveis ao serem cruzadas; só depois que as pessoas tropeçam nelas essas linhas se transformam em muros que deixam o passado irremediavelmente de fora.”7 Ao destacar a delimitação entre história real, proveniente da ação, e
história escrita, a historiografia, pode-se compreender que a noção arendtiana da
história não sugere apenas uma leitura hermenêutica do passado. A ação dos
homens interpõe uma ruptura irrevogável entre passado e futuro. A retomada do
passado pela narrativa história concede sentido ao acontecido, mas não reverte a
história. Não pode desfazer o que a ação humana concretizou, não pode fazer o
passado voltar a ser contingência, como se ainda estivesse imerso em
possibilidade. Há certamente diversas chaves de leitura interpretativas, mas é
6 Arendt mesma cita por mais de uma vez em sua obra essa passagem de Faulkner. Veja
ARENDT, H., A condição humana, p. 193; Id., Entre o passado e o futuro, p. 37. 7 YOUNG-BRUEHL, E., Hannah Arendt. Por amor ao mundo p. 340-1.
233
importante observar que a ação desencadeia um processo irreversível. Arendt
desenvolve esse tema também ao considerar as prerrogativas do perdão. A
competência do perdão torna possível prosseguir mesmo diante de fato que
aconteceu e não pode ser desfeito. Sua implicação está diretamente relacionada à
irrevogabilidade do passado. A compreensão não implica necessariamente no
perdão, mas é também uma outra forma de se apaziguar com o passado. Apenas
concebendo a proximidade e a ruptura entre passado e futuro, pode-se entender o
significado das linhas divisórias entre as épocas, das rupturas, dos hiatos
temporais no seio do próprio tempo. O pensamento pode rememorar o passado,
pode intentar uma reprodução do fluxo vivo da ação pela imaginação, produzindo
até mesmo uma re-experimentação ou descobrir “pérolas” que foram esquecidas
pela tradição, mas não é possível revertê-lo. Lembremos que a possibilidade de
andar pela diagonal do tempo, de circular livremente entre o passado e o futuro é
uma característica própria da competência do pensamento, e só pode se realizar a
partir do afastamento momentâneo da realidade mundana, que existe entre os
homens. Os homens de ação, ao interromperem a ‘continuidade’ vigente entre
passado e futuro também têm a possibilidade de considerar ‘exemplos’ do
passado, como vimos no caso dos revolucionários americanos. Pode-se entrever
que a retomada dos romanos pelos homens da revolução também é uma espécie
de diálogo hermenêutico entre o passado e o futuro. De fato, a autora sugere que
diante da “perplexidade do início”, os americanos procuraram inspiração na
experiência política de fundação dos romanos. No entanto, entendemos que, ao
sublinhar essa retomada, Arendt está indicando justamente que a novidade nunca
pode ser uma novidade absoluta, como se surgisse do nada. Por certo essa é uma
grande temática do livro e, talvez, de toda a sua obra. Trata-se da fundamental
questão sobre a própria possibilidade do início. Ao se desgarrar da noção de uma
novidade que provém do alto ou de fora da história, a autora concebe com
Virgílio, Agostinho e Kant que a novidade é menos alguma coisa completamente
inédita e mais a ruptura de uma continuidade. Nesse sentido, o importante para
caracterizar a novidade não é a completa ausência de elementos pré-existentes
(palavras, idéias, símbolos, materiais), mas os novos sentidos que irrompem
quando a novidade advém. Assim, se a fundação de Roma inspira a experiência
revolucionária para os americanos, de modo algum, eles pretendem fundar Roma
234
mais uma vez, perpetuando a tradicional re-fundação de Tróia. Seu intuito é mais,
como destaca Arendt, fundar uma nova Roma.
O mais importante para a distinção entre ação e pensamento é observar que
a possibilidade da retomada do passado é diferente em ambos os casos. A ação
enquanto início de uma novidade no mundo não se limita a retomar o passado ou
reinterpretá-lo. O hiato do pensamento, como vimos, também se interpõe entre o
passado e o futuro, no entanto, embora possa re-pensar o passado à vontade,
encontrando novidades jamais vistas, para Arendt, ele não pode erigir a novidade
no mundo do qual se evade momentaneamente. Nesse sentido, a autora se esforça
por indicar que as transformações da realidade estiveram ligadas aos eventos e
não às idéias. No caso da passagem para a idade moderna destaca a invenção do
telescópio, a Reforma, a descoberta do Novo mundo. Também a ruptura com a
tradição só vem à tona com o evento totalitário.
Com a reconsideração da distinção entre ação e pensamento e a indicação
acerca da especificidade dessas esferas, entendemos que Arendt deixa lançada
novas possibilidades de compreender a história e a historiografia.
Referências bibliográficas
ABEL, L. The aesthetics of evil: Hannah Arendt on Eichmann and the jews.
Partisan rewiew, verão, 1963.
ADEODATO, João Maurício Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do
pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In:____ Palavras e sinais.
Modelos críticos. vol. 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da
história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
_______________. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: UFMG, 2004.
_______________. Estado de exceção: homo sacer II. São Paulo: Boitempo,
2007
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2004.
AGUIAR, Odílio Alves et al.(org.). Origens do totalitarismo, 50 anos depois.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
AGUIAR, Odílio Alves. Filosofia e política no pensamento de Hannah Arendt.
Fortaleza: EUFC, 2001.
AMIEL, Anne. Hannah Arendt, política, acontecimento. Lisboa: Piaget, 1997.
APEL, Karl-Otto. Transformação da filosofia. vol.I e II São Paulo: Edições
Loyola, 2000.
ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite e BARBOSA, CÔRREA, Ricardo José. Filosofia
prática e modernidade. Rio de Janeiro: ED. UERJ, 2003.
235
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2000.
_______________. The human condition. Chicago: University of Chicago Press,
1958.
_______________. Da revolução. São Paulo: Ática; Brasília: UNB, 1990.
_______________. On revolution. New York: Viking Press, 1963.
_______________. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do
romantismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_______________. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
_______________. Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil.
New York: Viking Press, 1963.
_______________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.
_______________. Between past and future: siix exercises in political thought.
New York: Viking Press, 1961.
_______________. Lições de filosofia política em Kant. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993.
_______________. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
_______________. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
_______________. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt, Brace
& Co., 1973.
_______________. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
_______________. On violence. New York: Harcourt Brace & World, 1972
_______________. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Cia das Letras,
1987.
_______________. Men in dark times. New York: H.B. Jovanovich, 1968.
_______________. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991.
_______________. The life of the mind. New York: Hacourt Brace Jovanovich,
1978.
_______________. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1993.
_______________. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
236
_______________. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. (Ensaios)
1930-54. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2008.
_______________. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
_______________. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1999.
_______________. Crises of republic. New York: H. B. Jovanovich, 1972.
_______________. The origins of totalitarism: a reply. The rewiew of politics,
vol.15, n.1, 1953.
_______________. Entre amigas: a correspondência de Hannah Arendt e Mary
McCarthy. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
_______________. Correspondence with Karl Jaspers, 1926-1969. Nova York:
Harcourt Brace, 1992.
_______________. Hannah Arendt, Martin Heidegger: correspondência. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Brasília: UNB, 1985.
_____________. Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
_____________. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.
AUBENQUE, P. A prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso, 2003.
BALL, Therence (org.). Political theory and praxis. Minneapolis: New
Perspectives, 1977.
______________. The origins of totalitarism: not History, but Politics. Social
research, vol.69, n.2, p. 381-401, Summer 2002.
______________. Hannah Arendt on the stateless. Paralax, vol.11, n.1,p. 46-60,
2005.
BAMBACH, Charles R. Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism.
Ithaca: Cornell University Press, 1995.
BARON, Salo W. Hannah Arendt. Jewish Social Studies, p. 187-189. Spring
1976.
BENHABIB, Seyla. The reluctant modernism of Hannah Arendt. Califórnia:
Sage Publications, 1996.
________________. Hannah Arendt and the redemptive power of narrative.
Social research, vol.57, n.1, p. 167-196, Spring 1990.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica. Arte e política. Ensaios sobre Literatura e
História da Cultura. Obras Escolhidas v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
____________. A tarefa do tradutor. Rio de Janeiro: UERJ, 1994.
237
____________. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.
BERSNTEIN, R. Hannah Arendt: the ambiguities of theory and practice. In:
BRADSHAW, Leah. Acting and thinking: the political thought of Hannah
Arendt. Toronto: University of Toronto Press, 1989.
CALDER, Todd. The apparent banality of Evil: the relationship between evil acts
and evil character. Journal of social philosophy, vol.34, n.3, p. 364-376, Fall
2003.
CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt: a reinterpretation of her political
thought. Cambridge University Press, 1992.
______________. Socrates or Heidegger? Hannah Arendt’s reflexions on
philosophy and politics. Social research, vol.57, n.1, Spring 1990.
_______________. The people, the masses and the mobilization of power: the
paradox of Hannah Arendt’s “populism”. Social research, vol. 69, n.2, p. 403-
422, Summer 2002.
CASTORIADIS, C. Os destinos do totalitarismo e outros escritos. São Paulo:
L& PM, 1985.
COHN, Gabriel. (org.). Weber. São Paulo: Ática, 1991.
COURTINE-DENAMY. O cuidado com o mundo. Diálogo entre Hannah
Arendt e alguns de seus contemporâneos. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
CRICK, Bernard. Hannah Arendt and the burden of our time. The political
quarterly, vol.68, n. 1, p. 77-84, jan. 1997.
DERRIDA, J. História da mentira: prolegômenos. Estudos Avançados, São
Paulo, v.10, n.27, p. 7-39, 1996.
DOLAN, Frederick M. An ambiguous citation in Hannah Arendt’s The human
condition. The journal of politics, vol 66, n.2, p. 606-610, may 2004.
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura. Política e filosofia em
Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
DUARTE, A., LOPREATO, Christina, MAGALHÃES, Maria Brepohl de. A
banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2004.
ELIAS, N. Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
238
ENEGRÉN, Andre. La pensee politique. Paris: Presses Universitaires de France,
1984.
ETTINGER, E. Hannah Arendt. Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
FERRY, Luc. Homo aestheticus. São Paulo: Ensaio, 1994.
___________Stalinisme et historicisme; la critique du totalitarisme stalinien chez
Hannah Arendt et Raymond Aron. In: PISIER-KOUCHNER, E. (org.) Les
interpretatiosn du stalinisme. Paris: PUF, 1983.
___________. Filosofia política II. El sistema de las filosofias de la historia.
Paris: Presses Universitaires de France, 1984.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
____________. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FURET, F. Pensando a revolução francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GADAMER, Hans Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1999.
_________________. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
_________________. A razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
_______________. O conceito de poder em Hannah Arendt. In: FREITAG,
Bárbara e ROUANET, S. P. (org.) Habermas. São Paulo: Ática, 1980.
HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Brasília: UNB, 2003.
HEGEL, G. Filosofia da história. Brasília: UNB, 1999.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
_________________. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.
_________________. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.
_________________. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1999.
HONOHAN, Iseult. Arendt and Benjamin on the promisse of history: a network
of possibilities or one apocalyptic moment? Clio, 19, 1990.
239
IGGERS, G. The german conception of history: the national tradition of
historical thought from Herder to present. Hanover: Wesleyan University Press,
1983.
JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do homem grego. São Paulo: Martins
Fontes, 1986.
JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência
da política. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 2003.
____________. O dilema da sociedade tecnológica. Petrópolis: Vozes, 1971.
__________. Los grandes filósofos. Buenos Aires: Sudamerica, 1968.
__________. The origin and goal of history. New Haven: Yale University Press,
1953.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1993.
__________. Conceito de história universal de um ponto de vista cosmopolita.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KATEB, George. Ideology and storytelling. Social research, vol.69, n.2, p.321-
357, Summer 2002.
______________. Arendt and individualism. Social research, vol. 61, n.4, p.765 -
794, Winter 1994.
___________. Hannah Arendt: politics, conscience, Evil. Totowa: Rowman and
Allanheld, 1984.
KERMORDE, F. The sense of an ending: studies in the theory of fiction.
Londonn: Oxford Univrsity Press, 1968.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: UERJ,
2002.
KONH, J.; MAY, L. (org.) Hannah Arendt: twenty years later. Cambridge,
Massachusetts: MIT Press, 1986.
KOSELLECK, Reinhart. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard,
____________________. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.
240
_____________. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991.
KRISTEVA, Julia O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras. Hannah
Arendt. Tomo I. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
LACOUE-LABARTHE. P. A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e
filosofia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
LAFER, C. Pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LAGUEUX, M. Actualité de la philosophie de l’histoire: l’ histoire aux mains
des philosophes. Saint-Nicolas, Quebec: Les Presses Universitaires de Laval,
2001.
LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____________.Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983.
_____________. Sobre Kant. São Paulo: Iluminuras, 2001.
LEFORT, C. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. São
Paulo: brasiliense, 1987.
__________. Thinking with and agaisnt Hannah Arendt. Social research,
vol.69,n.2, p.447-459, Summer 2002.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao Pensamento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
______________. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
LÖWITH, K. O sentido da história. Lisboa: Edições 70, 1991.
LYOTARD, Jean-François. Lições sobre a analítica do sublime. Campinas, São
Paulo: Papirus, 1993.
________________. Sensus Communis. Le cahier du Collège International de
Philosophie. Paris: Osíris, 1987.
MATTÉI, Jean François. La fundation de la cite; Heidegger et Hannah Arendt. In:
____. L’ordre du monde: Platão, Nietzsche e Heidegger. Paris: Presses
Universitaires de France, 1989.
MAYER, A. A força da tradição: a persistência do antigo regime. São Paulo:
Cia. das Letras, 1987.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MILES, Margaret. Volo ut is: Arendt and Augustine. Journal of theology, vol 41,
n.3, p. 221-230, Fall 2002.
241
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. São
Paulo: EDUSC, 2004.
MORAES, Eduardo Jardim e BIGNOTTO, Newton. Hannah Arendt: diálogos,
reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas. Lisboa; Editorial presença, s/d.
______________. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70,
2002.
ORTEGA, F. Para uma política da amizade. Arendt. Derrida. Foucault. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
PASSERIN D'ENTRÁEVES, MAURIZIO; EBRARY, INC. The political
philosophy of Hannah Arendt. London; New York: Routledge, 1994.
PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
REDHEAD, Mark. Making the past useful for a pluralistic present: Taylor,
Arendt, and a problem for historical reasoning. American journal of political
science, vol.46, n.4, p.803-818, outubro 2002.
REVAULT D’ALLONES, M. Revolution e histoire chez Merleau-Ponty et
Hannah Arendt. Le cahiers de philosophie, 4, III, 1987.
RICOUEUR, Paul. Em torno ao político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
______________. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997.
______________. Do texto à acção. Ensaios de Hermenêutica II. Porto: RÈS,
[s.d].
______________. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
______________ Action, story, history: on rereading The human condition.
Politics and the social contract, 60, 1983.
ROCHLITZ, R. O desencantamento da arte. São Paulo: EDUSC, 2003.
ROMAN, J. Thinking politics without a philosophy of history: Arendt and
Merleau-Ponty. Philosophy and social criticism, 15, 1989.
ROVIELLO, Anne-Marie. Senso comum e modernidade em Hannah Arendt.
Lisboa: Instituto Piaget, [s.d].
SCHAAP, Andrew. Guilty subjects and political responsability: Arendt, Jaspres
and the resonance of the “german question”. Political studies, vol. 49, p.749-766,
2001.
SCHMITT, C. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
242
SIMMEL, G. El problema del tiempo histórico. In:______ Problemas de
Filosofia da História. Buenos Aires: Editorial Nova Buenos Aires, 1950.
SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1999.
SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
STEELE, Meili. Arendt versus Ellison on Little Rock: the role of language in
political judgment. Constellations, vol.9, n.2, p.184-206, 2002.
TAMINIAUX, J. The thracian maid and the professional thinker. Arendt and
Heidegger. New York: State University of New York Press, 1997.
_____________Événement, monde et judgment selon Hannah Arendt. Passé
present. Paris: Ramsay, 1984.
____________. The philosophical stakes in Arendt’s genealogy of totalitarianism.
Social research, vol 69, n.2, p. 423-446, Summer 2002.
TASSIN, Etiene. Le trésor perdu: Hanna Arendt, l’intelligence de l’action
politique. Paris: Payot, 1999.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, c2000.
VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença. Lisboa: Edições 70, 1988.
________________. Introdução a Nietzsche. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
________________. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura
pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
________________. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica
para a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
VILLA, Dana. Arendt and Heidegger: the fate of political. Princeton, New
Jersey: Princeton University Press, 1996.
_______________. The Cambridge companion to Hannah Arendt. Cambridge
University Press, 2000.
VOEGELIN, E. The origins of totalitarianism. The rewiew of politics, vol.15,
n.1, 1953.
VOLLRATH, E. Actuar y juzgar: Hannah Arendt y la lectura de la Crítica del
juicio de Kant desde una perspectiva política. In:____ El resplandor de lo
público: en torno a Hannah Arendt. Caracas: Ed. Nueva Sociedad, 1994.
WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho.
São Paulo. Ateliê, 2000.
WATSON, D. Hannah Arendt. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.
243
WEBER, M. A ciência como vocação. In:___ Ensaios de Sociologia. Rio de
Janeiro: Zahar, [s/d].
_______________. A política como vocação. In:___ Ensaios de Sociologia. Rio
de Janeiro: Zahar, [s/d].
WELLMER, Albrecht. The persistence of modernity: essay on aesthetics, ethics
and postmodernism. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1993.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994.
WILLIAMS, Garrath. Love and responsibility; a political ethic for Hannah
Arendt. Political Studies, vol. 46, n.5, p. 937-950, 1998.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.
__________. Tractatus lógico-philosophicus. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.
__________. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 2000.
WOLIN, Richard. Hedeigger’s children: Hannah Arendt, Karl Löwith, Hans
Jonas, and Herbert Marcuse. London: Princeton University Press, 2001.
WOLF, Kurt H. On the ladscape of the relation between Hannah Arendt and
Martin Heidegger. American Sociologist, vol. 28, n.1, p.126-137, Spring 1997.
XARÃO, Francisco. Política e liberdade em Hannah Arendt: ensaio sobre a
reconsideração da vita activa. Injuí: UNIJUI, 2000.
YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1997.
_________________. On the origins of a new totalitarianism. Social research,
vol. 69, n.2, p. 567-576, Summer 2002.
ZERILLI, Linda M. G. Castoriadis, Arendt, and the problem of the new.
Constellations, vol.9, n.4, p. 540-553,2002.
Recommended