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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 5, JUL/DEZ 2008
Leis orçamentárias e vinculação do Executivo em sua execução1
Frederico Augusto d’Avila Riani*
Resumo O texto trata do caráter impositivo do orçamento público para se chegar à conclusão de que a lei orçamentária, devido ao seu processo democrático de elaboração, gera direitos subjetivos naquilo em que diretamente concretiza a Constituição, sendo, portanto, neste aspecto, impositivo ao Executivo. Palavras-chave: Constituição, orçamento público, direito subjetivo, imposição ao Executivo.
1 Capítulo de Tese de Doutorado do autor, cujo título é: A vinculação do chefe do Executivo à Lei
Orçamentária no cumprimento das determinações constitucionais, defendida em 16 de novembro de 2005, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com adaptações para o artigo. * Mestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador e Professor do Curso de Direito da Faculdade Metodista Granbery, Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2
1. Introdução
O que se pretende é identificar a natureza jurídica da elaboração e da execução
orçamentárias para que se chegue a uma conclusão sobre a existência, ou não, de
vinculação do Executivo na execução do orçamento. Não se afigura razoável o
entendimento de que após todo o processo legislativo orçamentário, que sucede à
atividade de planejamento e elaboração do projeto de lei pelo Executivo, o orçamento
seja mera peça autorizativa de gastos públicos.
É pacífico que, no que diz respeito às vinculações constitucionais expressas, o
Executivo não tem liberdade na aplicação dos recursos. No entanto, o que se defende
neste trabalho, e é contrário ao entendimento pacífico da doutrina jurídica, é que o
Executivo também não tem liberdade na execução orçamentária naquilo em que a
aplicação concreta de recursos públicos visa realizar a Constituição. Ou seja, se há
determinação constitucional (imposição constitucional) para a concretização de certos
valores, a partir do momento em que se tem um processo democrático de escolhas de
prioridades através da interação entre Executivo e Legislativo e, até mesmo, com a
participação popular direta, cessa qualquer possibilidade de discricionariedade na
alocação ou não de recursos para realização dos programas constitucionais.
A normatividade da Constituição só se mantém se não perder sua legitimidade.
Esta, por sua vez, está ligada à sua adequação a uma dada condição histórica.
Hodiernamente, é consensual no Brasil a necessidade de transformações sociais, as
quais foram positivadas na Constituição. Vejam-se, por exemplo, os objetivos
fundamentais da República brasileira, estabelecidos no art. 3o da Constituição Federal.
Eles buscam a integração da sociedade nacional, que só será conseguida com a
transformação da realidade brasileira. A título de ilustração, colaciona-se o
entendimento de Gilberto Bercovi2.
2 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e superação das desigualdades regionais. Direito Constitucional –
estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros 2001, p. 98.
3
O art. 3o da Constituição, ao fixar o desenvolvimento nacional e
a redução das desigualdades regionais como fins a serem
alcançados, fundamenta a reivindicação do direito à realização
de políticas públicas para a concretização do programa
constitucional. O que há em comum em todas as políticas
públicas é o processo político de escolha de prioridades para o
governo, tanto em termos de finalidades como em termos de
procedimentos.
Esta transformação só se tornará fato com a atuação estatal concreta, através de
prestações positivas do Estado. Por conseqüência, dois aspectos devem ser observados:
(i) em havendo uma imposição normativa constitucional, tendo em vista a supremacia
da Constituição, não há liberdade do Executivo na alocação dos recursos previstos
orçamentariamente para a concretização das imposições constitucionais; e (ii) caso haja
o descumprimento reiterado desta concretização, a Constituição perderá sua força
normativa, podendo levar ao fenecimento do Estado democrático de direito.
Não se há de falar em violação da liberdade do Executivo, ou do engessamento
da Administração. No exercício da função política ou de governo, há uma ampla
discricionariedade da Administração para, tendo em vista a escassez de recursos para a
solução dos inúmeros problemas públicos, escolher, priorizar a alocação de recursos em
certos projetos. Estas escolhas se materializam na lei orçamentária anual, fruto do
processo orçamentário.
Ao se optar por determinado gasto, resolve-se, pelo menos num primeiro
momento, o problema da “reserva do possível”, uma vez que, por este processo,
escolhas democráticas são feitas sobre onde, como e quando efetivar as transformações
sociais determinadas pela Constituição. Isto deve caracterizar o orçamento como um
meio de concretização das decisões políticas da comunidade.
O que se precisa compreender é que as disposições constitucionais devem ser
levadas a sério, inclusive a obrigatoriedade de execução da lei orçamentária. A seguir,
demonstrar-se-á o que aqui se esboçou, tratando, de forma um pouco mais detida, da
noção de orçamento e seu processo criativo democrático.
4
2. Leis orçamentárias: processo democrático para a definição de alocação de
recursos financeiros do Estado e conseqüente concretização das imposições
constitucionais
2.1. Breve nota histórica sobre o orçamento
De certa maneira, pode-se afirmar que o embrião de orçamento público estava
presente já na Magna Carta de 1215, em que o Rei João, da Inglaterra, conhecido como
João-Sem-Terra, declarou certos privilégios dos barões feudais, deixando implícito que
o rei achava-se vinculado pelas leis que editava, essas leis traziam, já, o germe da
destruição do regime feudal, reconhecendo direitos subjetivos dos governados, que
independiam do monarca e a ele limitavam.
A Cláusula 12 continha a necessidade do consentimento dos súditos para o
exercício do poder tributário, proibindo tributação sem o consentimento dos
contribuintes.
Esta Cláusula 12 pode ser considerada o esboço de um orçamento público, ainda
que não envolvesse o lado da “despesa pública”, uma vez que esta só teria lugar em
havendo recursos para fazer-lhe face;e esses recursos dependiam de uma prévia
autorização parlamentar.
A partir do início do século XX, notícia Giacomoni3, grande influência tiveram
os norte-americanos no desenvolvimento do orçamento público. Como no início
daquele século os superávits nos Estados Unidos passaram a não ser tão freqüentes, fato
aliado a uma tomada de posição contrária à corrupção e às negociatas, foi criada pelo
Presidente Tafl a Comissão de Economia e Eficiência, com o objetivo de realizar um
amplo estudo sobre o funcionamento da administração federal e sua modernização.
Em 1912, após dois anos de trabalho, o Presidente encaminhou ao Congresso o
relatório da Comissão e recomendou a adoção de um verdadeiro orçamento nacional em
que era apresentado ao Congresso um programa administrativo de trabalho a ser
cumprido. Os congressistas, politicamente interessados em manter a ascendência sobre
o Executivo, não aprovaram a proposta.
3 GIACOMONI, James. Orçamento Público. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 48 e s.
5
No entanto, a progressiva complexidade da máquina administrativa determinou a
adoção de uma “reforma orçamentária” com a aprovação, em 1921, da Lei de
Orçamento e Contabilidade (Budget and Accouting Act).
Depois da Segunda Guerra Mundial, outra reforma orçamentária foi implantada,
com a adoção do chamado orçamento de desempenho (performance budget)4, em
contraposição à quase totalidade das reformas orçamentárias realizadas até a década de
20, que buscavam melhor distribuir as competências entre o Legislativo e o Executivo
nas diversas fases do processo orçamentário. A nova fórmula buscava aproximar a
técnica orçamentária e o planejamento (instrumento gerencial que começava a ter ampla
aceitação) 5.
Em seguida surgiu a técnica conhecida por PPBS (Planning, Programming and
Budgeting System) – Sistema de Planejamento, Programação e Orçamento. Esta técnica
se caracteriza por dar ênfase aos objetivos, aos programas, e nos impactos decorrentes
do atingimento das metas.
Assim, gradativamente, o orçamento tradicional, organizado como mero
demonstrativo de autorizações legislativas de despesas, cuja função principal era a de
possibilitar aos órgãos de representação um controle político sobre o Executivo, pois
punha frente a frente despesas e receitas, as reformas orçamentárias foram levando os
orçamentos públicos a constituírem-se em instrumentos de administração, auxiliando o
Executivo na programação, execução e controle das despesas públicas, apresentando
propósitos para os quais os créditos se fazem necessários, custos dos programas que
devem atingir aqueles fins e meios para mensurar as realizações.
Atualmente, tendo em vista a crise econômica por que passa grande parte a
generalidade dos países, as políticas econômicas têm sido inibitórias dos gastos
públicos. Isto faz com que o orçamento tenha um papel de controle econômico das
despesas públicas e não mais (pelo menos não prioritariamente) um papel de controle
político e administrativo. Em síntese, o orçamento deixou de ser um instrumento de
realização de políticas públicas e controle político do governo para se tornar,
simplesmente, mecanismo de controle econômico, visando a inibição da expansão das
despesas públicas para a realização de superávits.
4 A Comissão de Organização do Setor Executivo do Governo propôs, em 1949: Recomendamos que o conceito de orçamento do Governo Federal seja inteiramente reformulado pela adoção de um orçamento baseado em funções, atividades e projetos: a isto denominamos orçamento de desempenho. Apud James GIACOMONI. Orçamento Público. p. 50. 5 GIACOMONI, op. cit., p. 50.
6
Neste sentido, ou seja, com o intuito de regularizar as contas públicas e restringir
os gastos estatais ao efetivamente arrecadado, foi criada, no direito brasileiro, a
chamada Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar n° 101/2000, que visa
primordialmente combater o déficit fiscal limitando as despesas de pessoal, dificultando
a geração de novas despesas e induzindo, também, à obtenção de superávits – ainda que
em seu conteúdo estejam previstas ações planejadas e a participação popular. É o que se
pode concluir do artigo primeiro e seu parágrafo primeiro da referida Lei:
Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças
públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com
amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.
§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação
planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem
desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas,
mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e
despesas e a obediência a limites e condições no que tange a
renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da
seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária,
operações de crédito, inclusive por antecipação de receita,
concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
2.2. Aspectos políticos e jurídicos do orçamento
Como visto, além do caráter técnico-contábil, que possibilita o estabelecimento
de regras práticas para o controle das receitas e despesas públicas, o orçamento também
tem um caráter político, econômico e jurídico.
O viés político do orçamento está relacionado ao direcionamento dos recursos
públicos para a solução de problemas de determinados grupos sociais ou regiões. O
sentido econômico relaciona-se com a política fiscal adotada por um determinado
governo. E o aspecto jurídico trata da união entre o orçamento e as instituições
constitucionais do país e as conseqüências dessa relação.
Interessa ao presente trabalho o aspecto jurídico do orçamento, mas não
prescinde ele de uma análise, ainda que perfunctória, do seu sentido político.
2.2.1. O aspecto político
Com o estabelecimento do Estado liberal e sua finalidade de se contrapor ao
Estado absolutista, vinga o primado da lei. E o sistema normativo organiza a
7
convivência humana assegurando a liberdade do homem, (ainda que não se possa falar
em democracia) restringindo a interferência estatal e de particulares na esfera privada.
Nesse Estado liberal, a vontade do governante é substituída pela vontade da lei,
o que proporcionou a institucionalização do poder, com a supremacia da lei, e, portanto,
do Legislativo, sobre os demais poderes estatais. Isto porque o Estado não deveria
significar um poder que age, mas, ao contrário, um poder que amplia a liberdade de
empreender e a assegura a partir de seu aparato. Torna-se o Estado, na verdade, um
agente garantidor do status quo.
Conforme Fábio Konder Comparato6, “a montagem constitucional do Estado
moderno foi feita, inteiramente, com base nessa substituição da vontade individual dos
governantes pela autoridade da norma geral, superior e permanente, isto é, da lei no
sentido solene que a palavra apresentava em suas origens”.
Entretanto, neste mesmo momento de consolidação do Estado liberal, via-se a
Europa mergulhada no que se denominou revolução industrial, que representou a
concretização do sistema capitalista.
O processo de acumulação de capital que se verifica com a concentração dos
meios de produção e de grandes somas de dinheiro nas mãos de uma minoria ocorrido
não somente no setor industrial, mas, também, na agricultura e no comércio, retirou dos
camponeses e artesãos a capacidade individual produtora de riqueza, levando à falência
as antigas corporações de ofício e manufaturas. As massas de trabalhadores, ainda que
efetivas produtoras da riqueza, só tinham de seu a força de trabalho, sendo dependentes
dos meios de produção. Ou seja, os trabalhadores, ainda que não constituíssem mão-de-
obra servil ou escrava, encontravam-se dependentes dos donos do capital.
Nessa fase, o sistema capitalista fundava-se na propriedade privada dos meios de
produção pela burguesia, que teria total liberdade para contratar, inclusive para
estabelecer os termos das relações trabalhistas, não sendo as atividades econômicas
reguladas ou controladas pelo Estado; a esta cabia apenas manter a ordem necessária
para assegurar o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Era condizente com
este sistema uma inação administrativa do Estado, com a supremacia estatal repousando
no Legislativo como órgão representante, por excelência, da “soberania popular”.
6 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba 2. Direito Administrativo e Constitucional. Org. Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 345.
8
Como conseqüência deste estado de coisas, o sistema liberal foi contestado por
movimentos sociais que culminaram no aplacar o poder da burguesia, repartindo-o com
as massas populares através do sufrágio universal.
Bonavides7 deixa claro que o velho liberalismo, entrando em crise, não pôde
resolver o problema das vastas camadas proletárias da sociedade: ele “não dava
nenhuma solução às contradições sociais, mormente daqueles que se achavam à margem
da vida, desapossados de quase todos os bens”.
Assim, o sufrágio universal, fruto de penosos embates político-sociais, foi
conquistado com um mínimo de restrição, reconhecendo-se liberdade política à massa
de trabalhadores, com a derrubada do sufrágio sensitário. Conseqüentemente, “a velha
burguesia liberal reparte esse controle (do Estado) com as demais classes, notadamente
a classe com a qual se achava envolvida num antagonismo de morte”8.
Obviamente, a massa proletária não se contentou com o direito ao voto: utilizou-o
em benefício próprio, criando legislação que visava amortecer os desníveis sociais.
Surge, desta forma, o Estado social, que não se confunde com o Estado socialista,
de viés marxista, mas que se identifica com a transformação do Estado liberal, passando
para um Estado intervencionista, que tem preocupações democráticas com o grosso da
comunidade.
Neste sentido é o entendimento de Bonavides9:
Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderia econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social.
7 BONAVIDES. Do Estado Liberal ao Estado Social. p. 188. 8 Ibid., p. 189. 9 Ibid., p. 186.
9
Com a substituição do Estado liberal pelo Estado social, a legitimidade do
Estado passou a ser, nas palavras de Comparato10, a “capacidade de realizar, com ou
sem a participação ativa da sociedade – o que representa o mais novo critério de sua
qualidade democrática -, certos objetivos predeterminados”.
A atuação desse Estado social tem uma orientação finalística, visando a
implementação de condições básicas de igualdade entre os diversos grupos sociais. Para
que não se chegue a uma situação caótica, por uma atividade estatal desorganizada, é
preciso um planejamento estratégico. Resumindo em uma expressão, é preciso criar e
implementar políticas públicas.
Políticas públicas, nos dizeres de Maria Paula Dallari Bucci11, “são programas
de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e
politicamente determinados. São metas coletivas conscientes ...”.
Na verdade, como a própria autora entende12, política pública deve ser
compreendida como processo tendente a uma escolha coletiva de prioridades, para a
definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito. Nesse processo,
desempenha papel relevante o Executivo. Este, com sua burocracia e interação política,
é o grande agente desencadeador dos projetos de políticas públicas. No entanto, é
importante identificar o órgão (ou órgãos), estatal detentor da competência para
elaboração dessas políticas, porque não está integralmente nas mãos da Administração
Pública o estabelecimento das políticas públicas. Antes, cabe ao Legislativo, como
órgão representante da pluralidade social, traçar as suas grandes linhas, conciliando as
leis do plano de políticas com os princípios republicano e democrático; e, ainda, fazê-lo
em consonância com a continuidade que a administração pública deve manter na
realização das obras e serviços demandados pelos planos, independentemente do
governo de plantão.
Neste sentido é o entendimento de Maria Paula Dallari Bucci13:
... como programas de ação, ou como programas de governo, não parece lógico que as políticas possam ser impostas pelo
10 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba 2. Direito Administrativo e Constitucional. Org. Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 350. 11 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 241. 12 Ibid., p. 264. 13 BUCCI, op.cit., p. 271.
10
Legislativo ao Executivo. A origem normativa da política pública, mesmo que resulte da iniciativa legislativa do governo (Poder Executivo), é do Poder Legislativo. No entanto, diante da dimensão assumida hoje pelo fenômeno da normatividade do Poder Executivo, é de se pensar que o mais adequado seria a realização das políticas pelo Executivo, por sua própria iniciativa, segundo as diretrizes e dentro dos limites aprovados pelo Legislativo.
A realização concreta das políticas públicas demanda atuação normativa do
Executivo. Como já se salientou em capítulo anterior deste trabalho, a atuação do
Executivo através de atos genéricos e abstratos não se confunde com a função
legislativa propriamente. Pode-se referir a esta atuação da Administração, em especial a
partir da instituição das chamadas agências reguladoras, como atos quase-legislativos,
uma vez que nem as agências nem o Chefe do Executivo, com seus decretos normativos
autônomos, estão autorizados, segundo o direito constitucional positivo vigente no
Brasil, a inovar primariamente a ordem jurídica. O princípio da legalidade é cláusula
constitucional expressa e pétrea, o que impede a Administração de atuar sem prévia
autorização legal.
De forma alguma isto significa que o Legislativo tenha o dever de esgotar a
regulação de certas matérias ou a normatização de políticas públicas. Poderá ele
determinar à Administração tanto os fins a serem alcançados quanto os meios. Em
estabelecendo apenas os fins, não poderá a Administração atuar de forma conflitante
com a escolha política, mas, para isso, escolherá os meios adequados. O que não poderá
fazer, nesse caso, é agir de forma a contradizer os ditames legais.
Deve-se compreender que a elaboração de políticas públicas é função estatal
essencialmente política. É daquelas atribuições decorrentes diretamente da Constituição
(das constituições programáticas ou dirigentes), o que inviabiliza qualquer afirmação no
sentido de que sejam atos apartados do direito. Trata-se de função balizada pela
Constituição, que deve ser exercida tanto pelo Executivo como pelo Legislativo. Em
grande parte das vezes o exercício desta função materializa-se em leis, que é o resultado
da atuação do Executivo quando exerce função política consubstanciada nos atos de
iniciativa legislativa e de sanção de projeto de lei e do Legislativo, por meio de todo o
processo político de criação legislativa.
Este é o ponto de elaboração de políticas públicas. O ponto de desenvolvimento
da constituição programática ou dirigente, que tem por fim densificar as decisões
políticas a serem executadas no nível administrativo. Não se trata, ainda, do ponto de
11
execução ou concretização material, no mundo dos fatos, das imposições
constitucionais. Tem-se, na elaboração destas políticas, um primeiro nível de
concretização constitucional. Com a implementação dessas políticas, no nível da
Administração Pública, concretiza-se os planos, que são a face normativa das políticas
públicas, dando-lhes efetividade ou eficácia social.
Entretanto, entre o processo de elaboração e aprovação dos planos e sua
execução concreta há uma etapa intermediária: é preciso prever recursos e, depois,
arrecadá-los e alocá-los na realização das obras e serviços públicos.
É a partir do orçamento público, que no Estado brasileiro contemporâneo
demanda a elaboração prévia do orçamento plurianual e da diretrizes orçamentárias, que
há a fixação da previsão de receitas e a autorização da entrega de prestações (dinheiro)
para o funcionamento da máquina estatal, o desenvolvimento das imposições
constitucionais, e a alocação de recursos com destinação prevista no debate político-
democrático travado no parlamento.
O orçamento é, pois, instrumental em relação à implementação de políticas
públicas e à realização do programa governamental. Entretanto, muitas vezes, a previsão
de destinação dos recursos não atende a uma sistematização, com vistas a otimizar os
gastos públicos, porque a peça orçamentária é inchada para atender demandas dos
políticos.
Frise-se que, em verdade, a lei orçamentária é documento que conta com certo
grau de legitimidade, ainda que não seja fruto exclusivamente da razão, uma vez que o
orçamento, além de instrumentalizar as políticas públicas institucionalizadas, também
tem a finalidade de alocar recursos para atender a demandas sociais desconectadas de
algum plano orgânico estabelecido pelo Estado; estas, em sua grande maioria (para não
se dizer na totalidade) são oriundas de emendas do parlamento ao projeto de lei
orçamentária para atender a interesses “paroquiais”, que são, muitas vezes, legítimos,
mas desprovidos de qualquer sistematização com relação às políticas públicas
elaboradas e aprovadas pelo governo e pelo parlamento.
Por tudo que até aqui se expôs pode-se concluir que, se inicialmente a questão
orçamentária estava relacionada com a receita, uma vez que os tributos deveriam ser
consentidos pelos representantes dos contribuintes, cada vez mais há uma preocupação
com a outra “ponta” do orçamento, qual seja o gasto público. Com o sufrágio universal
e a possibilidade de melhor representação das minorias políticas, há uma inversão das
despesas públicas para o atingimento de interesses de diversas classes sociais. O
12
fortalecimento das massas populares muda o caráter do orçamento e a atitude dos
parlamentares. “Ao invés da defesa obstinada do contribuinte, os parlamentares do
nosso tempo cuidam de pleitear despesas nos setores que interessam às massas”14.
Assim, o exame da peça orçamentária indicará em proveito de quais grupos sociais ou
regiões o aparelho estatal apontará sua artilharia para a solução de problemas.
Esse processo político de determinação da alocação de recursos públicos inicia-
se através da formação de partidos políticos que reúnem pessoas com interesses em
comum e que têm o intuito de alcançar o poder por meio das eleições. Isto porque os
partidos existem para propagar uma idéia de Estado, uma determinada concepção de
Estado e, ao alcançar o poder (ganhar as eleições), implantar essas idéias – seu
programa de governo. Para executar o seu programa político, o governo precisa
direcionar as despesas públicas. Daí porque o orçamento é essencialmente um ato
político.
Mas, como numa democracia contemporânea o pluralismo político é norma
jurídica, não se pode compreender o orçamento como um instrumento ou do Executivo
ou da maioria parlamentar, mas como uma peça jurídico-política que contempla os
interesses de toda a Comunidade.
2.2.2. Orçamento e processo democrático
Como é sabido por todos, a palavra democracia vem do grego e significa poder
do povo (demos = povo; kratos = poder). Mas, no decorrer da história, o sentido de
“governo do povo” vem se alterando. Em traços largos, ainda que se considere que o
titular do poder, numa democracia, é sempre o povo, houve uma substancial alteração
no que se chama de democracia nos tempos modernos, em oposição à democracia dos
antigos.
O que se considera que foi alterado na passagem da democracia dos antigos à
democracia dos modernos não é o titular do poder político, que é sempre o povo,
entendido como o conjunto de cidadãos que tomam as decisões políticas (não obstante
no desenvolver histórico o universo dessas pessoas alargar-se a cada dia) mas o modo
de exercer esse direito.
14 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15a ed. rev e atual por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 421.
13
Com o surgimento do Estado constitucional moderno, surge a contraposição entre
a democracia direta dos antigos e a democracia representativa. Devido a uma
impossibilidade fática de se discutir diretamente as questões políticas, é criado na figura
da representação um meio de participação política isonômica.
Essa noção de democracia está intimamente ligada à de igualdade perante a lei, ou
igualdade formal. Cria-se um conjunto de regras, para a escolha dos representantes
políticos, cuja observância é necessária para a distribuição do poder. Após a evolução
de colégios eleitorais estabelecidos sensitaria ou intelectualmente, o voto universal
possibilita a todos, independente de sua condição social, cultural ou financeira, a
escolha de seu representante. Dessa maneira, a democracia formal (existência de
procedimentos isonômicos para a escolha dos representantes políticos) está
umbilicalmente ligada à igualdade formal.
Esta idéia de democracia formal consiste em um método para a criação de uma
ordem social, caracterizado pela existência de eleições periódicas, para impedir que uma
classe se perpetue no poder sem o controle das demais, e pela existência do princípio da
maioria, que visa tomar decisões coletivas com o máximo de consenso possível e
pacificamente15.
O sentido formal de democracia é limitado, não atinge o ideal democrático, mas é
pressuposto para a democracia substancial, que inspirada no princípio da igualdade
material se preocupa com o aspecto ético. Assim, se na democracia surgida com o
Estado liberal extirpou-se de seu conteúdo qualquer apelo de conteúdo social
(democracia meramente formal), juridicizando, através de procedimentos legais ou
constitucionais, a democracia, e esquecendo os fatos sociais, a sociedade
contemporânea introduz, na concepção democrática, os direitos sociais, além, é claro,
dos direitos políticos.
Como esclarece Renato Janine Ribeiro16, “o avanço da democracia moderna (ou
do caráter democrático da política moderna) é provocado pelos direitos, não pela
representação”. Linhas adiante acrescenta o autor: “... é nos direitos que se exprime
melhor a reivindicação de limites ao poder do monarca – e mais tarde, já em regimes
democráticos, a exigência de direitos sociais. A evolução da democracia moderna pode
15 BOBBIO. Teoria Geral da Política, p. 416-471. 16 RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. 2a ed. São Paulo: Publifolha, 2002.p. 38 e s.
14
ser pontuada pela questão dos direitos, conforme eles valorizem a primeira, a segunda
ou a terceira geração de direitos humanos”.
Em síntese, hoje a realização dos direitos fundamentais é condição básica para a
realização da democracia em determinada sociedade (e vice-e-versa porque um não
subsiste sem o outro). Percebe-se, desta forma, que assiste razão a José Afonso da
Silva17 ao ressaltar o caráter instrumental da democracia e o seu conceito histórico que a
identifica com a necessidade de uma eterna construção, tendo em vista a transformação
histórica dos direitos fundamentais:
Democracia é conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história.
Não se pode, pois, conceber democracia por “decisão da maioria”, ou, mais
tecnicamente, como a forma de que se serve a democracia para tomar decisões de
interesse geral. É neste sentido a lição de Luiz Alberto David Araújo18:
A multiplicidade das relações sociais permite, num Estado Democrático, a existência de inúmeros segmentos que, de alguma forma, não se enquadram no conceito majoritário presente em determinado tempo e espaço. (...).
Para que os direitos da minoria sejam respeitados e considerados, devemos, desde logo, rechaçar a aplicação imediata e simplista da teoria da maioria pura e simples. Aplicada à maioria, encontraremos uma rejeição dos direitos das minorias. Haveria uma ditadura da maioria, sem qualquer possibilidade de consideração das vontades minoritárias. Portanto, há que se considerar o valor das minorias, sem, no entanto, descurar de aplicar a vontade da maioria.
17 SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 2002. p. 114. 18 ARAUJO, Luiz Alberto David. A questão das minorias no sistema constitucional brasileiro: estudo de
um caso. Democracia, hoje. Um modelo político para o Brasil. Coord. Maria Garcia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/ Celso Bastos Editor, 1997.p. 198-9.
15
A regra da maioria é destinada a permitir a formação de uma vontade coletiva em
uma assembléia, uma vez que a única regra alternativa, que é a regra da unanimidade,
pode impedir a formação de uma vontade coletiva. Esta regra é meramente instrumental
para se atingir a “maximização do consenso”19 .
Sendo a República Federativa do Brasil um Estado democrático de direito em que
se asseguram os valores de uma sociedade pluralista (Preâmbulo e art. 1o, V) e que tem
por objetivo, dentre outros, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e
regionais e promover o bem de todos (art. 3o), a democracia substancial é a ela inerente.
A regra da maioria só pode servir como método para deliberação colegiada e não como
a essência do Estado Democrático Brasileiro.
A ampla determinação constitucional de transformação da realidade social, como
se pode observar nos objetivos do Estado Brasileiro previstos constitucionalmente, é,
ainda em nível constitucional, densificada nas chamadas imposições constitucionais,
que, ao imporem determinadas tarefas ao Estado, atuam, na terminologia de Canotilho,
como determinantes heterônomas para o legislador e, conseqüentemente, como
vinculação para toda a Administração Pública20. Por determinantes heterônomas, o autor
português considera aquelas que não são estabelecidas pelo Legislativo, mas as
advindas da Constituição para o legislador.
Portanto, a democracia só se realizará na medida em que as determinações
constitucionais forem se tornando realidade através das escolhas dos diversos setores
estatais.
Como é certo que democracia não é o governo dos melhores, mas de todos e para
todos, como estabelecer, numa sociedade pluralista, as escolhas que permearão todo o
agir da Administração Pública?
A resposta que se apresenta como a mais adequada a esta questão é: através do
debate político. Qual o órgão mais representativo da sociedade, em cujo bojo estão
19 BOBBIO. op.cit. 20 A Constituição Federal determina, no § 7o do art. 165, que o orçamento tem, entre suas funções, a de reduzir desigualdades inter-regionais. Veja-se: Art. 165 (...) § 5o – A lei orçamentária anual compreenderá: I – o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II – o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; (...) § 7o Os orçamento previstos no § 5o, I e II, deste artigo, compatibilizados com o plano plurianual, terão entre as funções a de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional.
16
assentadas, além da maioria, as minorias? Não há dúvida de que é o Legislativo. Então,
é a partir do debate político institucionalizado, mas não sem a participação popular
direta, que se determinará os caminhos que o Estado deverá seguir para concretizar as
imposições constitucionais e realizar as transformações previstas constitucionalmente.
Portanto, compreende-se como o campo adequado para o estabelecimento do
debate democrático, do qual resultarão determinações para o Estado e para a Sociedade,
o parlamento. Esta posição pode ficar mais clara ao se responder à seguinte questão:
qual o melhor governo, o das leis ou o dos homens? Ou, na colocação de Bobbio,21
“bom governo é aquele em que os governantes são bons porque governam respeitando
as leis ou aquele em que existem boas leis porque os governantes são sábios?”
Se for verdade que a lei jamais poderá prescrever com precisão o que é melhor e
mais justo para todos, por sua generalidade, também é verdade que o governante,
comumente e em especial na democracia - porque nela não se tem um governo dos
sábios, mas um governo em que qualquer um pode ter acesso aos mais diversos cargos
públicos - não é um sábio, um ilustrado. Ou seja, a possibilidade de se ter um
governante justo e sábio, para que se possa ter um governo dos homens, que não seja
tirânico, é deveras limitada, para não se dizer impossível.
Entretanto, de onde derivam as leis, as boas leis? Alguém precisa criá-las. Como
afirma Bobbio, elas vêm do sábio legislador22. Fica, então, a questão de se estabelecer
quem é o sábio legislador. O melhor legislador é aquele colegiado escolhido por um
processo democrático em que as diversidades são respeitadas e em que as minorias
tenham voz, voto e representação. Portanto, é preferível submeter o governante ao
império da lei. É preferível um governo institucionalizado, em vez de um governo
personalista. É preferível que a comunidade erre por suas próprias ações da que seja ela
submetida a arbítrios e desmandos de pseudos-sábios, porque democracia é o governo
dos iguais e não dos melhores.
É claro que não se pode conceber mais o processo democrático como o mero
cumprimento do “dever cívico” de votar nas eleições periódicas. A democracia não
pode se limitar a um processo de representação política; é indispensável a criação, a
institucionalização, de canais de participação direta dos cidadãos nos processos
decisórios do Estado. Até porque,
21 BOBBIO, Ibid.p. 166. 22
Ibid. p. 178.
17
...a realidade partidária no Brasil não realiza a função intermediária, uma vez que os partidos políticos acham-se comprometidos com o aparato administrativo, não possuindo bases na sociedade civil que impeçam, no plano individual, a ‘racionalização de interesses’e no momento de sua interação com o Estado, a seleção de demandas23.
Assim, na medida em que há meios para a institucionalização das demandas
públicas (sociais), há uma ligação entre a “identificação de uma carência e o conteúdo
da necessidade pública”. “O processo de transformação da necessidade pública em
direito redefine a própria cidadania”24.
Em conclusão da autora, que aqui é adotada,
...torna-se claro que a participação se impõe também como necessidade, pois permite uma maior aproximação do Estado com sua própria finalidade, ou seja, garante um mínimo de bem-estar social; contrabalança o tecnocratismo das estratégias políticas, através da definição das necessidades públicas, pela comunidade; contribui para aumentar o grau de confiabilidade da população em relação ao Poder Público, porque abre o acesso aos setores populares à consulta, à criação e decisão no que se refere às políticas públicas, em várias áreas (habitação, uso do solo, meio ambiente, saúde, educação, saneamento básico, dentre outras), todas concretizadoras do conceito indeterminado, denominado bem-estar social25.
A participação democrática integra cidadãos e Estado, garantindo a racionalidade
e a aceitabilidade das decisões. Um dos mecanismos de participação democrática direta,
ao lado da consulta popular e da audiência pública, é o orçamento participativo.
Esta compreensão da necessidade de participação popular direta nas questões de
Estado não é oriunda exclusivamente do entendimento teórico. Ela consta,
expressamente, da Constituição Federal. Destacam-se os seguintes exemplos: o art. 29,
XII confere aos munícipes, através de associações representativas, a colaboração no
planejamento municipal; o § 3o do art. 31 faculta a qualquer contribuinte o
questionamento da legitimidade das contas municipais; o art. 58 do Texto Maior, que dá
os grandes traços das comissões do Congresso Nacional, estabelece, no inciso II, § 2o,
23 SOARES, Fabiana de Menezes. Direito Administrativo de Participação – cidadania, Direito, Estado e
Município. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 131/2. A autora se refere à “função intermediária”como um veículo de superação da dicotomia Estado-Sociedade civil, que realiza uma aproximação entre as demandas populares e o Estado. 24 BOBBIO, op.cit., p. 134. 25 Ibid, p. 134-5.
18
que cabe às comissões realizar audiências públicas; o art. 194, em seu caput, prevê a
participação da sociedade na gestão da seguridade social e, em especial, no inciso VII,
do parágrafo único, em que está determinada a gestão democrática e descentralizada da
seguridade social, com a participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos
aposentados e do Governo nos órgãos colegiados; o art. 198 prevê a descentralização e a
participação da comunidade nas ações e serviços de saúde; na área de assistência social
estabelece o art. 204 a participação da população na formulação das políticas e no
controle das ações governamentais.
Saindo da seara constitucional, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem
repercussão direta na execução orçamentária, acentua insofismavelmente a participação
popular, como se pode verificar em seu art. 48, que estabelece instrumentos de
transparência da gestão fiscal, dentre eles os planos, orçamentos, e lei de diretrizes
orçamentárias, as prestações de contas. O parágrafo único deste art. é cristalino quanto à
necessidade de um controle social efetivo, ao afirmar que “a transparência será
assegurada também mediante incentivo à participação popular e realização de
audiências públicas, durante a elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes
orçamentárias e orçamentos”.
Em comentário a este dispositivo legal, Gilmar Ferreira Mendes assim dispõe26:
A participação popular e a realização das audiências públicas na elaboração dos instrumentos de responsabilidade fiscal, dos quais exige a lei devida transparência, é salutar em dois pontos: o primeiro deles é a maior legitimidade que adquirirão tais instrumentos, uma vez que sua confecção foi feita com respaldo da sociedade; o segundo tem a ver com o fato de que os esboços de tais instrumentos podem ser maximizados em sua qualidade com a interação entre Sociedade e Poder Público, tanto porque, diversas vezes, este não possui a devida acuidade para perceber as carências sociais, tanto porque, tecnicamente, eles podem ser aprimorados com a colaboração dos diversos entes sociais.
Assim, deveria a formação dos orçamentos públicos ser precedida de participação
popular direta, cuja deliberação deveria ser vinculante tanto para o Executivo, na
elaboração da proposta orçamentária, quanto para o Legislativo, na aprovação do
projeto.
26 MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. Ives Gandra da Silva Martins, Carlos Valder do Nascimento, organizadores. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 339.
19
O mesmo ocorre com o Estatuto da Cidade que, além de determinar a gestão
democrática na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano (art. 2o), assegura a gestão orçamentária
participativa (art. 4o, III, b) e consagra expressamente o controle social (art. 4o, § 3o).
Acrescente-se a isto que o art. 44 deste Estatuto, ao tratar da gestão orçamentária
participativa, estabelece a realização de audiências públicas como condição obrigatória
para a aprovação do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento
anual.
No entanto, independentemente do modo de elaboração orçamentária – com ou
sem participação popular direta -, tendo em vista a ideologia democrática, a execução
do orçamento, cuja formulação está atrelada à vontade política geral consolidada no
Parlamento, também deve estar vinculada a esta vontade que se estrutura no debate
plural e democrático. É a partir desta compreensão político-democrática do orçamento
público que se deve compreender o seu aspecto jurídico.
2.2.3. O orçamento nas Constituições brasileiras - síntese da evolução histórica
As primeiras exigências no sentido de elaboração de orçamentos públicos
formais no Brasil surgiram com a Constituição Imperial de 1827. Em especial, foi
atribuída ao Executivo a competência para a elaboração da proposta orçamentária.
Cabia ao Ministro de Estado da Fazenda a apresentação anual, à Câmara dos Deputados,
de um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional e o orçamento geral de
todas as despesas públicas do ano futuro e das contribuições e rendas públicas (art.
172). Ademais, cabia ao Imperador, como Chefe do Executivo, decretar a aplicação dos
rendimentos destinados pela Assembléia aos vários ramos da pública Administração
(art. 102). Cabia à Assembléia Geral a aprovação da lei orçamentária e regras sobre
questões fiscais (art. 15, X, XIII, XIV).
A primeira Constituição Republicana trouxe importante alteração na distribuição
de competências em matéria orçamentária. A elaboração do orçamento (ainda que, na
prática, saíssem do gabinete do Ministro da Fazenda as orientações para a confecção da
lei orçamentária) e a tomada de contas do Executivo eram tarefas do Congresso
Nacional (art. 34, 1o, 2o, 3o, 4o), que passou a contar com o auxílio do Tribunal de
Contas, então criado (art. 89). Importante regra introduzida com a tipificação como
20
crime de responsabilidade cometido pelo Presidente da República foram os atos
atentatórios às leis orçamentárias votadas pelo Congresso (art. 54, 8o).
Com a Constituição de 1934, o orçamento é tratado com destaque, tendo
inclusive uma seção própria; a competência para a elaboração da proposta orçamentária
retornou ao Executivo (art. 50, § 1o); o Legislativo incumbiu-se da aprovação da
proposta orçamentária (art. 39, 2 e art. 50 § 1o) e do julgamento das contas do
Presidente da República (art. 40, c), contando, para isso, com o auxílio do Tribunal de
Contas (art. 99). Não havia limitações ao poder de emendas por parte dos parlamentares,
o que poderia caracterizar a co-participação do dois poderes na elaboração da lei
orçamentária27.
Com o autoritarismo do Estado Novo e a Constituição decretada em 10 de
novembro de 1937, estabeleceram-se, teoricamente, diversas disposições sobre a
elaboração orçamentária, sendo atribuída a um Departamento Administrativo (art. 67, b
e c) ligado à Presidência da República a competência para a elaboração do orçamento e
a fiscalização de sua execução, e à Câmara dos Deputados e ao Conselho Federal a
atribuição de votá-lo. Cabia ao Tribunal de Contas acompanhar a execução
orçamentária (art. 114). Não é demais lembrar que, devido ao regime ditatorial, o
orçamento federal foi sempre elaborado e decretado pelo Chefe do Executivo.
Com a redemocratização do país e o advento da Constituição de 1946
reestabeleceu-se o processo orçamentário do tipo “misto”, em que o Executivo (art. 87,
XVI) elaborava o projeto de lei de orçamento e as casas legislativas discutiam e o
aprovavam (art. 65, I), com a possibilidade de emendas parlamentares. Competia ao
Tribunal de Contas o acompanhamento e a fiscalização da execução do orçamento (art.
77, I).
Apesar da retomada da participação do Legislativo no processo orçamentário,
pode-se dizer que a experiência brasileira na elaboração de planos globais caracterizou-
se, até 1964, por contemplar somente elementos de despesa, com ausência de uma
programação de objetivos, metas e recursos reais, intensificando a desvinculação dos
planos e dos orçamentos.
O regime autoritário estabelecido após 1964 alterou o equilíbrio entre os
poderes, em especial entre o Executivo e o Legislativo. Na Constituição de 1967, a
grande novidade foi a retirada de prerrogativas do Legislativo quanto à iniciativa de leis
27 GIACOMONI, James. Orçamento público. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 54.
21
ou de emendas parlamentares que criassem ou aumentassem despesas, inclusive
emendas ao projeto de lei do orçamento. Ante a impossibilidade de qualquer tipo de
emenda parlamentar ao projeto de lei orçamentária, a ditadura buscou, com a mera
aprovação do Legislativo, a legitimação de seus gastos públicos (art. 67). A fiscalização
financeira e orçamentária da União pertencia ao Congresso Nacional, com o auxílio do
Tribunal de Contas (art. 71).
Pelas considerações até aqui traçadas sobre a transformação do direito
constitucional positivo brasileiro em matéria orçamentária vê-se que, em verdade, o que
se pode dizer sobre as atividades administrativas brasileiras é que elas foram
desenvolvidas preponderantemente de forma empírica. Não existia um método inspirado
nos modernos princípios de administração, nem qualquer sistema estruturado
racionalmente.
A tentativa de estruturação de um sistema orçamentário público surgiu não a
partir de alguma Constituição, mas da Lei n° 4.320/1964, que traçou os princípios
orçamentários no Brasil e ainda hoje é a principal diretriz para a elaboração dos
orçamentos públicos.
A referida lei estabeleceu pela primeira vez os princípios da transparência
orçamentária ao prescrever, em seu art. 2o, que “a Lei do Orçamento conterá a
discriminação da receita e despesa, de forma a evidenciar a política econômico-
financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios da unidade,
universalidade e anualidade”.
Com o Decreto-Lei 200/67 houve uma tentativa de se criar uma racionalidade
jurídica da ação administrativa do Poder Executivo, estabelecendo-se em seu Título III
(art.s 15 a 18) que esta ação administrativa deveria obedecer a programas gerais,
setoriais e regionais, de duração plurianual, elaborados através dos órgãos de
planejamento, cuja execução dar-se-ia segundo um orçamento-programa, que serviria de
roteiro à execução dos programas. Para coordenar esta atividade de programação
orçamentária foi instituído o Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, que
passou a cuidar da elaboração da proposta orçamentária anual.
A partir do processo de abertura democrática que culminou com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que houve uma considerável
transformação na estrutura orçamentária brasileira. Como o processo orçamentário
reflete a luta pelo controle e alocação dos recursos públicos, em momentos políticos de
maior democracia o parlamento tem a possibilidade de atuar ativamente, tanto na
22
elaboração orçamentária, quanto no controle da execução do orçamento aprovado.
Assim, a atual Constituição devolveu ao Legislativo as prerrogativas para participar do
processo orçamentário desde o momento de sua formulação até a fiscalização de sua
execução.
Conforme se pode verificar, nos arts. 165 a 169 da Constituição Federal, o
arcabouço do sistema orçamentário pátrio encontra-se em três documentos
interdependentes que, após o processo legislativo pertinente, ganha a estrutura de leis,
quais sejam a Lei do Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei
Orçamentária Anual. Não fica nenhuma sombra de dúvida de que o Constituinte
preocupou-se em vincular o orçamento a um processo de planejamento da atuação
estatal ao vinculá-lo a um planejamento de longo prazo (o plano plurianual) e a um
plano de aplicação imediata e de validade para apenas um exercício: as diretrizes
orçamentárias.
Ou seja, a Lei de Diretrizes Orçamentárias cumpre o papel de estabelecer a
ligação entre o planejamento de longo prazo e o planejamento de curto prazo
materializado anualmente na Lei Orçamentária que estabelece as ações e programas a
serem executados pelo Estado.
Após a aprovação, pelo Congresso, dos planos orçamentários, o Executivo
elabora o projeto de lei orçamentária, que é enviado ao Legislativo, onde, na Comissão
Mista do Orçamento, é discutida a proposta, são feitas as modificações que se julgam
necessárias através de emendas ao projeto e votam. Depois de aprovado, o projeto é
sancionado pelo Presidente da República, passando a ter a natureza jurídica de lei. Tudo
isso conforme o disposto no art. 166, seus incisos e parágrafos, da Constituição Federal,
que determina, em traços largos, quais serão minudenciados em resolução específica do
Congresso Nacional, a forma de participação dos parlamentares na elaboração da lei
orçamentária, bem como a aplicação subsidiária aos projetos de leis orçamentárias das
normas relativas ao processo legislativo.
Prevê, ainda, a atual Constituição, um sistema de controle da execução
orçamentária, com a especial participação do Poder Legislativo, que exerce o chamado
controle externo da Administração (arts. 70 e 71), além do controle interno exercido por
cada Poder e a possibilidade de atuação fiscalizatória do Ministério Público e do Poder
Judiciário, quando provocado.
23
O que se abordou neste ponto do trabalho com relação à atual estruturação
constitucional do sistema orçamentário será retomado e aprofundado em itens
subseqüentes.
2.2.4. Aspecto jurídico-constitucional do orçamento brasileiro segundo a
Constituição de 1988 – o processo legislativo orçamentário
De maneira geral, processo, numa concepção jurídica, é entendido como uma série
de atos coordenados para a realização dos fins estatais. Assim, diante das funções
legislativa, executiva e jurisdicional, podemos ter um processo legislativo,
administrativo ou judicial, dependendo da função de Estado que estiver em questão.
É, portanto, o conjunto de atos concatenados, segundo uma ordem preestabelecida,
que tem por escopo produzir algo. Dessa maneira, o direito processual, num sentido
amplo, é um conjunto de disposições normativas que estabelecem uma seqüência
ordenada de atos que têm por finalidade criar o direito, sejam disposições genéricas e
abstratas (processo legislativo), sejam normas individuais e concretas (processo
judiciário), seja aquele que vai culminar com um ato da administração pública
(processo administrativo).
Os autores procuram diferenciar processo de procedimento. De uma maneira
singela, diz-se que o procedimento é o conjunto de formalidades que devem ser
observadas para a prática de uma decisão final e conclusiva, enquanto o processo diz
respeito a um complexo de princípios e normas que instauram uma relação estatal entre
o Estado e o particular, tendo em vista a decisão de uma controvérsia (no caso judicial)
ou, simplesmente, uma decisão administrativa (no caso da administração pública), ou,
ainda, uma relação entre órgãos para a realização de um ato complexo na busca do
interesse comum (como se dá na formação da lei).
A este respeito, diz a doutrina que “o processo, então, pode ser encarado pelo
aspecto dos atos que lhe dão corpo e das relações entre eles, e igualmente pelo aspecto
das relações entre os seus sujeitos. O procedimento é, nesse quadro, apenas o meio
extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação
extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível”28.
28 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo.8a ed. São Paulo: RT, 1991, p. 247.
24
Assim, pode-se dizer que o procedimento é a face externa e objetiva do processo.
É o mero aspecto formal do processo. Este, por sua vez, é (ou nele tem) uma “força”
que motiva e justifica a prática dos atos procedimentais, interligando os sujeitos
processuais.
Inicialmente estabelecida a noção de processo, e de forma a não deixar dúvidas
sobre o sentido utilizado, é preciso definir um sentido mais restrito para a expressão: o
de processo legislativo. Pode-se definir por processo legislativo a opção constituinte por
um concatenar de atos que têm a finalidade de criar atos jurídicos com a força de inovar
originariamente a ordem jurídica, o que se dá, por ordinário, através de leis.
Entretanto, pode-se, ainda, avançar um pouco mais na compreensão do processo
legislativo, conforme Nelson de Sousa Sampaio29: a expressão “processo legislativo”
pode ser entendida num sentido sociológico e num sentido jurídico.
Segundo o autor citado, no sentido sociológico, processo legislativo refere-se ao
“conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os legisladores e ao
modo como eles costumam proceder ao realizar a tarefa legislativa”.
Sob esse ângulo, estuda-se a influência da opinião pública, das crises sociais, dos
grupos de pressão organizados (lobby), composição partidária, troca de favores
políticos, dentre outros fatores. Nesse caso estar-se-ia diante da sociologia do processo
legislativo.
Como se viu, sob o ângulo jurídico, o processo legislativo é uma espécie do
gênero amplo do direito processual. É este o ponto que aqui desperta interesse. Não
para apenas visualizar o processo formal de criação do direito, mas, sobretudo, para
verificar que o direito, através do procedimento legislativo, abre oportunidades para a
interação (processo legislativo) entre os órgãos do Estado e a participação, direta e
indireta, da sociedade organizada na formulação dos textos normativos primários,
estabelecendo-se, desta maneira, uma conexão entre o normativo (ato legislativo),
resultante do exercício da função política ou de governo, e o real.
2.2.4.1. Importância do processo legislativo
Do que se expôs no tópico antecedente, fica a certeza da importância da lei num
Estado democrático de direito, ainda na contemporaneidade. Mas esta idéia veio a partir
29 SAMPAIO, Nelson de Sousa. O processo legislativo. 2a ed., B. Horizonte: Del Rey,1996, p. 27 e s.
25
do constitucionalismo moderno, dos movimentos liberais que professaram o culto à lei.
Conforme lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho30, isto fica muito bem assentado na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o primeiro dos documentos
constitucionais da Revolução Francesa. Nesta, avultam as referências à lei, medida
última de todos os direitos, de todas as liberdades.
Segundo esta Declaração, os limites à liberdade do homem só podem ser
estabelecidos por lei (art. 4), uma vez que a lei é a expressão da vontade geral porque
todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários,
para a sua formação (art. 6). Assim, ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão
nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas (art. 7) e
só será admitida a existência de crime quando a conduta estiver tipificada previamente
em lei (art. 8). Ademais, estão previstos nos arts. 13, 14 e 17, que atendem às
preocupações máximas da burguesia, os princípios da estrita legalidade na criação e
cobrança de tributos e a garantia da propriedade privada contra expropriações abusivas.
Esses movimentos burgueses tiveram grande influência das idéias de Locke e
Montesquieu. O primeiro31 dizia que para se sair do estado de natureza seria necessária
a criação do governo civil. Governo esse resultante de um pacto celebrado entre os
homens, que concordariam mutuamente e em conjunto, em formar uma comunidade,
fundando um corpo político.
Só o próprio consentimento é que retira o homem do estado de natureza e o coloca
como membro de uma sociedade política. A liberdade do homem na sociedade só fica
sob o estabelecido por consentimento na comunidade32.
A sociedade civil (ou política) origina-se da reunião de homens em estado natural
que abrem mão dessa condição em favor de um poder da comunidade para julgar os
casos de ofensas, o que será feito em conformidade com as leis elaboradas por essa
própria comunidade, segundo um princípio de maioria, que, no momento inaugural da
sociedade, legitima o governo.
O objetivo dessa sociedade política é viver em segurança, conforto e paz uns com
os outros, gozando das propriedades que tiverem. O homem deixa a liberdade do estado
de natureza, onde todos são reis, para colocar-se sob um governo que julgue segundo
30 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3a ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 21. 31 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Os pensadores, 5a ed., nova cultural, 1991, p. 221 e s. 32 Ibid., p. 225
26
leis conhecidas pelo povo, para que se preserve a propriedade, a vida e a liberdade33. O
grande instrumento para o alcance da fruição da propriedade em paz e segurança são as
leis estabelecidas na sociedade.
Para Locke, o Poder Legislativo seria aquele que diz como se deve utilizar a força
da comunidade para protegê-la e ao indivíduo. Em comunidades bem ordenadas o Poder
Legislativo fica nas mãos de diversas pessoas que, reunidas, elaboram as leis. Para
evitar o arbítrio, após a criação das leis essas pessoas, separadamente, submetem-se às
próprias leis que criaram.
Montesquieu34, influenciado por Locke e pela prática política da Inglaterra, diz
que, nascendo os homens num estado de igualdade, a sociedade os faz perdê-la. Eles só
se tornam iguais de novo diante das leis.
Ao tratar da liberdade política, no Livro décimo primeiro, Montesquieu afirma
que, numa sociedade onde há leis, a liberdade está em fazer o que se deve querer e em
não ser obrigado a fazer aquilo que não se deve querer. “A liberdade é o direito de fazer
tudo o que as leis permitem. Se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, ele já não
teria liberdade, pois os outros teriam igualmente esse poder”35.
Continuando seu raciocínio, o autor diz que a liberdade política só se encontra nos
Estados (governos) moderados, quando nestes não há abuso de poder. Para isso, é
preciso que o poder freie o poder. A liberdade política, Montesquieu a define como a
“tranqüilidade de espírito que provém da convicção que cada um tem da sua segurança.
Para se ter essa liberdade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão não possa
temer outro”36.
Nota-se que as idéias que influenciaram o constitucionalismo, bem como o seu
resultado prático, visaram restringir os poderes absolutos. Isso foi possível graças a uma
idéia de separação de funções do Estado. Dentro dessa idéia estava embutida a de que o
Legislativo deveria criar as normas genéricas e abstratas que iriam reger o Estado, bem
como conferir direitos e obrigações aos indivíduos. Com isso, ter-se-ia um “governo das
leis e não um governo dos homens”. Há uma institucionalização do poder, com a lei
passando a desempenhar um papel primordial nas relações estatais (o poder político é
regulado por normas jurídicas - leis), o que culminou no chamado Estado de Direito.
33 Ibid., p. 264-6. 34 MONTESQUIEU. O espírito das leis. 4a ed, São Paulo: Saraiva, 1996. 35 Ibid., p, 163. 36 Ibid., p. 165.
27
O exercício do poder político segundo normas jurídicas serve para impor limites
ao poder e permitir o seu controle pelos seus destinatários. Esta idéia de Estado
vinculado, subordinado ao direito, determina o aparecimento do Estado de direito, isto
é, um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se aos
Estados arbitrários, totalitários, onde o poder político era exercido sem limitações
jurídicas.
Entretanto, para que a vinculação do Estado à lei seja efetiva, exige-se que, dentro
dele, uma mesma autoridade não seja incumbida de fazer a lei e de, ao mesmo tempo,
aplicá-la. Caso contrário, ao fazer a aplicação poderia alterar a lei anteriormente feita.
Ainda: é necessária a presença de outra autoridade, diversa das demais para julgar as
eventuais irregularidades da lei e de sua aplicação. Em outras palavras, deve haver uma
separação de poderes.
Mas esta separação de poderes não pode ser mudada, pela da lei, pois, do
contrário, bastaria ao legislador exercer sua atividade (legislar) para anular o poder do
administrador e do juiz. Em suma, deve haver uma norma superior à lei definindo a
estrutura do Estado e garantindo direitos aos indivíduos. Essa norma é a Constituição.
Assim, Estado de Direito é aquele criado e regulado por uma Constituição, onde o
exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que
controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser
necessariamente observada pelos demais; e que os cidadãos, sendo titulares dos direitos,
possam opô-los ao próprio Estado.
Ainda que para alguns defensores do Estado neoliberal, que defendem o fenômeno
da globalização como impositivo da abdicação, pelos Estados, do padrão da legalidade
como forma de legitimação do sistema jurídico-político, transferindo para o Executivo
ou suas agências a competência regulatória das atividades econômico-sociais, defende-
se neste trabalho a importância do legislativo como órgão democrático legitimador da
atuação estatal.
A idéia de subordinação à lei por parte dos agentes estatais soa familiar aos
ouvidos do cidadão comum. Embora o princípio da legalidade hoje não tenha a
dimensão que tinha no Estado liberal, não deixa de fazer sentido falar dele como
princípio básico do Estado de direito.
28
Nas expressões de Canotilho37,
A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porque ela permanece como expressão da vontade comunitária veiculada através de órgãos representativos dotados de legitimação democrática directa. Por outras palavras: a lei emanada dos órgãos da sociedade – os parlamentos – converte-se ela própria em esquema político revelador das propostas de conformação jurídico-política aprovadas democraticamente por assembléias representativas democráticas. Quem não entender este significado da prevalência da lei pode fazer glosas sobre o Estado de direito, mas não sabe o que é um Estado de direito democrático.
Para finalizar, não se pode apegar ao mito da lei. Ela, em si e por si, não é
suficiente para o surgimento de um Estado Democrático. Para tanto é preciso um
processo legislativo democrático, que se inicia com um processo eleitoral democrático e
se desenvolve com regras jurídicas pré-estabelecidas sobre o processo político de
criação das normas jurídicas gerais. O que aqui se quer deixar frisado, e de que já se
falou linhas antes, é que a simples democracia formal é insuficiente para a construção
de uma sociedade realmente democrática e igualitária. Entretanto, os processos são
necessários para a consolidação da democracia substancial. Então é preciso que o
orçamento tenha, em sua elaboração, a participação do Legislativo, e que neste processo
criador da lei orçamentária haja uma discussão democrática.
2.2.4.2. Processo legislativo orçamentário segundo a Constituição de 1988
Com a Constituição de 1988, estabeleceu-se um processo legislativo democrático
de elaboração do orçamento. Ao contrário do tempo da ditadura militar, em que a lei
orçamentária era feita exclusivamente pelo Chefe do Executivo, a partir da promulgação
da Constituição Cidadã democratizou-se o processo legislativo orçamentário,
conferindo-se ao Legislativo posição sobranceira.
Com a ordem jurídica vigente, o Congresso Nacional passou de mero espectador a
partícipe na formulação e implementação de políticas públicas, competindo-lhe, além
das leis orçamentárias, dispor sobre planos e programas nacionais, regionais e setoriais
de desenvolvimento.
37 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos, Fundação Mário Soares, Gradiva Publicações, 1999, p. 65.
29
Estão previstas na Constituição atual, conforme estabelece o art. 165, três leis
orçamentárias, (que serão abordadas mais à frente) quais sejam o Plano Plurianual, as
Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual, cujos projetos serão apreciados
pelo Congresso Nacional, na forma do regimento comum, de acordo com os pareceres
da Comissão Mista do Orçamento (art. 166, Constituição),
Em conformidade com os arts. 84, XXIII, 165 e 166, todos da Constituição
Federal atual, essas leis são de iniciativa legislativa vinculada. Quer isso dizer que a
autoridade responsável pelo desencadear do processo legislativo – o Presidente da
República – não tem a discricionariedade para definir o momento mais oportuno para a
propositura do projeto de lei; antes, a Constituição o obriga a deflagrar o processo38 .
No Poder Executivo Federal, quem coordena a elaboração das leis orçamentárias é
a Secretaria de Orçamento Federal, vinculada ao Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, que, para bem exercer esta atividade, estabelece normas internas
do Executivo necessárias à elaboração e à implementação do orçamento federal, propõe,
a partir de estudos prévios, medidas para o aperfeiçoamento do sistema de planejamento
e de orçamento federal, e prepara os projetos de leis orçamentárias.
Assim, a partir dos dados apresentados pelos diversos Ministérios, que contêm as
necessidades de gastos de cada área que os compõem, a Secretaria de Orçamento
Federal compatibiliza as expectativas de gastos com o nível de receita que o governo
espera arrecadar da sociedade. Paralelamente a isto, os Poderes Legislativo e Judiciário
também elaboram suas propostas orçamentárias, dentro dos parâmetros fixados pela Lei
de Diretrizes Orçamentárias, e as enviam ao Executivo para serem integradas ao projeto
de lei do orçamento anual.
Uma vez consolidadas as propostas das leis orçamentárias, elas são encaminhadas
ao Presidente da República, que, estando de acordo com as exposições de motivos do
38 Como ainda não existe a Lei Complementar prevista constitucionalmente no art. 165, § 9o, aplica-se a regra insculpida no art. 35, § 2o, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que assim determina: Art. 35 (...) 2o Até a entrada em vigor da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9o, I e II, serão obedecidas as seguintes normas: I – o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subseqüente, será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa; II – o projeto de lei de diretrizes orçamentárias será encaminhado até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa; III – o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa.
30
Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão remete-as ao Congresso Nacional,
dando-se início ao processo legislativo.
Desencadeado esse processo, o Executivo só terá oportunidade de propor
modificação nos projetos das leis orçamentárias enquanto não iniciada a votação, na
Comissão Mista do Orçamento, da parte cuja alteração é proposta. Vê-se, assim, que o
Executivo perde o poder de dispor sobre as propostas das leis orçamentárias,
transferindo-se para o Legislativo a competência para aprovar os projetos.
Após a iniciativa presidencial, compete a uma Comissão Mista de Deputados e
Senadores emitir parecer prévio às deliberações do Parlamento sobre os projetos
relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e créditos
adicionais, bem como sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais
previstos na Constituição Federal. É de sua competência, ainda, acompanhar e fiscalizar
a execução orçamentária. Tudo isto previsto no art. 166 caput e §1o.
Essa Comissão foi regulamentada por Resoluções do Congresso Nacional. De
acordo com a Resolução n° 01/2001-CN, “a Comissão compõe-se de 84 (oitenta e
quatro) membros titulares, sendo 63 (sessenta e três) Deputados e 21 (vinte e um)
Senadores, com igual número de suplentes” (art. 3º), cuja composição deverá respeitar a
proporcionalidade partidária, nos termos do art. 58, § 1o da Constituição Federal.
O art. 2o da Resolução estabelece as competências da Comissão Mista do
Orçamento, que podem ser sintetizadas em: (i) examinar e emitir parecer sobre os
projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento
anual e aos créditos adicionais; (ii) examinar e emitir parecer sobre os planos e
programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição, nos termos do art.
166, § 1, inciso I, da Constituição; (iii) examinar e emitir parecer sobre os documentos
pertinentes ao acompanhamento e fiscalização da execução orçamentária e financeira e
da gestão fiscal, nos termos dos arts. 70 a 72 e 166, § 1, inciso II, da Constituição.
Segundo o art. 18 da Resolução, o Relator-Geral do projeto de lei orçamentária
anual deverá apresentará um parecer preliminar, que deverá ser votado pela Comissão
Mista do Orçamento, estabelecendo os parâmetros e critérios que, obrigatoriamente,
deverão ser obedecidos pelos Relatores-Setoriais e pelo Relator-Geral na elaboração do
parecer sobre o projeto de lei, inclusive quanto às emendas. Ou seja, este parecer prévio
define normas adicionais a serem observadas pelos parlamentares no processo de
intervenção no projeto de lei orçamentária anual, inclusive as restrições a que os
parlamentares estarão sujeitos no processo de intervenção no orçamento.
31
O projeto de lei do plano plurianual e o projeto de lei orçamentária anual poderão ser divididos em até dez áreas temáticas, que ficarão a cargo dos respectivos Relatores-Setoriais, nos termos do regulamento interno (art. 10 da Resolução 01/2001-CN).
Serão constituídos até 5 (cinco) comitês, sob a coordenação do Relator-Geral, com
o mínimo de 3 (três) e o máximo de 7 (sete) integrantes cada, para apoio aos Relatores-
Setoriais e ao Relator-Geral do projeto de lei orçamentária, cujas conclusões e
recomendações estarão previamente à disposição da Comissão e subsidiarão os
Relatores (art. 11 da Resolução 01/2001-CN).
Ampliando a competência do Legislativo em matéria de legislação orçamentária,
em seu art. 166, § 2o, a Constituição possibilitou a propositura de emendas de
parlamentares ao projeto de lei orçamentária, as quais deverão ser encaminhadas à
Comissão Mista do Orçamento e apreciadas, na forma regimental, pelo Plenário das
duas Casas do Congresso Nacional. Esta é uma possibilidade que os parlamentares têm
para melhor alocar os recursos públicos, identificando as localidades onde desejam que
sejam executados os projetos, ou propondo novas programações para atender às
demandas das comunidades que representam.
No exercício desta competência, os parlamentares estão limitados pelo art. 166,
§3o, I e II, e § 4o Constituição federal, que estabelecem os seguintes condicionamentos
para que emendas parlamentares ao orçamento possam ser aprovadas pelo Plenário:
a) que sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes
orçamentárias;
b) que indiquem as despesas a serem anuladas, para se fazer face aos dispêndios
esperados, as quais não poderão incidir sobre (i) dotações para pessoal e seus
encargos, (ii) serviço da dívida, (iii) transferências tributárias constitucionais
para os Estados, Municípios e Distrito Federal;
c) quando se tratar de emenda ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias, não
poderá ser aprovada quando incompatível com o plano plurianual, uma vez que
este tem a finalidade de orientar a elaboração da lei orçamentária.
Ou seja, para a aprovação das emendas, o Congresso nacional deverá ou cancelar
dotações fixadas no projeto, ou demonstrar, de forma inequívoca, que as receitas
estimadas estão fundamentadas em hipóteses irrealistas e cujos valores se apresentam
abaixo daqueles que provavelmente serão realizados, o que ensejará a utilização da
32
diferença de arrecadação prevista para justificar as emendas (única situação em que a
Constituição autoriza o aumento do total de despesas do orçamento, relativamente aos
valores enviados no projeto de lei do Poder Executivo).
Segundo a Resolução 01/2001-CN, as emendas parlamentares obedecem a dois
níveis de intervenção: as emendas individuais, que podem atingir um máximo de 20
emendas por parlamentar, e as emendas coletivas. Estas se subdividem em emendas de
bancadas estaduais, relativas a matérias de interesse de cada unidade da federação,
aprovadas por dois terços dos deputados e por dois terços dos senadores da respectiva
unidade, num número máximo de 23 emendas; emendas de bancadas regionais no
Congresso Nacional, cujo limite é de duas emendas, de interesse de cada região
macroeconômica definida pelo IBGE, por votação de maioria absoluta dos deputados e
maioria absoluta de senadores que compõem a respectiva bancada; e emendas de
comissões permanentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, no limite de
cinco emendas por comissão.
A apreciação das emendas dá-se inicialmente no âmbito das relatorias setoriais,
cujos relatórios são discutidos e votados separadamente no Plenário da Comissão. Após
a aprovação, a harmonização e a consolidação dos relatórios setoriais, são realizadas
pelo Relator-Geral, que submete o seu Parecer, com o projeto de lei modificado pelas
emendas parlamentares (o substitutivo) ao Plenário da Comissão.
Aprovado por essa Comissão Mistas, o substitutivo segue para a apreciação pelo
Plenário do Congresso Nacional, uma vez que o art. 166, § 2o da Constituição
estabelece que “as emendas serão apresentadas na Comissão mista, que sobre elas
emitirá parecer, e apreciadas, no forma regimental, pelo Plenário das duas Casas do
Congresso Nacional”.
Em seguida, seguindo os trâmites do processo legislativo, o projeto alterado
(chamado de autógrafo) é enviado ao Presidente da República, que, aquiescendo, o
sancionará. Discordando do substitutivo aprovado pelo Congresso, o Presidente,
fundado em violação do interesse público ou em inconstitucionalidade, poderá vetar o
projeto, total ou parcialmente, num prazo máximo de quinze dias úteis ,contados da data
do seu recebimento, e encaminhará ao Presidente do Senado Federal, dentro de quarenta
e oito horas, os motivos do veto. Ocorrendo veto, o Congresso terá trinta dias para, em
sessão conjunta, apreciá-lo, podendo rejeitá-lo pelo voto de maioria absoluta dos
Deputados e Senadores, em escrutínio secreto. Tudo isto nos termos do art. 66 da
Constituição Federal.
33
Superada esta superficial digressão sobre procedimentos de elaboração do projeto
do orçamento e de aprovação no âmbito do Congresso Nacional, que teve por finalidade
demonstrar, ainda que singelamente, o procedimento de criação das leis orçamentárias,
pode-se retornar ao nível constitucional da discussão.
Como se pôde ver, deve-se compreender o sistema constitucional orçamentário
como sendo, na verdade, um articulado constituído por um conjunto de dispositivos
superordenados, sobrepostos, de forma encadeada, articulando um planejamento
governamental39. Neste sentido, o Plano Plurianual tem caráter supeordenador em
relação à Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Compete à lei que instituir o plano plurianual, nos termos do § 1o do art. 165 da
Constituição, estabelecer, de forma regionalizada, os objetivos e as metas da
administração pública federal. Trata-se, na verdade, do estabelecimento de programas e
metas governamentais de longo prazo. O orçamento plurianual serve de fundamento
material para a elaboração de planos e programas nacionais, regionais e setoriais,
previstos constitucionalmente, conforme determina o § 4o do referido art. 165.
Cabe ao plano plurianual “servir como moldura institucional para a atuação da
administração pública federal – mediante a enunciação das diretrizes, objetivos e metas
da administração federal para as despesas de capital e para as relativas aos programas de
duração continuada – e para a formulação dos planos nacionais, regionais e setoriais”40.
Quanto ao grau de detalhamento do plano plurianual, deve-se compreender que
não pode invadir o conteúdo pertencente a diretrizes orçamentárias e ao orçamento
propriamente, a quem pertence o detalhamento das ações estatais. Ou seja, o
detalhamento programático do plano não pode inviabilizar a atuação futura do
legislador.
De maneira a diminuir, pelo menos aparentemente, a importância jurídica desta
lei orçamentária, Ricardo Lobo Torres afirma que “O plano plurianual é lei formal,
dependente do orçamento anual para que possa ter eficácia quanto à realização das
despesas. Constitui mera programação ou orientação, que deve ser respeitada pelo
39 Sobre a matéria escreveu Oswaldo Maldonado SANCHES. A participação do Poder Legislativo na análise a aprovação do Orçamento. Revista de Informação Legislativa Ano 33, n° 131, Julho/setembro, Brasília: Senado Federal, 1996, p. 59-77. 40 Op. cit. p. 62-3.
34
Executivo na execução dos orçamentos anuais, mas que não vincula o Legislativo na
feitura das leis orçamentárias”41.
Consigna-se aqui que o entendimento do autor aparentemente diminui a
importância jurídica do plano plurianual porque afirma que se trata de lei formal,
dependente da lei orçamentária anual para ter eficácia quanto à operação das despesas
públicas. No entanto, o próprio autor não deixa escapar que o Executivo, ao elaborar os
projetos de lei de diretrizes orçamentárias e de lei orçamentária anual, está vinculado ao
plano, o que demonstra o caráter articulado das leis orçamentárias; e que existe mesmo
uma hierarquia material entre as leis, ainda que não se possa falar em hierarquia formal
porque todas possuem um caráter ordinário, tendo em vista as espécies normativas
arroladas no art. 59 da Constituição federal.
Quanto à lei de diretrizes orçamentárias, cabe a esta espécie normativa, nos termos
do § 2o do art. 165 da Constituição, orientar a elaboração da lei orçamentária anual,
apontando as metas e prioridades da administração federal.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias é o elemento jurídico enunciador das políticas
de gastos do governo para um determinado exercício, disciplinador da elaboração
orçamentária.
É para Oswaldo Maldonado Sanches42
o instrumento básico do poder público para a sistematização e explicitação das suas políticas e prioridades de curto prazo, isto é, para a indicação dos setores, programas e ações que irão receber ênfase no exercício de referência. Como tal deveria ser seletiva ao invés de exaustiva (...) e ser macroalocativa ao invés de distributiva – concentrar recursos em ações estruturadoras do desenvolvimento econômico e social e não na suplementação dos recursos dos estados e municípios para ações típicas desses níveis de governo.
Ela é, na verdade, o elo entre o plano de longo prazo (PPA) e o de curto prazo
(LOA). É uma grande conquista do Legislativo por constituir-se em lei formal
vinculante do Executivo na elaboração da proposta orçamentária, contra a tecnocracia
da máquina estatal, ao definir as grandes opções de alocação de recursos e estabelecer
as prioridades e metas para um determinado exercício.
41 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, volume V: o orçamento na Constituição. 2a ed. Rev e atual., Rio de Janeiro: Renovar, p. 64. 42 SANCHES, op. cit. p. 64.
35
Torres, acima citado, ao tratar da lei de diretrizes orçamentárias, não se refere ao
seu caráter vinculante para o Executivo. Afirma tratar-se de “simples orientação ou
sinalização de caráter anual, para a feitura do orçamento...”43. Entretanto, não parece
lógico o Plano Plurianual vincular o Executivo na elaboração do projeto orçamentário e
não o vincular quanto ao projeto de diretrizes orçamentárias.
Se não vinculasse pelo menos a elaboração das propostas do Executivo, qual seria
a serventia das Leis que instituem o Plano Plurianual e as Diretrizes Orçamentárias?
Não resta dúvida que há, sim, uma vinculação do Executivo ao conteúdo da Lei de
Diretrizes Orçamentárias, quando da elaboração do projeto de Lei Orçamentária Anual,
que abarca o orçamento fiscal – receitas e despesas referentes aos três Poderes, inclusive
da Administração Indireta, o orçamento de investimentos das empresas estatais e o
orçamento da seguridade social.
Do exposto, pode-se compreender como sendo a lei orçamentária anual o
documento oriundo do Legislativo, cujo projeto é de iniciativa vinculada do Chefe do
Executivo, e que, de acordo com os balizamentos estabelecidos no Plano Plurianual e
nas Diretrizes Orçamentárias, a partir dum debate político-democrático travado no
parlamento, prevê as receitas e fixa as despesas públicas, e é válido para um
determinado exercício financeiro.
Ou seja, o orçamento anual é um plano financeiro, discutido e aprovado pelos
representantes do povo, que deve traduzir os postulados do plano plurianual e da lei de
diretrizes orçamentárias, devendo se constituir num dos documentos de maior
relevância para a Administração Pública e não apenas o resultado de uma exigência
jurídico-formal44.
Fica claro que a Lei Orçamentária Anual é resultado de uma participação conjunta
do Executivo e do Legislativo, que definem dentre as necessidades da comunidade as
prioridades públicas, ao juridicizar, através do processo político criador das leis
orçamentárias, certos interesses.
Talvez o orçamento, que programa a vida econômica e financeira do Estado,
apresente-se, após a Constituição, como o documento jurídico mais importante da vida
43 Ibid. p. 66. 44 Sobre o tema assim se pronunciou Oswalddo ALBANEZ, in:O Novo Processo Orçamentário. Boletim
de Direito Municipal. São Paulo: Ed. NDJ ano 4, abril/2003, p. 222: “Não basta que os orçamentos sejam elaborados respeitando as normas técnicas; o mais importante é que neles estejam previstas as reais prioridades que venham ao encontro das necessidade da comunidade”.
36
do Estado e da Sociedade. É por meio do orçamento que o Estado realiza as
necessidades públicas, o que, em última análise, é a justificação de sua existência.
Situação complicada viverá o Estado, portanto, ante a inexistência de lei
orçamentária, o que poderá ocorrer ou em caso de não deliberação sobre o projeto de lei
orçamentária pelo Legislativo, ou pela rejeição total do projeto, ou, ainda, por veto do
Executivo.
Em caso de não deliberação pelo Legislativo, no que se refere à lei de diretrizes
orçamentárias, o Constituinte tomou a cautela de determinar que a sessão legislativa não
se interrompe sem a aprovação de seu projeto (art. 57, § 2o).
Entretanto, a princípio, não há regra sobre o transcurso de prazo in albis por parte
do Legislativo sem a deliberação sobre a lei orçamentária anual, o que levaria ao início
do exercício financeiro sem a existência de uma lei orçamentária. Isto porque ainda não
foi criada a lei complementar prevista no art. 165, § 9o, que tem por finalidade dispor
sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do
plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, bem
como estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da Administração Pública.
No entanto, ainda que o que aqui se conclui não ocorra na prática, entende-se em
termos jurídico-constitucionais, a partir de uma interpretação sistemática da
constituição, que a sessão legislativa ordinária também não se interrompe caso não seja
aprovado o projeto de Lei Orçamentária Anual, tendo em vista o disposto no art. 35, §
2o, III, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, in verbis:
Art. 35 (...)
(...)
III – o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado
até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro
e devolvido para sanção até o encerramento da sessão
legislativa (negritou-se).
Ora, há uma determinação constitucional para que o Parlamento devolva o projeto
de lei orçamentária anual até o encerramento da sessão legislativa (que só pode ser
compreendida como sessão legislativa ordinária, obviamente). Enquanto não o fizer,
não poderá haver recesso parlamentar, que é a suspensão do funcionamento ordinário
das atividades do Legislativo. Se há uma determinação constitucional para ser cumprida
dentro do período de desenvolvimento das atividades ordinárias do Poder Legislativo,
não poderá iniciar-se o recesso sem se cumprir tal ordem constitucional.
37
Não se afigura como razoável o entendimento de que a determinação dos Atos
Transitórios da Constituição seja a de que se devolva o projeto de lei orçamentária ao
Executivo, com ou sem deliberação do Legislativo. Isto pelo fato de que seria a
abdicação de uma função precípua sua, prevista constitucionalmente, e em flagrante
violação ao Estado Democrático de Direito e, até mesmo, violação à noção de separação
constitucional de atribuições, no seu viés que prevê a indelegabilidade de funções, que
só comporta exceção quando expressa e inequivocamente prevista no texto
constitucional.
Incontestavelmente, caso grave é o da recusa do Legislativo em aprovar o projeto
de lei orçamentária, implicando um conflito institucional entre os poderes do Estado.
Para Torres45, “nessa hipótese não há solução jurídica, por se haver desbordado o
próprio campo da Constituição, que, ao tornar obrigatória o orçamento anual, não
poderia prever o impasse institucional”.
Muito embora seja adequado vislumbrar-se a existência de um conflito
institucional com a rejeição do projeto de lei orçamentária (situação que também
reinaria com o veto presidencial ao projeto, devendo, no caso do presidencialismo
brasileiro, ou o presidente renunciar, ou estabelecer uma nova composição de forças
políticas, inclusive com o rearranjo da composição ministerial), pode-se, para se buscar
soluções jurídicas para o caso, equiparar a rejeição ou o veto com a ausência de
deliberação do parlamento sobre o projeto de lei orçamentária. Isto porque, em qualquer
dos casos, o que resulta é a inexistência de orçamento.
Mesmo neste caso, não tem sido pacífico o entendimento da doutrina pátria sobre
a alternativa jurídica a ser adotada. Conforme Gabriel Ivo46, três são as correntes
doutrinárias que disputam a solução mais acertada para o problema.
A primeira solução seria considerar aprovado o projeto de orçamento e promulgar
como lei o projeto original. Este é o entendimento de Adilson Abreu Dallari47, para
quem, acertadamente, não faz sentido no momento atual prorrogar o orçamento anterior,
uma vez que hoje o orçamento é um instrumento de programação, não se podendo
repetir os programas e projetos já executados a partir do orçamento anterior. Para o
45 TORRES. op cit. p. 248. 46 IVO, Gabriel. O processo de formação da lei orçamentária anual – a rejeição do Projeto de lei e o princípio da inexaurabilidade da lei orçamentária. Revista Trimestral de Direito Público. Número 34, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 164-180. 47 DALLARI, Adilson Abreu. Lei orçamentária – processo legislativo. Revista de Informação Legislativa. Ano 33, número 129, janeiro/maio, Brasília: Senado Federal, 1996, p. 157-162.
38
autor - equivocadamente, no entanto - a única solução para o caso de rejeição da
proposta orçamentária é a promulgação do projeto original como lei.
É equivocado o entendimento porque a rejeição encerra o processo legislativo. Se
encerrado, é impossível a prática jurídica de um ato que o pressupõe. Não se pode
promulgar lei inexistente. Considerar-se, como faz o autor, a rejeição como ato nulo,
não faz surgir o instituto da aprovação tácita de projeto de lei pelo parlamento. Isto
porque é determinação constitucional que o orçamento seja aprovado pelo Legislativo.
Adequadas, portanto, as palavras de Gabriel Ivo, na obra citada:
Não tem qualquer fundamento jurídico relegar o comportamento do Poder Legislativo ao rejeitar o projeto de lei orçamentária. Se há a rejeição é porque o Poder Legislativo discorda da política do Poder Executivo. Seria um sem sentido a tramitação do projeto de lei orçamentária pelo Legislativo sem que este pudesse rejeitar o projeto.
Uma segunda corrente propõe a prorrogação do orçamento anterior, numa
ultratividade da lei orçamentária, havendo a suspensão da perda da vigência da lei
orçamentária anterior, caso houvesse a rejeição do projeto de lei orçamentária anual.
Para Gabriel Ivo (que, no artigo já citado, adere a esta segunda corrente, citando Alfredo
Augusto Becker), quando a Constituição de um Estado estabelece a necessidade de
aprovação periódica do orçamento, então o Estado constitui-se por tempo determinado,
vivendo o espaço de um orçamento. Assim, como o Estado não pode fenecer, surge o
princípio da inexaurabilidade da lei orçamentária, que significa a manutenção de sua
vigência, quando o projeto da nova lei orçamentária for rejeitado, para que continue
existindo autorização para a cobranças das receitas, assim como para a realização das
despesas, e o Estado possa “sobreviver”.
A terceira corrente, que neste trabalho se compreende como a que tem
consonância com o texto constitucional, advoga a tese de que, em havendo rejeição do
projeto de lei orçamentária anual, os recursos que ficarem sem despesas
correspondentes (e eles realmente existirão, tendo em vista que no sistema
constitucional tributário pátrio não vige o princípio da anualidade tributária) poderão ser
utilizados, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica
autorização legislativa. Este é o entendimento de José Afonso da Silva48, para quem a
determinação é do art. 166, § 8o da atual Constituição, onde se estabelece que ‘os
48 SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20a ed., p. 723.
39
recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária
anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso,
mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização
legislativa”. Esclareça-se, unicamente, que, em havendo rejeição total do projeto de lei
orçamentária anual, não se há de falar em créditos suplementares, uma vez que estes
referem-se à possibilidade de reforço de dotação orçamentária já existente; como não há
orçamento, não se tem suplementação, mas somente a criação de créditos especiais.
Este dispositivo constitucional é taxativo quanto à necessidade de aprovação do
orçamento pelo Legislativo, excluindo qualquer possibilidade de o Executivo, a seu
talante, gastar indiscriminadamente os recursos públicos. Isto demonstra que, com a
Constituição de 1988, ao contrário do que ocorria no regime de força que a precedeu,
tem-se, ao menos constitucionalmente, um processo orçamentário democrático, com
posição de relevo conferida ao Legislativo.
Por fim, quanto aos aspectos constitucionais do processo legislativo orçamentário,
é preciso deixar consignado que se deve aplicar subsidiariamente as normas do processo
legislativo ordinário.
2.2.4.3. Importância da natureza jurídica da Lei Orçamentária Anual?
A grande celeuma jurídica existente em torno da lei orçamentária é sobre sua
natureza jurídica. É lei em sentido formal? É lei em sentido material? É ato-condição?
A partir dos autores do Direito Orçamentário, pode-se estabelecer os seguintes
entendimentos:
a) Teoria da lei formal: o orçamento é lei formal por tratar-se de simples
autorização do Parlamento para a prática de atos executivos. Apenas prevê as
receitas e autoriza os gastos. Não cria, portanto, direitos subjetivos.
b) Teoria do ato-condição: a lei orçamentária é, na verdade, ato-condição porque é
ela que autoriza serem os gastos públicos realizados pelos funcionários públicos,
quando não preexistem as causas jurídicas das despesas – por exemplo, uma
dívida.
c) Teoria da lei material: a lei orçamentária tem natureza material criadora de
direitos subjetivos , com todas as características e força de uma lei.
Ao lado destas teorias (que aqui não se desenvolveu, foram simplesmente
referidas), encontra-se a posição de que a natureza jurídica do orçamento não é de
40
grande relevância. Em especial, este é o entendimento de Nelson de Sousa Sampaio49,
para quem “bastaria saber que se trata de um ato legislativo. Ademais, a resposta a tal
indagação (a natureza jurídica do orçamento) dependerá do direito positivo de cada
país”.
Mais adiante continua o autor50:
Por vezes, constuma-se caracterizar o orçamento como lei apenas formal em contraposição à lei no sentido material. (...). Ainda se pode, sem dúvida, empregar essa terminologia para distinguir a medida de generalização do conteúdo da lei. É, entretanto, critério tosco, porque, na realidade, se trata de uma diferença de grau.
Para Sampaio, não se pode admitir, no sistema brasileiro, que o orçamento se
reduza à lei formal, sem realizar modificações no ordenamento jurídico. Para ele, no
campo da receita, cria-se o direito e a obrigação de o Executivo arrecadar os tributos.
No campo das despesas, o Executivo não pode realizar despesas fixas sem previsão
orçamentária. Se estes não constarem do orçamento, será necessária a abertura de
crédito especial. “Quanto às despesas variáveis, o orçamento cria para o Executivo a
faculdade de efetuá-las e o dever de não exceder os seus limites nem destinar as
dotações para fim diverso do especificado, sob pena de incidir em crime de
responsabilidade”51.
O que se busca, realmente, com a identificação da natureza jurídica do
orçamento, é saber se há a obrigatoriedade de o Executivo realizar as despesas previstas,
e se há criação de direitos subjetivos para terceiros.
Torres assim se pronuncia:
Parece-nos que (...) o problema da natureza do orçamento continua relevante, eis que dele dependem outras questões: a da obrigatoriedade de o Executivo realizar as despesas previstas; a da criação de direitos subjetivos para terceiros; a da revogação das leis financeiras materiais.
O entendimento dominante sobre a natureza do orçamento no Brasil pode ser
sintetizado nas palavras Torres:
49 SAMPAIO, Nelson de Sousa. O processo legislativo. 2a ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 150. 50 Ibid., p. 152-3. 51 SAMPAIO, op.cit., p. 154.
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A teoria de que o orçamento é lei formal, que apenas prevê as receitas públicas e autoriza os gastos, sem criar direitos subjetivos e sem modificar as leis tributárias e financeiras é, a nosso ver, a que melhor se adapta ao direito constitucional brasileiro.
Entretanto, vem sendo entendido que há, na execução do orçamento, no aspecto
despesa (que é o que interessa neste estudo), um campo vinculado e outro
discricionário.
A vinculação estaria relacionada às despesas fixas, que são decorrentes da
execução da Constituição ou de leis, como, por exemplo, a alocação de no mínimo 18%
das receitas dos impostos para a manutenção e o desenvolvimento do ensino (art.
212,CF); as contribuições sociais, que são vinculadas ao financiamento do orçamento da
seguridade social; os recursos de transferência automática aos entes políticos da
federação (arts. 158 e 159, CF); a transferência compulsória até o dia 20 de cada mês
dos recursos correspondentes às dotações orçamentárias do Legislativo, do Judiciário,
do Ministério Público e da Defensoria Pública (art. 168); a remuneração dos agentes
públicos.
A discricionariedade estaria ligada às chamadas despesas variáveis, na
terminologia utilizada por Aliomar Baleeiro, para quem estas despesas são simples
autorizações que facultam a ação do Executivo até o limite de gastos previsto
orçamentariamente. “São créditos limitativos e não imperativos”. Como afirma
Baleeiro52, tendo em vista seu caráter discricionário, as despesas variáveis
...não criam direito subjetivo em favor das pessoas ou instituições as quais viriam a beneficiar: uma instituição de caridade, por exemplo, não terá ação em juízo para reclamar do Tesouro um auxílio pecuniário autorizado no orçamento, mas que não foi objeto de concessão em lei.
É este também o entendimento do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão - no que se refere à existência de parte discricionária e de parte vinculada no
gasto do orçamento - que, em trabalho da Assessoria Técnica da Secretaria de
orçamento Federal sobre a evolução do grau de discricionariedade dos recursos da
União, assim iniciou o texto: “o orçamento brasileiro, a partir da Constituição Federal
52 BALEEIRO, Aliomar. Uma introcução à ciência das finanças. 15a ed., rev e atual por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 442.
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de 1988, passou por um processo de expressiva redução do grau de discricionariedade
alocativa de recursos”53.
Não poderia ser outro o entendimento. Ainda que se compreenda que a Lei
Orçamentária Anual seja lei somente no sentido formal, ela vincula o Executivo pelo
menos naquilo em que expressamente a Constituição determina. Isto pode levar, como
de fato leva, ao entendimento de que a definição da natureza jurídica da LOA como lei
formal ou material não tem interferência alguma na aferição de discricionariedade ou
vinculatividade do orçamento; Torres, ao contrário, acompanhando a doutrina
praticamente uníssona, afirma que a natureza formal da lei retira do Executivo a
obrigatoriedade de realizar as despesas nela previstas.
Este mesmo autor, em passagem já citada parágrafos acima, é contraditório
quanto à possibilidade de lei formal vincular ou não o Executivo. Ele afirma que o
plano plurianual é lei formal que constitui mera programação ou orientação, mas que
deve ser respeitada pelo Executivo na execução dos orçamentos anuais, não vinculando
apenas o Legislativo. Ora, se o plano plurianual, enquanto lei formal, vincula o
Executivo na elaboração do projeto de lei orçamentária anual, logicamente, a LOA,
ainda que lei somente sob o aspecto formal, também pode vincular o Executivo quando
de sua execução. Não é correto entender-se que num caso a lei formal vincula e no outro
caso, porque é lei somente no sentido formal, não vincula o Executivo.
Na verdade, para se determinar se o orçamento é vinculativo ou meramente
autorizativo para o Executivo, não carece analisar a natureza do ato oriundo do
Legislativo – se lei somente no aspecto formal, ou lei em sentido estrito. O que se tem
que buscar é o perfil constitucional do orçamento; o que é imperativo identificar, para
adequadamente se responder à questão, é o regime jurídico, previsto
constitucionalmente, do orçamento público. Ou seja, deve-se procurar responder as
seguintes questões: em que tipo de função estatal está inserido o orçamento? Como deve
ser compreendido o orçamento a partir da Constituição Federal de 1988?
2.3. A elaboração do orçamento e as funções estatais
53 Vinculações de Receitas dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e o Poder Discricionário de Alocação dos Recursos do Governo Federal – Volume 1, n° 1 (2003) – Brasília, Secretaria de Orçamento Federal – SOF.
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Como já se observou em capítulo anterior54, a partir do vigente Direito
Constitucional positivo brasileiro, foram identificadas quatro funções estatais: a
legislativa, a executiva, a jurisdicional e a política ou de governo.
Apontou-se como ato estatal propriamente legislativo aquele criado pelo
Legislativo e veiculador de normas gerais e abstratas (salvo as exceções
constitucionalmente previstas: a medida provisória e a lei delegada). O ato legislativo
tem a característica de inovar primariamente a ordem jurídica e de estar vinculado
exclusivamente à ordem constitucional vigente.
Já o ato emanado no exercício de competência jurisdicional é aquele oriundo do
Judiciário, e cujo valor formal consiste no trânsito em julgado de uma decisão que põe
fim a uma questão jurídica.
A função administrativa corresponde a todas as atividades infralegais do Estado
(excluindo-se a jurisdicional), caracterizadas pela subordinação à lei, contrastável pelo
Judiciário e portadoras de presunção de legalidade e auto-executoriedade.
A função política ou de governo é direta e exclusivamente derivada da
Constituição, distinguindo-se da função administrativa porque esta é atividade
infralegal. Desassemelha-se da função legislativa, apesar de ambas derivarem
diretamente da Constituição, porque o ato de governo caracteriza-se por ser um ato
material, uma tomada de posição (decisão) político-jurídica concreta, enquanto a
legislativa estabelece normas gerais e abstratas.
Por esta breve retomada de conceitos percebe-se que a elaboração orçamentária
só pode se caracterizar como ato político ou de governo. Está previsto
constitucionalmente o órgão responsável pelo desencadeamento do processo
orçamentário (Executivo) que, através de seu plano de governo, consubstanciado no
plano plurianual e na lei de diretrizes orçamentárias, decide onde alocar os recursos
previstos como ingressos para o exercício financeiro vindouro.
Retirando as vinculações constitucionalmente previstas, esta atividade de
elaboração do orçamento é altamente discricionária, vinculando-se, quanto ao mérito,
exclusivamente à Constituição, dependendo sua validade da aprovação e, porque não, da
co-participação do Legislativo em seus termos finais.
Em verdade, pode-se dizer que a lei orçamentária anual é o resultado da
formação de um ato político complexo, uma vez que, para a formação válida do
54 Capítulo anterior da tese de doutorado.
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orçamento, há a necessidade da conjugação da vontade do Executivo e do Legislativo.
Há o concurso de duas vontades para a formação de um ato único: o orçamento.
É neste exato momento, o da escolha na alocação de recursos públicos, que
ocorre a simbiose entre o jurídico, previsto constitucionalmente, e o político,
estabelecido pelos interesses conjunturais dos grupos políticos hegemônicos e
momentânea e democraticamente no controle do governo.
É na elaboração orçamentária que o problema do “materialmente possível” deve
ser resolvido. É fato que as necessidades, bem como as determinações constitucionais,
são infindáveis e os recursos públicos são escassos. Isto levou à criação da chamada
“reserva do possível”.
A Constituição, como não poderia ser diferente, deixou a cargo do Poder
Executivo e, em especial, do Legislativo, que dá a última palavra em matéria
orçamentária, a competência para a definição das prioridades em termos de gastos
públicos. É através da função política de elaboração do orçamento que estes Poderes
estabelecem em quê e quanto o Estado investirá. Há, neste momento, uma opção
política destes órgãos estatais que refletem, ou deveriam refletir, os anseios sociais,
porque seus membros foram democraticamente eleitos.
É claro que a efetivação ou concretização das determinações constitucionais
dependerá de recursos econômicos. Assim, a limitação dos recursos públicos é um
verdadeiro limite fático à realização constitucional. Entretanto, há um momento político
e democrático específico em que se decidem, discricionariamente, quais são os direitos
constitucionais prioritários, naquele momento histórico. Este momento é o da
composição do orçamento público.
É através do orçamento que as imposições constitucionais carentes de recursos
materiais para sua concretização se encorpam e passam a ter viabilidade fática. O que se
quer dizer é que a transformação da realidade social, determinada pela Constituição,
passa por escolhas democráticas na alocação de recursos públicos. É o parlamento,
como órgão representativo de uma sociedade plural e democrática, que co-elabora e
aprova o orçamento com o Executivo.
O processo de elaboração orçamentária, como parte de um processo democrático,
determina quais são as prioridades para a realização das imposições constitucionais,
resolvendo, pelo menos num primeiro momento, o problema da reserva do possível e
atenuando o que, para alguns, seria o mal das Constituições programáticas: o
estabelecimento de “programas de governo” no corpo da Constituição inviabilizando o
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debate político. Resolveria o problema do engessamento do debate democrático - na
verdade um falso problema – porque as programáticas dão uma direção à atuação
estatal, mas as prioridades e o modo de se alcançar os objetivos constitucionais são
definidos diuturnamente através do debate político amplo e democrático, inclusive e
principalmente no estabelecimento da alocação dos recursos público.
Conclusão
Em conclusão a tudo o que aqui se expôs, pode-se dizer:
1. O primeiro momento de concretização de uma determinação constitucional
ocorre no exercício da função política, em que há ampla liberdade de
conformação por parte do seu exercente, quando da escolha de políticas públicas
a serem veiculadas por meio de leis e, a seguir, com as propostas das leis
orçamentárias (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei
Orçamentária Anual).
2. Um segundo momento é o que sucede à aprovação destes projetos de leis. Trata-
se da execução orçamentária, que não é função política, mas função
administrativa do Estado.
3. Não há recursos públicos para a imediata concretização de todas as imposições
constitucionais. Os recursos são escassos e as necessidades infindáveis. No
processo democrático e político (função política do Estado) de definição legal do
orçamento público, procura-se estabelecer a alocação dos recursos para a
concretização das determinações constitucionais. Neste processo há
discricionariedade por parte do Executivo e do Legislativo para, segundo um
programa de governo eleito democraticamente, estabelecerem-se as prioridades
de gastos do Governo.
4. A partir dessa definição democrática, não resta ao Executivo discricionariedade
para gastar ou não os recursos destinados à concretização das determinações
constitucionais.
5. Como função administrativa, portanto, atividade infralegal por natureza, não
poderá o Executivo contingenciar dotações orçamentárias destinadas à
realização das imposições constitucionais. A execução orçamentária é ato
administrativo, que nada mais é senão a materialização da função administrativa,
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função esta que é atividade subordinada à lei e passível de contraste pelo
Judiciário. Ou seja, não há discricionariedade do Chefe do Executivo, segundo a
ordem constitucional brasileira contemporânea, na execução orçamentária de
recursos previstos para a concretização de determinações constitucionais, sendo
ilegal e reflexamente inconstitucional o contingenciamento destes recursos.
6. A lei orçamentária é daqueles atos chamados complexos. Ainda que o seu
projeto seja elaborado pelo Poder Executivo, sua aprovação depende da
aprovação do Poder Legislativo, não podendo, sob pena de se afrontar a lógica
jurídica, ser modificada pela vontade de apenas uma das partes (o Executivo,
com sua inexecução). Tanto o raciocínio procede que é defeso ao Presidente da
República a criação de lei delegada ou a edição de medida provisória que
versem sobre plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, e lei orçamentária
anual.
7. Conseqüentemente, o orçamento é impositivo ao Executivo naquilo que diz
respeito aos gastos de recursos alocados para efetivação das determinações
constitucionais, gerando, portanto, direito subjetivo àqueles favorecidos na peça
orçamentária.
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