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Análise sobre representação lésbica nos quadrinhos.
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Lesbianismo nos quadrinhos, uma leitura de Fun Home de Alisson Bechdel
Rafael Soares Duarte 44 - Questões de gênero na produção cultural para crianças: literatura infantil, filmes, desenhos, sites, publicidade e outros artefatos culturais
Para quem desconhece seu alcance, pode parecer estranho pensar seriamente sobre o
lesbianismo ou identidade sexual nas histórias em quadrinhos (HQ). Nos EUA, e no Brasil, que
importa maciçamente sua produção, a HQ é conhecida como lugar de homens superpoderosos em
roupas colantes e quase sempre acompanhados de crianças, fato que já deixou margem para muitas
especulações e piadas pejorativas sobre homoerotismo. Para além destas simplificações, o fato é
que as histórias em quadrinhos já exploraram a mesma infinidade de assuntos pertinentes a todas as
formas de arte, incluindo aí questões de gênero e identidade sexual, de forma profunda e não
estereotipada1. A própria autora de Fun Home, Alison Bechdel, escreve e desenha a tira Dykes to
Watch Out For (algo como “Sapatas para ficar de olho”) desde 1983. Ainda assim, chama a atenção
o fato de uma história em quadrinhos, que tem como tema principal justamente o lesbianismo e o
homossexualismo masculino, ser escolhida pela Time Magazine como melhor livro de 2006, o que
mostra ser possível o olhar não simplista tanto sobre o assunto, quanto sobre o meio através do qual
ele é expressado. O presente texto aborda algumas questões suscitadas pela leitura da obra Fun
Home, de Alison Bechdel, e o cruzamento de elementos de autobiografia, questões de identidade
sexual, literatura, paternidade e a estrutura narrativa dos quadrinhos.
Fun Home mostra a infância e adolescência de Alison Bechdel em uma antiga mansão
restaurada pelo esforço e obsessão monomaníaca de seu pai para com a aparência. Sua mãe é
professora de inglês e atriz. Seu pai é professor de inglês e literatura, e embalsamador da funerária
da pequena cidade onde vivem. Desta segunda ocupação surge o título da HQ, Fun Home (casa da
diversão), contração de Funeral Home (casa funerária) que expressa a convivência do trágico e do
cômico na família de Alison. Sua infância é mostrada entre a manutenção da casa, a funerária e a
literatura. No fim de sua adolescência seu auto reconhecimento como lésbica a deixa a par da
homossexualidade enrustida de seu pai. Três meses depois, ele morre em um provável suicídio,
deixando em seu lugar apenas suposições sobre sua vida, sua morte e sua identidade sexual, vivida
de forma tão diferente e no entanto tão entrecruzada com a da filha.
Cruzamento é, com efeito, uma palavra importante em Fun Home, onde quase tudo o que é
dito, mostrado, vivido, pensado, sugerido, comentado ou comparado se entrecruza, tem seu sentido
ampliado pelas outras partes e é nelas emaranhado, formando um todo rico, expressivo e
humanamente contraditório, a partir do qual Alison tenta reconstruir e re-significar fatos de sua vida
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para melhor compreendê-los. Bakhtin diz que, para realizar a autobiografia, “o autor deve situar-se
fora de si mesmo, viver a si mesmo num plano diferente daquele em que vivemos efetivamente
nossa vida” (Bakhtin: 1997, 35). Esta exotopia, como ele chamou, possibilita a unidade da obra
autobiográfica por abarcar elementos que não partem do autor, mas de seus próximos “com sua
própria tonalidade emocional” (Idem, 168). Estes elementos são segundo Bakhtin, “necessários à
reconstituição (...) inteligível de uma imagem global” de uma vida, sem a qual “seria não só
incompleta em seu conteúdo, mas também internamente desordenada” (Idem, 168-169).
Parte desta visão externa será dada em Fun Home por cartas, fotografias e relatos de sua mãe
recebidos posteriormente, fornecendo detalhes que escapam à alçada da autora, mas a ordenação
em si da história será feita através do distanciamento dado pela intima relação de Alison com a
literatura. A história é contada de forma temporalmente não linear, através de recortes de diferentes
momentos da vida de Bechdel, que compreendem desde a história de seus pais antes de seu
nascimento até mais ou menos seus vinte anos. Estas memórias serão agrupadas a partir de obras
literárias cujos aspectos estéticos ou narrativos dialogam com acontecimentos pessoais, ou que
tenham semelhanças exofóricas com a vida dos autores usados (às vezes muito fortes), ou mesmo
livros que estiveram presentes em certos momentos; o “eu-para-mim” dialogando com o “outro em
mim”, para “escapar ao aleatório” para usar os termos de Bakhtin (Idem, 169).
Não se pode esquecer que Fun Home é uma história em quadrinhos e portanto, sua narrativa
é tão visual quanto verbal. A definição de quadrinhos de McCloud, “Imagens pictóricas e outras
[onde ‘outras’ abarca as palavras] justapostas em seqüência deliberada” (McCloud: 2005, 9) ajuda a
entender que a narrativa nas HQ's está ligada à montagem e justaposição de quadrinhos que contém
imagens, textos ou os dois, produzindo sentidos específicos. Não se trata simplesmente de
ilustrações do que está sendo contado, ou de reiteração verbal das imagens, mas de um sentido que
só será completamente configurado através da interação entre desenho e texto, e da seqüência de
quadrinhos na página. Na montagem interna dos quadrinhos, a interação entre palavra e imagem
pode ocorrer de sete formas diferentes para a construção de sentido: específica da palavra,
específica da imagem, duo-específica, interseccional, paralela, montagem, e interdependentes
(Idem, 153-155).
Em Fun Home, a interação entre obras literárias e memórias será caracterizada
principalmente pelas formas de interação paralela e interdependente entre palavras e imagens. Na
parte puramente textual, Bechdel narra em primeira pessoa suas lembranças, informações sobre seu
pai conseguidas após sua morte e impressões sobre obras literárias, e/ou coincidências entre sua
vida e a literatura. Na narrativa imagética, o foco é mantido sobre Bechdel e sua família, ou sobre
imagens de textos de livros. O uso de interações paralelas entre texto e imagem mostra um dos
efeitos estéticos específicos dos quadrinhos, onde uma narrativa textual não é relacionada
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diretamente com as imagens da seqüência a que está atrelada, estabelecendo um diálogo do texto
com cada imagem, para criar um terceiro sentido que pode elaborar, unificar ou problematizar os
dois primeiros. Um exemplo: o último quadrinho da página 13, onde a frase sobre a paixão de
Bruce Bechdel pela decoração “Paixão em todos os sentidos da palavra. Libidinal. Maníaca.
Martirizante.” (Bechdel: 2007, 13) é colocada sobre um desenho que o mostra carregando uma viga
sobre um dos ombros. A configuração entre texto e imagem elabora a conotação de martírio
religioso cristão, onde a posição da viga sobre o ombro faz as vezes de cruz.
Deste modo, entre comparações literárias e sentidos sugeridos somos apresentados à
tentativa de Alison de melhor compreender esta história. Primeiramente, a figura paterna é
comparada a Dédalo, pai de Ícaro e inventor do labirinto, pela habilidade criativa e indiferença ao
custo humano de seus projetos. A inventividade de Bruce Bechdel para com a decoração da casa é
ligada à necessidade de dissimulação: “ele usava toda sua técnica e habilidade não para fazer coisas
mas para fazê-las parecer o que não eram. Ou seja, impecáveis.” (Idem, 22). Esta dissimulação paira
sobre todos os aspectos da vida de Bruce Bechdel, mesmo de sua morte, problematizada através da
figura de Camus e suas obras sobre suicídio. Alison deixa claro que não há provas de que seu pai se
matou, apenas indícios. Um deles é o exemplar de A morte Feliz de Camus, lida por seu pai pouco
antes do suicídio, bem como passagens grifadas de O mito de Sísifo tratando sobre o suicídio como
solução para o absurdo da existência. Neste caso, o provável suicídio do pai é relacionado ao
absurdo de sua vida escondida de si, de sua sexualidade.
Denise Portinari disse, sobre o descobrir-se lésbica, que “ninguém se torna homossexual
sozinho. Mas o que não se costuma perceber é que o outro que está em questão aí não é só um
outro concreto, e sim imaginário, i.e., um significante” (Portinari: 1989, 69). Esta afirmação
descreve bem a auto descoberta de Alison como lésbica, que se dá através dos livros: primeiramente
pela descoberta da palavra no dicionário aos treze anos e depois aos dezenove lendo um livro sobre
lesbianismo, o que foi, segundo Alison: “uma descoberta condizente com minha educação entre os
livros. Uma revelação da mente, e não da carne” (Bechdel: op. cit. 80). Sua homossexualidade
revelada aos pais através de uma carta, “um meio remoto, [para] uma família remota” (Idem, 83) a
torna ciente da homossexualidade do pai, transformando a tentativa de emancipação da vida dos
pais em outra ligação. O que não parece ser fácil, dada a figura paterna.
Em meio às comparações, Alison expõe sua exotopia dizendo que as alusões a autores são
usadas “não só como recursos descritivos, mas porque meus pais são mais reais para mim em
termos de ficção. E talvez meu distanciamento estético transmita melhor o clima ártico de minha
família do que qualquer comparação literária” (Idem, 73). Esta exotopia é também problematizada
na possibilidade (ou antes, sentimento) de culpa levantada por Alison. A possibilidade é dupla, o
pai pode ter se matado por não poder mais conviver com sua homossexualidade enrustida, o que o
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fato de ela haver assumido poderia ter influenciado/desencadeado; ou a decisão pode ser aleatória, a
comparação com a vida e obra de Fitzgerald (o vazio de Gatsby, sua preferência pela ficção à
realidade, o fim trágico de Scott, e até o fato de Bruce Bechdel e Fitzgerald terem morrido com a
mesma idade – quase o mesmo número de dias) levanta a possibilidade de o suicídio ter ocorrido
por diversas outras razões, ou ainda, ter sido apenas um acidente. Neste caso Alison prefere a não
resolução à possibilidade de desfazer este vínculo, mesmo torto, que os unia. (figura, p.92)
No capítulo orientado através de comparações com Proust, a multiplicidade de
interconexões entre a história do pai e Em busca do tempo perdido passa por vários estágios, é o
livro que Bruce começou um ano antes de morrer, a relação de eros e botânica de Proust se
repetindo no pai de Alison , o termo antiquado para homossexual, invertido, descrevendo a relação
pai e filha – masculina e feminino, a idéia da tradução do termo perda na Recherche também como
perda da complexidade do termo perda, em que a proximidade de duas fotos, de Alison e do pai
quando tinham quase a mesma idade resolve melhor a idéia de tradução do que as palavras. (p.126)
Nesta relação de pai e filha, revestida por inversões, o último livro a aparecer é Ulisses, o
preferido de Bruce, sobre o qual Alison havia estudado pouco antes de sua morte. Ulisses é visto de
duas formas: a relação com a Odisséia de Homero é vista partir da odisséia pessoal de Alison ao
mundo homossexual, através da politização e do sexo. A outra faceta de Ulisses, a que versa sobre a
questão da paternidade espiritual, é “invertida”, já que no tocante a viver sua sexualidade, Alisson é,
como diz “claramente paternal”, como descobre durante a única conversa franca que têm com o pai
sobre suas sexualidades. Desta maneira o Dédalo do início da obra é transformando em Dedalus,
filho espiritual de Bloom, na obra de Joyce. Mas como deixa claro, essa relação pode ser entendida
de forma ambivalente, desta forma coincidindo paternidade física e e espiritual em uma só pessoa.
A ordenação que Alison dá à estrutura de Fun Home parece assemelhar-se ao pensamento,
onde as associações seguem uma linha mais lógica do que cronológica, que incluem repetições de
quadrinhos que mostram a complexificação que sua exotopia vai permitindo ao longo da obra. É o
caso dos quadros que mostram a descoberta da homossexualidade do pai (p. 64, 85, 217)
resignificando e ampliando seu sentido pelo que foi aos poucos sendo revelado. Esta escolha
estética permite que as questões sejam aprofundadas, mas não que sejam resolvidas, mais do que
como conflito, enquanto inquietação. Alison sente raiva, frustração, admiração, amor pelo pai e não
esconde isso enquanto conta a história. Bakhtin diz que na batalha pela exotopia “é mais comum
perder a pele do que salvá-la, sobretudo quando o herói é autobiográfico” (Bakhtin: op. cit., 35).
Alison não se furta a isso, pois mesmo com a identificação final onde ela reconhece a importância
do pai em sua formação, fica claro que a relação de Alison com o pai não foi “resolvida”, nem
pretendeu ser resolvida. Não há tentativa de chegar a um objetivo, ou de consertar algo. Só de
colocar uma história humana de forma humana.
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Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BECHDEL, Alison. Fun Home, uma tragicomédia em família. São Paulo: Conrad editora, 2007. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: MBooks do Brasil, 2005. _________, Reinventando os quadrinhos. São Paulo: Mbooks do Brasil, 2006. _________, Desenhando quadrinhos. São Paulo: Mbooks do Brasil, 2008.
PORTINARI, Denise. O discurso da homossexualidade feminina. São Paulo: Brasiliense, 1989.
Endereços eletrônicos
http://www.bookslut.com/features/2007_03_010764.php http://g1.globo.com/Noticias/Quadrinhos/0,,MUL200295-9662,00.html
Última vista em 30/05/2008.
1 Como rápidos exemplos temos Las Locas de Jaime Hernandez, Stuck Rubber Baby de Howard Cruse, Tales of the closet de Ivan Velez, Hothead Paisan de Diana Dimassa, Estranhos no Paraíso de Terry Moore, Rude girls and Dangerous Women de Jenifer Comper ou Lost Girls de Alan Moore eMelinda Gebbie.
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