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8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona
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Eu sou uma onaou um recorte sobre a dignidade e a desigualdade entre os homens
Por Mnica Machado, aluna especial
Trabalho apresentado ao professor Ronaldo Lima
Lins, no curso de mestrado, em alunato especial,
na disciplina As crises da tica e os impasses
da esttica, de Literatura e formas de
conscincia, de Teoria Literria, cdigo LEL720.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras 2 semestre de 2008
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Sat wuguga sat ju benga sat si pata pata
Hahi ha mama, hi-a-mam
Sat si pata pata
(Pata pata, 1956)
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1.A teoria aimor
Est no captulo 43 do livro de Hans Staden artilheiro
alemo que serviu no forte de Bertioga a cena clebre em
que este interpela Cunhambebe sobre a legitimidade tica da
antropofagia. Staden, feito prisioneiro pelos tupinamb e s
vsperas de ser devorado, no tinha compreendido a festacanibal e argumentava que mesmo os seres irracionais no se
alimentavam de seus prprios semelhantes. Cunhambebe,
mordendo a perna de um tapuia, respondeu:
Jaguara ix. Icbae .1
Trinta anos depois da publicao deste relato, Gabriel
Soares de Sousa j no se mostra to intolerante com o
costume tupinamb. No captulo 32 do Tratado, parece aceitar
bem a idia de que vingar-se do inimigo , necessariamente,
com-lo.Inadmissvel, para Gabriel Soares, era ingerir carne humana
por mantimento, prtica que atribui aos legendrios aimor
adversrios ferrenhos dos tupinamb, tupiniquim, tupina,
maracaj, teminim, tamoio, tabajara, amoipira, caet e
potiguar.
Os aimor teriam sido to brbaros, to traioeiros, teriam
provocado tanta devastao no litoral, que chegaram a ser
tomados, literalmente, por animais selvagens.
1Conforme original, Eu sou uma ona. E isto est gostoso. MUSSA, Alberto. O
movimento pendular. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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At hoje se especula sobre a identidade desses terrveis
ndios. H quem os associe aos botocudos, ou aos coroados,
ou aos mongoi, ou aos patax hhhe. Mas um equvoco. Os
verdadeiros aimor que nunca formaram uma tribo no sentido
clssico estavam totalmente extintos no sculo XVI.
Se Gabriel Soares de Sousa tivesse lido Hans Staden, talvez
houvesse percebido essa contradio: se os tupinamb comiam
seus inimigos por vingana e por isso eram superiores aos
aimor, que tinham a carne humana por alimento bsico como
explicar aquela frase, um tanto irnica, de Cunhambebe?
o que transcrevo aqui do original, o leitor interessado deve
tomar O movimento pendulare ler o caso na ntegra. Tudo o que fao,
daqui para adiante, imerecido e menor.2Continuo.
Ilha de Maraj, de 401 a 1024. Os pajs ordenaram que fossem
construdos tesos para marcar o centro do universo, o lugar da terra
sem males; a partir dali teriam estabelecido o local sagrado para uma
aliana de tribos. Institua-se, democraticamente, que cada uma das
tribos congraadas fizesse, a seu modo, suas prprias cerimnias
religiosas. Cada teso abrigaria um culto, o privilgio relativo ao
culto era do grupo fundador, os outros grupos poderiam ser iniciados,
mas eram apenas participantes dos cultos de tesos vizinhos. Em pouco
tempo as hostilidades tribais foram se aplacando, novos tesos eram
construdos para os povos que aderiam aliana, desde que seu ritual
fosse aprovado pelos j congraados. Era a expanso da terra sem
males, os tesos abrigavam as tribos e suas cerimnias sagradas, osgrupos conviviam pacificamente. Dessa forma conseguiram que o mal (as
guerras e os medos naturais) ficasse reduzido metfora,
representao.
Foz do Tocantins, 881. Uma das ltimas cerimnias admitidas nos
tesos era a da pixuna: homens e mulheres passavam trs dias
jejuando, fumando e ingerindo chicha, depois incorporavam o
esprito de um animal ancestral. A cerimnia teve rpida aceitao
entre os j congraados porque celebrava a soberania do homem sobre a
natureza, era a metfora do universo selvagem, do mal superado. Cada
um dos participantes da pixuna exibia atributos segundo o animalincorporado. Esporadicamente apareciam onas, que matavam e devoravam
um ou outros bichos; e at mesmo homens, quando escapavam para
outros tesos.
Ilha de Maraj, de 1024 a 1089. Cadveres foram achados no dia
seguinte a uma cerimnia da pixuna, no teso de outra tribo. Mas no
foram comidos. Era a primeira grande contradio: at ento, o nico
ser que no matava apenas para comer era o ndio. Entendeu-se que as
noites de pixuna atraam tambm espritos humanos; entendeu-se que os
ndios, humanos, tinham a mesma essncia dos animais ancestrais,
bichos. O nmero de mortos crescia a cada dia.
2(V, leia Alberto Mussa. Depois, se ainda desejar, retorne a este relato
cronolgico dos acontecimentos que nos interessam, especificamente.)
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Ilha de Maraj, de 1089 a 1173. Os corpos mortos comearam
novamente a aparecer dilacerados. Acreditou-se que a pixuna voltara a
convocar, ento, apenas animais. Em pouco tempo a teoria antiga, de
que homens eram diferentes de animais retornou. Os congraados
ficaram aliviados com esta distino. Porm, estavam enganados, Em
segredo, ndios que vinham incorporando espritos humanos passaram ase reconhecer e a discutir a estranha relao que mantinham com o
mundo sobrenatural. No fundo, se sentiam diferentes. De certa forma,
superiores. At se convencerem de que s eles eram ndios
propriamente ditos. Os outros eram bichos. () E ndio come bicho.
Foi quando comearam a matar apenas para comer.
Ilha de Maraj, de 1173 a 1465. Formou-se um grupo grande,
secreto, organizado e multitnico, eram os aimor. Conversando,
perceberam que compartilhar da vida cotidiana com os outros ndios
era ainda mais estranho, j que eram diferentes. Foi quando se deu a
inverso. Os aimor decidiram que eles mesmos eram os bichos, os
outros que eram ndios. E bichos comem ndios. Embora a deciso no
mudasse a configurao das noites de pixuna, o novo grupo precisava
sair do convvio com suas tribos originais. Foi quando se revelaram e
se isolaram no interior da floresta. Deixaram de usar adornos, de
cozinhar, de ter nomes, famlia e abrigo. Permitiam-se apenas
pequenos modos e ferramentas semelhantes s que usavam tambm os
bichos. Criaram, inclusive, de um modo diferente de falar; resolveram
aplicar uma maneira aleatria de sintaxe.
Ilha de Maraj, 1335. Em um teso, uma virgem que participaria de
um ritual djarumunj apavora-se por um barulho estranho; profana as
urnas dos ancestrais para escapar de um ataque de onas aimor sobre um grande grupo de ndios congraados; ela ouve tudo. Mais
chacinas ocorreram em seguida, talvez elas tenham marcado o fim da
civilizao marajoara.
Cabeceiras do Xingu, 1428. Os aimor j eram perseguidos. Algumas
tribos do Xingu e ex-congraados marajoaras organizaram-se para
extermin-los. Foi um tempo de trgua geral, exceto contra os aimor.
Em funo de suas prprias caractersticas, [os aimor] eram
incapazes de grandes articulaes internas e [logo] sucumbiram. O
acontecido destruiu a crena indgena na terra sem males. Apenas os
tupi e os guarani a reservaram, num aspecto idealizado, num sentidosobrenatural, somente.
Praia de Atafona, 1437. Uma emboscada dos goitac contra os tamoio
e os tupiniquim deu maior gs ao mito aimor. Os perdedores,
orgulhosos, inventaram uma lenda para justificar seu fiasco,
inventaram que tinham perdido para os ferozes aimor.
Vale do So Francisco, 1461. Um bando de trs indivduos aimor,
remanescentes da horda primitiva, fugia represso e, por distores
de comportamento; tinha conscincia de que eram me, pai e filho.
Chapada dos Veadeiros, 1462. Outro grupo aimor, dois homens e
duas mulheres, tambm sobreviventes remanescentes, j apresentavam
distores de comportamento: tinham cimes.
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Serra da Capivara, 1465. ltimo bando aimor. Duas mulheres e um
homem. Uma delas, mais velha, tinha os peitos cados e a pele
enrugada. A outra era jovem e no tivera crias. O homem,
naturalmente, desprezava a primeira. Em uma situao de descanso,
uma pausa na fuga constante, a mulher mais velha fala ao homem uma
frase sem qualquer finalidade, mas de sentido claro; O arco-ris de penas de arara. O homem e a mulher mais velha passaram a
conversar sem qualquer propsito; com isto provocaram a revolta da
mais jovem, que foi logo abandonada e morreu comendo terra. As
frases da mulher mais velha despertaram instintos recalcados. Bastou
um estmulo e eles readquiriram o gosto pelo intil. E estavam
[novamente] degradados, como animais. Passaram a cobrir-se com penas
e a falar sobre as coisas que viam e que sentiam. Mais tarde foram
absorvidos por ndios solidrios que no os reconheceram por aimors.
Foram reintegrados comunidade indgena. No se sabe se foram os
responsveis pela difuso do conceito implcito na fala de Cunhambebe
para Hans Staden.
O relato original no cronolgico, afasta de princpio qualquer
inteno classificatria. Se o escrito de Alberto Mussa tem alguma
funo, alm do ensaio puro, deve ser a elaborao artstica, terica
e esttica, no ser explicativo, nem analtico como sugere o ttulo.
No se trata de um ensaio acadmico em torno da sociologia.
O que A teoria aimor faz investigar as origens da frase de
Cunhambebe. Suas premissas so tambm sugestes e tm bases
histricas, arqueolgicas, sociais e etnogrficas. Certamente, o
autor usou da criatividade para intuir certos aspectos da teoria,assim como Cunhambebe o fez provavelmente para intuir o gosto
pela carne humana.
Os ndios aimor precisaram, na verdade, disfarar sua
superioridade intelectual e evolutiva para sobreviver em um meio
menor, filosoficamente atrasado. Depois se afastaram do convvio dos
seus ou foram banidos, porque no se adaptaram vida do segredo ou
da degradao de seus ancestrais, no puderam ocultar suas
capacidades. No fim, a redescoberta da metfora possibilitou a
reintegrao ou terminou por corromper os modos dos aimor
remanescentes. Estes sim, conquistaram sua cidadania por baixo.No procuro neles um sentido etnogrfico nem sociolgico qualquer.
Encontrei na histria aimor apenas a reverberao de uma
desconfiana antiga, minha, sobre a representao de identidades em
rituais e cultos.
A cerimnia da pixuna , alm de convocao e transe, ameaa aos
observadores; os tesos so lugares em que se realizam eventos
influenciados por aspectos especiais de criao, de representao e
de sociedades, adiante comentados. Os tesos eram o palco da pixuna na
convocao de bichos. Quando vinham onas, quem fosse observador
estaria encantado pela beleza do rito ao mesmo tempo em que estaria
ameaado pela ferocidade dos ndios, incorporados de seus espritos
animais ancestrais.
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2.Miriam Makeba
Zenzile nasceu em 4 de maro de 1932, em Johanesburgo, filha de
me suazi e pai xhosa, comeou a cantar ainda criana; aos 13, j
cantava na escola, depois em casamentos. Tornou-se conhecida, pelo
talento e pela fora de sua voz, firme e poderosa. Aos 20 anos,
comeou a cantar com The Manhattan Brothers, comeou sua carreirainternacional. Em 1956, comps "Pata Pata".
Adotou o nome Miriam, abandonando seu nome zulu. Pouco depois
formou seu prprio grupo, o Skylarks, integrado exclusivamente por
mulheres. Seu primeiro marido foi o trompetista de jazz sul-africano
Hugh Masekela. Miriam Makeba saiu da frica do Sul para um turn, em
1959, ciente de que era visada pelo governo nacionalista, por causa
de sua atuao poltica. Na Europa, denunciou o regime racista sul-
africano, denunciou a situao dos povos negros na frica do Sul sob
o regime do apartheid. Tornou-se conhecida, pelo ativismo poltico e
pela fora de sua voz, firme e poderosa, novamente. Quando tentouvoltar a Johanesburgo o governo no s impediu seu regresso como
revogou seu passaporte. Tornou-se aptrida, pelo talento, pelo
ativismo poltico e pela fora de sua voz. J era 1959. Suas msicas
foram proibidas na frica do Sul, devido repercusso de suas
denncias perante a ONU, em 1963.
A cantora viveu exilada em vrios pases. Morou em Londres, depois
nos Estados Unidos. Em 1969, casou-se com o lder dos Panteras
Negras, Stokey Carmichael (de quem viria a se separar, em 1973). O
casal foi considerado personna non grata nos EUA, por isso emigrou
para a Guin. Miriam participou de diversos concertos na vizinha
Serra Leoa.
Reconhecida por sua capacidade de misturar o blues, o gospel e o
jazz com ritmos tradicionais africanos, a cantora gravou The Click
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Songe Malaika, dois dos mais de 30 discos que lanou ao longo de sua
extensa carreira.
Em 1966, Makeba recebeu um Grammy pelo lbum An evening with Harry
Belafonte and Miriam Makeba. Durante os anos 70 e 80, ela cantou em
todo o mundo, participou de vrios festivais de jazz. Em 1987,
participou da turn Graceland, do cantor Paul Simon. Pouco depoispublicou a autobiografia Makeba: minha histria. Viveu no exlio
durante 31 anos, durante este tempo perdeu a me (1960) e a filha
(1985).
Foi embaixadora da Boa Vontade da Organizao Mundial para a
Alimentao e a Agricultura (FAO), j era conhecida como Mama frica,
lutava para reduzir a fome e melhorar as condies de vida das
pessoas mais pobres no mundo, celebrou todas as independncias do
continente africano.
Nunca entendi por que que no podia voltar ao meu pas", disse
Makeba quando regressou: "Nunca cometi nenhum crime".
Convencida por Nelson Mandela, em 1992, foi recebida com honrarias
e homenagens, voltou a Johanesburgo. Instalou-se no subrbio,
continuou lutando contra as injustias e fundou um centro de
reabilitao para adolescentes.
Em 2005, cansada de viajar, Makeba iniciou sua ltima turn. "Devo
passar pelo mundo todo para dizer obrigada e adeus", explicou, na
poca, em uma entrevista concedida AFP, na qual tambm expressou o
desejo de que suas cinzas fossem jogadas no Oceano ndico. "Assim eu
vou poder viajar de novo para todos os pases", justificou. Dizia no
ter cantado nunca "para a poltica, mas para a verdade".
Teve a coragem de viver fazendo de sua msica e de si mesmaadvogada da pobreza, contra o racismo e pela soberania do povo
africano. Mais, numa cidadela perto de Npoles, na Itlia, Zenzile
Miriam Makeba Mama frica, faleceu. Tinha 76 anos. Sentiu-se mal
depois de cantar Pata pata, saiu do palco e desmaiou nos
bastidores. Morreu defendendo a liberdade do escritor, Roberto
Saviano, autor de Gomorra, sucesso em livro e em filme.
Era 10 de novembro de 2008.
A expresso de seus olhos acompanhava a voz. Especialmente no DVD
Live at Berns Salonger, gravado em 1967, relanado em 2003. Nainternet, na pgina do Youtube, h esta apresentao ao vivo na
ntegra, mas em arquivos de uma ou duas canes de cada vez.
Na platia, em Estocolmo, o espao parece lotado; o que se d a
perceber pelas palmas e pelas luzes de frente e fundo.
No palco, sem falar, Miriam Makeba comanda o pblico, seus olhos
invariavelmente esto arregalados, as sobrancelhas levantadas e o
corpo retesado num movimento, pronto; sua boca parece tambm
preparada para um urro ou uma gargalhada, o que vem melodia e
sorriso.
Seus msicos so apresentados durante uma cano, das mais
onomatopaicas, Amampondo (2:33) Leopoldo na percusso, vindo de
Saint Thomas, Bill no baixo acstico dos Estados Unidos e Sivuca no
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violo e no acordeo, o nosso brasileiro. Eles no saem do palco,
apenas Miriam entra e sai.
Cada momento de silncio seu necessrio ao estabelecimento de um
novo movimento de encanto, isso tanto nas artes como nas sociedades.
A tenso e os movimentos de Miriam Makeba propiciam tanto o ataque
quanto o deleite. Ela parece, a cada vez que termina uma cano,mudar; sua expresso passa da ferocidade e da seduo seriedade do
silncio.
Como se percebe, o silncio que ela exige antes de cada nova
msica a marca maior de seu domnio sobre os espectadores. O
encanto que provoca no s resultado da qualidade de sua msica,
tambm resultado de uma ferocidade da prpria cantora; por ser jovem
e forte ela parece especialmente letal. A qualquer momento a mulher
pode atacar a platia hipnotizada.
um animal selvagem. uma ona. uma mulher cantando como se
invocasse nas artes a cultura africana e a lngua, em favor de
mostrar-se naturalmente, em dana e voz. uma cantora vestida de
ona, o que, neste contexto, interessa muitssimo.3
4
Em uma leitura simples da biografia de Miriam Makeba, vemos logo
que seu sucesso a destacou de sua prpria gente. A partir desta
diferenciao primeira (baseada na arte), sua ao poltica se fez
notria internacionalmente. O ativismo poltico que a caracterizou
alm de sua voz, se desenvolveu alm do que seria admissvel para o
governo nacionalista dos africneres. A mulher teve uma vida longa,
durante toda ela, cantou por liberdade, por identidade, por sua
cultura, por defender o direito de usar sua prpria voz em defesa dooprimido. Cantava para que o povo, oprimido pelo apartheid,
reencontrasse o aprendizado da luta, reencontrasse a si mesmo, isso
de incio. O canto africano rearranjado nos moldes do blues, do soul
e at da bossa nova, era a expresso dos medos e a difuso dos lemas
e bandeiras entre oprimidos, era canto de comunho, propunha a f na
capacidade de resistncia dos povos, resistncia e luta, sempre.
Nesse sentido, seu canto quase religioso, o mais amplo possvel.5
3(Sim, admito que a estampa possa ser tambm a de um leopardo, o caso aqui que
prefiro e pretendo referir-me apenas a onas.)4A capa do DVD, com a apresentao de 1967, em Estocolmo.5( o caso de Kawuleza, segundo a apresentao de Miriam, era cantada por crianas
perseguidas pela polcia, era um grito dirigido s mes, em casa, para que as
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Sua voz era a arte que elevava espadas, a mesma que lhe rendeu o
banimento da sociedade natal.
No procuro nela um sentido etnogrfico nem sociolgico qualquer.
Encontrei na biografia de Miriam Makeba eventos que se assemelham s
discusses sobre a ao poltica, a convivncia em sociedade e a
capacidade de readaptao ao mundo estabelecido pelo exerccioesttico, artstico.
Encontrei na apresentao, ao vivo, em Estocolmo, uma reverberao
de uma desconfiana antiga, minha, sobre a capacidade encantatria de
um discurso poltico potencializado pela atitude do corpo, no sentido
alegrico. Os elementos que compem esta especfica apresentao de
Miriam Makeba me alertam para a ferocidade contida em sua
representao, tambm interpretao. Seu canto alm de convocao,
uma ameaa; o palco onde ela est um lugar em que se realizam
eventos influenciados por aspectos especiais de criao artstica.
I will sing until the last day of my life e continuar tambm
depois, por gravaes e pela memria, pelo talento, pelo ativismo
poltico e pela fora de sua voz. Mama frica permanece na msica e
na histria, hoje ela lembrana e lenda, mito.
protegessem. o caso de A luta continua, cantada em louvor independncia de
Moambique e a Zamora Machel. o caso da ltima apresentao, Pata pata, cantada
em defesa de Roberto Saviano, contra a mfia e a segregao racial.)
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3.Recorte
A proposta deste pequeno estudo compara a apresentao de Miriam
Makeba, Live at Berns Salonger, e A teoria aimor, de Alberto
Mussa; partindo da arte e do homem: da dignidade do gesto de
revoluo e de reconhecimento de identidade, a seduo da msica e as
desigualdades sociais e de pertencimento por que passaram os aimor eMiriam Makeba.
Se for necessrio expor razes, alm de meu prprio desejo
intelectual, para falar sobre onas, destaco dois acontecimentos
recentes. O primeiro deles, a eleio de Barack Obama para a
Presidncia dos EUA. O segundo, uma edio especial do Suplemento
Literrio de Minas Gerais(SLMG), com um estudo sobre os Vissungos,
cantos afro-descendentes em lngua africana, cantados outrora nos
servios de minerao e publicados em O negro e o garimpo em Minas
Gerais, de Aires da Mata Machado Filho (Editora Itatiaia, 1985).
Estas so, juntas, a justificativa para minha procura; o fato derepresentantes polticos e mestres de cultura serem ainda hoje
desejados pelas sociedades-platia. Minha busca no solitria.
Mesmo numa parfrase de nossa ementa, as crises da tica
resultadas da atual configurao das sociedades modernas influenciam
no s a literatura de agora presente em O movimento pendular, de
Alberto Mussa como nosso entendimento da msica africana
popularizada desde os anos 60aqui falamos de Miriam Makeba e suas
experimentaes entre blues, o gospel e o jazz com ritmos africanos,
brasileiros, caribenhos
Entre as caractersticas da literatura contempornea est se
evidenciando um entendimento da arte que nos precede, da tradio.
uma tentativa de entender a contemporaneidade sob uma leitura de
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fluidez, uma aproximao entre tempos, em interpenetrao da tradio
com o novo. Nos termos de T. S. Elliot,
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significao
sozinho. Seu significado e a apreciao que dele fazemos
constituem a apreciao de sua relao com os poetas eos artistas mortos. No se pode estim-lo em si;
preciso situ-lo, para contraste e comparao, entre os
mortos.6
O crtico fala de uma compreenso em princpio, de esttica, no
histrica, mas no sentido de que a significao da obra de arte
tradicional, integrante do todo cannico, coeso, fica alterada quando
outra obra de arte surge e se revela integrante da tradio, revela
em si traos, elementos e ressonncias que lhe conferem a
participao no cnone. A obra de arte nova reconhecida pelo
cnone.
Os monumentos existentes formaram uma ordem ideal entre
si, e esta s se modifica pelo aparecimento de uma nova
(realmente nova) obra entre eles. A ordem existente
completa antes que a nova obra aparea; para que a ordem
persista aps a introduo da novidade, a totalidadeda
ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer
levemente, alterada: e desse modo as relaes,
propores, valores de cada obra de arte rumo ao todo,
so reajustados; e a reside a harmonia entre o antigo eo novo.7
Essa reintegrao do novo ao tradicional que o reconhece que
rearranja toda a tradio. Cada obra pertencente deve novamente
reencontrar seu lugar.
Os elementos que compem a teoria de Alberto Mussa me alertam para
a identidade entre onas. As competncias e experincias
compartilhadas dentro do ritual, pela arte representativa, so
caractersticas ancestrais. Chego suposio de que, por uma viabastante imaginosa, a histria de Miriam Makeba seja um desdobramento
do instinto recalcado de ona do povo aimor, assim como foi a fala
de Cunhambebe. Grosseiramente, a animalidade de Miriam se revelaria
no vestido e nas atitudes da cantora.
O recebimento dessa idia permite que eu faa agora um estudo em
torno do parentesco de Miriam Makeba com o apresentado na teoria
aimor, inclusive sob as influncias do que ocorreu no passado,
repetindo-se na histria dos aimor e na biografia da cantora.
6ELLIOT, Tomas Stearns. Tradio e talento individual. In Ensaios. Traduo de Ivan
Junqueira. So Paulo: Art Editora, 1989.7ELLIOT, Idem.
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Refiro-me ao banimento de entre os seus, que expe a semelhana,
tambm, da fragilidade do poder constitudo (por no ser entendido, o
diferente foi banido, atacado, destrudo) tanto dos africneres de
Johanesburgo quanto com os ndios congraados nos tesos marajoaras.
A reintegrao do ltimo grupo aimor remanescente a uma tribo
reconhecidamente solidria revela mais uma sutileza desta comparao:os diferentes, ambos, muitos anos depois do desacordo, so
reintegrados ao convvio entre os seus povos sem que acontecesse uma
situao de aceitao do diferente. Ao contrrio, quase se pode dizer
que os remanescentes aimor foram reintegrados por um fechar de
olhos, no seria por mrito nem por piedade, mas por que a sociedade
no quis mais enxergar neles nenhum trao da ferocidade que lhes
destacou e que impossibilitava o convvio.
Ancestralidade
Na particular coincidncia das onas, posso falar que as
personalidades construdas permitiram aos ndios incorporados e
cantora, identificar-se em representao; as peles de ona permitiram
agir como quem mostra o gesto ancestral e o torna particular, como se
fosse uma reapropriao do poder ancestral.
No exerccio filosfico seguinte ao reconhecimento das
competncias especiais, o povo aimor aprendeu seu lugar no mundo dos
tesos. Hannah Arendt diz:
J que eu no sou um ser criador de mundo, talvez minha
natureza seja a de um ser destruidor do mundo.8
A professora falava sobre as bases do niilismo. Podemos aqui
enxergar o embate que promoveu a compreenso do ndio que incorporava
um esprito ancestral antropofgico de sua prpria essncia animal. A
ancestralidade, neste caso de reconhecimento de identidade, foi
fundamental para formar-se a ruptura, o ndio percebeu que ele mesmo
era especial porque seus ancestrais no eram como os ancestrais dos
outros. Eles tinham um poder diferente.
O poder era tambm um segredo, como uma compreenso de que a
ancestralidade, assim representada, dava ao ndio que incorporava
onas algo que no podia ser compartilhado de modo raso, simples,direto e fcil. S pde ser sugerida a diferena, at que se tornasse
presena palpvel, no sentido que nos d Gumbrecht,9da produo de
presena, no por inferncia de sentido, no por interpretao, mas
por manifestao mgica, de possesso, de consubstanciao.
Conhecimento tradicional e ancestralidade so essenciais a este
aprendizado, sem melindres nem ressentimentos, o escritor de hoje
pode dar-se a teorias do que foi antes e no que parece ter-se
configurado agora.
8ARENDT, Hannah. A dignidade da poltica.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993.9GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de presena, perpassada de ausncia, sobre msica,
libreto e encenao. In: Como falar de literatura hoje? Revista Palavra, n7. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 2001.
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Invocao
Necessariamente, para a aproximao com os ancestrais, a tradio
deve ser invocada. O ritual envolve alguns aspectos de gesto de
autoridade, de encanto musical e de rito (as regras do culto
mantinham a ordem e as prioridades, e parecem ser invocadas a cadanecessidade). Neste ritual de invocao haveria um apaziguamento da
natureza primitiva, nos sacrifcios rituais e no desenrolar da
cerimnia, os aspectos de invocao so ferramentas de uso, manuseio
e artifcio legado apenas a iniciados, as onas eram eventos raros.
Ao pensar nas situaes-limite de Jaspers
Em que o homem levado a filosofar tais como a morte,
a culpa, o destino, o acaso, uma vez que em todas essas
experincias a realidade mostra-se como algo que no
pode ser evitado, que no pode ser dissolvido pelo
pensamento. O homem chega conscincia de que
dependente no de algo em particular nem de alguma
limitao em geral, mas do fato de que ele .10
Percebemos a invocao em lugar de gatilho para que os ndios
especiais, incorporados de onas devoradoras de homens, reconhecessem
a si mesmos e admitissem a irreversibilidade de seu estado
diferenciado, como irreversvel a descendncia.
Nas palavras de Gumbrecht, na cultura de presena, do ponto de
vista ideal, o corpo possudo pelo esprito, pelo demnio, pelo
deus; A possesso, no cotidiano, no rasura, nfase,11pois enftico que o ancestral seja uma ona, o iniciado no tinha como
fugir a sua natureza de ona, ao contrrio, o caso de assumir a
diferena. Foi o que fizeram, os ndios e Mama frica, ela tambm,
provvel descendente.
O deus da transformao aquele que pode transitar entre o vivo e
o morto, entre os lugares que no h verdade nem bem, no h mal; o
que h a contingncia.12Uma dada configurao de coisas que est
colocada e com a qual lidamos.
Segundo Arendt, o ritual de invocao dos ancestrais permitia uma
tal reconstruo do mundo a partir da conscincia [que
se igualaria] a uma segunda criao, j que nessa
reconstruo seu carter contingente, que ao mesmo
tempo seu carter de realidade, seria removido, e o
mundo no mais apareceria como algo dado ao homem, mas
como algo criado por ele.
10ARENDT, op.cit.11GUMBRECHT, op. cit.12LINS, Ronaldo Lima. Anotaes de aula. Rio de Janeiro, 2 semestre de 2008.
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A grande estranheza advm da coisa diferente, da situao das
onas: mais antiga, primitiva, instintiva.
Ainda segundo Gumbrecht, o ritual sagrado um tipo especial de
encenao cujo papel central no tem um s ocupante. um tipo de
experincia que no pode ser justamente analisada segundo a dimenso
da produo de sentido (no mbito interpretativo) ou segundo aidentificao de sentido (da hermenutica). O fascinante o que
permanece excludo e ainda assim postulado (uma sugesto, apenas): o
esprito invocado.
No esporte, a substncia dada pela presena dos
jogadores no campo, toda a ateno e tenso dirigem-se
possibilidade de emergir uma forma a partir da interao
dos corpos presentes. Na pera, j que o libreto anuncia
antes a ao, a ateno e a tenso do pblico, dos
cantores e dos msicos est voltada para a emergncia da
substncia sonora.13
Na invocao, o ancestral ona , perante o esforo ritual dos
aimor e o canto de Mama frica, o que reflete e representa as
situaes de identidade nas sociedades.
14
Identidade
A teoria aimor se adequa ao que fez Miriam Makeba durante seu
exlio e depois, quando finalmente retornou ao pas em que nasceu.
Miriam passou 31 anos aprendendo a defender sua cultura de ona em um
mundo que teme e admira onas. Depois, j envelhecida, reintegrou-se
ao modus vivendida frica do Sul apenas porque pretendia viver ainda
mais. Tentava, com um centro de reabilitao para jovens, cultivar na
13GUMBRECHT, op. cit.14 De BRY, Theodor. Gravura em cobre, dana ritual dos Tupinamb. No centro, trs
pajs com mantos de penas, cintos e diademas. s/d.
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memria a histria e a msica de seus ancestrais, pela educao. Sua
prpria imagem na ao poltica, na constante atividade para o
resguardo dos direitos humanos, mantm a Miriam Makeba em pleno
combate. Seu legado foi a msica, a fora e a persistncia com que
atuou, incessantemente. Assim como os aimor deixaram seu legado
cultural pelo sangue, pela herana, cujo fiel indicador depermanncia foi o apetite de Cunhambebe.
Na pretenso de esboar um entendimento de aspectos na histria e
na identidade de onas, analiso brevemente a situao de violncia em
que ocorrem tanto o rompimento do espao dos tesos (quando ndios
atacam e matam em outros tesos), quanto o banimento de Miriam Makeba
e dos ndios aimor. A marca da luta pela fundao de um povo livre
seria tambm a revelao da
Teoria do poder poltico de Maquiavel, segundo a qual o
ato de fundao em si, isto , o incio consciente de
algo novo, requer e justifica o uso da violncia. 15
Num jogo de cumprir e esquivar-se a regras, vo os aimor e a
cantora criando e ajustando sua identidade, suas ferramentas so a
arte e algum pensamento filosfico e intuitivo. Meio sob a vigilncia
das sociedades com que conviviam, muito por inveno e alegoria. Essa
situao de isolamento desencadeou um processo de acirramento de
diferenas.
A propsito da solido, do isolamento, do banimento, penso na
concepo de Lucien Goldmann,16 comentando sobre Lukcs, da
necessidade dos homens de manter contatos concretos com outroshomens, porque, sem isso, no seriam capazes de manter sua prpria
humanidade.
Servido
Uma situao especial se coloca sobre o pblico (os ndios
congraados que apenas assistiam s cerimnias da pixuna e a platia
de Miriam Makeba), a do fetichismo da ona, do poder e da
ferocidade contidas e provveis, na representao musical e na
incorporao significativa para o contexto religioso dos tesos.Em comentrio sobre Memrias pstumas de Brs Cubas, Abel Baptista
fala da situao de perda de platia em relao a um narrador morto;
porque no tem platia ou porque no lhe importa o que pensa a
platia. Destaco.
A metfora da platia descreve essa perda: no so os
mortos que perdem a platia, so os vivos que perdem a
possibilidade de se constiturem platia relativamente
aos mortos. No h platia descreve a situao anmala
15ARENDT, op. cit.16GOLDMANN, Lucien. O novo romance e a realidade. InA sociologia do romance. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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em que os espectadores olham, assistem, apreciam; mas
aos atores, sabendo que eles olham, assistem, apreciam,
lhes indiferente o resultado da assistncia e da
apreciao. A platia responde, talvez aplauda os
atores que em caso algum regressam ao palco para
agradecer.17
A situao da platia de entrega ao narrador morto, o pblico
est meio em lugar desprezvel porque tambm desimportante para o
desenrolar da histria. Assim como parece acessrio cantora e aos
aimor. O caso que lembra bastante a servido voluntria,
estabelecida nos termos de Etinne de la Botie,18pela evidncia de
que a relao entre a platia e o ditador-cantor-sacerdote de
submisso, de jugo, com a permisso e o consentimento do submetido,
do dominado: a prpria platia. S a capacidade de um sacerdote-
cantor pode autorizar esta servido. A cada gesto a situao
domintante do ritual vai-se construindo.
Os objetos iluminados perdem seus nomes: sombras e
claridades formam sistemas e problemas particulares que
no dependem de cincia, que no aludem prtica, mas
que recebem toda sua existncia e todo o seu valor de
certas afinidades singulares, entre a alma, o olho e a
mo de uma pessoa nascida para surpreender tais
afinidades em si mesma, e para as reproduzir. A mo
intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na
experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras ofluxo do que dito.19
Assim, tambm entra o narrador benjaminiano na construo da
audincia para espetculo e representao de onas. A platia,
encantada, sem reconhecer nada no entorno, quase em total escurido
(o espetculo s ilumina o palco, as cerimnias da pixuna acontecem
noite), entrega-se ao domnio do narrador, naturalmente capaz de
recriar no espectador a imagem alegrica necessria e condutora do
ritual.
Ora, o caso do encanto na apresentao musical ou no ritual,depende tremendamente dos momentos de silncio, da chamada em
ateno. As pausas, como a despertar para o seguinte momento, refazem
os entrechos da pera, novamente como j destacava Gumbrecht, o
momento de silncio antes da abertura cria a descontinuidade entre o
cotidiano e a encenao.20
17BAPTISTA, Abel Barros. Liberdade da forma.In Suplemento Literrio. Belo
Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, abril de 2008.18BOTIE, Etienne de la. Discurso da servido voluntria. So Paulo: Brasiliense,
2008.19BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo:
Brasiliense, 1994.20GUMBRECHT, op. cit.
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A voz dos ndios e da mulher comanda; o gesto que oferece em
ritual e apresentao, em retorno, recebe a ateno dedicada e
rendida do pblico; o ato que seria de paz termina com a conquista, a
libertao, a unio do homem com Deus, do homem com a natureza, o
sensualismo e as canes ancestrais.21
Herana
O corpo em relao com o contexto que propicia os estatutos de
autoridade. Se o corpo estiver ausente, se no experimentar nem
desejar, no influir no contexto, se no produzir nem compreender as
metforas produzidas, no ser capaz de compreender o prprio
contexto.22Falamos aqui de herana e de como as competncias herdadas
possibilitam s onas a permanncia nos instintos descendentes.
As regras de convivncia em comunidade so estabelecidas neste
contexto ritual que, por fim, fundamenta ou representa a moral
entre os homens. Esse conjunto de regras garante a convivncia entre
os diferentes povos; asseguram essa convivncia; sustentam as
relaes entre os homens. De outro modo, isolados ou corrompidos,
todos os homens seriam to frgeis quando os aimor remanescentes.
Os elementos desagregadores, que afastaram as onas da sociedade
em que viviam, foram suas competncias especiais, foi o
reconhecimento da diferena dos aimor e de Miriam Makeba H uma
sugesto de que ser preservado o conhecimento em herana. Esta sim,
obra de inveno e tcnica, mais que de inspirao:23
Se a essncia de toda ao, e em particular a da ao
poltica, fazer um novo comeo, ento a compreensotorna-se o outro lado da ao, a saber, aquela forma de
cognio, diferente das muitas outras, que permite aos
homens de ao (e no aos que se engajam na contemplao
de um curso progressivo ou amaldioado da histria), no
final das contas, aprender a lidar com o que
irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que
inevitavelmente existe.24
A cantora e os aimor passaram provavelmente por esta compreenso
e resolveram, numa atitude de inteligncia e de preservao,reintegrar-se. Um, porque tenha disfarado sua natureza, a outra,
porque tenha admitido que precisava educar para restaurar a natureza
das crianas. Garantindo o futuro, pelo menos. A promessa de Mama
frica sobre cantar at o fim da vida demonstra ainda mais sua
persistncia em permanecer. As percepes da mulher mais velha (na
teoria aimor), primeiro em manter consigo o homem para provvel
reprodutor, depois em reencontrar a fala e a capacidade de apreciar a
21MARCUSE, Paul. Eros e civilizao.
22GUMBRECHT,op. cit.23SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. So Paulo: Novas Metas, 1986.24ARENDT, op. cit.
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metfora, conseguir disfarar sua prpria identidade em linguagem
para reintegrar-se ainda sabedora de sua natureza. O modo convicto
com que Cunhambebe aprecia a gostosa carne de isso, todos estes
indcios so reveladores da permanncia cultural.
Novamente o caminho, assim como o tempo, cclico. Neste lugar doestudo necessria uma pausa, porque estamos de volta ao comeo e o
recorte agora se detm.
O crculo que os lgicos denominam vicioso; sob este
aspecto, talvez, a compreenso se assemelhe filosofia,
cujos grandes pensamentos sempre giram em crculos,
engajando o esprito humano em algo que no passa de um
interminvel dilogo entre ele mesmo e a essncia de
tudo o que .25
Seria admitir que camos num dos desenhos de Escher. Seria uma
passagem quase em brincadeira (circularidade) porque seriam um
esforo em reconhecer e aprender com a tradio. A recomear o
crculo desse raciocnio, precisaria convocar meus ancestrais,
evidentemente em um ritual sagrado, musical, alegrico, at que
pudesse, vislumbrando a mim mesma no que herdei e intu, reconhecer
meus mestres e aprender com eles, novamente reescrever sua herana,
minhas tradiesE termino assim mesmo, em contnuo.
26
25ARENDT, idem.26ESCHER, Mauritus Cornelis. Rpteis. Litogravura do lbum Back in Holland, 1943.
Em http://www.mcescher.com.
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4.Referncias bibliogrficas
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africano. 10 de novembro de 2008. Em HTTP://apf.google.com.
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Dumar, 1993.
BAPTISTA, Abel Barros. Liberdade da forma. In Suplemento Literrio.Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,
abril de 2008.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e tcnica, arte e poltica.
So Paulo: Brasiliense, 1994.
BOTIE, Etienne de la. Discurso da servido voluntria. So Paulo:
Brasiliense, 2008.
DE BRY, Theodor. Gravura em cobre, dana ritual dos Tupinamb. No
centro, trs pajs com mantos de penas, cintos e diademas. s/d.
ELLIOT, Tomas Stearns. Tradio e talento individual. In Ensaios.
Traduo de Ivan Junqueira. So Paulo: Art Editora, 1989.ESCHER, Mauritus Cornelis. Rpteis. Litogravura do lbum Back in
Holland, 1943. Em http://www.mcescher.com.
GOLDMANN, Lucien. O novo romance e a realidade. InA sociologia do
romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de presena, perpassada de
ausncia, sobre msica, libreto e encenao. In Como falar de
literatura hoje?Revista Palavra, n 7. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
2001.
LINS, Ronaldo Lima. A construo e a destruio da esttica.
Palestra de abertura do seminrio Ps-modernismo: a arte na cena
contempornea. Em 3 de outubro de 2007.
LINS, Ronaldo Lima. Anotaes de aula. Rio de Janeiro, 2 semestre de
2008.
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MAKEBA, Miriam. Live at Berns Salonger. DVD com a apresentao na
ntegra, de 1967. Estocolmo: 2003.
MUSSA, Alberto. O movimento pendular. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. So Paulo: Novas Metas,
1986.
ZUMA, Jacob. Miriam Makeba: uma patriota. Johanesburgo: LUSA Agncia de Notcias de Portugal, em 11 de novembro de 2008.
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