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LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO:
AS MUITAS FACETAS
MAGDA SOARES
LEIA O TEXTO COMPLETO NO SITE: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf
RESUMO DO TEXTO EM TÓPICOS:
Magda Soares propõe, neste texto, retomar a invenção da
palavra e do conceito de letramento, e concomitante a desinvenção da
alfabetização, resultando no que ela denomina como sendo a
reinvenção da alfabetização.
Tem como objetivo defender a especificidade de cada
fenômeno e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois
processos – alfabetização e letramento
É em meados dos anos 80 que se dá, simultaneamente, a
invenção do termo letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da
literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele
denominado alfabetização, alphabétisation.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra
literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi
também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto
daquele que em língua inglesa se conhece como reading instruction,
beginning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas
da educação e da linguagem.
No final dos anos 70, a UNESCO ampliou o conceito de
literate para functionally literate, e, portanto, sugeriu que as avaliações
internacionais sobre domínio de competências de leitura e de escrita
fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever.
A diferença fundamental está no grau de ênfase posta nas
relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita (letramento) e a
aprendizagem do sistema de escrita (alfabetização), ou seja, entre o
conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de alfabetização
(alphabétisation, reading instruction, beginning literacy).
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Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as
práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema
relevante no contexto da constatação de que a população, embora
alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita
necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas
sociais e profissionais que envolvem a língua escrita.
Nestes países, constatou-se que jovens e adultos mais
desfavorecidos revelam precário domínio das competências de leitura e
de escrita, mesmo dominando o sistema de escrita, porque passaram
pela escolarização básica. Isso dificulta a inserção desses no mundo
social e no mundo do trabalho.
Alfabetização é saber ler e escrever. Letramento é saber
dominar com competência e habilidade a leitura e a escrita, isto é, fazer
uso da leitura e da escrita.
Durante toda a última década e até hoje a mídia vem
usando, em matérias sobre competências de leitura e escrita da
população brasileira, termos como semi-analfabetos, iletrados,
analfabetos funcionais, ao mesmo tempo que vem sistematicamente
criticando as informações sobre índices de alfabetização e
analfabetismo que tomam como base apenas o critério do Censo de
saber ou não saber “ler e escrever um bilhete simples”. A mídia vem,
pois, assumindo e divulgando um conceito de alfabetização que o
aproxima do conceito de letramento.
Dois problemas da aprendizagem inicial da escrita nos
países de primeiro mundo nos anos 70: o domínio precário de
competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em
práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem
do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita – são tratados de
forma independente.
No Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento se
mesclam, se superpõem e, frequentemente, se confundem.
No Brasil, a discussão do letramento surge sempre
enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da
diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma
inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência
do conceito de letramento. Interessante é observar que também na
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produção acadêmica brasileira alfabetização e letramento estão quase
sempre associados. Embora a relação entre alfabetização e letramento
seja inegável, além de necessária e até mesmo imperiosa, ela, ainda
que focalize diferenças, acaba por diluir a especificidade de cada um
dos dois fenômenos.
No que se refere à alfabetização e ao letramento, mesmo
que apresentem relação, é necessário observar a especificidade de
cada um dos fenômenos.
Livros que diferenciam e/ou aproximam os dois processos:
Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, de Leda Verdiani (1988);
Letramento e alfabetização, de Leda Verdiani (1995); Alfabetização e
letramento, de Roxane Rojo (1998); Os significados do letramento, de
Leda Verdiani Tfouni e Ângela Kleiman, (1995); Letramento: um tema
em três gêneros, de Magda Soares (1998).
A “desinvenção” da alfabetização significa a progressiva
perda de especificidade do processo de alfabetização que parece vir
ocorrendo na escola brasileira ao longo das duas últimas décadas. O
que, em parte, justifica o fracasso na aprendizagem e no ensino da
língua escrita no Brasil. Antes este se revelava dentro das escolas (em
testes, provas), agora se mostra a toda a sociedade e ao mundo,
através de avaliações que revelam o nível precário ou nulo de
aprendizagem, leitura e compreensão oral e escrita dos brasileiros
(ENEM, PISA...), denunciando alunos “não alfabetizados ou semi-
alfabetizados” depois de anos na escola.
A “excessiva especificidade” na alfabetização significa a
autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema
gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área
da leitura e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma
das facetas da aprendizagem da língua escrita. O que parece ter
acontecido, ao longo das duas últimas décadas, é que, em lugar de se
fugir a essa “excessiva especificidade”, apagou-se a necessária
especificidade do processo de alfabetização.
Causas para a perda da especificidade do processo de
alfabetização:
1) O sistema de ciclos que traz uma diluição ou uma preterição de
metas e objetivos a serem atingidos gradativamente ao longo do processo
de escolarização;
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2) O princípio da progressão continuada;
3) A mudança e o não entendimento conceitual a respeito da
aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a partir de
meados dos anos de 1980.
Mudanças de paradigmas que influenciaram a maneira
de alfabetizar: De 1960 a 1970, paradigma behaviorista. Nos anos 80, é
substituído pelo cognitivismo e, nos anos 90, pelo paradigma
sociocultural. A transição da teoria cognitivista para a perspectiva
sociocultural pode ser interpretada antes como um aprimoramento do
paradigma cognitivista que propriamente como uma mudança
paradigmática. No Brasil, os anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio
hegemônico, na área da alfabetização, do paradigma cognitivista, que
aqui se difundiu sob a discutível denominação de construtivismo
(posteriormente, socioconstrutivismo), divulgado por Emília Ferreiro
(perspectiva psicogenética).
A criança, na perspectiva psicogenética (visão
interacionista), é capaz de progressivamente (re)construir esse sistema
de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e
práticas sociais, isto é, interagindo com material “para ler”, não com
material artificialmente produzido para “aprender a ler”. A aprendizagem
se dá por uma progressiva construção do conhecimento, na relação da
criança com o objeto “língua escrita”; as dificuldades da criança passam
a ser vistas como “erros construtivos”, resultado de constantes
reestruturações. É preciso, entretanto, reconhecer que esta concepção
conduziu a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar
a desinvenção da alfabetização.
O construtivista, na alfabetização, passou a subestimar a
natureza do objeto de conhecimento em construção, que é,
fundamentalmente, um objeto linguístico constituído, quer se considere o
sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais
e frequentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas.
Ao apresentar a especificidade do processo de
alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento. Ao
podemos entender a alfabetização como processo autônomo,
independente do letramento e anterior a ele.
Não há necessidade de voltarmos à concepção holística da
aprendizagem da língua escrita, de que decorre o princípio de que
aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por
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meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos prévios.
No caso, voltarmos ao construtivismo.
Na concepção grafofônica, o conhecimento do código
grafofônico e o domínio dos processos de codificação e decodificação
constituem etapa fundamental e indispensável para o acesso à língua
escrita. Etapa que não pode ser vencida.
No Brasil, no período de 1990, o debate se fazia em torno
da oposição entre métodos sintéticos (fônico, silabação) e métodos
analíticos (palavração, sentenciação, global) pelo método construtivista,
de Emília Ferreiro.
O que constitui a reinvenção da alfabetização? A
concepção de aprendizagem da língua escrita é mais ampla e
multifacetada que apenas a aprendizagem do código, das relações
grafofônicas; o que é necessário é que essa faceta recupere a
importância fundamental que tem na aprendizagem da língua escrita;
sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto, explícito, sistemático.
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco
porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e
psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do
adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por
esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita
– a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que
envolvem a língua escrita – o letramento.
Alfabetização é a aquisição do sistema convencional de
escrita.
Letramento é o desenvolvimento de habilidades de uso
desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais
que envolvem a língua escrita.
Alfabetização e letramento são processos de natureza
fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e
competências específicos, que implicam formas de aprendizagem
diferenciadas e, consequentemente, procedimentos diferenciados de
ensino. Não são processos independentes, mas interdependentes e
indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio
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de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de
letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da
e por meio da aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em
dependência da alfabetização. Os dois processos são simultâneos.
As muitas facetas do letramento: imersão das crianças
na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e
a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de
material escrito, entre outras.
As muitas facetas da alfabetização: consciência
fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema–grafema,
habilidades de codificação e decodificação da língua escrita,
conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma
sonora da fala para a forma gráfica da escrita, entre outras.
Não há um método para a aprendizagem inicial da língua
escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina
certos procedimentos de ensino, além de as características de cada
grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de
ação pedagógica.
Sintetizando:
1) A alfabetização deve ser entendida como processo de aquisição e
apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico;
2) A alfabetização deve se desenvolver num contexto de letramento
– entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da
escrita, como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o
consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita
nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas
em relação a essas práticas;
3) Reconhecer tanto a alfabetização quanto o letramento como
processos de diferentes dimensões, ou facetas, cuja natureza de cada um
deles demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem
inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas
caracterizadas por ensino direto, explícito e sistemático – particularmente a
alfabetização, em suas diferentes facetas – outras caracterizadas por
ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e motivações da
criança;
4) Rever e reformular a formação dos professores das séries iniciais
do ensino fundamental, de modo a torná-los capazes de enfrentar o grave e
reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua escrita nas
escolas brasileiras.
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NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA:
LETRAMENTO NA CIBERCULTURA
MAGDA SOARES
Leia o texto completo no site http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf
RESUMO DO TEXTO ORIGINAL, DESTACANDO TRECHOS E
SUBLINHANDO INFORMAÇÕES RELEVANTES:
Objetivos do artigo de Magda Soares:
Diferenciar a cultura do papel da cultura da tela, ou cibercultura; identificar as principais diferenças entre as tecnologias tipográficas e as tecnologias digitais de leitura e escrita, para delas tentar inferir as mudanças que provavelmente estão ocorrendo, ou virão a ocorrer, na natureza do letramento – do estado ou condição de “letrado”, e assim compreender melhor o próprio conceito de letramento.
Compreender o conceito de letramento, confrontando tecnologias tipográficas e tecnologias digitais de leitura e de escrita, a partir de diferenças relativas ao espaço da escrita e aos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita;
Apresentar argumentos para cada uma dessas tecnologias no que diz respeito a determinados efeitos sociais, cognitivos e discursivos, resultando em modalidades diferentes de letramento, o que sugere que a palavra seja pluralizada: há letramentos, não letramento.
Conceitos de Letramento
Não há, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas uma
diversidade de ênfases na caracterização do conceito de letramento. Segundo
Magda Soares, letramento são as práticas de leitura e escrita. Kleiman (1995,
p. 19) diz que “Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de
práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto
tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Soares
entende letramento “como as práticas e eventos relacionados com uso, função
e impacto social da escrita” (idem, 1998, p. 181); portanto, letramento são as
práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que essas práticas
são postas em ação, bem como as consequências delas sobre a
sociedade.
Tfouni (1988, p. 16) define: “Enquanto a alfabetização ocupa-se da
aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento
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focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por
uma sociedade” (idem, 1995, p. 20). A alfabetização pertence, assim, ao
âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-
históricos da aquisição da escrita.
Para Tfouni, letramento são as consequências sociais e históricas da
introdução da escrita em uma sociedade; são “as mudanças sociais e
discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada”
(1995, p. 20). Esta mesma autora toma, para conceituar letramento, o impacto
social da escrita, que, para Kleiman, é apenas um dos componentes desse
fenômeno; Kleiman acrescenta a esses outros componentes também as
próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem
compõem o conceito de letramento. Em ambas as autoras, porém, o núcleo do
conceito de letramento são as práticas sociais de leitura e de escrita, para além
da aquisição do sistema de escrita, ou seja, para além da alfabetização.
Quanto à concepção de letramento, como sendo não as próprias
práticas de leitura e escrita, e/ou os eventos relacionados com o uso e função
dessas práticas, ou ainda o impacto ou as consequências da escrita sobre a
sociedade, mas, para além de tudo isso, o estado ou condição de quem exerce
as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que
a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de
interpretação dessa interação – os eventos de letramento, tal como definidos
por Heath (1982, p. 93): Um evento de letramento é qualquer situação em que
um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações
entre os participantes e de seus processos de interpretação.
Letramento é, na argumentação desenvolvida neste texto, o estado ou
condição de indivíduos ou de grupos sociais de sociedades letradas que
exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e de escrita, participam
competentemente de eventos de letramento. O que esta concepção acrescenta
às anteriormente citadas é o pressuposto de que indivíduos ou grupos
sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, têm as
habilidades e atitudes necessárias para uma participação ativa e
competente em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita têm
uma função essencial, mantêm com os outros e com o mundo que os
cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e
cognitivas que lhes conferem um determinado e diferenciado estado ou
condição de inserção em uma sociedade letrada.
É que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e
incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas
pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede
(a web), a Internet. É, assim, um momento privilegiado para, na ocasião
mesma em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão sendo
introduzidas, captar o estado ou condição que estão instituindo: um momento
privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de escrita digitais, o
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letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição diferente
daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirográficas e
tipográficas,4 o letramento na cultura do papel.
Da oralidade à escrita
Ong (1986) enfatiza a dificuldade que as mentes letradas têm de
entender a oralidade primária, porque a tecnologia da escrita está tão
profundamente internalizada que estas se tornam incapazes de separá-la de si
mesmas, e assim não percebem sua presença e influência – não tendo
consciência da natureza do fenômeno do letramento, tem-se dificuldade de
captar as características do estado ou condição de ser “letrado”, porque vivem
imersos nele.
Ong procura compreender o letramento na cultura do papel pela
identificação das diferenças entre sociedades ágrafas e sociedades letradas,
confrontando o mundo da oralidade primária com o mundo letrado.
Para Ong, Parry, Lord, Havelock e Goody, o confronto e contraposição
entre culturas letradas e culturas de oralidade primária permitiram uma
compreensão mais ampla não só destas, mas também daquelas; da mesma
forma, podemos buscar uma compreensão mais ampla da natureza do
letramento na cultura do papel pela análise do processo em andamento, na
cibercultura, de desenvolvimento de novas práticas digitais de leitura e de
escrita, em confronto e contraposição com as já tradicionais práticas sociais
quirográficas e tipográficas de leitura e de escrita. Ou seja: recuperar o
significado de um letramento já ocorrido e já internalizado, flagrando um
novo letramento que está ocorrendo e apenas começa a ser internalizado.
Tecnologias de escrita e letramento
Considerando que letramento designa o estado ou condição em que
vivem e interagem indivíduos ou grupos sociais letrados, pode-se supor que as
tecnologias de escrita, instrumentos das práticas sociais de leitura e de escrita,
desempenham um papel de organização e reorganização desse estado ou
condição.
Lévy (1993) inclui as tecnologias de escrita entre as tecnologias
intelectuais, responsáveis por gerar estilos de pensamento diferentes, porém,
que as tecnologias intelectuais não determinam, mas condicionam processos
cognitivos e discursivos.
Tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita
As diferenças entre tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de
escrita serão consideradas, neste texto, restringindo-se a análise ao uso de
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ambas essas tecnologias para a escrita de textos informativos ou literários. O
texto na tela – o hipertexto – será confrontado com o texto no papel. Para a
análise das tecnologias tipográficas e digitais de leitura e escrita de textos e
hipertextos, são aqui considerados os dois elementos mais relevantes de
diferenciação entre elas: o espaço de escrita e os mecanismos de produção,
reprodução e difusão da escrita.
Os espaços de escrita
Espaço de escrita, na definição de Bolter (1991), é “o campo físico e
visual definido por uma determinada tecnologia de escrita”. Todas as formas de
escrita são espaciais, todas exigem um “lugar” em que a escrita se
inscreva/escreva, mas a cada tecnologia corresponde um espaço de escrita
diferente. Exemplos: a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira ou a
superfície polida de uma pedra; a superfície interna contínua de um rolo de
papiro ou de pergaminho, que o escriba dividia em colunas; a descoberta do
códice foi e é a superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro,
de pergaminho – mais tarde, a superfície branca da página de papel; a tela do
computador.
Há estreita relação entre o espaço físico e visual da escrita e as
práticas de escrita e de leitura. O espaço da escrita relaciona-se até mesmo
com o sistema de escrita: a escrita em argila úmida, que recebia bem a marca
da extremidade em cunha do cálamo, levou ao sistema cuneiforme de escrita;
a pedra como superfície a ser escavada serviu bem, num primeiro momento,
aos hieróglifos dos egípcios, mas, quando estes passaram a usar o papiro, sua
escrita, condicionada por esse novo espaço, foi-se tornando progressivamente
mais cursiva e perdendo as tradicionais e estilizadas imagens hieroglíficas,
exigidas pela superfície da pedra.
O espaço de escrita relaciona-se também com os gêneros e usos
de escrita, condicionando as práticas de leitura e de escrita: na argila e na
pedra não era possível escrever longos textos, narrativas; não podendo ser
facilmente transportada, a pedra só permitia a escrita pública em monumentos;
a página, propiciando o códice, tornou possível a escrita de variados gêneros,
de longos textos.
O espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre
escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto:
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1. No rolo de papiro ou pergaminho: a extensa e contínua superfície
do espaço de escrita impunha uma escrita e uma leitura sem
retornos ou retomadas.
2. Nas páginas do códice: os limites claramente definidos, tanto a
escrita quanto a leitura podem ser controladas por autor e leitor,
permitindo releituras, retomadas, avanços, fácil localização de
trechos ou partes; além disso, o códice torna evidente,
materializando-a, a delimitação do texto, seu começo, sua
progressão, seu fim, e cria a possibilidade de protocolos de
leitura como a divisão do texto em partes, em capítulos, a
apresentação de índice, sumário.
3. No computador: o espaço de escrita é a tela, ou a “janela”; ao
contrário do que ocorre quando o espaço da escrita são as
páginas do códice, quem escreve ou quem lê a escrita eletrônica
tem acesso, em cada momento, apenas ao que é exposto no
espaço da tela: o que está escrito antes ou depois fica oculto
(embora haja a possibilidade de ver mais de uma tela ao mesmo
tempo, exibindo uma janela ao lado de outra, mas sempre em
número limitado).
Diferenças entre o hipertexto e o texto produzido no papel no que se
refere ao espaço da escrita:
1) Características do hipertexto (texto na tela do computador): trata-se
de “um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira,
dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. O texto na tela é
escrito e é lido de forma multilinear, multi-sequencial, acionando-se links
ou nós que vão trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades,
sem que haja uma ordem. O hipertexto tem a dimensão que o leitor lhe
der: seu começo é ali onde o leitor escolhe, com um clique, a primeira
tela, termina quando o leitor fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se
por satisfeito ou considerar-se suficientemente informado – enquanto a
página é uma unidade estrutural, a tela é uma unidade temporal. Um
hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento e, segundo
Lévy, é algo “virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso. [...] Ao
ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento
e desdobramento de um texto caleidoscópico.” O hipertexto que veio
legitimar o registro desse pensamento por associações, em rede,
tornando-o possível ao escritor e ao leitor. Estamos chegando à forma
de leitura e de escrita mais próxima do nosso próprio esquema mental.
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Chartier (1994, p. 100-101) considera o texto na tela (hipertexto) uma
revolução do espaço da escrita que altera fundamentalmente a relação
do leitor com o texto, as maneiras de ler, os processos cognitivos,
abrindo novas técnicas intelectuais e imensas possibilidades de ler, de
se relacionar com a escrita e a leitura. A tela do computador como
espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso
à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas
de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo
letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que
exercem práticas de escrita e de leitura na tela. Em síntese, a tela, como
novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas formas de
interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto
e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento.
2) Características do texto no papel: é escrito e é lido linearmente,
sequencialmente – da esquerda para a direita, de cima para baixo, uma
página após a outra; predefinida. A dimensão do texto no papel é
materialmente definida: identifica-se claramente seu começo e seu fim,
as páginas são numeradas, o que lhes atribui uma determinada posição
numa ordem consecutiva – a página é uma unidade estrutural. A escrita
no papel, com sua exigência de uma organização hierárquica e
disciplinada das ideias, contraria o fluxo natural do pensamento.
Conceito de Letramento digital: estado ou condição que adquirem os que se
apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita
na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem
práticas de leitura e de escrita no papel.
Diferenças entre textos manuscritos e textos eletrônicos no que se refere
aos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita:
Nos textos manuscritos: Os copistas frequentemente alteravam o
texto, ou por erro ou por intervenção consciente, de modo que cópias do
mesmo texto raramente eram idênticas; ao possuidor ou ao leitor do
manuscrito era garantida a possibilidade de intervir no texto,
acrescentando títulos, notas, observações pessoais, porque espaços em
branco eram deixados para essa finalidade. O autor dos manuscritos era
difuso e não identificado. No texto impresso, é grande a distância entre
autor e leitor. No texto impresso, cuja linearidade, por si só, já impõe
uma estrutura e uma sequência, o autor procura controlar o leitor,
definindo os limites da interpretação e impedindo a superinterpretação.
Há a intertextualidade, presente, no texto impresso, quase
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exclusivamente por alusão. Na cultura impressa, editores, conselhos
editoriais decidem o que vai ser impresso, determinam os critérios de
qualidade, portanto, instituem autorias e definem o que é oferecido a
leitores. A invenção da imprensa, de acordo com Chartier (1998, p. 7-9),
não representou uma transformação tão radical nos textos manuscritos.
Os livros manuscritos e pós-Gutemberg baseiam-se nas mesmas
estruturas fundamentais, as do códex. A “revolução” de Gutemberg
alterou profundamente as formas de produção, de reprodução e de
difusão da escrita, e, por consequência, modificou de forma significativa
as práticas sociais e individuais de leitura e de escrita – modificou o
letramento, isto é, o estado ou condição de quem participa de eventos
em que tem papel fundamental a escrita. A tecnologia da impressão
enformou (colocou em fôrmas) a escrita, muito mais do que o tinham
feito o rolo e o códice, em algo estável, monumental e controlado.
O texto eletrônico: Não é estável, não é monumental e é pouco
controlado; os leitores de hipertextos podem interferir neles, acrescentar,
alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; o texto digital é fugaz,
impermanente e mutável; há grande liberdade de produção de textos na
tela e é quase totalmente ausente o controle da qualidade e
conveniência do que é produzido e difundido. No texto eletrônico, a
distância entre autor e leitor se reduz, porque o leitor se torna, ele
também, autor, tendo liberdade para construir, ativa e
independentemente, a estrutura e o sentido do texto. No texto eletrônico,
o autor será tanto mais competente quanto mais alternativas de
estruturação e sequenciação o texto possibilite, quanto mais opções de
interpretação ofereça ao leitor. A intertextualidade se constrói pela
articulação de textos diversos, de diferentes autorias – no hipertexto,
não há uma autoria, mas uma multi-autoria, portanto exige uma
reconceituação radical de autoria, de propriedade sobre a obra, de
direitos autorais. O computador possibilita a publicação e distribuição na
tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade:
qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser.
Em que as mudanças nas tecnologias de impressão de difusão da escrita
contribuíram para a modificação do estado ou condição dos que
escrevem e dos que leem, diferenciando substancialmente o letramento
na cultura do texto impresso do letramento na cultura do texto
manuscrito:
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1) Instauram a propriedade sobre a obra, propriedade que se expressa
concretamente no surgimento da figura do autor. Agora, há os direitos
autorais, a criminalização da cópia e do plágio.
2) Criam muitas e várias instâncias de controle do texto. O texto é produto
não só do autor, mas também do editor, do diagramador, do
programador visual, do ilustrador, de todos aqueles que intervêm na
produção, reprodução e difusão de textos impressos em diferentes
portadores (jornais, revistas, livros...).
Conclusão: Não é só este novo espaço de escrita que é a tela que gera um
novo letramento, para isso também contribuem os mecanismos de produção,
reprodução e difusão da escrita e da leitura.
Letramentos, o plural
Por que letramentos (no plural): Porque se trata de um fenômeno que serve
para designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora
dos contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e
múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas
também a comunicação visual, auditiva, espacial.
Neste artigo, enfatiza-se a ideia de que diferentes tecnologias de escrita geram
diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias,
em suas práticas de leitura e de escrita: diferentes espaços de escrita e
diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam
em diferentes letramentos.
Letramento é fenômeno plural, histórica e contemporaneamente: há
diferentes letramentos ao longo do tempo, há diferentes letramentos no
nosso tempo.
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