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Marca: comunicação, acontecimento e memória1
Jean-Charles Jacques Zozzoli2 Universidade Federal de Alagoas
Resumo A emergência de uma lógica da marca comercial/institucional acompanha as mudanças contemporâneas das relações de força e dos modelos de comportamento do que se chama por convenção um mercado e cuja chave é, presentemente, o acesso ao consumidor. Ao considerar a comunicação da marca e suas conseqüências significativas, procura-se, então, abordar esse fenômeno, encontrando, nos fatos e ações diários, os elementos histórico-sociais nos quais a marca obtém sustentação para constituir-se em forma e força simbólicas estruturantes das condições de atuação nos mercados e em elemento e acervo atuantes de referenciação, modelização e reinvenção do cotidiano. Palavras-chave Marca ; Marketing ; Comunicação com e no Mercado ; Realidade e Ser Humano ; Consumo Sígnico.
1. Introdução
A marca, comercial, institucional, política, vista como multimeio contemporâneo, é
seguramente um produto cultural dos mais atuantes na configuração e formatação dos
processos comunicativos relacionados a produtos e organizações de todo tipo, bem como à
(auto)constituição identitária e relacional das pessoas.
Se até pouco, foi considerada um mero sinal, normatizado pelo Direto, ou - quando
mais - um signo cuja função limitava-se em assinalar a origem do produto em que era aposta
como assinatura, hoje não deveria ser analisada ou concebida sem avaliar os marcos do
contexto econômico, tecnológico, social, político, cultural e histórico que integra.
Com efeito, a marca participa ativamente de processos que contribuem à realização da
produção, circulação, troca e consumo de bens tangíveis e intangíveis, mascarados sob a
produção, circulação, troca e consumo de bens simbólicos, caracterizando-os.
2. Marca e comunicação
A geração da marca e do sentido que expressa resulta de ocorrências operatórias e
significadoras que procedem tanto de um trabalho de enunciação de atributos de identificação
e qualificação, originado inicialmente, no pólo da emissão, pelos diversos agentes a serviço
1 Trabalho apresentado à Seção temática 5: Estratégias da Comunicação (Pública, Empresarial, Publicitária) do VII Colóquio Brasil-França de Ciências da Comunicação e da Informação. 2 Graduado em Propaganda e Marketing (Université de Franche-Comté – Besançon, 1976); Especialista em Lingüística e Comunicação (UFAL, 1986); Mestre em Multimeios (UNICAMP, 1994); Doutor em Ciências da Comunicação (USP, 2002). Na França, atuou em agências de propaganda nos serviços de planejamento e criação. No Brasil, é professor de Graduação e de Pós-Graduação lato sensu na UFAL. Suas pesquisas (na UFAL e no Núcleo Interdisiciplinar de Estudos da Linguagem publicitária /NIELP-USP) e publicações focalizam principalmente a marca e o consumo sígnico.
2
do anunciante, quanto de (re)enunciações pelos intermediários envolvidos no processo de
comercialização, pelos consumidores e pelos cidadãos, quando de seu processamento no pólo
da recepção. Deve ser mencionada, também, a geração de novas enunciações no pólo da
emissão, quando esses intermediários, consumidores e cidadãos, ou a sociedade através de
instâncias que a caracterizam, referem-se ou valem-se, por sua vez, da marca para expressar
idéias e valores.
Todavia, o que o grande público geralmente vê e percebe é somente o aspecto
representacional da marca, i.e. sua identidade de passaporte, e não a marca como resultante de
um processo temporal e geográfico de produção, circulação, troca e consumo, que engloba
sua criação e a determinação compartilhada de seus atributos.
Assim, como representante de si, a marca angaria, a primeira vista, uma identidade
idealizada conjeturalmente e dada ilusoriamente como sempre idêntica, que instaura uma
diferenciação determinativa de uma classe de produtos. Veicula valores que são partilhados
semioticamente por todos os que tem contato com ela mesma e sua comunicação, mas que só
podem ser usufruídos quando adquiridos por meio de dinheiro quando da compra, ou roubo,
do produto marcado (ou de adesivos e outros objetos também comprados ou recebidos como
brindes) ou da adesão por meio do voto ou de outra manifestação de suporte a um candidato
ou ideologia.
Transcorre, então, uma ritualização do processo de troca, no qual a marca comparece
ôntica e ontologicamente, propiciando uma dimensão sagrada ao eixo da produção,
distribuição, divulgação, venda e consumo cotidiano dos produtos (bens serviços, idéias,
instituições). Nessa mediatização, a marca legitima-se de maneira carismática. Pela exaltação
- quase sempre mítica - dos traços representativos que a figuram tanto materialmente quanto
imaginária e imageticamente, declina sua soberania de maneira semelhante ao que acontece
no culto a um santo ou a uma divindade.
Assim, valendo-se de mitos existentes, transformando-os, e/ou criando outros,
contribui à idealização de uma imagem fixa, hedonista e eufórica da existência e vivência
pessoais ou familiares, ideais na sociedade contemporânea.
Logo, torna-se opaca a suas condições de produção, distribuição e comercialização e a
dos produtos tangíveis e/ou intangíveis que a reivindicam.
Assiste-se, pois, a uma performance "litúrgica" propensamente manipuladora do poder
marcário da parte do fabricante e (re)vendedores em interligação recíproca com uma
performance "comungatória" propensamente seletiva dos consumidores/compradores,
3
desempenhada graças à competência adquirida com a instituição dos mitos marcários, sob a
vigilância relativa da performance reguladora das instituições sociais.
O domínio privado não é, pois, nem no nível da empresa e outras organizações, nem
no nível do indivíduo, o lugar de atuação e uso da marca.
Como resultado de um processo de gestão coletiva que retraça o confronto dialético e
dialógico entre os diversos atores sociais, até mesmo quando é produzida ou consumida
individualmente, a marca manifesta–se explicitamente e a nossa revelia, por meio de suas
formas verbais e plásticas, pelo uso que dela fazem consumidores, fabricantes e
distribuidores, mas também pelas considerações jurídicas, econômicas, antropológicas,
semióticas, etc. a seu respeito. Desempenha papéis decorrentes de suas posições perante o
consumidor, o não-consumidor, a distribuição e a economia, ocultando partes de si. Seu
discurso é assumido por ela mesma enquanto se escondem enunciadores na codificação e
decodificação externa e social de suas mensagens.
Assim, como representação explícita e/ou implícita de um sentido que vai além de um
sinal da origem ou de uma diferenciação arbitrária e estática de outros produtos, a marca
veicula a síntese das políticas e ações mercadológicas, temperada com a sua recepção – e
conseqüentemente re-emissão pelos diversos atores do mercado e a presença de marcas
concorrentes3.
3. Marca: acontecimento
É pelas ações significativas que provoca que algo se torna marca, diferença.
Não são, pois, os signos (isolados, em sua "essência") que devem ser aqui objeto de
investigação, mas formas significantes na discursivização, i.e. os sistemas de relações que
fazem da marca um objeto de sentido, pois a marca não comunica só sentido, ela produz
sentido. O nome e os outros símbolos da marca, que ele sejam determinados por profissionais
ou não, só se tornam o que são, quando identificados e dotados de conteúdo pelos diversos
atores do mercado.
Assim, com base na diferença que pode ser feita entre o consumo através da compra
do produto enquanto bem material tangível ou intangível e o consumo do que esse produto
representa por quem o compra ou não (i.e. o consumo de signos referenciais, com inferências
3 Cf. Zozzoli (1994: passim).
4
das diversas intersubjetividades), pode–se destacar três casos de figura que resumem os tipos
de atuação discursiva da marca:
− quando a marca, como especimen, isto é qualquer marca particular como individualidade,
comunica pelo simples fato de existir ou por meio de sua presença, ao ser agregada a um
produto ou ainda quando utiliza os diversos meios de comunicação e divulgação;
− quando a marca é utilizada por um consumidor sígnico que utiliza seu valor-símbolo;
− quando a marca, como instituto, isto é, como arquétipo que engloba todas as marcas
especímenes, encontra-se definida pela sociedade, ao tempo em que esse mesmo instituto
participa da fabricação do mesmo meio ambiente que nos cerca
Essas entrées en scène da marca foram conceituadas a partir de uma triangulação que
recorre à idealização por Charaudeau de um esquema da comunicação publicitária no quadro
da Análise do Discurso4, à Escola de Paris5 e à Teoria da Autopoiese (Biologia do Conhecer6).
Essa triangulação, além de considerar a enunciação no pólo da emissão e a enunciação no
pólo da recepção, evidencia dois sub-circuitos:
− o do dizer: lugar de fala e escuta das manifestações discursivas (qualquer que seja a forma
de comunicação) ou enunciação enunciada;
− o do fazer: lugar do falante, isto é dos atores em carne e ossos do processo comunicativo,
em outros termos, os sujeitos que enunciam essa expressão midiática tanto no pólo da
emissão quanto no pólo da recepção.
Permite, assim, visualizar a dissociação entre os respectivos autores das mensagens
marcárias e quem essas mensagens representam.
3.1 A marca como espécimen
A partir destas premissas e observando a marca como especimen, nos mercados dos
produtos em que é aposta [figura 1], evidenciam-se nesse processo operatório de comunicação
marcária:
− o subcircuito do dizer como circuito de comunicação da marca propriamente dita, no qual
a marca é protagonista oficial em ambientes de contatos potenciais,
− o subcircuito do fazer como circuito das condições de produção/interpretações na
realidade física, no qual intervêm os atores humanos genuinamente presentes no processo
4 Charaudeau (1983, 1995). 5 Principalmente; Greimas (1984, 1987); Greimas e Courtès (1983, 1986); Floch, (1986, 1990). 6 Maturana e Varela (1995, 1997); Maturana (1999, 2001); Varela (1989, 1996); Varela, Thompson e Rosch (1993).
5
comunicativo, i.e. quem, como pessoa real, dá vida à marca, tanto quando da produção de
sentido em sua emissão, quanto quando da (re)produção de sentido na recepção.
Fig. 1 – O duplo circuito geral do ato de linguagem da marca
no(s) mercado(s) do(s) produto(s) em que é aposta7
Vê-se, portanto, ao observar a marca, que o consumo dos sentidos que ela produz e
veicula continuadamente – denominado aqui consumo sígnico da marca - não se encontra
forçosamente ligado ao consumo do produto tangível sobre o qual a marca é aposta ou do
serviço, da idéia ou da organização que a marca identifica e representa.
Constata-se que, tanto no nível social quanto no nível individual, e em referência com
os valores que uma marca determinada detém, exibe e veicula, há consumo sígnico por si só
desta mesma marca e de sua comunicação, pelo tradicionalmente denominado receptor da
mensagem, i.e. o sujeito da decodificação, ou melhor, na postura epistemológica que
adotamos, produtor da enunciação na recepção, que ele faça ou não parte do target, pois assim
estabelece valores remissivos a fim de se posicionar face à "realidade” vivenciada da marca e
eventualmente da organização titular quando conhecida.
A produção da marca e da quase totalidade de seu discurso funciona pois por
delegação. Com efeito:
1. Ela é produzida em ambientes privados - os dos gabinetes,
− no nível de sua criação e divulgação por designers, publicitários, mercadólogos,
administradores... ; 7 As informações a respeito dos resultados proporcionados pela marca são oriundas, entre outros, de Kapferrer (1989), Pinho (1996) e Zozzoli (1994, 2002).
6
− no nível jurídico (seu registro e eventuais conflitos) por advogados especializados,
jurisconsultos;
− no nível comercial, ou melhor mercadológico, pelas políticas de marca, de produto, de
merchandising e contratos de distribuição e venda;
2. Por meio de suas manifestações discursivas, ela circula em ambientes públicos (quando do
processo de divulgação, distribuição e vendas das mercadorias e outros produtos que a
reivindicam),
− nas prateleiras dos pontos de venda e/ou outros locais onde pode se encontrar
(propaganda e promoções no local de venda, packaging, e outras apresentações do
produto e sua marca);
− nos veículos de comunicação e outros veículos de divulgação.
A marca revela-se, nessas circunstâncias, aparentemente fechada às condições
econômicas e temporais de seu processo, bem como às do produto em que é aposta,
alienando-as enquanto as recupera conferindo-lhes nova vida e riqueza, ao transformar sua
história em estória, numa (re)organização de seu mundo e conseqüentemente do universo do
produto. Instala-se numa aura de líder comungada societariamente.
A presença da marca na comunicação publicitária, de relações públicas e outras
comunicações mercadológicas pode ser resumida sinoticamente na figura a seguir [figura 2].
Fig. 2 – O duplo circuito do ato de linguagem publicitário
7
3.2 A marca quando o consumidor utiliza seu valor-símbolo
A fim de dar conta do caráter dialético do processo marcário, torna-se também
necessário analisar a situação quando o consumidor utiliza uma marca espécimen, não
exatamente para escolher um produto, mas sim precisamente pelo valor que ela mesma lhe
confere quando ele a consome, i.e. usa, ostenta e exalta, por exemplo [figura 3]. Neste caso o
consumidor e sujeito no circuito do dizer, porém, não é sujeito da codificação da mensagem
marcária, a menos que retire a marca do contexto onde esta se encontra tradicionalmente
inserida pela maioria.
Fig. 3 – O duplo circuito do ato de linguagem da marca quando o consumidor utiliza seu valor-símbolo
Observa-se que, após interagir na resolução de escolha e de compra do produto
(tangível ou intangível), uma decisão privada, a marca, em novas manifestações discursivas,
ganha uma nova forma de vida pública, ao ser exposta sobre as mercadorias que assina e
outros produtos quando utilizados pelos consumidores. É, assim, ostentada por eles, servindo
de referência e valor até para os que não usufruem desses produtos, mas sim os consomem
signicamente junto com essa marca8.
8 Esse segundo comparecimento da marca na esfera pública é antecipado e reproduzido por sua comunicação. É de longe dos mais importantes significativamente. Hoje em dia, a marca, de sócia de valor-signo de um produto, passou a valor-símbolo. O processo marcário intervém portanto no momento em que a mercadoria realiza o salto mortale, para retomar a expressão de M arx, metamorfoseando seu valor de troca em ("novo") valor (fetichizado) de uso, i.e. passando do domínio público do campo da troca ao domínio privado da confrontação individual do valor-símbolo da marca, com os valores pessoais de cada um, onde mercadorias e marcas, além de suas funções meramente econômica e de uso material, cumprem o papel de distinguidores sociais. Nesse uso intangível, produtos e marcas, agora vigorando em sua forma renovada de vida pública, institucionalizam-se como mediadores (quase que) universais, padrões de valores societários e sociais.
8
3.3 A marca comercial e/ou institucional em nossa sociedade
Ainda assim, essa delineação das principais manifestações potenciais do produto de
sentido social que é a marca não se apresentaria como suficiente se não se considerasse como
o instituto marca é (co)fabricado pelas diversas instâncias sociais e societárias que o definem
e regulamentam, e refletem a seu respeito, bem como a respeito de sua utilização [figura 4].
Fig. 4 – O duplo circuito geral do ato de linguagem da marca comercial e/ou
institucional em nossa sociedade
Sem sombra de dúvida, a marca é produzida pelo homem, mas também produz o
homem e o ambiente no qual ambos vivem. Patenteia-se como entidade constitutiva e
formadora do cotidiano ao ser:
1. regimentada pelo Direito em seu uso e poder de proteção a certas mercadorias,
2. reconhecida pela Teoria Econômica, a ponto de ter feito desmoronar alguns de seus mais
conhecidos princípios, alicerces explicativos e substratos parciais de outras áreas de
conhecimento, tal como a concorrência perfeita por exemplo,
3. fabricada e utilizada nos meios comerciais, mercadológicos, publicitários e de
programação visual entre outros, mesmo que muitas vezes isto seja feito intuitivamente ou
adotando uma postura epistemológica de orientação positivista, ao desenvolver
concepções estáticas e isolacionistas da identidade de marca, que elegem como modelo de
comunicação a Teoria Matemática da Informação, isto é o diagrama canônico de Shannon
e Weaver. Decorrem deste approach a concepção de “branding” e a noção de “construção
de marca”, que privilegiam essencialmente o pólo do emissor.
9
4. estendida sua forma de leitura comercial identitária, pelo cidadão comum, a outros
domínios como principalmente às esferas institucional e política, numa operação dialógica
e dialética que reúne a utilização de diferenciais plásticos e emocionais, tanto pelos
consumidores/cidadãos, como pelos comunicadores, que, qualquer que seja sua posição,
não deixam nunca de ser consumidores e produtores sígnicos. Vale destacar em correlação
com este fenômeno de transformação e transação semiótica o desenvolvimento por
diversas instituições de campanhas de marketing social e responsabilidade social.
3.4 As duas faces identitárias da marca
A identidade da marca é, portanto, no decorrer do tempo e através das formas que
assume, ocultação e revelação:
− ocultação nos gabinetes que a conceberam, nos escritórios que programaram a política de
marca, em todas as partes, “debaixo da água” do “iceberg” mercadológico às quais
os não-iniciados (consumidores e, em certos momentos e situações, distribuidores) não
têm acesso;
− revelação pelo produto, sua embalagem, pela propaganda, pelas Relações Públicas, pelos
contatos que a empresa (ou outra organização) tem com os outros através de seus
integrantes. É revelação pelo próprio uso que o público faz da marca. Seu conhecimento é
dado pelo reconhecimento recíproco, a nível legal e social, como marca de um produto e
como fenômeno marca.
4. Marca: memória
O fato de marcar objetos, territórios e seres, geralmente para proteger o comprador de
defeitos de fabricação ou o comerciante e o proprietário de roubo, segue apenas a tendência
natural do homem de fixar em suas criações o cunho de sua personalidade e demonstrar sua
posse. A marca identifica assim, pelo mesmo meio, o sujeito objeto do direito.
Mais do que um elemento estático de referenciação à origem de um produtor e/ou
distribuidor, há de ser devidamente considerada, no mínimo, como um instrumento de
transferência de informação, de luta por um território ao mesmo tempo midiático e físico, e,
indo mais além, como uma instância que, no emergir do acontecer, cria uma aura em torno do
seu ser e conseqüentemente do produto sobre o qual é aposta e da instituição que referenda,
deixando seu rastro9.
9 Cf. Zozzoli (2002).
10
A marca oculta - bem como sua comunicação - seu estatuto de produto ou mercadoria.
Produto social, ela caracteriza nossa sociedade e suas trocas determinando os usos e costumes
atuais e sendo determinada por eles.
Com efeito, verifica-se que a relação mantida pela marca com seus receptores (i.e.:
quem efetua sua leitura), comprando-a ou não, tem bases na figurativização das grandes
etapas no decorrer das quais a mercadoria é levada de sua produção até sua consumação, ou
seja: origem, distribuição e uso da mercadoria. Dito em outros termos: o sistema de objetos de
onde provém o produto, o sistema de objetos de sua distribuição, o sistema de objetos de sua
apropriação10.
Essas etapas correspondem às propriedades fundamentais da marca:
− sua especialidade primeira: diferenciar, ao manifestar sua procedência, os produtos (bens,
serviços, idéias) que ela designa;
− seu caráter de garantia: ser fiadora das qualidades, explícita ou implicitamente difundidas,
dos produtos, quando de sua distribuição;
− seu poder simbólico: ser objeto de valor intrínseca ou extrinsecamente ao produto, ser
objeto de valor por si só.
Essas propriedades relacionam-se por sua vez com as grandes fases da história do
produto, do lado de sua produção, distribuição e venda, mas também, em interligação, do lado
do consumo:
− predominância da visão produtiva (i.e.: o mercado sendo encarado como um “mercado de
oferecedores”),
− predominância da visão comercial, ou seja, de distribuição e venda (um "mercado de
vendedores"),
− predominância da visão mercadológica (i.e.: um "mercado de consumidores"),
cumulando-se - numa análise simples - segundo sua ordem de apresentação: primeira fase -
primeira propriedade; segunda fase - primeira e segunda propriedades; terceira fase primeira,
segunda e terceira propriedades11.
Ao considerar os sistemas acima referenciados, observa-se:
10 A exposição a seguir inspira-se de uma apresentação desses três sistemas por Widner (1988) numa reflexão sobre a imagem publicitária, aqui reconsiderada em função da realidade subjacente à marca aparentemente não-antevista por esse Autor. 11 Obviamente todas as marcas não se encaixam, tanto em sua produção como em sua recepção, rigorosamente, nessa última classificação, pelo fato de certas marcas, por exemplo, usufruírem de poder simbólico, marcas que a priori foram concebidas essencialmente como assinatura podem ser interpretadas como garantia de valor objetivo e/ou subjetivo. Por outro lado, marcas, cujas metas consistem conceitualmente em querer criar e desenvolver uma determinada imagem podem fracassar e serem relegadas a meras e insípidas distinções.
11
4.1 no que diz respeito ao sistema de origem
Exceto nos casos nos quais a marca fala ontologicamente de si-mesma, o tempo em si
não parece existir no discurso marcário. A referência à proveniência resume-se na construção
de uma simples expressão simbólica cotidiana. Pois, não se trata de uma explicação
econômica, jurídica ou histórica, mas somente de uma estória do produto com sua assinatura,
que se empenha em constituir sua história. Com efeito, o consumidor do produto marcado
e/ou do valor da marca não encontra na marca nem sequer a história da concepção e/ou
produção do mesmo, mas através de uma faceta delas, intrínseca a esses processos ou
simplesmente de fantasia, somente a simbolização de que, por ter um nome e outras
manifestações "linguageiras" (principalmente visuais) que lhe são próprias, esse produto é
único. Pois, num mesmo setor econômico, num mercado onde empresas são diretamente
concorrentes, podem ser relevadas marcas:
− que remetem a nomes reais ou fictícios do (primeiro) dono da empresa,
− que apelam a componente(s) e/ou fórmula do produto e/ou região onde nasceu o produto
e/ou é produzido,
− que remetem a modismos, afinidades sócio-culturais e políticas (marcas talibãs por
exemplo),
− cuja designação é totalmente arbitrária.
A utilização, principalmente pela propaganda, do ambiente de fabricação do produto,
das pessoas que intervêm nesse processo de produção e de outras características suas, em
função da temática comunicacional do produto e da marca escolhida, tradicionalmente não
descreve - quando ocorre - o trabalho necessário à produção desse produto, realizado por
essas pessoas, mas focalizando a própria natureza da produção (recurso a características
científica, tecnológicas, naturais do ambiente no qual as pessoas trabalham) ou o meio sócio-
político circundante, apenas evoca, "ao sabor" de campanhas comunicacionais específicas, a
qualidade tecnológica, científica, o exotismo, a tradição, o caráter natural ou posturas políticas
entre outros temas possíveis, ao passo que dissimula a produção em série e a similitude dos
produtos oferecidos, bem como as condições reais nas quais os trabalhadores cumprem suas
atividades e os conflitos diretamente decorrentes. Trata-se de declinações dos
posicionamentos interligados dos produtos e suas marcas que constroem o imaginário social
ao tempo que são construídas por ele.
12
4.2 no que se refere ao sistema de distribuição
Como no sistema anterior, onde a produção em massa do produto e a produção das
marcas não aparecem, nesse sistema ocultam-se mecanismos e contratos de distribuição do
produto e divulgação da marca. O consumidor entra no jogo de escolher entre tipos de
produtos, entre marcas cujo número é geralmente reduzido, não entre fileiras e amontoados de
mercadorias fabricadas em série.
Se o preço aparece no caso de produtos e serviços "visualizáveis"12, nada ou pouco
sabe o consumidor sobre sua determinação (em termos de custos, amortização, lucro e fixação
psicológica). Em relação à marca, esse consumidor não pressupõe, na maioria das vezes, nem
seus custos.
Assim os produtos, por meio de suas marcas, apresentam-se nesse sistema como
unidades simples e imanentes, em exposição, disponíveis nos pontos de venda13, escondendo-
se por trás da escolha entre poucas marcas o caráter temporal e contratual das trocas.
Ignoram-se, portanto, visto nessa perspectiva, as negociações subjacentes no nível do
produtor e dos distribuidores, e todas as contingências logísticas (merchandising) relativas à
entrega e ao respeito dos prazos.
4.3 no que concerne ao sistema de apropriação
As relações entre marca, produto, consumidores e seu mundo são geralmente da ordem
do alegórico.
Nesse processo concreto de simbolização no qual os elementos que constituem a
marca (e o produto) correspondem a significações programadas e na medida do possível
controladas, a marca - como um todo - desvela-se como o totem que possibilita reunir. É o
lugar de identificação, ponto de fusão. A marca é pois espelho. Não como imagem refletida de
anseios societários, mas como fábula do produto, i.e.: como mito, particularmente veiculado e
instalado pela propaganda.
Como já explicava Barthes (1957: 193-247), o mito não se define pelo objeto de sua
mensagem, mas sim pela maneira como a profere. Ao ser apropriado, responde a uma função,
sendo recebido como uma narrativa ao mesmo tempo verdadeira e irreal que organiza o
mundo, sem contradições. Define-se como uma tendência que atende aos interesses e ideais
gerais ou tido como gerais - (conhecidos ou velados) de uma sociedade. É um valor que não
12 No caso de produtos imateriais tais como conceitos/idéias, programas sociais, culturais, políticos... o preço não materializado sob forma de dinheiro, revela-se nos esforços necessários quando da adoção/aceitação do produto intangível. 13 Tratando-se de produtos ideológicos, a forma ponto de venda pode revestir manifestações como a urna eleitoral, por exemplo.
13
tem a verdade como sanção. Nem é mentira, nem é confissão. Simplesmente transforma a
história em natureza. Escreve Barthes:
[O mito] não nega as coisas, sua função é pelo contrário falar delas; simplesmente purifica-as, inocenta-as, funda-as em natureza e eternidade, fornece-lhes uma clareza que não é aquela da explicação, mas sim aquela da constatação. [...] Abole a complexidade dos atos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda a dialética [...] as coisas parecem significar por si só. [...] A meta dos mitos é imobilizar o mundo. (Barthes, 1957: 230-1 e 243).
Ao atentar um sentido de ordem fatual, real ou imaginário, o instituto marca procede,
portanto, a uma elaboração segunda dos dados naturais e culturais do universo em sua
apresentação ao homem comum, por meio das diversas marcas de produto (bens, serviços,
idéias... organizações), na reformulação e transformação da ordem das coisas e da realidade
histórica e social através de processos de metaforização que se situam ou no infra-humano ou
no supra-humano, como em sua temporalização por exemplo, e se ancoram, mesmo sendo
imaginários, numa referencialização externa, em posições, situações e momentos social e
historicamente definidos segundo a cultura em questão.
5. Conclusão
Ao tempo em que registra um experienciar pessoal do produto e substitui informações
que não são diretamente disponíveis, a marca só tem vida no mercado porque compartilhada
em sua comunicação. É o lugar que ocupa na mente do homem (social e precisamente
societário) que determina seu valor.
Mostra-se sem nenhum ônus aparente para consumidores e não consumidores,
desconhecendo, o comum dos mortais, seu(s) verdadeiro(s) autor(es) - uma vez que não
apresenta assinatura, bem como as políticas relativas à sua produção, proteção, circulação e
esperada recepção.
Em sua maioria os consumidores/cidadãos nem desconfiam de seus respectivos
planejamento e custos, bem como da própria existência dos mesmos. Ao nível de sua
circulação, da mesma maneira que para a própria marca em si, as manifestações
comunicacionais do produto em que ela é aposta não são assinadas, a não ser por ela mesma.
Quando por ventura o são, sempre num corpo miúdo e com pouca legibilidade, o nome
e/ou o símbolo impresso(s) - de fato uma outra marca - refere(m)-se quase que sempre a uma
empresa prestatária de serviços (agência de publicidade, consultoria de RRPP...) senão a uma
subsidiária (gráfica, produtora...), e não ao indivíduo ou grupo de indivíduos emissores
14
delegados dessa (primeira) marca, i.e. - dito de maneira mais exata - investidos desse
poder/tarefa comunicativa pelo usufrutuário.
A marca revela-se portanto ser, nessas circunstâncias, particularmente fechada às
contingências econômicas e temporais de seu processo. Apresenta-se como dádiva imanente,
apesar de incluir proporcionalmente seus custos (desconhecidos pelos receptores) no custo do
produto.
Sua aparente transcendência apóia-se na pretendida diferença entre a relativa
atemporalidade da enunciação da marca e o tempo concreto em que vivem os consumidores.
Logo, a aplicação de políticas de marketing não deveria ser orientada para gerenciar
portfólios de produtos e/ou marcas, mas consistir em administrar portfólios de relações com
consumidores sob a égide da marca. Em vez de trabalhar com um paradigma que orienta para
a satisfação de um tipo de necessidades, trata-se de cuidar de conexões que pressupõem
relações dialógicas fabricante/consumidor, fabricante/revendedor, revendedor/consumidor.
Referências bibliográficas
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