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7/29/2019 Madame Bovary - Uma anlise freudiana
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Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 207-224, 2010
Consideraes sobre Psicanlise e literatura:uma leitura de Madame BovaryConsiderations aboutPsychoanalysisand Literature:
areading ofMadameBovary
Thalita Lacerda Nobre*
Resumo
Neste artigo apresento, na obra de Freud e na contribuio de outros autores
a importante ligao entre Psicanlise e literatura. Fao tambm uma breve
passagem por outras formas de arte que podem auxiliar na compreenso da
psique humana. Alm disso, exponho algumas passagens da obra prima de
Gustave Flaubert, Madame Bovary no intuito de discutir acerca do estilo de
escrita do autor e extrair contribuies para o entendimento psicanaltico.
Palvras-chave: psicanlise, artes, literatura, Madame Bovary, Gustave
Flaubert.
Abstract
In this article I present, from Freuds work and the contribution of other
authors, the important connection between Psychoanalysis and Literature.
I briey touch upon other art forms that can further understanding of the
human psyche. Furthermore, I showcase some excerpts of Gustave Flauberts
most important literary work, Madame Bovary, purporting to discuss the
authors writing style, and derive contributions toward psychoanalytical
understanding.
Keywords: Psychoanalysis, Arts, Literature, Madame Bovary, Gustave
Flaubert.
* Doutoranda em Psicologia Clnica pela PUC-SP, Especialista em Gesto Estratgica deRecursos Humanos pelo Depto de Ensino e Pesquisa do Exrcito brasileiro/UniversidadeCastelo Branco (Ctedra Unicef), Profa. e supervisora de estgios na UNIP-Santos, Supervisorade cursos credenciada FUNDAP. E-mail: thalita_l@yahoo.com.br
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O presente artigo busca revelar a importante contribuio que as
obras literrias podem oferecer ao entendimento psicanaltico, j que trazem
consigo, muitas vezes, informaes que possibilitam ampliar a compreenso
a respeito da psique humana.Para tanto, escolhi como norteador da discusso a que se presta este
trabalho, o estilo de escrita de Gustave Flaubert, mais especicamente na
obra prima Madame Bovary, que pode ser considerada como fundadora
do realismo francs1. Trata-se de uma obra paradigmtica que inuenciou
diversos escritores, inclusive os brasileiros e portugueses como Machado
de Assis, Alusio de Azevedo e Ea de Queirs, por exemplo.
Cada artista, a sua prpria maneira, revela a inuncia da cultura,
da organizao social e de sua prpria constituio psquica nas obras que
compem. Para os psicanalistas, isto pode ser uma importante ferramenta
no entendimento das manifestaes do inconsciente.
Tal a importncia que se pode extrair das obras literrias que alguns
psicanalistas consideram fundamental a ateno s criaes artsticas no
estudo da Psicanlise. Birman um deles e faz a seguinte considerao:Esta articulao entre saber psicanaltico e tradio literria um tpico
fundamental, uma das condies de possibilidade para que se empreenda
a metodologia psicanaltica (Birman, 1991, p. 106-7).
Assim, possvel extrair da literatura preciosos aspectos que veem
auxiliar a compreenso a respeito da psique humana. Alm disso, a Psica-
nlise exposta por Freud desde os seus primeiros ensaios, encontrou no
formato de escrita literria um meio de se tornar acessvel aos leigos.
A partir deste raciocnio, entendo haver importncia em expor,
primeiramente, alguns entendimentos de Freud a respeito da comparao
e da utilizao da literatura em Psicanlise. Em um de seus primeiros traba-
lhos intitulado Estudos Sobre a Histeria(1895, p. 183-4), Freud arma, ao
1 Como Madame Bovary uma das obras referncia da escola literria realista, detalhar ahistria ultrapassaria os limites propostos por este artigo. Assim, para maiores detalhes, remetoo leitor obraMadame Bovary traduzida que utilizei na confeco deste artigo: FLAUBERT(1857), 2005.
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discutir o famoso caso Elizabeth Von R., que seus historiais clnicos sobre
histeria se aproximam mais das obras literrias do que de casos descritos
em cincia mdica. Em suas palavras:
...ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo paream
contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca de seriedade da
cincia. Tenho de consolar-me com a reexo de que a natureza do assunto
evidentemente a responsvel por isso, e no qualquer preferncia minha.
Com isso, compreendo que por mais que a escrita mdica exigisse
uma articulao mais descritiva e menos reexiva, o criador da psicanlise,
com sua sensibilidade pessoal, oferecia um novo modelo de compreenso
da psique. Assim, Freud, criava uma nova cincia, a Psicanlise, cujas bases
no so palpveis, mas carregadas de subjetividade.
Por isso, a partir da exposio de Freud, entendo que o inconsciente,
objeto de estudo da Psicanlise, no poderia ser descrito e relatado objeti-
vamente, e a aproximao com a literatura foi, portanto, a sada encontrada
pelo mdico vienense, para compreender e tornar compreensvel o que
pretendia estudar.
Alm de fazer uso do estilo romanesco para descrever seus histo-
riais clnicos, desde o incio de seu percurso como psicanalista, Freud
tambm fez uso das manifestaes artsticas para compreender o psiquismo
humano e assim propor alguns conceitos de sua teoria como, por exemplo,
o entendimento a respeito dos delrios e dos sonhos expostos na Gradiva
de Jensen(1907[1906]/1996) ou acerca da escolha narcsica de objeto em
Leonardo da Vinci e uma lembrana de sua infncia (1910/1996) ou
at mesmo a respeito do desejo parricida por meio da obra de Dostoievski
(1928[1927]/1996), entre outros.
Ainda no decorrer da primeira dcada do sculo XX, Freud reitera
seu interesse a respeito das obras de arte e sua importante contribuio
Psicanlise. Escreve ele:
Tenho observado que o assunto obras de arte tem para mim uma atrao mais
forte que suas qualidades formais e tcnicas, embora, para o artista, o valordelas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente
muitos dos mtodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto
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a m de me assegurar da indulgncia do leitor para a tentativa que aqui me
propus. No obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso
efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqncia, a
pintura. Isto j me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando
apreend-las minha prpria maneira, isto , explicar a mim mesmo a que
se deve o seu efeito. (Freud, 1913, p. 217)
Neste sentido compreendo que Freud, como psicanalista, no se
atentava forma por si s em uma obra de arte; o que o importava, essen-
cialmente, era o contedo revelado por meio de determinada forma. Para
ele, o impacto trazido pela manifestao artstica o possibilitava sentir e
decodicar a mensagem que o autor transmitia ao espectador.No que se refere a esta questo, possvel ilustrar que, especi-
camente no romance Madame Bovary, Flaubert deu grande importncia
tanto forma quanto ao contedo, visando sempre a perfeio na escolha
das palavras que compuseram a obra literria. O autor sentia-se inquieto e
passava dias buscando uma frase ou um adjetivo, como ele mesmo confessa
por diversas vezes em suas Cartas exemplares (2005).
A respeito do estilo de escrita peculiar de Gustave Flaubert e sua
obra prima, Kehl considera que o objetivo de escrever um romance num
estilo to simples que o narrador praticamente desaparecesse, tomou quase
cinco anos de trabalho a Gustave Flaubert, com sucesso o realismo de
Madame Bovary causou escndalo (Kehl, 1998, p. 126).
O modo como o texto se apresenta, neste romance, inaugura um
estilo especco, cuidadoso com a mensagem que se pretende transmitirao leitor. Neste sentido, Flaubert conseguiu o que esperava, pois ele exps
de modo acessvel suas crticas poca, tornando-se pioneiro no realismo.
Assim, considero que o raciocnio de Flaubert em seu percurso de
construo de Madame Bovary marcado por um paradoxo: o sofrimento
decorrente da busca por uma composio perfeita, o permitiu criar algo
simples, cuja mensagem no foi e no difcil de ser compreendida.
O prprio autor pode perceber isso aps a publicao do romance, tanto
que em uma de suas cartas ao amigo Louis Bonenfant no nal de 1856,
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comentou o seguinte: A Bovary prossegue acima de minhas esperanas.
Somente as mulheres me olham como um homem horrvel. Acham que
sou verdadeiro demais (Flaubert, 2005, p. 158).
Desta forma, ao descortinar os sentimentos mais profundos quecoexistem na psique humana, o autor se torna verdadeiro, expe o que ele
sente e situa este sentimento na cena da realidade.
Os personagens do romance de Flaubert muito se aproximam da
realidade, respeitando a organizao cultural da poca e, at mesmo, da
atualidade , o que, de certa forma, os simplicam para o leitor, os apro-
ximam de seus prprios sentimentos. A rdua tarefa que cabe ao autor est
localizada exatamente em conceb-los, construir personagens ctcios que
carregam consigo sentimentos humanos reais.
Estes sentimentos transmitidos pelo autor na obra de arte e desper-
tados naquele que a admira, interessavam a Freud que, recorreu s obras
artsticas com o intuito de obter respostas as questes cruciais da Psican-
lise. Em O Moiss de Michelngeloele escreve o seguinte:
A meu ver, o que nos prende to poderosamente s pode ser a intenodo artista, at onde ele conseguiu express-la em sua obra e fazer-nos
compreend-la. Entendo que isso no pode ser simplesmente uma questo
de compreenso intelectual; o que ele visa despertar em ns a mesma
atitude emocional, a mesma constelao mental que nele produziu o mpeto
de criar. (Freud, 1913, p. 217-8)
Assim, o criador da Psicanlise, em uma tarefa de arquelogo da
psique humana, busca a criao de sentido por meio do que est sendo
mostrado pelo autor, partindo do pressuposto de que por trs de qualquer
obra artstica, h uma psique criadora com uma histria libidinal e identi-
catria cujos motivos prprios, levaram criao.
A respeito deste binmio constitudo por autor-obra e vice-versa,
mais especicamente relacionado s obras literrias, Green (1973/1975)
destaca que o processo de leitura est ligado a pulses parciais sublimadas,
j que tanto os processos de ler quanto de escrever so tarefas aprendidas,
efeitos da inuncia civilizatria sobre os sujeitos.
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Segundo o autor, especicamente a leitura, pode estar relacionada a
impulsos voyeuristas, mas de um modo peculiar, pois o prazer experimen-
tado pelo leitor diferente do prazer obtido por meio do objeto admirado
no voyeurismo, devendo este passar, antes, pelo obstculo da escrita.Green ressalta, ainda, que o texto, assim como o objeto contemplado
no voyeurismo, no tem por si s, signicado algum, at que adquira
representao na psique do sujeito. E na literatura isto ocorre quando o
indivduo, em sua leitura, liga as palavras escritas de modo que o texto
adquira algum sentido.
Um exemplo simples do signicado da escrita para o leitor pode ser
obtido quando se l algo em um idioma no qual no se conhece. Sabe-seque o autor pode ter querido, com todo o cuidado e dedicao, passar
mensagens para os leitores, porm o idioma estrangeiro ao sujeito o torna
ininteligvel, impedindo-o de realizar algo fundamental que ligar as letras
e formar palavras para da se extrair qualquer signicado.
Green (1973/1975) vai mais alm com o racioccinio a respeito do
voyeurismo do leitor: ele compreende que, a partir do momento em que o
material escrito adquire signicado para o eu do sujeito, este passa de umaposio voyeurista ativa (como denominada pelo autor), para uma posio
passiva, j que os contedos despertados no sujeito que l a obra, pertencem
ao prprio leitor e no ao texto, por si s. Assim, o indivduo que olha o
material escrito, deixa-se ento ser lido por ele, reetido, tornando-se a
obra literria um espelho do leitor.
Entretanto, surge a questo acerca do espao que cabe ao autor da
obra, aquele que pode unir palavras para oferecer ao leitor a possibilidade,
o convite decodicao do material escrito, que passa ento, a ganhar
sentido no eu do sujeito que l.
A este respeito, possvel compreender, em certo sentido, que h um
quantuum de exibicionismo nas palavras que compem o texto. O escritor
torna-se exibicionista na medida em que expe quele que l, seu prprio
eu, seus sentimentos mais profundos em um formato artstico, neste caso,
em formato de palavras que podem ser unidas pelo leitor como uma espcie
de quebra-cabeas organizado ou no.
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No que tange ao aspecto consciente, Flaubert considerava que a arte
s poderia ter algum sentido se no servisse em nada ao artista, se descon-
siderasse o eu do autor. Para ele, a obra endereada somente ao leitor, ao
outro. Em 1852, ele expe a seguinte opinio: O que voc faz no paravoc, mas para os outros. A arte no tem nada de esclarecer para o artista.
Tanto pior se ele no gosta do vermelho, do verde ou do amarelo; todas as
cores so belas, trata-se de pint-las (Flaubert, [1857]2005, p. 73).
Desta forma, a cena confeccionada na criao artstica tarefa do
autor que, por meio da composio das cores cria a obra como um todo. Ela
originada no eu daquele que a constri e portanto, as cores que a compe
so resultantes de sua escolha individual.Em Madame Bovary, algo mais profundo pode estar evidenciado, algo
que o autor no se orgulha em expor, um conjunto de cores que usualmente
no se v nos costumes burgueses invadidos pelas convenincias sociais,
mas as cores que Flaubert entende ser importante mostrar. Assim a opinio
explicitada por ele demonstra, a necessidade de tratar de questes psiquicas
e culturais difceis de serem tratadas.
Tambm, a partir da compreenso de Flaubert, possvel que umpensamento extremo seja trazido baila: a possibilidade do autor se
resguardar do impacto da realidade, ao criar personagens ctcios. A partir
da exposio do autor e do prprio estilo de escrita que se apresenta em
Madame Bovary, compreende-se a tentativa deste em manter-se afastado
dos vcios e dos sentimentos das personagens.
Kehl compreende que os escritores ...no escrevem para se curar
e sim para armar sua prpria anormalidade (Kehl, 1996, p. 88). Desta
forma, a produo incorpora a importante misso de ser uma espcie de
anteparo do autor frente a realidade percebida por seu inconsciente. A obra,
ao mesmo tempo que expe os aspectos anmicos do sujeito criador, tambm
o assegura diante dos perigos dos mundos interno e externo.
Diferente das produes humanas da mais tenra infncia, que
envolvem o outro como objeto de hostilidade ou a ser presenteado, a
produo artstica e nesse caso, a literria , no precisa servir ao outro
como objeto alvo, mas pode estar a servio, exclusivamente, do eu do autor.
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Na obra de Gustave Flaubert, entendo que a razo principal da
produo estava localizada no leitor, no outro que gura como aquele
que recebe a mensagem de sua obra. Aquele que tem acesso aos obscuros
sentimentos humanos envolvidos pela carapaa das convenincias culturaisda poca.
Neste sentido, a frase emblemtica que Flaubert usou, quando foi
questionado a respeito de sua personagem de criao (Madame Bovary
cest moi!), oferece boas pistas sobre esta relao peculiar de exposio
do seu prprio eu para o leitor, criando uma conexo entre este dois eus,
causando impacto na sociedade da poca.
Gustave Flaubert, em janeiro 1852 escreveu uma carta a Louise
Colet2 expondo a seguinte opinio a respeito dos textos literrios que lhe
atraam a ateno: as obras mais belas so as que tm menos matria,
mais a expresso se aproxima do pensamento, mais a palavra cola em cima
e desaparece, maior a beleza (Flaubert, [1857]2005, p. 54).
Desta forma, Flaubert defende o modo de escrita que oferece liber-
dade ao leitor, para que ele possa sentir-se, de algum modo, tocado pelo
texto exatamente pela amplitude de sentimentos e pensamentos ofere-
cidos por ele. A palavra, ento, torna-se o veculo pelo qual se faz possvelcompreender o sentimento, como uma espcie de coadjuvante diante da
expresso do escrito.
O autor de Madame Bovary, com sua sensibilidade, entendia que a
escrita, para causar impacto, deve ser harmnica. Em certo momento ele
escreveu: tanto no estilo como na msica: o que h de mais belo e mais
puro a pureza do som (Idem, p. 72).
Neste sentido, Mezan (1998) compreende que a confeco de umtexto deve seguir os moldes idnticos a uma composio musical. Em
Escrever a clnica (1998), ele parte do exemplo do primeiro ato das
Bodas de Fgaro3tocada por Antonio Salieri4 em determinado momento
2 Poetisa sem destaque e amante de Flaubert, trocava correspondncias regularmente como autor, auxiliando-o na escrita de seus romances.3 pera cmica composta em quatro atos por Wolfgang Amadeus Mozart entre os anos de1785 e 1786.4 Compositor operstico italiano, nascido em 18 de agosto de 1750 e falecido em 7 de maiode 1825. Comps diversas peras a pedido do imperador Jos II durante o perodo do imprioRomano-Germnico.
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do lme Amadeus (1984). Na ocasio apresentada, o artista executou o
conjunto de notas respeitando o tempo e a melodia. Entretanto, quando a
pea foi executada por Mozart, este imprimiu um ritmo mais animador s
notas que a compunha.Desta forma, Mozart demonstrou sua genialidade, primeiro ao conse-
guir ouvir o conjunto de notas e depois em transform-las em uma melodia
mais interessante, mais atrativa ao sujeito ouvinte.
Mezan complementa este raciocnio comparando que a melodia resul-
tante de um conjunto de notas musicais se compara msica da composio
de palavras que formam um texto. Escreve ele:
No caso da msica e da linguagem, de um texto falado ou escrito, existe uma
sucesso, porque o discurso se desdobra no tempo; e portanto possvel
comparar de forma mais visvel, ou melhor, mais audvel, o desenrolar de
uma frase musical com o de uma frase da lngua cotidiana. (Mezan, 1998,
p. 191)
Assim, tanto a msica como o texto escrito trazem consigo uma
espcie de melodia, uma forma impressa pelo autor que vai despertar no
leitor sentimentos diversos, de acordo com a forma pela qual as notas so
dispostas (na msica) ou as palavras (no texto escrito).
Utilizando a compreenso de Flaubert a este respeito, o autor permite
ao leitor (ou ao ouvinte) a possibilidade de degustar o som do material
produzido. Quanto mais puro o som e com relao ao texto, quanto
melhor o casamento entre palavras , maior a probabilidade de cativar
aquele que acessa a obra.
Em Madame Bovary, entendo que Flaubert mescla velocidades e
ritmos diferentes ao longo do romance, passando, assim, a veracidade que
desejava apresentar ao narrar a saga de sua protagonista.
Como exemplo destas variadas nuances de ritmos que se fazem
presentes no texto de Flaubert, possvel explicitar a diferena entre dois
perodos distintos da obra: o que sucede o casamento entre Ema e Carlos
e o que narrado quase ao nal do romance.
No primeiro perodo, isto , aps a realizao do casamento, toda
a euforia da espera e da decorrncia dos festejos deram lugar sensao
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de vazio que havia se instalado na vida cotidiana da protagonista. Nesta
passagem, o tom melanclico e o ritmo entediante saltam aos olhos do leitor
a partir da narrao de Flaubert.
Em contrapartida, quase ao nal do romance, o autor descreve operodo em que Ema Bovary, desesperada, busca obter dos homens da
cidade a quantia devida ao comerciante LHeureux. Durante esta passagem
do romance, o que transparece ao leitor um ritmo gil, de corrida contra
o tempo.
O leitor, graas ao estilo de escrita peculiar de Flaubert, tem acesso
ao desespero e aio que acometem a protagonista neste momento da
trama. As palavras se combinam de tal forma que toda a correria exposta
por meio da linguagem textual ndada quando Ema encontra a soluo
denitiva para seus problemas, quando ingere o arsnico da farmcia de
Homais.
Assim, mais uma vez, Flaubert, o maestro de sua composio insere
uma grande pausa no som intenso da pulsao do desejo da protagonista.
Alm disso, por meio de sua melodia, ele conduz o leitor a mais um ato: osofrimento que antecede a morte de sua mulherzinha, como ele costumava
se referir personagem.
Muitas sensaes transmitidas ao leitor somente so possveis
porque Flaubert, em suaMadame Bovary, cria o estilo realista que acabou
lhe rendendo fama pela peculiaridade com que trata os acontecimentos
descritos no romance. O autor, narra a saga de sua personagem de modo
profundo e sensvel e, ao mesmo tempo, deixa o leitor sem referencial noqual se apoiar, na medida que, cada um que compe a obra carrega, ao
longo da trama, caractersticas que ora permitem a identicao por parte
do leitor, ora provocam a rejeio por seus contedos desagradveis. Nem
mesmo possvel se apoiar no narrador, pois sua presena-ausncia oferece
ao leitor a sensao de ser um espectador, a nica testemunha ocular de
uma histria que ocorre em tempo real.
Para o autor, em Madame Bovary, esse intuito de oferecer a sensao
de estar afastado proposital, pois ao mesmo tempo em que o coloca em
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um lugar de divindade, com seu poder de onipresena, o resguarda da
realidade, sem o risco de ser contaminado pela protagonista ou qualquer
outra personagem.
a partir do estilo de sua escrita, que o autor convida o leitor a cons-truir para si mesmo o romance, que complexo, livre e ausente de apenas
um caminho a ser pensado a partir da histria contada.
A respeito desta ausncia de referencial Freud, em O estranho
(1919) compreende que esta liberdade concedida ao leitor pode ser relativa.
Segundo ele:
...o ccionista tem um poder peculiarmente diretivo sobre ns, por meio doestado de esprito em que nos pode colocar, ele consegue guiar a corrente
das nossas emoes, repres-la numa direo e faz-la uir em outra, e
obtm com frequncia uma grande variedade de efeitos a partir do mesmo
material. (Freud, 1919, p. 268)
neste sentido que Flaubert consegue maestria naquilo que oferece
ao leitor. Em Madame Bovary, compreendo que esta ausncia de orien-
tao seja, no fundo, uma tentativa de levar ao espectador o sentimento
que perpassa essencialmente sua protagonista. Ele deixa transparecer,
por sua linguagem e seu estilo de escrita, o sofrimento de sua personagem
central que busca incessantemente um referencial identicatrio no qual
ela possa se apoiar. O leitor, a meu ver, tambm levado a este sentimento
de vazio identicatrio durante todo o decorrer da obra.
Assim, este referencial, este outro buscado pela protagonista etambm pelo leitor, adquire a importncia suprema no destino tanto da
personagem quanto no romance como um todo. Deste modo, tambm pode
ser considerada a Psicanlise quando aplicada s manifestaes artsticas:
como um saber que se conecta a um outro, neste caso a literatura, em busca
da ampliao de seu sentido.
Em outras palavras, assim como, desde que nascemos, buscamos
um outro que possa servir de suporte para nortear nossa existncia, o
pensamento psicanaltico, assim como Freud mesmo postulou, pode servir-
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se dos benefcios concedidos pelas criaes humanas como a literatura,
por exemplo, para que se possa enriquecer com valiosas contribuies o
conhecimento da psique humana.
A este respeito, concordo com Sampaio (2004, p. 83) quando elaescreve que no percurso de estudo da Psicanlise realizado por Freud,
...a literatura guraria como um outro, no sentido preciso de coadjuvante
da constituio de um eu, o eu indicando aqui o lugar da construo psica-
naltica inventada por ele.
Assim, possvel compreender a criao literria como um outro que
tem auxiliado, para enriquecer, desde o incio, a constituio de um saber
relacionado psique humana, o saber psicanaltico.Sampaio (2004, p. 87) complementa o raciocnio expondo que:
Poder-se-ia dizer que o poeta e, de forma geral, os escritores seriam, para
o psicanalista, seus outros, enquanto partcipes da formao do discurso
psicanaltico e da estruturao de sua prtica, fundada na interpretao.
De certa forma, os artistas, de um modo peculiar, caminhariam ao
lado dos psicanalistas, auxiliando-os na compreenso a respeito da comple-
xidade da alma humana. Um autor, ao publicar sua obra, oferece seusentendimentos acerca das questes da vida e da cultura em seu tempo ao
mundo, e os psicanalistas podem busc-la como contribuinte para ampliar
o saber a respeito da psique.
Porm, esse caminho da anlise interpretativa de uma obra literria
oferece alguns riscos, algumas armadilhas que facilmente podem conduzir
o psicanalista a uma trajetria perigosa. o risco de transformar o perso-
nagem literrio de criao do autor em algum vivo, possuidor de uma
histria libidinal e identicatria que no pode ser deduzida, j que cada
personagem possui a profundidade que seu criador lhe ofereceu.
Assim como escrito anteriormente a respeito do sentido construdo
pelo leitor que transforma letras em palavras e as une em busca de um
sentido, um signicado mobilizado no psicanalista pode ser intenso a ponto
de que este corra o risco de ultrapassar o limite entre o ser da criao, com
as caractersticas que o autor lhe constituiu e o ser da realidade, que pode
apresentar inmeras facetas.
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Os personagens de determinada criao artstica nascem no leitor, j
que este quem d sentido s palavras escritas pelo autor e constituem-se
com a liberdade de serem do modo com que ele fantasiar. Isso faz com que
a fronteira entre os seres apresente-se de modo tnue.Green (1973/1975, p. 20) compreende que a literatura oferece o
convite ao sujeito para uma espcie de delrio, um acesso a outro tipo de
realidade que no a de sua prpria vida real. Para ele: ... inegvel que uma
obra literria no pode deixar de remeter a outra realidade extraliterria,
pois podemos armar que o papel da literatura exatamente o de converter
um setor da realidade (psquica ou externa) em realidade literria.
Esta realidade, a delirante, permite que existam sentimentos e aes
das mais diversas ordens. O leitor convidado e assim o faz, mergulha
no mar inconsciente do delrio e, guiado pelo autor, constri um mundo
prprio. No raro, alguns escritores inserem em suas obras personagens
msticos ou situaes extremamente fantasiosas como as dos contos de
fadas, por exemplo, em que h a concesso ao leitor de visitar livremente
o campo do delrio presente em sua psique.Para o sujeito comum, o leitor despretencioso, a possibilidade de ser
includo no campo do delrio com a promessa de voltar realidade quando
quiser ou quando o romance acabar no oferece qualquer prejuzo. Ao
sujeito que l permitido, inclusive, que componha o personagem ctcio
com caractersticas da realidade, trazendo-o ao seu prprio cotidiano.
Entretanto, para o psicanalista, o caminho a ser percorrido exige
alguns cuidados. A obra de arte, seja ela um texto, uma pintura, uma msicaou uma escultura, serve ao psicanalista somente para a compreenso em
sua profundidade. No h a mesma liberdade concedida aos que no esto
a servio da cincia.
neste sentido que Freud, ao analisar um romance, em Delrios e
Sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]/1996, p. 185) faz o seguinte
alerta: Mas paremos por aqui, ou poderemos esquecer que Hanold e
Gradiva[personagens centrais do romance de Jensen]so apenas criaes
da mente de seu autor.
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Nesta ocasio, Freud percebe o caminho perigoso de transformar
personagens ctcios em seres humanos da realidade e, antes que sua
anlise ultrapasse o limite da criao do autor, pe m s suas interpreta-
es neste ensaio.A obra prima de Flaubert torna-se instigante na medida em que o
leitor parece enxergar uma espcie de permisso para fantasiar e incluir nos
personagens algum acabamento pessoal. Um exemplo disso o momento
em que a protagonista Ema Bovary5, aps casar-se e mudar de cidade,
passa por todo o perodo de sua gestao esperando dar luz um menino.
Quando seu marido Carlos6, que faz o parto exclama com alegria: uma
menina!, ela vira a cabea para o lado e desmaia.
Diante do silncio do autor, o desmaio da personagem oferece quele
que l e constri a trama em sua fantasia a possibilidade e a liberdade de
inferir o que estiver a seu alcance, conferindo ao leitor, ao mesmo tempo,
uma liberdade, porm com a ausncia de referencial.
Este modo de escrita de Flaubert, bem como o tipo de dilogo que
estabelece com o leitor, pode ser melhor entendido se levarmos em contao momento histrico caracterizado por mudanas na organizao social e
o modo opositor que Flaubert se impe diante dos costumes burgueses.
Flaubert criticava incisivamente o uso do senso comum e as fragili-
dades ocultadas pela burguesia. Em uma carta de 1852, endereada a Louise
Colet, ele explicita esse raciocnio da seguinte forma: Foi este pudor [de
tornar-se um burgus com discurso comum]7 que sempre me impediu de
cortejar uma mulher dizendo frasespo--ti-cas que me viessem aos lbios,
eu tinha medo que ela dissesse: Que charlato! e o temor de ser mesmo
um deles me paralisava (Flaubert, 2005, p. 69).
Era ser contaminado pelas idias de tout le mondeque Flaubert
temia. Em seu romance, tentou criar um outro dilogo, livre do que j era
5 Em algumas tradues l-se Emma, mas optei por escrever Ema para seguir a ediotraduzida da obra que usei neste artigo.6 Em algumas tradues l-se Charles.7 Parnteses meus
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visto; Madame Bovary haveria de ser diferente e, ao mesmo tempo, servir
para expor os sentimentos mais obscuros mascarados pelas convenincias
burguesas.
O interessante que, para tornar explicito seu discurso crtico,Flaubert construiu personagens caracterizados pelo senso comum, que no
fogem ao estigma que ele buscava incessantemente fugir. Segundo Kehl a
explicao para o romance ter sido constitudo desta forma a seguinte: Em
Flaubert, os personagens so falados pela linguagem do senso comum, por
isto no se do conta da disparidade entre a grandeza de suas aspiraes e
a mediocridade de seu esprito (Kehl, 1998, p. 132).
Esta incongruncia entre o esprito e as aspiraes so facilmente
encontradas nos discursos dos personagens, especialmente em Homais, o
farmacutico, e na personagem central, cujo status conferido era de esposa
do mdico do vilarejo. Apesar de possurem objetivos muito parecidos
queriam reconhecimento e ascenso social , cada um a sua maneira,
somente pode escolher dentre o que lhes era permitido. Homais usava
seus artifcios para conseguir inuncia, fazia contatos com aqueles quepoderiam, em algum momento, auxili-lo para conseguir o que almejava.
J Ema Bovary, apesar de protagonista do romance, durante toda
a trama, no consegue tornar-se autora de sua prpria existncia. Deseja
tornar-se algum diferente e para isso delega aos homens a tarefa de trans-
form-la e resgat-la do casamento que escolhera fadado ao comum, tal
qual a linguagem de seu marido, que ela mesma consideravaplana como
o passeio da rua.Assim, com esses objetivos idnticos e sadas distintas, Flaubert
constri suas personagens opondo-se duramente aos costumes franceses
do perodo histrico ps revoluo. Em ambos os personagens, a diferena
est basicamente na linguagem, no modo diverso de como podem utilizar
a expresso para conseguirem o que almejam.
Kehl (1998, p. 129) entende que em Flaubert a realidade ...uma
farsa produzida pelos efeitos da linguagem. Isto signica que o pensamento
burgus imprime a caracterstica de farsa em todas as suas produes.
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Flaubert sente-se atormentado por essa constatao e ao construir o
romance com suas personagens, aborda esta questo primorosamente.
Homais, por exemplo, usava seu bom discurso para continuar, aos fundos de
sua farmcia, suas atividades de atribuies mdicas e, portanto, proibidasde serem realizadas por um farmacutico.
No apenas Homais que faz uso da linguagem a seu favor, que
explicita a farsa da realidade, outros personagens como Rodolfo8 e Lon,
os amantes de Ema Bovary tambm se utilizam de frases carregadas de
clichs para seduz-la. Outro personagem de grande importncia no cenrio
burgus montado por Flaubert o comerciante LHeureux, que percebe,
na esposa do mdico, um desejo de tornar-se outra, e para isso, compravatudo o que o negociador dizia ser de gosto renado.
Enm, esta forma de uso da linguagem que Flaubert deagra em seu
romance; um modo que, em seu entendimento, no se constri algo novo,
torna-se meramente voltado a interesses prprios, no se produz nada.
Ema, por sua condio, acredita nas idealizaes e no discurso
burgs, mas se perde nesta crena e na promessa irreal de transformar-se
em aristocrata, pelo menos no que tange linguagem falada (no discurso
potico) e a linguagem do comportamento onde ela buscava vestir-se,
arrumar a casa e incluir outros detalhes que a pudessem transform-la em
uma mulher renada.
com este grau de densidade e preciso escolhida nas palavras que
Flaubert expe criticamente o discurso popular de sua poca. Por meio de
sua obra e de toda a polmica gerada em sua publicao, o autor consegue
o intento de traduzir sentimentos inominveis.
esta habilidade, dos grandes artistas, que Freud tambm buscou
compreender ao longo de seu percurso como psicanalista. Para ele, no
estudo da Psicanlise:
...os escritores criativos so aliados muito valiosos, cujo testemunho deve
ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama
de coisas entre o ce e a terra com as quais a nossa losoa ainda no nos
8 Em algumas tradues l-se Rodolphe.
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deixou sonhar. Esto bem adiante de ns, gente comum, no conhecimento
da mente, j que se nutrem em fontes que ainda no tornamos acessveis
cincia. (Freud, 1907 [1906], p. 20)
Assim, os grandes autores carregam consigo uma sensibilidade e apossibilidade de expor algo que, ao mdio cidado comum imperceptvel.
Estes conseguem acessar sentimentos que cam obscuros s pessoas, e por
meio de suas obras, permitem aos leitores devanearem em busca destes
sentimentos.
Assim como Freud props ao longo de sua obra, diversas combina-
es importantes podem ser feitas para a ampliao do saber psicanaltico.
As artes, em todas as suas formas, inclusive escrita, so ricas ferramentas
que auxiliam o conhecimento mais profundo.
A meu ver, cabe ao psicanalista a ponderao, o cuidado no uso das
contribuies humanas que so ofertadas para o conhecimento. Elas so
instrumentos valiosos para ampliar a compreenso a respeito da complexa
psique humana e nos dizer que rumo estamos tomando em nossa poca
histrica.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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Relume-Dumar.
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