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MACHADO DE ASSIS – UMA LEITURA
Autor cuja obra é leitura obrigatória na maioria das escolas
brasileiras, Machado de Assis é execrado por parte significativa de
seus jovens leitores, apesar ou em decorrência da insistência dos
professores em iniciá-los no universo machadiano. Isso talvez se
deva à forma como essas leituras são apresentadas, processadas,
cobradas, avaliadas, quase nunca, fruídas.
Essa rejeição surpreende, uma vez que a sociedade brasileira
ainda apresenta muitos dos traços satirizados nos textos machadi-
anos, e o humor requintado do autor deveria seduzir, envolver os estudantes. Por que isso não
ocorre? Talvez pela obrigatoriedade da leitura... Talvez pelo vocabulário que, dado o caráter
dinâmico da linguagem, já em muito se distancia da do século XIX, quando viveu e escreveu
nosso autor. Talvez pela dificuldade que os alunos têm para operar com a figuratividade e com a
metalinguagem que perpassam os textos machadianos... Talvez pela falta de percepção da
própria realidade em que estão inseridos, de modo que não se veem espelhados nas narrativas
de Assis... Talvez.
Fato é que, dada a genialidade desse autor, não são raros aqueles buscam meios de cooptar
novos leitores para o universo machadiano.
Flávio Carneiro, por exemplo, em artigo publicado no Jornal O Popular, Goiânia, (03/10/2001)
afirma que ―Ainda não criaram nenhum manual de instruções para ler Machado, felizmente.‖, e
sugere que o leitor não tenha pressa, já que um bom romance deve ser lido devagar, sem
correria, se possível sem prazo para terminar. No mesmo artigo, Carneiro provoca seu leitor com
um questionamento: ―Mas, afinal de contas, por que ler Machado de Assis?‖O próprio autor
responde que ―Antes de mais nada, porque é muito bom! O que, convenhamos, já é razão
suficiente para se fazer qualquer coisa. De todo modo, se você acha que a resposta é pouco
convincente, temos outras: porque Machado é um escritor que nos ensina a ler e a escrever sem
que pareça estar ensinando coisíssima nenhuma; porque é um autor que inventava, em pleno
século XIX, a literatura do século XX; porque é engraçado; porque é inteligente sem ser pedante;
porque cai no vestibular (opa, essa não vale).Tudo isso serve como resposta. Há, no entanto, um
outro motivo: Machado de Assis nos mostra que o mundo não pode ser entendido a partir de uma
mera oposição entre certo e errado, bem e mal.‖ (http://www.flaviocarneiro.com.br/obra/comoe
porque lermachadode assis.html)
A escritora Patrícia Secco, por sua vez, lançou uma versão de "O Alienista", obra de Machado, de
1882, em que as frases estão mais diretas e algumas palavras são trocadas por sinônimos mais
comuns ("sagacidade" virou "esperteza", por exemplo"). Em matéria recente veiculada pela Folha
de São Paulo,ela declarou:"Entendo porque os jovens não gostam de Machado de Assis. "Os
livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito
longas. Eu simplifico isso."
A iniciativa foi bem recebida por alguns, criticada por outros e houve também aqueles que
preferiram o silêncio face ao pedido de apreciação da versão ―adaptada‖ de Machado
(http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/05/1445858-escritora-muda-obra-de-
machado- de-assis-para-facilitar-a-leitura.shtml)
Não pretende-se aqui defender ou contestar a posição de Carneiro ou Secco, citados apenas com
o propósito de ilustrar o quão diversificadas são as propostas de trabalho com Machado de Assis.
O que propõe-se nesta atividade é algo diferente do que ambos apresentam: uma leitura
orientada, didática, capítulo a capítulo, com a reprodução de alguns verbetes que viabilizam a
compreensão de pontos chave e questões que levem o aluno/leitor à reflexão, à compreensão, à
fruição desse gênio da literatura. Antes, porém, julga-se indispensáveis algumas informações que
podem ajudar o leitor a desvelar os não ditos e a ironia machadiana.
A leitura será iniciada pela biografia de Machado de Assis, pois, diferentemente de Carneiro,
pensa-se que o conhecimento da vida e do contexto em que viveu um autor contribui para a
significação de sua obra.
Biografia
Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta,
novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de
1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria
Leopoldina Machado de Assis, perdeu a mãe muito cedo. Foi criado pela madrasta, Maria Inês,
também mulata, que se dedicou a ele e o matricula na escola pública, única que frequentou o
autodidata Machado de Assis.
De saúde frágil, epilético, gago, foi criado no morro do Livramento. Com a morte do pai, em 1851,
Maria Inês empregou-se como doceira num colégio do bairro São Cristóvão, onde morava, e
Machadinho, como era chamado, tornou-se vendedor de doces. Nesse colégio, teve contato com
professores e alunos e é provável que assistisse às aulas nas ocasiões em que não estava
trabalhando.Mesmo sem ter acesso a cursos regulares, empenhou-se em aprender. Foi um
autodidata.
Aos 16 anos, publicou seu primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na revista Marmota
Fluminense, da qual se tornou colaborador efetivo.
Com 17 anos, empregou-se como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, e começou a
escrever durante o tempo livre. Conheceu o então diretor do órgão, Manuel Antônio de Almeida,
autor de Memórias de um sargento de milícias, que se torna seu protetor. E daí por diante teve
ascensão rápida até ocupar importantes cargos.
Dizem os críticos que Machado era"urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou
questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe
do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro
lugar. A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação
psicológica.
Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando
desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil
e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da
desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus
contemporâneos." (http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp)
Observação
Não está detalhada aqui toda a trajetória profissional e bibliografia de Machado de Assis. Deixa-
se isto para o leitor e leitor de Machado de Assis: listar curiosidades sobre a vida desse autor que
possam ter contribuído para sua obra.
O estilo Machadiano
O estudioso Francisco Achcar traça resumidamente do estilo de Machado de Assis:
- Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora tenha exercido com
mestria também o foco de terceira pessoa. Ele sabe colocar-se no lugar de um narrador hipotético
e vivenciar todos os seus grandes problemas.
- Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e
situações. Ele sabe deixar na sombra e no mistério aquilo que seria inútil explicar.
- A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos, em geral, são curtos, as palavras
muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil (alguma dificuldade que pode ter um leitor de
hoje se deve ao fato de que certas palavras caíram em desuso).
- A descrição dos objetos limita-se ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que esteja
relacionado com a história narrada.
- Apresenta uma forma contraditória de apreensão do mundo, uma vez que apanha o fato em
suas versões antagônicas, pois tem os olhos voltados para as contradições do mundo.
- O estilo machadiano focaliza as personagens de fora para dentro: vai ―descascando‖ as
pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é considerado grande "analista da alma
humana".
- A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros grandes autores do
Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, percebidas somente por
leitores familiarizados com as grandes obras da literatura.
- Em seus romances mais importantes, Machado de Assis pratica a interpolação de episódios,
recordações, ou reflexões que se afastam da linha central da narrativa. Essas "intromissões" de
elementos que aparentemente desviam-se do tema central do livro correspondem a um
procedimento chamado digressão. Nessas digressões, Machado é constantemente seduzido pelo
impulso de falar sobre a própria obra que está escrevendo, isto é, faz metalinguagem,
comentando os capítulos, as frases, a organização do todo.
- Uma das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis é sua ironia, uma
ironia que, embora chegue ao humor em certas situações, é sutil, perceptível somente a leitores
proficientes. Essa ironia é a arma mais corrosiva da crítica machadiana aos comportamentos, aos
costumes, das estruturas sociais.
Personagens
Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na
trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao
contraste entre aparência x essência de cada um deles. Esses personagens são instrumentos por
meio dos quais ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as
relações sociais e denunciam a imperfeição humana.
Sugerimos que o aluno-leitor seja motivado a identificar e significar algumas dessas
características ao longo da leitura de um dos textos de Machado de Assis, para que, pouco a
pouco, ele desenvolva as habilidades necessárias à fruição autônoma desse autor.
O ALIENISTA
Machado de Assis
CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.
Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia.
—A ciência, disse ele à Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando
as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos
casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz
de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não
menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que
D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,
dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos
robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um
sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus,
porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,
miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos.
Aíndole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro,
depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores
árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs,
e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida
exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo;
e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da dinastia dos
Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou
inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe
chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia
na colônia, e aindano reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase
inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a
brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em
um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos
sabedores.
—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
—Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e
comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não
fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na
própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da
vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão
ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os
loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria
quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a
vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum,
pareceu, em si mesma, sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do
médico.
—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio
ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um
principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a
certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a
intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os
vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu
autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-
la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de
dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche
mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem
as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-
se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não
acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é
que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença
começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo,
tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes.
Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela
consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e
profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por
tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que
o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez
apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações
próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às
cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes
tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D.
Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores
e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la
duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam
como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade
do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe
tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
Excerto para a 1ª e 2ª questões.
―As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.
Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia. ―
1ª questão
PESQUISE o gênero ―crônica‖ e EXPLIQUE, com base nas características desse gênero, se é
possível que o Dr. Simão Bacamarte tenha, de fato, existido.
2ª questão
REESCREVA em linguagem atual o fragmento sublinhado. Atenha-se ao registro padrão.
Excerto para a 3ª e 4ª questões.
―Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando
as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos
casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz
de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não
menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que
D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,
dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos
robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um
sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus,
porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,
miúda e vulgar da consorte. [...]
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A
índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro,
depois cinco.‖
3ª questão
INDIQUE de maneira clara e objetiva os 2 motivos que levaram Bacamarte a escolher D. Evarista
como esposa.
4ª questão
JUSTIFIQUE a afirmativa sublinhada.
Excerto para a 5ª e 6ª questões.
―Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia
cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de
intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e
comensais.‖
5ª questão
PESQUISE sobre a área atuação da psiquiatria e EXPLIQUE por que se pode afirmar que a
expressão emoldurada foi inadequadamente utilizada por Bacamarte, tendo em vista o ramo da
medicina ao qual ele se dedicou.
6ª questão
INDIQUE o nome que se daria, nos dias atuais, à profissão de Crispim Soares.
7ª questão
EXPLICITE a voz que se infere da fala do boticário.
Excerto para a 8ª e 9ª questões.
―A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não
fazer caso dos dementes.‖
vereança
Substantivo feminino.
1.V. vereação (2 e 3):
"Diante da escalada de suspeitas [envolvendo a Câmara municipal da cidade de São Paulo], a
vereança examina a abertura de novo inquérito para investigá-las." (Folha de S. Paulo,
10.8.1999.)
vereação
[De verear + -ção.]
Substantivo feminino.
1.Ato ou efeito de verear; vereamento.
2.O conjunto dos vereadores duma câmara municipal; municipalidade; edilidade.
3.Cargo de vereador; edilidade. [Sin., nas acepç. (2 e 3): vereança.]
4.Tempo de duração desse cargo.
8ª questão
CARACTERIZE, a partir do excerto, os vereadores de Itaguaí.
9ª questão
AVALIE se essa caracterização aplica-se aos vereadores de sua cidade.
Excerto para a 10ª, 11ª, 12ª e 13ªquestões
[...] ―cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas
descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta
pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à
Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das
demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do
enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e
encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus.A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum,
pareceu, em si mesma, sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do
médico.‖
alcova
(ô). [Do ár. al-qubba(t), 'cúpula', 'abóbada'; 'edifício com cúpula' e, no ár.-hisp., 'pequeno quarto
adjacente a uma sala'.]
Substantivo feminino.
1.Pequeno quarto de dormir situado no interior da casa, sem aberturas para o exterior; recâmara.
2.Quarto de mulher.
3.Dormitório de casal.
4.Quarto de dormir.
5.Teatr. V. innerstage. [Var.: alcoba.]
10ª questão
EXPLIQUE, a partir do fragmento sublinhado e do verbete acima, a avaliação de Bacamarte em
relação aos ―cuidados‖ dispensados aos loucos furiosos.
11ª questão
PESQUISE sobre a lei antimanicomial e ANALISE se há convergência entre o que propõe essa
lei e a iniciativa de Bacamarte.
12ª questão
INDIQUE quem enuncia o fragmento em negrito.
13ª questão
REESCREVA o excerto em linguagem coloquial e contemporânea.
Excerto para a 14ª e 15ª questões.
―A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu, em si mesma, sintoma
de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.‖
demência
[Do lat. dementia.]
Substantivo feminino.
1.Psiq. Qualquer deterioração mental; afrenia, afrenesia, atimia.
2.Pop. Loucura, doidice, parvoíce.
3.Procedimento insensato. [Sin. ger.: dementação e (p. us.) amência.]
Demência precoce. 1. Psiq. Esquizofrenia.
14ª questão
INDIQUE:
- a quem ―A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum‖ pareceu sintoma de
demência;
- quem a população julgou demente;
- a que personagem essa percepção foi exposta.
15ª questão
EXPLIQUE se essa insinuação da sociedade itaguaiense confirma-se no decorrer da narrativa.
Excerto para a 16ª e 17ª questões.
―D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido1, disse-lhe2 "que estava com desejos", um
principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que3 a ele4lhe5 parecesse adequado a
certo fim. Mas aquele grande homem6, com a rara sagacidade que o7 distinguia, penetrou a
intenção da esposa8e redarguiu-lhe9 sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde10 os
vereadores debatiam a proposta11, e defendeu-a12 com tanta eloquência, que a maioria13 resolveu
autorizá-lo14 ao que pedira15, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o
tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-
la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de
dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche
mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem
as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-
se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não
acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.‖
16ª questão
Releia o fragmento acima com atenção aos termos sublinhados.
O autor utiliza-se de vários mecanismos de coesão, de modo especial os de natureza referencial,
como os sublinhados no excerto.
TRANSCREVA-o se INDIQUE o elemento referenciado de cada um deles.
17ª questão
LEIA o texto a seguir e EXPLIQUE por que se pode dizer que há traços marcantes do gênero
crônica no fragmento destacado em vermelho.
CRÔNICA
A crônica é um texto de carácter reflexivo e interpretativo, que parte de um assunto do quotidiano,
um acontecimento banal, sem significado relevante.
É um texto subjetivo, pois apresenta a perspectiva do seu autor, o tom do discurso varia entre o
ligeiro e o polêmico, podendo ser irônico ou humorístico.
Características da crônica
O discurso
Texto curto e inteligível (de imediata percepção);
Apresenta marcas de subjetividade – discurso na 1ª e 3ª pessoa;
Pode comportar diversos modos de expressão, isoladamente ou em simultâneo:
- narração;
- descrição;
- comentários;
- reflexão.
Linguagem com duplos sentidos / jogos de palavras / conotações;
Presença de ironia;
Predominância da função emotiva da linguagem sobre a informativa;
Vocabulário variado e expressivo de acordo com a intenção do autor;
Pontuação expressiva;
Emprego de recursos estilísticos.
A temática
Aborda aspectos da vida social e quotidiana;
Transmite os contrastes do mundo em que vivemos;
Apresenta episódios reais ou fictícios.
A crônica pode ser política, desportiva, literária, humorística, económica, mundana, etc.
http://apoioptg.blogspot.com.br/2007/04/caractersticas-da-crnica.html Adaptado. Acesso em 12 de jun. 2014.
Excerto para a 18ª, 19ª e 20ª questões.
―Uma vez empossado da licença (Bacamarte) começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova,
a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e
numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que
Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não
pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas,
como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII,
merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida
daquele pontífice eminente.‖
arabista
[De árabe + -ista.]
Substantivo de dois gêneros.
1.Especialista em língua árabe.
frontispício
[Do b.-lat. frontispiciu.]
Substantivo masculino.
1.V. fachada principal:
frontispício gótico;
"o teatro de minha terra, com seu globo azul no frontispício, dominado pelo voo de uma águia de
massa" (Carlos Drummond de Andrade, Fala, Amendoeira, pp. 72-73).
2.Bibliogr. Estampa colocada na face da folha de rosto.
3.Bibliogr. V. portada (3). [Acepç. universalmente condenada pelos bibliógrafos e que está em
crescente desuso.]
4.Rosto, cara, face.
pontífice
[Do lat. pontifice.]
Substantivo masculino.
1.Ecles. Dignitário eclesiástico (bispo, arcebispo, patriarca).
2.Ecles. O Papa [v. papa1 (1)].
3.Sacerdote da religião romana.
4.Ministro do culto de uma religião.
5.Fig. Chefe de seita, sistema ou escola.
Pontífice romano. 1. V. papa1 (1).
Sumo Pontífice. 1. V. papa1 (1).
18ª questão
Considere a descrição da Casa Verde para AVALIAR se os ―doidos‖ ali hospedados estariam
melhor que na alcova em que viviam na casa dos familiares.
19ª questão
No frontispício de uma instituição psiquiátrica na cidade de Barbacena – MG, conhecida por haver
abrigado um dos maiores hospícios do Brasil, havia a seguinte inscrição:
“Aqui não estão todos que são, nem são todos os que aqui estão”. ANALISE a pertinência dessa inscrição ao local em que encontrava.
20ª questão
AVALIE, com base na leitura global de O alienista, se a frase apresentada na questão anterior
seria adequada ao frontispício da Casa Verde.
CAPÍTULO II
TORRENTE DE LOUCOS
Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o
mistério do seu coração.
— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o
sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Coríntios: ―Se eu conhecer
quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada‖. O principal nesta minha obra da Casa
Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração.
Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior
campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos,
eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de
quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-
se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a
existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por
exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um
discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e
latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um
rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima
está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de
Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil
trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de
refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente
científica, e disso trato...
— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O
primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela d’alva, abria os braços e
alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a
perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à
roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um
desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se
de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa,
matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fimdo
mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de
um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a
sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi
engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês
engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um
boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a
um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de
monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser
o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e
depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que
chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a
terra; tal era o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por
interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias
hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por
organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares,
aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes
deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita,
etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele
ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual.
E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma
chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus
enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí
passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo
aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as
simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão,
costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de
outra espécie, antecedentes na família, uma devassa,enfim, como a não faria o mais atilado
corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um
fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus
amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo
esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo,
era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia
muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
21ª questão
―Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o
mistério do seu coração.‖
RELATE, em linguagem atual, o que se narra no 1º parágrafo do Capítulo II, anteriormente
transcrito.
Releia o 2º parágrafo para responder à 22ª, 23ª, 24ª e 25ª questões.
22ª questão
EXPLIQUE se esse parágrafo pode ser tomado como exemplo de metalinguagem e/ou
intertextualidade que caracterizam os textos do autor em estudo.
23ª questão
EXPLIQUE a metáfora usada por Bacamarte em relação à forma como exercia a caridade.
24ª questão
Machado de Assis fecha o 2º parágrafo com as seguintes palavras:
―Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.‖
INDIQUE:
- que mistério é esse;
- a que se refere o demonstrativo ―isto‖
25ª questão
ANALISE se há no parágrafo em estudo a presença da característica do estilo machadiano
reproduzido abaixo.
Apresenta uma forma contraditória de apreensão do mundo, uma vez que apanha o fato em
suas versões antagônicas, pois tem os olhos voltados para as contradições do mundo.
26ª questão
―Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros
cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.‖
Informe-se sobre o papel da descrição no estilo machadiano e use sua imaginação para ampliar a
descrição das acomodações da Casa Verde, fugindo ao estilo do autor.
Excerto para a 27ª e 28ª questões.
―O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos
ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os
dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de
antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e
Tertuliano.‖
bronco [Do lat. vulg. *bruncu.]
Adjetivo.
1.Tosco, áspero, agreste:
rochas broncas.
2.Rude, rústico, inculto; ignorante, ignaro:
camponês bronco.
3.V. burro (12).
vilão [Do lat. vulg. *villanu, 'habitante de vila ou casa de campo'.]
Adjetivo.
1.Que vive numa vila.
2.Fig. Rústico, rude, plebeu, grosseiro.
3.Abjeto, desprezível, sórdido.
4.V. avaro (1).
Substantivo masculino.
5.Habitante de vila.
6.Camponês, plebeu.
7.Homem desprezível e miserável.
8.Na Idade Média, camponês que trabalhava a terra do senhor feudal sem, no entanto, estar preso a ela.
9.V. avaro (3). [Pl.: vilãos, vilões, vilães. Fem.: vilã, viloa. Aum. nas acepç. 2 a 4 e 7 e 9: vilanaço e vilanaz.]
10.Antiga dança popular portuguesa.
11.Bras. Baile popular, variante do folguedo da trança, e no qual os participantes dançam com lenços ou paus, ou com
facas, em vez de fitas; vilão de faca, vilão de lenço.
tropos [Do gr. trópos.]
Substantivo masculino plural.
1.Filos. Argumentos com que os cépticos da Antiguidade pretendiam mostrar ser impossível atingir a verdade. ~ V.
tropo.
antítese [Do gr. antíthesis, 'oposição', pelo lat. tard. antihese.]
Substantivo feminino.
1.E. Ling. Figura pela qual se salienta a oposição entre duas palavras ou ideias; enantiose. Ex.:
"Era o porvir — em frente do passado, / A Liberdade — em face à Escravidão" (Castro Alves, Obra Completa, p. 154);
"Deixa que hoje me chame eternidade!" (Campos de Figueiredo, Imagem da Noite, p. 15).
2.P. ext. Qualquer oposição flagrante:
O branco e o preto formam uma antítese.
3.Ser ou coisa que representa essa oposição; o oposto:
O Diabo é a antítese de Deus.
4.Lóg. Oposição por contrariedade, ou por contradição, entre dois termos ou duas proposições. [Cf., nesta
acepç.,dialética (3) e oposição (11).]
apóstrofe [Do gr. apostrophé, pelo lat. apostrophe.]
Substantivo feminino.
1.E. Ling. Figura que consiste em dirigir-se o orador ou o escritor, em geral (e não sempre) fazendo uma interrupção, a
uma pessoa ou coisa real ou fictícia:
"Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?" (Castro Alves, Obra Completa, p. 290). [Este exemplo, tomado às
"Vozes d'África", e constituído pelo primeiro verso do famoso poema, é prova (e outras poderiam ser dadas) de que a
apóstrofe nem sempre é uma interrupção, como em nossos dicionários se lê.]
2.Interpelação direta e inopinada.
3.Catilinária. [Cf. apostrofe, do v. apostrofar, eapóstrofo.]
recamo [Do it. ricamo, ou dev. de recamar.]
Substantivo masculino.
1.Bord. Bordado ou ornato em relevo, sobre tecido:
"As bordaduras e os recamos de oiro, os veludos e sedas de fora, talhados à francesa, resplandeciam constelados de
pérolas e diamantes." (Rebelo da Silva, Contos e Lendas, p. 175.)
2.Fig. Ornato, ornamento, adorno. [Sin. ger.: recamadura.]
Dicionário Aurélio Eletrônico – Acesso em 23 jun. 2014.
27ª questão
PESQUISE quem foram Cícero, Apuleio, Tertulino, recorrentemente citados pelo louco descrito
no excerto.
28ª questão
EXPLIQUE, a partir da leitura dos verbetes apresentados e de sua pesquisa, o que há de
inexplicável no caso de loucura descrito.
29ª questão
INDIQUE 2 características do estilo machadiano presentes no fragmento a seguir.
―— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de
Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil
trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de
refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente
científica, e disso trato...‖
Releia o excerto a seguir com atenção ao que se narra e responda à 30, 31ª e 32ª questões.
―Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João
de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as
penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque
imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se
despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandavadar, menos por caridade do que por
interesse científico.‖
30ª questão
INDIQUE quem
―fala‖:
―escrevia‖:
―mandava dar‖ o papel ao louco:
31ª questão
INDIQUE a razão pela qual Bacamarte fornecia papel ao louco o qual receava que as estrelas
despegariam do céu caso ele falasse.
32ª questão
RELACIONE esse excerto ao 2º parágrafo para analisar se Machado de Assis denuncia a
hipocrisia do ser humano por meio da construção do personagem Simão bacamarte.
Excerto para a 33ª e 34ª questões.
―Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias
hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por
organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares,
aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes
deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita,
etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele
ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual.
E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma
chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.‖
chalaça [Por *charlaça, de charlar.]
Substantivo feminino.
1.Dito zombeteiro:
"O gosto da boa e grossa chalaça, a vontade infantil de jogo e diversão" (José Régio, em João Gaspar Simões,
Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX, p. 212).
2.Gracejo de mau gosto, ou insolente; graçola, chocarrice.
3.Caçoada, troça, zombaria.
33ª questão
REESCREVA, em linguagem atual, o que se relata no fragmento sublinhado.
34ª questão
INDIQUE a denúncia que o Padre faria ao Papa.
35ª questão
EXPLIQUE se Simão Bacamarte consideraria loucura a atitude de cada uma das personagens da
charge a seguir.
http://www.esmaelmorais.com.br/wp-content/uploads/
2013/01/charge110113.jpg Acesso em 22 jun. 2014.
EXTRAPOLANDO O CAPÍTULO
36ª questão
COMPARE os loucos que habitavam a Casa Verde àqueles com os quais Geraldo Viramundo,
personagem de O grande Mentecapto – Fernando Sabido, conviveu em sua estada em sanatório
de Barbacena – MG.
TEXTO para a 37ª e 38ª questões.
http://formulageo.blogspot.com.br/2012/07/o-clima-ta-
louco-charge.html Acesso em 20 de jun. 2014.
37ª questão
EXPLIQUE por que se pode afirmar que o personagem adulto utilizou-se da palavra ―louco‖ em
sentido figurado.
38ª questão
INDIQUE a quem o personagem infantil atribuiu a loucura.
39ª questão
EXPLIQUE se a loucura a que reporta a criança é literal ou figurada.
CAPÍTULO III
DEUS SABE O QUE FAZ
Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda
melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe
nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia
calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que
tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que
se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua
feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto
ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.
Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de
uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo
caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer
consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a
menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um
sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do
Cântico:
— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que
posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que
Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora,
principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela
perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é
que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde
dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um
sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:
— "Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a
não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se". E porque era homem estudioso tomou nota da
observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao
marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas
estradas.
— Irá com sua tia, redarguiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em
primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era
melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.
— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me
contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois
levou-a às arcas, onde estava o dinheiro.
Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a
opulência.
Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido
com a mais pérfida das alusões:
— Quem diria que meia dúzia de lunáticos...
D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:
— Deus sabe o que faz!
Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho
deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí
cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa
manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.
Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo.
Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o
preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não
era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a
gente de juízo.
—Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da
besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante,
deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o
presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas
auroras.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
Excerto para 40ª à 41ª questões.
―Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em
profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava
fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas
padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o
que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de
dizer que se considerava tão viúva como dantes.
E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua
feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto
ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.
Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de
uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil.‖
reproche
[Do fr. reproche.]
Substantivo masculino.
1.V. repreensão (1):
"Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e
senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos." (Machado de Assis, Papéis Avulsos, p.
13.)
ilustre
[Do lat. illustre.]
Adjetivo de dois gêneros.
1.Que se distingue por qualidades dignas de louvor; eminente, insigne:
Na sua profissão é figura ilustre.
2.Célebre, notável, famigerado.
3.Nobre, fidalgo:
Descende de uma casa ilustre. [Superl. abs. sint.: ilustríssimo.] ~ V. — desconhecido.
Dicionário Aurélio Eletrônico.
40ª questão
INDIQUE a referenciação das expressões em destaque.
41ª questão
EXPLIQUE se o adjetivo ―ilustre‖ foi empregado com propriedade no contexto enunciativo em que
se encontra.
42ª questão
AVALIE, com base nos capítulos anteriores, se a personagem possuía razões para se encontrar
tão triste.
43ª questão
COMPLETE a frase da personagem D.Evarista tendo em vista o contexto em que se insere.
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
44ª questão
Atenha-se à palavra em destaque no fragmento a seguir.
Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que
nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como
dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
atrevimento [De atrever(-se) + -imento.]
Substantivo masculino.
1.Ação de atrever-se; ousadia, coragem, arrojo.
2.Petulância, audácia, insolência.
atrever-se
[Do lat. tribueresibi, 'atribuir-se (a capacidade de fazer algo)'; esp. ant. treverse.]
Verbo pronominal.
1.Ter a ousadia, a coragem necessária para fazer ou tentar (alguma coisa); ousar, afoitar-se, abalançar-se:
Queria enfrentar o inimigo, mas não se atreveu; Atreveu-se a lutar com o touro.
2.Provocar, atacar; atirar-se.
3.Afrontar, enfrentar, arrostar:
É tão medroso que nem a um gato se atreve.
45ª questão
EXPLIQUE, considerando as demais informações presentes no parágrafo, por que o comentário
de D. Evarista foi um atrevimento no contexto em que se insere.
46ª questão
DESCREVA, a partir do excerto, a diferença entre gêneros no século XIX.
47ª questão
AVALIE se o perfil de D. Evarista corresponde ao perfil de mulher recorrente no estilo
machadiano.
48ª questão
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que
posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que
Itaguaí.
RETEXTUALIZE o fragmento em linguagem contemporânea.
49ª questão
ANALISE se a conjunção ―mas‖, em destaque no excerto, foi usada com propriedade.
Excerto para 50ª e 51ª questões.
―Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua
feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto
ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.
Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de
uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo
caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer
consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a
menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um
sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do
Cântico:
— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.‖
consternado
[Part. de consternar.]
Adjetivo.
1.Profundamente triste; de ânimo abatido; prostrado, desalentado.
2.Que denota consternação; desolado:
um semblante consternado.
Dicionário Aurélio Eletrônico.
50ª questão
INDIQUE uma situação de paralelismo que se percebe no excerto.
51ª questão
JUSTIFIQUE, com base do que já se sabe sobre o protagonista, a atitude de Bacamarte que se
apresenta na parte sublinhada.
Excerto para 52ª, 53ª e 54ª questões.
―D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro,
que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do
que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora,
principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela
perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é
que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde
dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um
sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:
— ‘Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece
que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se’. E porque era homem estudioso
tomou nota da observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao
marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas
estradas.‖
52ª questão
INDIQUE duas estratégias a partir das quais o autor evidencia o quanto D. Evarista desejava
conhecer o Rio de Janeiro.
53ª questão
EXPLIQUE se o parágrafo em negrito foi proferido por Bacamarte.
54ª questão
EXPLIQUE se as aspas foram adequadamente empregadas no parágrafo em negrito.
55ª questão
EXPLIQUE a ironia que perpassa o fragmento a seguir.
―Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era
a opulência.
Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido
com a mais pérfida das alusões:
—Quem diria que meia dúzia de lunáticos...‖
56ª questão
AVALIE se o capítulo veicula crítica a Simão Bacamarte ou aos médicos em geral.
57ª questão
RETEXTUALIZE o fragmento na estrutura de notícia.
Atenção: a linguagem e estruturadas frases devem ser compatíveis às utilizadas em jornais
atuais.
―Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho
deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí
cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa
manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.
Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo.
Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o
preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não
era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a
gente de juízo.‖
58ª questão
RELEIA o fragmento com o objetivo de comparar o sentimento dos personagens em decorrência da viagem de suas esposas. ―E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.‖ COMPLETE o período a seguir de modo a EXPLICITAR, sinteticamente, os sentimentos de
Bacamarte e de Soares após verem partir suas esposas.
Crispim ___________________________________________________________________, mas
Bacamarte_____________________________________________________________________.
CAPÍTULO IV
UMA TEORIA NOVA
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte
estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da
psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na
rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas
de um olhar que metia medo aos mais heroicos.
Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em
temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
—Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e
especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele
os cronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só
dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita
vez:—"Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe
bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de
lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!"—E muitos
outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a
imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas
e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de
circunspeção até o pescoço.
— Estou muito contente, disse ele.
— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
—Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque
não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão
uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai
mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no
oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua
ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto
com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em
Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de
Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens
célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda,
Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura
vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal
promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou
sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a
modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre
entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta
expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais
vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar
uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—
ou por meio de matraca.
Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para
andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.
De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe
incumbiam,— um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo
eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha
inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que
possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da
Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca
domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os
meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no
peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema.
Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso
século.
— Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do
boticário.
E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor
começar pela execução.
— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.
Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a
pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só
insânia.
O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a
entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não
merecia princípio de execução.
— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão
perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a
cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o
desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.
A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não
soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma
revolução.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
59ª questão
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por
todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia.
A) INDIQUE o valor semântico-discursivo da locução conjuntiva emoldurada.
B) INDIQUE e EXPLIQUE a oposição que se apresenta no fragmento.
60ª questão
RELEIA o 2º período do 1º parágrafo.
―Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de
casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um
olhar que metia medo aos mais heroicos.‖
INDIQUE:
- a referenciação do pronome em destaque;
- a figura de linguagem de que se utiliza o autor em cada um dos fragmentos sublinhados;
- o efeito de sentido que se pode atribuir à expressão ―virgulando as falas‖, no contexto
enunciativo em que se encontra.
61ª questão
―Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em
temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.‖
boticário
[Do lat. apothecariu, 'encarregado da despensa, do depósito'.]
Substantivo masculino.
1.Dono de botica.
2.Preparador e vendedor de medicamentos na botica; farmacêutico.
Considere que Crispim Soares era um boticário, para EXPLICAR o que seria ―temperar um
medicamento‖.
62ª questão
EXPLIQUE o efeito de sentido que decorre da metáfora que constitui o fragmento transcrito a
seguir. Para isso, considere o capítulo em estudo e os anteriores.
―A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo
a suspeitar que é um continente.‖
63ª questão
CARACTERIZE psicologicamente o personagem Crispim, a partir do que se narra no capítulo em
estudo.
64ª questão
Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na
trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao
contraste entre aparência x essência. Esses personagens são instrumentos por meio dos quais
ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as relações sociais e
denunciam a imperfeição humana.
EXPLIQUE se Crispim confirma esse traço recorrente na obra de Machado de Assis no que se
refere à arquitetura de seus personagens.
Excerto para 65ª, 66ª, 67ª e 68ª questões.
―Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,— um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele
Matraca http://folclorevertentes.blogspot.com. br/014_03_ 01_archive.html. Acesso em 21 jun.2014.
justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. ―
65ª questão
SITUE, no estilo machadiano, o fragmento em destaque no excerto.
66ª questão
As matracas são usadas na atualidade por vendedores ambulantes de algodão-doce, picolés e
outras guloseimas. O ruído do instrumento é utilizado como isca, chamariz para a garotada.
Segundo o narrador, entretanto, tocar a matraca era uma estratégia para chamar atenção dos
passantes em relação ao que se tinha a anunciar. O tocador da matraca era, portanto, o portador
daquilo que se pretendia divulgar, inclusive propaganda política.
ANALISE se os políticos da atualidade utilizam-se da mídia da mesma maneira e com o mesmo
propósito que o vereador itaguaiense ao qual se reporta o narrador, no excerto em análise.
67ª questão
INDIQUE a ironia que perpassa o fragmento.
68ª questão
EXPLICITE a denúncia que se faz no fragmento.
69ª questão
―— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a
pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só
insânia.‖
razão [Do lat. ratione.]
Substantivo feminino.
1.Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar ideias universais; raciocínio, juízo.
2.Faculdade que tem o homem de estabelecer relações lógicas, de conhecer, de compreender, de raciocinar; raciocínio,
inteligência.
3.Bom senso; juízo; prudência:
A razão nos obriga a ser cautelosos.
4.A lei moral; o direito natural; justiça, direito:
A razão impõe, para o caso, pena severa.
5.Causa, motivo:
Qual a razão de tamanha mudança?
6.Fundamento ou causa justificativa de uma ação, atitude, ponto de vista, etc.:
Não há razão para abandonares a família;
Despediram o empregado sem razão.
7.Prova por argumento.
8.Conhecimento, notícia, participação:
Ordenou ao servo que lhe desse razão do ocorrido.
9.Filos. Faculdade superior de conhecimentos que se pretendem dotados de necessidade e universalidade, expressos de
modo discursivo e cujos princípios são inatos ou a priori.
10.Filos. Sistema de princípios a priori cuja verdade não depende de experiência.
11.Filos. Faculdade de conhecer o real, por oposição ao que é aparente ou acidental.
12.Filos. Princípio de explicação: o que dá conta de um efeito.
13.Relação entre grandezas da mesma espécie.
14.Mat. Quociente de dois números.
15.Mat. Diferença entre os termos consecutivos de uma progressão aritmética.
Substantivo masculino.
16.Cont. Livro de escrituração contábil que agrupa em contas, como, p. ex., Caixa, Duplicatas a receber, etc., os
lançamentos do diário (6). [Cf. rasão.] ~ V. razões.
Razão anarmônica. 1. Geom. Numa reta em que são dados quatro pontos, A, B, C e D, o quociente da razão em que C
divide o segmento AB pela razão em que D divide o mesmo segmento.
Razão áurea. 1. Mat. Razão entre duas quantidades que é igual ao número áureo (q. v.).
Razão de Estado. 1. Motivo baseado no interesse público.
Razão de homotetia. 1. Geom. Razão de semelhança.
Razão de massa. 1. Astron. Relação entre a massa de um foguete e a massa de seu combustível.
Razão de Poisson. 1. Fís. Razão entre a deformação lateral e a deformação longitudinal de um corpo.
Razão de ramificação. 1. Fís. Nucl. Quociente de duas frações de ramificação.
Razão de refluxo. 1. Quím. O quociente entre o destilado recolhido e o que retorna ao destilador, durante uma destilação.
Razão de semelhança. 1. Geom. O quociente constante das dimensões das linhas correspondentes de duas figuras
semelhantes; razão de homotetia.
Razão de transferência. 1. Fís. Parâmetro que mede o transporte de energia de um sistema oscilante para outro que lhe
está acoplado. [Quando é grande, a transferência de energia é elevada e o primeiro sistema determina fortemente o
comportamento do segundo.]
Razão de variação. 1. Mat. Valor de variação, na unidade de tempo, de uma grandeza variável.
Razão de verossimilhança. 1. Estat. O quociente do máximo da função de verossimilhança correspondente a um
subespaço de um espaço amostral pela função de verossimilhança de todo o espaço amostral.
Razão externa. 1. Geom. Numa reta em que são dados três pontos A, B e C, nessa ordem, a razão entre os segmentos
AC e BC.
Razão giromagnética. 1. Fís. Relação entre o momento magnético de um sistema atômico, ou subatômico, e o seu
momento angular intrínseco.
Razão harmônica. 1. Geom. Razão anarmônica igual a -1.
Razão interna. 1. Geom. Numa reta em que são dados os três pontos ordenados A, B e C, a razão entre os segmentos BA
e BC.
Razão inversa. 1. Mat. Razão entre inversos de números; razão recíproca.
Razão prática. 1. Filos. Segundo Kant (v. kantismo), a razão que se aplica à determinação da vontade.
Razão pura. 1. Filos. Segundo Kant (v. kantismo), quer a faculdade superior de conhecimento que se opõe à faculdade
empírica, à intuição, quer a faculdade superior que produz as ideias de Alma, Mundo e Deus.
Razão recíproca. 1. Mat. Razão inversa.
Razão simples. 1. Geom. Razão entre os segmentos formados por um ponto que divide um dado segmento de reta.
Razão social. 1. Firma (4).
Razões de cabo de esquadra. 1. Razões disparatadas:
"Tudo lhe servia de pretexto, necessidade de dar forte descanso aos animais, receio de chuvas próximas, razões todas de
cabo de esquadra" (Visconde de Taunay, Ao Entardecer, p. 90).
À razão de. 1. Ao preço de. 2. À taxa de; à porcentagem de.
Em razão de. 1. Por motivo de; por causa de; por:
"Os pais de Eugênio não deixavam de ralhar com ele em razão de não parar em casa." (Bernardo Guimarães, O
Seminarista, p. 29.)
Estar coberto de razão. 1. Ter toda a razão.
insânia [Do lat. insania.]
Substantivo feminino.
1.Falta de juízo; loucura, demência:
"A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se
poder traçar entre o bom senso e a insânia." (Euclides da Cunha, Os Sertões, pp. 152-153.). Dicionário Aurélio Eletrônico
PESQUISE diferentes concepções de loucura e avalie se elas aproximam-se ou distanciam-se da
apresentada por Bacamarte.
CAPÍTULO V
O TERROR
Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa
fora recolhido à Casa Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.
— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...
Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em
boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no
testamento, para viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como entrou a
dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este,
oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de
chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à
abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria,
gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que
ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no
nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos
corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os
agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis
devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com
certa perfídia: — "Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga". Costa não se deteve um
minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida.— "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu
mão de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o
merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira.
Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não
cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.
—―Agora espero que‖... — pensou ele sem concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os
sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à
rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um
verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou;
três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos
daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa
emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco
meses depois era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-
se que o Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos,
que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões.
Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando
com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com
o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava
que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa
que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o
terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente
que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo
como dissipara os cabedais que...
—Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que
recebeu, a culpa não é dele.
—Não?
—Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem;
mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco
tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.
A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje.
Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio
(Deus lhe fale nalma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele,
abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—"Todo o seu dinheiro não há de durar mais
de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão
impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela
acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e
convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na
galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém
queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma
senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz.
Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas
namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo
da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele
levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias!
Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que
sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.
—Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos,
era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o
privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes
coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso
e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos,
secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não
podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
—―Há coisa,‖ pensavam os mais desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava
de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia
mais, — a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se
podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima
de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o
sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas,
mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que
a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e
ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um
simples albardeiro, Deus do céu!
—Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.
De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na
casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,
embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se
fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras
despregadas.
— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo)
usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de
branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se
que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a
nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não
foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse
do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo
de contemplar a casa...
— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.
— Não?
— Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de
tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as
tardes, desde cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os
costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma
notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de
um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao
contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira
vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado,
disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as
mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que
Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência!
que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela,
passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do
rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro
vulto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! Triste! não fez mais
do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
—A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.
Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de
norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se
seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,—duas ou três de consideração,—
foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos,
mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de
dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o
fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,
com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era
o produto diário da imaginação pública.
Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a
mais comitiva, —ou quase toda—,que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi
recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento
em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo
como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas
naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra
e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma
mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um diagnóstico, sem
desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e
desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos
amigos e o préstito punha-se em marcha.
D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde.
Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e
damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes —porque o eminente Bacamarte
confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo—D. Evarista voltava a
cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que
ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada, que era a coisa
mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela
fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas...
Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas — feitas de metal e despejando água pela
boca fora.
Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito
mais bonito.
Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, de mais a mais, sede do
governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a
Casa Verde...
— A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da
ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.
— Sim?
— É verdade. Lá está o Mateus...
— O albardeiro?
—O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
— Tudo isso doido?
— Ou quase doido, obtemperou o padre.
— Mas então?
O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo;
resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou
realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos?
Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde
sem prova evidente de loucura.
— Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.
Três horas depois, cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão
Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes,
discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo
Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos
duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dois sóis, no conceito de um
vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência.
Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D.
Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas
partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por
exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e
aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais
singular dos reptos.
―Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da
coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa),
Deusquis vencer a Deus, e criou D. Evarista."
D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice
excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do
alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e, provavelmente, de sangue. O
atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse
qualquer episódio trágico,— ou que o adiasse, ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse.
Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir,consigo mesma que D. Evarista não merecia
nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna.
Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo?
Esta ideia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o
Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era
um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a ideia relativa ao
nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele
mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas
ideias eram antes arrojadas do que ternas ou. Dava para o épico. Uma vezjocosas, por exemplo,
compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão
aspérrimo do Nada", esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou
menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...
― Pobre moço!‖ pensou o alienista. E continuou consigo: ―Trata-se de um caso de lesão cerebral;
fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...‖
D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na
Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes
do alienista.
Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto
Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda
outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As
mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e
nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas.
Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a
duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que
não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma
distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às
vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De
resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à
nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras
feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da
casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se
saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na
madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.
— Devemos acabar com isto!
— Não pode continuar!
— Abaixo a tirania!
— Déspota! violento! Golias!
Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror
crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte
fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a
expendesse na loja, com grandes gestos de indignação. Note-se, — e essa é uma das laudas
mais puras desta sombria história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a
povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de
sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse
público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito
justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia
com ele uma demanda, o Coelho.
—Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio.
E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma
demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de
um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que
tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alegando andar com pressa, mal o viam
de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra,
a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que
sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes, que cultivava o
Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e
emendasse este trecho:
La boccasollevòdalfiero pasto
Quel "seccatore"...
mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
70ª questão
JUSTIFIQUE a internação de Costa na Casa Verde, tendo em vista a ampliação da concepção de
insânia apresentada por Bacamarte no capítulo anterior.
Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na
trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao
contraste entre aparência x essência. Esses personagens são instrumentos por meio dos quais
ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as relações sociais e
denunciam a imperfeição humana.
71ª questão
ANALISE como se apresenta no capítulo em análise esse contraste entre aparência e essência
72ª questão
EXPLIQUE se se percebe no capítulo traços de denúncia em relação à imperfeição humana.
73ª questão
Releia com atenção às relações humanas inscritas no excerto.
―De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na
casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,
embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se
fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras
despregadas.‖
albarda [Do ár. (t).]
Substantivo feminino.
1.Sela grosseira, enchumaçada de palha, para bestas de carga.
2.Pop. Jaqueta ou casaco malfeito.
3.Fig. Humilhação, vexame.
ANALISE se se percebe no excerto a hipocrisia que, na visão de Machado de Assis, compõe a
imperfeição humana.
74ª questão
―Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado,
falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram
ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas
acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A
última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu
a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa.‖
EXPLICITE a razão pela qual as pessoas deixaram de interceder pelo pobre Costa.
75ª questão
Segundo o estudioso Francisco Achcar, o estilo machadiano focaliza as personagens de fora
para dentro: vai ―descascando‖ as pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é
considerado grande "analista da alma humana".
EXPLIQUE a relevância do capítulo em análise quanto ao ―descascar‖ Simão Bacamarte com o
intuito de revelar sua essência em contraposição à aparência.
76ª questão
INDIQUE, dentre os traços do estilo machadiano resumidos por Francisco Achacar (introdução
desta atividade), a que se aplica ao fragmento a seguir.
―D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte, de um gesto que não
se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola.‖
77ª questão
Se, para alguns, louco é quem foge aos padrões da sociedade em que se insere, defina os
padrões sociais na perspectiva de Bacamarte, considerando o perfil daqueles que, neste capítulo,
foram recolhidos à Casa Verde.
78ª questão
Levante uma hipótese que justifique o fato de a maior parte dos internos na Casa Verde aos quais
se faz referência explícita no Capítulo V ser do gênero masculino.
Considere o contexto no qual o texto foi produzido.
79ª questão
http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012_
04_01_archive.html. Acesso em 23 jun. 2014.
EXPLIQUE por que a fala do 2º personagem converge com a percepção de Simão Bacamarte em seus estudos.
CAPÍTULO VI
A REBELIÃO
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à
Câmara.
A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a
ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da
rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos
e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras
humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico
do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram
tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...
— É falso! interrompeu o presidente.
— Falso?
— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que,
tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela
Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente
o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para
demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o
presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de
concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a
Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde—"essa Bastilha da razão humana"—expressão que
ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram
com ele.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue.
Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a
denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão
elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que
reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o
seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:
—Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são
reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?
Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo
com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao
menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para
não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura
corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação
reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo,
namorado: —―Bastilha da razão humana!‖
Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o
barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta;
chamavam-lhe o Canjica — e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A
ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não
descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam
para a Casa Verde, — dada a diferença de Paris a Itaguaí,—podiam ser comparados aos que
tomaram a Bastilha.
D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela
provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,
— e não quis crer.
— Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a
barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho.
Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!!o tirano! dizia
o moleque assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco
enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para
ficar igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte!!!morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.
— Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.
D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos
de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou,
precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis;; os olhos dele, empanados pela
cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior,
videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem
que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
— Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.
O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu
tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme
e tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a
linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás,
interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.
— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe,
em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.
— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.
O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou ali no momento em que a rebelião
também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e
sombrias de desespero.— Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista
assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-
lhe a voz com brados de indignação.
Então, o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os
amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência
do povo como fizera até então.
— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.
— Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida,
ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.
— Não entendo.
— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da
multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão
dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a
administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim
mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver
comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que
não farei a leigos nem a rebeldes.
Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e
menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista,
cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para
dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da
Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o
barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa
Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as
demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por
ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não
ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca.
Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo.
Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o
percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes:—Canalhas! covardes! —mas
conteve-se e rompeu deste modo:
Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas.
Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e
amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele
indigno.
E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do
barbeiro.
Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.
— Vamos! bradou Porfírio agitando o chapéu.
— Vamos! repetiram todos.
Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
80ª questão
RELACIONE os fatos narrados no excerto a seguir às manifestações que têm ocorrido no Brasil,
tendo em vista suas causas e reação dos governantes em relação às reivindicações dos
manifestantes.
―Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à
Câmara.
A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a
ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da
rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos
e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras
humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico
do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram
tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...‖
81ª questão
EXPLICITE a ironia presente no fragmento abaixo.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue.
Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a
denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão
elegante que mudou de parecer.
82ª questão
EXPLIQUE se as declarações da presidenta Dilma, em 2013, frente às manifestações que
tomavam conta do país, aproximam-se ou não da orientação do presidente da Câmara de Itaguaí
ao vereador Sebastião Freitas, reproduzida a seguir.
―Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo
com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao
menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para
não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos.‖
83ª questão
JUSTIFIQUE a presença da conjunção destacada, no fragmento a seguir.
―Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem
e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião,
que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra:
Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação reservando-se o direito de pedir pelos
meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: —―Bastilha da razão
humana!‖
Entretanto, a arruaça crescia.‖
84ª questão
JUSTIFIQUE, com base no estilo machadiano, a inserção do comentário em destaque no
fragmento transcrito a seguir.
―D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela
provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de
Janeiro, — e não quis crer.‖
85ª questão
―— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho,
ganância...‖
tirano
[Do gr. , 'senhor absoluto', 'usurpador do poder', pelo lat. tyrannu.]
Substantivo masculino.
1.Na Grécia antiga, indivíduo que usurpava o poder.
2.Governante injusto, cruel ou opressor, que abusa de sua autoridade.
3.Indivíduo que abusa de sua autoridade.
4.Indivíduo cruel, impiedoso, tirânico.
Adjetivo.
5.Tirânico (4).
AVALIE se Bacamarte era, de fato, um tirano.
86ª questão
DESCREVA as muitas aparências de D.Evarista e de Bacamarte ao longo dos capítulos
analisados até aqui.
87ª questão
ANALISE se o boticário Crispim manteve o mesmo perfil ao longo do 1º ao 6º capítulos da
narrativa
88ª questão
EXPLICITE uma crítica à natureza humana presente no capítulo VI.
CAPÍTULO VII
O INESPERADO
Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação: os Canjicas não
queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e
esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto
uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja
resposta consistiu nestes termos alevantados:
— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os
cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação
de Itaguaí.
Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das
grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por
parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas.
O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou
correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada,
animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço
dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente
para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que
lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os
seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, de modo que ao cabo de
alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com
alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio,
declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.
A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou
para a Câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre
Porfírio".
Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma
navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A
dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris.
Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a
multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar
um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma
cáfila de rebeldes .‖ Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente, cuja
defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os
vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste
realidade. O presidente não desanimou:— qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-
nos de que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se
poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas
toda a Câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, e
intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se, e foi dali para a cadeia.
Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua
Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos
que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles
prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o
povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de —"Protetor da vila em nome
de Sua Majestade e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações
oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de
obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas
enérgica: "Itaguaienses!
Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A
opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos
dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da
vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer
melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que
me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou
às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo
PORFÍRIO CAETANO DAS NEVES".
Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo
uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto
maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde
umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o
Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vila
respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e
destruído o terrível cárcere.
O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a
proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio. Poucos
gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um
ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de
um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual;
mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.
— Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe
o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:
— Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?
O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda
a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele.
Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam
o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
89ª questão
COMPARE a ação dos dragões na rebelião dos Canjicas à da polícia nas constantes
manifestações que vêm ocorrendo no Brasil desde 2013.
90ª questão
REESCREVA o fragmento a seguir em linguagem atual.
―Este (Porfírio)ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas
uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A
dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris.‖
91ª questão
RETEXTUALIZE o capítulo VII para o gênero reportagem.
92ª questão
EXEMPLIFIQUE, com um excerto do capítulo em estudo, a ironia bem humorada com que o autor
tece suas críticas à sociedade ou a parte dela.
CAPÍTULO VIII
AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO
Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do
palácio do governo, — foi a denominação dada à casa da Câmara,— com dois ajudantes-de-
ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso
ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a
parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—―Vai
prendê-lo‖, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário
naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em
mais apertado lance: — a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro
atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma,
porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A
esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de
Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava
perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. ― Fê-lo Catão , é verdade,
sedvictaCatoni,‖ pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas
Catão
não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu
ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra Insistindo, porém, a
mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e
meteu-se na cama.
—Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da
cama; vai acompanhado de gente.
—―Vai prendê-lo‖, pensou o boticário.
Uma ideia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo
a ele, na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-
se, disse que estava bom, que ia sair; e apesar de todos os esforços e protestos da consorte
vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia
colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam
com muita perspicácia, o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou
resolutamente ao palácio do governo, não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado
de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde
a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta
declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a
importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe
que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não
tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a
de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que
isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.
Segundo o estudioso Francisco Achcar, o estilo machadiano focaliza as personagens de fora para
dentro: vai ―descascando‖ as pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é
considerado grande "analista da alma humana".
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
93ª questão
EXPLIQUE se a nova aparência com que se apresenta o boticário no capítulo VIII apresenta-se
com coerência em relação às já apresentadas em capítulos anteriores.
CAPÍTULO IX
DOIS LINDOS CASOS
Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e
portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir
pessoalmente à destruição da Casa Verde.
— Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir
ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos
doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é
puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a
Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há,
entretanto, — por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito
público.
O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento
do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...
—O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a
responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode,não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.
— Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco
feridos.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que ele ia catar algum outro, e
dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da
véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia
respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara
caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais
da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se
pudesse contar, não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí,
e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande
homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus
de pedra.
Quanto à toleima dos que o aclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte
e cinco feridos.
— Dois lindos casos!
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.
O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta
pessoas que o aclamavam:
—...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo.
Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus
amigos, é a base do governo...
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.
— Dois lindos casos! murmurou o alienista.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
94ª questão
ANALISE se há alguma relação entre a proposta feita pelo barbeiro a Simão Bacamarte e as
alianças partidárias que ocorrem na atualidade.
95ª questão
INDIQUE os 2 casos a que se refere Simão Bacamarte.
CAPÍTULO X
A RESTAURAÇÃO
Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo
governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro,
dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase
que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival
da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse
um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o
alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um
simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio!
ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as
minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo
anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás
subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara
corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos
sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.
Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu
desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos,
que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais
dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.
Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte.
Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la
na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião
Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência
das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa
aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim
Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na
véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que
cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de
nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o
contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de
Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.
Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara
lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que
não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de
sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara,
entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa
Verde, e foi dali à Câmara, à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos
touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a
princípio hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais
simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não
fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de
charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu
cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do
alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras
cediam a um impulso natural e as segundas a um vício.
Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de
que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão
Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se
pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de
prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou
tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo.
Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives,
amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois
da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão
de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico.
Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram
do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que
eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém
ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada
há.
— Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos
apoiado os Canjicas...
Um dia de manhã — dia em que a Câmara devia dar um grande baile,— a vila inteira ficou
abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém
acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora
recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente
acerca do fato.
— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela
vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e
pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a
observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes,
inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência,
antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando
outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente
um vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta
noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que
levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira.
Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem.
Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. —
Que tem? perguntei-lhe.— Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito! —
Pois leve o de safira.— Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade.
Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao
quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era
evidente a demência; recolhi-a logo.
O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém,
percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania sumptuaria", não incurável, e
em todo caso digno de estudo.
— Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.
E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças,
tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem
amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe — menos ainda
o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
96ª questão
ANALISE se Porfírio pode ser tomado como representação metonímica dos políticos atuais.
97ª questão
―Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.‖
A- INDIQUE a quem se refere essa descrição;
B- PESQUISE sobre Hipócrates e Catão para explicar a afirmação.
CAPÍTULO XI
O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ
E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os
loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
— Todos?
— Todos.
— É impossível; alguns sim, mas todos...
— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara
De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo:
— 1º: que verificara das estatísticas da vila e daCasa Verde, que quatro quintos da população
estavam aposentados naquele estabelecimento;
— 2°: que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das
moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio
das faculdades não fosse perfeito e absoluto;
— 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira
doutrina não era aquela, mas a oposta, portanto que se devia admitir como normal e exemplar o
desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele
equilíbrio fosse ininterrupto;
— 4º: que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e
agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas;
— 5°: que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a
natureza, esperando da Câmara igual dedicação;
— 6º: que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento
dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o
que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos.
Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não
descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e
prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte,
ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
98ª questão
INDIQUE a que característica do estilo machadiano nos remete o excerto a seguir.
―E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os
loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.‖
99ª questão
EXPLIQUE por que a soltura de todos os loucos da Casa Verde haveria de causar espanto.
100ª questão
PESQUISE sobre o que ocorreu com os doentes mentais que se encontravam internados até a
aprovação da Lei antimanicomial, que determina que somente aqueles que colocam em risco a
própria vida ou a de terceiros é que devem permanecer nos hospícios. RELACIONE o produto de
sua pesquisa ao que ocorreu em O alienista.
101ª questão
INDIQUE quem proferiu cada uma das falas reproduzidas e numeradas a seguir.
―—Todos?(1ª)
—Todos. (2ª)
—É impossível; alguns sim, mas todos... (3ª)
—Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara‖ (4ª)
102ª questão
SINTETIZE em um período marcado pela relação de fato causa, o motivo pelo qual Bacamarte
liberaria os pacientes da Casa Verde.
103ª questão
INDIQUE três características do estilo machadiano que se percebe no excerto a seguir.
―O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos.
Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não
descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e
prolongadas.‖
O autor finaliza o capítulo com o seguinte parágrafo:
―E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte,
ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.‖
104ª questão
INDIQUE que coisas humanas seriam essas.
105ª questão
TRANSCREVA a frase final do 4º parágrafo.
106ª questão
advertência [Do lat. advertentia.]
Substantivo feminino.
1.Ato ou efeito de advertir.
2.Admoestação, aviso, adversão. [Sin. ger. (p. us.): advertimento.]
advertir
[Do lat. advertere.]
Verbo transitivo direto.
1.Observar com palavras; censurar levemente; admoestar.
2.Atentar ou reparar em; notar, observar:
"Entrou no quarto, e, não advertindo que fazia este movimento antes de qualquer outro, olhou a cama." (José Saramago,
O Ano da Morte de Ricardo Reis, p. 98.)
3.Chamar a atenção para; fazer que repare em:
Advertiu as faltas do subordinado.
4.Concluir, deduzir:
Explicou-me detalhadamente a situação, e só então a adverti que agira corretamente.
5.Acautelar, prevenir, precatar:
Só não caiu na cilada porque o advertiram.
6.Dizer, comunicar, repreendendo.
Verbo transitivo direto e indireto.
7.Avisar, admoestar:
"Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder"
(Machado de Assis, Quincas Borba, p. 208).
8.Fazer observar, atentar, reparar:
Os primeiros cabelos brancos advertiram-na da velhice que chegava;
"alguma cousa de suave lhe advertia que a afeição do sangue não tinha as asas da sua, essas asas auriverdes da
esperança" (José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 198).
Verbo transitivo indireto.
9.Reparar, atentar:
Só então advertiu na imprudência de seu ato.
Verbo intransitivo.
10.Fazer advertência; informar:
"A um lado e outro, grandes letreiros ...., exortam, advertem, refrescam a lembrança do fogo do inferno" (Augusto
Meyer, No Tempo da Flor, p. 40).
Verbo pronominal.
11.Dar fé; reparar, atentar:
Ao cair da noite, advertiu-se de que não se agasalhara bem. [Conjug.: v. aderir.]
Dicionário Aurélio Eletrônico
EXPLIQUE por que a frase final pode ser entendida como uma ―advertência‖.
107ª questão
EXPLICITE , com base no ofício de Bacamarte, quais seriam as experiências futuras para as
quais apontava o 4º parágrafo.
CAPÍTULO XII
O FINAL DO § 4º.
Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos.
Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o
próprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado
pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma
coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da
navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a
população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido,
atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu
o nosso adágio: — ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; — adágio imoral, é verdade,
mas grandemente útil.
Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que
ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente
ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos
entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se
seguiram outros bailes e jantares.
Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor
de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e
o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão
Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a
magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mão de amigo velho.
— É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.
Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente
nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores.
O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez
agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do
sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra".
— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver
restituído à liberdade.
Entretanto, a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que
oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi
adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas
que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência
da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória,
limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara,
antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por
motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum
caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e
incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste
magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as
pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal
proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e
insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.
— A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito
humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores,
declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a
cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das
faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e
cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro
bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda
agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou
unanimemente a entrega.
Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à
Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre
Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta
dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa
espumando de cólera ,e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao
tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos de
dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão
Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para
conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-
lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.
— Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista.
Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse
alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na
rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de
certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá cá
passará as noites, e os domingos e dias santos.
A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher,
mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da
dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para
outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime
pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não
afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando
colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias.
Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia
cerebral. Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto
escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e
interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente
desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de
qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente,
desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um
testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da
pessoa em questão.
— Então parece-lhe...?
— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.
O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que
lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e
provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi
solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu
a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão
Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação
daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão
melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe, todavia,
um dos melhores cubículos.
Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em
quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de
símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.
Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram
compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador
Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão
Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança
pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro
Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se
pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes
que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara,
reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que
a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o
fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais
aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes
e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.
— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a
conversação do barbeiro com os principais da vila.
Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter
cão! exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio
dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão
inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um,
que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e
abnegação humana.
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
108ª questão
―Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos
eixos.‖
EXPLIQUE o papel discursivo do verbo em destaque, tendo em vista o contexto em que se
insere.
Excerto para a 109ª e 110ª questões.
[...] ―a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que
oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi
adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas
que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência
da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória,
limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara,
antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por
motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum
caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e
incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste
magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as
pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal
proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e
insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.‖
109ª questão
COMPARE a ação da Câmara de Itaguaí narrada no excerto à imunidade parlamentar que vigora
em nosso país.
110ª questão
EXPLICITE a crítica que se faz aos políticos.
111ª questão
EXPLIQUE a percepção de Bacamarte sublinhada no fragmento a seguir.
―Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores,
declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a
cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das
faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e
cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro
bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda
agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou
unanimemente a entrega.‖
CAPÍTULO XIII
PLUS ULTRA!
Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se
ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas
estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva
admiração em Itaguaí.
Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por
classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte
cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a
medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—
graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às
vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao
alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às
distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte
começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr matraca, para o fim de o
apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.
— Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.
Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor
(mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte
lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em
Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do
finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro
no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não
pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para
um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem
extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi
outro santo remédio.
— Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-
dementes.
Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que
a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que
a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à
terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o
não pode conseguir.
No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão
cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade,
porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os
juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance;
confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza.
Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes.
Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer
uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez;
ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou
muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.
— Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona
não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões
soltas e vagas, como estas:
—Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos
falsificados e podres... Ah! tratante!...
Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas
palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito
desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.
Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde,
mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe
bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em
Itaguaí. o reinado da razão.
Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova
tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.
—― Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.‖
Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios
ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão
de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e
austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas
cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas,
mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não
passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: — só se lhe notava luxo naquilo que era
de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza,
virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si
mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral.
Súbito, parou.
Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo
na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
— Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, — ou o que pareceu cura não foi
mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele
acabava de curar eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter
a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa
existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra
de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações,
constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: — não havia loucos
em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a
alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí.
não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso
mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina
psicológica?
A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das
mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só
aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-
se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
— ―Sim, há de ser isso,‖ pensou ele.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral;
pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o
vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto.
Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente,
resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi
afirmativa.
— Nenhum defeito?
— Nenhum, disse em coro a assembleia.
— Nenhum vício?
— Nada.
—Tudo perfeito?
—Tudo.
—Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo
de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho
que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembleia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este
conceito digno de um observador:
— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É
porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: — a modéstia.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre
do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram
que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas
o detiveram um só instante.
— A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu.
Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.
— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade
da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à
cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado
em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca
houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu
desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é
atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja
como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.
http://www.protexto.com.br/classico/alienista.pdf
EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO
112ª questão
EXPLIQUE, pelo viés da nova teoria de Bacamarte, por que ser honesto ou modesto é indício de
loucura.
Excerto para a 113ª e 114ª questões.
―Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles
excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante.
Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento
oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o
temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma
cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais
rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente,
poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia
de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.‖
113ª questão
EXPLICITE a crítica que se faz no excerto.
114ª questão
PESQUISE sobre Garção e Píndaro e EXPLIQUE como e por que se deu a cura da modéstia do
poeta.
115ª questão
EXPLIQUE por que se pode afirmar que este capítulo escancara a imperfeição humana.
116ª questão
EXPLIQUE por que se pode afirmar que O alienista é em sua totalidade uma crítica ao
cientificismo.
Se necessário, pesquise ―cientificismo‖.
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