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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS - UFAL
CAMPUS SERTÃO – DELMIRO GOUVEIA
CURSO DE LETRAS – LÍNGUA PORTUGUESA
JOEL VIEIRA DA SILVA FILHO
LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: VOZES DESSILENCIADAS DE
GRAÇA GRAÚNA, ELIANE POTIGUARA E DANIEL MUNDURUKU
DELMIRO GOUVEIA – AL
2019
JOEL VIEIRA DA SILVA FILHO
LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: VOZES DESSILENCIADAS DE
GRAÇA GRAÚNA, ELIANE POTIGUARA E DANIEL MUNDURUKU
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), como
requisito final para obtenção do título de licenciado
em Letras – Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Ferreira da Silva
Coorientadora: Prof.ª Me. Cristian Souza de Sales
DELMIRO GOUVEIA – AL
2019
AGRADECIMENTOS
Eu não vivo só, tenho amigos que me ajudam, torcem e rezam por mim. Nem sempre
estão presentes fisicamente, mas para ser amigo não é preciso estar, é preciso ser, e eles são.
Nas palavras que seguem, tentarei agradecer àquelas pessoas que sabem as lutas que Joel
enfrentou na caminhada acadêmica, e das lutas que a pessoa Joel enfrentou/enfrenta na vida.
No mundo das aparências, dos encontros sem afetos, das experiências que só valem se
forem registradas, ter amigos é ter um ombro para chorar e também para sorrir. “Amizade” de
mercado, “amizade” de fachada, “amizade” dos interesses, essas eu não quero. Quero ter
amigos que me digam palavras de afeto, mas que também me digam palavras duras quando eu
precisar, que me orientem quando eu estiver no escuro, mas que também me ouçam quando
meu silêncio falar mais que minhas palavras.
Amigos que fiquem felizes quando eu estiver feliz, que me incentivem a ser melhor e a
não querer apenas receber, mas também a doar. Amigos que riam da minha risada escandalosa
e que me façam rir também, que me ensinem que eu não posso apenas querer tê-los ao meu
lado, mas que eu também preciso ser o lado que os segura quando eles precisarem. Que eu não
seja hipócrita em falar de amizade e, não ser amigo. Na verdade, quero saber amar mais, pois
só amando, não precisarei explicar nada a ninguém, pois, meu amor falará, não por palavras,
mas por minhas ações.
Sendo assim, agradeço primeiramente ao meu melhor amigo, Deus, o autor de tudo e
responsável pela minha vida, a Ele devo tudo, sou fruto do amor e nas estradas da vida sei que
com Ele posso contar sempre. E também a Nossa Senhora, minha mãe e protetora.
Agradeço à minha família, ao meu pai, aos meus irmãos, minhas madrinhas,
meus/minhas tios/tias e especialmente à minha Mãe, Maria Dalva, mulher de fibra, destemida,
que foi impedida de estudar, mas que lutou com garra para que seus três filhos conseguissem
concluir os estudos. Ela lutou, meus irmãos não concluíram o ensino médio por desleixo, e aqui
estou eu, concluindo um curso superior. Ela sabe que eu a amo e agradeço-a por tudo!
À minha amiga Tairla, que desde o ensino fundamental está comigo, mesmo morando
distante nunca me abandona, somos mais que amigos, somos irmãos. A ela, devo muito, por
cada hora conversada no celular e pessoalmente, por cada palavra de amor.
Aos meus amigos da UFAL, estes que conheci na academia e desenvolvi uma relação
de afeto, de companheirismo e de amizade, os membros da turma do fundão: Ábida, Karol,
Luana e Randerson, meu muito obrigado por serem quem são e por não desistirem de mim.
Amo vocês! Deus nos uniu!
Agradeço também às/aos amigas/os Ailton, Breno, Flávia, Giovana e Herlanne por
serem conselheiros nas horas de dúvidas, por me abrigarem no abraço, por cada festinha em
que fomos, pelas conversas, pelos conselhos. Vocês são espetaculares!
Agradeço ainda aos meus professores da UFAL Sertão – em especial à Cristian, Fábia,
Ismar, Lilian Bárbara, Márcio, Murilo e Samuel – por cada aula, por cada fala, por me levarem
a perceber que a docência exige compromisso.
Aos colegas de turma e aos amigos letrandos de outras turmas, pela amizade, pelas
conversas, pelas partilhas, em especial à Viviane, Beto, Nadine, Vanille, Edja, Mariana, Norton,
Totty e Juliana. À Rakel Teodoro, menina amada, obrigado por tudo, você é demais!
Às professoras Nadja Siqueira e Anicéia Ribeiro, professoras minhas no ensino médio,
agradeço por me fazerem gostar das letras. Elas também colaboraram para a formação do
professor que sou hoje.
Ao professor Samuel, pela leitura do trabalho e pelas contribuições. Obrigado pelas
aulas em que problematizamos diversas questões, pelas conversas, pelas partilhas, por me fazer
compreender um pouco sobre a Análise do Discurso.
À professora Fábia Fulni-ô meu eterno agradecimento, por ter sido minha primeira
orientadora, perdoado eu já fui por ter mudado de área, embora ela não vá esquecer nunca.
Obrigado por me proporcionar voos durante minha participação no PIBIC.
Agradeço ainda a cacique Nina por todo apoio e por me conceder a carta de anuência,
permitindo assim que pudesse ter auxílio a Bolsa Permanência do Governo Federal durante a
graduação. Agradeço também a CAPES pelo apoio na participação no PIBIC 2017/2018 e pela
bolsa concedida na Residência Pedagógica.
Aos servidores da UFAL, nas pessoas de Fred e seu Cláudio, por serem tão atenciosos.
Ao professor Márcio, por aceitar ser meu orientador após o término do contrato da
professora Cristian. Obrigado, professor, por ser paciente e incentivador. O homem que exala
literatura em sua fala e que me fez superar o medo das teorias literárias.
Por fim, e não menos importante, agradeço à professora Cristian Sales. Agradeço pela
paciência, pelo apoio, pelas indicações de leituras e eventos, pelo carinho e afeto. Obrigado por
tudo! Sigamos sempre juntos!
Sei que posso crescer ainda mais, mas não sou o mesmo desde quando entrei na UFAL
Campus do Sertão, mudei para melhor. Cometi erros? Sim! Mas eles me ajudaram a crescer.
Com ajuda de muitos, aqui estou. Obrigado!
Não escolhi ser índio, essa é uma condição
que me foi imposta pela divina mão que rege
o universo, mas escolhi ser professor, ou melhor,
confessor dos meus sonhos. Desejo narrá-los
para inspirar outras pessoas a narrarem os seus,
a fim de que o aprendizado ocorra pela palavra e
pelo silêncio.
(Daniel Munduruku, O banquete dos deuses)
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo estudar a literatura produzida pelos escritores indígenas: Graça Graúna,
Eliane Potiguara e Daniel Munduruku, cujo corpus se volta para o olhar de obras desses três escritores,
Terra à vi$ta (1999), Identidade Indígena (2019) e O roubo do fogo (2005), respectivamente, e pretende
perceber como a figura do ser indígena é construída nesses textos. Desse modo, tenciona-se analisar
também a maneira como os escritores representam o sujeito indígena como fruto da memória e da
ancestralidade, e como Graça Graúna, Eliane Potiguara e Daniel Munduruku escrevem embasados na
identidade de seu povo, fazendo, assim, com que suas vozes sejam dessilenciadas, diante de uma
construção colonialista que existiu/existe em nossa sociedade e na literatura. O método de pesquisa
bibliográfica se propôs a discutir sobre a existência de um cânone na literatura brasileira e as
representações que esse cânone produziu acerca do sujeito indígena, como se mostra em três obras
indianistas O Guarani (2012), Iracema (2010) e Ubirajara (2015), do escritor romântico José de
Alencar, para compreender a construção identitária do índio no período da colonização e como essa
representação foi pautada no discurso colonial e estereotipado. Em contraposição a isso, nas obras dos
escritores indígenas, tanto na prosa quanto na poesia a memória e a ancestralidade atuam com grande
frequência, seja na voz coletiva que o eu lírico declama nas poesias de Graúna e Potiguara ou nas
personagens do conto de Munduruku. Assim, evidenciou-se a contra-narrativa produzida pela literatura
indígena e como se forma a produção por parte dos próprios indígenas e não de um outro. Para tanto,
utilizou-se como referencial teórico principal: Bloom (1994), Bhabha (1998), Sommer (2004),
Munduruku (2008), Thiél (2012), Graúna (2012, 2013, 2015), dentre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura indígena. Escritores indígenas. Memória. Ancestralidade.
ABSTRACT
This research aims to study the literature produced by indigenous writers: Graça Graúna, Eliane
Potiguara and Daniel Munduruku, whose corpus turns to the works of these three writers, Terra à vi$ta
(1999), Identidade Indígena (2019) and O roubo do fogo (2005), respectively, and intends to perceive
how the figure of the indigenous being is constructed in these texts. Thus, it also intend to analyze the
way writers represent the indigenous subject as a result of memory and ancestry, and how Graça Graúna,
Eliane Potiguara and Daniel Munduruku write based on the identity of their people, thus making their
voices are desilient in the face of a colonialist construction that existed / exists in our society and in
literature. The bibliographic research method proposed to discuss the existence of a canon in the
Brazilian literature and the representations that this canon produced about the indigenous subject, as
shown in three Indianist works, O Guarani (2012), Iracema (2010) and Ubirajara (2015), by the
romantic writer José de Alencar, to understand the identity construction of the Indian during the
colonization period and how this representation was based on the colonial and stereotyped discourse. By contrast, in the writings of indigenous writers, both in production and in memory, and in the often-
performed ancestry, whether in the collective voice that I choose lyrically in the poetry of Graúna and
Potiguara or in the characters of Munduruku. Thus, there was a counter-narrative used by indigenous
literature and as a production by indigenous people and not by others. To do so, use as main theoretical
reference: Bloom (1994), Bhabha (1998), Sommer (2004), Munduruku (2008), Thiél (2012), Graúna
(2012, 2013, 2015), among others.
KEYWORDS: Indigenous literature. Indigenous writers. Memory. Ancestry.
LISTA DE SIGLAS
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
GRUMIN – Grupo Mulher-Educação Indígena
USP – Universidade de São Paulo
UFSCar – Universidade de São Carlos
SUMÁRIO
1. KATOKINN: MEU LUGAR DE FALA – SAUDAÇÕES INICIAIS ........................ 13
2. REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NO DISCURSO CANÔNICO ............................... 17
2.1 Poder para nomear o autóctone .................................................................................. 17
2.2 Discurso colonial e estereótipo em O Guarani .......................................................... 21
2.3 Iracema: submissão feminina e morte ....................................................................... 27
2.4 Ubirajara: transformações e mito .............................................................................. 31
3. LITERATURAS INDÍGENAS: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO .................. 34
3.1 Da oratura à escritura: ecos da literatura indígena ..................................................... 34
3.2 Uma contra-narrativa ................................................................................................. 41
4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS: MEMÓRIA,
IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE .............................................................................. 44
4.1 Memória e ancestralidade em Terra à vi$ta, de Graça Graúna ................................. 44
4.2 Vozes indígenas dessilenciadas: memória e identidade em Eliane Potiguara ........... 51
4.3 A insurgência do herói indígena em O roubo do fogo, de Daniel Munduruku ......... 58
5. POR ENQUANTO, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: VAMOS AO TERREIRO
DANÇAR O TORÉ? .............................................................................................................. 65
6. REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 68
7. ANEXOS .......................................................................................................................... 72
13
1. KATOKINN: MEU LUGAR DE FALA – SAUDAÇÕES INICIAIS
Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia
22 de abril de 1500 e outra coisa é contar que “o Brasil
foi introduzido de maneira violenta, na cultura
ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...]
(GRAÚNA, 2013, p. 46).
No início deste trabalho monográfico, quero, a priori, saudar os meus ancestrais que
morreram e foram perseguidos desde a colonização, desde o primeiro golpe aplicado aos
indígenas com a chegada dos europeus às Américas. As vozes que foram silenciadas
anteriormente retornam agora, através da minha voz e das vozes dos parentes que lutam por um
espaço que é nosso por direito1.
Este espaço é carregado de memória, ancestralidade e identidade; mecanismos que
fazem com que os indígenas possam voltar a cantar o canto da paz, da esperança. Para mim, é
mais fácil falar do que já aconteceu, pois meu corpo físico não carrega marcas físicas, embora
na minha alma estejam presentes cicatrizes simbólicas. Retornar a campos de sofrimento, de
perseguição, por meio da literatura, faz com que eu me aproxime cada vez mais dos meus
parentes, ancestrais, que lutaram com veemência pelo direito de existir.
Sou indígena Katokinn, comunidade que está situada no município de Pariconha, no
estado de Alagoas, e faz parte de um pequeno grupo de aldeias nordestinas que sobreviveram
ao massacre que começou desde o processo da colonização nas terras brasileiras. A comunidade
Katokinn descende da aldeia Pankararu, que fica localizada no município de Tacaratu, em
Pernambuco, atualmente, o povo Katokinn é estimado em cerca 1.500 indígenas que residem
nas extremidades da aldeia e em povoados vizinhos do município de Pariconha, visto que a
comunidade ainda não possui terra demarcada.
A história de luta e coragem do povo Katokinn é antiga e deriva de gerações. Porém,
apenas em 2003, a aldeia foi reconhecida pela FUNAI e tornou-se devidamente cadastrada.
Desde então, houve uma constante busca por reconhecimento étnico e de espaço na sociedade2.
1 Entre as comunidades indígenas, o termo parente é utilizado para designar uma relação parental ancestral. Assim,
povos de diferentes comunidades tratam-se pelo termo parente, mantendo então uma relação de ancestralidade
preservada. 2A Fundação Nacional do Índio – FUNAI é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Criada por meio da
Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a coordenadora e principal executora
da política indigenista do Governo Federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos
indígenas no Brasil. Cabe à FUNAI promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização
14
Não nasci na comunidade indígena, embora participe dos rituais, das festas da
comunidade. No entanto, pouco ou quase nada eu sabia sobre o processo histórico da minha
comunidade, mal compreendia o que um ritual significava. Eu dançava o Toré, mas não
entendia o que o Toré representava3.
Quando cheguei ao universo acadêmico comecei a pesquisar, produzir ciência e
questionar pressupostos estabelecidos que, certas vezes, são considerados irreparáveis em nossa
sociedade e, por serem irreparáveis, poucos observam e questionam.
Sendo assim, o corpus, aqui em análise, começou a ser desenvolvido em meados da
graduação4. De tal maneira, esta pesquisa surgiu do interesse e da inquietação de problematizar
a figura do sujeito indígena na literatura, para então entender quais os princípios estabelecidos
para representar os povos indígenas. Por outro lado, também proponho, nesta pesquisa,
apresentar a literatura produzida pelo próprio indígena como uma contra-narrativa, uma ação
de resistência, de vozes que, embora proibidas, não ficaram em silêncio.
Antes de ingressar na graduação e até meados dela, minha formação literária era
canônica, em seguida, iniciei meus estudos sobre literatura indígena e a partir de estudos
críticos, entendi que José de Alencar e outros escritores canônicos não representavam meu povo
de maneira inocente. Ao contrário, esses escritores nos colocavam em situação de passividade.
A partir de então, pude entender que, pelo olhar do meu povo, Iracema não é heroína, Peri não
é herói e Ubirajara não é forte e corajoso, os três personagens são um modelo de indígena que
parte de ideias europeizadas e estereotipadas, ainda que façam parte de um modelo criado para
fundar uma nação.
Percebi que a literatura é um espaço no qual a memória e a ancestralidade indígena se
reverberam e que reforça um lugar de pertencimento e de identidade. A necessidade de o
indígena produzir sua própria narrativa e se desvincular do pensamento colonial faz com que
se passe a pensar em uma perspectiva pós-colonial, distante da ideia colonizatória, mas que a
retoma para questionar.
Criei, assim, uma relação afetiva com escritores indígenas, pois dizem muito de mim
enquanto sujeito. Um dos primeiros passos para que eu pudesse compreender a narrativa
fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/index.php/quem-somos. Acesso em 22 de abril de 2019. 3 No decorrer deste trabalho monográfico explicarei ao leitor o que significa o rital do toré, a partir das vozes de
lideranças da minha comunidade. 4 Quando conheci a professora Cristian Sales no 4º semestre do curso, que seria minha orientadora e,
posteriormente, com a sua saída do Campus, tornou-se minha coorientadora.
15
indígena foi o processo de descolonização do pensamento, para entender que as narrativas
indianistas não me representavam, ao contrário, me estereotipavam.
Sendo assim, este trabalho foi construído por meio de diversas leituras de escritores
indígenas, não indígenas e de obras canônicas também, embora este trabalho não tenha por
objetivo central o cânone literário. Penso os escritores indígenas não só como escritores, mas
também como críticos, que problematizam o cânone e o questionam. A literatura indígena
mantém relações com diversas áreas do conhecimento, de tal modo, uso referencial teórico de
áreas não necessariamente literárias, firmando um diálogo possível com a Sociologia, a História
e a Filosofia. Embora sejam áreas específicas, elas mantêm relações afins, assim, descoloco o
objeto de pesquisa do campo específico e faço as teorias conversarem com o campo literário.
Precisei me reterritorializar para construir uma narrativa pessoal; por isso assumo o risco
da voz que dialoga em todo trabalho estar em primeira pessoa, porque assim me sinto, dentro e
fora do texto, mesmo que os rituais acadêmicos rejeitem e me digam que não, eu digo que é
possível. Na verdade, este trabalho é um meio pelo qual me aproximo cada vez mais da minha
ancestralidade, do meu povo. De tal modo, ao escrever este trabalho, assumo meu lugar de
sujeito indígena, pesquisador, estudante e de escrevinhador, assim, ora escrevo na primeira
pessoa do singular, como um ato político e de pertencimento; ora na primeira pessoa do plural
para então representar uma coletividade, uma memória ancestral, como as vozes dos povos
indígenas, insatisfeitos com os ultrajes cometidos contra nosso povo.
Portanto, neste trabalho, busco apresentar a literatura produzida por duas escritoras
indígenas, Graça Graúna e Eliane Potiguara, e pelo o escritor indígena Daniel Munduruku,
como literatura de vozes dessilenciadas5 em meio ao processo colonizatório imposto, que ainda
é repercutido em nosso tempo.
Através das obras das duas escritoras e do escritor indígena, busco perceber como a
memória, a ancestralidade e a identidade são reverberadas em contraposição às narrativas de
José de Alencar que é um escritor canônico. No entanto, vale ressaltar que, neste trabalho, não
quero afirmar que José de Alencar não deve ser lido, pelo contrário, as obras de Alencar
precisam ser constantemente problematizadas, questionadas, debatidas, principalmente as
indianistas.
Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho intitulado de Representação do índio no
discurso canônico tem por objetivo refletir sobre o que é o cânone literário brasileiro, quais as
5 O termo dessilenciamento funciona como a ação de não silenciar, de não ficar calado. Em relação à literatura
indígena, os escritores indígenas são sujeitos dessilenciados, pois, não se calam em meio às representações
atribuídas aos indígenas.
16
suas ideologias e propostas e como esse mecanismo colabora para a perpetuação do discurso
colonial e dos estereótipos que definiram a visão para os povos indígenas na primeira metade
do século XIX. Para tanto, analiso três narrativas alencarianas O Guarani (2012), Iracema
(2010) e Ubirajara (2015)6 para entender como essas obras canônicas representaram o índio
brasileiro. Ressalto que meu objetivo não é recontar essas obras, mas realizar um percurso
crítico em relação ao modo como os personagens indígenas aparecem nessas narrativas. Neste
capítulo, terei como referencial teórico os autores Reis (1992), Bloom (1994), Bhabha (1998),
Sommer (2004), entre outros.
Quanto ao segundo capítulo, intitulado de Literaturas indígenas: um conceito em
construção, abordo o que são as literaturas indígenas (oral e escrita) e reflito como essas
literaturas se inserem na sociedade mesmo sendo denominadas literaturas menores. De tal
modo, apresento também características marcantes das narrativas produzidas pelos escritores
indígenas como textos que são contra-narrativas. Para estabelecer um diálogo teórico, utilizo
autores como Deleuze e Guattari (1975), Thiél (2012), Graúna (2013), Peres (2018), entre
outros.
Já o terceiro e último capítulo, intitulado de Vozes indígenas dessilenciadas e
contemporâneas: memória, identidade e ancestralidade, tem por objetivo apresentar as vozes
de três escritores indígenas que escrevem embasados na memória, na identidade e na
ancestralidade, sendo elas Graça Graúna e Eliane Potiguara e Daniel Munduruku. Assim,
analiso a poesia Terra à vi$ta (1999), de Graça Graúna, a poesia Identidade Indígena (2019),
de Eliane Potiguara e o conto O roubo do fogo (2005), de Daniel Munduruku, para apresentar
como as escritoras e o escritor indígenas se inscrevem no lugar de fala indígena como vozes
dessilenciadas. Meu objetivo, neste capítulo, é também dar presença ao texto de fala indígena,
trazendo vários fragmentos das poesias e do conto. Para embasamento teórico, utilizo autores
como Pollak (1989), Halbwachs (1990), Le Goff (1990), Hall (2006), assim como as vozes dos
próprios autores indígenas Munduruku (2008), Graúna (2012, 2013, 2015), além de entrevistas
dos três escritores.
Como disse anteriormente, eu não sabia o significado do Toré, mas por meio das
lideranças de minha comunidade pude entender e, sendo assim, convido você, leitor(a), no
decorrer desse trabalho, a dançar um toré comigo, dancemos e continuemos juntos.
6 Essas obras foram publicadas em 1857, 1865 e 1874, respectivamente. No entanto, a referência que aparece é a
data da edição do livro em que a leitura fora feita.
17
2. REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NO DISCURSO CANÔNICO
2.1 Poder para nomear o autóctone
O que é problemático, em síntese, é a própria
existência de um cânon, de uma canonização que
reduplica as relações injustas que compartimentam a
sociedade (REIS, 1992, p. 77).
No primeiro capítulo deste trabalho, problematizo a hegemonia do cânone literário
brasileiro. Inicialmente, busco desmistificar o que é o cânone literário e como ele estabelece
poder na sociedade, levando em consideração a ação de denominar o que é e não é bom na
literatura brasileira. Para tanto, a partir de um debate teórico acerca do cânone literário,
identifico o poder que o cânone tem para nomear e representar o autóctone.
O cânone literário brasileiro é entendido como o conjunto de obras e autores que são
referência de leitura e, são dotadas de valores que foram atribuídos a eles em determinada época.
O cânone funciona como uma instituição social, ou seja, institui o que é cânone e normatiza a
língua e os discursos, dando ênfase a uma sociedade letrada e prestigiada. Sendo assim, é
evidente que a literatura brasileira ainda se enquadra no modelo canônico, pois as obras de
destaque dessa literatura são de autores consagrados e que possuem prestígio político e social.
Nas palavras de Reis (1992), a existência de um cânone na literatura é problemática,
pois compartimenta a sociedade em grupos, ou seja, denomina qual grupo é dotado de valor e
qual grupo não se adequa ao molde canônico. O cânone literário além de uma instituição social,
vigora como um mecanismo de negação, pois, existindo, prioriza escritores homens e faz com
que suas produções entrem em ascensão. Poucas mulheres-escritoras aparecem no cânone e
muitas foram/são negadas, embora estejam constantemente atuantes no campo literário7.
Para Roberto Reis (1992), no texto Cânon, o conceito de cânone:
[...] implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se
desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem)
estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus
interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.) (REIS, 1992, p. 70).
7 A negação à mulher como escritora de literatura é constante desde séculos atrás. Inclusive, pouco se fala, porém,
a primeira mulher a publicar um romance no Brasil foi Maria Firmina dos Reis, mulher negra que publicou em
1859 o romance Úrsula.
18
O cânone literário, então, funciona como um mecanismo de seleção e exclusão, por sua
vez, ao passo que prestigia determinadas obras, deprecia outras. De tal forma, o cânone funciona
também como mecanismo de poder. Em Microfísica do poder, Michel Foucault (1979) diz que
“onde há poder, ele se exerce, ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele
sempre se exerce em determinada direção [...] não se sabe ao certo quem o detém, mas se sabe
quem não o possui” (FOUCAULT, 1979, p. 75)8.
O poder exercido pelo cânone é notável e, geralmente, são selecionadas ao grupo
escritores que possuem relações próximas com a elite da sociedade brasileira e também que
possuíram com a monarquia, ou seja, escritores que detinham/detém poder social e político.
Debatendo sobre o poder na perspectiva literária, Márcia Abreu (2006), em Cultura
Letrada: literatura e leitura, menciona que o que faz uma obra ser considerada canônica e
detentora de poder “na maior parte das vezes, não são critérios linguísticos, textuais ou estéticos
[...] mas o poder e a autoridade exercida pelos escritores que possuem “posições políticas e
sociais” (ABREU, 2006, p. 39, grifos da autora).
Estas posições políticas e sociais que os escritores canônicos possuem são fatores
determinantes. Em relação à representação do autóctone9 na literatura brasileira, a posição
político-social que José de Alencar possuiu, por exemplo, facilitou a ascensão da proposta
indianista em suas ficções.
Os princípios do cânone validam a proposta de Alencar e o índio no cânone literário
brasileiro é criado a partir da perspectiva alencariana, sob o viés ideológico do ocidente, de
modo a fundar uma nação, como sujeito que está em constante relação com o homem branco.
O estereótipo nas narrativas de Alencar existe de modo a representar os princípios do
Romantismo10. A perspectiva romântica propõe a criação do índio de maneira servil, o índio do
descobrimento, seguindo os modelos da estética.
Para Sommer (2004), os romances indianistas de José de Alencar são considerados
ficções de fundação. Essas ficções de fundação literárias brasileiras criaram o autóctone por
meio do poder e da autoridade canônica11, sendo assim, perspectivas desse movimento estético
aparecem com constância no modo de narrar dos escritores.
8 Embora Foucault esteja situado no campo filosófico, suas contribuições são pertinentes para deslocarmos e
trazermos ao campo literário. Sendo assim, a conversa entre Filosofia e Literatura é de grande valia. 9 O autóctone é aquele que é natural da terra, nativo. No contexto brasileiro, o indígena. 10 A partir de Benedito Nunes (2008) é possível entender que o Romantismo rompeu com os padrões do gosto
clássico, foi um movimento contrário ao neoclassicismo iluminista e fundiu-se à características filosóficas,
estéticas e religiosas, vinculando-se principalmente a tradições nacionais. 11 As ficções de fundação são as narrativas que apresentam a fundação de uma nação, de um povo.
19
A autoridade canônica descende desde a etimologia da palavra que provém do grego
kanon e “entrou para as línguas românicas com o sentido de “norma” ou “lei” (REIS, 1992, p.
69). Assim, o cânone exerce poder de medir e validar e é formado pelas obras de grandes
autores, dotados de prestígio social e intelectual, definidos por uma comunidade específica.
Nesse sentido, as obras que foram/são produzidas nas/pelas margens, não ganham a
atenção merecida pelo cânone. O poder canônico bloqueia a emergência de autores
considerados periféricos, porém, há uma ação essencial na desconstrução desse bloqueio; a
resistência, enquanto categoria de luta, funciona como um mecanismo que em meio aos
bloqueios do cânone produz efeitos de questionamentos e busca fazer com que o colonizado
fale por si, e problematize a voz do colonizador.
Sendo assim, enquanto Reis (1992) critica e diz que é problemático a existência de um
cânone literário, visando descontruir a ideia canônica, em outra perspectiva, Harold Bloom
(1994) confirma a existência de tal mecanismo e de certo modo chega a criticar em O cânone
Ocidental, mas também a defendê-lo. Bloom problematiza a ideia de cânone, tece críticas ao
modelo canônico, no entanto, diz que a literatura ocidental é o centro para formação das
identidades letradas, e, embora realize críticas ao cânone, analisa em sua obra, apenas obras de
escritores canônicos do ocidente. De tal modo, pode-se compreender que a construção do
Ocidente é baseada em perspectivas econômicas, políticas e sociais.
Ao reforçar a existência do cânone na sociedade mundial, Bloom (1994) diz que o
cânone parte de uma ideologia, esta que é considerada suprema e dotada de valor. O cânone
literário então, seleciona obras e faz com que as demais expressões, das consideradas periferias
não sejam atendidas ou mencionadas, pois, funciona como um projeto político de poder. Devido
ao poder e a ideologia, quando o índio aparece na literatura canônica, ele é contado a partir da
voz do colonizador.
Nessa perspectiva, Reis (1992) diz que:
Ao olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental percebemos de
imediato a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais do cânon
literário. Entre as obras-primas que compõem o acervo literário da chamada
“civilização” não estão representadas outras culturas (isto é, africanas,
asiáticas, indígenas, muçulmanas), pois o cânon com que usualmente lidamos
está centrado no Ocidente e foi erigido no Ocidente, o que significa, por um
lado, louvar um tipo de cultura assentada na escrita e no alfabeto (ignorando
os agrupamentos sociais organizados em torno da oralidade) [...] (REIS,
1992, p. 72).
Os cânones literários foram construídos através de muito silenciamento, ou seja, para
que um pudesse falar, outros precisaram silenciar, porém, é perceptível que, mesmo exercendo
20
tamanho poder em diversas sociedades, há cânones que se tornam margem para o cânone
Ocidental.
Com isso, entendo que a Literatura transgride o real e ao realizar essa transgressão cria
o texto ficcional; desse modo, sendo o cânone literário produto da ficcionalidade, é também um
mecanismo que seleciona obras e autores, que possui poder. Assim, na literatura brasileira, o
autóctone foi representado por meio de perspectivas ocidentais. A representação ficcional do
índio na literatura brasileira, embora parta de um ato de fingir, não nasce de modo inocente,
pois a ficção em Alencar nasce também do desejo de se construir a identidade de uma nação,
de um povo. E para tal ação, a figura representada do índio serviu de pano para isso, ainda que
tenha sido em perspectivas estereotipadas.
Em O local da cultura, para problematizar a ideia de estereótipo, Homi Bhabha (1998)
diz que:
[...] de forma bem preliminar, o estereótipo é um modo de representação
complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que
é afirmativo, exigindo não apenas que ampliemos nossos objetivos críticos e
políticos mas que mudemos o próprio objeto da análise (BHABHA, 1998, p.
110).
Desse modo, observo que para os defensores do cânone, por exemplo, Bloom (1994), o
cânone já estabeleceu propostas consideradas adequadas, sendo propagadas pelo discurso
colonial, discurso este que, para Bhabha (1998), é aquele que nasce das elites que colonizaram
povos e os colocaram em situação de passividade e subalternidade. De tal forma, criaram esses
sujeitos como se fossem um outro, fugindo de suas singularidades e reverberando discursos
outros.
Sendo assim, levando em consideração a discussão de Bhabha (1998, p. 111), “o
objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos
degenerados [...] e estabelecer sistemas de administração e instrução”. Com isso, estando o
discurso colonial em relação com o estereótipo, o outro não tem espaço para se autorrepresentar,
mas, há sempre um outro falando por ele, por esse outro.
21
2.2 Discurso colonial e estereótipo em O Guarani
[...] O índio era uma figura para o uso de textos
estrangeiros, que deveriam servir nem tanto como
modelos, mas como ingredientes (SOMMER, 2004, p.
165).
Sujeitos que serviam de ingredientes. A literatura brasileira colaborou para que o índio
aparecesse nas narrativas como um objeto de formação nacional. O modelo de brasilidade e
nacionalidade que aparecem nas narrativas alencarianas apresentam um índio servil, submisso
e europeizado. Peri, Iracema e Ubirajara, três ingredientes idealizados, três sujeitos que são
tidos como heróis, heróis por abandonarem suas famílias, desprezarem seu povo e lutar para ser
mais poderoso que seus parentes12.
A conhecida tríade indianista de José de Alencar – O Guarani (2012), Iracema (2010)
e Ubirajara (2015) – são modelos para debates sobre a formação da identidade nacional
brasileira. No entanto, essas narrativas são carregadas de estereótipos e delas emanam discursos
coloniais. Sendo assim, este subtópico tem por objetivo debater acerca das marcas de
estereótipos presente em O Guarani, obra em que Peri é colocado como sujeito subserviente ao
colonizador.
É importante destacar que as obras indianistas de José de Alencar estão presentes no
cânone, com isso, são referências na historiografia literária do Brasil. O poder canônico que
Alencar possui faz dele um escritor certas vezes inquestionável, fruto da ideologia dominante.
No entanto, questionar as propostas de Alencar é um dos meus objetivos. O discurso colonial
presente em suas narrativas coloca os índios como sujeitos desprezíveis e selvagens.
Esse autor faz parte da primeira fase do Romantismo brasileiro. José Martiniano de
Alencar nasceu em Messejana no Ceará em 1829, é considerado um dos grandes autores do
Romantismo brasileiro, pois trouxe para a prosa brasileira traços próprios, locais, traços com
ritmos do Brasil; desse modo, por ser um escritor de prestígio (eleito pelo cânone), Alencar
desponta como um mártir da literatura brasileira13.
Na obra Ficções de fundação: os romances nacionais da América latina, Doris Sommer
(2004) demonstra como as narrativas literárias tornam-se ficções de fundação, ou seja, como
12 É bom deixar claro que o emprego dos termo “heróis” parte da estética romântica, pois, Peri, Iracema e Ubirajara
não foram heróis, ao contrário, foram sujeitos construídos em perspectivas de submissão. 13 Publicou diversas obras, em prosa e poesia, mas, ganhou destaque com a publicação de seus romances,
conhecidos por romances históricos, regionais, urbanos e indianistas.
22
apontam o nascimento de um povo. Analisando as ficções de Alencar, Sommer (2004) aponta
que os índios brasileiros serviram de ingredientes para a formação da identidade nacional
brasileira e, neste caso, atuaram como sujeitos brasileiros, mas, como sujeitos possuidores de
diversas caraterísticas europeias, que cada vez mais deveriam se europeizar.
Alencar foi um escritor nacionalista, de tal modo, o “nacionalismo, na literatura
brasileira, consistiu basicamente [...] em escrever sobre coisas locais: no romance, a
consequência imediata e salutar foi à descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil
(CANDIDO, 2000, p. 99). Sendo o nacionalismo um meio pelo qual a construção da identidade
nacional iria se formando, os costumes e fatos do Brasil eram postos nas narrativas, mesmo que
de um modo estereotipado, como foi o caso do índio em Alencar. Inclusive:
Tanto nos romances nativistas (O Guarani, Iracema, Ubirajara) como
naqueles em que o bom selvagem se desdobra em heróis regionais (O Gaúcho,
O Sertanejo), o selo da nobreza é dado pelas forças do sangue que o autor
reconhece e respeita igualmente na estirpe dos colonizadores brancos. Ao
heroísmo de Peri não deixa de apor a sobranceria de Dom Antônio de Mariz e
sua esposa, os castelões impávidos de O Guarani (BOSI, 2006, p. 145).
O sangue indígena nas narrativas é de guerreiro, embora seja também de selvagem, no
entanto, como propõe Bosi (2006), o heroísmo do índio é visto no ato de ser um bom selvagem,
mas sabendo que o colonizador é o sujeito que o garante sobranceira. Assim, os índios aparecem
na tríade indianista como elementos que formariam uma identidade tropical brasileira e o
colonizador como sujeito que os ajudaria na construção do seu caráter.
A representação dos índios em Alencar parte de um lugar que não vê um caráter sólido
nesses sujeitos, assim, tanto Iracema, quanto Peri, embora heroína e herói, são representados
como seres desprovidos de caráter, são selvagens que estão para ser moldados pelo colonizador
europeu, seguindo as perspectivas do Romantismo. É importante perceber que a estética
romântica e a Literatura como um todo que podem ser utilizadas como instrumento de
dominação para aqueles que estão à margem da sociedade.
O índio é visto como selvagem em ambas as narrativas indianistas e ganha notoriedade
na trama por meio de perspectivas de negação e inferioridade. No entanto, o índio não precisa
do colonizador para se narrar sua história, ao passo que o colonizador usa o índio para
comprovar o sucesso da colonização. Em O Guarani, por exemplo, a personagem Isabel sente
total desprezo por Peri. Essa personagem representa o não aceitamento da mestiçagem entre
Peri e Ceci e, embora o índio passe por um processo de branqueamento constante ele continua
negado. A ideologia da branquitude surge como uma categoria de aceitação e apropriação
23
cultural, pois, para se tornar um bom selvagem, o indígena precisa embranquecer-se nos
costumes e apropriar-se (por obrigação) da cultura do colonizador.
Mesmo apropriando-se dos costumes do colonizador, o índio continua como sujeito
desprezível, como no fragmento a seguir, podemos notar ainda a repulsa que Isabel,
representando o colonizador, sente pelo índio:
— Prima, disse a moça com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito
injustamente esse pobre índio que não te fez mal algum. — Ora, Cecília, como
queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue
vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou
um cão? Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga, que a
filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente. — Isabel! ... exclamou
ela ressentida (ALENCAR, 2012, p. 29, grifos meus).
Peri é negado constantemente por ser índio e, automaticamente, torna-se um selvagem,
a pele escura é defeito e o sangue vermelho também, pois, pensava-se que português detinha o
sangue azul. Então, o personagem Peri, ao passo que mais se aproxima de Ceci, precisa
abandonar o que o torna selvagem, o processo de branqueamento começa a ocorrer, ou seja, ele
será moldado para tornar-se um cavalheiro e para isso, precisará abandonar suas raízes. Logo:
A partir do contato com a família de D. Antônio e do amor que começa a
nascer entre ele e Ceci, Peri passa por várias etapas em que cada vez mais se
aproxima do ideal europeu de heroísmo e cavalheirismo. Para merecer a filha
de D. Antônio, é preciso que se transforme no estereótipo do cavalheiro
medieval, através da conversão ao cristianismo (CUNHA, 2007, p. 53).
O contato com a família portuguesa faz com que Peri reprima suas origens. A paixão do
índio pela moça branca o torna cego. Com isso, vai sendo construída uma perspectiva de
selvagem em Peri, pois o narrador o faz abandonar a família para prestar serviços a Antônio de
Mariz. Aos poucos o índio vai ganhando os contornos do cavalheiro medieval do qual fala
Cunha (2007).
Peri ganhava contornos de cavalheiro, porém, não passava de um vassalo, tanto de Ceci,
quanto de Antônio de Mariz. E, sendo assim, mesmo “com toda a falsidade pouco convincente
do seu indigenismo romântico, o fato é que o povo não os acha falsos, ama-os e os aceita como
perfeitos (SOMMER, 2004, p. 168).
Em O Guarani e Iracema, Alencar propôs a imagem do índio como um sujeito que está
em constante relação com o homem branco, diferente de Ubirajara em que não há a presença
do colonizador. A construção do personagem principal, Peri, acontece de forma estereotipada,
ele é o bom selvagem, ou seja, ao mesmo tempo que é bom, não passa de um selvagem, de um
animal. Peri é um selvagem, mas, segundo o colonizador, apresenta algumas qualidades.
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Apontando como protagonista da narrativa, Peri consegue o feito de ser denominado
herói, protagonista, selvagem, bárbaro e animal em toda a narrativa. Vários adjetivos tecem o
índio personagem e ele mantém fiel proteção a Ceci, sua amada, a quem Sommer (2004, p. 168)
diz que ele “voluntariamente se escraviza”.
A narrativa de Alencar subjetifica o índio, aponta-o como ser frágil e que embora possua
competências, precisa de conversão. A visão que se tem de Peri provém do discurso colonial,
que cria uma fantasia de determinado sujeito, ou seja, uma visão carregada de estereótipos. Isso
por que “os índios – as índias, em especial – são lembrados com afeto pela atenção que deram
aos conquistadores” (SOMMER, 2004, p. 182), isso é notável tanto em Peri para com Ceci,
quanto em Iracema para com Martim.
A proposta narrativa de Alencar trata-se, então, de uma representação, possuidora de
uma originalidade colonial. São textos ficcionais, porém embasados em doses de realidade,
pois, segundo Iser (2002, p. 958), “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser
identificável como realidade social, mas que também pode ser da ordem sentimental e
emocional”.
Assim, essa ficcionalidade nos textos de Alencar bebe das emoções, dos sentimentos,
dos instintos do índio brasileiro, que começaram a ser representados desde a Carta de Caminha,
quando os índios são postos como selvagens pois “andavam nus, sem coberta alguma. [E] não
faz[iam] o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas [...]” (CAMINHA, 1997, p.
14, inserção minha).
No entanto, tendo-se em mente que Peri é um herói, ele vai se reconfigurando enquanto
sujeito índio, pois abandona sua família e corre risco de vida para salvar Ceci e sua família, por
esse motivo:
Apesar do enaltecimento de Peri, a valorização do indígena é bastante
contraditória na obra, pois ele só passa a ser reconhecido quando se submete
à cultura do colonizador. Esse aspecto é confirmado pela visão negativa que é
apresentada sobre os Aimorés (CUNHA, 2007, p. 53).
Peri só ganha destaque na obra por se submeter ao colonizador, se o índio não prestasse
serviço digno a Ceci e ao pai da moça seria mais selvagem do que é considerado durante toda
a narrativa. O heroísmo do personagem está em se submeter constantemente ao homem branco.
Sobre os Aimorés – a tribo vingativa – a construção desses índios dá-se por aspectos de
eliminação, por ser uma tribo canibal, são vistos como raça a ser extinta. Quando o filho do
colonizador mata a índia aimoré a subserviência do índio aumenta, pois, agora, a tribo quer
25
vingança e Peri precisa mais do que nunca proteger Ceci. No fragmento exposto a seguir, vemos
como os aimorés são pensados pelos colonizadores, vistos como inimigos a serem combatidos:
— Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem... — Sei o
que queres dizer; não partilho essas ideias que vogam entre os meus
companheiros; para mim, os índios quando nos atacam, são inimigos que
devemos combater; quando nos respeitam são vassalos de uma terra que
conquistamos, mas são homens! (ALENCAR, 2012, p. 32, grifos meus).
A partir dos debates de Reis (1992) e Bhabha (1998), é possível entender que o discurso
canônico acompanhando do discurso colonial impede que Peri figure na narrativa como um
sujeito que luta pelo seu povo e defende seus parentes. Peri abandona sua família para
demonstrar o amor pela nação e, como bom brasileiro, iria ajudar os descobridores das terras
em que ele morava. O índio demonstra coragem, fidelidade, mas abandona o seu povo, então
surge a negação, Peri não domina seus instintos, e como apresentado em vários fragmentos da
narrativa, é um selvagem.
Sendo assim:
A aparente igualdade entre brancos dominantes e uma raça subalterna,
entre Peri e Ceci, somente é possível porque Peri escolhe se embranquecer.
Um traidor de sua própria tribo, como foi Iracema, o novo cristão sobrevive
e fica com sua namorada porque luta contra os maus índios pagãos
(SOMMER, 2004, p. 190).
Peri vai se embranquecendo, abandona sua família e segue com os portugueses. A
proposta do discurso canônico e colonial é apontar o colonizador como sujeito bom e o índio
como sujeito que está em constante processo de moldagem. Inclusive, por Ceci, Peri tornou-se
até cristão. Faz parte da tendência romântica colocar os sujeitos no mesmo patamar, ou seja,
torná-lo cristão, embranquecê-lo etc.
Em meados da narrativa, Antônio de Mariz reconhece o cavalheirismo de Peri, porém
continua com os mesmos aspectos de negação, é um cavalheiro português em suas atitudes, é
prestativo e corajoso, mas não passa de um selvagem. Por mais que Peri fosse aceito por todos
na casa do colonizador, ele nunca passaria de um selvagem que lhes prestava auxílios, como
vemos no trecho exposto a seguir:
— Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por
Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas
mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o
primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um
só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro
português no corpo de um selvagem! (ALENCAR, 2012, p. 40, grifos
meus).
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Peri, um índio submisso. Modelo de heroísmo? – Por ser selvagem? – Sim – Peri não
passa de um selvagem, não passa de um fantoche nas mãos dos colonizadores, não passa de um
animal selvagem, Peri foi usado na narrativa, Peri representa os povos indígenas brasileiros de
modo avesso, sua coragem é louvável, mas para a ação empregada, não.
27
2.3 Iracema: submissão feminina e morte
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante,
que ressoa entre o marulho das vagas: — Iracema! O
moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos
presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar
empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde
folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de
seu infortúnio (ALENCAR, 2010, 11).
Em 1865, oito após a publicação do romance que inaugurou a prosa indianista no Brasil,
Alencar publicou o romance Iracema (2010), seu segundo romance indianista. Desta vez, há a
presença da figura da mulher indígena como protagonista, se Peri foi um herói, Iracema chega
para tornar-se a heroína que dá origem a um povo.
Com isso, neste subtópico, discuto a construção da personagem Iracema, uma mulher
indígena considerada bela, que possuía um segredo. Destaco as características que levam a
personagem à submissão e à fragilidade, quando quebra o segredo que guardava.
Na narrativa indianista, o índio aparece como coadjuvante, embora se diga que são
protagonistas. O protagonismo citado nas narrativas alencarianas é apresentado por meio da
submissão, da objetificação e da identificação como ser selvagem, incompreendido e não
civilizado e, assim, “o colonizador inventa o índio, rotulado por um discurso homogeneizador,
que ainda persiste no século XXI” (THIÉL, 2012, p. 18). De tal modo, esse discurso
homogeneizador, embora queira misturar todas as raças, sempre tende a excluir os povos negros
e indígenas.
Para Thiél (2012), o discurso colonizador aponta que o nativo é uma nova espécie, uma
folha em branco que ao ser descoberta terá que ser domesticada aos moldes do costume europeu.
A folha em branco seria escrita aos gostos do colonizador, e isso pode ser visto nas obras
indianistas, pois, mesmo que o índio possua coragem, bravura e beleza, quem o domina, quem
o rege é o colonizador. Sendo o discurso colonial um mecanismo que produz uma realidade
diferente de um outro, ele é também dotado de poder.
No romance Iracema, a personagem fabrica uma bebida que fortalece os guerreiros de
sua tribo. De tal modo, ela não pode ter relações sexuais antes que passe o segredo para outra
índia virgem. No decorrer da narrativa, a personagem ganha contornos diferentes, quando chega
às terras dos tabajaras o homem branco colonizador, o personagem Martim.
A presença de Martim na narrativa demonstra a entrada sem permissão do colonizador
nas terras indígenas, porém, nota-se a servidão dos índios para com o colonizador, pois, quando
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Iracema acerta a flechada em Martim, ele é, em seguida, levado para a cabana de Araquém, e
lá recebe todos os cuidados. Iracema passará servir a Martim, e sua tribo também prestará
serviço a esse moço, ou seja, a tribo em geral, estava submissa ao colonizador.
Assim como em O Guarani, em Iracema é constante a presença de estereótipos e, como
já dito a partir de Bhabha (1998), o estereótipo é um modo de representar um outro por meio
de perspectivas complexas, ambivalentes e contraditórias. Um outro vai criando o eu indígena,
colocando-o como sujeito a ser modelado, de modo superficial e contraditório.
A narrativa alencariana propôs uma homogeneização cultural entre brancos
colonizadores e indígenas, porém, “povos e povos indígenas desapareceram da face da terra
como consequência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de
sociedades do Antigo e do Novo Mundo (CUNHA, 2012, p. 14).
Esse encontro comentado por Cunha (1992) provoca um fracionamento étnico, que
levou os povos indígenas a viverem separados, em situação diaspórica. O encontro entre
indígenas e brancos causou prejuízos apenas aos indígenas, pois a proposta central “era à
eliminação física e étnica dos índios” (CUNHA, 2012, p. 14), a eliminação desses povos como
sujeitos históricos. De tal modo, nota-se muito dessa eliminação em Iracema, como vemos no
fragmento a seguir, em que Iracema, prestes a morrer, sofre abandonada e sozinha com o filho:
Iracema curte dor, como nunca sentiu; parece que lhe exaurem a vida; mas
os seios vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue
de que se formou, esguicha. A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia
de júbilo mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor,
nascido dela e também nutrido. A filha de Araquém sentiu afinal que suas
veias se estancavam; e contudo o lábio amargo de tristeza recusava o alimento
que devia restaurar-lhe as forças. O gemido e o suspiro tinham crestado com
o sorriso e o sabor em sua boca formosa (ALENCAR, 2010, p. 98, grifos
meus).
Retomando o diálogo com Bhabha (1998), é possível compreender que há nas narrativas
indianistas representações que partem do discurso colonial, e as imagens produzidas em
Iracema e O Guarani, partem de uma representação pautada na subserviência ao homem
branco, no qual o índio é capaz de abandonar sua família e seu povo para servir ao colonizador,
pois:
A História contada pelo colonizador europeu e a identidade indígena
construída pelo outro, indicam que a visão que prevalece é de que há uma
grande narrativa colonizadora e civilizadora. Esta prevalece sobre as demais
e, por seu poder de narrar e divulgar suas narrativas, apaga as narrativas
paralelas que apresentam versões diferentes da História (THIÉL, 2012, p. 33).
29
Na colonização, o Brasil era composto por diversos povos, de diferentes costumes. No
entanto, as narrativas indianistas propõem apenas uma imagem de índio subserviente e, mesmo
que haja outras manifestações, a ideia de índio válida é a proposta pelo colonizador. Com isso,
cria-se uma identidade indígena ficcional em bases de negação da cultura, mas que é muito
conhecida, propagada e ensinada, pois foram denominados pelo cânone, que exerce tamanha
relevância na sociedade.
O romance vai se desenvolvendo e a personagem vai despontando como uma índia
frágil, quase submissa. Mesmo sabendo que ela guardava o segredo da Jurema, Martim poderia
ficar com qualquer índia da tribo, mas, preferiu Iracema. A personagem vai ganhando contornos
de uma índia sem escrúpulos, que não consegue conter seus desejos, uma índia submissa que
despreza seu povo.
No fragmento extraído da narrativa, pode-se perceber que Martim deseja Iracema e a
partir de então ela vai começando a pensar em entregar-se a ele:
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém,
e os guerreiros vindos para obedecer-lhe. — Guerreiro branco, disse a virgem,
o prazer embale tua rede durante a noite; e o sol traga luz a teus olhos, alegria
à tua alma. E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a
pálpebra. — Tu me deixas? perguntou Martim. — As mais belas mulheres,
da grande taba contigo ficam. — Para elas a filha de Araquém não devia ter
conduzido o hóspede à cabana do Pajé. — Estrangeiro, Iracema não pode ser
tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua
mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã (ALENCAR, 2010, p. 18, grifos
meus).
O colonizador, mesmo sabendo que Iracema guardava o segredo da Jurema, a provoca
e acaba por deitar-se com ela, a índia cede a bebida e quebra o segredo da jurema, o que a faz
engravidar e dar à luz a uma criança que foi denominado como o primeiro habitante de uma
terra. Martim abandona Iracema sozinha com a Jandaia no meio da selva, já que ela fora expulsa
da tribo. Ele sai em expedição, quando volta, Iracema já está sem forças, prestes a morrer:
O cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre os ramos das árvores,
seus olhos viram, sentada à porta da cabana, Iracema com o filho no regaço
e o cão a brincar. Seu coração o arrastou de um ímpeto, e toda a alma lhe
estalou nos lábios: — Iracema! ... A triste esposa e mãe soabriu os olhos,
ouvindo a voz amada. Com esforço grande, pôde erguer o filho nos braços e
apresentá-lo ao pai, que o olhava extático em seu amor. — Recebe o filho de
teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento
para dar-lhe! Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe
desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como
a dor tinha murchado seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela,
como o perfume na flor caída do manacá (ALENCAR, 2010, p. 100, grifos
meus).
30
A personagem morre para dar origem a um povo, no entanto, apenas ela morre, quase
abandonada, enquanto o colonizador vai embora com o filho. Percebo então a construção do
sujeito indígena na narrativa de Alencar, apenas a índia sofre, só ela morre para fazer o
colonizador feliz. O índio nas narrativas indianistas de Alencar é moralmente frágil, pois
embora possua costumes e crenças, se necessário, abandona tudo para servir ao colonizador.
Peri deixou a família para servir a Ceci, Iracema abandona seu povo para satisfazer Martim.
O estereótipo presente nessas duas narrativas indianistas enfatiza que o índio é fraco e
não consegue resistir aos encantos do colonizador, mas, ao contrário, busca satisfazê-lo. A
proposta de Alencar é modelo para muitos, e assim “o discurso eurocêntrico constrói o
silenciamento do índio” (THIÉL, 2012, p. 39), porém essas imagens precisam ser repensadas,
revistas, uma vez que índio é bem mais que a visão estereotipada do colonizador.
A obra é aberta com a saída de Martim com seu filho para Portugal, após desbravar os
verdes mares onde canta a jandaia, após seduzir Iracema e engravidá-la e após abandoná-la para
sair em expedição – o que causa a morte – o colonizador parte feliz com o fruto de duas nações.
A índia deu origem a um novo povo.
Porém, tanto Peri quanto Iracema passaram por mortes, física e moral. Com isso, vale
destacar que “[...] a morte de Iracema e o branqueamento de Peri são indícios da futura
dizimação dos povos e culturas indígenas. Nessa união, o elemento colonizador é aquele que
impõe o padrão racial e civilizatório (CUNHA, 2007, p. 54). O padrão imposto leva os
personagens indígenas a fins desprezíveis.
Se em O Guarani e Iracema o colonizador é fator essencial para o desenvolvimento da
narrativa, por que em Ubirajara o autor não usou desse mecanismo? Veremos a seguir a
construção do mito nessa obra que fechou a tríade indianista de Alencar.
31
2.4 Ubirajara: transformações e mito
Da famosa tríade indianista de Alencar, a última obra a ser publica foi Ubirajara (2015).
Diferente de O Guarani, em que Alencar apresenta a junção do Velho mundo ao Novo mundo
através dos personagens Peri e Ceci, e diferente também de Iracema em que a figura do homem
branco (Portugal) chega ao Brasil (América) e provoca o nascimento de uma raça, em Ubirajara
não há a presença do colonizador.
O romance se passa antes da chegada dos colonizadores, mais precisamente em 1478,
no século XV, período conhecido como pré-cabralino. A narrativa, como o próprio Alencar fala
na advertência de abertura é irmã da obra Iracema.
Em Ubirajara não há a presença do colonizador, o romance se passa nas terras virgens
e inexploradas do Brasil, em que Alencar propôs a imagem de um herói mítico, a narrativa não
é um romance de fundação, assim como O Guarani e Ubirajara, ao contrário, apresenta o índio
como sujeito que ainda não foi corrompido. Seria então necessário pensar; Alencar fecha a
tríade indianista apresentando o lado bom dos índios brasileiros, sem estereotipá-los?
A partir disso, este subtópico tem por objetivo debater acerca do romance Ubirajara,
para entendermos a proposta de Alencar ao apresentar uma narrativa indianista sem a presença
do colonizador, porém, que vê um índio que precisa se transformar constantemente para ser
aceito em meio aos seus próprios parentes.
O romance Ubirajara está organizado em nove capítulos e conta a história de Jaguarê,
um índio caçador que almeja ser guerreiro. Na narrativa, o personagem tido como herói terá
que se adequar às determinadas situações para ser posto em local de destaque. Se nas narrativas
indianistas anteriores o índio servia ao homem branco, em Ubirajara o índio possui uma
vontade enorme de conseguir notoriedade.
Porém, Alencar era muito próximo à coroa portuguesa, então, porque ele não apresenta
a coroa na imagem do português nesse romance final? Vejamos quais os motivos para tal
proposta de Alencar:
Dois fatos são de destaque para a compreensão do que se processou nesse
outro momento da vida do autor: primeiro, em 1870, abandona a carreira
política como reação ao sentimento de mágoa que cultivou ao longo dos anos
pelo imperador D. Pedro II e, posteriormente, vítima de tuberculose, sofre os
abalos intensos da doença, na época incurável, que o faria leiloar todos os seus
bens para ir a Europa no ano de 1876, em busca de tratamento médico
(OLIVEIRA, 2010, s/p).
32
Em Ubirajara o índio não está em relação com o homem branco; se nos primeiros
romances indianistas, o colonizador foi exaltado, como sujeito que é bom, no último romance
ele não ganha destaque, mas vale mencionar que também não é criticado.
Percebo então que a construção da narrativa alencariana sem a presença do colonizador
traz um índio menos imaturo, mas ainda com pouco caráter e continua selvagem assim como
nos romances de fundação.
Para Alencar, no romance em tela, há o uso constante de diversas notas de rodapé, pois
é através delas que ele explica melhor algumas ações das personagens e a significação de termos
específicos. Nesta narrativa indianista em que não há a presença do colonizador, há a presença
de índios que querem sobressair sobre os demais índios, demonstrando que este sujeito não vive
na coletividade, busca reconhecimento apenas para si. O indianismo de Alencar parte um lugar
idealizado e estereotipado. O mítico, o selvagem, as paixões propostas nas narrativas exprimem
um índio não muito maduro e ainda refém de seus desejos. O índio aparece como ser forte em
coragem, mas frágil em caráter.
No desenvolver da narrativa, Jandira, índia da tribo que Ubirajara vivia, esperava que
ele a escolhesse como sua esposa, porém, ele estava encantado em Araci, a virgem da tribo
tocantim. Assim como Iracema estava prometida a Irapuã, Jandira estava a Ubirajara (Jaguarê),
mas ambos preferem se apaixonar pelo desconhecido. Iracema pelo colonizador e Ubirajara
pela índia da tribo inimiga. Jaguarê lutará para se tornar guerreiro, no entanto, percebe-se
apaixonado por Araci, mesmo possuindo Jandira:
- Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe
guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Ele vem combater e
ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna à taba
dos tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê,
o mais destemido dos caçadores araguaias, os desafia ao combate
(ALENCAR, 2015, p. 15, grifos meus).
Sendo assim, é notável que em Ubirajara (2015) o personagem principal passa por
diversas transformações durante a narrativa, ele vai adaptando-se às situações em que percorre,
desde quando se torna o grande guerreiro, na luta por Araci, até o desfecho da história.
Como índio herói estereotipado, Ubirajara passa por mortes durante a construção do seu
personagem. Não mortes físicas, mas mortes de caráter e adequação. Quando muda de Jaguarê
para Ubirajara, depois para Jurandir e depois volta a ser Ubirajara.
Para poder combater com os guerreiros pela índia Araci, Ubirajara passa a se chamar
Jurandir. De tal modo, as mortes simbólicas de Ubirajara representam o processo de estereótipo
33
proposto na narrativa, que apresenta um índio que nunca busca se satisfazer com o que é seu, o
índio em Alencar sempre busca algo de fora, o proibido. O personagem Ubirajara possui
características de cavaleiro medieval, não de índio brasileiro.
O índio Ubirajara é tomado por um sentimento de dominação e poder. E como se dispôs
a lutar pela moça da tribo inimiga, quando no combate nupcial revela sua verdadeira origem
cria um conflito, pois seu prisioneiro, aquele com quem lutou para tornar-se guerreiro, é seu
cunhado, filho de Itaquê e irmão de Araci, a índia que ele quer por esposa.
Em Ubirajara, há também a presença do discurso colonial, pois o indígena na tríade
indianista de Alencar é criado por meio de perspectivas negativas, de separação, de abandono.
Ao final da narrativa, quando os tocantins estavam para lutar contra os araguaias, surge na
narrativa a tribo tapuia com quem as duas tribos antes inimigas lutam e vencem, sendo assim,
Ubirajara e Araci selam o arco das duas nações e tornam-se uma nação só, os Ubirajaras.
Embora no final da narrativa as duas nações selem a paz, o personagem Ubirajara
precisou inicialmente mentir, lutar, desfazer-se de seu povo para ficar com Araci, mesmo já
possuindo a mão de Jandira. O personagem passa por mortes simbólicas para ir se construindo
como guerreiro. A tríade de Alencar fecha-se com essa narrativa, levando-nos a perceber que,
embora não possua colonizador, o índio ainda é servil, não faz decisões certas e, se preciso,
abandona seu povo.
Assim, o abandono ao povo não condiz com a identidade dos povos indígenas, ao
contrário, são povos que procuram manter viva a união ancestral, como será debatido no
próximo capítulo.
34
3. LITERATURAS INDÍGENAS: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO
3.1 Da oratura à escritura: ecos da literatura indígena
A literatura indígena contemporânea é um lugar
utópico (de sobrevivência), uma variante do épico
tecido pela oralidade; um lugar de confluência de
vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos
mais de 500 anos de colonização (GRAÚNA, 2013, p.
15).
Esse subtópico tem por objetivo apresentar a literatura indígena como uma arte narrativa
e apresentar o processo de surgimento da(s) literatura(s) desde a oralidade até a escritura,
destacando as vozes que foram silenciadas e apagadas como vozes que ressurgem produzindo
contra-narrativas.
Antes disso, vale ressaltar que no período da colonização brasileira os indígenas que
habitavam as terras foram vistos como sujeitos a serem moldados. Em O mármore e a murta:
sobre a inconstância da alma selvagem, para explicar a inconstância do indígena do período
colonial, Viveiros de Castro (1992) vai até a metáfora realizada pelo padre Antônio Vieira, no
sermão do Espírito Santo. Assim, vê o indígena como murta14, mais fácil de ser formada, mas
que precisava sempre de reparos para que se conservasse. Ao serem catequizados, os indígenas
aprendiam a doutrina cristã, mas voltavam aos seus costumes rapidamente. Esses costumes,
para os jesuítas, eram obstáculos, tornavam os indígenas inconstantes e impediam que eles se
tornassem mármores aos princípios cristãos.
Os colonizadores queriam moldar o sujeito indígena, “porém, este gentio sem fé, sem
lei e sem rei não oferecia um solo psicológico e institucional onde o Evangelho pudesse deitar
raízes” (VIVEIROS DE CASTRO, 1992, p. 22). Mesmo sendo os indígenas inconstantes, os
colonizadores não desistiram de moldá-los. Inclusive, os indígenas foram impossibilitados de
realizar rituais, de praticar costumes e de falar em suas próprias línguas, pois o colonizadores
obrigavam os indígenas a realizarem ações que compactuassem com os costumes europeus.
No entanto, antes mesmo dos colonizadores chegarem às terras brasileiras, os indígenas
já cultivavam a arte literária através da oratura. A oratura é entendida como todo conjunto de
conhecimento oral dos povos indígenas. Conhecimento este, guardado na memória e
transmitido de geração para geração. É também carregada de ancestralidade, de muitas vozes
14 Um tipo de planta arbustiva, que cresce com facilidade.
35
indígenas que nos antecederam. Assim, a literatura indígena é oriunda de conhecimento oral
que, em meio a proibições de se falar as línguas nativas, se manteve vivo.
Sendo assim, a literatura indígena pode ser considerada uma sobrevivente, pois os
indígenas resistiram bravamente em meio às proibições de falarem suas línguas nativas. Porém,
muito foi perdido, as imposições dos colonizadores fizeram com que mais de mil línguas
indígenas fossem extintas e muito da literatura oral também fora perdido.
Graúna (2013), escritora indígena brasileira, defende o espaço da literatura indígena
como um lugar de autoafirmação cultural. De tal modo, aponta as literaturas indígenas que
inicialmente eram cultivadas por meio da oralidade, é fruto de muito silenciamento e
exilamento, devido às proibições e invasões do colonizador. Contudo, a poesia oral indígena,
embora silenciada na colonização, hoje, produz ecos de resistência.
A oralidade indígena é entendida como um mecanismo de preservação dos costumes,
crenças e rituais das diversas comunidades indígenas. Por meio do conhecimento oral, ou seja,
de uma gama de cânticos, toantes, rezas, literatura (de diferentes etnias), os indígenas
transmitiam de geração para geração esse conhecimento.
Para Zumthor (2014), por meio da voz, ou seja, da oralidade, nos situamos no mundo,
sendo assim, a voz indígena situa e conclama a um olhar aos povos indígenas distante de
representações idealizadas:
A voz é uma forma arquetípica, ligada para nós ao sentimento de
sociabilidade. Ouvindo uma voz ou emitindo a nossa, sentimos, declaramos
que não estamos mais sozinhos no mundo. A voz poética nos declara isso de
maneira explícita, nos diz que, aconteça o que acontecer, não estamos
sozinhos (ZUMTHOR, 2014, p. 83).
Sendo a oralidade um ato espontâneo, natural; com a ausência de uma literatura ágrafa –
escrita –, o registro oral dos indígenas nasceu intimamente na fala. Assim, a oratura indígena
funciona como todo conjunto de conhecimento daquilo que fora preservado na memória pelos
povos indígenas. O conhecimento que era partilhado em comunidade, fora guardado e
partilhado através do da oralidade. Assim:
Essa literatura teria como uma de suas características centrais tomar os mitos
indígenas, que antes eram transmitidos de geração em geração como uma
tradição milenar apenas através da oralidade, e recriá-los, dando-lhes uma
dimensão estética e conferindo-lhes um caráter literário, na medida em que
são escritos, editados e publicados em forma de livro, para serem lidos tanto
por um público indígena, quanto por um público “branco”, mesmo que seja
em menor escala (GUESSE, 2011, p. 1).
36
Essa recriação que dá uma dimensão estética e confere aos textos indígenas um valor
literário, faz com que em meados dos anos 90 do século XX a literatura indígena escrita
aconteça. Nesse período, o escritor indígena começou a expandir a literatura produzida em
comunidade por meio da escrita, trazendo da oralidade para a escrita tudo que fora preservado
na memória e repassado pelos ancestrais, tanto para o público indígena, quanto para os brancos,
assim como fala Guesse (2011).
A literatura indígena escrita entra em ascensão, principalmente após a garantia legal dos
direitos que asseguraram uma ação de ensino-aprendizagem diferenciado aos indígenas, a
começar pela “Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de
1996, e pelo Plano Nacional da Educação, de 2001” (GUESSE, 2011, p. 2). A educação
diferenciada garantida por lei, faz com que professores indígenas comecem a levar a literatura
dos próprios povos indígenas, como ação de transmissão de conhecimento e aprimoramento da
cultura com as novas gerações.
Com o desenvolvimento da literatura indígena escrita, não se pode dizer que a oratura
foi desprezada e esquecida. O conhecimento oral é a mola propulsora para os povos indígenas,
tudo que foi herdado pode ser transmitido para os parentes cotidianamente em comunidade,
assim, a oralidade é que fornece suporte para o nascimento do texto escrito, a literatura escrita
não existiria sem a literatura oral e a literatura oral proporciona a produção da literatura escrita,
ou seja, “a escrita não chega para ser predominante, ela chega como auxiliar e veículo para a
expressão de toda uma tradição que se estabelece por meio da oralidade” (PERES, 2018, p.
113).
As relações entre oralidade e escrita são marcas constantes da literatura indígena
brasileira. As duas estão ligadas intrinsicamente, sendo literaturas em que a memória e a
ancestralidade indígena reaparecem por meio do texto.
Sendo assim, no fragmento a seguir, Graúna (2013) nos diz que:
A busca da palavra, mais precisamente a luta dos povos indígenas pelo direto
à palavra oral ou escrita configura um processo de (trans)formação e
(re)conhecimento para afirmar o desejo de liberdade de expressão e autonomia
e (re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história da colonização e
os seus vestígios [...] (GRAÚNA, 2013, p. 54).
Todo o processo de luta visa a re(construção) de uma identidade que embora seja sólida,
foi abatida na colonização. Os ecos da literatura indígena clamam por liberdade de expressão e
por um espaço autônomo para produzir denúncias, mas também para expor as belezas da cultura
indígena.
37
A literatura indígena oral é muito forte nas comunidades indígenas, sendo passada de
geração para geração, comprovando que a literatura indígena oral vive e continua sendo
preservada em comunidade. Portanto, “ao escrever, de maneira nenhuma, o índio nega sua
tradição oral. Pelo contrário; paradoxalmente, ele usa a escrita para manter viva sua oralidade
e a partir dela construir sua prática literária, a literatura da floresta” (GUESSE, 2011, p. 8).
Pensando o processo transitório da oralidade para a escrita, a partir de Graúna (2013),
entendo que os textos escritos indígenas confrontam com os textos canônicos e ao chegar a
povos não indígenas provocam rupturas. No entanto, com a ascensão das tecnologias, os
escritores indígenas, fazendo uso desse meio, expandiram a literatura indígena, publicando em
sites e blogs para levar essa literatura dos povos indígenas para todos. Inclusive, muitos criticam
os indígenas pelo fato de usarem as tecnologias, visto que foi inventada pelo homem branco.
Contudo, esquecem que o indígena hoje pode e deve usufruir de tudo aquilo que é benéfico para
seu reconhecimento, inclusive as tecnologias digitais, criadas pelo branco, mas que foram
inventadas a partir da mão de obra escrava de muitos indígenas.
Escritores indígenas como Graça Graúna15, Eliane Potiguara16 e Daniel Munduruku17
possuem blogs e sites para expor trabalhos e para debater diversas questões dos povos
indígenas; nesses, indígenas e não indígenas acessam as produções e podem
repensar/questionar conceitos e imagens anteriores. Através do suporte tecnológico, a literatura
indígena chega a mais pessoas, tornando-se, assim, objeto de estudo com maior frequência.
Dessa forma,
O advento da escrita dentro das comunidades indígenas vem reformulando as
tecnologias adotadas para a preservação da memória do escrito e sua
publicização. Livro, celular, rádio e vídeo não são mais instrumentos avessos
à tradição indígena, senão que foram assumidos de modo consciente pelos
povos indígenas como espaço de auto expressão e de denúncia da violência
que sofrem. Estes instrumentos possibilitam desenvolver a criatividade do
sujeito indígena, mas, principalmente, reforçar o valor de sua alteridade
(PERES, 2018, p. 113).
O escritor indígena agrega a sua cultura, a sua literatura e a sua ancestralidade ao meio
digital, fazendo com que esses instrumentos tecnológicos promovam uma ascensão da produção
literária indígena, não vendo esses usos como a aceitação de uma passividade, mas usando este
meio para expressar-se ainda mais e denunciar a violência, assim como fala Peres (2018).
15 http://ggrauna.blogspot.com/ - blog da escritora indígena Graça Graúna; 16 http://www.elianepotiguara.org.br/home.html#.XAUoO2hKhPY - site da escritora indígena Eliane Potiguara 17 http://danielmunduruku.blogspot.com/p/daniel-munduruku.html - blog do escritor indígena Daniel Munduruku
38
Do mesmo modo, Graúna (2013) diz que:
[...] ainda que o(a) indígena more numa cidade grande, use relógio e jeans, ou
se comunique por um celular [...], ainda que nos deparemos com o indígena
nos caminhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente)
virtuais; mesmo assim, a indianidade permanece, por que o índio e/ou a índia,
onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia (GRAÚNA, 2013, p. 59).
A globalização tecnológica não anula a memória, a ancestralidade, nem a identidade
indígena18, ao contrário, dá visibilidade àquilo que o indígena produz. Pensando a globalização
tecnológica em relação com a cultura indígena, concordo com Laraia quando em Cultura: um
conceito antropológico (2001, p. 24) diz que “o homem é o resultado do meio cultural em que
foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o
conhecimento e a experiência adquiridas pelas [...] gerações que o antecederam”.
Sendo herdeiro de memórias dos seus antepassados e fincado em um conhecimento
ancestral, a cultura indígena jamais se perde, visto que foi um processo acumulado durante
muito tempo. Herdar um conhecimento entre os povos indígenas é manter uma relíquia
guardada e solidificada, no qual gerações futuras terão acesso e conhecerão aquilo que seus
antepassados conheceram, e esse conhecimento, com o passar dos tempos, vai sendo atualizado.
Em outra perspectiva um tanto parecida com a proposta de Laraia, Terry Eagleton em A
ideia de cultura (2003) diz que “se cultura significa a procura ativa de crescimento natural, a
palavra sugere, então, uma dialética entre o artificial e o natural, aquilo que fazemos ao mundo
e aquilo que o mundo nos faz (EAGLETON, 2000, p. 13). Nessa perspectiva, cultura é aquilo
que nos faz sujeitos no mundo, que vai nos marcando no decorrer de nossa existência e
tornando-nos herdeiros do que nos antecedeu, como menciona Laraia. A cultura enquanto
agente de formação da nossa experiência de mundo é também formadora de identidade.
A literatura indígena propõe essas novas identidades que são abordadas por Hall (2006),
sem perder-se no caminho, na cultura. Desse modo, a literatura indígena é composta pelas
culturas oral e escrita, porém, ambas mantem relações recíprocas, visto que não podemos
dissociar uma cultura da outra.
Podemos pensar as literaturas indígenas como literaturas de entre lugares, carregadas de
narrativas diversas que une o texto oral e o escrito, promovendo uniões identitárias e culturais,
todavia:
Compostas em um entre lugar cultural de enfrentamento e intercâmbio, as
textualidades indígenas revelam seu caráter híbrido, estando não só vinculadas
18 A ideia de identidade é vista a partir de A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall (2006).
39
à grafia pictórica ou táctil, mas também à tradição oral e a elementos de
performance. Assim, é necessário valorizar sua multimodalidade discursiva,
sua narração e narrativa, e os contextos de sua produção e recepção (THIÉL;
QUIRINO, 2011, p. 6634).
Pensar as literaturas indígenas como detentoras de elementos de performance é levar em
consideração que essas literaturas são resultado de “um acontecimento oral e gestual”
(ZUMTHOR, 2014, p. 41), ou seja, a voz e o gesto imbrincados resultam nas literaturas
indígenas, por meio da palavra e da imagem. A performatividade dessas literaturas solidifica-
se quando além da voz e da palavra o texto literário é acompanhando pela imagem, pelos
grafismos, desenhados pelos próprios indígenas, não de formas soltas, mas, em total
relação/sintonia com o texto e o contexto.
Sendo assim, as literaturas indígenas, resultadas da ancestralidade e da memória, da
oralidade até a escrita preservam os saberes e características dos seus povos. Sendo assim, as
vozes ancestrais e os saberes “surgem no texto indígena não apenas na transposição do saber
oral para o impresso, mas de modo criativo, reatualizado” (PERES, 2018, p. 115). Essa
reatualização não anula a sabedoria ancestral indígena, ao contrário, enuncia agora também a
partir de um olhar contemporâneo.
Com isso, o escritor indígena fala e escreve a partir de seus retornos a memória e a
ancestralidade do seu povo, como também fala da sua relação/observação/vivência com os
sujeitos da sociedade no geral, para problematizar questões diversas. Assim,
A literatura escrita indígena vai além da publicação de livros com a temática
indígena. Ela contém a possibilidade de autorrepresentação de povos que por
vezes foram mantidos em categoria secundária no panorama político e cultural
nacional (FRANCA; SILVEIRA, 2014, p.72).
Os textos produzidos pelos escritores indígenas apresentam, então, sujeitos que foram e
são marginalizados na sociedade, como uma forma de problematizar que compactuam da
mesma dor, da mesma exploração e dos assujeitamentos, mas que não os aceitam. Desse modo,
as literaturas indígenas além de possuírem características ancestrais e memoriais, são, também,
literaturas de militância pelos seus e pelos outros, pois:
A tradição indígena permeia, influencia diretamente a escrita contemporânea
realizada desde os indígenas revelando que, diferente do sujeito moderno, o
homem não se dissocia de seu povo, de sua cultura, de sua ancestralidade, mas
vê na escrita a condição de possibilidade para promovê-la estética e
politicamente (PERES, 2018, p. 116).
40
O escritor indígena ao passo que escreve sobre si e sobre o outro – sem estereotipá-lo –
está realizando um ato político, promovendo, assim, uma escrita que valida sujeitos e sujeitas
que foram/são menosprezados e excluídos da/na sociedade e na literatura. O escritor indígena
é também contemporâneo, pois percebe o seu tempo, mas também faz retornos ao passado e,
de tal maneira,
O escritor contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em
se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da
impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10).
Assim, nos textos literários, os escritores indígenas “[...] 2) transitam por tradições
tribais e ocidentais; 3) produzem obras destinadas às suas próprias comunidades tribais, às
comunidades de parentes (outras etnias) e ao leitor não índio” (THIÉL, 2012, p. 63). Ou seja,
apresentam seus espaços, suas culturas, bem como, a visão da cidade, produzindo assim, obras
para o público indígena e para o não indígena também, mas, acima de tudo, preservam a
memória e a ancestralidade indígena. Com isso, as textualidades indígenas são multimodais,
pois são resultado do imbricamento entre oralidade, escrita e imagem.
Os espaços das narrativas indígenas são em sua maioria tribais, ou seja, acontecem na
comunidade indígena, nos rituais, nas contações de histórias, mas já vemos bastante a imagem
da cidade grande apresentado na narrativa indígena. Inclusive:
Muitos dos textos indígenas contemporâneos se dirigem, sem disfarces, aos
não índios. Há autores que, inclusive, fazem questão de afirmar que seus
textos são orientados para a educação dos não índios. São textos que trazem a
história de suas etnias, versam sobre a arte de criar e narrar histórias. São, em
suma, uma contribuição para a cultura literária brasileira (THIÉL, 2012, p.
63).
Dessa maneira, o texto literário produzido pelo escritor indígena é carregado de um lugar
de fala próprio e enuncia vozes diversas de diferentes comunidades brasileiras. Tratam-se de
literaturas que nasceram na oralidade e chegando até a escrita e a imagem propõem novos
olhares para se perceber o indígena na sociedade.
A voz performática indígena ecoa na esperança de dias melhores, dias em que o escritor
e a escritora indígena possam apresentar suas narrativas para o público indígena e branco, com
o intuito de apresentar o mundo indígena, de questionar imagens e pressupostos anteriores e de
cantar o canto da união e da paz.
41
3.2 Uma contra-narrativa
A leitura da literatura indígena convoca o leitor a
conhecer diferentes mundos, culturas, saberes,
epistemologias, pensamentos e expressões, não mais
pelas vozes e escritas de outrem, de modo
extemporâneo, objetivo e neutro, mas a partir de si
mesmos, desde si mesmos, para si mesmos e para o
outro (PERES, 2018, p. 109).
Neste subtópico, apresento as literaturas indígenas como literaturas produzidas pelos
próprios indígenas, como literatura descendente da oratura19. Para tanto, destaco as produções
indígenas como uma contra-narrativa, visto que questiona os padrões impostos pelo grupo
dominante e também a visão eurocêntrica que perpetua na literatura canônica.
O indígena produzindo literatura apresenta novas formas de se perceber a figura dos
indígenas na literatura brasileira. Distanciando-se de estereótipos e do discurso colonial, a visão
indígena tem por objetivo contra-narrar, produzir narrativas que, ao mesmo tempo que
apresenta as riquezas dos povos indígenas, contraria e questiona a proposta romântica.
Assim, diferente do primeiro capítulo deste trabalho, no qual usei com constância o
termo índio, agora, passarei a usar o termo indígena, pois este é o termo adequado para
denominar o nativo brasileiro, visto que, o nome índio foi uma invenção do colonizador20.
Inclusive, em uma entrevista concedida à professora Suzane Lima Costa em 2017, Daniel
Munduruku diz que a palavra índio não retrata a sua experiência de vida, pois foi sempre uma negação,
um apelido que reforça em alguém uma ausência que ela tem e, por muito tempo, as pessoas diziam que
nascer índio era um defeito21.
Em seu livro Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, a escritora
indígena Graça Graúna (2013) menciona o termo “contraliteratura” e se pergunta se esse seria o termo
para denominar as literaturas das minorias. Vejo que o uso da palavra “contra” reforça um lugar de
insatisfação, então, de fato, as literaturas das minorias, periféricas, dos subalternos são contraliteraturas
que se manifestam contra as imagens propagadas insistentemente pelo cânone.
19 Trago Literatura indígenas, no plural, pois cada comunidade produz literaturas, de diferentes formas. 20 Ainda hoje muitas comunidades aceitam o termo indio, porém, ele é visto não com o sentido de negação assim
como fora na colonização. 21 Debate em uma mesa inédita com autores indígenas no encerramento da sétima edição da Festa Literária
Internacional de Cachoeira, disponível em: https://g1.globo.com/bahia/noticia/a-descolonizacao-do-pensamento-
proposta-por-daniel-munduruku-e-eliane-potiguara-eu-nao-sou-indio.ghtml.
42
Graúna (2013, p. 66) ainda diz que as cidades letradas denominam esses grupos
marginalizados como “literaturas extraocidentais de discurso “subliterário”. Essas literaturas
marginais, inclusive a literatura indígena, por provocarem contra-narrativas e não se
submeterem aos desmandos do cânone, são tachadas de subliteraturas. Contudo, produzem
discursos potentes, de autoidentificação e de resistência.
A contra-narrativa produzida pela literatura indígena problematiza conceitos e imagens
anteriores em que o índio foi representado. Nessa literatura, a figura do indígena não aparece
mais como ser servil e subserviente ao homem branco, mas como sujeitos que têm espaço para
demonstrarem sua bravura e garra para lutar pelo seu povo, sem os abandonar os parentes.
As textualidades produzidas pelos escritores indígenas demarcam um lugar de fala
próprio, e é aquilo que Deleuze e Guattari chamam no livro Kafka: Por uma literatura menor
(1975) de literatura menor. Não no sentido pejorativo do termo, mas no sentido de que sendo
uma literatura produzida nas margens, emerge com um lugar de fala bem definido, próprio.
De tal modo, “nas mãos dos escritores indígenas, ela se torna ferramenta fundamental
de autoafirmação, auto expressão, resistência e luta, coadunando-se diretamente com o
Movimento Indígena no país (PERES, 2018, p. 108). A literatura indígena é um poderoso
instrumento de afirmação cultural dos indígenas, e aparece como objeto de poder para
apresentar novas visões.
Tendo como objetivo principal contra-narrar, as literaturas indígenas brasileiras se
organizam para que as produções cheguem a mais pessoas, a diversos lugares. Nesse sentido,
existe hoje, no Brasil, mais de quarenta escritores indígenas, escrevendo literatura de
resistência, identidade, deslocamento, mitos, sobre seu povo, para afirmar que o indígena
brasileiro também produz literatura, também falam de si, sem recorrer a estereótipos. Escritores
como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Ailton Krenak, Olívio Jekupé e
outros, produzem literaturas, textualidades indígenas que demarcam seus lugares. Produzem
uma literatura menor, cheia de afetos e de curiosidades dos povos indígenas22.
Através da literatura, os escritores indígenas mantêm um posicionamento de crítica e
usam esse espaço, como afirma Thiél (2012), para retomar estereótipos não para dar mais
ascensão ou visibilidade, mas, para desconstruí-los. Essa retomada se faz necessária para que o
que fora proposto lá atrás possa ser repensado, problematizado.
22 Penso a literatura menor a partir das palavras de Deleuze e Guattari (1975, p. 25) que veem que “uma literatura
menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”, neste caso, a língua
maior está nas múltiplas textualidades dos indígenas e na facilidade de adaptar seus temas.
43
As literaturas indígenas emergem como contra-narrativa, ao mesmo tempo que
emergem com um contra discurso, promovendo questionamentos acerca das imagens
produzidas anteriormente. O escritor indígena é movido por um desejo de não recorrer a
estereótipos, mas de repensá-los, revê-los.
Desde os anos 90, a literatura indígena escrita que é impulsionada pela literatura oral
produz novas imagens para os indígenas brasileiros e do mundo também, bem como
questionando o passado estereotipado. Cada vez mais, os indígenas produzem contra-narrativas
de afirmação cultural e identitária.
Repensando conceitos e imagens, a literatura indígena brasileira traz o indígena para o
centro e não o deixa nas margens como selvagem e subalterno. O indígena na sua literatura
projeta dias melhores para os povos, transmitindo mensagens de esperança e afirmação de seu
lugar próprio.
Na voz, na palavra, na imagem. O indígena celebra a vida e a resistência, como
poderemos ver nas poesias de Graúna e Potiguara e no conto de Munduruku, apresentados e
analisados no capítulo seguinte.
44
4. VOZES INDÍGENAS DESSILENCIADAS E CONTEMPORÂNEAS:
MEMÓRIA, IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE
4.1 Memória e ancestralidade em Terra à vi$ta, de Graça Graúna
A literatura indígena contemporânea é um lugar
utópico (de sobrevivência), uma variante do épico
tecido pela oralidade; um lugar de confluência de
vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos 500
anos de colonização. Enraizada nas origens, a
literatura indígena contemporânea vem se
preservando na autohistória de seus autores e autoras
e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é,
uma minoria que semeia outras leituras possíveis no
universo de poemas e prosas autóctones (BRANCO,
2010, s/p).
Mulher, mãe, indígena, escritora e nordestina. Graça Graúna. Como seu sobrenome
indígena diz, é pássaro que voa, que escreve embasada em sua ancestralidade. A literatura da
escritora indígena Potiguara voa assim como o pássaro, provocando rupturas e reestabelecendo
ninhos.
Neste subtópico, destaco a vida e a produção artístico-literária da escritora indígena
Graça Graúna. Para tanto, recorrerei a uma entrevista cedida pela escritora e apontarei por meio
de sua poesia Terra à vi$ta (1999) o processo de valorização memorial e ancestral da cultura
literária indígena.
Como pássaro, Graúna sempre esteve disposta a voar. Nascida em São José do
Campestre no estado do Rio Grande do Norte e descendente dos Potiguaras, encontrou no
decorrer de sua vida diversas dificuldades, no entanto, nenhuma a impediu de buscar lugares
mais seguros. Os ventos contrários eram muitos e, devido às condições precárias, a menina
Graúna mudava com sua família sempre de lugar23 em busca de melhores condições. Por estar
sempre em constante mudança, os estudos eram atrapalhados e ela não conseguia concluí-los.
A garota, hoje mulher, não desistiu. Para concluir os estudos ousou entrar no supletivo,
também conhecido por Curso de Madureza. Com o passar do tempo, o que era um desafio
tornou-se uma paixão, Graúna desenvolveu o gosto pelos estudos e após concluir o supletivo
entrou para a faculdade.
Graúna falou em uma entrevista à Tarsila Lima em 2015 sobre a entrada na faculdade:
23 Traço as características da vida da escritora indígena Graça Graúna a partir de uma entrevista concedida pela
escritora a Tarsila de Andrade Ribeiro Lima, no ano de 2015, disponível em
http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num20/entrevista/Palimpsesto20entrevista01.pdf
45
Desenvolvi o gosto pelos estudos e me atrevi a entrar na Universidade. Fiz
Jornalismo, pela metade; entrei, depois, em Filosofia e larguei o curso no meio
do caminho porque morava longe da Universidade e não tinha condições
financeiras para continuar a vida acadêmica e criar os filhos, tudo ao mesmo
tempo (GRAÚNA, 2015, p. 141).
Graúna sempre gostou da literatura, era uma aluna dedicada e sempre realizava
vestibulares, na última vez que tentou, entrou na UFPE para cursar Letras e dedicou-se ao
estudo da cultura e da história dos povos indígenas. Foi também na UFPE que Graúna realizou
seu mestrado e se doutorou24.
Sendo uma mulher indígena que aspirava e aspira os ares da literatura, Graúna passou a
escrever como forma de demonstrar que o indígena pode realizar diversas ações que os foram
negadas desde o processo colonizatório.
Em entrevista concedida a Tarsila Lima, Graúna usa as seguintes palavras: “a cada
leitura de mim e do outro, foi se ampliando a minha busca por um lugar no mundo” (GRAÚNA,
2015, p. 144), esse lugar no mundo é cada vez mais firmado através do texto literário, a tessitura
narrativa e poética indígena afirma que o indígena também escreve como forma de manifestar
e demarcar seu lugar no mundo.
Graúna (2012, p. 268) diz que “[...] os povos indígenas vivenciaram a impossibilidade
de escrever e expor o seu jeito de ser e de viver em sua própria língua”. Por longos anos os
indígenas viveram em situação de passividade, proibidos de realizarem qualquer ação, inclusive
de falarem suas próprias línguas. De tal modo, da oratura à escrita, a literatura indígena
contemporânea, na qual está inserida a literatura de Graça Graúna, emerge como o grito que
estava entalado desde quando os portugueses aqui chegaram.
Agamben (2009, p. 59) diz que ser contemporâneo é manter “[...] uma relação singular
com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias [...]”. Assim,
Graça Graúna adere a esse tempo, mas dele também toma distâncias, para então retornar a sua
ancestralidade, a memória do seu povo.
Com as proibições dos colonizadores, os indígenas ousaram manter viva as suas
culturas; sendo a oralidade proibida, vale perguntar, como toda uma carga de saberes foi
preservada? A memória indígena mesmo em meio a proibições resistiu bravamente. Rituais,
24 Graduada, mestre e doutora em Letras, pela UFPE; Pós-doutora em Literatura, Educação e Direitos indígenas,
pela UMESP. Professora adjunta orientadora na UPE. Em sua tese de doutorado teve como orientador o professor
Dr. Roland Walter, e teve como título da tese “Contrapontos da Literatura indígena contemporânea no Brasil”, que
depois tornou-se um livro de grande importância para os estudos em Literatura Indígena no Brasil. Informações
colhidas no Currílo Lattes da escritora. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/5740105436083026. Acesso em 26 de
novembro de 2019.
46
crenças, costumes e a própria literatura foi preservada por meio da memória e é reverberada
atualmente através de todo um conhecimento ancestral.
Nesse entremeio, vale também nos perguntarmos o que seria memória e como ela
reaparece nas culturas que foram perseguidas e abaladas. Em História e Memória (1990), Le
Goff diz que:
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas (LE GOFF, 1990, p. 423).
Para Le Goff, a memória está relacionada a questões do passado, mas, ao mesmo tempo,
mantém relações intrínsecas com o presente. De tal modo, é definida como um mecanismo de
preservação daquilo que o autor chama de “certas informações”. Pensando os povos indígenas,
essas certas informações apontadas por Le Goff são os cânticos dos rituais, as rezas, os
costumes e também a literatura, sobreviventes do processo colonizatório imposto.
A concepção de memória nas palavras do escritor indígena Munduruku (2008) se
aproxima da definição proposta por Le Goff – memória é definida como o encontro do novo
com o velho – assim, para Munduruku:
A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram
para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos que se perpetuarão em
novos rituais que abrigarão elementos novos num circular movimento repetido
à exaustão ao longo de sua história (MUNDURUKU, 2008, s/p).
A definição de Munduruku (2008) é recíproca à de Le Goff (1990). Para os autores, a
memória é entendida como aquilo que foi salvo de um passado e que, ao chegar no presente,
(re)atualiza repertórios e provoca novos pensamentos na história. A memória indígena então, é
resultado do passado – ou seja, da ancestralidade – em sintonia com os saberes atuais,
apreendidos no dia a dia dos povos indígenas.
A memória enquanto ação que guarda fatos do passado e é atualizada por ações do
presente, é em grande parte definida como resultado daquilo que fora guardado ou solidificado
em objetos, podendo assim, ser palpável.
Para Pollak (1989):
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc.
(POLLAK,1989, p. 7).
47
A definição de memória proposta por Pollak se distancia das definições debatidas
anteriormente. Enquanto Le Goff e Munduruku definem memória como o encontro do presente
com o passado, Pollak sustenta que memória é o passado formado por coletividades que está
fincado em objetos.
Porém, a partir de Pollak pode-se entender que a memória reforça pertencimentos de
coletividades, a memória é fruto do coletivo, embora possua também raízes individuais,
próprias de cada sujeito. No entanto, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali ocupo”
(HALBWACHS, 1990, p. 51), pois não se pode dissociar o individual do coletivo, a memória
embora individual é resultado de coletividades.
Pensando a memória indígena, faz-se necessário destacar que, na concepção de Pollak,
a memória indígena não existiria, pois, sendo resultante da oralidade, não é algo palpável, mas,
falável, passada de geração para geração, ao passo que o que é falável não é solidificado. Em
relação a isso, Munduruku (2008) aponta a memória indígena como uma memória forte e
resistente.
A memória indígena é base para os escritos de Graça Graúna e essa literatura é resultado
da preservação de memórias ancestrais, preservadas pela comunidade e mantidas vivas na
literatura escrita dessa mulher indígena.
Sendo assim, no discurso poético de Graúna, a imagem dos sujeitos indígenas e de sua
cultura aparecem como protagonistas, livres de estereótipos, rememorando e criticando ações
do colonizador, mas também, apontando a escrita e a oralidade como fonte de preservação da
cultura indígena. Munduruku (2008) ao falar sobre os seus ancestrais diz:
Estes povos traziam consigo a memória ancestral. Essa harmônica
tranquilidade foi, no entanto, alcançada pelo braço forte dos invasores:
caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e foram
escrevendo no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento
(MUNDURUKU, 2008, s/p).
A história citada por Munduruku (2008) propõe a invenção do modelo de índio,
denominou-o como sujeito a ser convertido, como corpo vencido. No entanto, a literatura
indígena agrega a memória e a ancestralidade em constante relação com o local e o global, ou
seja, une o passado, a ancestralidade, com o presente, com as questões urbanas, da
contemporaneidade, como forma de demonstrar preocupação com a figura do indígena, mas
também com o espaço não indígena. Assim, já ouvimos falar no termo glocal (global + local),
48
como a ação de unir o que é próprio e ancestral ao novo e atualizar repertórios. Com isso, vale
ressaltar que:
As textualidades indígenas estão abertas às redes de relações que congregam
o local e o global e os autores indígenas transitam por espaços tribais, mas
também urbanos; ou seja, eles estão localizados em espaços culturais
ancestrais, além de dialogarem com culturas cosmopolitas (THIÉL, 2012, p.
77).
Sendo uma escritora indígena que em seus escritos a ancestralidade e a memória se
reverberam, Graúna, enquanto mulher, mãe, indígena, escritora e nordestina, produz um contra
discurso e fala de si, do seu povo, das suas raízes na literatura. Não podemos definir a escrita
de Graúna como uma escrita da atualidade, mas como uma escrita dos retornos ao passado, às
memórias e que, quando escritas, emergem com ares de contemporaneidade. A escrita de
Graúna e de todos os escritores indígenas são águas que se encontram, pois:
O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do
(re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e
acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que
atualizam o pensar ancestral (MUNDURUKU, 2008, s/p).
Como escritora indígena que visa preservar a memória e a ancestralidade dos povos
indígenas, Graça Graúna visa também em suas poesias problematizar acerca das representações
dos sujeitos indígenas na literatura canônica. Os textos dessa escritora indígena são
contemporâneos, memoriais e ancestrais e, por meio do narrar poético, falam das riquezas e
crenças dos povos indígenas, como forma de liberdade e espaços de questionamentos. Em seus
escritos, visa à apresentação do devir indígena, apresentando-os como sujeitos diversos, ricos
em conhecimentos, dotados de sabedoria25.
Graça Graúna escreve em prosa e poesia, sendo a primeira (prosa) voltada para o público
infanto-juvenil e a segunda (poesia) voltada para os mitos e experiências indígenas e também
para as questões sociais. Uma das maiores características da literatura indígena, é o fato das
narrativas voltarem-se para o público infantil, mecanismo cultural que faz com que se passe de
geração para geração esses traços memoriais.
No gênero poético, Graça Graúna escreveu obras como, Canto Mestizo (1999),
Tessituras da Terra (2000) e Tear da Palavra (2001). Na prosa, destacou-se a obra infanto-
juvenil Criaturas de Ñanderu (2010).
25 Apoio-me na concepção de devir de Deleuze, quando diz que “escrever não é certamente impor uma forma (de
expressão) a uma matéria vivida. […] Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se.
É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita e inseparável do devir
[…] (DELEUZE, 1997, p. 11).
49
Em sua escrita, Graça Graúna realiza críticas, demonstra as riquezas dos indígenas e
debate diversas questões acerca do ser indígena. Em um dos poemas que se encontra no livro
Canto Mestizo (1999), Graúna demonstra a insatisfação daqueles (os indígenas) que estão
perdidos e jogados devido àqueles (colonizadores) que vinham pelo oceano e viram Terra à
vi$ta26:
Perdidos no perdido
os filhos da terra
sem barco
sem arco
sem lança
sem onça
sem-terra.
Jogados no mundo
os filhos da terra.
Só o silêncio dos deuses
pelos (des)caminhos (GRAÚNA, 1999).
Trata-se de um poema curto, que possui versos livres. Embora cause uma certa rima, o
quinteto não obedecer às regras de metrificação, pois:
Esse tipo de verso, típico do modernismo, vem sendo muito usado a partir da
segunda década de nosso século. Num poema em versos livres, cada verso
pode ter tamanho diferente a sílaba acentuada não é fixa, variando conforme
a leitura que se fizer (GOLDSTEIN, 2006, p. 49).
A rima presente nos versos – sem barco, sem arco, sem lança, sem onça – são rimas
consoantes, vê-se que, sem barco rima com sem arco e sem lança rima com sem onça, recitar
essa parte do poema provoca um respiração rápida que provoca cansaço, o que remete ao fato
de os indígenas estarem perdidos, pois, caminham sem saber para onde ir, pelos (des)caminhos.
A partir do título do poema Terra à vi$ta podemos entender que a autora realiza uma
crítica à chegada dos colonizadores, pois o uso do cifrão ($) no nome vista enuncia que a terra
que estava para ser invadida seria explorada e, na busca por riquezas, os indígenas exerceriam
a mão de obra para tal ação.
Assim, a autora estabelece uma memória ancestral e começa dizendo “perdidos no
perdido/os filhos da terra”, o que nos leva a perceber que, se antes os indígenas eram os donos
26 O acesso a poesia deu-se por meio do blog da escritora indígena Graça Graúna. Disponível em
http://ggrauna.blogspot.com/. Acesso em 10 de setembro de 2018.
50
de suas terras, com a entrada dos colonizadores nas terras brasileiras, os filhos da terra estão
perdidos, sem mais nada – sem barco/sem arco/sem lança/sem onça/ sem-terra –, perderam
tudo.
A repetição da preposição sem no quinteto é usada de modo anafórico, sempre no início
do verso, provoca rima AABBC em – sem barco/sem arco/sem lança/sem onça/sem-terra. Por
se tratar de um poema livre, as escolhas da poetisa indígena não são coincidências, a forma não
fixa é característica também da poesia indígena, dialogando com a independência da forma
literária.
O ecoar da voz indígena é forte nessa poesia e também na literatura produzida pelos
escritores indígenas. São vozes que ecoam e falam das riquezas indígenas, mas que também
protestam, são memórias que trazidas da oralidade para a escrita surgem como campos de
escrevivências.
Assim, nas palavras da própria escritora indígena, faz-se importante entender que:
A nossa literatura contemporânea é um dos instrumentos que dispomos
também para refletir acerca das tragédias cometidas pelos colonizadores
contra os povos indígenas; a literatura é também um instrumento de paz a fim
de cantarmos a esperança de que dias melhores virão para os povos indígenas
no Brasil e em outras partes do mundo (GRAÚNA, 2012, p. 275).
A literatura indígena contemporânea de Graça Graúna ecoa como esperança de dias
melhores, onde os indígenas possam cantar a liberdade, longe de preconceitos e estereótipos,
longe da exploração. Graúna reconhece que não veio ao mundo aleatoriamente e que não
escreve de forma desvinculada da sua identidade. Trata-se de uma indígena que escreve
influenciada e movida pela sua ancestralidade, pela cultura do seu povo e dá conta do seu lugar
de fala.
A escrita de Graça Graúna é sólida e autêntica, na qual aponta que sua cultura, a
memória do seu povo e a ancestralidade herdada estão imbricadas, em constante processo de
união. A memória e a ancestralidade se reverberam desde a oralidade até a escrita, marcando
um lugar próprio.
A literatura indígena produzida por Graça Graúna é um campo de afirmação identitária,
no qual o indígena fala de si no passado, mesclando com características dos dias atuais e
projetando dias melhores.
51
4.2 Vozes indígenas dessilenciadas: memória e identidade em Eliane Potiguara
Que faço com minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos (POTIGUARA, 2019, p. 32).
Potiguara)
No segundo subtópico deste capítulo, apresento a vida e a produção literária da escritora
indígena Eliane Potiguara, esta que visa por meio de suas narrativas reforçar e valorizar a
identidade indígena. Para tanto, por meio do poema Identidade Indígena (2019) destacarei a
valorização identitária e a(s) voz(es) que clamam no poema por liberdade.
Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, é descendente do povo
Potiguara, conselheira do Inbrapi27 e fundadora do GRUMIN - Grupo Mulher-Educação
Indígena. Foi também indicada para o Projeto internacional Mil Mulheres do Prêmio Nobel da
Paz. Eliane Potiguara é formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, cidade
onde ela nasceu. Vale destacar que Eliane Potiguara não morou na comunidade a qual pertence,
porém, isso não anula sua identidade, nem a faz menos indígena que os demais.
Em entrevista concedida ao editor da revista P@rtes28 via e-mail, no ano de 2004,
Potiguara diz, no texto que foi intitulado de Mulher, índia, defensora da natureza! “Eu sempre
tive que transpor obstáculos para sobreviver”, pois junto com sua família enfrentou a pobreza,
lutou muito para se manter viva.
Na mesma entrevista, Potiguara fala sobre sua ida à escola, relata os problemas que
encontrou, ao se deparar com um mundo preconceituoso:
Quando fui à escola não entendia porque riam de mim e de vovó que todos os
dias vendia bananas na porta da escola! Ali comecei a me sentir diferente das
crianças e adultos. Minha avó bebia e eu chorava muito porque não conseguia
entender nada do que a professora ensinava e porque vovó bebia e se embalava
no fumo de rolo. Minha escola era outra! (POTIGUARA, 2004, s/p).
A menina servia de chacota para os colegas de sala. Desprezada e inferiorizada, com
cara de índia, sentia-se diferente. A diferença que ela sentia era como se o fato de ser indígena
fosse defeito; aos poucos, a menina foi tornando-se mulher, e percebeu que sua cara de índia é
parte de sua identidade, da sua vida. Potiguara viu na literatura um espaço para reforçar e
27 Instituto Indígena de Propriedade Intelectual. 28 Disponível em https://www.partes.com.br/2004/11/30/mulher-india-defensora-da-natureza/. Acesso em 24 de
fevereiro de 2019.
52
preservar a identidade indígena. Assim, a produção literária de Eliane Potiguara, como a dos
demais escritores indígenas, é um grito de resistência, é um voar por diversos bosques.
Em 1975, Eliane Potiguara tornou-se a primeira mulher indígena a publicar um poema
no Brasil, o poema tem por título Identidade Indígena. A parente Graça Graúna (2013, pp. 78-
79, inserção minha) diz que “é possível dizer que o referido poema inaugurou o movimento
literário indígena contemporâneo no Brasil [e] continua sugerindo um grito indígena em meio
aos contrapontos da palavra [...]”.
Além de escritora, mãe e professora, Potiguara é também defensora dos direitos
humanos e, através da sua causa, visa transcender para a literatura a luta pelos direitos dos
povos, como meio de reafirmação da busca pela valorização da mulher e da pessoa indígena. A
autora indígena, por meio da poesia, demonstra que os textos indígenas são campos de auto
afirmação identitária.
Sobre identidade, Hall (2006, p. 38) diz que:
[...] a identidade é realmente algo formado, ao logo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre
sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada (HALL, 2006, p. 38).
A identidade, então, é aquilo que está sempre em processo de formação, inacabado, e
ao longo do tempo vai estruturando-se. No caso da identidade indígena, ela foi se solidificando
no decorrer do tempo, foi buscando espaço, em relação ao processo colonizatório, que tentou a
todo custo desfazer a identidade indígena existente no Brasil.
A literatura de Eliane Potiguara difere do ideário romântico, visto que “o romantismo
brasileiro constrói como exótico o passado colonial, elegendo o índio como símbolo de um
projeto nacionalista” (THIÉL, 2006, p. 14). De tal modo, Potiguara desvincula a imagem do
indígena da visão nacionalista, na qual era um mero selvagem, dotado de talentos, mas submisso
ao colonizador, e o apresenta como um ser rico em histórias, crenças, como sujeito que está
buscando uma identidade sólida.
Dessa forma, “a literatura produzida por indígenas brasileiros apresenta na sua
constituição as suas próprias características, tanto na forma quanto no conteúdo”
(FIGUEIREDO, 2018, p. 130), um conteúdo próprio, embasado na memória e na ancestralidade
e que avança de geração para geração.
53
Identidade Indígena (2019), que analiso a partir de agora, é um poema composto por 8
estrofes, possui uma voz lírica de tom feminino, com características plurais. Potiguara diz na
epígrafe do poema presente no livro Metade cara, metade máscara (2019) que o poema foi
escrito em memória dos seus avós; a partir de então sua inspiração lírica surgiu.
O poema então é uma junção da forma poética com a autobiografia, não apenas da
escritora Potiguara, mas, da sua avó. Assim, vejo o quanto o conhecimento ancestral, dos mais
velhos é essencial para a construção do texto literário indígena, pois o saber, a memória da avó
proporciona a escrita do poema. Em um poema longo, cantado – que mesmo não possuindo
rimas – canta com uma voz plural, marca da literatura indígena, pois, é uma literatura de
coletividades. Assim, por não seguir uma métrica específica vale ressaltar que:
A liberdade rítmica criou uma nova música do verso, tornando o metro mais
livre, o poema menos cantante que os tradicionais, o ritmo mais seco e
contundente. Em outras palavras, um ritmo inesperado como o da vida do
homem contemporâneo (GOLDSTEIN, 2006, p. 50).
Não seguir regras estabelecidas é uma das características da literatura contemporânea,
na qual está inserida a literatura indígena. Assim, Potiguara rompe com a ideia de métrica e
propõe um poema com oito estrofes, possuindo versos irregulares. A voz lírica inicia o poema
da seguinte maneira:
Nosso ancestral dizia: temos vida longa!
mas caio da vida e da morte
e range o armamento contra nós.
mas enquanto eu tiver o coração acesso
não morre a indígena em mim e
nem tão pouco o compromisso que assumi
perante os mortos
de caminhar com minha gente passo a passo
e firme, em direção ao sol.
sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
carrego o peso da família espoliada
desacreditada, humilhada
sem forma, sem brilho, sem fama (POTIGUARA, 2019, p. 113).
O poema apresenta um eu lírico de voz feminina indígena, a voz poética carregada de
identidade diz que mesmo o armamento rangendo contra eles (colonizadores) a indígena que
há nela não morre. Essa preservação identitária e rica em memória é muito marcante para os
povos indígenas que foram feitos de objeto na colonização. Os mortos, são aqueles indígenas
que partiram para preservar o que se tem hoje, esses são lembrados e valorizados pela coragem
e pela bravura.
54
A morte citada no poema traz uma memória ancestral de grande valor, pois foi através
dos mortos que lutaram e reivindicam por justiça que os indígenas hoje são protegidos.
Enquanto para a cultura ocidental os mortos não recebem tanta atenção, para os indígenas, são
sinal de proteção.
Ao enunciar que assumiu o compromisso “de caminhar com minha gente passo a passo
e firme, em direção ao sol”, o eu lírico de voz feminina se coloca como um ser que resiste em
meio aos massacres. A categoria resistência é uma das principais marcas desse poema.
Em outro fragmento do poema, a voz indígena é proclamada dizendo:
Mas não sou eu só
não somos dez, cem ou mil
que brilharemos no palco da história.
Seremos milhões unidos como cardume
e não precisaremos mais sair pelo mundo
embebedados pelo sufoco do massacre
a chorar e derramar preciosas lágrimas
por quem não nos tem respeito.
a migração nos bate à porta
as contradições nos envolvem
as carências nos encaram
como se batessem na nossa cara a toda hora.
mas a consciência se levanta a cada murro
e nos tornamos secos como o agreste
mas não perdemos o amor.
Porque temos o coração pulsando
jorrando sangue pelos quatro cantos do universo. (POTIGUARA, 2019, p.
113).
É notável que a voz do poema reclama os ultrajes já sofridos pelos indígenas, faz um
retorno a memória dos parentes que sofreram e reafirma que, embora perseguidos, não aceitarão
mais a perseguição, a migração e as contradições. A voz do eu lírico até então individual,
começa a apontar uma coletividade, para apresentar que os povos indígenas não estão sós. Essa
coletividade é apresentada nas estrofes “mas não sou eu só” e logo depois “seremos milhões
unidos como cardume” no qual exclamam a ancestralidade coletiva e em seguida o desejo de
justiça.
As angústias sofridas tornaram esse povo seco29, como aponta o poema, mas o amor
jamais fora perdido. Secos depois de sofrerem tanto, de pois de tanto sangue derramado e de
tantas imposições das crenças do colonizador. Adiante, a voz indígena exclama:
29 Ser seco não significa ser despossuído de sentimentos, mas secos para não aceitar imposições e normas que
desrespeitam a cultura e as crenças.
55
eu viverei 200, 500 ou 700 anos
e contarei minhas dores pra ti
oh! identidade
e entre uma contada e outra
morderei tua cabeça
como quem procura a fonte da tua força
da tua juventude
o poder da tua gente
o poder do tempo que já passou
mas que vamos recuperar.
e tomaremos de assalto moral
as casas, os templos, os palácios
e os transformaremos em aldeias do amor
em olhares de ternura
como são os teus, brilhantes, acalentante identidade
e transformaremos os sexos indígenas
em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do futuro
e não passaremos mais fome
fome de alma, fome de terra, fome de mata
fome de história
e não nos suicidaremos
a cada século, a cada era, a cada minuto
e nós, indígenas de todo o planeta
só sentiremos a fome natural
e o sumo de nossa ancestralidade
nos alimentará para sempre
e não existirão mais úlceras, anemias, tuberculoses
desnutrição
que irão nos arrebatar
porque seremos mais fortes que todas as
células cancerígenas juntas. (POTIGUARA, 2019, p. 114).
Nesta parte do poema a voz aponta o que não quer que se repita, a fome, fome de tudo,
fome de identidade. A ancestralidade é o alimento principal para os povos indígenas. As
doenças causadas pelos colonizadores ceifarão e os indígenas não permitirão serem magoados.
A voz coletiva continua a enunciar a resistência indígena. O poema aponta a preservação
da identidade indígena, mas também, com grande insistência o ato de resistir dos povos
indígenas. Esse ato torna os indígenas cada vez mais fortes para lutar com garra e preservar a
memória dos antepassados, assim, a voz lírica exclama que a resistência existe e que através
disso “seremos mais fortes que todas as células cancerígenas juntas”. O poema continua
declamando sobre o que os indígenas almejam.
De toda a existência humana.
e os nossos corações?
nós não precisaremos catá-los aos pedaços mais ao chão!
56
E pisaremos a cada cerimônia nossa
mais firmes
e os nossos neurônios serão tão poderosos
quanto nossas lendas indígenas
que nunca mais tremeremos diante das armas
e das palavras e olhares dos que “chegaram e não foram”.
Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!
e te direi identidade: eu te amo!
e nos recusaremos a morrer
a sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual.
Nós somos o primeiro mundo! (POTIGUARA, 2019, p. 114).
A identidade é vista no poema como poder, então, os sujeitos indígenas lutam para
recuperar aquilo que deles foi tirado, roubado. Vejo então que os escritos de Eliane Potiguara
apresentam uma voz indígena inconformada com o passado, mas que almeja dias melhores, a
identidade indígena está também na luta para recuperar o que foi perdido. Sendo assim, a
literatura indígena é um espaço que dá voz às historicidades do passado (a literatura da
oralidade) e do presente (as narrativas que surgem na contemporaneidade em relação com a
cultura local). Ser contemporâneo, para Agamben (2009), não é se limitar ao tempo
cronológico, mas, estar ciente dos tempos que o rodeiam, os rodearam e os rodearão, bem como
faz Potiguara.
Durante todos os versos a(s) voz(es) mencionam a luta em meio ao processo
colonizatório, os sofrimentos, mas, também, a coragem, a ousadia e a esperança dos povos
indígenas. A voz narrativa rompe com os padrões estabelecidos e provoca rupturas no modo de
narrar, no modo de apresentar a estruturação dos versos e das estrofes. Continua:
Aí queremos viver pra lutar
e encontro força em ti, amada identidade!
encontro sangue novo pra suportar esse fardo
nojento, arrogante, cruel…
e enquanto somos dóceis, meigos
somos petulantes e prepotentes
diante do poder mundial
diante do aparato bélico
diante das bombas nucleares (POTIGUARA, 2019, p. 115).
Possuir uma identidade formada é para os indígenas sinônimo de liberdade. A identidade
indígena recusa todo mal já apontado/apresentado a esse povo. A luta não acaba nunca. O texto
indígena reforça a potência de escrita que foi negada/retirada à força anteriormente. Sendo
assim, além das categorias de resistência e identidade, há outra que aparece no poema, a
57
liberdade. O indígena, após resistir contra todos os empecilhos para manter sua identidade,
busca ser livre, para viver bem em comunidade, com o próximo.
A liberdade aparece como uma categoria que existe a partir da ação de lutar. Os
indígenas lutam contra as imposições do colonizador e concretizam aos poucos essa liberdade
tão almejada. Assim, a última estrofe canta a liberdade e o resgate da memória:
Nós, povos indígenas
queremos brilhar no cenário da história
resgatar nossa memória
e ver os frutos de nosso país, sendo dividido
radicalmente
entre milhares de aldeados e “desplazados”
como nós (POTIGUARA, 2019, p. 115).
O poema encerra-se clamando por liberdade. Ser livre é essencial para manter viva cada
vez mais a memória e a ancestralidade indígena. O ato de ser livre só acontece pelo fato de o
indígena não aceitar ação de docilizar o corpo indígena, esse corpo que possui uma identidade
própria e que não precisa ser moldado em outra cultura.
A voz poética/indígena quer viver da identidade, da memória indígena, do resgate.
Embora “desplazados”, ou seja, deslocados, os indígenas não querem divisão entre os seus, mas
querem viver na tessitura do acolhimento, da unidade. Sendo assim, faz-se necessário entender
que:
Pensar a poesia em Eliane Potiguara é reconhecer a construção da diferença,
pois trata-se de uma poesia em que a identidade literária se constrói à luz das
tradições; como quer a voz da enunciação indígena (seja em verso, ou na
“contação de histórias) (GRAÚNA, 2013, p. 98).
Pensar a poesia de Potiguara é pensar o que Graúna (2013) fala, reafirmar a identidade
e perceber a voz indígena em questões de lugar/entrelugar, identidade/alteridade e autohistória.
De tal modo, o jeito próprio de Potiguara narrar seus poemas faz dela uma escritora indígena
que preserva a identidade do seu povo e que exclama na poesia gritos de liberdade.
58
4.3 A insurgência do herói indígena em O roubo do fogo, de Daniel Munduruku
– Quando leem minha biografia, dizem que não sou
mais índio, que já sou “civilizado”. Eu não sou índio e
não existem índios no Brasil. Essa palavra não diz o
que eu sou, diz o que as pessoas acham que eu sou.
Essa palavra não revela minha identidade, revela a
imagem que as pessoas têm e que muitas vezes é
negativa (SEGRANFEDO, 2017, s/p).
“Eu não sou índio”. Essa frase de Daniel Munduruku parte de um lugar de insatisfação.
O colonizador inventou esse termo que para muitos tem sentido negativo, pejorativo. É através
dessa indignação que a voz de Daniel Munduruku ecoa nos dias de hoje. O sujeito indígena
estando inconformado, não aceita essa passividade imposta desde séculos passados, ao
contrário, hoje em dia, luta para desmistificar estereótipos e propor uma nova narrativa.
Assim como diversos outros indígenas, Munduruku prefere o uso do termo indígena,
pois parte de um lugar mais próprio. Para Munduruku, o termo índio reforça preconceitos que
rodearam os povos indígenas por muito tempo e surge como um aspecto de negação e
inferioridade.
Desse modo, o último subtópico deste capítulo tem por finalidade apresentar Daniel
Munduruku como um escritor indígena brasileiro, que pertence ao povo Mundurucu, nascido
em Belém do Pará. De tal modo, destacarei sua produção literária que é principalmente voltada
para o público infantil e, também, como o escritor escreve a partir do seu lugar de fala, das suas
experiências, dos mitos e riquezas do povo indígena. Para tanto, analisarei o conto O roubo do
fogo (2005) para entender como se dá a construção do herói indígena na narrativa escrita por
ele, em contraposição às narrativas alencarianas.
As produções literárias de Munduruku, visam desmistificar os rótulos empregados na
figura do ser indígena, muito propagados no Indianismo, no qual o indígena era inferior ao
homem branco e submisso a ele. E, também, a noção do senso comum, no qual o indígena é
apontado como bárbaro e selvagem, pois, como fala o próprio escritor indígena “essas duas
vertentes, não dizem quem nós somos, elas dizem o que as pessoas acham que nós somos, o
que as pessoas querem que a gente seja, mas não somos nem uma coisa nem outra”
(MUNDURUKU, 2017, p. 19).
Rompendo barreiras e desmistificando ideias errôneas, Munduruku produz uma contra-
narrativa na literatura e na vida, pois, possui o que para muitos é impossível a um sujeito
indígena brasileiro. Munduruku é graduado em Filosofia e possui licenciatura em História e
59
Psicologia; além disso, é doutor em Educação pela USP e pós-doutor em Literatura pela
UFSCar.
Esse escritor indígena rompe com a ideia europeizada, sua escrita é fruto de uma vontade
de afirmar e reafirmar que o indígena é mais que uma representação idealizada. Em seus
escritos, visa à construção de uma identidade de sujeitos que são ricos linguística, cultural e
artisticamente.
Munduruku já produziu mais de quarenta obras literárias, seus livros visam,
primeiramente, atender ao público infantil. Dentre as diversas obras deste autor estão Coisas de
índio (2000), O sinal do pajé (2003), O segredo da chuva (2006) e O sumiço da noite (2006).
São narrativas carregadas de conceitos indígenas, de fácil leitura, e quase sempre acompanhadas
de ilustrações e de personagens narradores.
Na literatura indianista, o heroísmo do indígena está no fato de morrer/sofrer para dar
origem a um povo, ou então para que algo de melhor possa acontecer. Diferenciando-se desse
ideal e dessas propostas, há atualmente escritores indígenas como Daniel Munduruku, que
emergem com propostas que refazem a ideia do ser índio na literatura brasileira30.
A voz narrativa presente em Daniel Munduruku produz uma crítica às representações
anteriores, no qual o indígena morria, submetia-se e sofria. Dessa forma, a escrita deste autor,
muito embasada nos traços orais indígenas, demonstra a urgência de se falar de um indígena
não estereotipado, que não precisa ser submisso, mas, de um sujeito que luta pelo seu povo.
Munduruku em uma entrevista cedida a Bruno Ribeiro em fevereiro de 201031 quando
questionado sobre o que a literatura indígena teria a nos ensinar, disse:
A gente tem uma preocupação em educar a sociedade, em fazer com que ela
perca seus preconceitos e passe a olhar o índio como um igual, como parte do
povo brasileiro. Por isso, a nossa literatura não pode ser superficial, ela tem
que inserir o leitor no cerne da cultura indígena. Nós colocamos a nossa
riqueza a serviço da Nação (RIBEIRO, 2010, s/p).
É através dessa vontade de fazer sociedade repensar conceitos e ideias que, em O roubo
do fogo, Daniel Munduruku apresenta de forma sucinta a luta do povo indígena Guarani pelo
fogo, e apresenta uma nova visão de herói indígena com a coragem do personagem
Nhanderequeí. Trata-se de um mito, porém, pode-se perceber a construção do personagem
indígena em relação com o seu povo, seus parentes.
30 Sugiro a audição uma entrevista de Daniel Munduruku disponível em https://www.geledes.org.br/voce-sabia-
que-existe-diferenca-entre-as-palavras-indio-e-indigena/. Acesso em 26 de fevereiro de 2019. 31 Disponível em http://consciencia.net/entrevista-daniel-munduruku/. Acesso em 22 de fevereiro de 2019.
60
Assim, em suas narrativas, Daniel Munduruku visa proporcionar um novo olhar para os
povos tradicionais, e através da sua escrita busca demonstrar a coragem dos indígenas, não
recorrendo a velhos estereótipos, mas, dando ênfase ao indígena que luta por si, mas, acima de
tudo, pelo bem do seu povo.
Munduruku propõe uma ruptura com a ideia de indígena que se tinha/tem a partir da
literatura indianista. Assim, rompe também com a ideia colonizadora e europeizada, pois, ao
falar do colonizador, não o coloca como patrão do índio, mas como explorador dos seus
parentes. Dessa forma, quando questionado sobre a literatura que escreve, Munduruku em
entrevista concedida32 a Tatiana Ribeiro, em dezembro de 2014, disse:
Sempre faço questão de dizer que sou um indígena que escreve. Alguns
colegas escritores falam: ‘Mas, Daniel, você escreve bem… Por que tem que
colocar literatura indígena?’. Respondo que, se eu não colocar literatura
indígena, vão me comparar a José de Alencar. Não quero isso. Porque a
literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente. Tem muitos livros
de bons escritores que dizem bobagens sobre os indígenas. Não é culpa deles.
É o estereótipo que aprenderam e reproduzem. Hoje a literatura indígena é um
fenômeno no Brasil. São mais de 40 autores. É importante que a gente
reafirme de onde é que vem o que a gente escreve (RIBEIRO, 2014, s/p).
Sendo assim, Munduruku nos leva a pensar na literatura propriamente indígena,
produzida por esses mais de 40 escritores dos quais fala, fugindo dos estereótipos e das
comparações com Alencar. A voz de Daniel Munduruku é insurgente, pois diz não às
representações anteriores. Além disso, questiona o nome índio, pois, é carregado de
preconceitos, já que foi um nome dado pelo colonizador. Desse modo, é um escritor,
pesquisador e indígena questionador, preocupado com o seu povo e também com seus parentes.
Em O roubo do fogo, um conto mítico do povo indígena Guarani que fala as línguas
M’Bia, Nhandeva e Kaiowá, pertencentes à família Tupi Guarani e ao tronco Tupi, há o debate
que parte de um lugar próprio do indígena33.
Entendemos que o gênero conto é uma narrativa menor que o romance e a novela,
possuindo menos personagens e podendo tratar de qualquer tema, chama a atenção dos leitores
pelo fato de tudo tender para uma conclusão, muitas vezes rápida e inesperada. Sobre o conceito
do gênero conto, Gancho (2002, p. 8) diz:
É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar
conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo
de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI
32 Disponível em: https://www.geledes.org.br/daniel-munduruku-indio-e-invencao-total-folclore-puro/. Acesso
em 22 de fevereiro de 2019. 33 Nos anexos colocarei em imagem o conto formatado no livro Contos Indígenas Brasileiros, para que o leitor
possa ver a edição e uso da imagem/desenhos que acompanham o texto escrito.
61
e XVII, como Cervantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por
autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por
exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o
psicológico para elaborar o enredo (GANCHO, 2002, p. 8).
A linguagem presente em O roubo do fogo é carregada de emoções e ações. Este conto
possui um narrador observador que sabe todos os detalhes dos personagens, ele narra em
detalhes as ações de cada elemento presente na narrativa, desde os culturais até os estéticos. A
respeito da produção literária indígena, ao ser entrevistado por Cernicchiaro, Munduruku (2017,
p. 18), fala:
Gosto de pensar que estou ajudando o Brasil a olhar para os povos indígenas
sem o crivo dos estereótipos, sem a venda da ignorância, porque isso ajudaria
todos nós a termos uma ideia mais objetiva do nosso processo histórico,
colocando os povos indígenas nos lugares onde eles escolhem, ou seja, como
seres humanos, portanto, cheios de problemas, de dificuldades, com tentativas
de responder às angústias da existência, com a possibilidade de serem pessoas
violentas, ciumentas, raivosas, como todo ser humano (MUNDURUKU,
2017, p. 18).
A literatura indígena aponta um novo modo de ser ver o indígena na literatura brasileira,
e colabora para que o leitor fuja das ideias mecanizadas. Em O roubo do fogo, há uma luta
constante pela busca do fogo, visto que o povo Guarani não possuía este elemento, nem sabia
produzi-lo. Só quem possuía o fogo eram os urubus, que iam até o sol e pegavam brasas e
detinham esse elemento, porém, não compartilhavam com ninguém:
É claro que todos os urubus tomavam conta das brasas como se fosse um
tesouro precioso e não permitiam que ninguém delas se aproximasse. Os
homens e os outros animais viviam irritados com isso. Todos queriam roubar
o fogo dos urubus, mas ninguém se atrevia a desafiá-los (MUNDURUKU,
2005, p. 15).
Neste fragmento, percebemos os detalhes presentes na narrativa, é notável que a
narrativa escrita segue o roteiro da narrativa oral, com sua carga de detalhes e ações. O modo
como é narrado apresenta resquícios de oralidade, trazendo a memória dos anciãos para o texto.
Sendo o fogo um elemento desejado pelos indígenas, algo precisaria ser realizado, mas
como? Ninguém ousava desafiar os urubus, eles detinham o fogo e o guardava com grande
proteção. Então, a narrativa apresenta alguém que ousa desafiar os urubus, o herói indígena
surge para lutar pelo seu povo.
Nhanderequeí, guerreiro indígena, decide armar um plano para capturar o fogo,
conseguindo-o depois de muito esforço. Assim, percebemos como a narrativa é detalhista, pois
62
enfoca a partir de determinado momento a coragem do personagem herói, que ousa fingir-se de
morto para roubar o fogo dos urubus:
Todos concordaram e procuraram um lugar para se esconder. Não sabiam por
quanto tempo iriam esperar. Nhanderequeí deitou-se. Permaneceu imóvel por
um dia inteiro [...] O herói permaneceu o segundo dia do mesmo jeito. Sequer
respirava direito para não criar desconfianças nos urubus que continuavam
rodeando seu corpo. Foi no fim do terceiro dia, no entanto, que as aves
baixaram as guardas. Ficavam imaginando que não era possível uma pessoa
fingir-se de morta por tanto tempo (MUNDURUKU, 2005, p. 16).
A construção do herói indígena dá-se de modo objetivo, primeiro ele se propõe a fingir-
se de morto, monta o plano e organiza táticas para capturar o fogo. Percebe-se que não pensa
em abandonar seu povo, mas, em conseguir o objeto que todos almejavam. O heroísmo não está
em ter conseguido o fogo, mas, em propor capturar àquilo que todos queriam. A ousadia de
Nhanderequeí, a coragem também, faz dele um herói. Assim, enquanto em Iracema e O
Guarani, Iracema e Peri submetiam-se ao homem branco. No conto, o personagem indígena
submete-se a seu povo, não como obrigação, mas como meio de obter o que o povo almejava.
A narrativa é construída de modo a instigar o leitor a possuir um olhar mais aprimorado
no ato do guerreiro Nhanderequeí, que se propõe a realizar o que fosse preciso para conseguir
o fogo. Com sua coragem e ousadia, a narrativa começa a desenvolver-se, pois é a partir de sua
ação que acontece o clímax do conto, o momento da captura do fogo. Então, devido a todo o
esforço e heroísmo de Nhanderequeí o povo lutou e conseguiu o fogo para suas utilidades,
porém, graças também à esperteza de outro herói presente na narrativa, o pequeno sapo Cururu:
Acontece que, por trás de todos, saiu o pequeno cururu, dizendo: - Durante a
luta os urubus se preocuparam apenas com os animais grandes e não notaram
que eu peguei uma brasinha e coloquei na minha boca. Espero que ainda esteja
acesa. Mas pode ser que... - Depressa. Pare de falar, meu caro cururu. Não
podemos perder tempo. Dê-me esta brasa imediatamente - disse
Nhanderequeí, tomando a brasa em suas mãos e assoprando levemente
(MUNDURUKU, 2005, p. 18).
Um debate emerge a partir das análises das obras O roubo do fogo, Iracema e O
Guarani, a diferença na construção dos personagens é grande, de uma estética a outra, o tempo,
os espaços e os escritores também. As representações de Alencar, seguindo os pressupostos do
Romantismo, criaram um índio europeizado. A proposta dos escritores indígenas, de Daniel
Munduruku, propõe o indígena na literatura de maneira a se perceber a história, a cultura dos
povos indígenas.
Não há a presença do colonizador nesse conto (como centro e/ou condutor da narrativa)
produzido pelo escritor indígena. Criou-se esta ideia no Brasil, de que falar do indígena precisa
63
colocar o colonizador como ápice do debate. É importante salientar que a história sempre é
distorcida e o que invade acaba sendo ajudado pelo que foi invadido. Porém, vale lembrar que
em Ubirajara (2015) também não há a presença do colonizador, mas, devido questões políticas
do escritor. Em Alencar o índio é imaturo e selvagem, já em Munduruku, o colonizador não
está pois o indígena não precisa dele para narrar sua história.
Por diversos motivos há de se colocar em debate que há a contradição de concepções de
heróis diferentes nas narrativas de Alencar e de Munduruku. Dessa forma, é de grande
importância destacar a emergência da literatura indígena, que produz essa contra-narrativa em
relação ao cânone literário, no qual o próprio indígena fala do indígena sem desmerecer seu
povo. Dessa forma, para Graúna (2012, p. 275), “fazer literatura indígena é uma forma de
compartilhar com os parentes e com os não indígenas a nossa história de resistência, a nossas
conquistas, os desafios, as derrotas, as vitórias [...]”.
Todavia, a literatura indígena produz um discurso que não é personificado ou
demonstrado, mas, sim, um discurso de si mesmo, das suas origens, dos seus rituais e
conhecimentos, um discurso potente e preciso em contraposição às noções estereotipadas e
limitadas das expressões literárias em que o índio foi demonstrado anteriormente.
No final do conto, após a demonstração de coragem do herói Nhanderequeí, o povo
Guarani guarda o fogo, o tão esperado elemento. Após o plano do personagem que se dispôs a
lutar pelo seu povo, os indígenas conseguem o que queriam e passam a preservar esse elemento
essencial, então:
Percebendo que tudo estava sob controle, o herói ordenou que seus parentes
encontrassem madeiras canelinha, criciúma, cacho de coqueiro e cipó-de-sapo
e as usassem sempre toda vez que quisessem acender e conservar o fogo. Além
disso, o corajoso herói ensinou os Apopocúva a fazer um pilãozinho onde
guardar as brasas e assim conservar o fogo para sempre. Dizem os velhos
desse povo que até os dias de hoje os Apopocúva guardam o pilãozinho e
aquelas madeiras (MUNDURUKU, 2005, p. 19).
Assim, o fogo passou a ser posse do povo Guarani e foi passado de geração para geração.
Logo, o título do conto demonstra essa ação de roubar, para preservar o elemento essencial e
vital aos povos. A construção dessa narrativa reforça o novo modo de se ver o sujeito indígena
na literatura, não apenas como um mero personagem, mas, sim, como aquele personagem que
luta e que é destemido.
O modo como é representado o indígena em O roubo do fogo nos leva a perceber que
não é apenas uma ação de desmistificação de rótulos e estereótipos, mas, de potência afetiva e
64
diversidade multicultural que os indígenas possuem. Munduruku, em seus escritos, escreve com
urgência; esta urgência é causada pelas ações atribuídas aos sujeitos indígenas. Desse modo,
sua voz, inconformada com essas propostas, produz um discurso de desmistificação das ideias
existentes, e também um discurso de si, da sua vivência, dos seus costumes.
De tal forma, assim como as literaturas indígenas e a escrita de Munduruku, o Toré é
fator de luta. A literatura questiona pressupostos. O Toré afirma: nós, povos indígenas, somos
a voz da esperança, por isso, antes de convidá-lo para dançar, gostaria de dizer também que:
É através do Toré que nos identificamos como povo indígena. Mas, vale
ressaltar que cada dança tem a função de demonstrar a realidade específica de
cada comunidade indígena. Para nós Katokinn, o toré contribui bastante nos
momentos culturais, nos rituais e no fortalecimento da crença e da
religiosidade (Maria Aparecida – Liderança Katokinn).
A literatura indígena de Daniel Munduruku assume um lugar próprio e nos faz pensar
na representação que o eu indígena faz de si mesmo. Assim como a literatura dos escritores
indígenas anuncia a liberdade do ser indígena, o Toré proclama, convida-nos a cantar e aspirar
àquilo que é bom para o mundo e para nós. Assim, nas considerações, vamos dançar o Toré,
pois a poesia do dançar nos encaminha para a liberdade.
65
5. POR ENQUANTO, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: VAMOS AO TERREIRO
DANÇAR O TORÉ?
Vamos minha gente, que uma noite não é nada. Vamos
minha gente, que uma noite não é nada, pois quem
chegou foi Katokinn, no romper da madrugada (canto
do Toré Katokinn).
A literatura indígena funciona como mecanismo de retorno ao passado, porém, esse
mecanismo não aceita as imposições e os sofrimentos que os povos indígenas vivenciaram. A
escrita literária indígena está embasada na memória e na ancestralidade de povos que, embora
perseguidos, jamais perderam sua identidade.
Na verdade, realizar esta pesquisa fez com quem eu me encontrasse, me sentisse afetado
e passasse por um processo de descolonização do pensamento. Pesquisar sobre literatura
indígena, a escrita de povos que mantêm uma relação ancestral comigo foi, de fato, momento
ímpar para mim.
O desenvolver desta pesquisa contribuiu também para a formação do meu eu enquanto
sujeito pesquisador, estudante e indígena. Mesmo sendo a literatura um campo ficcional, ao
entrar no texto canônico, eu não me via enquanto sujeito. Sendo assim, esta pesquisa colabora
para que muitos, assim como eu, possam problematizar e questionar pressupostos, que por
vezes, são considerados irreparáveis.
O cânone literário existe e entendo que ele seleciona obras e autores. Os escritores
indígenas escrevem dentro dos gêneros canônicos, tanto na prosa, quanto na poesia, porém,
suas obras, para o cânone, não possuem um valor estético assim como as obras de José de
Alencar. Retorno às palavras de Reis (1992) quando diz que o que é problemático, em suma, é
a existência de um cânone na sociedade, que compartimenta, separa e exclui. Sendo assim,
entendo que o cânone continuará a existir em nossa sociedade, que determinados autores e
determinadas obras continuarão a exercer importância mais que outras/os, entretanto, o que me
deixa tranquilo é saber que as literaturas que não são canônicas não irão parar de produzir, de
escrever, e aqui incluo a literatura indígena.
A voz poética nas poesias de Graça Graúna continuará a exclamar, a literatura da
indígena Potiguara carregada de memória e ancestralidade levará o texto literário que fala do
indígena a diversos outros lugares, à academia, às escolas, ao leitor conservador canônico,
inclusive. Se o colonizador chegou aqui e viu Terra à vi$ta, a indígena Graça Graúna vê que é
possível o indígena falar de si mesmo, sem um outro para representá-lo.
66
Em Eliane Potiguara a identidade é reforçada e continuará a ser, as coletividades
herdadas dos ancestrais que, quando aparecem no texto literário, reverberam conhecimentos de
diversas gerações, fazem/farão os brancos reconhecerem que os povos indígenas brasileiros
existem e resistem e possuem uma identidade indígena bem formada.
Através da escrita potente de Daniel Munduruku, o sujeito indígena, quando
representado no texto literário não cai em estereótipos, pois Munduruku aponta em suas
narrativas heróis insurgentes, não heróis servis e submissos ao colonizador, pois usam da
criatividade, da esperteza e assim como buscaram o fogo, buscam o respeito. Com isso, a escrita
de Graúna, Potiguara, Munduruku e tantos outros escritores indígenas, cicatriza feridas, embora
a mancha da chibata permaneça.
Assim, entendo que o texto literário sendo escrito pelo próprio indígena, descendendo
da oralidade, é carregado de marcas próprias. O próprio indígena se autodenomina, fala de si,
do seu povo, não pelas vozes de outrem, mas através da sua própria voz, das suas vozes, das
coletividades indígenas.
Compreendendo as propostas do cânone literário brasileiro e seus processos de seleção
e exclusão, podemos reforçar que a literatura dos povos indígenas continua e continuará viva
em nosso meio, mesmo sendo negada pelo cânone. Cada vez mais, escritores e escritoras
indígenas transmitem o conhecimento para as novas gerações, fazendo com que não se perca
aquilo que os ancestrais, os pajés e caciques guardaram por tanto tempo. É literatura,
conhecimento e tradição.
Assim, usamos da literatura para lutar também por nosso território, seja ele físico,
literário ou social. Os povos indígenas merecem respeito. Graúna (2013) diz que a literatura
indígena pulsa e que a sua força atravessa fronteiras! Essas fronteiras ainda são muitas em pleno
século XXI, no entanto, nenhuma voz indígena se calará e nenhum sangue será derramado
novamente. Nenhuma gota a mais!
O dessilenciamento de escritores indígenas como Graça Graúna, Eliane Potiguara e
Daniel Munduruku me faz crer que não estou só. Que, além deles, há outros que andam comigo,
que lutaram e lutam para que eu/nós possa(mos) resistir.
Sendo assim, perceber que o texto literário de voz indígena colabora com veemência
para que imagens acerca do indígena produzidas também no texto literário, em outros séculos,
possam ser problematizadas, faz-me compreender que muito ainda pode ser escrito,
problematizado e debatido. Que assim como Graúna, Potiguara e Munduruku eu não me cale.
Esta pesquisa é um bom começo, em silêncio eu não fico mais. Comecei a falar agora!
67
Identificação, fortalecimento, resistência, assim como a literatura indígena é o Toré, é
também o povo indígena brasileiro. Estereótipo? Discurso colonial? Preconceito? Essas
palavras não compactuam com a luta desse povo. Se em Alencar, à luz da estética romântica,
se construiu um imaginário europeizado do índio brasileiro, o que vem adiante surge para
repensar, problematizar e desmistificar tudo que foi posto anteriormente.
Sendo assim, vamos agora ao terreiro da vida dançar! A rodada começou. O Toré é
resistência. Respeite o terreiro que é o coração da comunidade. Que as forças encantadas
estejam conosco e que os indígenas possam viver dias melhores, cantando o canto da liberdade
e da paz!
68
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72
7. ANEXOS
GRAÇA GRAÚNA
Imagem disponível em: https://www.livrariamaraca.com.br/escritores-indigenas/.
Acesso em 26 de novembro de 2019.
ELIANE POTIGUARA
Imagem disponível em: http://www.elianepotiguara.org.br/. Acesso em 26 de novembro
de 2019.
73
DANIEL MUNDURUKU
Imagem disponível em: http://danielmunduruku.blogspot.com/p/daniel-
munduruku.html. Acesso em 26 de novembro de 2019.
LIVRO EM QUE SE ENCONTRA O CONTO O ROUBO DO FOGO DE DANIEL
MUNDURUKU (2005)
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