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IX ENCONTRO DA ABCP
Pensamento Político Brasileiro
Encontros com a democracia: intelectuais e a transição no período 1978-
1982
Pedro Benetti - IESP-UERJ
Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014
Encontros com a democracia: intelectuais e a transição no período 1978-
1982
Pedro Benetti – IESP-UERJ Resumo do trabalho: O presente artigo se dedica à análise de como a democracia foi conceituada por intelectuais brasileiros durante o processo de transição iniciado em 1974. Para tanto, concentra-se nas contribuições de diversos pensadores à Revista Encontros com a Civilização Brasileira, editada por Ênio da Silveira entre 1978 e 1982. O projeto editorial, que buscava retomar a Revista Civilização Brasileira, fechada pelo regime em 1968, se pretendia ecumênico na composição de seus autores. Dessa forma, a revista se pensava como ator importante na formação de uma frente anti-autoritária, capaz de pensar a democracia - sob perspectivas variadas - como alternativa ao regime vigente. Palavras-chave: Democracia; Autoritarismo; Transição; Encontros com a Civilização Brasileira; Anistia; Intelectuais
Introdução
“Vamos fundar uma revista!”
Estas palavras, segundo Beatriz Sarlo, foram ditas por um grande número de
intelectuais ao longo da história do século XX. Os periódicos culturais e políticos são,
hoje, reconhecidos como fontes importantes para estudos desenvolvidos nos campos
da História e da Literatura. Ainda assim, no que tange à disciplina da Ciência Política,
poucas são as pesquisas que se estruturam em torno da investigação de material
desta natureza. Por mais que as fronteiras disciplinares na grande área das
humanidades sejam bastante flexíveis (e, de certa forma, artificiais), cabe indagar se o
estudo das revistas culturais e políticas nada tem a oferecer aos praticantes da
Ciência Política.
O trabalho que segue parte deste questionamento para apresentar os primeiros
apontamentos relativos à pesquisa da revista Encontros com a Civilização Brasileira
(doravante ECB). O periódico, que circulou entre os anos de 1978 e 1982, se dedicou
a um esforço de compreensão da realidade brasileira, em sentido amplo, bem como à
construção de um espaço de sociabilidade para os intelectuais que se identificassem
como parte do campo democrático ou progressista. Para cumprir o objetivo proposto, o
artigo se divide em três seções, sendo a primeira responsável por uma rápida
discussão acerca do lugar que pode ser ocupado pelos periódicos na disciplina da
Ciência Política; a segunda por uma apresentação geral da revista ECB e de seu
idealizador, o editor Ênio Silveira e; a terceira pela análise de uma seleção de artigos
que discute o tema da democracia nas páginas da revista.
1. Revistas em revista – os periódicos e a Ciência Política
Ao defender uma história conceitual do político, Pierre Rosanvallon (1995)
reconstrói brevemente o processo de retomada, na França, da História Política, em
convergência com a Filosofia Política e com a Ciência Política. Este processo, que se
intensificou na década de 1980, teve como uma de suas consequências a recuperação
de um estatuto particular ao fenômeno político, que na tradição historiográfica dos
Annales não ocupava lugar de destaque.
“O objeto da história conceitual do político é a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação encaram seu futuro. Partindo da ideia de
que estas representações não são uma globalização exterior à consciência dos atores – como o são por exemplo as mentalidades – mas que elas resultam, ao contrário, do trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma, tem por objetivo: 1) fazer a história da maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais procuram construir as respostas àquilo que percebem mais ou menos confusamente comoum problema e, 2) fazer a história do trabalho realizado pela interação permanente entre a realidade e sua representação definindo os campos histórico-problemáticos. Seu objeto é assim a identificação do “nós históricos” em volta dos quais as novas racionalidades políticas e sociais se organizam; as representações do político se modificam em relação às transformações nas instituições; às técnicas de gestão e às formas de relação social. Ela é história política na medida em que a esfera do político é o lugar da articulação do social e de sua representação. Ela é história conceitual porque é ao redor de conceitos – a igualdade, a soberania, a democracia, etc. – que se amarram e se comprovam a inteligibilidade das situações e o princípio de suas ativações.” (Rosanvallon, 1995, p. 16)
O projeto teórico de uma história conceitual do político é, portanto,
interdisciplinar em sua natureza. Ele pressupõe a integração entre diferentes áreas do
conhecimento que se debrucem sobre o fenômeno do político. Embora esteja
referenciado nos debates da academia francesa, o projeto de Rosanvallon pode ser
apropriado em outras partes do mundo, como uma ferramenta útil para a compreensão
dos processos de formação do espaço onde a política é operada. Nesse sentido, a
história conceitual do político recorre aos estudos sobre as gerações intelectuais,
sobre a cultura política, sobre os partidos como elementos de um quadro mais amplo
que apresenta o político como representação do social.
O estudo dos periódicos culturais e políticos se encaixa nessa perspectiva por
diversos motivos, dado que trata-se de uma fonte privilegiada para a pesquisa sobre a
circulação de ideias e, principalmente, as redes de sociabilidade entre intelectuais (e
também políticos) num certo tempo histórico. As revistas têm relação direta com o
fenômeno das gerações intelectuais e da formação das culturas políticas de cada
momento. Em seguida, serão discutidas estas relações bem como as características
básicas que costumam atravessar os periódicos.
1.1 Características dos periódicos e de seus estudos
O primeiro aspecto a ser observado no estudo das revistas culturais e políticas
diz respeito à sua temporalidade. Diferentemente do livro, que carrega certa pretensão
à perenidade, os periódicos tem uma relação incontornável com o tempo presente.
Segundo Sarlo (1992), “nada é mais velho do que uma revista velha: ela perdeu a aura
que emerge de sua capacidade, ou melhor, de sua aspiração de ser uma presença
imediata na atualidade.”.
Entretanto, as revistas são, também, diferentes dos jornais. Enquanto estes
costumam ter poderosas redes de financiamento e distribuição por trás de suas
operações, garantido amplo alcance em camadas diversas da população, os
periódicos organizam-se, quase sempre, de maneira precária. Geralmente, são
iniciativas de pequenos grupos intelectuais, que contam com poucos recursos para a
viabilização da empreitada. Frequentemente são deficitários e, não raro, consomem as
economias pessoais dos próprios protagonistas do projeto. Em outras palavras, as
revistas culturais e políticas não são empreendimentos comerciais. Além disso, elas
interferem no debate público de maneira indireta, dado que não atingem um público
vasto. Suas tiragens são bastante menores do que a dos grandes diários e seu público
leitor costuma estar concentrado nos estratos com mais acesso à educação formal.
Retomando a discussão sobre a temporalidade das revistas, nota-se outra diferença
em relação aos jornais: ao passo que estes trabalham no tempo da urgência, do
cotidiano, os periódicos têm uma temporalidade bastante mais flexível. Isso permite
que o autor tenha maior protagonismo nas revistas (na comparação com os
jornalistas) e que o espaço para textos reflexivos seja maior. De acordo com Crespo
(2011, p. 99), “as revistas ocupam um lugar entre a transcendência dos livros e a
transitoriedade dos jornais”.
As revistas não guardam relação íntima apenas com o tempo presente do qual
fazem parte, elas também se relacionam de maneira direta com o espaço no qual
estão inseridas. Isso porque as revistas partem da noção de intervenção num debate
político, ideológico, ou mesmo estético (no caso das revistas mais focadas no campo
cultural) para se estruturarem. Nesse sentido, a relação dos periódicos com a
conjuntura se constrói nos dois eixos – o temporal e o geográfico.
A ideia de que é necessária uma intervenção no debate público parte, via de
regra, das discussões de algum grupo de intelectuais. Esta é outra característica
fundamental das revistas, o caráter coletivo de sua produção. Na perspectiva de Sarlo
(1992, p. 10) “a sintaxe de uma revista informa, de um modo que jamais os seus textos
considerados individualmente poderiam fazer, da problemática que definiu aquele
tempo presente”. Assim sendo, é possível afirmar que as revistas têm características
que são intrínsecas à própria forma da publicação e que sua totalidade é formada, de
certa maneira, por algo mais que o conjunto de seus textos tomados isoladamente. As
contribuições publicadas por um periódico podem, inclusive, ultrapassar o caráter
conjuntural que marca essa forma de publicação. O ensaio “Democracia como Valor
Universal”, publicado por Carlos Nelson Coutinho na revista ECB, tornou-se um texto
clássico nas ciências sociais brasileiras. Não obstante, naquele momento ele fez parte
de uma teia de textos e conceitos responsáveis pela elaboração de uma narrativa
sobre a transição democrática brasileira, objeto preferencial do periódico no qual foi
publicado.
Em resumo, é possível citar quatro características básicas que atravessam a
maior parte dos periódicos culturais e políticos: (1) inscrição na temporalidade
presente; (2) periodicidade intermediária em relação ao livro e aos jornais, o que
garante certa flexibilidade na comparação com estes dois outros formatos de
publicação; (3) a noção de intervenção no debate público, frequentemente
preenchendo um espaço considerado vazio, o que aponta para a construção de uma
relação direta com o espaço onde são editadas as revistas e; (4) o caráter coletivo da
obra, que a transforma num retrato importante de quais são as questões centrais num
determinado espaço e tempo históricos.
1.2 Métodos para o estudo das revistas: gerações e cultura política
A investigação dos periódicos culturais e políticos costuma ser feita por
praticantes de disciplinas diversas, segundo objetivos diferentes. Ainda assim, apesar
dos enfoques variados, muito se ganha com a integração de métodos e discussões
teóricas elaborados em áreas das humanidades que têm profundo diálogo a ser
explorado – como a Sociologia, a História e a Literatura. Da primeira, podem ser
aproveitados os extensos debates sobre a sociologia dos intelectuais, que oferecem
noções como a de redes, campo cultural, campo intelectual e outras. Da Literatura, o
pesquisador de revistas pode extrair reflexões sobre a forma, o texto, a recepção e os
debates estéticos que permeiam objetos desta natureza. Já a História pode oferecer
ferramentas teóricas preciosas, como as metodologias elaboradas em torno da
História dos Conceitos, a discussão sobre linguagens políticas ou sobre culturas
políticas. Na interseção entre a História e a Sociologia se localiza o debate sobre
gerações intelectuais, que pode ser fundamental para a compreensão do lugar de um
periódico cultural e político no mundo. Justamente por se tratar de um fenômeno que
tende a ser efêmero e que guarda profunda relação com a sua conjuntura imediata, o
periodismo cultural e político frequentemente está ligado à uma geração intelectual em
particular.
O debate sociológico sobre as gerações remonta à primeira metade do século
XX, quando Karl Mannheim se dedicou ao tema. De acordo com o autor, as gerações
são vivenciadas por cada indivíduo como uma “situação” e não como um grupo
concreto do qual escolhem participar. Nesse sentido, a experiência geracional se
assemelha com a experiência de classe, uma vez que representa uma posição
ocupada na sociedade e não um engajamento consciente de cada um. Dado que a
experiência humana no mundo é marcada por um ritmo biológico – nascimento,
crescimento, envelhecimento etc. -, a situação de geração se originaria numa inscrição
comum de um conjunto de indivíduos na dimensão histórica do processo social
(Mannheim, 1986). Diante desse diagnóstico, Mannheim classifica como “unidades de
geração” os grupos concretos que se formam dentro de uma mesma geração.
“Enquanto a mera “situação” comum em uma geração é de significação apenas potencial, uma geração enquanto uma realidade é apenas constituída quando contemporâneos similarmente “situados” participam de um destino comum e das ideias e conceitos de algum modo vinculados ao seu desdobramento. Dentro dessa comunidade de pessoas com um destino comum podem então surgir unidades de geração particulares. Elas se caracterizam pelo fato de que não envolvem apenas a livre participação de vários indivíduos em um padrão de acontecimentos partilhado igualmente por todos (embora interpretado diferentemente por indivíduos diferentes), mas também uma identidade de reações, uma certa afinidade no modo pelo qual todos se relacionam com suas experiências comuns e são formados por elas. Assim, dentro de qualquer geração podem existir várias unidades de geração diferenciadas e antagônicas. Juntas, elas constituem uma geração “real” precisamente por estarem orientadas umas em relação às outras, mesmo se apenas no sentido de se combaterem entre elas.” (Mannheim, 1986, p. 89)
Os debates sobre gerações também constituem parte importante da retomada
da história política francesa, na segunda metade do século XX. Nesse caso, os
estudos sobre geração se aproximam das investigações sobre o lugar dos intelectuais
na política. Historiadores como Jean-François Sirinelli, Marc Devriese, Jean-Pierre
Azema e Michel Winock são alguns dos que participam de uma edição especial da
Revue Vingtieme Siecle (número 22, 1989) inteiramente dedicada ao tema. Os
Cahiers de l’IHTP’ (número 6, 1987) também dedicam uma edição inteira ao fenômeno
das gerações intelectuais. Nestas duas edições, os autores concordam em torno da
importância de grandes eventos constituintes da identidade comum de uma geração.
Sua preocupação é concentrada em torno dos intelectuais, num foco menos
abrangente do que o de Mannheim. Nesse sentido, é comum a distinção entre
“classes de idade” e “gerações intelectuais”. Enquanto as primeiras corresponderiam
ao ritmo biológico que Mannheim classifica como geração, as últimas dizem respeito a
fenômenos que têm marcadores exclusivamente sociais.
“Nous dirons que chaque generation se definit par une problematique majeure (la guerre, la crise, le communisme, la decolonisation, etc.) qui suscite un ensemble de reponses contradictoires formant un systime ideologique. Une generation intellectuelle a d'autres attributs qui la distinguent des autres. Elle est tributaire d'un certain type de formation pedagogique (programmes scolaires, re-formes du baccalaureat, attention aux langues anciennes ou aux langues modernes, elitisme ou democratisme de l'enseignement...); tributaire, d'une maniere generale, de l'environnement
economique, demographique, social, politique, qui favorise des sentiments collectifs d'optimisme ou de pessimisme, ce qu'on appelle un < esprit du temps >.” (Winock, 1989, p. 19)
Sirinelli, por sua vez, ressalta que a noção de geração aparece ligada à
recuperação de dois elementos que foram abandonados com o relativo ostracismo da
história política, quais sejam, o “evento” e o “tempo curto”. Embora as gerações
intelectuais tenham uma temporalidade elástica, que difere da simples sucessão de
gerações biológicas, seu registro se dá no tempo curto e sua intervenção no mundo é
mais facilmente perceptível no plano da conjuntura do que das grandes
transformações estruturais. A partir de então, a relação com o estudo dos periódicos
culturais e políticos se torna evidente. Se, para Sirinelli (1989), as gerações têm
significativo impacto na produção de ideologias, culturas políticas e representações do
social – frequentemente a partir de “eventos fundadores” ou experiências
compartilhadas -, as revistas tornam-se um espaço privilegiado para a apreensão
deste fenômeno. A temporalidade das revistas acompanha a temporalidade das
gerações intelectuais. Na maior parte dos casos, a vida de um periódico tem a mesma
duração de uma geração intelectual correspondente. Como um empreendimento
coletivo, que tem uma linguagem própria e questões particulares, as revistas tendem a
se comunicar com um público que partilhe um “espaço de experiência” (Koselleck,
2006) ou uma “estrutura de sentimento” (Williams apud Ridenti, 2005). Estas duas
categorias, empregadas aqui de maneira bastante livre, dizem respeito à vivência
comum de um passado, não somente do ponto de vista dos eventos, mas também das
formas de pensar e projetar um presente e um futuro.
De acordo com Sirinelli (1987), a geração pode ser entendida como uma
“chave” para os estudos sobre a história intelectual. Da mesma maneira, como uma
chave explicativa, Serge Berstein (1992) considera os estudos sobre a cultura política.
Assim como os estudos sobre geração, as pesquisas sobre a cultura política se
desenvolvem no contexto da retomada da história política, protagonizada por Rene
Remond, na França. Suas investigações se centram sobre as representações do
social no plano político, o que as aproxima da ideia de uma história conceitual do
político, defendida por Rosanvallon.
“...a cultura política ocupa pois um lugar particular.Ela é apenas um dos elementos da cultura de uma dada sociedade, oque diz respeito aos fenómenos políticos. Mas, ao mesmo tempo,revela um dos interesses mais importantes da história cultural, o decompreender as motivações dos actos dos homens num momento dasua história, por referência ao sistema de valores, de normas, decrenças que partilham, em função da sua leitura do passado, das suasaspirações para o futuro, das suas representações da
sociedade, do lugar que nele têm e da imagem que têm da felicidade.” (Berstein, 1998, p. 362-3)
O que a passagem destacada acima denota é que a noção de cultura política,
como as outras discutidas anteriormente neste texto, se constrói a partir da
investigação sobre formas de conectar a experiência e a expectativa, compreendendo
a ação política numa dada conjuntura a partir destes elementos. A cultura política,
como a geração, não trata diretamente de uma ideologia política ou de um sistema de
pensamento, mas sim de um fenômeno mais difuso socialmente, que organiza de
maneira mais flexível a relação que os homens têm com o que é da ordem do político.
Na formação de uma cultura política,
“entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal, a maior parte das vezes expressa sob a forma de uma vulgata acessívelao maior número, uma leitura comum e normativa do passado históricocom conotação positiva ou negativa com os grandes períodos dopassado, uma visão institucional que traduz no plano da organizaçãopolítica do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, umaconcepção da sociedade ideal tal como a veem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que ovocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas sãoportadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante.” (Berstein, 1998, p. 350)
Nesse caso, a relação entre o estudo das revistas e das culturas políticas se
torna evidente, na medida em que aquelas permitem apreender os conceitos,
ideologias, discursos e problemáticas que estruturam estas. Os periódicos constituem
uma fonte privilegiada para a compreensão da problemática que estrutura um dado
tempo presente. Seu caráter coletivo e conjuntural aponta para uma relação frutífera
com as noções de geração e cultura política, que são mais difíceis de pesquisar a
partir de livros.
Os exemplos citados acima constituem apenas apontamentos iniciais sobre as
relações entre o estudo das revistas culturais e políticas e os desenvolvimentos
teóricos que podem se servir destas como fontes, bem como podem auxiliar os
pesquisadores que as têm como seu próprio objeto. Certamente há outros métodos e
reflexões teóricas que podem se apropriar das e serem apropriados pelas
investigações com os periódicos.
1.3 O estudo dos periódicos no Brasil
Apesar de uma vasta tradição na publicação de revistas culturais e políticas, os
estudos sobre periódicos no Brasil são embrionários. Na Universidade Federal de
Santa Catarina, a professora Maria Lucia de Barros Camargo coordena um grupo que,
no departamento de Letras, se dedica ao levantamento e estudo da história dos
periódicos culturais e políticos no Brasil. O projeto “Poéticas contemporâneas”, em sua
quinta edição, se dedica ao mapeamento das revistas literárias brasileiras. Nesse
caso, o foco reside no debate propriamente literário. Camargo (2003) divide as
publicações literárias brasileiras em seis categorias: (a) “magazines” literárias e
culturais frutos de empreendimentos comerciais; (b) revistas literárias e culturais
independentes; (c) revistas literárias institucionais; (d) revistas culturais “acadêmicas”;
(e) suplementos culturais da grande imprensa e; (f) revistas universitárias
(“científicas”). Embora a classificação funcione melhor nos termos do debate literário,
ela contribui para o estudo das publicações em geral. Nesse quadro, as revistas que
despertam interesse para este estudo seriam, principalmente, as “culturais
‘acadêmicas’”, que tem como perfil um movimento de consolidar um conhecimento da
realidade nacional para intervir nos destinos políticos e sociais do país.
Além desta iniciativa catarinense, de caráter sistemático, outros pesquisadores
por todo o país vêm se apropriando das revistas como fontes de seus estudos, sem
que isso tenha resultado numa reflexão organizada sobre o lugar que pode ser
ocupado por este material na pesquisa acadêmica.
Raul Antelo lembra que as primeiras revistas brasileiras foram lançadas ainda
no começo do século XIX, em capitais europeias. As revistas Brasiliense (1808-1822)
e Niterói (1836) foram editadas em Londres e Paris, respectivamente. Posteriormente,
muitas outras revistas foram fundadas na capital do País, como Minerva Brasiliense
(1843-1845), oOstensor Brasileiro (1845-1846), O Americano (18471851), A Marmota
(1849-1861), a Guanabara (1849-1856)e o Jornal das Senhoras (1852-1855). No
curso do século XIX, os periódicos brasileiros estiveram, em sua maioria, ligados à
academia, particularmente aos cursos de direito (Antelo, 1997). A partir do século XX,
muitos começam a ser editados por instituições (como a revista Americana, ligada ao
Itamaraty) ou de maneira independente, por grupos de intelectuais. A revista Klaxon
(1922-1923) é um bom exemplo nessa direção. A redução dos custos de produção e o
aumento do público leitor ampliaram o espaço para a circulação de revistas culturais e
políticas na segunda metade do século XX. As revistas Brasiliense (1955-1964) e
Tempo Brasileiro (1962) são características de um momento no qual a noção de
intervenção no debate público se fortalece bastante entre os intelectuais brasileiros.
Mais adiante, no período do regime autoritário (1964-1985), organiza-se uma vasta
gama de revistas que, em sua maioria, se articulam como oposicionistas – dentre as
quais vale destacar a primeira fase da Revista Civilização Brasileira (1965-1968).
A longa tradição de envolvimento dos intelectuais brasileiros com a edição de
periódicos culturais e políticos justifica, por si só, um esforço concentrado na
investigação deste universo. Muito se ganhará com a integração de esforços entre
diferentes disciplinas que podem se beneficiar da pesquisa sistemática nestas fontes.
Para a Ciência Política, os periódicos têm muito a contribuir na elucidação dos
caminhos pelos quais passou o pensamento político brasileiro nos últimos dois
séculos, abrindo espaço para a compreensão da relação entre representações sociais
e motivações para a ação política, como na sugestão de Rosanvallon.
2. A editora Civilização Brasileira e seu “arquiteto de liberdades”
A editora Civilização Brasileira nasceu no momento de florescimento do
mercado editorial nacional, no ano de 1929. Fundada no Rio de Janeiro por Ribeiro
Couto, Gustavo Barroso e Getúlio Costa, foi vendida três anos depois para Octalles
Marcondes Ferreira, proprietário da Companhia Editora Nacional, em São Paulo (Mariz
& Lima, 2009). Durante as décadas de 1930 e 1940, a editora carioca oscilou bastante
na quantidade de livros publicado – 77 em 1934, 17 em 1939, 21 em 1940 e depois
uma média de 5 até 1950 (Mariz & Lima, 2009, p. 2).
É somente a partir de 1952, quando Ênio Silveira, genro de Octalles, se muda
para o Rio de Janeiro e assume o controle executivo da editora que a tendência
decadente do empreendimento é revertida.Silveira nascera em São Paulo, no ano de
1925, e antes de ser editor, cursara Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e
Política (curso que não concluiu). Em 1946 se mudou para Nova Iorque,
acompanhando a mulher, onde fez cursos de editoração em Columbia e trabalhou na
editora Alfred Knopf (Vieira, 1998, p. 76). Ao longo da década de 1950, período em
que Ênio se aproximou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Civilização Brasileira
foi conquistando prestigio e uma situação economicamente confortável. Num primeiro
momento, o editor contou com a rede de apoio financeiro e logístico da empresa de
seu sogro, Octalles. Entretanto, no curso de sua primeira década como editor da
Civilização Brasileira, foi tomando controle dos processos administrativos e, após
comprar a empresa de Octalles, em 1963, passou a promover profundas alterações
nos projetos gráficos das publicações. Paralelamente, Ênio se engajou na organização
dos livreiros no Brasil, tornando-se o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de
Livros entre 1952 e 1958.
Apesar de seu engajamento político e militância no PCB, Silveira construiu um
projeto editorial que tinha o ecumenismo como valor fundamental. Esta postura se
reflete também na editoração das revistas Civilização Brasileira (1965-1968) e ECB
(1978-1982). O editor rejeitava a possibilidade de tornar um órgão acessório do
partido, voltado apenas para a divulgação dogmática de uma doutrina. Em sua
perspectiva, a função da editora residia no estabelecimento de um conhecimento
consolidado sobre a realidade brasileira, a partir do qual se pudesse promover uma
transformação radical das condições sociais e econômicas da maior parte da
população. Essa linha de atuação se aproxima bastante, na sua forma (mas não no
conteúdo ou nos seus fundamentos filosóficos) ao realismo político que orientara
grande parte dos intelectuais próximos à Vargas ao longo dos anos 1930 e 1940 –
Almir de Andrade, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral poderiam ser citados como
exemplos. Nesse esforço de mapeamento da realidade brasileira, Silveira considerava
importante congregar as diferentes correntes do humanismo, entendendo que um
projeto transformador não comportava espaço para sectarismos. Esse espírito
permeou suas publicações ao longo de todo o período em que foi editor. Embora
fugisse do dogmatismo, o editor não deixava de conferir um perfil engajado à sua linha
de publicações, o que conferia uma identidade clara ao seu empreendimento.
“A análise da trajetória de Ênio Silveira e da história da Editora Civilização Brasileira evidencia uma clara continuidade entre a mobilização pela causa nacionalista ao longo dos anos 50 e o desenvolvimento de uma cultura revolucionária que floresce nos anos 60 e se intensifica com a instalação do governo militar.” (Vieira, 1998, p. 73)
É possível afirmar que a editora Civilização Brasileira estivesse em perfeita
sintonia com o que Marcelo Ridenti (2005, p. 83) classifica como “estrutura de
sentimento da brasilidade (romântico-)revolucionária”. De acordo com o autor,
“Valorizava-se acima de tudo a vontade de transformação, a ação para mudar a História e para construir o homem novo, como propunha Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Mas o modelo para esse homem novo estava, paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana-capitalista.Vislumbrava-se uma alternativa de modernização que não implicasse asubmissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desumanização.A questão da identidade nacional e política do povo brasileiroestava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento, o que não deixa de ser um desdobramento à esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimentonacional com base na intervenção do Estado.” (Ridenti, 2005, p. 84)
Essa estrutura de sentimento articula conceitos como o nacionalismo e o
desenvolvimentismo em torno de um projeto transformador. Ela teria sido o elemento
central da efervescência cultural que marca o Brasil dos anos 50 e 60, antes do golpe
militar. Com a instalação do regime autoritário, os setores da sociedade que se
percebiam como progressistas se deparam com um profundo sentimento de derrota.
Isso produz uma série de críticas e autocríticas relativas ao comportamento das
esquerdas no período 1945-1964. Não obstante, a articulação de uma resistência
intelectual no interior da editora Civilização Brasileira não passa necessariamente pelo
abandono (talvez por uma reformulação) dos conceitos e atitudes que marcavam sua
atuação no período anterior. Logo em 1965, Ênio Silveira publica o primeiro número da
Revista Civilização Brasileira (RCB).
Este veículo circulou até 1968, quando, após a edição do AI-5, foi fechado.
Apesar das dificuldades impostas pelos agentes do regime, RCB foi um grande
sucesso editorial, alcançando mais de 10.000 exemplares vendidos já em sua primeira
edição, que esgotou rapidamente. No número seguinte, a tiragem foi dobrada e o
sucesso comercial mantido (Camargo, 2004, p. 892). A retórica de luta nacionalista,
presente na linha editorial da Civilização Brasileira no decorrer dos anos 50, aparece
na RCB de maneira ampliada, apresentada como uma forma necessária de resistência
num campo de combate adverso, em que os interesses estrangeiros se associam às
frações mais reacionárias das classes dominantes brasileiras.
“A Revista assume, desse modo, uma função pedagógica e esclarecedora em defesa dademocracia, do socialismo, do desenvolvimento independente do país, da liberdade decriação artística e de imprensa; nela, ensinar e denunciar são funções mutuamentecomplementares. A Revista Civilização Brasileira propõe-se, portanto, como veículo dointelectual engajado, que ensina e denuncia, que assume o j’accuse!, que pratica o “delitode opinião” e vê no “golpe” a emulação necessária.” (Camargo, 2004, p. 893)
A RCB contou com contribuições dos intelectuais mais prestigiados da
esquerda brasileira de então, reunindo, entre outros, Caio Prado Junior, Fernando
Henrique Cardoso e José Arthur Gianotti. Um dos pontos altos da revista foram as
“Epístolas ao marechal”, escritas pelo próprio Ênio Silveira como denúncias das
restrições às liberdades impostas pelo governo que resultou do golpe. (Czajka, 2013).
As revistas eram editadas mensalmente e constituíam-se de textos densos e extensos,
que costumavam somar em torno de 300 páginas por número. Apesar de suas
características próximas às de um livro, a revista alcançou enorme público e tornou-se
uma referência das lutas não-armadas contra o regime militar. Justamente por sua
importância, foi fechada em 1968, no ápice do autoritarismo. Ao seu fechamento,
sucederam inúmeros ataques e ameaças à editora Civilização Brasileira e ao próprio
Ênio Silveira que, no entanto, manteve-se ativo nas condições possíveis. Assim que a
conjuntura interna permitiu, Silveira retomou o projeto interrompido em 1968, lançando
a revista Encontros com a Civilização Brasileira.
3. Encontros com a democracia
A revista Encontros com a Civilização Brasileira apareceu na esteira do
processo de abertura política anunciada pelos generais que comandavam o país. Seu
primeiro número, lançado em julho de 1978, poucos meses antes da revogação do AI-
5. A nova iniciativa nasce após uma tentativa fracassada, do ponto de vista militar, de
resistência armada ao regime autoritário, que atraiu boa parte dos militantes que se
consideravam como parte da esquerda no país. A nova publicação precisa, portanto,
lidar não apenas com uma autocrítica das esquerdas em relação à sua atuação na
primeira metade da década de 1960, como também com uma revisão relativa à opção
pela luta armada.
A revista Encontros com a Civilização Brasileira (ECB) circulou entre 1978 e
1982, tendo 29 números publicados nesse período. Os responsáveis pelo periódico
foram Moacyr Félix, editor-chefe, e Ênio Silveira, diretor-chefe e responsável pela
editora Civilização Brasileira. Este projeto editorial buscava retomar uma iniciativa
suprimida nos anos mais duros da repressão, a Revista Civilização Brasileira, que teve
22 volumes entre os anos de 1965 e 1968. Neste primeiro periódico, circularam
intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e à Comissão
Econômica para a América Latina (Cepal). Com o progressivo fechamento do regime,
o espaço para publicações como a Revista Civilização Brasileira – fortemente marcada
pela tradição das esquerdas pré-1964 -, foi reduzido. Em 1968, a editora foi duramente
perseguida, chegando a encerrar suas atividades.
A retomada do projeto editorial de 1965 se deu em outro contexto, com o
processo de abertura política já em marcha. Nessa ocasião, a ideia de uma frente de
setores oposicionistas já tinha ganhado força e a articulação de entidades da
sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), ocupava papel central na crítica ao autoritarismo. Do
ponto de vista sociológico, o periódico reaparece após intenso processo de
urbanização e industrialização, marcas do país nos anos 70. No campo econômico, o
chamado “milagre” dava sinais de esgotamento, com a escalada da inflação, a
diminuição do crescimento e a manutenção do arrocho salarial. Nesse contexto, de
uma sociedade absolutamente diferente da de dez anos antes, um fator político
ocupava o centro das atenções no debate público: a abertura “lenta, gradual e segura”
do regime. Os resultados positivos obtidos pelo partido da oposição consentida ao
regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), abriram a perspectiva de derrota
do autoritarismo por dentro de suas instituições. A esse resultado eleitoral, somou-se o
retorno do grupo militar considerado moderado ao controle do executivo. A posse do
General Geisel, quando se anunciou o começo de um processo de distensão do
regime, representou uma ruptura – ainda que sútil – em relação aos dois governos
anteriores, provenientes da chamada linha dura das Forças Armadas. A ideia de que
havia um processo de transição institucional em curso dividiu os críticos do regime,
tanto esquerdistas quanto alguns liberais. Este é um dos temas dominantes de ECB
que, através de seus editoriais, defende a linha de uma frente única oposicionista,
organizada pelo MDB, que visasse conquistar espaços institucionais e remover
progressivamente às restrições autoritárias, através de uma Assembleia Constituinte.
Uma rápida passagem pela lista de autores que contribuíram para ECB permite a
constatação do caráter frentista assumido pelo periódico. Intelectuais próximos de
diversos grupos políticos, e não apenas ao PCB, estiveram nas páginas do periódico.
Frei Betto, José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, José
Guilherme Merquior e muitos outros são exemplos da diversidade teórico-política
encontrada na revista. Em comum, a oposição ao regime militar e o compromisso com
alguma proposta de democracia. Apesar da diversidade, havia uma posição assumida
pelo corpo editorial em favor do processo de transição gradual para uma democracia
política, via reativação das instâncias representativas, tal como defendia o MDB.
Assim como outras publicações do período, a revista ECB não era uma
iniciativa exclusivamente política. Havia também um conjunto de textos dedicados à
área cultural. As contribuições se aproximavam de um perfil mais acadêmico, embora
se relacionassem sempre com a conjuntura política e com temas contemporâneos. Em
geral, eram mais extensas – giravam em torno de 10 a 25 páginas - do que as
analisadas em outros periódicos da época, como Novos Estudos Cebrap ou Lua Nova.
Ao observar os sumários de cada volume, percebe-se três conjuntos de contribuições,
não separados em seções específicas: artigos culturais, artigos políticos nacionais e
textos internacionais traduzidos pela revista. A ECB trazia ainda uma seção somente
para resenhas de livros recém-publicados, geralmente pela própria editora Civilização
Brasileira.
Os artigos escritos por intelectuais brasileiros quase sempre abordavam algum
aspecto do processo de democratização em curso. Um espaço significativo também
era concedido à reflexão acerca do papel do intelectual na sociedade de então.
Frequentemente, a revista organizava dossiês ou publicava a íntegra de seminários e
encontros político-acadêmicos. Temas clássicos das esquerdas, como o movimento
operário e a estrutura econômica, também apareciam com destaque na publicação. No
que se refere aos textos traduzidos, fica evidente um esforço de renovação teórica em
relação ao marxismo-leninismo. O socialismo passa a ser pensado a partir da ótica do
eurocomunismo e do chamado marxismo ocidental. Os marxistas italianos são os mais
discutidos, mas pensadores como Jurgen Habermas e Eric Hobsbawm também estão
presentes nas páginas de Encontros. A influência de Antonio Gramsci – inclusive
através de autores nacionais, como Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna –
é parte importante da incorporação de novas referências no campo das esquerdas
brasileiras.
Diferentemente dos Novos Estudos Cebrap e da Lua Nova, ECB não
correspondia à produção de um centro de pesquisa, onde houvesse um ambiente
profissionalizado de produção do conhecimento. Por isso mesmo, era uma iniciativa
extremamente dependente da figura de Ênio Silveira, que a viabilizava tanto
financeiramente, por meio da editora, quanto em termos editoriais, através de seus
contatos pessoais com intelectuais de prestígio da oposição ao regime. Por mais que a
censura não tenha atingido a revista, ECB foi alvo dos atentados orquestrados por
grupos paramilitares contra bancas de jornal que vendessem veículos da imprensa
alternativa. As dificuldades de distribuição daí decorrentes estão entre os fatores que
contribuíram para o fim deste projeto editorial, em 1982. A ausência de fontes externas
de financiamento, como as agências nacionais de fomento à pesquisa ou fundações
internacionais – como a Ford -, deixou a publicação numa posição de maior
vulnerabilidade, dependendo das vendas nas bancas.
O projeto gráfico de ECB era mais arrojado do que o apresentado por sua
antecessora.
“Encontros teve um tratamento gráfico esmerado. Com periodicidade mensal, publicada em formato de livro em brochura, medindo 14 x 21 cm, diagramação de Léa Caulliraux (até aonúmero 22) e, posteriormente, de Ana Maria Araújo e C. A. T. Torres, a revista estampou, em suas capas, além das ousadas produções gráficas de Eugênio Hirsch, o símbolo da Editora Civilização Brasileira, em alto contraste, desenhado por Marius Lauritzen Bern, concebido pela conjugação da “forma das letras C e B com a ideia de um livro com as páginas abertas. Houve dois padrões de capa. O vigésimo segundo número foi o divisor de águas. A mudança, porém, foi apenas parcial. A porção de cima manteve-se inalterada, com o símboloda Editora no canto superior esquerdo, ladeado pelo nome da revista, entre duas colunas comtrês e quatro quadrados, respectivamente, que apareceu sempre com a expressão “encontroscom a” em caixa baixa, no topo, e com a expressão “civilização brasileira” em caixa alta,abaixo. O preço apareceu em todos os números, exceto no último, invariavelmente no canto superior direito.” (Couto, 2013, p.76)
Apesar das inovações no tratamento gráfico e editorial, o conteúdo da revista
se mantém muito próximo de temáticas centrais das esquerdas no período pré-1964.
Nesse sentido, a questão democrática – que nesse momento começa a se tornar uma
linguagem dominante em quase todas as variantes das esquerdas brasileiras – divide
espaço com a retomada da reflexão sobre a questão nacional. A “democracia” aparece
no título de 18 artigos publicados em ECB, 12 dos quais escritos por brasileiros, além
de ser o tema principal de alguns outros. Na maioria deles, é da democracia política e
representativa de que se está falando, embora a maior parte dos autores sustente a
necessidade de se conjugá-la com formas diretas de representação das classes
trabalhadoras. Para um estudo aprofundado do tema, é preciso ir além destes artigos,
relacionando-os com os demais conteúdos apresentados na revista. Contudo, numa
primeira aproximação deste objeto é possível trabalhar apenas com este número
reduzido de contribuições.
De partida, pode-se dividir os artigos que têm “democracia” no título em dois
tipos, os nacionais e os internacionais. Enquanto os primeiros são mais heterogêneos,
variando bastante no seu foco e abordagem, os últimos têm uma linha clara que os
unifica – a preocupação com o lugar que a democracia ocupa na teoria marxista.
Crise de democracia Jurgen Habermas Volume 8
Socialismo e democracia: três
artigos sobre a
Tchecoslovaquia
Luigi Longo, Galvano dela
Volpe e Robert Havermann
Volume 15
Base social e papel
revolucionário de uma
democracia de massa
Jean-Louis Moynot Volume 22
Dominação burguesa versus
democracia burguesa (sobre
o caso argentino)
Carlos M. Villas Volume 23
Dossiê três enfoques sobre
socialismo, liberdade e
democracia
Lelio Basso, Elias Chaves Neto
e Manuel Perez Ledesma
Volume 24
Democracia formal e
democracia socialista
Agnes Heller Volume 27
Nos dois casos em que os artigos abordam temáticas relacionadas à
conjuntura política de algum país – no dossiê sobre a Tchecoslováquia e no texto
sobre a Argentina – não se abandona a preocupação entre o casamento de
democracia e marxismo. Nos demais textos, o foco nessa temática é explícito. Trata-
se de saber quais mecanismos e instituições da democracia burguesa podem e devem
ser apropriados pelos socialistas na construção de uma teoria política. Essa
preocupação se origina na crítica dos rumos assumidos pelas experiências socialistas
no leste europeu. A rejeição ao modelo soviético de organização da sociedade
perpassa a reflexão de todos os autores que aparecem na revista, embora nem todos
o critiquem abertamente.
Já os artigos nacionais podem ser subdivididos em três tipos: os que tratam de
aspectos teóricos da democracia, o que abordam itens específicos – como a situação
da mulher ou da saúde – e os que abordam experiências passadas ou de outros
países para falar sobre democracia.
Saúde e democracia Wilson Fadul Volume 3
A democracia como valor
universal
Carlos Nelson Coutinho Volume 9
Estados unidos: sistema
democrático e relações com
o terceiro mundo
Hélio Jaguaribe Volume 10
Tarefa dos intelectuais na
revolução democrática
Florestan Fernandes Volume 14
Cultura e democracia no
Brasil
Carlos Nelson Coutinho Volume 17
A democracia como valor
operário e popular
Adelmo Genro Filho Volume 17
A ideologia autoritária no
discurso democrático: o
direito de greve, a autonomia
sindical e a liberdade de
organização partidária na
constituinte de 1946
João Almino Volume 19
Mulher-Direitos-Democracia ZuleikaAlambert Volume 21
A atualidade da questão
nacional no debate pela
redemocratização do país
Adilson de Oliveira e Luiz
Pinguelli Rosa
Volume 24
Crise da democracia e
abertura no Brasil
Miguel Arraes Volume 29
Populismo, autoritarismo e
democracia, nas presentes
condições brasileiras
Hélio Jaguaribe Volume 29
Semântica e democracia Zulmira Ribeiro Tavares Volume 29
Dentre estes textos, destaca-se a polêmica entre Carlos Nelson Coutinho e
Adelmo Genro Filho, sobre a incorporação da democracia representativa como um
valor no campo da esquerda revolucionária. Enquanto Coutinho concilia teoricamente
o modelo de sociedade socialista com a democracia política, Genro Filho considera
que os verdadeiros avanços democráticos só são possíveis no contexto de mudanças
na estrutura da produção. Nesse sentido, somente a criação de conselhos de fábrica e
de formas diretas de democracia seriam caminhos possíveis para uma mudança
efetiva na vida da classe trabalhadora, sendo a democracia burguesa uma forma de
mais elaborada de legitimação da dominação das elites sobre o povo. De certa
maneira, é possível afirmar que a polêmica retrata as tensões entre uma variante da
esquerda mais radicalizada, oriunda dos enfrentamentos diretos e clandestinos ao
regime autoritário, e outra mais moderada, que aposta na aliança com setores liberais
para superar o autoritarismo encontrando pontos de consenso numa frente ampla.
Cabe, em outra oportunidade, investigar as relações entre esta postura frentista e a
tradição da esquerda pecebista no período democrático 46-64, quando o partido
apostou numa aliança com frações da burguesia nacional como caminho para derrotar
o latifúndio e o imperialismo, identificados como inimigos prioritários.
Ainda no campo das aproximações entre os debates da esquerda pré-64 e as
discussões presentes em ECB, é preciso atentar para o espaço ocupado pela questão
nacional. A articulação desta questão com a defesa da democracia nas páginas da
revista representou a renovação de uma tendência dos anos 50 e 60, qual seja, a
compreensão de que a construção da democracia em uma sociedade periférica exige
a reafirmação da soberania nacional contra os interesses imperialistas. Nesta leitura,
os entraves à democracia num país como o Brasil residiriam justamente na aliança
entre setores da burguesia nacional e o grande capital estrangeiro, cujos interesses
estariam melhor contemplados num regime autoritário, capaz de submeter os
trabalhadores e aumentar as margens de exploração.
Conclusão
Este levantamento inicial com os artigos sobre o tema da democracia na revista
Encontros com a Civilização Brasileira serviu como indicativo da permanência de
certas questões no campo da esquerda. A análise da variedade de narrativas
presentes na publicação aponta para uma significativa heterogeneidade no debate
intelectual que cercou os opositores do regime autoritário. Não obstante, é possível
perceber no periódico uma linha de continuidade com as grandes interpretações do
Brasil que orientaram as formulações políticas do PCB no período 46-64. Nesse
quesito, destacam-se a articulação entre questão nacional e questão democrática e a
defesa do caráter frentista das lutas pela democracia no país. Este primeiro artigo,
ainda um tanto especulativo, busca apontar as linhas para uma agenda de pesquisa
que permita compreender as movimentações das diversas variantes da esquerda
brasileira no processo de incorporação da democracia como uma temática prioritária.
Os estudos no escopo da revista ECB podem contribuir para a rejeição do argumento
comum de que a trajetória das esquerdas brasileiras esteve, pelo menos até a década
de 1970, marcada pelo desprezo à democracia como um valor. Ao buscar suas
referências nos debates anteriores ao autoritarismo, os articulistas de ECB
apresentam a bandeira democrática muito mais como a continuidade de uma tradição
constituída do que uma ruptura completa com os cânones da esquerda pecebista e
petebista dos anos 50. Entretanto, é evidente o diagnóstico acerca da necessidade de
atualização das leituras de então. Aprofundar as análises desta fonte permitirá
identificar com maior precisão quais são os pontos de continuidade e quais aqueles
em que há ruptura em relação ao passado reivindicado na construção de um conceito
próprio de democracia. Em seguida, cabe comparar estas elaborações com outras
narrativas formuladas durante o processo de transição institucional sobre como as
esquerdas devem conceber e defender uma nova institucionalidade democrática. Isso
pode ser feito através do estudo de outros periódicos, como Lua Nova e Novos
Estudos Cebrap, cada um com uma apropriação particular do passado e uma projeção
específica do futuro.
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