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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Educação
Cleidiane Lemes de Oliveira
MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO DO CAMPO (LECAMPO): aproximações e distanciamentos
Belo Horizonte
2017
Cleidiane Lemes de Oliveira
MARCAS DA PERSPECTIVA DECOLONIAL NO CURSO DE LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO DO CAMPO (LECAMPO): aproximações e distanciamentos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Educação.
Orientador: Professor Dr. Teodoro Adriano Costa Zanardi
Belo Horizonte
2017
Cleidiane Lemes de Oliveira
O CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO – LECAMPO – SOB A
PERSPECTIVA DECOLONIAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Educação.
Prof. Teodoro Adriano Costa Zanardi (Orientador) – PUC Minas
Lorene dos Santos – PUC Minas
Salomão Antônio Mufarrej Hage - UFPA
Belo Horizonte, 20 de abril de 2017
Ao Rafinha pelos grandes aprendizados mesmo sendo ainda tão pequeno.
Sua intensa curiosidade desmonta o sentido único do mundo.
AGRADECIMENTOS
Impossível seria concluir esse processo sozinha.É necessário demostrar infinita gratidão nesse
momento.
A Deus agradeço por me proporcionar a vida em toda sua plenitude.
Ao meu orientador Teodoro Zanardi, por acreditar em mim cotidianamente, pelas conversas e
pelo incentivo. Obrigada por estar percorrendo este caminho comigo desde o começo.
Aos meus pais, Hélio e Dionice, minha eterna gratidão pelas horas de escuta e por abraçarem
comigo o sonho de voos mais altos no mundo acadêmico. Vocês são a minha grande motivação
a prosseguir. Tudo que conquisto é para vocês. Ao Cleiton, meu irmão, o agradecimento por estar
junto, por se preocupar e por me abraçar quando o mundo parecia desabar sobre mim. Vocês são
a essência da minha vida!
Aos professores e professoras do Programa de Pós-graduação em Educação da PUC,
especialmente a professora Dra. Lorene dos Santos, por ser uma mulher inspiradora.
Aos alunos do curso e ao professor que acompanhei a disciplina, por me receberam tão bem e
me possibilitaram desenvolver essa pesquisa;
Ao LeCampo, na pessoa dos coordenadores do curso e do colegiado, por terem gentilmente
aberto as portas da FaE a pesquisa;
À CAPES pela bolsa;
Aos amigos da História que sempre me apoiaram: Tudor, Rafael, Kelen e Ana. Suas palavras de
motivação estão comigo até hoje. Tudor, um dia hei de retribuir todos os auxílios prestados pelo
telefone!
Às mulheres que me inspiram cotidianamente, dão-me força e nunca me deixaram esmorecer:
Tássia, Geusi, Dai, Raphaella, Sil e Marcinha. Vocês são muito queridas por mim.
Ao Hiago e ao Ramon pelo carinho em forma de leitura, obrigada por colocarem todas as vírgulas
nos lugares certos, ora as vírgulas da vida, ora as do texto. Ramon, o aconchego de sua presença
nos momentos finais foi a força necessária para que eu persistisse.
A Gizele, Bruna e Ângela por serem mais do que qualquer palavra consiga transcrever, vocês
fizeram com que eu visse o melhor de mim, cedendo muito do melhor de vocês.
Aos amigos da Linha de Pesquisa em Currículo, meus exemplos de pesquisadores e educadores
comprometidos com a leitura do mundo: Márden, Silene e Guilherme.
A todos meus alunos por me ensinarem, cotidianamente, a pensar os sentidos de estar no mundo
e os desafios da educação Outra.
A Flávia por me ensinar como é ser professora no “dia a dia” e pelo carinho que sempre tem
comigo.
Aos professores do curso de História que tive o prazer de ser aluna, sem que talvez eles saibam,
levo muito deles comigo: Júlia Calvo, Carlos Veriano, Carla Ferreti e Marcelo Cedro.
A todos que passaram pela minha vida nesse momento. As contribuições, sugestões e diálogos
ajudaram-me a produzir a dissertação e a me construir como sujeito.
O processo colonial traz em si mesmo uma ação contrária
incrível e dialética. Ou seja, não há intervenção colonial
que não provoque uma reação por parte do povo
colonizado. (FREIRE; MACEDO, 2011, p. 213)
RESUMO
Esta dissertação teve por objetivo realizar uma análise do curso de Licenciatura em Educação do
Campo – LeCampo – ofertado pela Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do seu
Projeto Político Pedagógico e da voz dos sujeitos Outros que compõem o curso, tomando como
referencia as contribuições da teorica decolonial. Para isso, a pesquisa se propôs a desenvolver
como objetivos específicos: problematizar o conceito de modernidade trazido pelos autores
europeus, a partir dos teóricos latino-americanos vinculados à perspectiva decolonial;
compreender a importância do MST como prática de resistência decolonial nos espaços
universitários; ressaltar a importância de uma perspectiva Intercultural Crítica na formação de
professores como mediadores e propulsores da construção de um conhecimento Outro; e, ainda,
compreender os reflexos dessa produção de conhecimento decolonial dentro do LeCampo. O
estudo caracteriza-se como qualitativo, tendo utilizado análise documental, entrevista
semiestruturada e roda de conversa como técnicas de coleta dos dados. A dissertação se ampara
nos escritos dos teóricos Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Paulo Freire e Catherine Walsh.
Acolhe também os teóricos que discutem a Educação do Campo, como Roseli Carldart, Miguel
Arroyo e Mônica Molina. Constatamos que o LeCampo possui traços decoloniais, visíveis na sua
construção e nas formas de organização dentro do Tempo Escola. Foi possível perceber que é
um desafio atual do curso dialogar com os sujeitos que passam a ingressá-lo construindo sentidos
de uma educação Outra comprometida com a transformação da sociedade. Lado Outro,
constatamos que o LeCampo possui em si traços decoloniais visíveis na construção do curso e
na organização no Tempo Escola.
Palavras-chave: Decolonialidade. Educação do Campo. Formação de Professores. Movimentos
Sociais.
ABSTRACT
This dissertation aimed at carrying out an analysis of the Graduate Course in Countryside
Education - LeCampo - offered by the Federal University of Minas Gerais, through its Political
Pedagogical Project as well as through the voice of the Other Individuals who take part in the
course, referring to the contributions of decolonial theory. In this regard, the research had the
following specific objectives: Problematizing the concept of modernity, upheld by European
authors, from the perspective of Latin American Decolonial theoreticians; Understanding the
importance of the Landless Movement (MST) as a practice of decolonial resistance in university
spaces; Emphasizing the importance of a Critical Intercultural perspective in teacher training and
also understanding the impacts of the production of decolonial knowledge within LeCampo. This
is a qualitative study that relied on semi-structured interview, focus groups and document
analysis as data collection techniques. The dissertation is based on the writings of the
theoreticians Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Paulo Freire and Catherine Walsh. It also refers
to the theoreticians who discuss Countryside Education, such as Roseli Carldart, Miguel Arroyo
and Mônica Molina. It was possible to understand that the current challenge of the course is to
dialogue with the individuals who are now attending it so as to build an Other Education engaged
in the transformation of society. On the other hand, we have determined that LeCampo has
decolonial features itself which are visible in the construction of the course and in the
organization during the School Time.
Keywords: Decoloniality. Countryside Education. Teacher Training. Social Movements.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Pesquisas encontradas sobre o Le Campo 15
Quadro 2- Pesquisas encontradas sobre Educação do Campo e decolonialidade 16
Quadro 3- Associações comunitárias que os alunos do LeCampo pertencem 126
Quadro 4- Município de residência dos alunos pesquisados 126
Quadro 5- Conteúdo programática e bibliografia básica da disciplina pesquisada 135
LISTA DE SIGLAS
BM Banco Mundial
CSH Ciências Sociais e Humanas
CVN Ciências da Vida e da Natureza
FaE Faculdade Educação
FETAEMG Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais
FIEI Formação Intercultural de Educadores Indígenas
FMI Fundo Monetário Internacional
LAL Literatura, Artes e Letras
LeCampo Licenciatura em Educação do Campo
MC Modernidade e Colonialidade
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PeTerra Pedagogia da Terra
PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
PROCAMPO Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do
Campo
TC Tempo Comunidade
TE Tempo Escola
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 13
1.1 Metodologia ........................................................................................................................ 19
2 A MODERNIDADE COMO MATRIZ DA COLONIALIDADE ........................................... 29
2.1 A Modernidade em Dussel ...................................................................................................... 32
2.2 O Mito da Modernidade e o Silenciamento do Outro........................................................... 39
2.3 A formação da Outreidade ...................................................................................................... 43
3 A DECOLONIALIDADE REVISADA .......................................................................................... 50
3.1 A Decolonialidade e suas fontes .............................................................................................. 51
3.1.1 Seus precursores ..................................................................................................................... 54
3.2 O Coletivo Modernidade/Colonialidade e a Construção de um Paradigma Outro ........... 57
3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano .................................................................................... 65
3.2.2 Dussel e a questão do Outro ................................................................................................... 68
3.2.3 A (de)colonialidade do Ser em Paulo Freire .......................................................................... 75
4 A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DO MST SOB A PERSPECTIVA INTERCULTURAL E
DECOLONIAL .................................................................................................................................... 81
4.1 A construção do saber do MST............................................................................................... 89
4.2 As lutas pela educação do Campo .......................................................................................... 96
4.3 Formação de Professores: do Rural a Educação do Campo .............................................. 101
5 LECAMPO: UMA FORMAÇÃO DECOLONIAL? ................................................................... 112
5.1 Nossa aproximação com a Universidade e com o LeCampo .................................................. 115
5.2 A construção curricular do LeCampo ..................................................................................... 117
6.2.1. O Projeto Político Pedagógico do curso ............................................................................. 119
5.2.2. A alternância pedagógica .................................................................................................... 122
5.2.3. Docência Multidisciplinar ................................................................................................... 125
5.3. Os sujeitos pesquisados ............................................................................................................ 129
5.4 Observação de Campo ........................................................................................................... 131
5.4.1. A observação em sala de aula ............................................................................................. 134
5.4.2. A mística no LeCampo ......................................................................................................... 139
5.5 A voz do Outro? ......................................................................................................................... 144
5.5.1. Os sujeitos do curso e sua institucionalização .................................................................... 144
5.5.2 O que é ser educador do campo para esses sujeitos? ........................................................... 153
5.5.3. A alternância pedagógica .................................................................................................... 163
5.5.4 Movimentos sociais e a materialidade do curso ................................................................... 164
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 170
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 175
13
INTRODUÇÃO
A construção da narrativa da História universal tem se pautado na superioridade de alguns
povos ante a uma suposta menoridade e irracionalidade de outros. Há, portanto, relações de poder
que fizeram com que a narrativa europeia sobressaísse como mundial, em detrimento das outras
histórias, que seriam consideradas como inferiores e referentes ao “resto do mundo”.
Segundo Quijano (2005), os processos de colonização europeus nos demais continentes
e, principalmente, na América Latina, resultaram na inferiorização desses povos e de suas
culturas e, mesmo findado o período colonial, as estruturas de dominação permaneceram nas
relações de colonialidade.
Entretanto, esses sujeitos Outros, ora inferiorizados, ora subsumidos dentro do discurso
europeu, passam a lutar para que suas histórias, suas formas de organização social e seus
conhecimentos sejam evidenciados, e a questionar a totalidade da narrativa eurocêntrica.
Pesquisar sobre esses sujeitos Outros na atualidade equivale a distanciar, problematizar essa
hegemonia discursiva e proporcionar questionamentos sobre o controle epistêmico
europeu/colonial.
Falamos, portanto, de saberes Outros e não de outros saberes porque entendemos que a
luta é para romper com a inferiorização dos saberes produzidos pelos sujeitos Outros.
Entendemos por Outro ou os Outros, segundo Dussel (2003), aqueles que foram as vítimas do
sistema colonizador e hegemônico, que foram negados em seus direitos de se reconhecem em
suas culturas, conhecimentos e formas de organização social.
A teoria decolonial passa a se destacar, na América Latina, pela problematização teórica
das tendências epistemológicas totalizantes, mas também por apresentar-se como tendência
política e epistêmica. Como destacado por Damázio (2011), por não se tratar de um campo
exclusivamente acadêmico, a decolonialidade permite o envolvimento de variados sujeitos, não
apenas para questionar os discursos ocidentais, mas também na emergência de saberes Outros
que surgem nos espaços relegados pela colonização moderna.
Nossa pesquisa1 se situa dentro dessa perspectiva de reflexão, e tem como marco teórico
os autores que problematizam a perspectiva decolonial de conhecimento dentro de uma estrutura
moderno/colonial, e não apenas aqueles teóricos que se denominam decoloniais: destacamos
Paulo Freire, Enrique Dussel e Anibal Quijano.
Antes de discorrermos sobre os objetivos desta pesquisa, desejamos salientar, de forma
1 Esta dissertação foi aprovada pelo Comitê de Ética da Plataforma Brasil. CAAE: 58312016.4.0000.5137.
14
coerente com o referencial por nós utilizado, que não partimos aqui das dimensões de
neutralidade e uni-versidade de qualquer forma de conhecimento. Evidenciar, portanto, nosso
lócus de enunciação, conforme descrito por Mignolo (2005), é mais profundo do que
simplesmente dizer que estamos vinculados a certa maneira de compreender o mundo, mas diz
da relação do lugar que se fala com as formas políticas e geopolíticas, que evidenciam a
fragilidade da universidade enquanto “uni” e a coloca como “pluri-versal”.
O sujeito pesquisador não se desvincula de certas concepções e de seu lugar na história,
das suas motivações políticas e pessoais. Daí a importância de ressaltar o lugar da pesquisadora
como mulher, latina e defensora da construção de uma educação pautada em processos
decoloniais.
Meu interesse por essa pesquisa surgiu ainda na graduação, quando fui aprovada no
processo seletivo para desenvolver iniciação científica. Ainda estudante de História, já me
interessava pela educação do campo, tendo pesquisado sobre a formação de professores para o
campo, no curso Normal Regional Sandoval Soares de Azevedo, em Ibirité- MG, coordenado
pela conhecida psicopedagoga russa Helena Antipoff.
No mestrado, quis problematizar a atual formação de professores para o campo, buscando
compreender quais eram os sujeitos à frente desse projeto de educação e, principalmente, qual
conhecimento permeia os currículos dos cursos de licenciatura da área.
Nessa perspectiva, aproximamo-nos dos escritos de Dussel (1992), que questionam a
noção de modernidade e problematiza a relação com o conhecimento moderno/colonial,
problematizando como o sujeito Outro, colonizado, é inferiorizado pelas noções de conhecimento
europeu. Diante das leituras, principalmente de Dussel, optamos por pesquisar as relações entre
Educação do Campo, conhecimento e colonialidade/modernidade/decolonialidade.
A pesquisa teve por objetivo realizar uma análise do curso de Licenciatura em Educação
do Campo – LeCampo – ofertado pela Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do seu
Projeto Político Pedagógico e da voz dos sujeitos Outros que compõem o curso, tomando como
referencia as contribuições da perspectiva teórica decolonial.
Os objetivos específicos da pesquisa são: problematizar o conceito de modernidade
trazido pelos autores europeus, a partir dos teóricos latino-americanos vinculados à perspectiva
decolonial; compreender a importância do MST como prática de resistência decolonial nos
espaços universitários; ressaltar a importância de uma perspectiva intercultural crítica na
formação de professores (as) como mediadores e propulsores da construção de um conhecimento
Outro.
Percebemos haver três perspectivas teóricas que se destacam na atualidade para a
15
compreensão da educação do campo. A primeira pauta-se nos escritos da Educação Popular, ou
seja, na busca por compreender a fregmentação do conhecimento entre erudito e popular, sendo
o primeiro um conhecimento associado a diferentes instancias de poder e o segundo um
conhecimento não centralizado, difuso, mas não por isso inferiores entre si. Outra perspectiva é
aquela respaldada pelos teóricos da pedagogia socialista, como Pistrak e Makarenko. Essas
leituras estão centradas, basicamente, nas relações entre trabalho, capital e educação do campo.
Por último, a perspectiva que se aproxima das contribuições da Pedagogia do Movimento que
tem como principal teórica a professora Roseli Caldart. A Pedagogia do Movimento enfoca a
importancia dos movimentos sociais para a construção de uma outra educação, retirando o foco
da escola e voltando-se para os movimentos sociais como espaços de construção de
conhecimento.
No que tange as tendências de formação de educadores do campo também percebemos
três concepções amplamente discutidas. A primeira é aquela que se pautada sobre a perspectiva
hegemônica de campo, compreendendo o rural como simples contraponto a cidade e negando ser
um território de produção de conhecimento e, portanto, de culturas. Assim sendo, caberia ao
professor “elevar” a cultura daquele espaço. Outra perspectiva é denominada de crítica, sendo
aquela que busca compreender o papel do professor a partir de seu espaço de atuação, em uma
relação dialógica com os sujeitos. Por último, destacamos a perspectiva pautada pela proposta do
Movimentos da Educação do Campo. Pautada na luta para construção de políticas públicas
específicas para a formação de educadores do campo e para um conhecimento produzido em
diálogo com os movimentos sociais e sujeitos do campo.
Compreendemos ser essas as principais discussões teóricas, na atualidade, sobre a
educação do campo e a formação de professores a ela vinculada. Dessa forma, concebemos que
a contribuição da nossa pesquisa para o debate acadêmico sobre a Educação do Campo está em
trazer os referenciais decoloniais para realizar uma leitura do projeto de Educação do Campo e
especificamente sobre o LECAMPO. Isso não equivale a dizer que buscamos aqui enquadrar o
curso numa perspectiva decolonial ou não, mas de trazemos as aproximações e os
distanciamentos que percebemos entre o curso e a proposta apresentada pelos autores.
Reconhecendo que a teoria decolonial não nasce como um movimento teórico, mas como uma
prática de resistência colonizadora e posteriormente se corporifica em teoria acreditamos ser esta
uma teoria que traz um diálogo profícuo com as propostas atuais da construção de uma educação
do campo provocada pelo Movimentos da Educação do Campo.
Dois estados da arte nos ajudaram a vislumbrar um pouco mais sobre a produção sobre
educação do campo no Brasil em dois momentos diferentes. Os levantamentos realizados por
16
Damasceno e Bessera (2004), trouxeram as produções relacionadas ao tema entre os anos de
1980 e 1990, em teses e dissertações. Entre as conclusões a que chegam as autoras destaca-se o
baixo interesse por pesquisadores interessados nessa área no período pesquisadog e o pouco
fomento fornecido aos pesquisadores que desejam pesquisá-la.
Entretanto, o estado da arte realizado por Gonçalves, Hayashi (2016) ressalta que, embora
atualmente o número de pesquisas tenha aumentado, há um número maior de temáticas que
versam sobre o assunto, o que demanda mais pesquisas na área. O levantamento buscou artigos
publicados entre 2007 e 2015 sobre a Educação do Campo, em revistas com Qualis A1, A2 e B1,
B2; ou seja, periódicos considerados de excelência pela CAPES.
As autoras categorizaram os artigos em dez temáticas: políticas públicas, formação de
educadores de campo, multisseriação, história da educação do campo, currículo,
desenvolvimento, ensino de ciências, movimentos sociais e juventude, trabalho e educação.
Na categoria Formação de Professores, damos destaque ao artigo realizado por Molina
(2015), que discorre sobre a problemática da expansão do ensino superior do Campo e os novos
desafios que passam a surgir da expansão da oferta dos cursos de Licenciatura para o campo. A
autora evidencia os ganhos obtidos historicamente na construção de licenciaturas específicas para
professores (as) do campo, não apenas na ordem da positivação dos direitos, mas numa ampliação
concreta da oferta de cursos de formação e da conquista de fundos públicos do Estado para o
financiamento e manutenção das graduações já conquistadas. Assim, Molina (2015, 2011) nos
deixa cientes das significativas transformações ocorridas na Educação no Campo nos últimos dez
anos.
Em nosso trabalho, buscamos a princípio pesquisas que se verticalizasse sobre o curso de
Licenciatura em Educação do Campo – LeCampo ofertado pela FaE/UFMG. Posteriormente,
buscamos pesquisas na área da Educação do Campo que tivessem como referência teórica a
decolonialidade2 ou a relação entre o conhecimento e a formação de professores.
Encontramos um número significativo de pesquisas cujo lócus era o LeCampo. Contudo,
essas pesquisas verticalizavam temáticas específicas de determinadas áreas de habilitação
ofertadas no curso, ou visavam analisar estratégias pedagógicas de algumas de suas das áreas de
formação. Embora tenham sido úteis no entendimento das áreas do curso, não nos forneceram
uma visão mais global sobre o assunto. Em razão disso, apenas duas dissertações e uma tese
2 Optamos por utilizar o termo “decolonial” e não “descolonial”, pelos mesmos motivos que Walsh (2009). A autora
defende que o termo “decolonial”, marca uma distinção com o significado de descolonizar em seu sentido clássico,
deixar de ser colônia. Deste modo, decolonial é mais que desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, é superar o
momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e
insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua.
17
foram selecionadas.
AUTOR(A) TÍTULO TÍTULO/ ANO DE
DEFESA
ROSENO, Sonia Maria. O Curso de Licenciatura Em
Educação do Campo:
Pedagogia da Terra e a
Especificidade da Formação
Dos Educadores e Educadoras
Do Campo De Minas Gerais
Dissertação / 2010.
HORÁCIO, Amaríldo de
Souza.
Licenciatura em Educação Do
Campo e Movimentos
Sociais: Análise Do Curso de
Licenciatura da Universidade
Federal de Minas Gerais
Dissertação, 2015.
ROSENO, Sonia Maria. A Práxis Educativa do
Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST): Desafios e
Possibilidades no Diálogo
com Instituições
Universitárias
Tese, 2014.
Fonte: nossa pesquisa
As pesquisas realizadas por Roseno (2010) e Horácio (2015) dissertam sobre a construção
do curso, abordando as turmas dos anos de 2005 e 2008. A pesquisa realizada por Horácio (2015)
traz, entre suas conclusões, mudanças significativas percebidas no público e no desenvolvimento
do curso entre os anos estudados.
A tese desenvolvida por Roseno (2014), apesar de não versar exclusivamente sobre o
LeCampo, objetivou compreender o processo educativo dos militantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que participaram do LeCampo e do curso de licenciatura
ofertado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”.
Ao realizamos o levantamento sobre Educação do Campo e decolonialidade, não
encontramos um número expressivo de pesquisas, como supúnhamos. Assim sendo, listamos as
três pesquisas que faziam o diálogo teórico entre conhecimento, decolonialidade e Educação do
Campo mais próximo do almejado.
18
AUTOR (A) TÍTULO TÍTULO / ANO DE
DEFESA
LEMOS, Girleide Tôrres. Os Saberes dos Povos Campesinos
Tratados Nas Práticas Curriculares
de Escolas Localizadas no
Território Rural de Caruaru-Pe.
Dissertação, 2013.
MOTA, NETO, João
Colares.
Educação Popular e Pensamento
Decolonial Latino-Americano Em
Paulo Freire e Orlando Fals Borda
Tese, 2015.
ZANCANELLA, Yolanda. Educação dos Povos do Campo:
Os Desafios da Formação dos
Educadores'
Dissertação, 2007.
Fonte: nossa pesquisa
A pesquisa desenvolvida por Lemos (2013) teve como objetivo compreender os sentidos
dos saberes dos povos campesinos tratados nos conteúdos de aprendizagem nas Práticas
Curriculares dos (as) professores (as) das escolas localizadas no território rural do município de
Caruaru-PE. Apesar das discussões trazidas pela autora não se aproximarem dos espaços
acadêmicos como produtores de conhecimento e da formação de professores (as), houve uma
rica discussão teórica sobre as noções de produção de conhecimento, sua seleção e sua “inclusão”
como conhecimento escolarizado.
A autora chega à conclusão de que os professores (as) das escolas pesquisadas reforçam
o estereótipo de que os conhecimentos dos sujeitos do campo são inferiores aos conhecimentos
científicos, além de reforçarem o campo como local de atraso e o da cidade como local de
progresso.
Já a dissertação apresentada por Zancanella (2007) incide em pontos centrais sobre a
formação de professores do campo e os conhecimentos necessários a essa formação. A autora
aborda em sua pesquisa a proposta de formação de professores (as) na Universidade Estadual do
Oeste do Paraná –UNIOESTE - em um curso de Pedagogia do Campo.
Para a autora, o curso nasce de uma insuficiência histórica na formação dos professores
(as) do campo e, por outro lado, de um crescimento dos movimentos que reivindicam um novo
modelo de formação. Mais do que uma mudança metodológica na construção dos cursos de
licenciatura do campo, a autora analisa como esse novo modelo de formação tem de se atar a
uma necessidade de aproximação entre os saberes construídos pelos sujeitos do campo e a
universidade, a partir da criação de políticas públicas específicas para formação de professores
do campo. Assim, deve haver uma ressignificação da Universidade que inclua uma revisão de
seu papel social e dos conhecimentos que a ela se conectam, possibilitando que saberes Outros,
construídos dentro dos movimentos sociais, passem a ela se relacionar.
19
Por percebermos a problemática do conhecimento como central à proposta de formação
de professores, e principalmente, o questionamento do que é denominado “conhecimento
relevante” para ocupar os currículos de formação de professores, acreditamos que pesquisas
novas e mais aprofundadas nessas áreas são de grande relevância. Apesar da pesquisa de
Zancanella (2007) trazer essas problematizações, a autora não tece sobre a questão do
conhecimento, porque esse não é seu objeto de estudo.
Problematizar o conhecimento que ocupa os currículos dos cursos de licenciatura em
educação do campo equivale a problematizar a ideia equivocada e perigosa de que o
conhecimento é neutro. Acreditamos ser necessário questionar: De quem é esse conhecimento?
A que grupo social pertence? Responder essas questões nos possibilita problematizar com a
suposta neutralidade científica e com o metarrelato europeu que, segundo Lander (2005), se
impõe sobre as disciplinas escolares, principalmente, na América Latina.
1.1 Metodologia
O olhar é algo de grande importância na cultura ocidental. Como descrito por Tosta e
Rocha (2009), há várias expressões que permeiam nossa oralidade que reforçam a importância
do olhar, como em “olhos nos olhos”, “jogo de olhares” e “olho gordo”, só para citar algumas
das possibilidades. Entretanto, o olhar ocidental é marcado pela dominação e conquista do Outro.
A perspectiva ocidental traz em si uma ontologia da totalidade, que impede que o outro
seja reconhecido como Outro. Ao considerar a sua narrativa histórica como a única legítima, as
demais narrativas passam a ser consideradas exóticas e inferiores, passando a fazer parte das
histórias do “resto do mundo”.
Corroborando essa perspectiva, Smith (2016) nos diz que o olhar investigativo científico,
quando direcionado às culturas não europeias, foi historicamente construído como sinônimo de
contato com povos e saberes informais, imaginativos e anedóticos. A forma de investigação
científica de outras culturas, como a própria etnografia, passa a ser meio de conhecer aqueles que
“fogem à civilidade”. Nessa lógica, a pesquisa científica possibilita novos processos de
colonização e de colonialidade dos povos e de seus saberes.
Isso não quer dizer, entretanto, que se parte aqui de um radicalismo que busca negar todo
acúmulo de conhecimento científico que se desenvolveu no Ocidente, mas de salientar que
partimos aqui de uma problematização da construção da ciência dentro da modernidade europeia,
que não a reconhece como neutra e objetiva. Daí nosso lócus de enunciação ser a América Latina,
não apenas numa perspectiva desse ser nosso “ponto de vista”, mas do reconhecimento que é
20
desse ponto de vista da construção da História que nos situamos, junto às Outras histórias e aos
Outros sujeitos silenciados pela ciência moderna.
Daí, pensar uma pesquisa com sujeitos que historicamente tiveram sua cultura e suas
identidades silenciadas requer, necessariamente, um esforço para não repetirmos processos
históricos de construção do saber científico que perpetuam o silenciamento desses sujeitos. O
Outro, em nossa pesquisa, se materializa nos estudantes do curso de Licenciatura em Educação
do Campo (Le Campo). Sujeitos que vivem e moram do e no campo, e que buscam outra
apropriação desse lugar e das suas histórias, resistindo ao olhar construído pela modernidade
europeia, que insiste na tentativa de colonizar os sujeitos campesinos frente aos ideais da
construção de uma única forma de sociedade pautada no progresso, na lógica do capital e do
saber científico como superior.
Como descrito por Smith (2016), é necessário descolonizar as metodologias nas
pesquisas. Isso equivale a repensar esses sujeitos e seus lugares na História oficial, trazendo suas
resistências, práticas e o direito a saberem-se sujeitos históricos, mas não apenas isso; também
se torna necessário que as pesquisas possibilitem melhoras às condições de vida desses sujeitos.
Reconhecemos que é necessária grande atenção ao pensar nesse último ponto proposto
por Smith. Por vezes, a melhora da vida dos sujeitos através das pesquisas está associada à noção
de que o pesquisador “dá voz” a esses sujeitos. Entretanto, assim como descrito por Spivak
(2010), partimos aqui da noção de que esses sujeitos sempre falaram e resistiram, sempre tiveram
“voz” própria, sem precisar que outro a concedesse. Acreditamos que nossa ação como
pesquisadores, que almejam contribuir, por meio dessa pesquisa, para melhorar as condições
desses sujeitos, está vinculada, primordialmente, ao ouvir. A escuta, aprendida no ethos oriental,
permite conhecer o Outro através de uma postura de silêncio. Não um silêncio de indiferença,
mas aquele que reconhece que, por não sabermos nada do outro como Outro, nos resta a escuta
atenta do que ele tem a nos dizer e a demonstrar de seu mundo.
Entretanto, a escuta desses sujeitos se dá mediada pela ocupação que eles fazem do espaço
acadêmico em um curso de nível superior. Assim, nossa atenção se volta para analisar o curso de
formação de professores para o campo a partir de uma perspectiva de análise decolonial,
buscando evidenciar a forma como as suas estruturas de produção de conhecimento estão
articuladas ao processo da colonialidade e decolonialidade, buscando compreender como esses
sujeitos que estão no curso se apropriam dele.
A escolha pela instituição da UFMG para o desenvolvimento dessa pesquisa se deu por
entendermos que ela atenderia aos pontos propostos, uma vez que a universidade é considerada
21
referência nacional na área da educação do campo, além de já apresentar quantidade substancial
de conteúdo acadêmico sobre a temática3.
Frente às inquietações das relações eu/Outro na produção do conhecimento acadêmico,
a nossa concepção sobre o que é uma pesquisa não pode, portanto, se distanciar das relações entre
o pensamento e ação, mesmo que se reconheça que a pesquisa é uma prática teórica. Nossa
definição sobre o conceito de pesquisa se alicerça em Minayo, quando nos diz que
(...) nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar,
um problema da vida prática. As questões da investigação estão, portanto, relacionadas
a interesses e circunstancias socialmente condicionadas. São frutos de determinada
inserção na vida real, nela encontrando suas razões e seus objetivos. (2000, p. 16) Para desenvolvermos a pesquisa, optamos pela abordagem qualitativa, por
compreendermos que ela nos possibilita visualizar e analisar a realidade social no campo
educacional, em específico, e nos ajuda a desvelar os significados, valores e atitudes que estão
presentes no mundo dos sujeitos pesquisados.
Conforme descrito por Bogdan e Bilken (1994), os estudos qualitativos são marcados pela
presença dos investigadores nos locais de estudo, porque se preocupam em observar o ambiente
da ocorrência dos fatos. Os dados recolhidos
Na sua busca de conhecimento, os investigadores qualitativos não reduzem as muitas
páginas contendo narrativas e outros dados a símbolos numéricos. Tentam analisar os
dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quando possível, a forma em que estes
foram registrados ou transcritos. (p. 48, 1994)
Algumas características, ainda segundo Bogdan e Biklen (1994), são centrais à
construção de uma pesquisa qualitativa. Nem todos os estudos qualitativos são marcados por
darem a mesma importância a distintas categorias, mas a graus diferentes. Assim, o pesquisador
quando está em campo observa a tudo com olhar de estranhamento, questionando sempre o
porquê de as coisas estarem ordenadas de uma determinada forma e não de outra. As
características mencionadas em sua obra são:
1. Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal.
2. A investigação qualitativa é descritiva.
3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que
simplesmente pelos resultados ou produtos.
4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva.
5. O significado é de importância vital na abordagem. (BOGDAN, BIKLEN, p.47-
50, 1994)
3 É notória a importância da produção teórica de Miguel Arroyo e Antunes-Rocha na discussão sobre Educação do
Campo no país.
22
Sendo o ambiente natural a fonte direta de dados, optamos por nos aproximar do curso
realizando observações. Num primeiro momento, elas se deram de forma assistemática, buscando
nos situarmos nos espaços utilizados pelos alunos, e estabelecer conversas informais com
monitores e estudantes de variadas turmas e períodos, além de nos aproximarmos de alguns
alunos nos intervalos entre as disciplinas e no horário do almoço, com o objetivo de conhecer
esses sujeitos e seu cotidiano escolar.
A observação foi realizada em dois momentos distintos: o primeiro momento foi em uma
disciplina ofertada de forma conjunta a todas as habilitações do Le Campo, denominada
“Processo de Ensino Aprendizagem”. Nesses momentos, a observação ocorreu de forma
assistemática, devido à pluralidade de situações. O segundo momento de observação aconteceu
na observação feita, em sala de aula, de uma disciplina específica, ofertada à turma da habilitação
em “Literatura, Artes e Linguagem” (LAL) no quinto período. Houve uma preocupação em
realizar uma observação sistemática dos sujeitos que compunham aquela turma, e de perceber
como os conhecimentos trazidos pelo professor junto à disciplina eram trabalhados em sala de
aula.
O processo da escolha das disciplinas se deu inicialmente a partir da leitura do título das
disciplinas ofertadas naquele TE nas quatro habilitações oferecidas no curso4. Pelo nome das
disciplinas, descartamos aquelas que pareciam verticalizar o conteúdo específico de sua área de
formação, uma vez que buscávamos uma disciplina que enfatizasse os aspectos da formação de
professores, educação do campo e o conhecimento a ele veiculado.
Ao termino da seleção, ficamos em dúvida entre duas disciplinas, ambas ofertadas na
habilitação em Letras, Artes e Literatura (LAL): a disciplina “Educação e Trabalho” e a disciplina
“Educação, conhecimento e cultura”. Busquei, junto à secretaria do curso, a ementa de ambas as
disciplinas, para melhor compreendê-las. Ressaltamos que não tivemos acesso aos planos de
ensino das disciplinas, mas a um quadro que as listava seguidas pelas suas ementas. Observamos
que a primeira tinha uma carga horaria total, somada TE e TC, menor que a segunda,
respectivamente 45h e 60h. E tivemos ciência das seguintes ementas
EDUCAÇÃO E TRABALHO: O processo histórico de construção das condições de
sobrevivência. Trabalho no campo. A relação educação e trabalho; Educação
profissional; trabalho docente e saúde.
4 Ciência da Vida e da Natureza (CVN), Línguagens, Artes e Literatura (LAL), Ciências Sociais e Humanas (CSH)
e Matemática..
23
EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO E CULTURA: A diversidade epistemológica do
mundo da construção de procedimentos às estratégias de legitimação. Ciências,
discurso e poder. Ciências naturais e sociais, comprometimento com o sentido coletivo
da vida e responsabilidade com o mundo. (Grifos nossos)
Dentro das propostas apresentadas, chamou-nos a atenção a que se relaciona à disciplina
“Educação, Conhecimento e Cultura”, por trazer a relação com o conhecimento e suas estratégias
de legitimação, traço que se aproxima das indagações trazidas pela colonialidade do ser e do
poder, além de trazer proposições de um sentido das ciências naturais e sociais a partir de um
sentido de coletividade. Assim, interessou-nos saber como essas proposições se desenvolviam na
prática, na relação com os teóricos e nas interações do espaço escolar.
Posteriormente, incluímos a disciplina “Processo de Ensino-Aprendizagem” por ser
diferente das outras comumente ofertadas em cursos de formação de professores: seu objetivo,
de acordo com a ementa, é promover a articulação entre o TE e o TC, da seguinte maneira
Fazer a discussão teórica e vivência prática da organicidade, por turma, por tempo-
escola e tempo-comunidade. Organização em Grupos de Trabalho. Apropriação teórica
de conceitos relativos à organização e processos grupais, engajamento social e
lideranças.
Assim, apostamos que essa disciplina tinha potencial para trazer uma concepção de
produção de conhecimento e de formação de professores vista “de baixo para cima”, estimulando
processos coletivos e avaliativos do curso e de reflexões sobre a teoria e a prática na formação
docente, rompendo com a verticalização moderna que traz a hierarquização dos saberes
acadêmicos como superiores e buscando uma relação pautada na ação e engajamento social
desses sujeitos futuros educadores.
As percepções e impressões obtidas no período da observação em campo foram
registradas em um caderno de campo que se tornou fonte valiosa de impressões, no qual me
ocupava em descrever as características e especificidades das falas dos educandos do curso em
seus momentos de discussão em sala de aula, além de poder tomar nota das percepções dos
educandos das outras turmas junto à disciplina transversal.
A escrita neste caderno se desenvolveu a partir de rigorosa descrição das situações
observadas. Num primeiro momento, elas eram realizadas de forma concomitante à observação,
entretanto, como a disposição das carteiras em sala de aula se apresentava em círculo, minha
presença era sempre notada, assim como minhas anotações. Depois de alguns comentários de
educandas da turma, em tom cômico, dizendo: “Quero ler esse caderno seu hein?!” e “Nada
escapa da escrita dela gente, vocês viram isso?” (Caderno de campo dia 12 de junho de 2016),
24
percebi ser menos elucidativo de minha presença fazer as anotações apenas de pontos centrais ou
a escrita de palavras-chave em sala de aula e, posteriormente, ao término da observação passava
a desenvolver os pontos anotados. Diferentemente, na disciplina Processos de ensino
aprendizagem, era possível tomar notas de forma simultânea à observação sem que isso
destacasse minha presença, devido principalmente à quantidade de alunos presentes.
A entrevista na pesquisa qualitativa ganha visibilidade. Afinal, por meio dela, é possível
compreender como os sujeitos pesquisados se colocam frente às situações, podendo, através de
seus discursos, percebermos como essas relações se efetivam. Como descreve Minayo (2010), a
entrevista nada mais é do que uma forma de conversação que, em seu sentido restrito, busca ser
um meio para coleta de informações sobre determinado tema científico.
Minayo (2000) descreve cinco tipos de entrevista, a saber: sondagem de opinião,
semiestruturada, aberta ou em profundida, focalizada e projetiva, entretanto, as mais utilizadas
são as entrevistas semiestruturadas e as abertas (ou não estruturadas). A utilização de uma delas
diz do nível de diretividade que se quer empregar: enquanto a primeira segue um roteiro que
direciona a entrevista, a segunda deixa o entrevistado livre para discorrer sobre a temática que
lhe é apresentada. Como descrito por Ludke e André (1986), a entrevista tem algumas vantagens
sobre outras técnicas, porque permite
[...] a capacitação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com
qualquer tipo de informante e sobre os mais variados tópicos. Uma entrevista bem feita
pode permitir o tratamento de assuntos de natureza estritamente pessoal e íntima, assim
como termas de natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais. (LUDKE;
ANDRÉ 1986, p.35)
Fizemos a opção de utilizar a pesquisa semi-estruturada, evitando assim uma rigidez que
impossibilite a fluidez da conversa com os sujeitos, viabilizando um campo para novas hipóteses,
além de reconhecermos ser essa a técnica que mais se aproxima das nossas demandas em escutar
o Outro, deixando-o de certa forma livre para compartilhar suas percepções e sentimentos sobre
vários aspectos.
Para a realização da entrevista, elaboramos um roteiro prévio. A entrevista foi realizada
com um professor responsável pela disciplina em que a observação de campo foi realizada.
Optamos por fazer a pesquisa com o professor responsável pela disciplina “Educação,
Conhecimento e Cultura”, por entendermos ser possível verticalizar nossas percepções sobre as
escolhas feitas pelo professor para o desenvolvimento da disciplina, além de podermos dialogar
sobre episódios significativos percebidos no período da observação.
25
Reiteramos que, na entrevista, buscamos compreender de forma mais geral as percepções
trazidas pelo entrevistado sobre a relação entre a formação dos educadores do campo e o
conhecimento necessário a essa formação. A partir desse questionamento amplo, conduzimos a
entrevista buscando abordar as percepções e as organizações do curso dentro das noções de
colonialidade e de decolonialidade, tendo sido transcritas, posteriormente, pela própria
pesquisadora.
Preocupamos em manter a transcrição fiel à oralidade, por acreditarmos que há nas pausas
no momento da fala e na forma de dizer sobre o assunto pontos significativos para podermos
ouvir melhor esses sujeitos. Preferimos por colocar a simbologia (...) para expressar uma pausa
na fala dos sujeitos e por não utilizar a expressão (sic) quando percebemos alguma diferenciação
na oralidade frente ao padrão da língua formal. A ausência da expressão sic possibilita uma leitura
dos fragmentos analisados de forma mais fluida. Além disso, reconhecemos que a oralidade traz
outras normativas que fogem àquelas expressas pela grafia da forma padrão da língua e que não
necessitam ser marcadas como desvios.
Faltava-nos ainda encontrar um procedimento metodológico para nos encontrarmos com
os sujeitos que faziam parte da turma da LAL/2011. A escolha pela roda de conversa se deu por
percebermos nela um potencial para a interação entre os sujeitos e suas histórias. Assim, a roda
possibilita que as construções de sentidos e percepções sobre o curso e sobre a ocupação desses
sujeitos no espaço acadêmico não sejam percebidas somente a partir do sentido individual, mas
também do coletivo. A conversa realizada em roda não busca consenso, mas a pluralidade de
opiniões, que pode se dar de modo convergente em alguns momentos, complementando os
sentidos percebidos e possibilitando as divergências, sem que isso, reiteramos, oculte os sentidos
individuais atribuídos por esses sujeitos.
Para Almeida (2011), a circularidade da roda pode ser compreendida tanto como um
momento em que há transmissão de saber e conhecimento como um encontro de gerações e
culturas, momento de rememoração histórica.
Neste sentido, a roda é o elemento para a reunião, a proximidade e associação de pessoas
e culturas. A disposição da roda por meio do círculo permite a comunicação entre as
pessoas, o estabelecimento de olhares, identificações a
ações coletivas. A roda demarca o espaço do encontro e da inclusão; nenhuma roda está
fechada em si, sempre pode se abrir para a entrada de mais um. (ALMEIDA, 2011,
p.40)
26
À mediadora coube a responsabilidade de não deixar que alguns sujeitos monopolizassem
o debate, criando um ambiente de escuta das diferentes vozes e experiências daqueles que ali
estavam.
A roda de conversa foi realizada na FaE, no espaço de sala de aula, e foi marcada com
antecedência para que fosse possível ter a participação de um significativo grupo de educandos,
durando aproximadamente 1h e 15min.
Realizamos um quadro para apresentar de forma sintética os sujeitos que participaram da
roda de conversa.
Pseudônimo5 Idade Estado Civil Já
lecionou
Tempo
de
docência
Disciplina Turmas Localidade Município
Ana 31 União Estável Não - - - Área rural Icaraí de
Minas
Lira 26 Solteira Não - - - Área rural Icaraí de
Minas
João 20 Solteiro Não - - - Área rural
Ouro
Verde de
Minas
Gabriela 20 Solteira Sim 6 meses
Língua
Portuguesa
e Redação
6º ao 9º
ano Área rural
Rio Pardo
de Minas
Pedro 22 Solteiro Sim 18 meses
Língua
Portuguesa
e Redação
6º ao 9º
ano Área rural
Rio Pardo
de Minas
Júlia 23 Solteiro Não - - - Quilombo
Ouro
Verde de
Minas
Felipe 25 Solteiro Sim 1 mês
Língua
Portuguesa
e Redação
6º ao 9º
ano Quilombo
Rio Pardo
de Minas
Bianca 28 Casada Sim 36 meses
Arte e
Língua
Portuguesa
6º ao 9º
ano
Área
indígena
São João
das
Missões Fonte: nossa pesquisa
Houve um convite geral aos educandos da turma para participarem da roda de conversa,
tendo comparecido no dia oito alunos. O perfil dos presentes foi diverso, principalmente se
5 Foi solicitado para que os sujeitos que escolhessem um pseudônimo. Os que não escolheram deixaram a cargo da
pesquisadora a escolha.
27
observadas as faixas etárias, seu tempo de atuação como educadores e as suas a diversidade de
localidades de moradias no meio rural.
Para analisarmos a roda de conversa criamos quatro categorias de análise fundamentais,
a partir das respostas dos sujeitos pesquisados, e apresentamos as aproximações e
distanciamentos que percebemos junto aos teóricos decoloniais. Analisamos as relações entre os
sujeitos do curso e sua institucionalização; buscamos analisar quais os sentidos trazidos por esses
sujeitos de serem educadores do campo; analisamos a alternância pedagógica e a importância da
presença dos movimentos sociais para garantirem a materialidade do curso.
Outra técnica a que recorremos foi a análise documental, para realizamos a análise do
PPP do curso. Segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), a pesquisa documental é pouco
explorada na área da educação, mas a sua utilização, dependendo do problema que se deseja
trabalhar, é uma técnica muito interessante quando se quer buscar informações documentais.
Mas, o que é documento, afinal? Dentro da escola positivista do século XIX, os
historiadores reconhecem como documento apenas um seleto grupo de documentos escritos e
oficiais. O documento era aquele que guardava o conhecimento histórico, cabendo ao historiador
apenas captar os fatos relevantes e documentais que ali estavam. Nessa visão, não havia uma
problemática sobre a intencionalidade daquele que o analisa e, muito menos, sobre a
subjetividade nele encontradas. Nessa perspectiva, o documento era naturalizado.
Como relata Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), coube à escola dos Annales, no
primeiro quartel do século XX, modificar de forma significativa essa concepção sobre
documento. Agora este passa a ser problematizado, assim como o sujeito que o manipula. Além
disso, no que tange ao reconhecimento do que é aceito como documento, há uma ampliação: não
são mais somente documentos oficiais, escritos, aqueles que dizem da história, mas iconografias,
objetos do cotidiano, elementos folclóricos e quaisquer objetos que digam do passado, mais
recente ou não.
Consideradas tais reflexões, os documentos por nós utilizados foram o Projeto Político
Pedagógico do Curso e o Plano de Ensino das duas disciplinas observadas. Para tanto,
enfatizamos nossas análises na construção do PPP do curso, na concepção de alternância
pedagógica e na docência multidisciplinar.
Sendo assim, a dissertação se organiza em seis capítulos, sendo o primeiro composto pela
Introdução em conjunto à Metodologia. No segundo capítulo, “A modernidade como matriz da
colonialidade”, apresentamos a crítica decolonial ao conceito de modernidade. Reconhecendo
que os processos de colonização resultam sempre em processos de dominação e uma reação por
parte dos colonizados, apresentamos ambas as facetas da colonização na América Latina.
28
No terceiro capítulo, denominado “A decolonialidade revisada”, apresentamos os autores
e os conceitos que balizam a nossa pesquisa, com foco nos escritos de Quijano, Dussel e Paulo
Freire. No quarto capítulo, “A proposta de construção do MST sob a perspectiva intercultural e
decolonial”, apresentamos um pouco da história do MST e as lutas empreendidas pelo
movimento para a construção de políticas públicas voltadas para a construção de uma Educação
do Campo. No quinto capítulo, “Formação de professores e o campo”, apresentamos os
paradigmas de formação de professores e, em especial, o vínculo entre a perspectiva crítica e a
proposta de formação de professores para a Educação do Campo.
Por último, apresentamos os dados da pesquisa de campo. Inicialmente construímos um
histórico da construção do LeCampo; em seguida, apresentamos os dados da observação de
campo como os dados da roda de conversa. A dissertação se encerra com as considerações finais,
momento em que buscamos sintetizar a pesquisa e estabelecer reflexões sobre os dados
encontrados.
29
2 A MODERNIDADE COMO MATRIZ DA COLONIALIDADE
Evidenciar como se deu a construção da matriz colonial de poder dentro da narrativa
totalizadora produzida pela História universal europeia é o passo inicial para se compreender e
analisar as formas de dominação e negação do Outro e de suas histórias, perpetradas pelo padrão
de poder colonial dominador.
Para os teóricos da decolonialidade, especialmente Dussel (1993), é necessário realizar
um “desmonte” das estruturas epistêmicas que produziram a Europa como superior aos demais
povos e culturas, demonstrando que não há um processo de neutralidade que as legitime, mas
uma supremacia dos conhecimentos do grupo que desfrutou da vantagem colonial.
Um dos conceitos centrais para Dussel (2005, 2002) a ser desconstruído é a modernidade.
O autor busca construir outra noção da modernidade que não se restringe à clássica tríade
europeia: Revolução Francesa, Reforma Protestante e Iluminismo.
Assim, a modernidade passa a ser compreendida a partir não de fenômenos intraeuropeus,
mas a partir das grandes navegações, dos processos colonizadores da Ameríndia em 1492.
O encobrimento do Outro, nas palavras de Dussel (1993), e não o descobrimento do Outro
é o que caracteriza esse momento. A Ameríndia passa a ser espoliada para garantir riquezas à
Europa, à custa do silenciamento e da exploração do nativo e do negro feitos, respectivamente,
de servo e escravo, passando a ser utilizados como objeto necessário para a exploração das
“novas” terras.
A modernidade, portanto, inicia-se com o silenciamento, exploração e espoliação do
Outro, o latino colonizado. Essa outra interpretação nos possibilita perceber a falácia da
construção da modernidade como construção endógena europeia e salientar seu momento de
irracionalidade. Ou seja, no projeto racional e emancipador descrito pelos teóricos europeus na
construção de seu conceito de modernidade, há o ocultamento desse momento sacrifical do
Outro, da sua negação enquanto ser humano pela Europa.
Se por um lado a releitura sobre a construção da modernidade nos propicia compreender
como esses processos de encobrimento do Outro se deram, numa tentativa de padronizá-lo dentro
do mesmo europeu, construindo um padrão de mesmidade, também torna possível vislumbrar
como o Outro se organizou e desenvolveu práticas de resistência que enfrentam o padrão de
mesmidade europeia.
Explicitados necessários e centrais pontos históricos que nos ajudam a apreender que os
processos de resistência e de negação do Outro nascem na modernidade, nos dispomos a centrar
nossa escrita nos processos regidos pela colonialidade. Como já dissemos em outro momento, o
30
findar do processo colonial não equivaleu a uma possibilidade de construção da Outreidade
dentro da América Latina, mas criou outros laços de dominação que estão baseados na
perpetuação do padrão de poder de dominação iniciado na modernidade colonial.
Assim, o projeto neoliberal passa a ser a grande narrativa histórica que parece direcionar
toda a “História” a um único e inexorável lugar. Se a modernidade é construída sobre as bases
de ideias de racionalidade e um único padrão de civilidade, o neoliberalismo reforça esses laços,
porém numa perspectiva de inclusão.
É a partir dos escritos de Walsh (2014) que buscamos analisar como a construção da
Outreidade latina no período da colonialidade sofre com um projeto de inclusão capitalista, que
busca, a partir de uma perspectiva intercultural funcional, trazer o Outro para dentro do Mesmo,
a partir de uma inclusão que seja funcional ao sistema capitalista neoliberal.
O neoliberalismo é aqui compreendido, conforme Lander (2005), não apenas como uma
política/teoria econômica, mas, principalmente, como um discurso homogêneo de base
civilizatória. Há no neoliberalismo uma síntese dos valores necessários ao “bom”
desenvolvimento das sociedades, pautados sob relações com o humano, a natureza, a história, o
progresso, o conhecimento e a “boa vida”. Não haveria, portanto, outras formas, modelos ou
teorias que se colocassem como alternativas a esse modelo hegemônico de vida.
Aos países outrora colonizados, o que lhes cabe é adequarem-se a esse padrão
hegemônico de desenvolvimento para não serem considerados, novamente, atrasados e
incivilizados, frente aos países europeus que já incorporaram esse modelo de desenvolvimento.
O modelo neoliberal se constitui, no senso comum da sociedade moderna ocidental, como a única
possibilidade de desenvolvimento mundial, reescrevendo a história mundial a partir da
centralidade europeia totalizante, numa expectativa de que a História teria nele seu fim.
O neoliberalismo é um excepcional extrato purificado e, portanto, despojado de tensões
e contradições, de tendências e opções civilizatórias que tem uma longa história na
sociedade ocidental. Isso lhe dá a capacidade de constituir-se no senso comum da
sociedade moderna. A eficácia e a hegemonia atual desta síntese sustentam-se nas
tectônicas transformações nas relações de poder ocorridas no mundo nas últimas
décadas. (LANDER, 2005, p. 8)
A modalidade neoliberal traz em si a globalização como fenômeno pujante e recente na
História, por vezes com uma concepção idílica da construção do mundo como uma aldeia global.
Entretanto, segundo Coronil (2005), a globalização atual é uma intensificação do comércio
transcontinental, de expansão do capitalismo e das colonizações mundiais. Na globalização que
31
vivenciamos com o liberalismo se acentua a polarização, a exclusão e a diferença dos países
centrais em relação àqueles historicamente colonizados.
Não há uma expansão dos centros de globalização neoliberais europeus (antigos
colonizadores) na globalização que vivemos, mas uma implosão, que trouxe os centros de poder
às periferias a elas subordinadas. “Em suma, unifica dividindo. Em vez da reconfortante imagem
da aldeia global, [o neoliberalismo] oferece, de diferentes perspectivas e com diferentes ênfases,
uma visão inquietante de um mundo fraturado e dividido por novas formas de dominação. ”
(CORONIL, 2005, p.50)
Como desenvolvido por Coronil (2005), as características da globalização neoliberal
perpetuam, dessa forma, os processos vivenciados no período da primeira modernidade,
principalmente ao desagregar as histórias dos países das suas relações com o restante do mundo,
fazendo com que as diferenças sejam reconhecidas como hierarquias naturalizadas nos processos
históricos. Entretanto, essas leituras devem ser feitas não mais sob a perspectiva da colonização,
mas de uma colonialidade que se mantem hegemonicamente sob alguns países.
A colonialidade neoliberal, para Santos e Rodrigues-Garavito (2004) se destaca pela
lógica do norte sob o desenvolvimento do sul. “Nortear” o sul é a proposta fomentada por órgãos
estrangeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para “garantir” apoio
técnico (produzido pelos países do Norte) ao seu “desenvolvimento”.
Por trás do discurso de inclusão, o que se percebe é que as diferenças entre norte e sul
continuam a existir dentro das dicotomias modernas/colonizadoras: os países do norte ainda
“detentores” e “doadores” do conhecimento, do desenvolvimento, do pensar e da vida urbana, ao
contrário dos países do Sul, que detêm a ignorância, o subdesenvolvimento, o aprender a pensar
e a fazer, o ambiente rural e a possibilidade de se incluírem no processo neoliberal. O Outro é
negado novamente em sua alteridade, frente à narrativa mundial neoliberal. O Outro só se
completa e se define quando o Ser Europeu o completa em suas “faltas” e “atrasos”.
Entre os vários grupos que sofreram influência direta das propostas neoliberais, ousamos
dizer que nenhum foi tão acentuado como o campo. O ambiente rural passa a ser sinônimo de
atraso e de um modo de vida que tende ao desaparecimento, diante de uma “inevitável” expansão
da modernização e da modernidade urbana, que privilegia o cidadão (aquele que vem da cidade)
em detrimento do camponês.
O modelo capitalista de agricultura passa a ser aquele que garante a reorganização das
formas de trabalho e de organização da população campesina, possibilitando sua inclusão no
sistema neoliberal, centrando os esforços do campo na importância dos conceitos de “mercado
de trabalho”, “eficiência produtiva” e “individualismo”.
32
Essa proposta de modernização busca a inclusão daqueles que estavam até então à
margem/excluídos do sistema capitalista. Entretanto, essa inclusão não se realiza a partir do
reconhecimento da alteridade do Outro, mas como uma nova forma de silenciá-lo dentro do
projeto de Mesmidade capitalista. A busca pela manutenção da hegemonia e da suposta
neutralidade neoliberal trouxe a inclusão desses sujeitos como uma “espontaneidade” do sistema,
desprovido de disputas de poder e de fronteiras políticas.
Um dos conceitos centrais que permeiam nossa escrita será o lócus de enunciação.
Segundo Mignolo (2005), o que se problematiza na escrita não é apenas o conhecimento
produzido como um saber parcial, mas a importância de se afirmar a impossibilidade de
desvinculação do sujeito da enunciação com seu lugar epistêmico.
Portanto, nosso lugar de enunciação epistêmica é aquele que se coloca na defesa da
pluriversalidade. Situamos nossa escrita dentro da lógica do sujeito Outro colonizado, latino
escrevendo a partir de uma geopolítica que, nas palavras de Eduardo Galeano (2016), sofreu com
a divisão internacional do trabalho. Em outras palavras, enquanto alguns países se especializaram
em ganhar, a América Latina se especializou em perder, desde o período do Renascimento,
quando os europeus “se aventuraram pelos mares e lhe cravaram aos dentes na garganta”
(GALEANO, 2016, P. 17).
2.1 A Modernidade em Dussel
É central, não só à escrita de Dussel (1993,2005), mas a toda a concepção decolonial, a
problematização da modernidade. A hegemonia da História universal europeia está imbricada a
uma proposta de desenvolvimento e de progresso ilimitado relacionado ao capitalismo. Este
último, gestado nos países do centro (antigas metrópoles, principais beneficiadas do ouro e da
prata da América Latina), é direcionado à periferia (antigas colônias exploradas), a uma
imposição europeia que gera a “impossibilidade” e “inexistência” de qualquer outra civilização
que não aquela gestada pela burguesia europeia. O Outro, o oprimido, é colocado à margem do
projeto capitalista, “desnudado” de história, epistemologia e de um projeto alternativo capaz de
lhe proporcionar a dignidade. (ZANARDI, 2013).
A construção da modernidade é aqui entendida como uma amálgama entre os processos
de colonização, colonialidade e de consolidação do capitalismo. A importância da modernidade,
como Wallerstein (1974) descreve, está em ser grande estrutura de compreensão da sociedade,
precedida apenas pela revolução neolítica.
33
O autor que nos apoiamos para dissertar sobre a centralidade da problemática moderna é
Dussel (2002; 1993). Nele, a problemática central está em conceber quando a modernidade se
iniciou, e a partir de quais situações históricas. Segue-se daí duas concepções: a primeira é
denominada eurocêntrica, uma vez que todos os esforços para a análise desse fenômeno se
encerram na Europa. A segunda, denominada modernidade subsumida, entende os processos
mais amplos aos quais se vincula a modernidade, a partir de dois momentos históricos: o século
XV, com a colonização da América Latina e o século XVIII, com a consolidação do capitalismo
na Europa.
A primeira concepção é contemplada exclusivamente por processos endógenos à Europa.
Assim, a modernidade é tida como o ápice do desenvolvimento da racionalidade europeia e,
portanto, comprovação de sua superioridade. “La Modernidad es una emancipación, una “salida”
de la inmadurez por un esfuerzo de la razón como proceso crítico, que abre a la humanidad a un
nuevo desarrollo del ser humano. Este proceso se cumpliría en Europa, esencialmente en el siglo
XVIII.” (DUSSEL, 1993, p. 48)
A essa perspectiva, conforme descrito por Weber, representante do pensamento
eurocêntrico, pode-se questionar quais foram os fatores que fizeram repousar exclusivamente
sobre a Europa essa centralidade.
Alguém que seja produto da moderna civilização europeia, ao estudar qualquer
problema da História universal, estará sujeito a indagar a si próprio sobre a combinação
de circunstâncias a que deveria ser atribuído o fato de que na civilização ocidental,
surgiram fenômenos culturais que (como gostamos de pensar) repousam em uma linha
de desenvolvimento que possui significância e valor universal. (DUSSEL, 2013, p. 13)
Segundo Escobar (2005), recorrentemente são mencionadas dimensões históricas,
sociológicas, culturais e filosóficas para explicar a modernidade a partir da sua concepção como
um processo endógeno às transformações europeias. Historicamente, suas origens estariam
centradas no século XVII, na Europa do Norte, e teriam como grandes eventos que a envolvem:
a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Entretanto, é no final do século
XVIII, com a Revolução Industrial, que se tem o ápice da modernidade, quando se consolidam
os aspectos do conhecimento científico-racional ao desenvolvimento do capitalismo.
Sociologicamente, a modernidade se atem à criação de instituições, como o Estado Nação, e a
uma nova relação de temporalidade e localidade, pelas quais as histórias das regiões que não são
europeias passam a ser apenas “histórias locais”, em detrimento da grande narrativa universal
ontológica europeia.
34
Já os aspectos culturais são baseados numa crescente racionalização do mundo/vida.
Posteriormente, as formas de conhecimento passam a se associar ao capital e aos aparatos
administrativos do Estado criados pelo modelo europeu. Por último, sua base filosófica: o
“homem”, sujeito abstrato, passa a ser reconhecido como fundamento de todo o conhecimento
do mundo, passando a ser o único sujeito superior e não mais a natureza ou o divino. O
conhecimento se desenvolve junto a esse único sujeito do conhecimento, frente às suas análises
e verificações sobre os objetos de estudo.
Para teóricos como Dussel (2003, 2005), Quijano (2005), Mignolo (2005), entre outros,
há nessas dimensões uma essencialização da modernidade, que excluiu dela todas as outras partes
do mundo. Daí a necessidade da construção de outro conceito de modernidade, que abarque
outras regiões do mundo numa dimensão planetária:
Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início
da operação do Sistema-mundo). Antes dessa data, os impérios ou sistemas culturais
coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge
o extremo oriente no século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o
planeta se torna o lugar de uma só História Mundial. (DUSSEL, 2005, p. 27)
A totalidade construída pela narrativa moderna europeia só passa a ter sentido a partir da
dominação e espoliação dos Outros, provocando a barbárie juntos aos povos colonizados para
garantir ouro e prata, necessários para o desenvolvimento do capitalismo na Europa.
A segunda concepção da modernidade, denominada subsumida, diz que há, junto ao
“nascimento” da modernidade, um processo de mundialização, de vinculação planetária, que se
desenvolve junto com a colonização.
Dentro dessa lógica, a modernidade é dividida em dois momentos. Seu primeiro momento
é iniciado no século XV e está centrado nas relações da modernidade hispânica, humanista e
renascentista com a construção do sistema inter-regional mediterrâneo e muçulmano. O segundo,
iniciado no século XVII, está centrado em Flandres e no gerenciamento do sistema-mundo pela
Europa.
O primeiro momento dessa modernidade, segundo Dussel (2002), ocorre quando a
Europa, ao encobrir o Outro, e não o “descobrir”, coloniza-o, controla-o, vence e violenta-o. O
segundo momento se relaciona com a consolidação do desenvolvimento capitalista na Europa,
possibilitada a partir da espoliação do ouro e da prata através da exploração do Outro, o
colonizado latino.
Perceber a modernidade a partir de uma dialética planetária traz modos diferentes de
organização do tempo histórico do que aquele produzido pela periodização clássica da
35
historiografia. Essa periodização clássica é caracterizada por Dussel como uma “divisão
‘pseudocientífica’ da história, ideológica e deformante”. (DUSSEL, 2002, p. 51).
A busca de Dussel ao criar esses modelos reside em retirar a centralidade helenocêntrica
ou eurocêntrica da História, modificando a lógica da discussão filosófica da sua atual
centralidade euro-norte-americana. Assim, o autor lança mão de textos míticos de todas as
culturas da história da humanidade para formar os Estágios ético-políticos pré-modernos. Esses
estágios são compostos por três grandes momentos e se propõem a organizar o mundo em grandes
sistemas, anteriores à construção do sistema-mundo: o estágio Egípcio-mesopotâmico, que tem
início no IV milênio a.C.; o estágio Indo Europeu, que se iniciou no século XX a.C. e, por último,
o modelo Asiático-afro-mediterrâneo, que se desenvolveu a partir do século IV d.C.
O primeiro estágio abarca as regiões que levam o nome do estágio, ou seja, Egito e
Mesopotâmia, e apresenta-se como o período da ocupação do planeta. O segundo período, cujos
limites estão entre a China e o Mediterrâneo, conta com a inserção, após o século IV a.C., do
mundo helênico. Esse é o período mais estudado nos espaços acadêmicos atualmente, pois
abrange o período denominado “Antiguidade Clássica” da periodização histórica clássica. O
terceiro estágio se estende da China à Europa Ocidental à oeste e à África bantu ao sul, tendo
como centro as conexões comerciais. A partir do século VII d.C. destaca-se a cultura do mundo
muçulmano, além das Índias com comércio de especiarias.
Em conjunto a esses três grandes estágios ético-políticos, deve-se ressaltar que Dussel
(2002) também descreve a existência de um sistema meso-americano e inca. Devido à forma
brutal da colonização europeia sobre esses povos, não foram guardados documentos que
possibilitassem resgatar de forma sistemática suas histórias e formas de organização anteriores
ao período da colonização. Entretanto, já existem alguns estudos arqueológicos em
desenvolvimento que, segundo Dussel (2002), nos possibilitam chegar à conclusão da existência
de mais de um modelo ético-político no continente ameríndio antes de 1492.
O que Dussel (2005) nos possibilita compreender, a partir dessa nova organização, é a
fragilidade teórica da construção da modernidade em sua forma eurocêntrica. Afinal, o continente
europeu, localizado no estágio Indo-europeu, não possuía nenhuma centralidade econômica ou
cultural, antes de 1492, devido à abrangência e a importância dos comércios desenvolvidos no
estágio Asiático-afro-Mediterrâneo.
A Europa latina é uma cultura periférica e nunca foi, até este momento, “centro” da
história; nem mesmo com o Império Romano (que por sua localização extremamente
ocidental, nunca foi centro nem mesmo da história do continente euro-afro-asiático). Se
algum império foi o centro da história regional euro-asiática antes do mundo
muçulmano, só podemos referir-nos aos impérios helenistas, desde os Seleusidas,
36
Ptolomaicos, Antíocos, etc. Mas, de qualquer modo, o helenismo não é Europa, e não
alcançou uma “universalidade” tão ampla como a muçulmana no século XV. (DUSSEL,
2005, p.26)
Cercada geograficamente pela presença turco-otomana, que a impedia de comercializar
diretamente com as Índias, Portugal e Espanha, dentro de suas privilegiadas posições geográficas
para o Atlântico, passam a buscar rotas alternativas para evitar pagar as altas taxas alfandegárias
da comercialização das especiarias e conquistar as Índias. A conquista e exploração de novas
rotas possibilitariam um novo desenvolvimento econômico não só a esses países, mas a todas as
regiões que se encontravam no sistema Indo-europeu.
A busca por novas rotas levou à exploração e conquista de terras desconhecidas. Dessa
conquista, segundo Dussel (2002), Portugal e Espanha obtiveram uma “vantagem comparativa”
inexistente no século XV. A colonização da Ameríndia possibilitou o acúmulo econômico
necessário de capital à Europa, através das 18 mil toneladas de prata levadas da América Latina
entre 1503 e 1660. Entretanto, como descrito por Galeano (2016), Portugal e Espanha tinham a
vaca, mas não tinham o leite: todo o seu avanço econômico advindo da exploração produziu
rendosos lucros à Inglaterra e França, que, posteriormente, viriam a liderar o centro do sistema-
mundo.
O sistema-mundo, como descrito por Wallerstein (1974), é um sistema que se inicia com
a exploração da América Latina e se perdura com a exploração de outras regiões, feitas de
coloniais, no continente asiático. Nascem assim relações econômicas mundiais centradas na
Europa, que tornam os demais locais do mundo periféricos e silenciados em relação às suas
formas de organização culturais e econômicas. Os interesses do capital europeu colonizam as
formas de organização das populações e suas riquezas naturais.
A construção do sistema-mundo não diz da ligação de todo o mundo, mas da criação de
um sistema mais amplo do que as unidades políticas juridicamente definidas até então. Segundo
Wallerstein (1974), esse sistema nasce no século XV e princípios do XVI podendo ser chamado
também de economia-mundo, por ser o fator econômico responsável por traçar ligações básicas
entre as diferentes regiões, embora também se reconheça a importância dos aspectos culturais e
políticos. Segundo Wallerstein, o sistema-mundo
Era uma espécie de sistema social que o mundo ainda não conhecera realmente antes e
que constitui a característica distintiva do sistema mundial moderno. Era uma entidade
econômica, mas não política, ao contrário dos impérios, cidades-estados e nações-
estados. De facto, ela continha precisamente dentro dos seus limites (é difícil falar de
fronteiras) impérios, cidades-estados e ‘nações-estados’ em ascensão.
(WALLERSTEIN, 1974, p. 25)
37
É somente dentro deste contexto de relações de construção do sistema-mundo, no qual a
centralidade do Mediterrâneo é abandonada pela centralidade das relações de dominação
estabelecidas pelos europeus na América Latina, que se pode pensar na concepção de
Modernidade subsumida. Ou seja, não há um sistema independente de “produção” da
Modernidade no século XVIII pela Europa. Há um processo que, financiado pela burguesia
comercial burguesa europeia, ao buscar sua expansão comercial pelas navegações, passa a
colonizar e expropriar riquezas da região da Ameríndia. Esses processos garantem a derrocada
do Antigo Regime pelo fortalecimento da burguesia, com a acumulação de capital necessário ao
desenvolvimento do capitalismo, e possibilitará a centralidade europeia na gestão do sistema-
mundo que a partir daí se constituirá.
A abordagem de Modernidade que assume criticamente a presença do Outro dentro desse
processo, excluindo a totalidade europeia de toda essa centralidade explicativa dos processos, é
assim definida por Dussel:
(...) não é um sistema independente, autopoiético, auto-referente, mas é uma ‘parte’ do
‘sistema-mundo’: seu centro. A modernidade, então, é uma ‘parte’ do ‘sistema-mundo’;
seu centro. A modernidade, então, é um fenômeno que vai se mundializando;
começando pela constituição simultânea da Espanha com referência à sua ‘periferia’ (a
primeira de todas, propriamente falando, a Ameríndia: o Caribe, o México, o Peru).
(DUSSEL,2002, p.52)
Somente a partir da formação da América Latina como primeira “periferia” desse sistema-
mundo que se compreende a modernidade. Entretanto, esse sistema se mundializa ao longo dos
séculos. No século XVI as áreas centrais passam a ser Espanha, Holanda, Inglaterra e França, e
a crescente periferia passa a ser composta pela Ameríndia, Brasil e as costas africanas de
escravos. Já no século XVII temos a Costa da África, Ásia e a Europa oriental como regiões
periféricas, e no século XIX o Império Otomano, Rússia, alguns reinos da Índia, Sudeste Asiático
e a África continental. (DUSSEL, 2002, p. 52)
O conceito de modernidade ao qual aderimos nessa pesquisa, não parte, portanto, da
noção de que foram os processos históricos acumulados pela Europa ao longo do feudalismo que
possibilitaram sua centralidade. Nossa defesa está em um fator externo. Será, portanto, a
conquista e a colonização da América Latina a responsável por proporcionar vultosos lucros à
economia não só de Portugal e Espanha, mas de toda a Europa, que propiciará o desenvolvimento
do sistema-mundo e da centralidade da Europa nesse sistema.6
6 Dussel (2002) também relata da impossibilidade de ser os conhecimentos europeus aqueles que fizeram com que
ela se colocasse como central, uma vez que a China e o mundo otomano-muçulmano também obtinham rico
38
Nessa perspectiva, Dussel (2002) compreende que há um processo de conquista, nesse
primeiro momento, caracterizado pela construção do sistema-mundo e da colonização, porque
ainda existem traços de aproximação com o antigo sistema inter-regional. Já no segundo
momento, datado do século XVIII, já se apresenta a centralidade da Europa, o sistema-mundo já
tem como política econômica o capitalismo e a Europa como sua condutora.
Assim, o que seria reconhecido pelo modelo eurocêntrico de modernidade como
racionalização ontológica europeia, é abordado por Dussel (2002) como a racionalidade para
gestar e garantir as exigências de eficácia e de gestão do sistema-mundo realizados pela Europa
a partir do século XVII, assegurando que o paradigma do sistema-mundo moderno se
consolidasse como a “única grande narrativa” possível aos demais países do mundo.
A racionalidade, pautada pelos ideais de liberdade e emancipação individuais, seria o
caminho a essa narrativa universal, devendo ser percorrido por todos os povos, principalmente
os colonizados, para saírem da barbárie e da maldade que os “incivilizava” e irem em direção à
civilidade.
Como descrito por Zanardi (2012), a razão iluminista, instrumentalizada pela burguesia
com base nos ideais liberais, teve como objetivo a construção de um único modo de vida, pautado
pela construção de um mundo único. A pluralidade não é incorporada a esse projeto, mas há uma
preocupação com a inclusão dos outros sujeitos a esse projeto através do consumismo e da
exploração e opressão do homem pelo homem.
O mito da modernidade é, segundo Dussel (2002), suprimido desse discurso, como forma
de ocultar o momento irracional do projeto de racionalidade iluminista. Ou seja, é ocultado que
para que a Europa ocupasse a centralidade do sistema-mundo; a colonização do Outro Ameríndio
resultou em processos de aniquilamento do Outro. O genocídio praticado contra os povos nativos
não pode ser concebido pela História Universal como algo “necessário” ao desenvolvimento da
modernização, mas como parte do ato irracional e ocultado pela racionalidade europeia iluminista
burguesa. Assim, a modernidade não se apresenta exclusivamente como racional:
Se a modernidade tem um núcleo racional ad intra forte, como “saída” da humanidade
de um estado de imaturidade regional, provinciana, não planetária, essa mesma
Modernidade, por outro lado, ad extra, realiza um processo irracional, que se oculta a
seus próprios olhos. Ou seja, por seu conteúdo secundário e negativo mítico, a
“Modernidade” é justificativa de uma práxis irracional de violência. (DUSSEL,2005,
p.28)
conhecimento acumulado, inclusive sobre navegações. Não há uma impossibilidade de factibilidade empírica.
Também em Wallerstein (1974) é encontrada essa discussão.
39
Esse momento irracional em seu ápice traz a práxis da violência e do genocídio dos povos
e de suas culturas tidas como inferiores pela racionalidade dominadora eurocêntrica, que
privilegia o conquistar e o dominar em detrimento da escuta e do reconhecimento da alteridade
do Outro.
2.2 O Mito da Modernidade e o Silenciamento do Outro
Para abordar a relação que a Europa teve com o Outro, Dussel (2002) lança um olhar
apurado e comparativo entre o ethos grego e o ethos semita, como forma de compreender o modo
como se desenvolveu a colonização a partir de uma prática de conquista, dominação, espoliação
e negação do Outro.
A perspectiva do ethos semita se constrói a partir de uma “Metafísica da Alteridade”,
concebendo o Outro como uma totalidade própria. Como observado por Dussel, a cultura semita
vivenciada por beduínos no deserto enfatiza o cultivo do ser humano existente por debaixo de
suas túnicas pelo ouvir e acolher. Ao não se ver o Outro que está por debaixo da vestimenta,
apenas escuta-o e acolhe.
Já o ethos grego se inicia na afirmação de Parmênides “o ser é, o não ser não é”,
construindo um ethos vinculado a uma perspectiva de “ontologia da Totalidade”. Existe um ser
que ontologicamente se basta e este é o próprio grego. Assim, na constatação da existência desse
ser que ontologicamente se completa, encontra-se o ser que não se completa e que, portanto,
necessita ser completado. Assim, a perspectiva grega centra-se na noção de conquistar o Outro.
Para Dussel (2002), a Europa tomou para si a totalidade do ser construindo sobre a
filosofia grega seu alicerce, dando-lhe o direito de expurgar do Outro aquilo que a seus olhos era
considerado bárbaro/incivilizado. O não ser, nessa perspectiva europeia, apresenta-se como os
inúmeros Outros existentes na colonização, que necessitam ser “libertados” de sua ignorância
pela totalidade daquele que é o Ser. Assim, enquanto o ethos semita privilegia a escuta, a
perspectiva do ethos grego privilegia o ver e conquistar.
Daí podemos compreender a conquista realizada pela Europa na Ameríndia, privilegiando
a perspectiva do conquistar e dominar que se realizou principalmente em dois grupos: os povos
nativos e os povos trazidos das mais variadas regiões da África, sob condição de escravos.
Maias, Incas e Aymaras passam a ter a sua identidade negada para, ao longo do tempo,
ter uma identidade coletiva, negativa, associada a uma identidade geral: índios. O que também
ocorreu com os povos vindos de várias regiões africanas: todos foram denominados,
40
pejorativamente, de negros. Ocultados em seu ser, tiveram suas identidades colonizadas pela
dominação europeia.
A partir da invasão da Ameríndia, Dussel (1993) elenca quatro etapas de dominação: o
momento da invenção, do descobrimento (en-cobrimento), da conquista e da colonização. O
momento da invenção corresponde ao período em que havia a crença de que as terras encontradas
seriam asiáticas. O mundo das ideias renascentistas se concretizava nas buscas de Colombo pela
exploração do Atlântico, configurando a invenção do ser asiático da América, ou seja, esse
momento só existiu no imaginário do povo europeu, questionando a trindade imaginada do
mundo: Ásia, África e Europa.
O período denominado descobrimento do Outro diz do reconhecimento da invenção
daqueles povos como asiáticos e da subsequente negação daqueles povos enquanto Outro. Eles
são negados em sua alteridade, passando a ser em-cobertos e não descobertos. Descobrir, na
perspectiva dusseliana, diz do reconhecendo da existência de terras não conhecidas pelos
europeus, até então, e da necessidade de formular uma nova análise histórica desse momento,
como povos a serem conquistados e colonizados. Nasce a partir desse momento a autonarrativa
europeia como o centro do mundo.
A conquista e a colonização podem ser compreendidas como a práxis da dominação.
Côrtes e Pizarro foram os primeiros conquistadores modernos, impondo violência e o poder do
indivíduo. O poder não estaria mais no coletivo, mas na importância e no poder conferido ao
indivíduo. A colonização se efetiva de forma diferenciada para a mulher e para o homem:
enquanto o corpo da mulher nativa será dominado e escravizado, sendo principalmente utilizado
para o prazer do colonizador, o homem nativo será explorado para a consolidação do capitalismo
mercantil e da necessidade do acúmulo de ouro e da prata. Os corpos dos nativos passam a ser
mão de obra no sistema de Totalidade econômica, o que posteriormente também acontecerá com
o negro africano escravizado. A diversidade foi negada pela totalidade do projeto moderno
europeu, negando o Outro como ser humano e o inserido na totalidade como coisa, como
“encomendado”.
Disso resulta, como descrito por Quijano (1992), uma hierarquização que se baseia na
racialização do Outro. Segundo o autor, os “povos” negros e índios passam a ser concebidos
como raças inferiores e, portanto, negados em sua existência.
O controle das formas de trabalho também foi colonizado. Conforme descrito por Quijano
(2005), negros e índios, respectivamente, passam a ser explorados como escravos e explorados
em regime de servidão, garantindo a produção, apropriação e distribuição dos produtos
espoliados da América Latina e passando a sustentar e organizar toda a produção de mercadorias
41
para o sistema-mundo moderno. Cria-se assim um padrão de poder baseado no controle do
trabalho, de recursos e produtos que são legitimados pela lógica capitalista de produção mercantil
e do salário.
Para Quijano (2005), abordar a modernidade a partir das noções de avanço, novidade e
do modelo racional-científico de desenvolvimento das sociedades seria o mesmo que admitir que
houve outras modernidades, porque todas as altas culturas (como China, Índia, Egito, Grécia e
Maia-Asteca) demonstram, anteriormente à criação do sistema-mundo, traços inequívocos dessa
forma de desenvolvimento. O traço constitutivo da modernidade é, para Quijano (2005), a criação
de um padrão de poder mundial que se desenvolve a partir do controle do trabalho numa relação
entre capital-trabalho pela Europa, distribuindo na geografia mundial, ou dentro do sistema-
mundo, formas integradas do capitalismo, estando centrada nela todo o controle capitalista.
O notável não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante
da espécie desse modo [como superiores] – isso não é um privilégio dos europeus – mas
o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como
hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial de poder. (2005,
p.112)
A negação do Outro, sua hierarquização e o controle do seu corpo em favor do
desenvolvimento econômico do projeto burguês europeu fez com que o seu en-cobrimento
resultasse num genocídio ocultado pela narrativa mundial. A expansão da territorialidade
europeia pressupôs a expansão de sua cultura como única, o que a legitimou a matar e a explorar
aqueles que não se submetiam a seu projeto de racionalidade.
A mita é o exemplo mais conhecido de exploração do trabalho pensado na relação de
padrão de poder. Era um sistema de exploração, utilizado na região andina, pelo qual se fazia a
extração de materiais preciosos como ouro e prata. A mita, nas palavras de Galeano, era uma
máquina de triturar índios. “O emprego do mercúrio para extração da prata por amálgama
envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair os dentes e os
cabelos, e provocava tremores incontroláveis. ” (GALEANO, 2016, p.67).
Ainda sobre o controle do trabalho na mita, Quijano (2005) nos diz:
O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado
principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que conquistadores
trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram usados como mão de obra
descartável, forçados a trabalhar até a morte. (2005, p.109)
Segundo Dussel (1993), a negação da alteridade do Outro se desenvolve não como
demonstração da completa irracionalidade do projeto moderno, mas demonstra a limitação da
42
“razão emancipadora”. A morte, a exploração e a negação das culturas dos povos da Ameríndia
necessitam ser demonstradas como o ato irracional do mito sacrifical da colonização. É
necessário expor e reconhecer as histórias das vítimas e da negação de sua humanidade: do negro
escravizado, do índio, da mulher: dos Outros colonizados. Nas palavras de Dussel
O outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como
epifania da corporalidade vivente humana; será um tema de significação
exclusivamente racional, filosófico, antropológico. (...) Nesta Ética, o Outro não será
denominado metaforicamente e economicamente sob o nome de “pobre”. Agora,
inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a vítima”- noção ampla e complexa.
(2002, p.16-17)
É preciso desvelar, portanto, o que Dussel (1993) denominou de “Mito da Modernidade”.
A pretensa superioridade europeia a legitimou e a “exigiu moralmente” desenvolver os povos
que se encontravam nas periferias do mundo, retirando deles sua “rudez” e sua “barbaridade”,
levando-os ao caminho do desenvolvimento e de sua modernização. Como o Outro se opôs ao
processo de civilização, o uso da violência passou a ser empregado como necessário e legítimo.
Assim, “o moderno” culpa os Outros pelas vítimas causadas e pelo genocídio que ocorreu na
América Latina. Compreende-se, portanto, que é apenas quando se reconhece que a racionalidade
moderna produz a violência e a negação do Outro que se consegue negar o mito civilizatório.
Conforme descrito por Dussel (1993), sete características compõem o mito da
modernidade:
a) A civilização moderna se autocompreende como superior, passando a se legitimar uma
construção eurocêntrica do mundo;
b) A “exigência moral de dominação”: uma vez superior aos povos primitivos, a Europa era
obrigada a retirar da inferioridade os outros povos e conduzi-los ao desenvolvimento;
c) O desenvolvimento mundial é unilinear, sendo o caminho de toda sociedade a
modernização proposta pelo desenvolvimento o Europeu;
d) A oposição ao desenvolvimento trazido pela Europa Moderna aos “povos selvagens” é
pedagógica, e o uso da força se legitima pela superioridade da missão civilizatória;
e) A produção de vítimas nesse processo de dominação possui um sentido “quase ritual de
sacrifício”: o colonizado, o escravo, o africano, a mulher são vítimas de sua própria
resistência frente à bondade do conquistador;
f) Há um papel emancipador na conquista trazido pela modernidade, uma vez que esses
povos poderão fazer parte da superioridade da cultura europeia e do desenvolvimento
trazido pela modernização;
43
g) Pelas conquistas maiores a serem trazidas com a “civilização” os sofrimentos e sacrifícios
das populações oprimidas são compreendidos como necessários e inevitáveis.
O mito da modernidade é uma grande inversão contada pela Europa. A vítima é colocada
como a responsável pelos processos de silenciamento e de exploração a que foram submetidos,
e o responsável, o colonizador, é considerado o herói.
De acordo com estudos de Quijano (1992,2005), esses processos de negação dos sujeitos
colonizados não se findam junto aos processos de colonização. O padrão de poder se perpetua
em processos de colonialidade, pela qual persistem formas da matriz de poder. Apesar de extenso,
achamos necessária a transcrição da distinção realizada por Quijano
Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado ao Colonialismo. Este
último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controlo
da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população
determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além
disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente,
implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto
a Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e
duradoura que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais
ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e
prolongado. (2009, p. 73)
A colonialidade do poder7 é a imposição de um padrão aos grupos dominados e
subalternizados, seja em função de sua raça, gênero, ou quaisquer outras hierarquias. Esses
padrões, ditados a partir de paradigmas eurocentrados, buscam criar uma cosmovisão
hegemônica e dominadora. Assim, se nos processos de colonização o bárbaro e o incivilizado
eram aqueles que não professavam a mesma fé, língua e cultura dos povos europeus, nos
processos de colonialidade os povos incivilizados são aqueles que não se aproximam do ideal de
racionalidade e de desenvolvimento moderno/capitalista produzido pelo centro Europeu.
Esse(s) Outro(s), que vivem os processos de colonialidade, são aqueles que, dentro do
padrão de poder proposto por Quijano (2005), foram historicamente negados em sua alteridade
e utilizados, assim como suas localidades geográficas, para fornecer ao capitalismo europeu o
capital necessário ao seu desenvolvimento.
2.3 A formação da Outreidade
Como demonstramos até o momento, há um padrão hegemônico imposto pelo centro do
sistema-mundo moderno que, nascido a partir das grandes navegações, consolidou-se entre os
7 Esse conceito será abordado no próximo capítulo no tópico 3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano.
44
séculos XVI e XVIII. A partir desse padrão, temos a negação da alteridade do Outro colonizado,
que foi hierarquizado e oprimido em nome de uma perspectiva evolucionista da história. Em
nome do mito da modernidade, a Europa foi moralmente “obrigada” a retirar os povos nativos
do seu estado de incivilidade e conduzi-los a uma história unilinear e unidirecional de progresso,
ou seja, os povos se modernizariam para ter processo de elevação semelhante ao da Europa
moderna.
Até o presente momento trouxemos apenas como as formas de silenciamento e de
ocultação das histórias Outras se desenvolveram. Apresentar as formas de silenciamento e
dominação são necessárias para desvelar os pontos de ocultamento do outro e romper com o mito
da modernidade. Entretanto, privilegiar a leitura da dominação e do silenciamento é corroborar
a perspectiva da colonização e da colonialidade, não trazendo para o centro do debate aqueles
sujeitos que foram silenciados durante todo o processo.
Daí ser de suma importância ouvir aquelas vozes que, dissonantes ao modelo de
colonização e genocídio do Outro promovido pela Europa, passaram a pensar a partir de outro
lugar. Para tanto, destacamos os escritos de Waman Poma Ayala, que, segundo Mignolo (2008),
é um dos teóricos centrais na abordagem dos processos de colonização na América Latina na
perspectiva do Outro colonizado, além dos escritos do Padre espanhol Bartolomé de Las Casas.
Waman Poma Ayala (1534- 1615) nasceu e foi criado nos Andes, e tornou-se grande
cronista indígena a partir de sua grande obra “Primer ye bun gobierno”. A história narrada pela
perspectiva indígena traz outro olhar sobre a colonização que, segundo Mignolo (2008),
demonstra mais uma vez a importância de uma geopolítica do conhecimento que fuja à escrita
europeia e suas experiências de mundo, possibilitando outras experiências e histórias, vindas do
outro colonizado.
Para Mignolo (2008) e Dussel (2008), é a partir dos escritos de Ayala que se consegue
resgatar as primeiras manifestações do giro decolonial ainda nos séculos XVI e XVII, no texto
escrito no vice-reino do Peru e encaminho ao rei da Espanha Felipe III no ano de 1616.
O giro decolonial é um conceito criado por Mignolo (2008), que pensa as novas formas
de organização, (sejam em teorias econômicas, políticas ou culturais, que se sobressaem à
colonialidade do poder moderno/colonial) nascidas a partir do lugar da colonização. A partir do
giro decolonial se defende a importância de restaurar historicamente a genealogia do pensamento
latino para não ficarmos reféns do pensamento grego romano, tornando possível que outros
lugares de memória colonial se assentem sobre a ferida colonial, rompendo com a lógica de que
os que estão na periferia do sistema-mundo têm a sua história escrita apenas por aqueles que
estão inscritos dentro do centro colonizador.
45
Segundo Dussel (2008), após três décadas de lutas e resistência indígena, os castelhanos
estabelecem seu poder e instauram o vice-reino do Peru, e é desse período a escrita de Waman
Poma Ayala.
O bom governo, proposto por Ayala, aborda práticas sociais e históricas para a
organização andina da região, sugerindo formas de coexistência entre índios, os castelhanos, os
mouros e os africanos, sem que isso ocasione a destituição do rei da Espanha, Felipe III. Dessa
forma, Dussel (2008, p.180) defende que a proposta de Ayala nesses escritos torna-se um
dramático relato, um protesto crítico contra o colonialismo, sendo um modo de resguardar o que
ainda sobreviveu da organização Inca após a dominação espanhola.
Há uma crítica inicial realizada por Ayala que se estrutura em forma de relato histórico
de base ético-político sobre os grupos de nativos/as, castellanos/as, moros/as, os negros/as,
ressaltando os problemas de cada grupo e as virtudes por ele encontradas. A base teórica que
fundamento o discurso ético-político é o cristianismo, entendendo-o como um argumento lógico-
epistêmico que afeta a conduta humana por trazer critérios para a convivência de todos em uma
sociedade, podendo possibilitar assim a construção de um “bom viver”. (MIGNOLO, 2008)
O diagrama de Tawantinsuyu se constituiria de diagonais de um quadrado: em cada uma
das quatro diagonais haveria um suyus, onde viveria cada um dos grupos. No centro, segundo
Mignolo (2008), estaria o rei Felipe III da Espanha, não para impor sua cultura e seus modos de
organização aos demais suyus8, mas como um elo entre Castela e Tawantinsuyu, que garantisse
aos grupos a sua coexistência de forma intercultural.
8 Suyos são os espaços significativos presentes nas estruturas e nas hierarquias sociais dos Incas.
46
FONTE: LABASTIDA, 2013.
A última parte de sua obra é destinada à organização sobre o uso da natureza e das relações dela
com o trabalho.
El ritmo de las estaciones, la convivencia en y con el mundo natural: sol, luna, tierra,
fertilidad, agua, runas (seres vivientes que en Occidente se describen como “seres
humanos”) conviven en la armonía del “buen vivir”. Esta armonía es significativa, a
principios del siglo XVII, cuando la formación del capitalismo ya mostraba un
desprecio por vidas humanas desechables (indios y negros, fundamentalmente),
sometidas a la explotación del trabajo, expropiadas de su morada (la tierra en donde
eran), y su morada transformada en tierra como propiedad individual. (MIGNOLO,
2008, p.38)
O que se percebe na escrita de Ayala é uma nova forma de se pensar não só as
organizações políticas, mas uma nova forma de organizar as diferentes formas de organização
cultural a partir de um entendimento do sistema-mundo não pela lógica colonial, mas pelo
pensamento do Outro colonizado.
47
Outro autor que escreve sobre outra perspectiva é o padre espanhol Bartolomeu de Las
Casas.9 Apesar desse autor não ser o Outro colonizado, ele se coloca ao lado daqueles que tiveram
suas vidas e formas de organização colonizadas, denunciando a violência injusta e ilegítima
vivenciada pelos povos nativos da América. Como descrito por Dussel, “Bartolomé es el primer
crítico frontal de la Modernidad, dos decenios posterior al tiempo mismo de su nacimiento. Pero
su originalidad no se sitúa en la Lógica o la Metafísica, sino en la Ética, la Política y en la
Historia.” (2008, p.171)
Entretanto, após algum tempo de sua chegada, e constatada as formas de dominação e
massacre que os nativos sofriam, passa a ser uma voz combativa às formas de dominação
utilizadas pelos conquistados espanhóis como Cortez e Pizarro.
Da carta enviada ao Rei Carlos I por Las Casas (2006), o que se percebe é a utilização do
cristianismo para a busca da construção de uma ética que impossibilite a morte e os massacres
aos povos indígenas. Las Casas afirmava ao Rei serem os soldados espanhóis mais bárbaros que
os outros povos: “Ao contrário, nas coisas absolutamente desumanas que fizeram às nações que
subjugaram, superaram todos os outros bárbaros” (LAS CASAS, 2006, s/p.)
Ainda, segundo Dussel (2008), os discursos, cartas e textos proferidos por Las Casas
apresentam três grandes pontos de sua estrutura filosófica que permitem ver o Outro. O primeiro
ponto é o questionamento da superioridade da cultura ocidental, ao buscar demonstrar como a
barbárie provocada pela conquista é mais perversa do que os “erros pagãos” dos povos indígenas.
Outro ponto elencado por Dussel (2008), está na postura de Las Casas em não abrir mão da
pretensão de validade universal do evangelho, mas não subjugar o Outro em nome dessa verdade.
O terceiro ponto está para além da visibilidade que ele tem da falsidade do argumento que
justifica a violência da conquista, mas no reconhecimento do Outro como aquele que merece ser
respeitado.
Assim, o que se percebe em Las Casas como revolucionário é o ouvir e crer no Outro
como condição necessária para a prática da liberdade e da existência no mundo. Ao aceitar o
Outro como Outro, e não tentar encaixá-lo dentro do mesmo, há a possibilidade de um acordo
ético e racional, possibilitando a voluntariedade do Outro mediante reconhecimento de sua razão,
aceitando ou negando novas doutrinas ou uma nova proposta de vida.
9 Nasceu em Servilha, na Espanha, em 1484 e faleceu em Madri, na Espanha, em 1566. Foi um frade dominicano
que chegou ao território latino como encomendeiro, ou seja, detinha permissão do Rei da Espanha para ter alguns
nativos sobre sua responsabilidade para explora-los em troca de catequização. Após algum tempo nas terras recém
conquistadas passou a ser o principal defensor dos nativos contra os abusos dos colonizadores.
48
Em um dos debates realizados com Sepúlveda, defensor veemente dos direitos espanhóis
da realização da conquista e da subalternização dos povos nativos da Ameríndia, em Valladolid,
no ano de 1550, Las Casas trouxe pontos de reflexão sobre o Outro que, segundo Dussel (2008),
nos ajudam a forjar o ponto central da modernidade, sendo essa resposta silenciada não apenas
por Sepúlveda, mas, durante grande parte da modernidade.
¿Qué derecho tiene Europa de dominar colonialmente a las Indias? Una vez resuelto el
tema (que filosóficamente refuta convincentemente Las Casas, pero que fracasa
rotundamente en la praxis colonial moderna de las monarquías absolutas y del sistema
capitalista como sistema-mundo) la Modernidad nunca más se preguntará existencial ni
filosóficamente por este derecho a la dominación de la periferia hasta el presente. Ese
derecho a la dominación se impondrá como la naturaleza de las cosas y estará debajo
de toda la filosofía moderna. (DUSSEL, 2008, p.176)
Frente a esses dois escritores que problematizam o direito do Outro a existir dentro da
Modernidade como Outro, e não subsumidos no padrão de mesmidade moderno/europeu, o que
se percebe é que, no momento da primeira modernidade, houve vozes que se colocaram em
dissonância ao projeto de colonização e negação do Outro, entretanto, esses escritos foram
silenciados e colocados à margem do discurso hegemônico.
A modernidade, apresentada sob sua perspectiva eurocêntrica, é o ponto nodal para a
compreensão dos processos do silenciamento do Outro da narrativa da história mundial. A
construção de uma “História” desenvolvida sob a perspectiva única silenciou os Outros sujeitos
e suas histórias, consolidando uma História centrada na “emancipação” e “racionalização”
europeia, e uma história inferior e secundária a essa, formada pelos continentes colonizados.
A colonização, nesse processo de escrita universal, passou a ser vista não como espoliação
e negação do Outro, mas como “benesse” necessária dada pelo colonizador ao desenvolvimento
moral e intelectual dos povos que seriam “incivilizados”, até o momento em que passassem a ter
contato com os ideais burgueses e “emancipadores” da grande narrativa europeia.
O limiar desse encontro é tênue, visto que esse contato não seria responsável por elevar
esse Outro a uma superioridade similar à europeia, apenas o possibilitaria passar por processos
que lhe garantiriam uma modernização, uma incorporação periférica ao capitalismo e uma
cristianização, que lhe garantiria apenas no além uma vida melhor e com dignidade.
Romper com os processos de colonização não equivale historicamente a esses sujeitos, e
a seus países, findarem o padrão moderno/colonial de subalternidade aos quais foram
submetidos. Passa-se, ao ter cessado o período colonial, a seguir um novo padrão de poder
pautado sobre a colonialidade do Outro. Já consolidada a homogeneidade da grande narrativa
mundial pautada pela Europa e consolidado o capitalismo, a grande narrativa Histórica
49
eurocêntrica traz aos países que foram o Outro da colonização a alternativa única de buscarem
se modernizar, industrializar e urbanizar, para que seu desenvolvimento seja, supostamente,
equitativo ao dos países das economias centrais.
50
3 A DECOLONIALIDADE REVISADA
Neste capítulo nos propomos a apresentar os teóricos e os conceitos que balizam nossa
pesquisa. O conceito de decolonialidade é o primeiro que buscamos explicitar. Acreditamos ser
necessário evidenciar que a noção decolonial nasce de uma estrita vinculação com a prática de
resistência. Assim, buscamos demonstrar que o conceito não se finda em sua teorização e não se
limita a autores (as) e práticas que utilizam da nomenclatura decolonial para abordá-lo.
Os teóricos que apresentamos como precursores da noção decolonial são, especialmente,
Aimé Cesaire10 e Franz Fanon11. Esses teóricos, apesar de não trazerem a noção de
decolonialidade em sua escrita, discutem como as relações entre a colonização e a resistência a
ela são marcas presentes no período colonial dos povos colonizados. Ambos trazem a marca da
racialização de forma central, entretanto, o primeiro numa perspectiva mais histórica e o segundo
numa junção de seus estudos de psiquiatria e colonização.
Outrossim, buscamos apresentar ainda a importância dos teóricos do coletivo
modernidade/colonialidade (MC), buscando apresentar como esses autores possibilitam a
ampliação do debate sobre as relações entre modernidade, colonização e colonialidade. Como
coletivo que se apresentam, não dispõe de uma uniformidade teórica, mas comumente de pontos
de vistas e análises que se complementam. Ainda nesse momento, também apresentamos as
diferenciações entre os teóricos decoloniais, pós-coloniais e dos estudos culturais. Nossa
intenção não é a de separar em campos não dialógicos os autores em suas abordagens, mas a de
oportunizar uma abordagem de seus pontos de contato e de seus distanciamentos.
Dentre os autores que fazem parte do coletivo MC, demonstraremos de forma mais
sistematizada algumas reflexões trazidas por Dussel12, a partir dos conceitos de outreidade e de
pedagógica. De Quijano13 trazemos as contribuições sobre o conceito de colonialidade e de
padrão de poder criado na modernidade. Para finalizar, trazemos os conceitos de colonialidade
do saber e do ser, respectivamente por Paulo Freire14 e Maldonado-Torres15.
10 Aimé Fernand David Césaire nasceu em 1913 em Basse-Pointe na cidade do nordeste da Martinica, falecendo em
2008. Césaire destacou-se, principalmente, como ensaísta e político da negritude. 11 Frantz Omar Fanon nasceu em 1925, Fort-de-France, Martinica, e morreu em 1961 nos Estados Unidos. Destacou-
se pela sua formação como psiquiatra e militante do movimento negro. Suas obras influenciaram diversos
movimentos políticos e teóricos africanos. 12 O filósofo Enrique Dussel nasceu em La Paz, Argentina, em 1934. Radicado no México em 1975, onde reside
atualmente. 13 O sociólogo Aníbal Quijano nasceu em no Peru, em Yungar, em 1928, onde reside até os dias de hoje. 14 O educador Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, Brasil, em 1921, e faleceu em seu país na cidade de São
Paulo em 1997. 15 O filósofo atualmente é professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
51
Trazemos ainda, no que se refere a colonialidade do ser, a presença dos escritos de Freire,
por acreditarmos que, apesar de não trazer esse conceito em seus escritos, o autor possibilita a
ampliação do conceito a partir de algumas categorias desenvolvidas em suas obras.
3.1 A Decolonialidade e suas fontes
Ao falarmos de decolonialidade, é necessário ressaltar que este conceito nasce antes como
prática de resistência dos grupos oprimidos e vitimados pelo sistema colonial do que como
categoria acadêmica. Isso possibilita que o conceito não fique limitado à sua acepção teórica,
mas abranja autores que, mesmo sem descreverem o conceito, debruçaram-se sobre temáticas de
resistência dentro das dimensões políticas, éticas e epistêmicas.
Como descrito por Walsh (2014), o conceito de decolonialidade é central à produção
teórica do coletivo modernidade/colonialidade dando particular visibilidade ao conceito no nível
acadêmico. Todavia, é necessária a ressalva de que o seu desenvolvimento não é inerente ao
coletivo. O uso deste conceito pelo coletivo se deu a partir de 2004, todavia, Chela Sandoval e
Emma Perez já faziam menção ao conceito de decolonialidade e decolonial desde 1980. Walsh
(2014) também menciona que os escritos de Fanon, nas décadas de 1950 e 1960, apresentam
similaridades ao que se entende por decolonialidade atualmente. Para além dos estudos teóricos,
a autora ressalva que há uma prática decolonial desenvolvida por mais de 500 anos, realizada nas
resistências dos povos indígenas e negros.
Para o desenvolvimento da nossa pesquisa, acolhemos a noção trazida por Walsh (2014)
de que a prática decolonial antecede a escrita acadêmica. Portanto, a noção de decolonialidade
tem de estar, necessariamente, relacionada a essa prática. Sendo assim, para fins do
desenvolvimento da pesquisa, adotamos o conceito de decolonialidade construído por Neto, em
sua tese:
Um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas formas de
opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade contra as classes e os grupos
sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e neocolonizadas pelas
metrópoles euro-norte-americanas, nos planos do existir humano, das relações sociais e
econômicas, do pensamento e da educação. (2015, p.49)
Nessa concepção, o projeto decolonial é marcado pelo reconhecimento do Outro como
sujeitos coletivos que buscam seu reconhecimento como seres distintos e não aceitam serem
subsumidos dentro do projeto modernizador/colonizador. Há a presença do importante
componente da autonomia, demonstrando a participação desses sujeitos, de forma ativa, frente à
52
construção de um Outro projeto de sociedade, que parte da negação à negação de seus corpos,
vozes e de uma educação silenciadora e opressiva.
A proposta decolonial é anticapitalista, antirracista, não eurocêntrica e antipatriarcal,
assumindo, como assegura Mota Neto (2015), uma postura crítica frente a toda e qualquer forma
de exclusão que se origine no colonialismo, possibilitando a emersão de distintas formas de
organização da existência social, além de confrontar as práticas de silenciamento vindas da
colonialidade.
Neste ponto, a categoria criada por Nelson Maldonado-Torres (2008) nos ajuda a
depreender a decolonialidade com um giro decolonial, ou seja, para o autor, o giro decolonial se
refere a três pontos basilares. Primeiramente, há uma percepção de que as formas de poder
gestadas na modernidade têm produzido e ocultado formas de poder coloniais que afetam de
forma negativa os distintos sujeitos colonizados. Também se caracteriza por um reconhecimento
de que são esses sujeitos colonizados, afetados pela desumanização e pela morte, que têm poder
de promover alternativas às formas modernas de opressão. Por último, o giro decolonial comunga
da noção de que os processos decoloniais são tão antigos quanto os processos coloniais, afinal,
em que houve colonização, houve resistência.
En este sentido, no se trata de una sola gramática de la descolonización, ni de un solo
ideal de un mundo descolonizado. El concepto de giro des-colonial en su expresión más
básica busca poner en el centro del debate la cuestión de la colonización como
componente constitutivo de la modernidad, y la descolonización como un sin número
indefinido de estrategias y formas contestatarias que plantean un cambio radical en las
formas hegemónicas actuales de poder, ser, y conocer. (MALDONADO-TORRES,
2008, p. 66)
Outro teórico que buscou problematizar a perspectiva decolonial foi Mignolo (2005),
entretanto, a partir do conceito de pensamento de fronteira. O pensamento de fronteira é
entendido como uma resposta epistêmica dos grupos subalternos ao silenciamento e às
imposições da modernidade eurocêntrica. Contudo, salienta que essa não é uma proposta anti-
moderna, mas de busca pela redefinição da modernidade a partir do lugar do Outro colonizado
feito subalterno.
Dentro das possibilidades aqui apresentadas, que se aproximam da noção de
decolonialidade por nós definida, seja no giro decolonial ou no pensamento de fronteira, o que
se pode perceber é que essas ideias coadunam com os ideais e as práticas de um grande número
de líderes sociais, intelectuais e de movimentos sociais que ao se organizarem frente às formas
de desumanização e opressão encontradas, trazem consigo a problematização das formas
hegemônicas de poder se afirmando no lugar do Outro.
53
Reafirma-se, dessa forma, que a prática decolonial é anterior ao conceito decolonial e que
ela está imbricada nos processos coloniais, assim como é afirmado pelas produções de Mignolo
(2007), Dussel (2002) e Walsh (2014).
Ao descrever sobre a decolonialidade, Mignolo (2007) nos diz que é necessário ter clareza
de que o pensamento decolonial emergiu na fundação da modernidade/colonialidade. Partir do
pressuposto de que há uma junção entre modernidade e colonialidade nos desvela que os
processos trazidos pela modernidade não foram apenas benéficos, mas que emergiram junto a
um silenciamento, negação e resistência do Outro colonizado.
É possível afirmarmos que o conceito de decolonialidade passou por “etapas”, ou seja,
em cada processo histórico de resistência do Outro colonizado é possível perceber traços
diferenciados dessa resistência, das formas de organização e do projeto pós-libertação.
O primeiro momento a se vivenciar a decolonialidade como enfrentamento à díade
modernidade/colonialidade foi localizado nas Américas, a partir do pensamento indígena e do
pensamento afro-caribenho, nos vice-reinos da Espanha como Anahuac e Tawantinsuyu,
respectivamente nos séculos XVI e XVII. Estendeu-se à Ásia e África durante o XVIII e XIX,
enfrentando o império britânico e o colonialismo francês e, por último, desde o fim da Guerra
Fria e da ascensão dos Estados Unidos como potência capitalista. É nesse último período que se
começa a traçar características próprias da genealogia decolonial numa acepção teórica.
(MIGNOLO, 2007, p. 28)
Traçar a perspectiva da genealogia do pensamento colonial, ainda que de forma sumária,
como fazemos aqui, possibilita que o pensamento decolonial não seja “perdido” ou inscrito como
parte de algumas das grandes genealogias fundadoras da modernidade. Demarca, dessa forma, o
seu traço de resistência e, principalmente, de busca de autonomia desses outros sujeitos. Como
descrito por Maldonado-Torres (2007), seguido ao grito de espanto dos sujeitos colonizados
emergem atitudes decoloniais.
Ainda há, nessa síntese do pensamento decolonial, mais um ponto a ser abordado.
Segundo Maldonado-Torres, a partir do século XX, os projetos decoloniais passam a construir
uma consciência global sobre o projeto global de decolonialidade.
En conclusión, el giro des-colonial se trata pues de una revolución en la forma en que
variados sujetos colonizados percibían su realidad y sus posibilidades tras la caída de
Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial estaban
planteadas de antemano en el trabajo de intelectuales racializados, en tradiciones orales,
en historias, canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos particulares, se globaliza
a mitad del siglo XX. De ahí en adelante puede decirse que se planteó un giro, ya no
sólo al nivel de la actitud de sujetos o de comunidades específicas, sino al nivel del
pensamiento mundial. El tema de la descolonización adquirió vigencia para distintos
54
grupos que ahora se veían más seriamente entre sí, en vez de buscar en Europa las claves
únicas para elaborar su futuro. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 70)
A partir dessa apresentação da história do pensamento decolonial e do conceito de
decolonialidade, reiteramos que é possível vislumbrar em outros autores, principalmente latinos,
vínculos com a produção e a problematização decolonial. No próximo momento nos
discorreremos sobre o momento de consolidação teórica sobre o conceito de decolonialidade e
exploramos a constituição do Coletivo modernidade/colonialidade e o seu surgimento.
3.1.1 Seus precursores
Entre as elaborações clássicas sobre o colonialismo na América Latina, destacamos
inicialmente as escritas dos martinicanos Aimé Césaire e Franz Fanon. Esses autores se destacam
entre os anos de 1950 e 1970 por passarem a problematizar a colonização a partir do lugar do
homem negro e colonizado. Apesar de não terem como centro de seus escritos a problematização
de conhecimentos numa relação moderna/colonial, os autores trazem análises que nos levam a
compreensão do colonialismo em suas populações e culturas, partindo sempre da perspectiva
colonial.
Em seu livro mais conhecido, “Discurso sobre o colonialismo”, Césaire (1978), ao
adjetivar o processo de colonização, nos diz ser um processo “descivilizador”, “degradador”,
“embrutecedor” e que promove um “asselvajamento do continente”. Césaire (1978) busca
analisar a motivação da colonização, uma vez reconhecida como algo degradante tanto ao
colonizado como ao colonizador, chegando à conclusão de que a colonização teve como
motivação a ampliação das concorrências econômicas e da acumulação de capital para a Europa.
Ao discorrer sobre os motivos que conduziram ao processo colonial, o autor é enfático ao trazer
os motivos pelos quais a colonização não ocorreu
(...)nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras
da ignorância, da doença, da tirania, nem vontade de fugir às consequências, que o gesto
decisivo, aqui, propagação de Deus, nem extensão do Direito; admitamos, uma vez por
todas, é do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do pesquisador de
outo e do mercador, do apetite e da força (...) (CÉSAIRE, 1978, p.19)
O processo de colonização cria uma ordem superior que, através de enunciados
desonestos, se legitimou a fazer aquilo que lhe bem aprouver. Dentro desses enunciados, por
exemplo, ser cristão tornou-se sinônimo de ser civilizado e não ser tornou-se sinônimo de
paganismo, logo de selvageria, o que legitimaria o colonizador a hierarquizar, explorar e
55
assassinar o nativo, negros e amarelos, por não serem civilizados. O colonialismo, nessa lógica,
não seria apenas a destruição das populações colonizadas, mas também destruidor da civilidade
europeia, já que a colonização resulta na impossibilidade da existência de “um só valor humano”
(CÉSAIRE, 1978, p. 16). Além disso
Provam que a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a
acção colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo,
tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende; que o colonizador, para se dar
boa consciência habitua a ver no outro o animal, se exercita a trata-lo como animal,
tende objectivamente a transformar-se, ele próprio em animal. (CÉSAIRE, 1978, p. 23-
24)
Como descrito por Restrepo e Rojas (2010), percebe-se, a partir da leitura da Césaire, a
destruição de qualquer argumento que justifique como benevolente a colonização. Advém daí a
importância em não se isolar a ação colonizadora, mas de relacioná-la como experiência
estruturante das sociedades colonizadas e das culturas colonizadoras. Pode-se perceber que
Césaire (1978), assim como Fanon, já propiciava as bases para se problematizar a dominação,
não apenas nas instâncias militares e econômicas, mas de discursos e práticas de inferiorização
dos sujeitos colonizados.
Já a escrita de Fanon é marcada por grande crítica ao colonialismo e suas marcas racistas.
Como descrito em seu livro mais conhecido, “Os condenados da terra”, o que se percebe no
período colonial na América Latina é uma vinculação ao pertencimento racial e social a grupos
dominantes ou dominados. Dito de outra maneira: se é rico por ser branco e se é branco por ser
rico. Portanto, mesmo que se desmanche o mundo colonial e que as organizações coletivas de
grupos dominados façam desestruturar as fronteiras raciais criadas para “organizar” essa
sociedade, marcada por essa dicotomia, haverá pela frente o mais profundo exercício de
descolonização para apagar essas estruturas.
Como psiquiatra, Fanon (2008) busca articular a relação entre desejo, poder, economia e
cultura para explorar e analisar as práticas do colonialismo. Na introdução de “Pela Negra,
Máscaras Brancas” (2008) Fanon deixa claro que, apesar de sua análise ser psicológica, é
necessário pensar sempre em um duplo processo de análise que envolve: o econômico e a
epidermização da inferioridade.
A epidermização da inferioridade ocorre em conjunto com a utilização da linguagem
como primeiro meio de dominação cultural dos brancos, colonizadores, frente aos
negros,colonizados, tema desenvolvido pelo autor no terceiro capítulo da obra. A partir da
mudança da linguagem, se modificaria o que o caracteriza como negro, “Quanto mais assimilar
56
os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele
rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. ” (FANON, 2008, p.340)
Reconhecido esse processo de dominação, era necessário buscar meios de ultrapassá-lo,
não apenas por meio do findar do processo colonial. Era preciso que o homem e a mulher negros
se libertassem da ilusão de que a única forma de suprimir o processo de inferiorização que
sofriam seria adquirindo traços culturais do colonizado, buscando romper com a lógica do acesso
aos benefícios e passando a lutar pela libertação do colonizado. “(...) é verdade, não há um
colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono”
(FANON, 2008, p. 29).
Há a necessidade de se findar a vontade de ser o colonizador, porque ela representa apenas
as dimensões de inferiorização às quais esses sujeitos foram expostos, reforçando a justificativa
da colonização e da opressão de um grupo pelo outro. Quando associado aos valores do
individualismo liberal, esse sentimento de ser o colonizador (ou seja, poder usufruir dos
privilégios de ocupar o lugar do poder) pode enfraquecer o sentimento de grupo e de luta pela
libertação coletiva. Destarte, ao ter como o sonho o dominado ser o dominador, as mudanças
sociais perdem espaço para os valores meritocráticos da sociedade liberal burguesa.
Segundo Restrepo e Rojas (2010), outro pensador que merece destaque no pensamento
clássico decolonial é Orlando Fals Borda16. A trajetória acadêmica de Fals Borba se inicia nos
anos sessenta, junto à criação do primeiro programa latino-americano de sociologia na
Universidade de Colombia, em Bogotá. Essa universidade tornou-se singular por ter, desde sua
criação, forte vínculo entre militância política e organização social de base com sua produção
intelectual. Diferente dos outros escritores, o que nos chama a atenção em Fals Borba é a forte
preocupação com o sentido político da produção do conhecimento, com a pesquisa acadêmica e
sua relação com a realidade social. Assim, o conhecimento tem estreito vínculo com o sentido da
práxis marxista de transformação da prática social e política.
No texto intulado “¿Es posible una sociología de la liberación?” (2016), o autor traz
questionamentos centrais à sua produção acadêmica: os problemas de uma ciência comprometida
com um histórico de colonização e dominação dos povos latinos, além da necessidade de se
produzir uma ciência nova, que se caracterize como subversiva e esteja necessariamente atada a
uma reconstrução social, e não a fins particulares e/ou burgueses. A partir do conceito de “ciência
guerrilheira”, elaborada pelo argentino Óscar Varsavsky, Fals Borba (2010) defende uma ciência
16 O sociólogo Orlando Fals Borba nasceu em 1925 em Barranquilla, Colômbia, e faleceu em seu país em 2008.
57
que tenha estreita relação com seu lugar de produção, e que colabore para sua construção e
compreensão:
Sostiene que esto no es destruir la ciencia, sino enriquecerla; no es negar su
universalidad sino precisamente llegar a ella através de la originalidade impuesta por
las realidades locales; no es producir por producir, como robots dentro de una economía
de consumo, sino como seres pensantes animados por um verdadeiro espíritu de
servicio; no es seguir las reglas del juego ni los critérios de importancia fijaxa em otras
latitudes, sino fijas los propios y actuar em consecuencia. (FALS BORBA, 2016, s/p)
Pensar a perspectiva desenvolvida por Césaire, Fanon e Fals Borba é pensar no
colonialismo e em seu complexo das relações históricas. É também pensar em críticas
desenvolvidas de maneiras pontuais sobre a história latina, em seu histórico de dominação
colonial e, principalmente, nos aspectos desumanizadores da colonização. De forma sintética,
podemos pensar através das contribuições desses autores a teoria decolonial como denúncia aos
efeitos do colonialismo e seus processos de desumanização e como possibilidade de construção
de processos políticos de libertação e subversão.
3.2 O Coletivo Modernidade/Colonialidade e a Construção de um Paradigma Outro
Ao longo do desenvolvimento do coletivo, há uma diversificação de nomes dos quais
foram chamados e denominados. Nos textos escritos por Walsh (2004), a autora denomina como
Coletivo modernidade/colonialidade; já para Restrepo e Rojas (2010) há a denominação de
coletivo de argumentação da Inflexão Decolonial. Em Arturo Escobar (2003), um dos primeiros
a buscar nomear os autores, há a noção de programa de investigação da
modernidade/colonialidade latino-americano.
Compreendendo coletivo como aquele que é capaz de abranger um grande número de
pessoas, mas respeitando as diferenças trazidas por cada um, optamos aqui por utilizar essa noção
de coletivo modernidade/colonialidade, a partir de agora coletivo MC. É necessário fazer a
ressalva de que este coletivo é heterogêneo, e que a utilização da noção de coletivo é aqui
escolhida por acreditarmos que as divergências teóricas trazidas no grupo não descaracterizam a
problemática central, mas tende a enriquecer suas concepções políticas e epistemológicas.
Esse coletivo busca, portanto, centra-se em como os processos históricos de ocultamento
e submissão do Outro ao projeto de Mesmidade moderno eurocêntrico silenciaram e subjugaram
aqueles que foram encobertos pelos ideais da modernidade, a partir dos processos de colonização
e de colonialidade.
58
Como é relatado por Restrepo e Rojas (2010), ao fazer um histórico da constituição do
coletivo, é a partir do Congresso Mundial de Sociologia, realizado em 1998 em Montreal, que
houve uma aproximação entre os escritores mais conhecidos do coletivo: Aníbal Quijano,
Enrique Dussel, Walter Mignolo e Edgardo Lander.
A aproximação e o encontro resultaram na publicação de uma obra que se tornou
referência para os estudos decoloniais: “A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas”. Nesse livro, o coletivo MC buscou evidenciar América
Latina como lócus de enunciação de conhecimento com base em um contexto de
emancipação/libertação de seus povos nativos e de outros grupos marginalizados. Seguiu a esse
encontro uma série de outros encontros, quase anuais, que foram realizados em diferentes
instituições da América Latina e nos Estados Unidos da América, onde alguns dos pesquisadores
do coletivo desenvolvem suas pesquisas.
Como nos demonstra Mota Neto (2015), é interessante perceber que, além das
publicações, o coletivo MC também vem se organizando a partir de programas acadêmicos
universitários, como o Doutorado em Estudos Culturais Latino-Americanos na Universidad
Andina Simón Bolívar, no Equador, o Mestrado em Estudos Culturais da Universidade Javeriana
na Colômbia e o Mestrado em Investigação sobre Problemas Sociais Contemporaneos do
Instituto de Estudios Sociales Cotemporáneos (IESCO). Mota Neto (2015) também nos chama a
atenção para o significativo número de publicações veiculado pelo periódico Tabula Rasa,
vinculado a Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, em Bogotá, sobre a temática.
Nota-se que o coletivo não se restringe à vida acadêmica, havendo também, como nos diz
Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), uma participação ativa dos membros do coletivo em
movimentos indígenas na Bolívia e no Equador, no Caribe, junto a movimentos negros e, ainda,
o envolvimento nas atividades do Fórum Social Mundial, desenvolvendo projetos culturais,
epistêmicos e políticos.
O coletivo organiza-se dessa forma, buscando não apenas uma produção teórica que diga
desse Outro que foi subjugado, mas também participam de encontros e eventos com esses sujeitos
para questionar a noção, equivocada, de que o Coletivo “dá voz” a esses sujeitos. O que o coletivo
MC almeja é ouvi-los, uma vez que suas vozes já ecoam por todo o sangue e resistência
empreendida desde o começo dos processos da colonização.
O conceito de decolonialidade, já apresentado por nós, ganha importante dimensão na
produção teórica desses autores. Como descrito por Castro-Gomes e Grosfoguel (2007) esse
conceito possibilita problematizar a noção de que viemos em um mundo pós-colonizado. Para os
59
autores, o que se observa é a passagem de uma sociedade com padrões de um colonialismo
moderno a uma colonialidade global.
Nosotros partimos, en cambio, del supuesto de que la división internacional del trabajo
entre centros y periferias, así como la jerarquización étnico-racial de las poblaciones,
formada durante varios siglos de expansión colonial europea, no se transformó
significativamente con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación en
la periferia. Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la
colonialidad global, proceso que ciertamente ha transformado las formas de
dominación desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones
centro-periferia a escala mundial. (2007, p.13, grifos no original)
Essas relações de colonialidade global não rompem com o padrão de poder centrado no
capitalismo, no patriarcado e nas formas de poder centradas no mundo euro-norteamericano, mas
inclui novos e fortes laços econômicos de controle desse sistema, como o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), assim como organizações militares como as da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Para Mota Neto (2015), o reconhecimento dos limites do fim do colonialismo e a
compreensão dos processos de colonialidade levam Castro-Gomes e Grosfoguel (2007) a
buscarem uma segunda descolonização. Se o capitalismo e a colonialidade global foram
reajustadas rearranjando a manutenção do padrão de poder colonial, é necessário que se complete
o primeiro processo de colonização estendendo a emancipação desses sujeitos a níveis mais
amplos que fatores jurídico-políticos tais como relações de ciência, igualdade racial, de gênero
e a educação, garantindo o acesso as suas formas de construção e reconstrução do mundo.
Pensar as sociedades dentro dessa concepção significa não se resumir a uma perspectiva
simplesmente econômica e política, e também não resumir a sociedade aos paradigmas culturais
e sociais, mas utilizando a terminologia de Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), é pensar numa
rede global de poder, que se integram nessas perspectivas. Pensar dentro dessa rede, subentende
a necessidade de dialogar com outros escritos e escritores, outros paradigmas, que fujam a
centralidade eurocêntrica de produção de saber.
Uma forma de pensar a nova linguagem está, segundo Castro-Gomes e Grosfoguel
(2007), nas formas não ocidentais de produção de saber, justamente porque buscam formas totais
de abarcar o mundo. Não uma totalidade que seja ontológica, como a europeia, mas a que evita
o compartimento da compreensão da sociedade em setores, que somados produzem a totalidade.
E assim, ao pensar a partir de outros aportes e conceitos, de uma forma distinta, possibilita-se a
produção de outro espaço de conhecimento para as ciências sociais e humanas que não nega a
60
racionalidade moderna, mas que reconhece o Outro em sua alteridade, não exigindo dele uma
modernização da sua cultura, economia e política, por compreendê-la atrasada.
Segundo Escobar (2005, p.64), a teologia da libertação desde os anos sessenta e setenta,
os debates tecidos sobre a filosofia e a ciência social latino-americana, os debates sobre uma
ciência social autônoma, construídas principalmente por Fals Borba, a teoria da dependência e
os estudos sobre comunicação, os estudos culturais na década de noventa são importantes leituras
realizadas pelos autores do coletivo MC, por trazerem uma forte presença das teorias críticas da
modernidade europeia e norte-americanas e, por possibilitarem contato com outros grupos e
teóricos, como a teoria feminista chicana, a teoria pós-colonial e a filosofia africana. Reforça-se,
assim, a noção de ser o coletivo MC aquele que pensa um paradigma Outro, porque pensado pelo
Outro, e não um “outro paradigma” porque este ainda poderia estar centrado nas bases do
silenciamento do Outro.
Ressaltamos que esse paradigma Outro não se aproxima de uma tentativa de buscar a
“pureza”, como uma missão fundamentalista de buscar as essências das culturas e dos grupos
colonizados, mas sim, segundo Castro-Gomes e Grosfoguel (2007), de oportunizar a leitura da
epistemologia como algo que se localiza entre o tradicional e o moderno, e que deve reconhecida
como híbrida. Nesse momento, buscamos deixar claro, apenas, que esse hibridismo não
corresponde à noção de mestiçagem, mas é aqui empregado no sentido de uma cumplicidade
subversiva. Pensa-se esse Outro paradigma a partir de uma busca por ressignificar as formas
hegemônicas de conhecimento, sendo assim mais do que uma opção teórica de produção de
conhecimento. No entanto, o paradigma decolonial passa a ser uma necessidade ética para com
os grupos silenciados pela modernidade e com as ciências sociais latinas.
Feito este esclarecimento, queremos ainda trazer algumas noções trazidas por Escobar
(2005) como características do coletivo MC:
- Há um descentramento da modernidade e das grandes narrativas eurocêntricas.
- Há uma nova compreensão da modernidade que passa a ser centrada em Portugal e na
Espanha (como a primeira modernidade).
- Há uma centralidade na América Latina como aquela que inicia o “lado Outro” da
modernidade.
-Não se tem uma contestação da razão moderna, mas uma crítica a seus processos
bárbaros. Assim, não se questiona o poder emancipatório da razão, mas a superioridade europeia
articulada como a única que possui “a” razão.
Para Restrepo e Rojas (2010), são cinco os pontos de comunhão entre os autores do
coletivo MC. O mais visível é a utilização realizada dos conceitos de colonialismo e de
61
colonialidade. Enquanto o primeiro termo diz de um domínio político e militar, de exploração
das riquezas pelo colonizador nas colônias, o segundo diz de um fenômeno histórico, vinculado
a um padrão de poder que naturaliza as formas de dominação do colonizador, naturalizando as
estruturas de dominação e subalternizando os conhecimentos dos nativos. Do termo
colonialidade derivam outros dois, descolonização e decolonialidade: enquanto o primeiro diz da
superação da situação de colônia, o segundo termo busca superar a colonialidade, dentro das
relações de poder.
O segundo ponto está na relação entre os conceitos modernidade/colonialidade. Quando
se supõe que algo/alguém é moderno, existe algo/alguém que não é. Ou seja, existe um “ser” e
um “não ser”, e esse “não ser” passa a ser subsumido por aquele que é, tendo que aprender seus
conhecimentos e suas práticas, para assim poderem “existir”.
O terceiro ponto elencado pelos autores está no questionamento da criação da
modernidade por processos euro-centrados e intra-europeus. O conceito de sistema-mundo é
utilizado para buscar outra acepção da modernidade, que traz mudanças à concepção teórica da
Europa ser o centro da modernidade. O quarto ponto atem-se à negação de sistemas
mundializados de poder, como o marxismo e o cristianismo.
Os dois últimos pontos apresentados são, respectivamente, a afirmação de que o projeto
decolonial é um paradigma Outro e não um novo paradigma e a produção de um conhecimento
Outro que se aproxime da “ferida colonial”, sendo historicamente localizado e inscrito dentro de
relações de poder, ou seja, a busca pela consolidação de um projeto decolonial.
Ainda neste momento, realizamos um exercício de síntese das principais concepções
teóricas vivenciadas pelos estudos pós-coloniais, estudos culturais e decoloniais. Não em uma
tentativa de formatar e enquadrar os teóricos em campos separados e não dialógicos com os
demais, mas numa tentativa de apresentar um panorama dos conceitos e das teorias já
desenvolvidas, suas convergências e divergências.
De acordo com Costa (2006), os estudos pós-coloniais têm em sua origem teórica no
diálogo com, pelo menos, três perspectivas teóricas: a perspectiva pós-estruturalista francesa com
os escritos de Derrida e Foucault versando sobre a problemática do caráter discursivo do social,
perspectivas pós-modernas e com os estudos culturais.
Em suma, a pós-modernidade passa a ser compreendida por esses autores como
descentramento das narrativas, mas se recusam a uma perspectiva pós-moderna desvinculada de
um projeto político, devido ao enfoque que dão às questões da transformação social e de combate
a opressão social. Os diálogos com os estudos culturais se dão a partir da problematização da
crítica literária britânica originada na Universidade de Birmingham, na Inglaterra.
62
Numa entrevista cedida à revista Cultural Studies por Castro-Gómez (2014), ao ser
questionado sobre as aproximações e distanciamentos sobre as produções teóricas latino-
americanas, ele afirma que o diferencial à produção de conhecimento entre essas linhas teóricas
não são os seus métodos, mas o lócus de enunciação. Dito de outra forma, é o reconhecimento
do lugar geopolítico e o conjunto de construções políticas do lugar do qual o sujeito fala que
marca a sua “posição estratégica”.
Partindo deste ponto de vista, Castro-Gómez (2014) critica a existência de um “cordão
sanitário” que, segundo ele, alguns colegas acabam traçando entre os estudos culturais, as
análises culturais, as práticas culturais e poder, ao invés de enfocar na “posicionalidad estratégica
que adquieren los Estudios Culturales en un campo de batalla discursivo” (2014, p.3). O autor
sai em defesa da observação e da construção da observação da prática como maneira de
categorizar e relacionar os escritos latinos.
Yo mismo he hablado varias veces de “poscolonialismo” para referirme a los trabajos
de la red modernidad/colonialidad entre quienes se cuentan Walter Mignolo, Anibal
Quijano, Arturo Escobar, Enrique Dussel, etc., a pesar de que algunos de ellos piensan
que hablar en América Latina de “estudios culturales” y “poscolonialismo” equivale a
importar modas académicas globalizadas y eurocéntricas que vienen asociadas con esos
nombres. (CASTRO-GÓMEZ, 2014, p. 4)
Já em um livro publicado por Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), os autores buscam
tecer algumas diferenciações entre os estudos culturais e estudos pós-coloniais com relação aos
estudos do coletivo MC. Ambas correntes caracterizam o sistema-mundo moderno colonial a
partir das significações culturais, não enfocando nas relações e nos discursos sobre o Outro, por
crerem que a hegemonia social e política perpassam pelo controle dos códigos semióticos. No
coletivo MC, a perspectiva decolonial utiliza-se das noções de capitalismo e cultura, a partir de
seus entrelaçamentos com os processos econômicos e culturais, evitando uma concepção
dicotômica entre discurso/economia e sujeito/estrutura. A dicotomia só ocorre quando se
entendem os econômicos e culturais como derivados um do outro, mas como dito, para o Coletivo
há a noção de um entrelaçamento.
Trazidas as diferenças entre as perspectivas pós-coloniais e suas relações com o pós-
estruturalismo e a pós-modernidade, buscamos diferenciar a pós-colonialidade dos estudos
decoloniais. Na escrita de Restrepo e Rojas (2010), encontramos três pontos de distinção entre o
pós-colonialismo e a perspectiva decolonial, denominada pelos autores de inflexão. Enquanto os
estudos dos teóricos pós-coloniais são voltados para o conceito de pós-colonialismo, a
problematização do grupo da inflexão decolonial enfatiza a colonialidade. O lócus de enunciação
63
do primeiro são os países da Ásia e a África e sua colonização entre os séculos XVIII e XX,
enquanto o segundo volta-se para a experiência colonial desenvolvida por Portugal e Espanha
nas Américas no século XVI. Nos estudos pós-coloniais há uma ênfase no pós-estruturalismo
francês, enquanto nos teóricos da inflexão há uma busca por estudos marginais à compreensão
da modernidade, que buscam um ordenamento planetário decolonial.
Aunque se diferencien en la conceptualización, en los anclajes históricos y en la
imaginación geopolítica, ambas corrientes están intentando desentrañar estas
implicaciones en la imaginación teórica y política que definen los cerramientos y
aperturas de nuestro presente. (RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 24)
Acreditamos que as duas últimas considerações trazidas pelo autor possam trazer
diferenciações mais significativas ao projeto decolonial. Entretanto, como problematizado por
Mota Neto (2015), como dizer que autores como Edward Said e Gayatri Spivak, nomes
conhecidos dos estudos pós-coloniais, não trazem em sua escrita uma perspectiva da
colonialidade? Aqui se reforça a acepção de que, para além da utilização do uso do conceito nas
escritas acadêmicas, há traços característicos da escrita que nos possibilitam estabelecer estreitas
relações com a noção da colonialidade.
É possível perceber a preocupação da autora com a temática no livro “Pode o subalterno
falar?”. Nele Spivak (2010) problematiza a representação do sujeito do terceiro mundo no
discurso ocidental. Para isso, no entanto, a autora recorre “talvez de maneira surpreendente, ao
argumento de que a produção intelectual ocidental é, de muitas maneiras, cúmplice dos interesses
econômicos internacionais do Ocidente. ” (SPIVAK, 2010, p. 20)
Há, ainda, um ponto que não foi trazido. Nos estudos decoloniais é forte a presença das
relações sociais, do trabalho e do patriarcado como temas centrais que se relacionam à
epistemologia, a antropologia e a antologia. Todavia, nos estudos pós-coloniais, há uma
diversificação dessas fontes e métodos, preocupando-se com as obras literárias escritas pelos
colonizadores e as representações que trazem dos sujeitos colonizados, e realizadas análises das
obras escritas pelo colonizados como formas de resistência. (MOTA NETO, 2015, p. 74)
Essa é a marca dos textos produzidos por Bhabha (2003). Para o autor, um aspecto
importante do discurso colonial é a fixidez na construção dos estereótipos. É a partir da fixidez
da diferença cultural, histórica e racional no colonialismo que se afirmam os estereótipos, como
principal estratégia discursiva para inferiorizar os demais, daí que sua leitura do discurso colonial
(...) sugere que o ponto de intervenção deverá ser deslocado do imediato
reconhecimento das imagens para uma compreensão dos processos de subjetivação
tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo. Julgar a imagem
64
estereotipada com base em sua normatividade política prévia é descarta-la, não desloca-
la o que só é possível ai se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder
e resistência, dominação e dependência, que constrói o sujeito da identificação colonial
(tanto colonizador como colonizado). (BHABHA, 2003, p. 106, grifos no original).
Como se percebe no fragmento, há uma ênfase nas noções de representação, como formas
que “criam” o Outro e sua formação identitária cultural e social como diferente. Os conceitos de
hibridismo e mestiçagem são usados pelo autor para analisar as relações de poder, não a partir da
dominação de um grupo pelo outro, mas buscando o lugar comum, no qual ambas as culturas são
modificadas.
Já nos estudos culturais há menos diferenciações em comparação com a decolonialidade.
Como descrito por Restrepo e Rojas (2010), o principal expoente dos estudos culturais na
América Latina está no doutorado em Estudos Culturais Latino-Americanos, coordenado por
Catherine Walsh, na Universidad Andina Simón Bolivar, aproximando-se fortemente dos
autores decoloniais. Os distanciamentos ocorrem, mas em sua maioria com os autores que
trabalham a perspectiva dos estudos culturais a partir da Europa, como os trabalhos de Stuart
Hall. Seus estudos trazem contribuições mais marcantes do estruturalismo e da psicoanálises,
marcos conceituais considerados eurocêntricos dentro da perspectiva decolonial.
Como descrito por Walsh (2003), a necessidade do estudo sobre as relações culturais na
América Latina está em abordar a cultura dentro de uma sociedade latino-americana marcada
pelo capitalismo transnacional e por projeto neoliberal, mas que também tem a forte presença de
movimentos sociais. Assim, urge a necessidade de uma compreensão sobre a cultura que se
sobressaia àquela de conjunto de valores e costumes, que não esteja isolada em disciplinas
acadêmicas ou que, ainda, se desvinculem na prática e na teoria de assuntos econômicos, sociais
e políticos.
(...) hay que plantear la necesidad de abrir aún más las disciplinas – em efecto
indisciplinarlas- y, a la vez, poner atención a las maneras em que el conocimiento está
entretejido com ls articulaciones de poder, ya no del estado-nación o del imperialismo
em sí, sino del nuevo ‘imperio’ del sistema-mundo. (WALSH, 2003, p. 13)
Traçadas as relações entre essas teorias, buscaremos, num próximo momento, apresentar
as ideias centrais que são fundamentais no desenvolvimento da nossa pesquisa. Para
verticalizarmos sobre a temática escolhemos três conceitos centrais: colonialidade do poder (de
Quijano), Outreidade (de Dussel), e da colonialidade do ser (em Paulo Freire). Realizaremos
também uma discussão sobre a colonialidade do saber, baseada em autores diversos.
65
3.2.1 A colonialidade do poder em Quijano
Um dos conceitos centrais trazidos por Quijano, amplamente utilizado pelos teóricos do
coletivo decolonial, é o de colonialidade do poder. Pensar a modernidade como o
desenvolvimento de ideias racionais-científicas ou do avanço de um estado laico e secular nos
leva, segundo Quijano (2005), a apenas discutir qual ou quais sociedades merecem ser chamadas
de “criadoras” da modernidade. Assim, o autor propõe pensar a modernidade dentro de um
quadro que possibilitou a criação de um sistema-mundo moderno, e que criou a Europa como
centro desse sistema.
É no seu artigo “Colonialidad y Modernidad-Racionalidad” que Quijano (1992) inicia a
noção de colonialidade, defendendo ser a colonialidade constitutiva da modernidade e não
derivativa. Assim, há a distinção basilar entre colonialidade e colonial. Enquanto os processos
coloniais dizem da dominação e exploração de forma direta, baseada nas relações políticas,
sociais e de trabalho, a noção de colonialidade, apresentada por Quijano (1992, 2005) tem
estruturas mais enraizadas na sociedade, porque suas formas de poder não são diretas como as
apresentadas no período da colonização. A colonialidade nasce em conjunto com as estruturas
de classificação racial da população e as relações destas com as formas de exploração do trabalho,
mas perpetuam mesmo findado os processos coloniais.
Importa detalhar a articulação desses dois fatores primordiais para a compreensão da
colonialidade, as relações de trabalho e a racialização da sociedade. Quando do processo colonial,
a Europa inicia pela América um processo de relações de trabalho, histórica e sociologicamente
novo que posteriormente se expandiria dentro do sistema-mundo. Podemos traçar três
características básicas: essas formas de trabalho visavam à produção de mercadorias para o
mercado mundial; todas e cada uma dessas formas eram articuladas com o capital, o seu mercado
e entre si, criando um padrão de poder do qual eram conjunta e individualmente dependentes
histórico-estruturalmente; cada uma dessas formas desenvolveu novos traços e formas históricas.
Para a ocupação dessas formas de trabalho os critérios foram racializados. Ou seja, os
índios foram colocados numa espécie de servidão, os negros foram reduzidos à mão de obra
escrava e os espanhóis e portugueses, por serem brancos, se tornaram os que recebiam salários,
os que poderiam ocupar cargos administrativos, civis ou militares. Apesar do padrão de poder se
iniciar na América Latina, ele se estende posteriormente, criando novas identidades históricas e
sociais: os amarelos e os azeitonados.
66
Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de cada
uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a
geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho
assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de
controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante
sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do
trabalho. (QUIJANO, 2005, p. 109)
Mas, ainda há, segundo Quijano (2005), outro importante fator a ser analisado: o que
levou a centralidade europeia nos processos de construção desse sistema-mundo? Afinal, não há
nada de constitutivo ao capitalismo que restrinja a uma única área toda a centralidade do trabalho
assalariado, e posterior acumulação da contração da produção industrial. Para Quijano (2002) é
essencial nos atentarmos que a justificativa de um trabalho não pago ou não assalariado estava
associada à inferioridade das raças. Assim, há uma colonização cognitiva, que expropria
culturalmente o colonizado, reprime os seus conhecimentos e o obriga a se submeter a algumas
práticas culturais do colono.
Temos assim o último conceito constituinte do padrão de poder moderno/colonial: o
eurocentrismo. Na perspectiva histórica eurocentrada existe, portanto, a História da Europa, que
se propõe ser a História da humanidade, uma história ontológica e pautada na superioridade de
seus povos, e outra “história”, baseada na inferioridade dos povos colonizados, que narra a
expansão da Europa como benéfica ao seu desenvolvimento.
Como se percebe, a análise elaborada por Quijano (1995,1992, 1989) traz em si não
apenas aspectos econômicos e políticos, mas também sociais. O padrão de poder colonial não se
consolida apenas pelo poder econômico do capitalismo europeu, mas pelas estratégias de
inferiorização dos povos e das culturas colonizadas, e pela naturalização de uma narrativa
eurocêntrica como universal e, portanto, superior às demais.
Não somente preocupado com as formas de dominação que ocorrem pela colonialidade,
Quijano (2005) nos diz das formas de resistência a essa colonialidade. A denominada resistência
intelectual surgiu em fins do século XIX e se afirmou pós Segunda Guerra Mundial, articulada
aos debates da questão do desenvolvimento-subdesenvolvimento.
Outra forma de resistência é trazida pelo autor como socialização do poder. Essa
proposição é feita pelo autor a partir da década de setenta, e reconhece que “o socialismo não
pode ser outra coisa que a trajetória de uma radical devolução do controle sobre o
trabalho/recursos/produtos, sobre o sexo/recursos/produtos e sobre a
intersubjetividade/conhecimento e comunicação” (QUIJANO, 2005, p. 273).
A saída apresentada pelo autor para a superação do padrão de poder não busca romper
com a dimensão de racionalidade apresentada pela modernidade, nem com a totalidade social
67
apresentada na construção do sistema-mundo, pensando na diversidade de sujeitos que foram
silenciados como Outro dentro do sistema, evitando fragmentações e possibilitando conexões
entre as formas de dominação que não se restringem apenas ao econômico.
A construção do conhecimento, para Quijano, dentro da lógica do padrão de poder, criou
uma perspectiva estrutural-funcionalista do saber. Ou seja, há uma totalidade do saber que exclui
as outras partes, criando a noção de que há um “cérebro” que tudo controla e “outras partes” que,
de forma relacionada e hierárquica, são subjugadas ao cérebro para o bom desenvolvimento do
todo. A Europa era o centro que doava conhecimento, e as áreas colonizadas eram as partes que
deveriam receber esses saberes, não para serem o centro, mas para ajudarem no desenvolvimento
da totalidade do saber.
Outrossim, é necessário ressaltar que essa noção de totalidade já está questionada, não
somente pelas correntes empiristas, mas por uma nova corrente intelectual: os pós-modernos.
Das contribuições pós-modernas, assim como Quijano (1989), corroboramos a noção de que a
ideia de totalidade europeia levou a um reducionismo teórico que proporcionou a redução a um
único relato histórico como macrossujeito histórico. E que essas ideias vieram de uma tentativa
de total racionalização da sociedade.
Essas críticas dos pós-modernos possibilitam aos teóricos decoloniais, como Quijano
(1989), criticarem o projeto de racionalidade e de totalidade moderno. Todavia, ao fazer isso, o
autor busca não uma negação da razão, mas a sua modificação.
No es necesario, sin embargo, recusar toda idea de toalidad para desprenderse de las
ideas e imágenes com las cuales se elaboró esa categoria dentro de la modernidad
europea. Lo que hay que hacer es algo muy distinto: liberar la producción del
conocimiento, de la reflexión y de la comunicación, de los baches de la racionalidad-
modernidad europea. (1989, p. 446)
A perspectiva de totalidade não precisa (e não pode) abrir mão da noção da diversidade.
Segundo Quijano, fora do ocidente as culturas não abrem mão da perspectiva de totalidade, mas
assim como o conhecimento, esses conceitos incluem o reconhecimento da heterogeneidade, do
que é contraditório. “Em otros términos, [a totalidad] no solamente no niega sino que requiere la
idea del Otro, diverso, diferente. (...) De esa manera cierra el passo a todo reducionismo, así como
a la metafísica de um macrosujeto histórico capaz de racionalidade propia y de teleologia
histórica, de la cual los indivíduos y los grupos específicos, las clases, por ejemplo, serían apenas
portadores o misioneiros.” (QUIJANO, 1989, p. 447).
Assim, reforçamos que a crítica ao paradigma europeu de racionalidade/modernidade é
fundamental, mas é duvidoso que a negação de todas as categorias modernas e sua dissolução no
68
âmbito discursivo, consistindo numa negação das noções de totalidade e conhecimento, nos leve
a pensar o Outro e os problemas advindos da construção das relações de um padrão de poder.
Como descrito por Quijano (1989), é necessário, no primeiro momento, desprender-se das
vinculações de racionalidade-modernidade com a colonialidade. A descolonização
epistemológica se torna, por consequência, o novo passo, que leva a uma nova comunicação
intercultural, um intercâmbio de ideias e, somente assim, pretende encontrar com legitimidade
alguma universalidade.
3.2.2 Dussel e a questão do Outro
Dussel é um dos grandes teóricos do Coletivo. Já era um teórico conhecido,
principalmente por suas escritas sobre a teologia da Libertação. A escrita do filósofo argentino é
vasta. Por essa razão, a parte que nos atemos está centrada, principalmente, em sua
problematização sobre a totalidade do sistema-mundo construída a partir da modernidade,
iniciada em 1492, e na análise de como essas relações modernas de dominação pela colonização
impediram o Outro, colonizado, de existir e desenvolver uma pedagógica que lhe seja própria.
A modernidade, em Dussel (1993), nasce a partir do encobrimento do Outro, do
colonizado latino, que foi espoliado e conquistado pelo europeu. E é a partir dessa dominação
que se inicia a construção de um sistema-mundo europeu como totalidade. Posteriormente, nos
deteremos com mais profundidade nos desdobramentos sobre a construção da modernidade.
Todavia, queremos ressaltar nesse momento como o conceito de Outro se desenvolve na obra de
Dussel.
É da aproximação, e superação, com a escrita do filosofo lituano-judeu Lévinas, que
Dussel analisa a negação do Outro na modernidade. É a noção metafísica17 do Outro – a
Outreidade que nos possibilita pensar no colonizado a partir de uma visão ética, desenvolvendo
a partir da percepção do Outro a possibilidade de dizer de um “eu”, que se desenvolve a partir
das noções de rosto e de face-a-face e não de sujeito e objeto. Se em Lévinas o Outro é o pobre,
como nos demonstra Josivan, Dussel buscará entender quem é esse pobre. Quem é o pobre da
conquista europeia? Quem é o pobre nas relações econômicas do capital? Assim, ele chegará à
conclusão de o pobre é o Outro, a vítima
17 “Tanto para Lévinas como para Dussel a ontologia deve ser ‘destruída’ para dar passagem a ‘emeta-física da
outreidade’ da afirmação do Outro como Outro que graciosamente se me ‘revela’ na epifania de seu rosto. E a
metafísica é primeiramente a ética: ‘ a ética, para além da visão e da certeza, designa a estrutura da exterioridade
como tal. A moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira. (VILLA, 1998))
69
Sin embargo, Lévinas habla siempre que el Otro es "absolutamente otro". Tiende
entonces hacial a equivocidad. Por otra parte, nunca ha pensado que el Outro pudiera
ser unindio, un africano, un asiático. El Otro, para nosotros, es América latina
conrespecto a la Totalidad europea; es el pueblo pobre y oprimido latino-americano
com respecto a las oligarquías dominadoras y sin embargo dependientes.(DUSSEL,
1973, p. 113)
O outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como
epifania da corporalidade vivente humana; será um tema de significação
exclusivamente racional, filosófico, antropológico. (...) Nesta Ética, o Outro não será
denominado metaforicamente e economicamente sob o nome de “pobre”. Agora,
inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a vítima”- noção ampla e complexa.
(DUSSEL, 2002, p.16-17)
Reconhecer quem é o Outro em sua alteridade, no face a face, é necessário para abandonar
um padrão que torna o “eu mesmo”, a mesmidade, o padrão de referência. A partir desse
momento, Dussel passa a problematizar a libertação desse Outro como pressuposto ético, que
não nasce em mim, mas no Outro. É o Outro quem me tira do meu lugar ao dizer “tenho fome!”.
Como demarcado por Casali, ao escutar o grito ético só me resta inquietar-me ou não. Se a relação
de mesmidade não me permite olhar e ouvir o Outro, ele irá ser subsumido em um padrão de
mesmidade, o mesmo padrão que colonizou o Outro, que o encobriu e o fez vítima.
Estamos antes de todo ello. Estamos ante el esclavo que nació esclavo y que no sabe
que es persona. Simplemente grita. El grito, como ruido, rugido, clamor, proto-palabra
todavía no articulada, que es interpretada en su sentido por el que tiene conciencia ética.
Indica simplemente que alguien sufre y que desde su dolor lanza un alarido, un llanto,
una sú- plica. (DUSSEL, 2002, p. 20)
Para extinguir o padrão de mesmidade, Dussel (1993) propõe a transmodernidade. Nesse
conceito, ele evidencia que a razão moderna teve o seu momento de irracionalidade percebida no
mito sacrifical de negação do Outro, pelo padrão de mesmidade do colonizador. Ao olhar para si
como único e não se ver no Outro, a razão moderna violentou e encobriu o Outro.
Entretanto, não há uma desilusão da razão na escrita dusseliana. Como proposto por
Dussel (1993, p. 24), não há uma negação da razão como é percebido em alguns escritos pós-
modernos. Não se nega, mas se afirma a razão do Outro numa proposta de mundialidade
transmoderna.
O primeiro ponto relacionado à transmodernidade são as duras críticas realizadas à
totalidade ontológica europeia, que se reconhece como padrão de mesmidade, e que impossibilita
ao Outro a construção de narrativas em face da colocação da Europa como sujeito soberano da
História, propondo uma afirmação dessas culturas negadas e ocultadas pela modernidade.
70
Há ainda, segundo Mota Neto (2015), outras três estratégias fundamentais para o
desenvolvimento do projeto transmoderno: primeiro, a necessidade de uma crítica interna dessas
culturas negadas, realizadas pelos seus membros. Ainda, o importante papel dos críticos (algo
bem parecido com o intelectual orgânico) que vivem nas fronteiras em ajudar na construção de
um pensamento crítico que ajunte tradições de fronteira. Posterior a autocrítica e pelo diálogo
intercultural, já se pode falar de culturas descolonizadas, transmodernas.
Para pensar os pontos de construção da ética (que seja transmoderna, aponte o quanto a
modernidade foi totalizadora e pense uma possibilidade transmoderna), Dussel (1977)
desenvolve quatro momentos metafísicos de análise da América latina: política, erótica,
pedagógica e antifetichismo.
Todos esses momentos partem da relação eu-outro como fundamento de análise. A
relação política parte das relações irmão-irmão, e não se resume a apenas uma ação política
profissional, mas às ações humanas sociais que não se dão dentro dos outros três níveis de análise.
A erótica diz da relação varão e mulher. Como descrito por Dussel (1977), se na análise
política haveria uma distância entre os sujeitos, agora há uma proximidade. A erótica é o
momento em que se realiza o desejo do outro como outro. Caso o outro seja considerado coisa
ou objeto, já não acontece mais a erótica, porque, ao perder a alteridade, nega-se a gratuidade, a
entrega, a liberdade e a justiça com o outro. Quando se afunda em um padrão de mesmidade, essa
relação se transforma em machismo e numa sociedade falocrata.
O fetichismo é a totalização da mesmidade, a impossibilidade do Outro. Por exemplo, na
erótica temos como totalização o machismo. A falocracia dominadora torna as mulheres
submissas e as impede de ser o Outro. Em várias dimensões, Dussel (1977) abordará essa
totalidade, como ocorre também na escola. É só a escola a responsável por “dar” o saber legítimo
à sociedade, aquele que está fora dela é sempre o inculto e analfabeto.
Por último, e com mais cuidado nos detemos, Dussel (1977) desenvolve a pedagógica.
Diferente da pedagogia, a pedagógica preocupa-se com a proximidade pai-filhos, mestre-
discípulo, não exclusivamente desenvolvida nos processos escolarizados. A pedagógica também
está centrada nas relações médico-enfermo, advogado-cliente, artista-espectador, centrando-se
nas áreas da educação, saúde e bem-estar.
Assim, o sistema pedagógico divide-se em erótico ou doméstico e político ou social. No
primeiro, temos aquele que educa dentro do ethos tradicional, no qual o varão domina a mulher
e o casal domina o filho. Já o sistema pedagógico político ou social, além de educar igualmente
dentro do ethos social, tem a presença de instituições, como o sistema de escolaridade e os
sistemas dos meios de comunicação. Essa separação é simplesmente para análise, pois há um elo
71
indissociável entre esses dois momentos, afinal “a criança que nasce no lar é educada para fazer
parte da comunidade política, e a criança que nasce numa cultura cresce para formar um lar”.
(DUSSEL, 1977, p.93).
Dentro dessa dimensão da pedagógica, Dussel (1977) traz seis divisões18, das quais nos
deteremos com maior apreço nos pontos em que se centra a análise da educação escolarizada.
A Pedagógica simbólica diz do processo político de dominação que ocorre dentro da
América Latina. Para tanto, o autor faz uma comparação com Emílio de Rousseau19. Emílio,
segundo o autor, é o ícone da individualização burguesa. Afinal, é desligado do mundo e
submetido à “essência” do conhecimento para que seja educado. O isolamento da comunidade e
o contato exclusivo com o seu o preceptor aparenta-se, segundo Dussel (1997a), à ação do
dominador sobre o nativo. Afinal, é o isolamento da sua cultura que possibilitaria a uma
aceitação, sem questionamentos, do que passaria a ser a verdadeira educação, vinda de uma fonte
incontestável e neutra do conhecimento.
Para Dussel (1997), quando o dominador se torna o pai, opressor e dominador, a América
Latina passa a representar o filho, o mestiço. Órfão de mãe (a cultura) esse filho passa a ter como
fonte do “verdadeiro” conhecimento a dominação ideológica e a negação de sua alteridade.
Para Dussel (1977), é nos limites da interpretação da dialética pedagógica que se estuda
a ontologia dominadora vigente, que tem suas origens na Europa e de forma mais recente na
América do Norte. Portanto, é necessário vislumbrar o processo de dominação cultural a partir
da problematização desses lugares.
O primeiro momento da cultura moderna foi dizer não à cultura que lhe antecede, que
estava baseada no antigo regime, com sua lógica feudal e rural. Assim, seria novamente a partir
de Rousseau, que Dussel (1977) vê o nascimento da “instituição pedagógica” moderna. Por isso,
Emílio é órfão, porque deveria cortar os laços com a “mãe”, ou seja, com a cultura medieval,
tornando-se responsável o pai-Estado (burguês) pela educação. Nessa nova relação, exigem-se
outras formas de saber e capacidades que, segundo Casali (1979), têm como critério absoluto a
noção de utilidade. O educando tem que estar livre de condicionamento para poder ser conduzido
pelo projeto educador.
Como apontado por Casali (1979), em nome de um projeto nunca confessado, a cultura
neocolonial passa a ter membros que apoiam o mecanismo pedagógico vindo do império,
18 As partes da pedagógica apresentadas pelo autor são: A pedagogia simbólica, Limites da interpretação dialética
pedagógica, Descrição metafísica da pedagógica, A economia pedagógica, A eticidade do projeto pedagógico, La
moralidade de la práxis pedagógica. 19 Refere-se aqui a obra de Rousseau Emílio ou da educação, obra escrita em Paris no ano de 1762.
72
legitimando-o como o único modelo possível de educação e como caminho necessário a se
elevarem às sociedades colonizadas.
Diante desses dois momentos em que temos a supressão do filho, a América Latina,
Dussel (1997) apresenta a descrição metafísica da pedagógica. Nesse momento, ele se propõe a
discutir a superação da ontologia pedagógica da dominação, descobrindo a exterioridade do filho
em uma pedagogia da libertação.
La ontología pedagógica es dominación porque el hijo-discí- pulo es considerado como
un ente en el cual hay que depositar conocimientos, actitudes, "lo Mismo" que es el
maestro o preceptor. Esa dominación incluye al hijo dentro de la Totalidad: se lo aliena.
En este caso el hijo-discípulo es lo educable: el educado es el fruto, efecto de la
causalidad educadora. Es una causalidad óntica, que pro-duce algo en algo. (DUSSEL,
1977, p. 145)
Dussel (1977) aponta que, para eliminar a noção de totalidade encontrada na mesmidade,
é necessário reconhecer que há um legado humano que deve ser transmitido às novas gerações.
Mas esse conhecimento não deve ser uma tradição sufocadora, não devendo ficar vinculada ao
silenciamento, e sim à recriação em um duplo sentido, o de criar o novo e de celebrar a liberdade
do filho, reconhecendo que ele não é órfão e, portanto, não pode ser manipulado, domesticado
ou retirado de sua cultura. Ele é filho das culturas silenciadas, dos nativos, das culturas negras e
mestiças.
Entretanto, isso só ocorre frente à escuta do Outro, dentro da dicotomia palavra-escuta,
que possibilita o acolhimento do Outro, para assim também se pensar no papel do educador. “El
auténtico maestro primero escuchará la palabra objetante, provocante, interpelante, aun insolente
del que quiere ser Otro. Sólo el que escucha en la paciencia, en el amor-dejusticia, es la esperanza
del Otro como liberado, en la fe de su palabra. Sólo él podrá ser maestro.” (DUSSEL, 1977, p.
153)
O professor tem o papel de ser aquele que escuta e que quer ser ouvido, a partir de uma
relação face a face, que busca retirar aquilo que é constituído como imposição ao colonizado e
encontrar a alteridade em sua face, como Outro. Não como aquele que busca a essência da
verdadeira cultura do nativo, mas busca encontrar a alteridade. Quanto à busca de sua essência,
não é esse o ponto em questão defendido pelo autor, mas o reconhecimento da alteridade frente
às imposições culturais nos processos da pedagógica.
Já o momento da econômica pedagógica é descrito por Casali (1979) como o momento
em que Dussel busca a “mediação entre o âmbito prático (político-erótico-pedagógico) e o
poiético (trabalho, relação homem-natureza)”. Contra a ontologia que diz que nossa primeira
73
relação é homem-natureza, Dussel defende ser ela homem-homem, afinal nossos primeiros
cuidados são feitos por alguém, e principalmente, nossa alimentação.
Se a pedagógica erótica nos fala da relação pai/mãe e seus filhos, a pedagógica política
se abre ao âmbito do Estado, com as relações de classes, cultura e tecnologia. A econômica
pedagógica preocupará em diminuir a distância entre a erótica e política, entendendo a erótica
como o momento e os aprendizados do lar e a política como os aprendizados e a convivência em
sociedade. Ou seja, ela faz a ponte necessária entre o convívio familiar e o social. Como descrito
por Casali (1979), é nela que se insere o âmbito do Estado, das classes sociais, da cultura e da
tecnologia. É nesse momento que se estuda a relação homem-natura, pelas relações homem-
natureza que passam a ser percebidas como diferenciação do “face a face”, a partir da criação de
sistemas, sejam eles pedagógicos, educativos ou de saúde.
Esses sistemas, ao se totalizarem, acabam abastecendo-se e explorando a quem deveriam
servir. Portanto, precisam de uma desmontagem. Assim, o sistema educativo aliena o aluno,
entregando-lhe a “mercadoria” chamada educação de forma pronta e apática.
La "escuela" se arroga así el deber sublime de dar toda la cultura al niño (como el
médico cree darle toda la salud al enfermo). Lo cierto es que con esto elimina los
subsistemas educativos, ya que antes era la familia, el viejo del pueblo o barrio, el cura
o la tía, los que educaban a los niños. Pero no sólo se eliminan los subsistemas más
baratos, reales, perfectamente adaptados a la vida cotidiana del educando, sino que se
los critica como sus enemigos (así como el médico en vez de educar a los "curanderos"
simplemente los persigue como blasfemos shamanes). (DUSSEL,1977, p.162)
Assim, entende-se que essa totalidade tem de dar à população latino-americana conteúdos
necessários para que estas se desenvolvam. Para Dussel (1977), essa “síndrome ideológica” tem
um mecanismo que lhe é próprio: os conteúdos são passados por um observador neutro, um
conteúdo neutro, portanto, distantes de uma valoração ética ou política. Entretanto, aqueles que
detêm esses conhecimentos são socialmente tidos como mais modernos e mais belos. Cria-se a
lógica da competição de um projeto liberal, afinal, aqueles que detêm esse conhecimento terão
os melhores empregos e melhores salários, basta competir e conquistar esse lugar. “De esta
manera el capitalismo del conocimiento, inherente al imperialismo profesional, subyuga a la
gente em forma más imperceptible y efectiva que los armamentos o las finanzas
internacionales.”. (DUSSEL, 1977, p. 168). Para resolver isso, são necessários, ainda segundo o
autor, novos serviços para um homem oprimido, desmistificado a pedagógica imperante e
propondo um caminho libertador que seja construído com os sujeitos e para os sujeitos e não
oferecidos a eles como benesses.
74
O penúltimo ponto a ser trabalhado pelo autor é a eticidade do projeto pedagógico. Nesse
momento, se discute os projetos pedagógicos. Para Dussel (1977), não cabe aqui uma análise dos
métodos pedagógicos, mas de uma leitura da eticidade dos projetos. Busca-se afirmar o filho em
sua exterioridade ou negá-lo. Para isso, Dussel (1997) diferencia o conceito de cultura de suas
variáveis. A cultura imperial é aquela pretensamente universal, e é dela que se origina a
imposição de uma cultura nacional, que é uma imposição da noção de nação e que não apresenta
relações com a cultura popular. Diferente delas, a cultura popular é aquela que tem como marca
as resistências dos grupos negados em sua alteridade e dispõe de um projeto de libertação das
dominações que sofrem. É a partir dela que se tem um projeto pedagógico, ético e humano, que
fuja à dominação e que pense a libertação.
Quando o projeto é pautado na dominação, diz Dussel, o filho-população, é educado a
partir de processos de mesmidade, sendo fruto de violência, repressão com o Outro. Há de se
evidenciar que a oligarquia deseja essa educação:
Si el pro-yecto es el de una cultura dominadora, cerrada entonces la Totalidad por
exclusión de la Alteridad (que es lo real histórico: el hijo, el pueblo como el Otro), dicho
pro-yecto ha dejado de ser descubrimiento del poderser real: se ha tornado irreal,
esquizofrénico, totalizado, perverso, muerto. (DUSSEL,1977, p.173)
Assim como a dominação na colonização tem forte invasão cultural, há de se ter uma
grande reconquista e preocupação com a cultura popular, caso se queira construir um projeto
pedagógico libertador. A cultura libertadora é fruto dessa nova forma de organização. Citando o
conceito de Fanon de “homem culto”, Dussel (1997) nos diz que uma das características desse
homem é, em vez de enfraquecer o povo, chamar à luta o colonizado, sacudi-lo e despertá-lo para
a luta.
Por fim, o autor trabalha a noção da moralidade da práxis pedagógica. Nela, Dussel (1977)
busca pensar a moralidade do projeto educacional. Assim, se o projeto afirma o Outro, ele é bom,
mas, se o nega e domina, ele é mau. Há, para a explicação desse projeto educacional, algumas
relações estabelecidas por Dussel (1997):
- Dialético dominadora versus Liberadora.
- Conquistadora versus Colaborativa.
- Desmobilizadora versus Mobilizadora.
- Invasora cultural versus Criadora.
Nas bases apresentadas o autor busca pensar uma pedagógica que contribua para pensar
e problematizar uma educação distinta, que não se finda no padrão de mesmidade colonizadora,
75
que não é doadora de um conteúdo neutro e libertador e que tenha como base, portanto, a cultura
de luta desse Outro silenciado historicamente.
O professor, torna-se figura central, porque debate as culturas e as formas de estar no
mundo, proporcionando uma construção colaborativa e libertadora do conhecimento, que rompe
com as relações de mesmidade existente na relação Eu/Outro e as coloca como relações de
horizontalidade, porque realizadas no face a face.
3.2.3 A (de)colonialidade do Ser em Paulo Freire
Apesar de Freire não discutir conceitos centrais da teoria decolonial como colonialidade
e modernidade, encontramos estreitas relações entre a sua produção teórica e a noção da
colonialidade do ser. Como descrito por Silva (2000), no Brasil, Freire é o teórico que inicia uma
discussão pós-colonial educacional.
Freire trouxe em suas obras aproximações significativas com os conceitos trazidos pelos
teóricos decoloniais, como é o caso mais explícito de sua aproximação com os escritos de Fanon,
pensando, a partir dos “condenados da terra”, as estruturas de dominação dos oprimidos. Como
descrito por Freire (2014, p.51) “ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos que
oprimem e dos que são oprimidos(...)”, e essa realidade se dá nos processos de socialização e de
educação escolarizada. Assim, passa o oprimido a crer que existem estruturas “racionais” que
inferiorizam o seu ser e, de outro lado, garantem a legitimidade e superioridade do outro
dominador, por meio de um processo que naturaliza as estruturas sociais.
Segundo Maldonado-Torres, o conceito de colonialidade do ser surgiu em discussões em
um grupo de intelectuais sobre a colonialidade e a decolonialidade, a partir das teorizações de
Mignolo, respondendo a uma necessidade de se esclarecer os efeitos da colonialidade na
experiência vivida dos sujeitos colonizados e no domínio que essas experiências trazem ao existir
humano, impondo sentidos aos modos de ser e à corporeidade dos sujeitos Outros. Entretanto,
não utilizaremos a dimensão de colonialidade do ser a partir dos escritos de Mignolo, mas das
contribuições freireanas, por compreendermos que as contribuições freireanas verticalizam-se
mais sobre as questões educacionais.
Como descrito por Mota Neto (2015) é possível perceber nos escritos de Freire, a partir
da década de 80, uma preocupação com as questões coloniais. Devido sua ida à África Freire
passa a ter contato com os trabalhos de reconstrução nacional vivenciados em muitos países
recém-libertos do jugo colonial e passa a problematizar o peso que a cultura colonizadora impôs
a colonizada.
76
A história dos colonizados "começava” com a chegada dos colonizadores, com sua
presença “civilizatória”; a cultura dos colonizados, expressão de sua forma bárbara
de compreender o mundo. Cultura, só a dos colonizadores. A música dos
colonizados, seu ritmo, sua dança, seus bailes, a ligeireza de movimentos de seu
corpo, sua criatividade em geral, nada disto tinha valor” (FREIRE, 1978, p. 20)
Nessa estrutura, o colonizador parece ser investido de um poder inquestionável e superior,
as estruturas sociais parecem ser imutáveis e as desigualdades, o racismo e a negação do Outro
parecem se imbricar nas estruturas como algo imutável. Dentro de estruturas tão rígidas, a única
opção que parece possível àqueles que estão negados em sua existência é tornar-se colonizador
para alçar lugares de superioridade na estrutura social, a partir da negação daqueles traços que o
inferiorizam, e do aprendizado do conhecimento e da cultura “superior”.
De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem
saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto,
terminam por se convencer de sua “incapacidade”. Falam de si como os que não sabem
e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe
são impostos são os convencionais. (2014, p.69)
Os processos de escolarização, seja na universidade ou na escola básica, atuam, por vezes,
reforçando a validade desse conhecimento e da cultura moderno colonial como superior as
demais, legitimando-os como únicos conhecimentos válidos e reforçando os sentidos de
inferiorização conferido aos saberes Outros.
Como descrito por Dussel (2003), há um mito da modernidade que é ensinado a nós
colonizados: a modernidade e seus saberes serão redentores a todos os povos colonizados. Ao
impor e fixar esse sentido único a educação, ela se distancia do diálogo e se aproxima de uma
perspectiva domesticadora do ser e negadora da práxis histórica humana. Nas palavras de Freire,
torna-se uma educação para a invasão cultural.
Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica jamais possa ser feita
através da problematização da realidade e dos próprios conteúdos programáticos dos
invadidos. Aos invasores, na sua ânsia de dominar, de amoldar os invadidos a seus
padrões, a seus modos de vida, só interessa saber como pensam os invadidos seu próprio
mundo para dominá-los mais. É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam
a sua realidade com a ótica dos invasores e não com a sua. (FREIRE, 2014, p. 206)
Para romper com essa relação antidialógica e colonizadora estendida da sociedade aos
espaços escolarizados, é necessário criar condições para um diálogo que nos permita escutar os
sujeitos e o ato dialógico como impulsionadores do pensamento crítico que modifica a condição
humana no mundo. Modifica porque exige dos sujeitos que suas palavras sejam intrínsecas as
77
suas formas de agir no mundo, distanciando-se da acomodação e da crença na impossibilidade
de modificação do mundo, superando o fatalismo que cede lugar à transformação de homens e
mulheres e passam a buscar a construção para o ser mais.
O ser mais, da perspectiva freireana, vincula-se a uma vocação para a humanização
presente nos seres humanos que sempre inquietos buscam novas formas para estar no mundo
afirmando e conquistando sua liberdade. Segundo Zitkoski (2008) essa é uma categoria central a
obra de Freire, porque nos possibilita perceber a concepção freireana de ser humano.
Assim como defendido por Fanon, Freire (2014) parte da noção que é impossível realizar
o ser mais de forma isolada: é necessária a partilha com os Outros sujeitos. Buscando não mais
um conhecimento que negue a sua existência, mas uma educação problematizadora, do quefazer
libertador. O mundo não é apenas o do palavrear, mas aquele que mediatiza os sujeitos da
educação em prol da sua humanização.
Para Dussel (2002, p.441), a importância de Freire está em apoiar a sua pedagógica em
uma comunidade de vítimas miseráveis, “os condenados da terra”. Nessas condições, em vez de
pensar um educador desesperado, ou dominador, nota-se em Freire a proposição por um diálogo
iniciado também pelo professor, que permite a prática da liberdade àqueles que não são livres.
A educação, assim como qualquer outra esfera social, não é neutra. Ela diz da formação,
da prática educativa, implica opções, rupturas e escolhas de um sonho. (FREIRE, 2014). Assim,
os mitos, como o da modernidade descrito em Dussel (2003), ou do capitalismo, devem passar a
ser problematizados e reconhecidos como dimensões de um projeto político da educação que não
pode ser neutro e ahistórico.
Dizer a palavra, como descrito por Freire (2014), é transformar o mundo, e isso não pode
ser privilégio de um grupo, mas direito de todos, direito do Outro. Daí a necessidade de que o
Outro diga a palavra, sendo impossível que alguém o faça por ele ou que o faça sozinho. Aqueles
que se encontram negados em seus direitos de dizerem a palavra devem buscar, antes de qualquer
coisa, que possam dizê-la, que reconquistem esse direito, não aceitando serem desumanizados.
Ao compreender que essa transformação do mundo não deve ser feita de forma individual,
mas coletiva, Freire (2014) utiliza-se da dimensão de classe social para dizer daqueles que são
oprimidos e opressores, ou seja, daqueles que, respectivamente, vendem e compram o trabalho.
Entretanto, em Pedagogia da Esperança, Freire (2011) revisita o conceito de classe, não para
ignorá-lo, mas para demonstrar com as relações de poder são complexas, aproximando-se das
discussões dos pensadores decoloniais
78
Em outras palavras, o sexo só, não explica tudo. A raça só, também. A classe só,
igualmente. A discriminação racial não pode, de forma alguma, ser reduzida a um
problema de classe como o sexismo, por outro lado. Sem, contudo, o corte de classe,
eu, pelo menos, não entendo o fenômeno da discriminação racial nem o da sexual,
em tua totalidade, nem tampouco o das chamadas minorias em si mesmas. Além da
cor da pele, da diferenciação sexual, há também a “cor” da ideologia (FREIRE,
2011, p. 156).
Nesse momento, se percebe uma clara aproximação com as noções, aqui já apresentadas,
da colonialidade do poder trazidas por Quijano (2005), com o seu principal conceito
colonialidade do poder.
Entendemos que o caminho apontado por Freire (2011) para a construção de uma
sociedade, que se veja livre das condições de determinação dos seres humanos na raça, no sexo
e na classe, coaduna ainda com uma ruptura e uma luta contra o capitalismo. Entretanto, o autor
também compreende que não é condição equivalente à ruptura com o capitalismo e o fim das
condições de racismo e sexismo, por exemplo. É necessário que se evidencie as relações e as
vinculações entre uma e outra situação para que se possa, verdadeiramente e historicamente,
empreender uma luta que modifique as estruturas sociais através de rupturas com o sistema de
opressão.
3.2.4 A decolonialidade do saber
Problematizar esses conhecimentos no bojo da teoria decolonial é eminentemente buscar
romper com a totalidade discursiva europeia que ora sucumbe os Outros conhecimentos, ora os
inferioriza. Entretanto, cientes dos perigos existentes na rejeição da totalidade e da sua
substituição por teorias particularistas e impeditivas das compreensões da constituição dos
sistemas sociais e políticos globais, reforçamos que nossa concepção sobre o rompimento com a
totalidade se aproxima daquela descrita por Giroux (1993, p. 53), que compreende ser necessário
trazer a totalidade mais como um dispositivo heurístico do que como uma categoria ontológica.
“O” conhecimento presente na totalidade europeia é, portanto, aquele que elevaria todas
as populações colonizadas, devendo estar presente não apenas nas formas cotidianas de
colonialidade do ser, mas nas estruturas das instituições modernas, como as escolas e as
universidades. Como descrito por Apple, há uma hegemonia do conhecimento europeu moderno-
colonizador dentro das instituições escolares. Essa hegemonia não problematiza a concepção de
conhecimento porque o entende como algo dado e superior, naturalizando as relações com o
conhecimento e ignorando as suas relações com as culturas e formas de vida dos sujeitos.
79
Boaventura de Souza Santos é um dos principais teóricos que buscam compreender essa
relação entre uma suposta naturalização do conhecimento e a ciência moderna. Para o Santos e
Rodrigues-Garavito (2004), é necessário compreender que a escolha pelo conhecimento
científico como superior às demais formas de conhecimento se dá no bojo da consolidação do
capitalismo e, portanto, esse seria o único conhecimento que possibilitaria o desenvolvimento
tecnológico e a consolidação do capital. Como também argumentado por Lander (2005), além de
ter o conhecimento tido como superior, a Europa passa a ser também a única a deter os critérios
de validade do conhecimento, porque é a única que compreende o conhecimento dentro das
noções de fragmentação presentes nos conceitos de sujeito e objeto.
Dessa forma, o conhecimento científico passa a fazer parte da construção ontológica da
modernidade europeia, criando uma hegemonia da perspectiva científica de conhecimento e uma
inferiorização das outras formas de conhecimento que não se relacionam com o desenvolvimento
tecnológico do capitalismo e, inevitavelmente, com a ciência moderna. Para a garantia da
manutenção da hegemonia do saber científico, diante do que Santos e Rodrigues-Garavito (2004)
denominou “vitalidade dos saberes do Sul”, a modernidade colonizadora aceitou que outros
conhecimentos passassem a ser reconhecidos, entretanto, numa perspectiva inferior, como
“saberes”, “conhecimentos locais” ou “etnociências”.
O que aqui compreendemos como uma concepção decolonial do conhecimento aproxima-
se das problematizações trazidas por Santos e Meneses (2008) um duplo e necessário debate
dialógico entre as formas de conhecimento acumuladas pela ciência e os conhecimentos Outros,
historicamente negados. É necessária uma contundente crítica à imposição de um particularismo
à totalidade universal, seja europeu ou não, assim como é necessário evitar o seu extremo oposto,
caindo em um relativismo “particularista” que impede o diálogo crítico entre os diferentes
grupos, fragmentando-os e isolando-os.
É junto a essa perspectiva que concebemos um conhecimento que propicie uma
interculturalidade crítica, como proposto por Walsh (2014,2009), que possibilite um projeto
político, social e epistêmico, ou seja, que reconheça que mudar as relações com o conhecimento
é inevitavelmente questionar as estruturas e as condições de desigualdade, inferiorização,
racialização e discriminação existentes no capitalismo.
Modificar a relação com o que se denomina e com o “para que serve” o conhecimento é
uma das grandes rupturas propostas pela teoria decolonial. Se, como já descrito, o conhecimento
na perspectiva moderno colonial tem um fim muito claro para a manutenção e desenvolvimento
do capitalismo e para a “elevação” cultural dos povos, conduzindo a História a uma direção
80
unívoca, na perspectiva decolonial o conhecimento se apresenta como meio de libertação dos
povos, rompendo com as estruturas que os inferioriza e os invisibiliza.
Assim, numa perspectiva decolonial, os conhecimentos desse sujeito Outro colonizado
têm de estar também presentes dentro do ambiente escolarizado, disputando esses espaços para
romper com a hegemonia do conhecimento moderno colonizador e proporcionar uma relação
outra desses sujeitos com os seus conhecimentos e com a sua comunidade.
Disputar os conhecimentos presentes nas escolas e universidades faz com que o Outro
não seja mais reconhecido como aquele que é “diferente” do padrão a ser seguido na sociedade,
mas os sujeitos e os conhecimentos, tendo como base a pluralidade, passam a ser reconhecidos
como distintos, numa perspectiva dusseliana.
É preciso salientar que, como descrito por Arroyo (2014), a presença desses
conhecimentos nesses espaços não se dá sem que os sujeitos colonizados exijam e lutem para
que eles lá estejam, rompendo com a perspectiva hegemônica. Como descrito pela autora
caribenha Audre Lorde, as ferramentas do amo jamais serão utilizadas para desarmar sua própria
casa.
Quando os sujeitos camponeses se colocam contra a totalidade moderna urbanocêntrica,
eles se colocam contra não apenas a uma forma de conceber o campo, mas de se manterem e
viverem nele. Assim, o conhecimento moderno colonial que concebe os povos do campo como
inferiores e incivilizados, e que se relaciona com o campo somente dentro da perspectiva
tecnológica do conhecimento capitalista para o agronegócio, não é mais aceita por eles.
É necessário um conhecimento que coadune com suas perspectivas de campo, rompendo
com a noção de que o campo é um espaço a ser modernizado, que o reconheça não como
contraponto ao meio urbano, mas como local de produção de cultura e de conhecimento. É
necessário um conhecimento que se construa numa relação dialética entre os conhecimentos
científicos e os conhecimentos práticos do campo.
Nessa perspectiva, o conhecimento é aquele que permite ao homem e a mulher do campo
se relacionar com o seu território, não de forma abstrata e a partir de um conhecimento
verticalizado, mas de um conhecimento contextualizado.
81
4 A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DO MST SOB A PERSPECTIVA
INTERCULTURAL E DECOLONIAL
O enfrentamento e a transformação das estruturas dos padrões de colonialidade buscam
romper com a subordinação que é naturalizada socialmente, desafiando as estruturas sociais,
políticas e também epistêmicas, que enraízam padrões de poder e silenciamento. É junto a essa
perspectiva que pensar a interculturalidade torna-se uma transgressão dentro da lógica moderna
e colonizadora.
A nova grande narrativa que se torna o paradigma desse período da modernidade é a
perspectiva neoliberal, que ganha forças e se desenvolve a partir dos anos 1990 na América
Latina, e especialmente, no Brasil.
Para Walsh (2009), a tentativa de incluir o Outro dentro do modelo de capitalismo liberal
burguês é denominada de Interculturalidade funcional. Ou seja, busca-se integrar aqueles que
estão à margem do sistema. Entretanto, essa integração é realizada através da homogeneização
dos grupos marginalizados em nome dos interesses da lógica moderna/neoliberal. Não há uma
discussão/superação dos problemas que geraram o silenciamento, a assimetria e as desigualdades
dentro do sistema: a marginalização de alguns grupos apenas cria maneiras para produzir sua
inserção.
A lógica da inclusão dos excluídos é, segundo Dussel (2007), a lógica de inclusão do
Outro no Mesmo, ou seja, da Mesmidade. O Outro não participa desse projeto pela transformação
do sistema, não é reconhecido como um igual frente a um novo paradigma institucional, mas,
como assevera Walsh (2009) e Tubino (2005), o Outro é incluído numa perspectiva de
funcionalidade ao sistema já estabelecido.
A lógica presente no capitalismo pós 1980, principalmente na América Latina, passa a
ser uma lógica do funcionamento multicultural: há uma demanda de inclusão daqueles que até
então estavam à margem como negros, índios e camponeses para comporem o desenvolvimento
da sociedade. Não há mais uma tentativa direta de exclusão, negação e submissão, uma vez que
seus idiomas, suas formas de vestir e de organização social passam a ser acolhidas até mesmo
pelas Constituições. Contudo, também passa a ser neutralizada e esvaziada de seus significados.
É uma estratégia política funcional ao sistema/mundo moderno e ainda colonial;
pretende “incluir” os anteriormente excluídos dentro de um modelo globalizado de
sociedade, regido não pelas pessoas, mas pelos interesses do mercado. Tal estratégia e
política não buscam transformar as estruturas sociais racializadas; pelo contrário, seu
82
objetivo é administrar a diversidade diante do que está visto como o perigo da
radicalização de imaginários e agenciamento étnicos. Ao posicionar a razão neoliberal
– moderna, ocidental e (re)colonial – como racionalidade única, faz pensar que seu
projeto e interesse apontam para o conjunto da sociedade e a um viver melhor.
(WALSH, 2009, p. 20)
A inclusão na lógica funcional mantém negada a alteridade do Outro, não avançando para
discussões que permitam uma sociedade mais equitativa, mas para a contenção/ocultamento dos
conflitos e lutas na sociedade, a partir da inclusão dos grupos historicamente excluídos.
Essa lógica de inclusão ganha força quase simultaneamente à pressão e a pluralidade de
movimentos sociais que ocorrem no Brasil, principalmente a partir da década de 1980. Como
descrito por Gohn (2011), após esse período, as ações coletivas, em seus caráteres sociopolíticos
e culturais, fizeram com que a população se organizasse para reivindicar antigas pautas: para
tanto, as técnicas foram da denúncia aos atos de desobediência civil.
Esses movimentos, como apresentado por Gohn (2011), passaram a exigir uma
descolonização das suas formas de ser e de poder, exigindo e apresentando novas pautas que lhes
possibilitassem pensar suas lutas, não mais a partir de um modelo de desenvolvimento gestado
pelo centro, mas a partir das demandas e construções históricas desse Outro.
Entretanto, como descrito por Walsh (2009), apesar de inicialmente esses movimentos
trazerem pautas novas, suas demandas acabaram por ser incluídas dentro da lógica funcional do
Estado, sendo o Outro incluído dentro do padrão de Mesmidade.
As políticas desenvolvidas pelo Estado após 1980 na América Latina visavam reformas
constitucionais para possibilitar a inclusão funcional de alguns grupos à sociedade. Walsh nos
relata o que ocorreu em algumas políticas na área da educação para os povos indígenas.
As reformas educativas e constitucionais latino-americanas dos anos 90 podem ser
compreendidas dentro deste interesse e responsabilidade de “transformação”.
Efetivamente, a orientação relacionada aos “Povos Indígenas” incluía elementos
relacionados à educação, ao desenvolvimento e aos direitos legais – particularmente os
direitos de identidade e da terra -, oferecendo desta maneira critérios para as reformas
jurídicas dentro de um marco encaminhado ao projeto neoliberal de ajuste estrutural,
dando reconhecimento e inclusão à oposição dentro do Estado-nação, sem maior
mudança radical ou substancial em sua estrutura hegemônico-fundante. (WALSH,
2009, p. 19)
A leitura trazida por Gohn (2011) sobre a atuação do Estado frente às demandas dos
Movimentos Sociais no Brasil se aproxima daquelas tomadas pelo governo equatoriano sobre a
educação indígena. Ante as demandas trazidas pelos Movimentos Sociais para a presença atuante
do Estado visando à asseguração de seus direitos, o Estado passa a realizar uma inclusão desses
movimentos no jogo político. Ocorre uma proliferação de fóruns, conselhos e conferências, como
83
formas utilizadas pelo Estado para institucionalizar a participação popular, obrigando os
movimentos sociais a buscarem uma rearticulação para participação nessa nova estrutura posta.
Essa proposta pode, segundo Walsh (2009), trazer uma perspectiva de re-forma ao sistema, a
adesão ao jogo político se enfraqueça as relações sociais da organicidade dos movimentos para
a burocracia e a inclusão funcional a sociedade.
Como descrito por Apple (2006), a perspectiva da interculturalidade funcional deve ser
compreendida como um avanço em direção à perspectiva do Outro, já que passa a problematizar
e a pensar os grupos marginalizados. Essa é uma vitória dos movimentos sociais, na medida em
que não foram dádivas do opressor o reconhecimento do Outro, entretanto, percebe-se que as
negociações para a existência desses grupos se deram da forma mais conservadora, “controlada”
e “segura” possível, o que leva a uma manutenção do padrão de poder, ao perpetuar a estrutura
capitalista, ou seja, aquela que produz a desigualdade e o silenciamento do Outro.
Como descrito por Fleuri (2001), a interculturalidade tem sido motivo de esforço e de
grande elaboração teórica e implementação em políticas educacionais não só no Brasil, mas na
América Latina, orienta principalmente o desenvolvimento de propostas curriculares da
educação básica à formação de educadores.
Se a interculturalidade funcional tem como âmago de seu projeto a inclusão do que é
considerado “diverso”, mantendo intocáveis as relações com o capital, as desigualdades e o
silenciamento do Outro, a perspectiva intercultural crítica traz em seu centro a problematização
das relações de poder que foram naturalizadas pelo discurso hegemônico europeu, questionando
a diferença colonial e buscando um novo paradigma de reconhecimento do Outro, que tenha uma
prática voltada para o questionamento, a transformação da sociedade e da humanidade.
Walsh (2009) nos traz a diferença primordial entre um paradigma e outro. Enquanto a
interculturalidade funcional atende a longo prazo aos interesses das instituições sociais, a
interculturalidade crítica é uma construção de e a partir das demandas dos Outros que sofreram
histórica submissão e subalternização. A perspectiva crítica intercultural é, portanto, um projeto
que busca uma com-vivência Outra, a partir de Outra organização social.
Recordar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes não no Estado
(nem na academia), mas nas discussões políticas postas em cena pelos movimentos
sociais, faz ressaltar seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao
problema estrutural-colonial-capitalista e sua ação de transformação e criação.
(WALSH, 2009, p.22)
Pensar a interculturalidade crítica é ir além da inclusão dos grupos excluídos socialmente,
segundo Walsh (2009), e da criação de programas “especiais” que permitam a inclusão desses
84
grupos. A relação com o Estado nessa perspectiva é sempre tensa e necessária, afinal, a presença
do Estado é demandada pelos grupos historicamente negligenciados como meio de assegurar
seus direitos. Entretanto, essa presença não pode ocorrer como uma benesse paternal, que
mantém a invisibilidade do Outro e de suas vozes.
A interculturalidade crítica, como ferramenta pedagógica, possibilita o questionamento
dos padrões de subalternização e inferiorização do Outro, garantindo que maneiras distintas de
ser, viver e se saber mediante ao mundo não sejam concebidas como inferiores a outras formas,
mas possibilitem um diálogo que crie legitimidade, dignidade, igualdade e equidade.
A presença desse Outro (reconhecendo-se como marginalizado e se organizando para
romper com o silenciamento histórico que negou a eles o direito ao acesso à terra, ao trabalho e
a justiça) enfraquece as representações sociais que, a partir da colonização, os produziram como
coletivos inferiores. Daí tamanha resistência e incomodo vindos socialmente de movimentos
sociais, porque, ao se tornarem presenças afirmativas, pressionam por mudanças radicais nas
formas históricas de pensá-los e de organizar a sociedade. (ARROYO, 2014, p. 121)
Dessa forma, a criação pelo Estado, como descrito por Gonh (2011), de fóruns, conselhos
e conferências como meio de institucionalizar a participação desses grupos, tem sido utilizada
pelos movimentos sociais não como forma de uniformizá-los ou de subsumi-los ante a
burocracia, mas de buscar, pela via do Estado, uma forma de se pensar processos interculturais
críticos de criação de um paradigma de educação escolarizada que atenda a seus interesses.
É notório como isso passa a ocorrer no Brasil, principalmente com os movimentos
voltados para as lutas camponesas, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores (as) Rurais
Sem Terra. Na busca pela construção de Outra forma de organização social, o movimento passa
a articular-se para questionar algo que faz parte de uma estrutura social histórica do país, e traz
marcas patentes do latifúndio em sua constituição, atreladas a um longo histórico de escravidão.
O Movimento organizado por sujeitos silenciados historicamente entra em cena e afirma
seus sujeitos de culturas e de saberes, retirando-os do lugar de subalternização. Esse
reconhecimento coletivo está para além da ocupação da terra, pois trazem a afirmação dos seus
lugares de cidadãos de direitos e de produtores de cultura, reconhecendo as dimensões simbólicas
dos sujeitos campesinos e seus objetivos de construção de utopias libertarias.
Há, entretanto, uma tensão que precisa ser evidenciada na aproximação dos movimentos
sociais com o Estado na busca por uma educação Outra. Como descrito por Fleuri (2001), têm
de ser conquistados pelos trabalhadores não só a possibilidade de utilizarem o espaço escolar,
mas fundamentalmente transformá-lo, fazendo com que as contradições referentes ao saber e ao
poder, presentes nas relações entre movimentos sociais e escolarização, sejam evidenciados.
85
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra20 tem o seu processo de criação entre
os anos de 1979 e 1984, sendo formalmente criado em 1985 no Primeiro Encontro Nacional dos
Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel, no estado do Paraná. Outros movimentos associados à
luta pela terra, além de movimentos favoráveis a luta campesina, como a Central Única dos
Trabalhadores, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Operários, a Comissão da Pastoral da Terra
estiveram presentes junto a trabalhadores de doze estados brasileiros, no encontro de
formalização do Movimento.
Há, ainda, outro marco dessa criação, anterior ao supracitado: em 1979, no município de
Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, aconteceu a primeira ocupação de terras realizada pelo
Movimento, tendo o apoio da Comissão da Pastoral da Terra (CPT).
O surgimento do MST não se restringe, obviamente, às conjunturas políticas e
econômicas que se circunscrevem ao período da articulação de seu surgimento, mas a um
complexo histórico de contradições históricas, principalmente entre a manutenção/criação de
latifúndios e a exploração dos trabalhadores do campo, num país que se caracterizou com agrário-
exportador, pelo menos até a década de 1940. Contudo, restringiremos nossa escrita sobre a
criação do MST às condições históricas imediatas que fomentaram a criação do Movimento.
Segundo Neto (2011), o período que se inicia com a ditadura civil militar trouxe inúmeras
modificações às formas de trabalho no campo. A intensificação dos processos de modernização
passou a exigir trabalhadores que tenham qualificação para o manuseio das tecnologias utilizadas
para realizar o cuidado com o solo, colheita e plantação. Os trabalhos antes realizados pelo
homem camponês passam a ser substituídos por uma espécie de “gestão” das atividades
desenvolvidas pelo maquinário, que passa a ser o “responsável” pelo aumento e desenvolvimento
da produção.
Essa mudança tende a conservar a concentração da terra na mão de alguns, já que o
pequeno produtor é expropriado, passando agora a ser um trabalhador assalariado ou migrando
para áreas periféricas dos grandes centros urbanos. Segundo dados do IBGE, a taxa de
urbanização da sociedade brasileira aumentou em 11% entre os anos de 1960 e 1970, o maior
índice registrado entre as décadas de 1940 e 2000, elevando para mais de 50%, exatos 56%, a
área de população urbana no país.
20 Ou ainda Movimentos dos Sem Terra ou MST. Segundo Stédile a escolha do nome se deu a partir de discussões
sobre o sentido de classe pertencente ao grupo e a um nome que a mídia já os vinculava, de forma pejorativa nos
noticiários. “Fizemos uma reflexão profunda sobre o assunto e aproveitamos o apelido pelo qual já éramos
conhecidos pela sociedade: “os sem-terra”. Aprovamos por unanimidade o nome de Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. Na verdade, a escolha do nome foi um debate ideológico. Paralelamente, fizemos uma reflexão
no sentido de que deveríamos resgatar o nosso caráter de classe. Somos trabalhadores, temos uma sociedade com
classes diferentes e pertencemos a uma delas. Esse foi o debate. ” (STÉDILE; MANÇANO,2005, p.470)
86
Todavia, a exaustão da condição do trabalho no campo devido ao agronegócio, não seria,
segundo Caldart (2012), o único ponto para fomentar a criação de um movimento social que
organizasse os trabalhadores do campo. Outros fatores ocorridos durante esse período podem ser
elencados como motivadores.
A presença cada vez mais atuante da Igreja Católica, desenvolvendo os ideais de
libertação propostos pela teologia da Libertação, impulsionou a criação, em 1975, da Comissão
Pastoral da Terra (CPT). Atuando nas periferias das regiões urbanas e nas comunidades rurais, a
CPT tornou-se ponto de referência e de incentivo à organização dos trabalhadores do campo.
Apesar de seu surgimento ser regional, na cidade de Goiânia, logo a CPT espalhou suas ideias,
principalmente, nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde ocorriam muitos conflitos devido a posse
de terra, com altos índices de violência.
Caldart (2012) também discorre sobre a chegada de novos sujeitos na cena política, nos
anos 1980, surgidos, principalmente, da pressão popular como reação a já desgastada Ditadura
Militar. Somadas às memórias de lutas enfrentadas no campo, como Canudos e Contestado, há
aquelas que são conceituadas como fatos desencadeadores: ou seja, lutas que estavam na
memória recente de muitas populações e que, vinculadas à força da CPT, os incentivam a seguir
lutando.
Como exemplos desses fatos desencadeadores Caldart (2012) relata: a expulsão dos
índios Kaigang da Reserva Nonai no Rio Grande do Sul, em 1978; a chamada “farsa da peste
suína africana” em Santa Catarina, quando o Estado matou dezenas de porcos de pequenos
proprietários camponeses, nunca se tendo comprovado o surto dessa doença na ocasião; no
Paraná, a expropriação de famílias de pequenos produtores para a construção da Usina Elétrica
de Itaipu, sem a devida indenização; no Mato Grosso do Sul, devido às formas de apropriação de
terras pelos fazendeiros.21
Desse conjunto de contradições e lutas originou-se o Movimento. A primeira grande
decisão a ser tomada seria qual a forma de enfretamento e resistência a ser utilizada, tendo
decidido pela ocupação de terras. Tornou-se também necessário pensar princípios organizativos
e metodologias próprias para sua organização e desenvolvimento, segundo Caldart (2012), a
partir das vivências e lutas cotidianas, vindas das ocupações. Foram criados então os seis
princípios do Movimento.
21 Para compreender mais sobre a história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ver Caldart, 2012 e
Stédile, Mançano 2005.
87
*Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia sobre o
capital;
*A terra é um bem de todos. E deve estar a serviço de toda a sociedade;
*Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas;
*Buscar permanentemente a justiça social e igualdade de direitos econômicos, políticos,
sociais e culturais;
*Difundir os valores humanistas e socialistas nas relações sociais;
*Combater todas as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária
da mulher. (MST, 1995, p.28)
Esses princípios nos demostram como o Movimento busca romper com o paradigma
moderno/colonial, porque não se limita a pensar exclusivamente o acesso à terra, mas, como
descrito por Walsh (2008), ao analisar os movimentos sociais latinos, percebe-se uma
preocupação com as lutas que envolvem as dimensões políticas, epistêmicas e sociais.
Há uma preocupação com a construção dos saberes que legitimam e organizam suas
práticas. Assim, esses Outros se sabem não apenas vítimas do processo colonial, mas detentores
de conhecimentos que passam a trazer como centrais nas lutas. Esses saberes lhes possibilitam
pensar e organizar de forma marginal a desenvolvida pela sociedade, recusando-se a ser incluídos
em processos históricos como subcidadãos, subalternos e inferiores.
Talvez aí esteja calcado um dos pontos centrais para se compreender o MST como grupo
de resistência decolonial. Ao criar uma nova relação social a partir de valores marginais, ou seja,
combatendo formas de discriminação social e de opressão originárias do padrão
moderno/colonial, em confronto com o projeto individualista do capitalismo, eles se tornam
produtores de um conhecimento que produz resistência, indo de encontro dos saberes
hegemônicos na sociedade.
Afinal, dentro da perspectiva moderna/colonial de desenvolvimento o campo é relegado
ao lugar do atraso, da incivilidade e do que tende a ser superado pelo “progresso”. Quando os
sujeitos do campo passam a pensar e a produzir maneiras de permanecerem no campo, criando
uma lógica Outra que seja alternativa ao projeto hegemônico da sociedade, eles se colocam
dentro da lógica decolonial.
Por isso da afirmação de Caldart (2012), de que o MST ganha características que se
sobressaem a de um movimento social, passando a ter características de uma organização social.
Apesar de trazer em seu centro a luta pela terra, há outras demandas em seus princípios de atuação
na sociedade que a demanda agir em outros campos da sociedade que não apenas nas ocupações
de terras.
Isso passa a ocorrer, ainda segundo a autora, a partir de dois pontos que ela elenca como
centrais. A decisão de que o MST se preocuparia com a identidade do assentamento, ou seja,
mesmo depois de findado o processo burocrático da propriedade da terra pelos trabalhadores,
88
ainda seriam reconhecidos como parte do Movimento Sem Terra. Quanto a esse ponto, Caldart
(2012) afirma que há uma pressão governamental para que os sujeitos que foram assentados
passassem a ser “com-terra” e que se desvinculassem do MST; entretanto, a dura realidade
vivenciada após a conquista dos assentamentos os levou a outras lutas cotidianas, como escolas,
principalmente para as crianças, bem como créditos especiais para realizarem cultivo da terra.
Daí se desdobra a segunda característica: ao passarem a ampliar a luta do Movimento
para as condições de vida daqueles que estão assentados, passa-se a reconhecer que os
assentamentos seriam “lugar de relações sociais alternativas, apontando para a construção de
novas formas de organização da produção e de desenvolvimento do campo como um todo.”
(CALDART, 2012, p.141). Não se restringindo, portanto, apenas a uma construção distinta de
campo, mas a um novo projeto de sociedade.
Um dos grandes exemplos dessa atuação do Movimento diante de uma construção de
Outro projeto de sociedade é a mobilização realizada contra a privatização da Companhia Vale
do Rio Doce, uma das mais importantes estatais do país e a maior empresa de ferro do mundo,
naquele momento. Segundo Caldart (2012), a maior mobilização ocorrida se deu 1997, na
véspera do dia marcado para o leilão.
A ousadia e a luta pela construção de Outra sociedade passavam a ganhar cada vez mais
pessoas, que comungavam com os ideais propostos pelo Movimento. Como descrito por Stédile
“Ninguém ficava pedindo atestado de atuação. Isso também deu uma consistência maior para o
MST. Ele soube se abrir ao que havia na sociedade. Simplesmente ele não se fechava e não se
fecha em um movimento camponês típico, no qual só entra quem pega na enxada.”.
(MANÇANO; STÉDILE, 2005, p. 33.)
Ao se colocar contra a estrutura de dominação capitalista que os oprime e que
impossibilita a esses Outros existirem em suas terras, ou ao direito de terem acesso à terra, eles
se colocam frente ao modelo pretensamente universal neoliberal, provocam conflitos no âmago
da colonização brasileira pautada pelo latifúndio e se posicionam como produtores de uma nova
forma de organização, partindo de outros saberes para combater o padrão de exclusão da
modernidade/colonialidade. O Movimento não busca ficar à margem da ação do Estado, muito
pelo contrário, busca exigir dele a sua responsabilidade como mantenedor dos direitos das
populações do campo.
Como descrito por Caldart (2012), é necessário ressaltar que foram as escolhas desses
sujeitos de lutarem contra suas situações de opressão que construíram a existência do MST e o
torna possível cotidianamente. “Trata-se da marca da escolha das pessoas de reagir à sua
condição de sem-terra lutando pela terra, e de passar a perceber um problema que lhe parecia de
89
cada trabalhador, ou no máximo de cada família, como um problema coletivo, e com alternativas
de solução coletivas.”. (CALDART, 2012, p. 124)
4.1 A construção do saber do MST
Apresentadas as parcerias feitas e os avanços realizados nas políticas públicas para o
campo, passamos agora a expor as experiências do MST para a educação e seus princípios
educacionais.
Para a formação dessas parcerias foram importantes os princípios e orientações criadas
pelo MST, que desenvolve em 1999, em um dos seus “Cadernos de Educação”, uma relação de
seus cinco princípios filosóficos e seus treze princípios pedagógicos. Ao abordar o conceito de
educação, o documento considera a importância dos processos de educação desenvolvidos pelas
práticas de formação do MST em processos não escolarizados, com a formação de militantes
para a organização e para as lutas dos trabalhadores (as), enfocando também a importância da
educação escolarizada e da criação de escolas nos acampamentos e assentamentos, além da
formação de Professores (as) e monitores para a educação infantil. Assim a educação é definida:
Um processo pedagógico que se assumo como político, ou seja, que se vincula
organicamente com os processos sociais que visam a transformação da sociedade atual,
e a construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam, a
justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e socialistas.
(CADERNOS DE EDUCAÇÃO DO MST, 1999, p. 6)
São cinco os princípios filosóficos do MST: o primeiro é a Educação para a
transformação social. Pautado nos ideais de classe e na aproximação com movimentos sociais,
busca-se construir uma educação que forme sujeitos capazes de intervir na sociedade,
construindo a hegemonia do projeto político dos trabalhadores (as), e propondo uma atuação que
não se restrinja a lutas específicas de uma realidade imediata, mas a construção de um espaço
social de transformação. O princípio de Educação para o trabalho e cooperação tem como base
a luta pela reforma agrária, na qual a cooperação constrói novas relações sociais de luta pela terra
e de uma nova organização do campo, que se contraponham a noção de campo criado pela cidade,
como lugar do atraso e da incivilidade.
Há também em seus princípios discussões sobre a Educação voltada para as várias
dimensões da pessoa humana, ou, em outras palavras, uma educação omnilateral, propondo o
desenvolvimento integral do ser humano e de uma intrínseca relação com a práxis. Além dos dois
últimos pontos, Educação com/para valores humanistas e socialistas e Educação como um
90
processo permanente de formação transformação humana, que descrevem a práxis e a
necessidade de romper com o capital e os valores do individualismo ante a construção da
revolução na sociedade, crendo no ser humano e na sua capacidade de construção histórica da
realidade vivida socialmente.
Descritas as concepções gerais defendidas pela educação do MST e da sua relação com a
sociedade, é necessário apresentar os princípios pedagógicos que dizem da metodologia dos
princípios educativos e das maneiras de organizar e concretizar os cinco princípios expostos.
1º Relação entre prática e teoria.
2ºCombinação metodológica entre processo de ensino e de capacitação.
3º A realidade como base da produção do conhecimento
4º Conteúdos formativos socialmente úteis.
5º Educação para o trabalho e pelo trabalho.
6º Vinculo orgânico entre processos educativos e processos políticos.
7º Vinculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos.
8º Vinculo orgânico entre educação e cultura.
9º Gestão democrática.
10º Auto-organização dos/das estudantes;
11º Criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/das
educadoras
12º Atitude e habilidade de pesquisa
13º Combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais. (CADERNOS
DE EDUCAÇÃO MST, 1999, p. 24)
No primeiro princípio já se evidencia a motivação da educação como ação para a
transformação social, negando a proposta de neutralidade do conhecimento e propondo uma
relação necessária entre teoria e prática para a transformação do contexto social atual. Descreve-
se da seguinte maneira: “Queremos que a prática social dos/das estudantes seja a base do seu
processo formativo, seja a matéria-prima e o destino da educação que fazemos.” (1999, p. 10).
Somada a essa vinculação entre prática e teoria no processo de ensino/ aprendizagem, a
Combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação surge como uma nova
forma de refletir e atuar, tanto sobre os processos de formação de Professores (as) como sobre as
práticas na educação básica. Os processos de ensino seriam aqueles que se caracterizam pelo
momento que privilegia o conhecimento teórico e na capacitação que “resulta em saberes práticos
ou, como temos preferido chamar, em saber fazer (habilidades, capacidades) e em saber ser
(comportamentos, atitudes, posicionamentos)” (1999, p.12). A questão central não está em
desvincular estes saberes, mas em priorizar dimensões diferenciadas, dependendo do objetivo
formativo.
Sobre o terceiro princípio “A realidade como base da produção do conhecimento” nos
chama a atenção a sua aproximação à relação prática- teoria-prática, partindo da materialidade
91
do educando para chegar ao todo, porque é para mudar onde se vive que se estuda. Sobre o
vínculo entre processos educativos e políticos, ao se entender como processo político qualquer
forma de manutenção ou transformação da sociedade e de sua organização, a proposta de
educação do MST compreende ser impossível desvencilhar educação e política, e propõe que a
educação seja meio pelo qual possa se problematizar a alienação presente na sociedade. A
educação do MST propõe uma formação política/ideológica dos estudantes que busca
(...) dar ênfase ao estudo da história e da economia política, fazer uma abordagem crítica
e problematizadora da realidade, trabalhar a mística da organização e do conjunto das
lutas dos trabalhadores, estimular e proporcionar a participação dos/das estudantes em
atos e manifestação dos trabalhadores em geral, e do MST em particular, vincular a
escola com a construção da organicidade do assentamento do Movimento. (MST, 1999,
p. 17)
A proposta de vinculação Educação para o trabalho e pelo trabalho diz que o principal
objetivo é educar sujeitos que são trabalhadores e trabalhadoras. A valorização e o amor,
especialmente pelo trabalho no campo, a busca pela superação da discriminação do trabalho
manual pelo trabalho intelectual e o desenvolvimento de hábitos que desenvolvam processos de
postos de trabalho já realizados em assentamento são algumas das questões a serem trabalhadas
nessa vinculação. O trabalho como fonte de produção de instrumentos necessários para a vida e
também como produtor de cultura, equivale a vislumbrar nela uma relação prática privilegiada
para as necessidades de aprendizagem, numa relação dialética entre teoria e prática.
Sobre a Criação de coletivos pedagógicos e formação permanentes dos educadores/das
educadoras, diz-se que
Sem uma coletividade de educadores não há verdadeiro processo educativo. “Nenhum
educador tem o direito de atuar individualmente, por sua conta e sob sua
responsabilidade.” (Makarenko) Parece uma afirmação muito forte? Mas ela é uma
lição também da nossa prática. Um professor ou uma professora que trabalhe só, não
consegue por em ação estes princípios pedagógicos que aqui estamos defendendo. Eles
nasceram de um esforço coletivo e é pela cooperação se que realizam. (MST, 1999, p.
21)
A formação dos educadores do campo deve passar por um processo permanente de
formação em conjunto, organizando aulas e compreendendo que quem educa precisa se educar.
Assim, os coletivos pedagógicos são espaços importantes de autoformação permanente, por meio
da reflexão e discussão da prática educativa.
A escolha pela luta e pela construção de Outra sociedade passa a demandar do Movimento
um cuidado com a construção do saber, não em suas perspectivas abstratas, mas de saberes que
92
dialogam com suas lutas. Segundo Arroyo (2014), as leituras de mundo que esses sujeitos trazem
do campo, das suas relações com o trabalho e com a produção os fazem demandar novas
pedagogias, que se relacionem com suas formas de reagir e intervir na sociedade.
O Movimento já percebia que suas dimensões de construção de outra sociedade,
construída a partir dos sujeitos camponeses historicamente negligenciados, necessariamente iria
requerer uma educação que dialogasse com as demandas da sociedade. Esse modelo de educação
não se equaciona com uma educação que tem como objetivo a doutrinação e/ou o inculcamento
ideológico dos alunos, mas traz a possibilidade de uma leitura do mundo que se aproxime das
suas históricas lutas, que os possibilitem serem Outros, distintos nos processos educacionais e
não apenas submetidos aos processos de mesmidade.
Essa educação tem como base de seus processos os outros espaços de construção do saber,
os outros saberes e os outros sujeitos que, vindos das lutas travadas de forma coletiva,
cotidianamente, constroem, segundo Arroyo (2014), relações sociais que fujam às relações de
dominação/subordinação que os caracteriza como incivilizados.
Daí se origina duas propostas que se completam: a noção de que o Movimento tem um
papel educador e formador dos sujeitos do campo, e a demanda e busca por outro modelo de
escolarização, que vá ao encontro dos anseios desse coletivo.
Como descrito por Caldart (2014), há que se reconhecer o Movimento como um sujeito
pedagógico, que carrega em si uma intencionalidade formativa daqueles que os constituem, que
transcende os modelos de educação escolarizada, mas que também reconhece e luta pelo direito
desses sujeitos à educação escolarizada como dever do Estado. Ampliar o conceito de educação
para outros espaços da sociedade e para princípios desenvolvidos dentro desses espaços
possibilita que os conhecimentos desse Outro ganhem visibilidade para além do padrão de poder
colonizador.
Como descrito por McLaren (2000, p. 52), é necessário questionar as “sementes da
própria vulnerabilidade” do capitalismo. É necessário questionar a razão burguesa e o privilégio
do cânone científico como porta-vozes do capitalismo, romper com a totalidade da cultura
eurocêntrica e da “cultura branca” como a “base de cálculo cultural”. Assim, cabe aos
movimentos populares questionar e construir uma forma e um meio cultural policêntrico.
Pensar o Movimento enquanto coletividade que busca referência em suas ações e que,
dessa forma, estrutura o seu cotidiano a partir da ação, do coletivo e da identidade nos traz pontos
essenciais, segundo Caldart (2012), para pensarmos a centralidade da identidade pedagógica do
Movimento como coletividade em movimento, que busca a produção desses sentidos coletivos
em cada ação, construindo seus processos pedagógicos básicos por meio de elementos que
93
constituem essas experiências humanas coletivas como a luta, a organização, a terra, a cultura e
a sua história.
Tal como na lavração que seus sujeitos fazem da terra, o MST resolve, mistura e
transforma diferentes componentes educativos, produzindo uma síntese pedagógica que
não é original, mas também não é igual a nenhuma pedagogia já proposta, se tomada
em si mesma, exatamente porque a sua referência de sentido está no Movimento.
(CALDART, 2014, p. 334)
Não será nossa intenção aqui verticalizar sobre a dimensão do Movimento como
educativo22. Entretanto, a construção coletiva desses sujeitos no Movimento colabora na
construção de outra realidade educativa que, iniciada do lado de fora dos espaços escolarizados,
são levados até eles, a partir da luta por direitos, onde se constrói Outra realidade escolar, pautada
a partir desse Outro.
Não se aceita a escolarização como um meio de retirá-los da ignorância, ou como meio
de incluí-los na sociedade capitalista. Pensa-se uma educação escolarizada que coadune com os
aprendizados pedagógicos vividos pelo Movimento na luta social, na qual esses sujeitos
expressam suas potencialidades de intervenção no mundo para a sua modificação, a partir de uma
lógica que lhes seja própria.
Ao lutarem por um modelo de educação Outro, esses sujeitos não aceitam os padrões
generalistas das políticas públicas que, segundo Arroyo (2013), até hoje são percebidos na
educação voltada para o campo, mas lutam por uma educação que permita ser reflexiva e crítica,
pautada sobre os princípios de solidariedade e que se constrói junto a esse Outro silenciado
historicamente, e não como uma benesse de um conhecimento que vem para iluminá-los ou
libertá-los da ignorância.
Como questionado por Arroyo (2014), como esses sujeitos, que foram ignorados e
silenciados por teorizações, pesquisas e epistemologias, passam a descontruir essas perversas
relações de poder que os subalternizam? Sem desconstruí-las é possível seguir e avançar nos
processos de ensino/aprendizagem?
É necessário o reconhecimento e um olhar positivo para esses saberes, identidades e
culturas, expondo nos espaços escolares como esses coletivos foram e continuam sendo vítimas
de dominação/subalternização. É preciso construir com radicalidade as didáticas, os currículos e
os processos de avaliação, para que não se perpetuem sistemas que inferiorizam as crianças e
jovens do campo. É necessária a construção de espaços escolarizados que os permitam saberem-
22 Para isso, ver a tese de Caldart que foi publicada pela expressão popular com o título “Pedagogia do Movimento
Sem Terra”.
94
se. A resistência epistemológica advinda de uma resistência política é meio necessário para a
justiça social global, já que essa só ocorre mediante aquela
Tem-se investido mais em buscar alternativas eficazes para que os setores populares
aprendam superando a ignorância, a irracionalidade, o senso comum, a condição de
inferiores, irracionais, sem valores de dedicação do que em tentar superar essa visão
inferiorizante, abissal que impregna o pensamento moderno e a pedagogia moderna.
(ARROYO, 2014, p. 18)
A decolonialidade é justamente esse esforço teórico e prático que busca abandonar as
pedagogias dominadoras para construir uma forma Outra de relação entre os sujeitos que
compõem os espaços escolares e os conhecimentos e as formas de dialogá-lo.
Daí a busca por uma perspectiva intercultural, pois, por meio dela, se possibilita uma
proposta educativa que renove os paradigmas científicos e metodológicos, o que, segundo Fleuri
(2003), traz novas perspectivas epistemológicas, contribuindo para superação de uma atitude de
indiferença e inferioridade frente ao Outro. Constroem-se relações com o Outro que viabiliza
uma pluralidade cultural e social, pautando-se numa educação voltada para a alteridade, a
igualdade de oportunidade e de direitos.
O que se acolhe na pesquisa como educação intercultural comunga com a noção trazida
por Fleuri (2001) de um campo que entretecem múltiplos sujeitos sociais em suas diversas
perspectivas epistêmicas e políticas, trazendo como importante contribuição para o campo
educacional a concepção de educação, que não pode ser assumida como a simples doação de
saberes, do conhecimento científico, ocidental e “civilizado” para aqueles que são inferiores, mas
pensar a educação como formação de conceitos, valores e atitudes que atuam numa perspectiva
das diferenças dos sujeitos, criando contextos que possibilitem a interação com o Outro, que
desenvolvem suas identidades num ambiente que lhes seja formativo.
Como descrito por Freire (2014) na sua já celebre frase, a educação não ocorre de A para
B e nem de A sobre B, a educação ocorre entre os homens mediatizados pelo mundo. Como
descrito por Zanardi (2010), sob o referencial libertador de Freire o MST vem trazendo e fazendo
emergir uma práxis que possibilita pensar a educação de maneira distinta, e que não entende o
futuro como algo já estabelecido. Assim, o saber que também se quer escolarizado é construído
no mover das histórias e das vidas desses sujeitos, ao longo das trajetórias do campo no Brasil.
Neste contexto, a educação escolarizada promovida pelo MST se constitui em objeto
privilegiado para compreensão dos valores que o Movimento pretende construir. A
educação escolarizada se insere numa ampla moldura, que determina as opções de
determinada comunidade e a concretização de projetos de vidas. (ZANARDI, 2010, p.
97)
95
A criação de uma identidade dos Sem Terra se consolida com uma situação de opressão
e, como preconizado por Zanardi (2010), na comunhão de um projeto que se quer ser marginal
porque alternativo. A perspectiva de marginalização é abordada em nossa pesquisa como uma
proposição diferenciada em relação à educação escolarizada e ao projeto de sociedade que junto
dela se pretende construir. Logo, a manutenção do desenvolvimento de um conhecimento crítico,
pautado nos e pelos oprimidos, fez da educação escolarizada condição necessária e presente no
Movimento, para que esse sujeitos possam proferir as suas palavras.
A noção de palavra é compreendida em toda a sua complexidade a partir das
contribuições de Paulo Freire. Como descrito por Streck e Domingos (2008), Freire, como um
autor filiado à tradição judaico-cristã, nos traz a dimensão do poder das palavras, ou seja, a
palavra como aquela que tem o poder criativo, fruto de uma tradição político-educativa que
compreende que aprender a ler equivale a dizer a palavra. É por meio dela que se tem uma relação
que não se finda no palavrear, mas que diz de uma integração entre teoria e prática e entre ação
e reflexão.
A escrita de Dussel (2002) corrobora essa perspectiva. Para o autor, enquanto o professor
for o único a ter o que dizer, o único a proferir a palavra, a educação seguirá uma tradição
positivista que não possibilitará a existência de sujeitos, servindo sempre para a objetificação do
aluno. Daí que em ambos os autores, Freire e Dussel, a escuta é tão fundamental quanto a palavra,
afinal, só se pode falar “com” aquele que escuta, caso contrário, realiza-se discursos e depósitos
de conteúdos sobre outras pessoas.
Assim, ter fé nos homens é, segundo Freire (2014), uma prerrogativa necessária às
condições para um diálogo verdadeiro. Para que esse diálogo se efetive é necessária uma intensa
fé nos homens e mulheres com quem se dialoga. Fé na possibilidade de fazer e refazer a história,
fé nas suas condições de ser mais, não como um privilégio, mas como um direito de todos os
homens.
A educação dialógica se distancia daquela que busca levar uma mensagem salvadora aos
grupos oprimidos, mas, como descrito por Freire (2014), em diálogo com esses sujeitos conhecer
para além da objetividade em que estão, conhecer seus níveis de percepção de si e do mundo.
A educação escolarizada (pensada a partir dos saberes, da relação dialógica e da
construção do oprimido) tem de questionar e liquidar com a perspectiva da invasão cultural.
Como descrito por Freire, a invasão cultural é “a penetração que fazem os invasores no contexto
cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade,
ao inibirem sua expansão”. (2014, p. 205)
96
Essa invasão cultural faz com que, por meio da negação da cultura dos oprimidos, o
opressor, o colonizador, passe a residir dentro dos grupos oprimidos, não sendo mais algo apenas
externo, mas interno, porque agora habita o oprimido em suas concepções de mundo, em suas
formas de organização social, em sua linguagem, já que seus saberes passam a conviver com a
colonialidade deles.
Daí a necessária crença que se deve ter fé nas pessoas, em sua capacidade de ser mais, de
sua vocação para ser mais
(...) e por estarmos sendo assim que nos vocacionamos para a humanização e, que
temos, na desumanização, fato concreto da História a distorção da vocação. Jamais,
porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra [...] são destinos certos, sina ou
fato, dado ou dado. Por isso mesmo que uma é vocação e a outra é distorção da vocação.
FREIRE, 2014, p. 37)
A natureza humana diz de um existir que se faz, constrói e se autorrefaz num processo de
vocação ontológica. A desumanização vivenciada nos processos históricos de grupos em todo o
mundo constitui, portanto, a negação da vocação ontológica humana. A luta dos seres humanos
tem de ser aceita de forma antropológica e ética, buscando recuperar a ação humana como de
sujeitos históricos que não sucumbem frente a teorizações sobre o fim da História.
A educação escolarizada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se
encontra, portanto, além da formalização de um projeto pedagógico, posto que é na
realidade vivida que se dá o conteúdo contido em seu projeto educativo. Assim como a
escola é mais que um prédio, a educação é um projeto orientado pela prática e que
orienta essa prática. É, portanto, a luta que, explicitamente, orienta a educação para,
dialeticamente, ser por essa orientada. A educação do MST se relaciona com a formação
integral dos educandos. A relação do conhecimento que está sendo construído com os
valores desenvolvidos na realidade dos assentamentos é o principal tema gerador do ato
de educar. Nesse sentido, todos se fazem educadores e educandos. (ZANARDI, 2010,
p. 102)
O que se percebe é a construção de uma nova sociedade a partir das vivências das vítimas,
do Outro, que foi negado em suas formas de existir e de reproduzir. A consciência atingida por
esses grupos os faz lutar por utopias, que não se findam no palavrear desconectado da realidade,
mas interligado a uma práxis alternativa ao projeto opressor.
4.2 As lutas pela educação do Campo
Como descrito por Caldart (2012), ao pensar a educação do campo é necessário que
estejamos atentos a três pontos de análise: à dimensão de campo, à concepção de educação e de
97
políticas públicas. Afinal, isolar uma dessas dimensões empobreceria a concepção e as frentes de
atuação que vêm sendo destacadas ao longo da construção do da educação do campo.
Pensar no campo, segundo Caldart (2012), e numa educação a ele relacionada equivale a
refletir sobre os protagonistas desse processo. São os movimentos sociais que buscam, através
das lutas, novas dimensões de ocupação e produção das terras, enfrentando as políticas
neoliberais do agronegócio.
É somente dentro dessa concepção de campo, como um lugar de produção de cultura e
espaço de luta, que se pode pensar nas disputas por políticas públicas em educação no campo.
Nas palavras de Caldart (2012) o “terreno movediço” das políticas públicas é meio necessário
pelo qual esses sujeitos do campo passam a buscar uma relação com o Estado para que suas
demandas sejam materializadas.
Se a necessidade de aproximação com o Estado, disputando com os outros setores da
sociedade as formas e os conteúdos das políticas públicas, faz os movimentos sociais chegarem
mais próximos das lutas por um Estado mais democrático, Caldart (2012) nos diz que essa
aproximação também faz com que haja uma perda de sua radicalidade, passando a ter de fazer
concessões e estreitamentos, que podem ser compreendidos, por vezes, como avanços e
retrocessos.
Assim como Caldart (2012), defendemos que é necessário um alargamento de
perspectivas, ou seja, para que se construa o projeto de sociedade e de campo que se pauta é
necessário ampliar as lutas e também as alianças, incluindo setores que não estão no campo, e
também avançar na perspectiva de democratização do Estado. Afinal, como a luta pela educação
do campo não se finda exclusivamente nela, não há justificativa para fixar-se apenas na
preocupação com a educação, sem pensar no Estado e nas contradições que daí advém.
Entrar na disputa de forma e conteúdo de políticas públicas, como buscam fazer os
sujeitos da Educação do campo, é de fato entrar em uma disputa direta e concreta dos
interesses de uma classe social no espaço dominado pela outra classe, com todos os
riscos (inclusive de cooptação) que isso implica, mas também com essas possibilidades
de alargamento de compreensão da luta de classes e do que ela exige de quem continua
acreditando na transformação mais radical da sociedade, na superação do capitalismo.
(CALDART, 2012, p.53)
Já a noção de educação pode ser abordada como descreve Hage (2014), no âmbito do
direito a ter direitos, que centrada nos sujeitos coletivos e em suas possibilidades de desenvolver
concepções e práticas pedagógicas recriam a educação e o educativo.
Corroborando esses pontos, Caldart (2012) nos diz que há uma disputa por uma
democratização não somente do acesso à educação escolarizada, mas de outra lógica da produção
98
de conhecimento, que rompa com a visão hierarquizada característica de uma sociedade marcada
pela modernidade capitalista.
As questões hoje da construção de um novo projeto/ modelo de agricultura, por
exemplo, não implicam somente o acesso dos trabalhadores do campo a uma ciência e
a tecnologias já existentes. Exatamente porque elas não são neutras. Foram produzidas
desde uma determinada lógica, que é a da reprodução do capital e não a do trabalho.
Esta ciência e estas tecnologias não devem ser ignoradas, mas precisam ser superadas,
o que requer uma outra lógica de pensamento, de produção do conhecimento.
(CALDART, 2012, p.44)
O que Caldart (2012) defende é a necessidade de uma problematização sobre a produção
do conhecimento ao discorrer sobre o projeto educativo proposto. Há muito a relação do “diálogo
dos saberes” resulta em aceitar que o conhecimento popular deve ser utilizado apenas como um
artifício didático vazio, que conduz o aluno ao “verdadeiro” saber. A proposta é que se aprofunde
sobre as tensões envolvidas na produção de diferentes saberes
E do ponto de vista metodológico isso tem a ver com uma reflexão necessária sobre o
trabalho pedagógico que valorize a experiência dos sujeitos (Thompson) e que ajude na
reapropriação (teórica) do conhecimento (coletivo) que produzem através dela,
colocando-se na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e
trabalho intelectual, que é própria do modo de organização da produção capitalista.
(CALDART, 2012, p.45)
Como nos chama a atenção Martins (2012), é necessário compreendermos que, junto a
essa luta por uma educação que seja do campo, nasce de forma indissociável, mas independente,
o movimento Por uma Educação do Campo.
Realizada em 1998, a I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, em
conjunto com a Universidade de Brasília (UnB), o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef), a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), passou a buscar esses meios de se pensar o
Campo e a educação a ele vinculado.
Muda-se, entretanto, para Por uma Educação do Campo por perceber que a demanda pela
educação não se restringe apenas à educação básica, mas também à ocupação dos espaços
universitários.
99
Desde então, têm-se uma produção sistematizada sobre a os avanços, conquistas e
desafios da Educação do Campo, dispostas nos cadernos Por uma educação do campo.23
Segundo Caldart (2004) sobre as práticas desenvolvidas por esse grupo é necessário salientar que
Um dos traços fundamentais que vêm desenhando a identidade desse movimento Por
uma Educação do Campo é a luta do povo do campo por políticas públicas que garantam
o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo. No: o povo tem
direito a ser educado no lugar onde vive; do: o povo tem direito a uma educação pensada
desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas
necessidades humanas e sociais. (CALDART, 2004, p. 149-150)
A luta por políticas públicas sobre educação do campo se iniciou, de forma efetiva, em
1997, ano que se comemorou 10 anos do núcleo de educação do MST. Nesse ano se desenvolveu
o I Encontro Nacional da Educação na Reforma Agrária (ENERA), realizado na Universidade
de Brasília, que contou com a participação de representantes do MST e de Professores (as)
universitários que já desenvolviam parcerias educacionais informais com o Movimento em mais
de vinte estados do país.
Nesse encontro percebeu-se a necessidade de se elaborar uma política pública de
educação para o campo, que se vinculasse diretamente às áreas de assentamento. Propôs-se, na
ocasião, buscar uma parceria junto ao Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF),
cuja necessidade foi ratificada com uma pesquisa realizada em 1996, encomendada pelo MEPF,
denominada Censo da Reforma Agrária. Essa pesquisa traçou um perfil da escolaridade e do
acesso à educação pelas populações que se encontravam em áreas de reforma agrária. Constatou-
se que a escolaridade da população em áreas de assentamento é inferior à das populações da área
rural. Segundo Clarice (2012), o que também se constatou foi a ausência do poder público,
municipal ou estadual, justificada, muitas vezes, pela alegação de que as áreas de assentamento
são de exclusiva responsabilidade do poder federal.
Dessa necessidade concreta de promover a educação em áreas de reforma agrária em
diálogo com as demandas dos movimentos sociais, tem-se a primeira política pública para o
campo, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), em 1998. O
programa foi institucionalizado através da Portaria nº10/98, com o objetivo de desenvolver
educação formal para os anos iniciais e finais do ensino fundamental e ensino médio, na
modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), ensino médio profissional, ensino superior e
pós-graduação (formação de Professores(as) do campo), assegurando, portanto, o direito à
23 Os cadernos publicados “Por uma educação do campo” tiveram os seguintes títulos: 1- Por uma educação básica
do campo (memória) 2- A educação básica e o movimento social do campo 3- Projeto popular e escolas do campo
4- Educação do Campo: identidade e políticas públicas 5- Contribuições para a Construção de um Projeto de
Educação no Campo 6- Projeto Político-Pedagógico da Educação do Campo - 1º Encontro do Pronera na região
Sudeste. 7- Educação do Campo: Campo - Políticas Públicas - Educação
100
educação. Segundo Molina e Jesus (2010) é necessário ressaltar que desde as primeiras
mobilizações para a criação do Pronera, as experiências e os princípios formativos dos
Movimentos Sociais do Campo forneceram significativas contribuições para o êxito do
Programa.
Em 2009, através da inclusão do artigo nº 33, na lei nº 11.947, o Congresso Nacional
autorizou o Poder Executivo a instituir o Pronera. Em 04 de novembro de 2010, o presidente da
República editou o decreto nº 7.352, que instituía a Política Nacional de Educação do Campo e
o Pronera, caracterizado, no seu art. 1º, com uma política de educação destinada a ampliar e
qualificar a oferta de educação básica e superior às populações do campo.
Como descrito por Hage (2014), outra grande conquista foram as “Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”. Essas diretrizes constituem, ainda
segundo o autor, princípios e procedimentos “que visam adequar o projeto institucional das
escolas do campo às políticas curricular nacionais vigentes intencionando legitimar a identidade
própria dessas escolas, que deve ser definida ancorando-se na temporalidade e saberes próprios
dessas escolas(...)” (HAGE, 2014, p. 137) (CNE/CEB. Resolução nº 1, de 3 de Abril de 2002).
Para compreendermos as licenciaturas em educação do campo, vale ressaltar a política
pública denominada PROCAMPO – Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura
em Educação do Campo. Nascido por demanda do Pronera, o PROCAMPO surge voltado,
especificamente, para a formação de educadores para a docência nos anos finais do ensino
fundamental e ensino médio nas escolas rurais.
Segundo Hage e Molina (2016), houve dois editais pilotos, 2008 e 2009, sendo o último
publicado em 2012, no qual é possível perceber que o programa vem se tornando uma política
estruturante de formação de educadores.
(...) o Edital nº 02/2012 da SECADI/MEC (BRASIL, 2012), que aprovou 42 projetos a
serem desenvolvidos em IES, com disponibilização de 600 vagas permanentes para
docentes e 126 técnicos nessas instituições e com a meta de formar 15 mil professores
para atuar na Educação Básica, nas escolas do campo, nos primeiros três anos dos
cursos. (HAGE, MOLINA, 2016)
Conforme expõe os autores, é necessário explicitar que as práticas formativas
desenvolvidas nessas graduações, não podem se desvincular da sua materialidade original da luta
contra o capitalismo e as formas hegemônicas de educação. Em outras palavras, é necessário
compreender como o programa fomenta novas práticas formativas que possam enfrentar a
hegemonia das atuais políticas de formação no Brasil, orientadas pelas teorias da “Epistemologia
101
da Prática”, que fortalecem e disseminam processos formativos baseados na “Epistemologia da
Práxis”.
4.3 Formação de Professores: do Rural a Educação do Campo
Antes de abordarmos o curso de Licenciatura em Educação do Campo (LeCampo), que é
o objeto da presente pesquisa, é necessário trazermos algumas problematizações sobre o campo
da formação de professores. Consideramos como especificidade da formação decolonial de
professores para o campo uma relação intrínseca com o conhecimento que questiona o
eurocentrismo e as formas de ensino/aprendizagem pautadas na pedagogia moderna.
Disputam esse campo de formação projetos diferenciados de sociedade e de educação. A
intencionalidade na prática formativa do professor responde de forma diferenciada a questões
como: Por que formamos professores? Qual concepção de educação se defende nessa formação?
De acordo com Gatti (2010) há uma fragmentação nos currículos dos cursos de formação
de professores, pois apresentam-se desintegrados. Nos dizeres da autora é necessária uma
“verdadeira revolução” nos cursos de formação de professores para que se possa conseguir uma
formação mais articulada com a prática docente e uma integração dos estágios com as teorias
estudadas no curso.
Um levantamento sobre os cursos de Pedagogia realizado por Libâneo e Pimenta (1999),
apresenta quatro características comuns aos cursos de pedagogia no fim do século XX, no Brasil:
um caráter tecnicista, que relegou o papel da pedagogia à investigação do fenômeno educativo;
um “agigantamento da estrutura curricular”, que fez com que, ao mesmo tempo, tenha sido
construído um currículo fragmentado e acelerado; uma excessiva fragmentação das tarefas
escolares e, por último, uma separação no currículo, no qual há um “bloco”, responsável pela
formação pedagógica de base, e outro que se responsabiliza pelos estudos correspondentes às
habilitações.
Em face dos problemas que se colocam, é inquietadora a questão trazida por Ribeiro
(2015, p.54): “a quem interessa o tecnicismo, instrumentalismo e superficialidade encontrada
nesse tipo de formação? Quem ganha, nessa disputa, com a superficialidade retratada nas
pesquisas? ”.
Diniz-Pereira (2014) destaca-se como um dos principais estudiosos dos diferentes
paradigmas que concorrem no campo de formação de professores. Para o autor, é possível dividir
esses modelos, colocando de um lado aqueles estudos baseados no modelo de racionalidade
102
técnica, e, em outro, os estudos que se baseiam na racionalidade prática e no modelo de
racionalidade crítica.
Também conhecido como epistemologia positiva da prática, o modelo de racionalidade
técnica busca uma instrumentalização dos problemas educacionais. Advindo da racionalidade
científica, vivenciada nos séculos XIX e XX, esse modelo, parte da concepção de educação como
uma ciência aplicada, confiando à educação uma suposta neutralidade do método científico, a
eficácia e a eficiência no ensino.
Nessa perspectiva, a prática formativa pode ser utilizada dentro das noções de causa e
efeito, sendo as questões educacionais trabalhadas como problemas “técnicos”, que podem ser
previsíveis e solucionados com leis causais para conduzir e controlar os resultados educacionais
práticos. Cabe aos pesquisadores educacionais “puros” a investigação científica e aos
pesquisadores da educação “aplicada” ofertar as respostas às questões científicas dentro das
expectativas que se têm para a educação. Teoricamente, garante-se, assim, que o processo de
educação seria realizado de forma neutra e, portanto, livre das interferências valorativas daqueles
que a conduzem.
Como alternativa à racionalidade técnica, surgiu no início do século XX o modelo de
racionalidade prática, sendo fonte direta das pesquisas desenvolvidas pelo norte americano John
Dewey.
Reconhecendo a realidade educacional como muito fluida para ser conduzida e
sistematizada pela técnica, os teóricos da racionalidade prática defendem que as circunstâncias
educacionais podem ser “controladas” apenas através de um questionamento sobre a atuação
docente na sua prática. Dessa forma, a formação adquirida pelo professor não pode se resumir a
um conjunto de técnicas ou a um “kit de ferramentas”, mesmo que ainda se reconheça a existência
de algumas técnicas e “macetes” a serem utilizados na prática. É, portanto, o processo em si que
conduz a criação de critérios, que dirão como boas, indiferentes ou indesejáveis as práticas que
ajudaram na formação do professor. (DINIZ-PEREIRA, 2014, p.37).
O paradigma da racionalidade prática ganha ênfase a partir dos estudos de Schön, que
desenvolve, a partir dos anos 1980, as principais noções para a análise do professor reflexivo.
Contrastando das dualidades presentes na perspectiva técnica, a escrita de Schön (2000) é
permeada pela noção de que os professores são aqueles que não separam o fazer do pensar, e que
o ato de refletirem na ação faz com que eles construam uma nova teoria, dispensando as
categorias técnicas e teóricas prévias.
103
Em uma conversação reflexiva, os valores de controle, o distanciamento e objetividade
– centrais a racionalidade técnica - assumem novos significados. O profissional tenta,
dentro dos limites de seu mundo virtual controlar as variáveis em nome do experimento
do teste de hipóteses. Porém suas hipóteses referem-se ao potencial da situação para a
transformação, e, ao testá-las ele inevitavelmente entra na situação. Ele produz um
conhecimento que é objetivo no sentido de que pode descobrir o erro. (SCHÖN, 2000,
p. 70)
Segundo Ribeiro (2015) e Diniz-Pereira (2014), há mais aproximações entre a perspectiva
técnica e prática do que distanciamentos, principalmente quando o assunto é a educação e sua
finalidade. Além disso, ambas as perspectivas diminuem a importância da teoria nos cursos de
formação de professores, colaborando para uma formação rasa, pouco crítica.
Segundo Pimenta (2012), há pontos que aproximam a dimensão reflexiva de formação de
professores da perspectiva técnica, como: há uma noção comum, nas pesquisas realizadas a partir
da noção reflexiva, de que o ensino é o ponto de chegada e partida; assim, há uma
supervalorização dos processos de produção do saber a partir da prática e pouca (ou nenhuma)
relação com as condições que os professores têm para refletir. Deste modo, a prática reflexiva é
feita de modo individual, devido à ausência de objetivos para traçar uma mudança estrutural e
institucional. O conceito de reflexão passa a se associar mais a um oferecimento de treinamento
para que o professor se torne reflexivo do que a uma maneira de refletir sobre a formação docente.
Albuquerque (2013) apresentou um levantamento das teses e dissertações, realizadas
entre 1987 e 2009, que versavam sobre educação do campo e educação rural. Das 433 pesquisas
encontradas – sendo 365 dissertações e 68 teses – a autora produziu cinco grupos de análises24
com os temas mais recorrentes encontrados. Curioso perceber que a temática “formação
docente”, com 37 estudos, tem um quantitativo, consideravelmente inferior, em relação à
temática mais pesquisada – a teoria pedagógica, com 198 trabalhos25.
Entre as conclusões da autora, destaca-se a constatação de que há uma centralidade na
investigação dos saberes que os professores do campo utilizariam no cotidiano. Essa ênfase na
perspectiva reflexiva, ainda segundo a autora, torna-se problemática na medida em que os saberes
são considerados de tamanha especificidade que passam a não serem referências para outros
professores.
Verificamos em relação à educação dos trabalhadores do campo que esta ideia torna-se
uma saída aparentemente viável frente a uma realidade na qual a maioria esmagadora
dos professores não tem sequer o direito de cursar a formação inicial. Esta concepção é
ainda mais devastadora se considerarmos a precariedade da educação em nosso país,
24 Felipe ria educacional, Felipe ria pedagógica, políticas públicas, formação de professores e Outras temáticas. 25 Destes a autora faz uma subdivisão: são 17 estudos na área de Educação do Campo; 03 sobre Escola Rural; 14
sobre Educação Rural e 03 sobre Educação do Campo.
104
em especial, do trabalho dos professores, frente ao que esta concepção torna-se uma
ilusão a se agarrar. (ALBUQUERQUE, 2013, p.32)
O problema central dessa proposta é que ela se distancia, como descrito por Caldart
(2012), dos objetivos centrais da Educação do campo, ou da sua materialidade de origem,
pautados nas lutas dos trabalhadores (as) organizados em movimentos sociais que lutam pela
negação do campo como um local de atraso, enfrentando o latifúndio, o agronegócio e o projeto
individualista neoliberal.
No que diz respeito ao modelo crítico, como descrito por Diniz-Pereira (2014, p. 40),
“(...) o professor é visto como alguém que levanta um problema”. Entretanto, essa não é uma
característica exclusiva do paradigma crítico, uma vez que, no paradigma técnico e prático, o
professor também é alguém que levanta problemas.
São características fundamentais da problematização crítica: uma historicidade da
educação, que se localiza num plano sócio histórico; o reconhecimento da educação como uma
atividade social, que não se finda numa perspectiva de desenvolvimento individual; ser
intrinsecamente política, ou seja, afeta as escolhas daqueles que estão envolvidos em seu
processo, e, por último, ser problemática diante dos seus propósitos, das sugestões que produz e
do tipo de conhecimento que dá forma.
Constata-se que, enquanto a perspectiva técnica tem uma concepção instrumental sobre a
natureza do trabalho docente, a perspectiva prática é marcada por uma concepção interpretativa.
Distante de ambas, os modelos críticos são marcados por uma visão política explicita. Em Freire,
se desenvolve a noção de uma educação como levantamento de problemas, através do diálogo;
nele também se desenvolve a visão de que a comunidade de pesquisadores se soma à dos
estudantes como co-investigadores. (DINIZ-PEREIRA, 2008).
No Brasil, ainda segundo Diniz-Pereira (2008), o programa de formação de professores
do MST pode ser considerado exemplo de formação docente na perspectiva crítica. Para tanto, é
importante perceber a modificação histórica para a construção desta perspectiva, conforme
abordado a seguir.
A formação de professores para o campo tem um histórico de lutas. Como nos demonstra
Calazans (1993), até a década de 1930 eram inexistentes as políticas voltadas para a educação do
campo, e quase inexistentes eram as preocupações com a formação dos educadores do campo.
Também eram muito precárias e pouco numerosas as escolas localizadas no campo.
Como nos demonstra a pesquisa realizada por Pinho (2009), em Minas Gerais houve a
implantação de um dos mais exitosos cursos de preparação de professores rurais do Brasil,
105
embora seu início tenha acontecido apenas no final da década de 1940.26 Para a autora, os cursos
normais para formação de educadores do campo eram marcados por uma intensa lógica urbana
e industrial, traços que simbolizavam o modelo de desenvolvimento vivenciado no período do
pós-guerra e que tinham como foco não os ambientes rurais, mas as cidades. Assim, os cursos
recebiam influência dos valores hegemônicos da sociedade, dos padrões, comportamentos e as
dinâmicas sociais da industrialização e da busca pela inserção do Estado na modernização
econômica. Daí o curso de licenciatura equivaler mais a um instrumento de confirmação em
relação à estrutura social, econômica e cultural do país do que a uma ruptura.
O ideário pedagógico para o meio rural, cuja proposição seria a urbanização do campo
e a civilização do habitante, fundamentou-se em uma concepção de educação e de
escola rural diferenciada das escolas nas zonas urbanas, embora baseada na concepção
urbana de educação. As propostas de desenvolvimento das condições e da qualidade de
vida da população rural se fizeram a partir da superação e, talvez, até mesmo, pela
negação do rural pelo urbano. (PINHO, 2009, p.127)
Uma das diferenciações que se percebe na formação nos cursos rurais, segundo a pesquisa
desenvolvida por Andrade (2006), sobre educação rural em Minas Gerais, na década de 1950, é
a existência de um currículo com poucos conhecimentos, diferentes daqueles cursos Normais
voltados para as escolas da cidade.
Comparados aos Cursos Normais para a formação de professores primários, os Cursos
Normais Regionais oferecem uma formação inicial reduzida. A preocupação em
oferecer, no curto prazo de 4 anos, as disciplinas consideradas de conteúdo, a formação
pedagógica e uma formação específica, voltada para o trabalho e à aquisição de hábitos
adequados à vida no campo contribui para esse fato. A análise dos programas
recomendados evidencia, por sua vez, uma profunda diferença no que se refere ao perfil
da formação pedagógica que, nos Cursos Normais Regionais, assumem caráter
eminentemente prático. (ANDRADE, 2006, p. 54)
Corroborando com essa perspectiva, Santos (2010) nos diz que, somada a essa
precarização da formação, os cursos normais rurais passaram a centrar-se numa formação muito
mais técnica, o que faz com que a escola fosse percebida mais como espaço de qualificação de
mão de obra para os grandes latifúndios do que espaço de formação e de aprendizagem.
Para Neto (2011), há uma sensível modificação na educação rural, a partir da
consolidação do Brasil, no modelo de desenvolvimento “moderno”, que ocorre no período da
Ditadura Militar. O campo passa a ser visto como o lugar do agronegócio e símbolo do
26 À frente dessa proposta educativa, esteve o Secretário de Educação Abgar Renault (1901- 1995) e, principalmente,
a psicóloga e educadora Helena Antipoff (1892-1974). O primeiro Curso Normal Regional a ter algum sucesso no
país foi o de Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará, criado em 1934. Embora se situasse na zona urbana, preparava
professores especialmente para atuarem na zona rural.
106
capitalismo agrário, sendo necessária a exploração de mão de obra qualificada, que substituiu a
“enxada” pela “empregabilidade”. A demanda da educação no campo não é mais a de manter o
camponês no campo para garantir a alimentação da cidade, mas a de habilitá-lo para a nova
“modernidade”, adequando-o às demandas e necessidades do agronegócio, aumentando a
produtividade e maximizando lucros.
É possível perceber nos estudos sobre a educação rural que nela há um forte vínculo com
a inferiorização das populações do campo centradas pelo poder moderno/colonial. Enquanto a
cidade é compreendida como o discurso hegemônico e único possível para se alcançar o
“desenvolvimento” e o “progresso” da sociedade, o campo é retirado de seu contexto histórico e
colocado à margem como um lugar que em si mesmo representa o atraso, o incivilizado, o
ultrapassado.
Desta forma, segundo Zanardi (2012, p.132), pode-se compreender educação no campo
como uma educação “centrada nos interesses dos opressores latifundiários e das elites urbanas
que, por vezes tratam o camponês com romantismo, para a sua docilização, e, em outras, enxerga-
o como símbolo do atraso, para culpa-lo pela sua situação. ”.
A ruptura com esse modelo de educação no campo está longe de ser atitude benevolência
da burguesia e do latifundiário, mas se atem às lutas que se desenvolvem em razão das
contradições do capitalismo, da exploração legitimada e vivificada através deste sistema.
Ainda conforme Zanardi (2012), a luta por outro modelo de educação tem as suas raízes
nas formas de vida camponesas, que sofreram historicamente com um processo de exploração
econômica, mas que passam a lutar de forma coletiva por justiça social e dignidade.
O campo ganha destaque na pauta educacional tendo como base um projeto que se
diferencie da educação no campo nos auspícios de um projeto de alfabetização realizado no
governo de João Goulart, momento em que Paulo Freire ganha destaque no seu contato com as
populações pobres do Rio Grande do Norte, desenvolvendo uma metodologia de ensino em
favorecimento do interesse e a emancipação dos oprimidos do campo.
Como nos conta Zanardi (2012), a violência imposta pelo golpe militar impossibilitou o
desenvolvimento desse plano de alfabetização voltado para um olhar crítico e historicizado, que
retirasse a dominação daqueles sujeitos e possibilitassem-lhes seu entendimento como Outro, e
não mais como o mesmo colonizado.
A educação voltada para o camponês e pensada por ele é nova. Segundo Caldart (2012),
é um fenômeno atual, que busca a transformação da realidade brasileira, incidindo sobre as
políticas públicas em educação a partir das demandas e dos interesses sociais dos povos do
campo.
107
Esse movimento passou a ter como objetivo romper com as cercas do latifúndio do saber,
ou, ainda, as cercas do conhecimento, mostrando ser essa uma disputa tão árida quanto aquela
realizada nas ocupações. Busca-se uma escola comprometida com a superação das condições de
opressão desses povos e que lhes possibilitem a construção de Outra alternativa que não se finda
no capital.
Essa construção da educação é baseada no papel ideológico da escola, reconhecendo esse
espaço como uma das possibilidades de construção de uma emancipação que prepara para as
lutas. Não que se defenda uma educação como um ato doutrinário ou uma educação
manipuladora. Buscam forjar uma educação que tenha como principal característica ser reflexiva
e crítica, portanto comprometida, ressaltamos, com a transformação social.
Daí o que se percebe é uma aproximação significativa entre o que se concebe como
educação do campo e sua concepção de educação com a própria concepção de educação
escolarizada e de formação de professores desenvolvida pelo MST. A perspectiva de uma
educação que, por se reconhecer ideológica e preocupada com a transformação social, busca
construir processos de formação de professores que se preocupem com as insurgências dos
sujeitos Outros e do direito desses sujeitos a saberem-se sujeitos de si, de seus conhecimentos e
de suas histórias.
Entre as ações desenvolvidas pelo MST na área da educação, a ocupação dos espaços
universitários e a formação de professores ocupam um papel de destaque, buscando sempre
associar a formação de professores a estratégias e práticas de formação não formais, vivenciadas
no convívio com o Movimento. A preocupação se estende para a formação que abranja, pelo
menos, três áreas de formação: a profissional, política e cultural.
Existem, como nos conta Diniz-Pereira (2008), dois tipos de cursos que fazem parte do
programa de formação profissional e acadêmica do educador do campo no MST. O magistério,
em nível médio, e a Pedagogia da Terra. O magistério foi criado em 1990 e existe atualmente,
mesmo com as alterações na legislação educacional que recomenda a formação em nível superior
para atuação docente. Já o curso de Pedagogia da Terra foi criado em 1998, vinculando o nível
superior à proposta do MST, através do Pronera.
Segundo Arroyo (2012), a criação dos cursos de Pedagogia da Terra vai além de uma
ação corretiva de históricas desigualdades no campo, mas reafirma a luta dos sujeitos camponeses
com seus processos de afirmação política, cultural, social e pedagógica e de acesso à educação
no nível superior.
Esses sujeitos ingressos no curso superior muitas vezes já atuavam no Movimento, em
processos de educação não escolarizada e escolarizada. Quando chegam aos cursos superiores de
108
licenciatura, segundo Arroyo (2012), levam consigo suas radicalidades políticas, seus valores,
saberes, concepções de mundo e de educação, passando a modificar e a exigir dos cursos o
reconhecimento desses saberes.
Em decorrência disso, podemos destacar duas grandes conquistas na criação de cursos
superiores em parceria com os Movimentos Sociais: a primeira foi o aumento de vagas e do
acesso de pessoas historicamente negligenciadas à educação superior27; houve ainda a
democratização do currículo, que passa a incluir outros saberes e sujeitos.
Quando os movimentos sociais passam a exigir políticas públicas de formação de
professores específicos para o campo, fica evidente a necessidade de um conhecimento Outro
para se construir essa formação. Junto aos teóricos da chamada perspectiva crítica de formação
de professores, percebemos que há questões essenciais para possibilitar a construção de uma
formação Outra.
Ao questionarmos, assim como os teóricos críticos do currículo, a quem serve o
conhecimento escolarizado, a partir de uma abordagem decolonial, deparamo-nos com um
projeto hegemônico eurocêntrico que se apropriou da educação para reproduzir e perpetuar a
ideologia fundada na homogeneização e hierarquização das identidades. Como descrito por
Lander
Afirmando o caráter universal dos conhecimentos científicos eurocêntricos abordou-se
o estudo de todas as demais culturas e povos a partir da experiência moderna ocidental,
contribuindo desta maneira para ocultar, negar, subordinar ou extirpar toda experiência
ou expressão cultural que não corresponda a esse dever ser. (LANDER, 2005, p. 14,
grifos no original)
Ao preservar e reconhecer como único conhecimento válido aquele que os especialistas
produzem, a escola e as universidades reforçam, como descrito por Lander (2005), o metarrelato
colonial dos saberes, que implica na legitimação apenas do saber do colonizador, dificultando
que conhecimentos e sujeitos Outros ocupem esses espaços como lugares democráticos e de
construção de conhecimento.
Para se construir uma concepção Outra de formação, é necessário que o professor não
seja, portanto, um depositário desse conhecimento único europeu, mas que propicie a ele uma
crítica ao seu posicionamento pedagógico-político que quebre com a estrutura de negação da
palavra do Outro. Isso não pode equivaler a depositar no professor “um sentido único crítico”:
27 Segundo um levantamento realizado por Roseno (2014), em 2014 das 112 Universidades públicas do país, 60
mantinham alguma parceria com o MST. Para Martins 2012, entre 2003 e 2007 existiam no âmbito da Pedagogia
da Terra 3.469 vagas no ensino superior em instituições majoritariamente públicas. Além disso, segundo o autor
haviam 22 cursos, nas diferentes áreas, feitos pelo PRONERA pensados na dinâmica do campo.
109
caso fosse assim, estaríamos mantendo as estruturas de colonização e de dominação sobre os
sujeitos.
Ao se colocar a favor de uma mudança epistêmica e de ruptura com uma pedagógica
dominadora, buscando construir uma sociedade Outra, evidencia-se o projeto ideológico que
comunga com a decolonialidade, que denuncia constantemente a suposta neutralidade dos
conhecimentos eurocêntricos e evidencia que qualquer seleção de conhecimentos é uma relação
política, portanto, ideológica.
Construir democraticamente uma formação desses sujeitos Outros campesinos nos cursos
de licenciatura em Educação do Campo, que rompa com a relação colonizadora do conhecimento
europeu e com o reconhecimento do professor como um depositário de saberes é, a nosso ver, o
maior desafio dos cursos.
Scocuglia (2005), ao trazer as contribuições de Freire para a formação de professores,
aponta um aspecto de compromisso pessoal dos sujeitos para a construção de uma formação
emancipadora, a necessidade de uma reeducação dos professores, que se daria a partir de um
compromisso com aspectos sociais políticos e culturais. Assim, para reconstruir um modelo de
formação é necessário que os sujeitos professores se reeduquem em sua prática.
Para Ribeiro (2016), é importante, se quisermos compreender melhor a relação de Freire
com o conhecimento que forma o professor, é necessário entendermos as questões trazidas por
ele no que se relaciona com a tão mencionada transformação. Para pensar uma formação para a
transformação, que rompa com a dominação moderno/colonial, é necessário um engajamento do
educador com a existência humana, ao lado dos esfarrapados do mundo. Como descrito por Freire
(1997), é necessário não acreditar que a transformação da sociedade virá exclusivamente pela
escola, mas que também sem ela é difícil conceber a mudança.
Como salientado por Ribeiro (2016), a transformação (ou a mudança) em Freire é sempre
compreendida numa dimensão dialética de denúncia e possibilidade histórica do novo, do
anúncio. A formação pautada em um conhecimento eurocêntrico colonizador deve ser
denunciada, para que se possa evidenciar uma concepção que compreenda a história como espaço
do possível, da resistência e de construção de um projeto Outro.
Pensado a partir de um conhecimento Outro, a formação de professores para o campo
deve possibilitar a construção de uma prática emancipadora pelo professor eticamente
comprometido com a humanização dos sujeitos, porque, não sendo mais uma formação a-
histórica, neutra e dominadora, aproxima os conhecimentos das identidades dos sujeitos e
reconhece suas culturas e histórias.
110
Essa perspectiva é fundamental porque percebe a cultura como lugar por excelência de
disputas de sentidos e vê na formação o espaço necessário a construção de Outra educação do
campo. Como descrito por Ribeiro
A construção curricular não deve ser uma transmissão dos supostos detentores do saber,
e sim uma permanente troca entre todos os sujeitos escolares que possuem o direito de
escolher, optar, opinar, refletir e divergir, pois o conhecimento, bem como o currículo
não são exclusivamente de especialistas, de dirigentes, ou até mesmo dos professores.
Eles pertencem também aos educandos (...). (2016, p. 97)
Por isso, Freire (2014) denuncia a educação bancária, porque compreende nela a
impossibilidade de ser dialógica e de ser construtora de sujeitos problematizadores. A educação
bancaria é silenciadora; reforça o metarrelato universal europeu, conferindo a uns serem os
detentores do conhecimento e a outros serem os portadores das “respostas prontas”, em vez de
aprender a serem questionadores. Como descrito por Freire em Pedagogia da Esperança: “O
problema fundamental, de natureza política e tocado por tintas ideológicas, é saber quem escolhe
os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra quem, a favor de que, contra
quem é.” (2011, p. 110)
A construção das licenciaturas em educação do campo pode aprender com a abordagem
freireana na perspectiva da escuta do Outro: a escuta não é instrumento de conquista, mas de
diálogo, que rompe com a dicotomia dos “especialistas” e dos “que nada sabem”, por uma
construção dialógica realizada de forma horizontal e feita de baixo pra cima.
Para romper com a pedagógica dominadora descrita por Dussel (1997), que compreende
o Outro como um depositário de conhecimento e como órfão de cultura, revisitamos a obra de
Freire (1996), Pedagogia da Autonomia, para encontrarmos nela uma condução outra da
formação e da prática do docente decolonial.
A nosso ver, os pontos trazidos por Freire (1996) coadunam não apenas com os autores
de perspectiva decolonial, mas com a decolonialidade presente na construção de um projeto de
formação de educadores gestado dentro dos movimentos sociais.
Assim sendo, o autor afirma que não há docência sem discência, e que considerar o Outro
objeto a ser formado é ignorar que quem forma se reforma ao formar. É limitada, portanto, a
visão que concebe a formação como via de mão única, porque depositária mantêm um sentido
único do conhecimento, não o problematiza e o historiciza, não constroi uma formação dialética
na relação do aprender e ensinar, mas na relação verticalizada e dominadora da inclusão do Outro
no Mesmo.
111
Outra razão para problematizarmos o sentido único do conhecimento e do depósito
enquanto prática de formação é compreendermos, como descrito por Freire (1996), que ensinar
exige consciência do inacabamento. Como seres conscientes de nosso inacabamento, é necessário
que a atividade docente não seja repetitiva, mas que propicie estabelecer uma relação entre as
experiências plurais de estar no mundo.
Daí a estreita ligação com a proposta decolonial de construção de uma sociedade Outra,
porque respeitando as experiências plurais reconhece-se que deve fazer parte da formação
docente uma constante convicção com a mudança. Mas essa mudança só é possível quando
abandonada a relação bancária e o sentido único presente no conhecimento eurocêntrico. A
formação pautada a partir do paradigma crítico reconhece que há uma indissociabilidade entre o
direito de ser e o de saber sua História, portanto, o conhecimento é historicamente produzido e
se reconhece que o “o mundo não é, o mundo está sendo” (p. 30, 1996).
E é por reconhecer que o mundo está em processo de construção que a curiosidade se
torna fundamental.
Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que
me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma
correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele,
o direito à curiosidade. Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização
mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o
conhecimento cabal do objeto. (FREIRE, 1996, p. 33)
Estimular o conhecimento, a reflexão crítica e abandonar a passividade do conhecimento
são pontos centrais a uma formação que rompe com a imposição totalitária europeia e que se
preocupa com uma formação Outra.
112
5 LECAMPO: UMA FORMAÇÃO DECOLONIAL?
Neste capítulo apresentamos o nosso lócus de pesquisa, assim como a análise dos dados28.
Quanto ao local de pesquisa, discorremos inicialmente sobre as lutas para a construção de
parcerias entre o MST e a UFMG para a construção do curso de Licenciatura em Educação do
Campo. Posteriormente, apresentamos o curso a partir do seu Projeto Político Pedagógico,
demonstrando suas especificidades organizacionais, como as áreas de habilitação e a Pedagogia
da Alternância.
A análise dos dados se dará por meio da apresentação dos dois momentos de nossa
pesquisa em campo: as observações realizadas nos espaços comuns do curso e em sala de aula e
a roda de conversa realizada com os sujeitos que compõem a turma da habilitação em Linguagem,
Artes e Literatura.
É importante recuperar e compreender a trajetória da formação do curso de Licenciatura
em Educação do Campo na Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo Roseno (2010),29
em 1990 se inicia a formação de educadores da reforma agrária por meio do Setor de Educação
do MST. O objetivo dessa formação era, em conjunto com professores da Bahia e do Paraná,
construir o setor de educação do Movimento em Minas Gerais e “consubstanciar no Estado, a
proposta de educação do MST, solidificando os conceitos de educação concebida pelo
Movimento.”. (2010, p. 89)
Criado o setor de educação em Minas Gerais, o MST buscou parcerias com a UFMG para
a qualificação em nível superior na área da formação docente de seus militantes, ao notar a
demanda crescente de educadores dentro das escolas instituídas nos acampamentos e
assentamentos.
A demanda pela formação de militantes ainda estava justificada em outros dois pontos:
primeiro, na alta rotatividade de professores nas escolas dos acampamentos e assentamento.
Como esses professores, em sua maioria, vinham da cidade, percorriam longas distâncias até
chegarem às escolas, o que fazia com que eles, muitas vezes, a abandonassem. O segundo ponto
28 Houve a tentativa de realizarmos uma entrevista com o coordenador do curso, entretanto, a ocupação da FaE no
segundo semestre de 2016 dificultou-nos a realização da entrevista. Em dezembro entramos em contato com o
coordenador e ficamos cientes que ele estava de férias e que só retornava as atividades no fim de janeiro. Entramos
em contato novamente em janeiro e fomos informados que ele estava em Portugal realizando estágio de pós-
doutorado. Mandamos as perguntas por e-mail, mas as respostas foram enviadas sem tempo hábil para análise e
inclusão na pesquisa. 29 A dissertação de Roseno (2010) é meio privilegiado para resgatar a história da criação do curso. A autora é
integrante do MST e nos primeiros anos do curso atuou como coordenadora do curso pelo MST dentro do colegiado.
113
caracteriza-se por um certo distanciamento ideológico dos professores designados das propostas
educativas do Movimento.
Ainda segundo Roseno (2010), outra parceria com a UFMG foi realizada em 2002, mas
voltada à Educação de Jovens e Adultos. Em parceria com a UFMG e também com a
Universidade do Estado UEMG foi criado o projeto Alfabetização, Campo e Consciência Cidadã,
custeado por meio de recursos do Pronera.
Interessa discorrer sobre o sucesso entre a parceria com o setor de educação do MST e a
UFMG, que desembocou na construção de um curso de Licenciatura em Educação do Campo.
Como nos conta Roseno (2010), a proposta apresentada pela UFMG, no ano 2000, tinha como
base a experiência realizada na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul – UNIJUÍ, ocorrida entre os anos de 1998 e 2001, sendo este o primeiro curso de Pedagogia
da Terra do país.
Como descrito por Arroyo (2014), num quadro de exclusividade pedagógica tão
institucionalizada quanto aquele vivenciado nas universidades do país, é notório reconhecer
como esses sujeitos organizados em movimentos sociais passaram a ganhar força para disputar a
ocupação dos espaços universitários. “Ocupar o latifúndio do saber”, passou a ser um dos grandes
desafios empreendidos pelos sujeitos do MST, objetivando tornar as universidades locais que
articulem o direito à educação do campo, a formação de educadores do campo às lutas pela terra
e a construção de Outra lógica de sociedade.
Em 2003, a UFMG acolheu a proposta de abertura de um curso de nível superior para
formar educadores para e do campo. As reuniões, realizadas com representantes do Incra,
Pronera, UFMG e do MST, já sinalizavam as dificuldades que seriam enfrentadas como as
especificidades que se esperavam para a criação desse curso, sua metodologia em tempo de
alternância e construção curricular, em contraste aos projetos desenvolvidos pela FAE até aquele
momento.
Apesar de haver resistência de alguns professores quanto à proposta distinta do curso, o
processo começou de forma coletiva, culminando, segundo Roseno (2010), na criação do Projeto
Político Pedagógico do curso e dos encaminhamentos burocráticos relacionados. Em seguida ao
parecer favorável à criação do curso, começaram os esforços para a criação do curso num formato
experimental
Nesse sentido, o desenho da proposta curricular do Peterra-MG seria para além da
estrutura curricular dos outros cursos de Pedagogia da Terra que já existia no Brasil.
Para ajudar nessa proposta, o professor Miguel Arroyo teve uma participação
fundamental, pelo seu envolvimento, conhecimento e comprometimento social com os
povos do campo. Dentre as inovações introduzidas pela proposta pedagógica a
114
organização a partir das áreas de conhecimento se sobressaiu: Ciências da Vida e da
Natureza (CVN), Linguagens, Artes e Literatura (LAL), Ciências Sociais e
Humanidades (CSH) e Matemática (M). (2010, p. 92)
O processo de elaboração do curso se desenvolveu de forma horizontalizada. Era
necessário, portanto, que isso permanecesse quando se pensasse a gestão do curso: uma vez
apresentadas suas quatro habilitações distinta, seria necessário construir uma formação orgânica
entre as áreas, evitando a fragmentação do curso.
Antunes-Rocha (2011) nos diz que o curso foi iniciado mantendo bases dialógicas através
de quatro instâncias de gestão: o colegiado, composto por representantes dos professores(as),
educandos, coordenação da UFMG e dos movimentos sociais; a Coordenação Pedagógica, com
representante da UFMG e dos movimentos sociais; a Coordenação de Áreas de Formação,
constituída por cinco núcleos de Estudos e Pesquisa30, ainda, os Núcleos de Base, que foram
formados pela organização dos estudantes.
O curso foi criado oficialmente em abril de 2005, tendo o aval do Conselho Universitário.
Dava-se início ao primeiro curso de Pedagogia da Terra do estado, chamado futuramente, por
seus participantes, de forma afetuosa, de PeTerra: o sentido apregoado à “terra” era o de matriz
estruturante do curso. Em seguida, a proposta foi encaminhada ao INCRA/MG para aprovação
e, posteriormente, ao PRONERA em Brasília, sendo aprovado em menos de dois meses.
(ROSENO, 2010, p. 94)
Ainda, segundo Roseno (2014), coube ao PRONERA o repasse e a fiscalização dos
recursos financeiros advindos do Ministério da Reforma Agrária; ao INCRA foi dada a
responsabilidade de fiscalização e prestação de contas para liberação de recursos vindos do
PRONERA, e a Faculdade de Educação da UFMG assumiu a gestão financeira do curso, por
meio da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP).
Autorizado o processo de seleção de militantes para comporem a primeira turma do curso,
coube ao MST convocar os movimentos ligados à reforma agrária. Foram convidados os
movimentos: Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais; Centro de Agricultura Alternativa do
Norte de Minas Gerais CAA/NMG; Comissão Pastoral da Terra – CPT; Movimento das
Mulheres Camponesas - MMC e Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.
Percebemos na construção do PeTerra o que Arroyo (2014) denominou de construção de
Outras Pedagogias. Os movimentos sociais contemporâneos trazem em seu histórico uma longa
30 O Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - Ceale, o Centro de Ensino de Ciências e Matemática - CECIMIG,
Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação - NETE, Grupo de Estudos sobre Numeramento - GEN e Núcleo de
Pesquisa sobre Profissão e Condição Docente - PRODOC;
115
história de resistência às pedagogias dominantes, o que os faz lutar constantemente para a
construção de pedagogias decoloniais. São fruto dessa bagagem histórica de rejeição as
pedagogias de subordinação e de consenso e da apropriação e luta pela construção de pedagogias
de resistência, que resultou na construção do Peterra.
O artigo desenvolvido por Horácio, Roseno e Roseno (2011) nos trouxe um pouco da
memória sobre a aula inaugural do curso, realizada no dia 21 de novembro de 2005, no prédio da
Faculdade de Educação da UFMG.
A cerimônia de abertura ocorreu com o desenvolvimento da mística31 realizada pelos
recém-ingressos no curso ao som de foices, para reforçar seus lugares de trabalhadores e
trabalhadoras do campo. Além disso, houve apresentação musical com o artista popular Pedro
Munhoz.
As pessoas convidadas a discursarem na abertura do curso trouxeram em suas falas a
importância da ocupação do espaço universitário pelos povos do campo, a importância da
parceria do MST com a UFMG e a discussão sobre os saberes dos povos do campo nos espaços
universitários. Foram convidados a falar: Armando Vieira, membro da direção nacional do MST;
a reitora Ana Lúcia Gazzola; a coordenadora do curso, professora Maria Isabel Antunes Rocha;
a coordenadora do curso, pelo MST, Sônia Roseno e o professor emérito da FaE Miguel Arroyo.
Como descrito por Horácio, Roseno e Roseno (2011), o professor Arroyo lembrou a
importância da materialização dos direitos, afirmando a importância de ir além de sua mera
positivação. A construção do curso representa a construção do direito de coletivos que se fazem
cidadãos e que se descobrem juntos sujeitos de direitos, superando a visão reducionista trazida
nas teorias pedagógicas de setores populares do campo vistos como subcidadãos.
5.1 Nossa aproximação com a Universidade e com o LeCampo
Nesse momento nos propomos a apresentar os espaços em que fizemos a observação de
campo, que pode ser dividida basicamente em dois grandes momentos: o primeiro contato com
o curso, que aconteceu na recepção dos alunos no Tempo Escola e algumas atividades
desenvolvidas pelos educandos dentro do TE; posteriormente, o período de observação dentro de
sala de aula, onde acompanhei a disciplina Educação, Conhecimento e Cultura, junto à turma de
2012 da área de Linguagem, Artes e Literatura. Além da descrição de nossa observação, descrevo
31 Abordaremos a mística no tópico 5.4.2 A mística no LeCampo.
116
também o planejamento e desenvolvimento do curso. Antes disso, achamos necessário discorrer
sobre a nossa aproximação com o curso.
O primeiro contato com a coordenação do curso deu-se no primeiro ano da pesquisa.
Encaminhamos um e-mail para os coordenadores do curso, e, em resposta, fui informada que
havia um requerimento padrão para que pesquisas fossem desenvolvidas no curso, sendo
necessário que encaminhasse uma cópia do meu projeto de pesquisa, para que fosse submetido à
análise pelo Colegiado do curso. Vinte dias após a reunião do colegiado, obtive parecer favorável
à realização da minha pesquisa no local.
Posteriormente, foi agendado um encontro com a professora responsável pela
coordenação do colegiado, momento em que pude reforçar o objetivo da presente pesquisa e
apresentar o cronograma da minha presença na FaE. Nesse momento, a professora me informou
como o curso se desenvolvia, contou-me sumariamente sobre o PPP e me questionou sobre os
ganhos da instituição com a minha presença.
O LeCampo atualmente funciona com grande participação de monitores. Estes são
estudantes de cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) da própria instituição, que
desempenham o papel de acompanhamento dos alunos no decorrer do Tempo Comunidade e
auxiliam aos professores com o encaminhamento e a correção de trabalhos e atividades propostas
aos alunos.
Foi demandada como contrapartida à aceitação da realização da pesquisa na FaE e a
presença no curso, que eu atuasse como monitora na disciplina que eu acompanhasse. A
princípio, foi bastante complicado entender qual seria o meu lugar no curso e como se daria essa
minha participação, mas, em pouco tempo, pude aprender, como descrito por Bogdan e Biklen
(1994), a ter uma participação moderada em sala de aula. De forma prática, a minha moderação
se caracterizou por minha intervenção quando havia assuntos relacionados a aspectos teóricos da
disciplina (os quais eu me sentisse apta a tirar dúvidas dos educados), e pelo meu silêncio e
observação nos momentos de discussões das pautas do curso e sobre a organização dos
tempos/espaços escolares.
Fui informada, no primeiro dia de observação em sala de aula, que uma estudante do
doutorado da FaE iria realizar o seu estágio docente na mesma disciplina de minha observação.
Isso me possibilitou distanciar um pouco mais do espaço de monitora, visto que a participação
da doutoranda era intensa nas atividades de sala de aula. Ela foi responsável por ministrar uma
aula, mas em todas as demais foi participante ativa.
117
5.2 A construção curricular do LeCampo
Ao problematizar a construção do LeCampo, Roseno (2014) destaca a sua proposta
curricular. A matriz do curso, para a autora, é pensada a partir tanto das teorias como das práticas,
o que articulou todos os artifícios de aprendizado, abandonando a concepção de que o saber
universitário é superior ao construído com esses sujeitos no Movimento e em comunidade.
Corroborando essa perspectiva trazida por Roseno (2014), o artigo elaborado por Lima,
Paula e Santos (2011). Os autores foram professores na primeira turma do LeCampo e realizaram
o artigo para resgatar um pouco da trajetória desenvolvida junto aos alunos da primeira turma do
PeTerra, na área de habilitação das Ciências da Vida e da Natureza, evidenciando as orientações
didático-metodológicas da área.
Como descrito por Lima, Paula e Santos (2011, p. 108) a orientação fundamental da
concepção do curso estava em “instrumentalizar os educadores para desenvolver uma pedagogia
comprometida com os anseios de suas comunidades, em suas lutas pela melhoria da qualidade
de vida”. Para tanto, solicitaram aos alunos que, ainda no início do curso, realizassem uma
pesquisa em suas comunidades, a partir de quatro temas geradores:
- Saúde, debatido com suas famílias, com o objetivo de evidenciar os problemas que eram
mais comuns em suas comunidades e quais soluções eram encontradas;
- Trabalho, discutido com os agricultores, buscando entender o universo dos problemas e
cuidados com a terra e a colheita, os conhecimentos e técnicas utilizadas para resolver os
problemas da lida com a terra;
- Disciplina de Ciências, discutido entre dois grupos: entre crianças e jovens, levantando
suas percepções, gostos e desgostos juntos à disciplina; e, ainda, entre os professores,
questionando o entendimento destes a respeito do currículo da disciplina de ciências e seus
maiores desafios;
- Desafios do Educador do Campo, respondido pelos próprios alunos do curso, buscando
demonstrar como eles percebiam a relação do educador do campo com a sociedade e as
expectativas dos sujeitos do campo em relação aos educadores.
Curioso perceber que, apesar dos autores trabalharem com o conceito de tema gerador,
reconhecido conceito freireano para o desenvolvimento das entrevistas, os autores não citam em
nenhum momento alguma obra de Freire sobre a utilização do conceito para a construção do
currículo do curso.
Como descrito por Freire (1967, p.57), a educação deve proporcionar uma “reflexão sobre
si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades e sobre seu papel na nova cultura da
118
época de transição”, possibilitando assim consciência crítica e compromissada com a existência
no mundo.
Essa perspectiva possibilita construir um currículo que rompe com a suposta inferioridade
ontológica de alguns conhecimentos, vindos dos sujeitos colonizados, porque o conhecimento
que deve estar presente no currículo não é algo dado como “verdadeiro” e “superior” a ser
absorvido, mas compreende seu papel em possibilitar a esses sujeitos a romperem com a
colonialidade do ser dada pela invasão cultural que os alienou e os distanciou de conhecimentos
que os emancipam.
Sobre essa forma de construir o currículo do curso a partir de sondagem inicial e da
identificação das temáticas de grande relevância social ao grupo, os autores argumentam que
É importante deixar claro que nossa opção por dialogar com a cultura dos educadores em
formação e com os anseios de suas comunidades não faz de nossa proposta curricular uma
aventura espontaneísta. A organização do curso que oferecemos não se restringe a atender
demandas exclusivas dos educadores do campo. Outras diretrizes também orientam nossas
ações. (LIMA; PAULA; SANTOS, 2011, p.109)
A escuta dos sujeitos Outros para a construção curricular é de tamanha forma incomum
que os autores sentiram-se na necessidade de justificar que isso não retira do curso a sua
cientificidade. Essa dificuldade de diálogo entre as formas de conhecimento científico e dos
conhecimentos populares nos espaços acadêmicos tornou-se marca de uma modernidade
dominadora e colonizadora que impede que os outros sujeitos e seus saberes estejam na
Universidade. Dessa forma, quando esses se fazem presentes, é necessário ressaltar que a
cientificidade do processo educativo não foi alterada por eles.32
Sendo criado (não como uma doação realizada de forma verticalizada aos sujeitos do
campo, mas como luta desses sujeitos para serem reconhecidos sujeitos de saberes), o curso dá
indícios de uma tentativa de escuta dos sujeitos Outros e de problematizar a noção da
colonialidade dos saberes. Questionar é necessário para que se possa romper com esses aspectos
abandonando uma tradição sufocadora, do silenciamento e da domesticação das culturas que são
dos Outros sujeitos, possibilitando-os, numa perspectiva dusseliana, transcender a fetichização
do conhecimento escolarizado.
Trazer para a formação dos sujeitos educadores suas histórias, e também os
conhecimentos e vivências da comunidade, fazendo-os perceber as inquietações de jovens e
32 Ressaltamos que os autores não trouxeram em seu artigo mais dados para que pudéssemos compreender como foi
utilizada as respostas das entrevistas para a construção do currículo do curso. Mas sinalizaram que “Com o auxílio
dessa sondagem inicial, identificamos temáticas que contemplam conceitos e ideias-chave das ciências da vida e da
natureza e que se apresentam como sendo de grande relevância social” Lima, Paula e Santos (2011, p. 109)
119
crianças de suas comunidades sobre a relação dos saberes curriculares e a comunidade, rompe
com a lógica da orfandade criticada por Dussel (1977). Os sujeitos que estão em processo de
formação não são órfãos de cultura, de tradições e de conhecimentos, portanto, muito mais amplo
do que simplesmente depositar nesses sujeitos conhecimentos para que eles deixem de ser
“órfãos”, é necessário criar um verdadeiro diálogo, na acepção freireana, entre seus
conhecimentos e os conhecimentos científicos, permitindo a eles que se apropriem do
conhecimento científico que possibilite a eles serem pesquisadores e produtores de
conhecimento, sem que isso acarrete o abandono dos seus conhecimentos.
O processo de formação docente deixa de ser construído baseando-se em um
conhecimento abstrato e universal, e passa ter como base um questionamento das formas de
opressão perpetradas contra os sujeitos e seus conhecimentos. Como descrito por Freire e Shor
(2008, p.48), quando a preocupação se centra numa outra relação com o conhecimento, e não em
simples mudança de métodos e técnicas educacionais, a relação deste com a sociedade se estreita
e se possibilita a formação de um educador libertador.
Se os processos históricos das pedagogias de resistências e dos coletivos decoloniais
foram silenciados ou excluídos, por serem compreendidos como conhecimentos inferiores e não
científicos, as construções de outras pedagogias trazem esses sujeitos e seus conhecimentos para
o centro do currículo e das práticas educativas, buscando desocultar essas histórias. Trazer os
saberes do Outro, camponês, como saberes que devem ser respeitados, conhecidos, investigados
(e não a partir da desses saberes como colonizados, silenciados e inferiores) rompe com a
perversa construção das identidades desses sujeitos como inferiores.
Nessa perspectiva, pensar o fazer educacional é eminentemente um ato político. A
realização de um diálogo para a construção da proposta curricular do LeCampo já demonstra as
escolhas políticas do curso, na construção de uma proposta Outra de formação e de vivência em
nível superior que coadune com processos de resistência decolonial. Como descrito por Freire
(2014), não há como pensar a educação sem que a valoração dada a ela não seja ideológica em
função de interesses de grupos ou de classes.
Daí ser necessário evidenciar quais as visões presentes no Projeto Político Pedagógico,
por ser esse um documento central na construção do curso.
6.2.1. O Projeto Político Pedagógico do curso
O Projeto Político Pedagógico do curso, segundo Roseno (2010) e Antunes-Rocha
(2004), foi criado em 2004, tendo como elemento diretivo a busca pelo acesso a uma educação
120
de qualidade, gratuita e pública, e como referência a realidade do ambiente rural demonstrada no
Plano Nacional de Educação. Além disso, também foi escrito pensando na expansão da educação
básica do campo associada a um progressivo aumento da qualidade da educação e na busca pela
superação do campo como o lugar do analfabetismo.
Segundo Roseno (2010), o único movimento social que esteve presente na articulação e
na construção do PPP, e que já tinha forte histórico e tradição com setores da educação, era o
MST. Isso contribuiu para que, por vezes, os ideais formativos do MST se associassem de forma
intrínseca ao curso, sendo difícil separá-los dos ideais educacionais do projeto nacional Por uma
educação do campo.
A leitura do Projeto Político Pedagógico33, como um documento central e dinâmico no
entendimento das concepções adotadas, esclarece as escolhas trazidas pelo curso, no que tange à
formação de professores do campo.
O curso visa à formação de professores com atuação nas séries finais do ensino
fundamental e no ensino médio cumprindo uma dupla função: possibilitar uma formação mais
abrangente do professor, o que o permite atuar em diferentes áreas, atendendo de forma
significativa às demandas das escolas do campo, e, ainda, permitir a integração dos conteúdos
curriculares, evitando a fragmentação dos saberes e acentuando a perspectiva de integração dos
saberes escolarizados e os da comunidade. Formados a partir de outra perspectiva, esses
professores passam a ter outros subsídios para uma transgressão, como descrito por Hage (2008),
do sistema seriado nas escolas do campo, além de possibilidades para construir práticas mais
efetivas nas escolas que já atuam em multissérie.34.
A formação por Docência Multidisciplinar (e não por um modelo disciplinar) encontra
respaldo no Parecer 9/2001 – CNE/CP, que fundamenta a resolução sobre as “Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica”. Nesse documento
se firma a necessidade de outra organização institucional, da definição e estruturação dos
conteúdos para que respondam às necessidades da atuação do professor, dos processos
33 Como descrito no documento a estrutura, dinâmica e conteúdo do curso estão ancoradas em dispositivos legais
frutos de históricas lutas do movimento Por uma educação do campo e dos movimentos sociais ligados ao campo
como a Lei de Diretrizes e bases 9.394 de 1996 nos artigos 23, 26 e 28 que afirmam a especificidade e a diversidade
do campo em todos os seus aspectos: social, cultural, política, econômica, gênero, geração e etnia; Parecer CNE/CEB
36/2001 e Resolução CNE/CEB 1/2002 que institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo; Parecer CNE/CP 009/2001 e Resolução CNE/CP 1/2002 que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena e
Parecer CEB/CNE/MEC nº 1/2006 que expõe motivos e aprova dias considerados letivos na Pedagogia da
Alternância. 34 Para compreender mais sobre a relação entre multissérie e Educação do Campo recomendamos o artigo escrito
por Hage “A Multissérie em pauta: para transgredir o Paradigma Seriado nas Escolas do Campo” Disponível em:
http://www.faced.ufba.br/sites/faced.ufba.br/files/multisserie_pauta_salomao_hage.pdf
121
formativos que envolvem aprendizagem e desenvolvimento das competências do professor, da
vinculação entre as escolas de formação e os sistemas de ensino, de modo a assegurar-lhes a
indispensável preparação profissional. (2001, p. 11).
Segundo Antunes-Rocha (2011), a proposta do curso do LeCampo foi pensada dentro de
Outra relação com os saberes, os sujeitos e os espaços. Houve ali a busca por intensa reflexão
sobre os conteúdos, tempos e espaços das propostas dos cursos já oferecidos, num movimento
constante de aprender com o acúmulo já existente e de tentar produzir algo novo.
Como descrito por Antunes-Rocha (2011), quando da construção do PPP do curso, a
comissão responsável considerou necessário discutir as noções de escola e comunidade. A
conclusão a que chegaram é que o curso deveria problematizá-la, bem como atuar numa
perspectiva de compreensão de que escola e comunidade são tempos/espaços distintos e que não
devem ser dissociados, pois se complementam, sendo necessário abandonar a lógica colonizadora
de que os conhecimentos apreendidos na escola deveriam ser transferidos ao campo, como meio
de “libertar” os sujeitos campesinos da ignorância e torná-los superiores e incluídos dentro do
“conhecimento verdadeiro”.
A escola como mediação para aprender a reelaborar formas de pensar/sentir/agir, e não
para manter e/ou substituir formas anteriores. Nessa direção, a Comissão aforou a
alternância como referência para organização dos tempos e espaços do curso. Assim se
afirmaram os conceitos de Tempo Escola e Tempo Comunidade, como processos
contínuos de aprendizagem. (ANTUNES-ROCHA, 2011, p. 44)
A organização curricular do curso, segundo o PPP (2016), apresenta por base os pilares
da terra, trabalho e escola, que se dividem em três áreas de formação: complementar, livre e
específica, sendo esta desdobrada em três núcleos:
122
FORMAÇÃO TEMPO ESPECIFICIDADES
Formação
Específica
Núcleo de formação na área
64 créditos (TE 51h; TC 13h)
Conhecimentos relativos à formação para atuação
no Ensino Fundamental e Médio
Núcleo de formação em Ciências da
Educação
47 créditos (TE 35h; TC 12h)
Formação necessária para o educador atuar nas
escolas do campo com teorias e metodologias para
articular diferentes áreas do saber
Núcleo de formação integradora
54 créditos (TE 29h; TC 25h)
Conhecimentos que integram toda a formação
específica na prática de ensino e nos estágios
supervisionados.
Formação
Complementar
Perfazem um total de 24 créditos (TE
12h; TC 12h), que os estudantes
cumprem em atividades acadêmicas
complementares
--
Formação
Livre
Serão regulamentadas pelos
colegiados, mas contam de atividades,
eventos culturais, congressos e oficinas
escolhidas e desenvolvidas pelos
alunos. 11 créditos. (TC 11h)
As áreas de desenvolvimento das atividades são:
Seminário Temático – ST
Círculo de Produção do Conhecimento – CPC
Grupo de Trabalho - GT
Oficinas - OF
Trabalho de Campo - TC
Atividade Autônoma - AA FONTE: Elaborado através de dados do Projeto Político Pedagógico do Curso, 2016
Assim, o curso se apresenta com a duração de quatro anos, divididos em oito períodos:
oito períodos de Tempo comunidade (TC) e oito períodos de Tempo escola (TE), sendo que, no
oitavo período, o Tempo Escola é realizado em dois momentos, fevereiro e julho.
5.2.2. A alternância pedagógica
A divisão do curso em TC e TE é marca do desenvolvimento da pedagogia da alternância.
Essa metodologia foi regulamentada pelo parecer CEB/CNE nº1/2006; ainda que sumariamente,
acreditamos ser necessário descrevê-la.
A utilização da pedagogia da alternância no Brasil se iniciou em 1969, no estado do
Espírito Santo, onde são construídas as três primeiras Escolas Famílias Agrícolas (EFA). Esse
modelo de educação vem do final da década de 1930, na França, nascido da insatisfação dos
sujeitos moradores das áreas rurais com o modelo de educação que recebiam. Tanto na França,
quanto no Brasil em 1969, esse modelo de educação buscou aproximar os conhecimentos
escolares da prática; assim, no TC, os pais eram os principais responsáveis pelo aprendizado do
filho, e, no TE, o principal responsável pela educação dos sujeitos era um técnico agrícola.
Atualmente, o Brasil conta com 243 Centros Familiares de Formação por Alternância
(CEFFAs), mantendo atividades em várias regiões, exceto em Alagoas, Paraíba, Pernambuco e
123
Rio Grande do Norte. Como descrito por Ribeiro (2008), há uma polissemia no conceito de
Pedagogia da Alternância, sendo o termo concretizado de diferentes formas a partir das práticas
dos sujeitos que o alicerçam. Entretanto, acreditamos que a compreensão que reconhece a
Pedagogia da Alternância como aquela que pensa o trabalho produtivo como princípio para uma
formação humanista, e que articula dialeticamente o ensino formal ao trabalho produtivo seja a
que melhor se identifica com a perspectiva apresentada no PPP do Le Campo.
Já o período de TE se desenvolve aproximadamente em trinta dias, ficando os alunos
hospedados em uma pousada nas proximidades da FaE, tendo oito horas de aulas diárias,
divididas em duas disciplinas, uma na parte da manhã outra na parte da tarde. As disciplinas são
ministradas todos os dias da semana, até findarem suas respectivas cargas horárias.
O curso dispõe de quatro áreas do saber para formação: Linguagem, artes e literatura
(LAL), organizada a partir das articulações dos saberes de Língua Portuguesa, Literatura, Língua
Estrangeira e Arte; Ciências da Vida e da natureza (CVN), organizada a partir da articulação dos
saberes da Biologia, Física, Química e Geografia; Ciências Sociais e Humanidade (CSH)
organizada na articulação dos saberes da História, Sociologia, Filosofia e Geografia; e
Matemática, sendo uma área do conhecimento ofertada por ano. Em cada área do conhecimento
são disponibilizadas 35 vagas.
Sobre a formação por área e a utilização da Pedagogia da Alternância, é interessante
perceber as ressalvas sobre esse modelo de formação, indicadas por Molina
Um dos maiores riscos dessa estratégia está na precarização da formação docente, que
pode ocorrer a partir da supressão de conhecimentos disciplinares fundamentais ao
aprendizado de determinados conteúdos, ou mesmo, do acesso a eles de maneira
superficial e insuficiente para garantir o seu verdadeiro domínio. E, há ainda um fator
relevante a se somar ao imenso desafio desta estratégia formativa, no caso das
Licenciaturas em Educação do Campo, a formação em Alternância, o que demanda um
sábio exercício de planejamento dos conteúdos necessários a serem socializados em
cada Tempo Escola e dos períodos disponíveis para tanto. (2015, p. 159)
Sabe-se que há uma heterogeneidade nas Universidades que trabalham com formação de
professores do Campo, entretanto, o cuidado com o conhecimento que está presente na formação
de professores deve ser sempre central, para que não se repita o modelo de formação presente na
educação rural, que apenas destinava conhecimentos básicos à formação desses professores.
Assim, na Alternância, o cuidado também persiste, sendo necessário realizar acompanhamento
sistemático da Universidade nos espaços de TC, evitando que eles sejam espontaneístas e,
principalmente, se ater para que a relação entre TC e TE seja sempre orgânica, evitando sua
dicotomia e a hierarquização dos conhecimentos produzidos em cada tempo.
124
Reconhecemos que é possível minimizar esses problemas mediante a um trabalho
organizativo e coletivizado entre os docentes das áreas de habilitação específicas, favorecendo a
interdisciplinaridade e, principalmente, como descrito em Molina (2015), Caldart (2012) e
Arroyo (2013) centrar-se no propósito da construção de uma educação materializada nos
problemas reais do campo, e não apenas um saber construído com abstrações teóricas de
conceitos científicos.
Como ressaltado por Caldart (2009) a Educação do Campo deve estar pautada na
democratização do conhecimento: isso quer dizer que a utilização da Pedagogia da Alternância
e das práticas de formação de professores, tanto no TE como no TC, devem estar voltadas para
essa problemática. Essa democratização não significa apenas o acesso ao conhecimento
“historicamente acumulado”, mas uma radicalização que se constitui numa crítica ao modo de
produção do conhecimento, como crítica à ciência moderna, à racionalidade burguesa, além de
promover organicidade entre valores e conhecimento dentro dos processos formativos. A
democratização nessa concepção não é apenas dos conhecimentos e do acesso a eles, mas
também a produção do conhecimento.
A perspectiva decolonial se materializa nesse momento, demonstrando a sua importância
tanto como conceito, quanto como prática, que modifica as formas estruturais de produção de
conhecimento, produzindo um conhecimento Outro, radicalmente democrático. Esse
conhecimento, que não é neutro, é construído por esses sujeitos como forma de se afirmarem
como sujeitos Outros, de romperem com as estruturas que os inferiorizam e os silenciam, e de se
apropriarem de um conhecimento que, ao possibilitá-los seu reconhecimento enquanto sujeitos
Outros, também promove a construção de formas Outras de relações com o padrão de poder
moderno colonial.
Essas formas de produção de conhecimento e esse saber historicamente acumulado não
são neutros e, portanto, perpetuam a lógica da reprodução do capital e não a do trabalho, como
produção humana e produtora de cultura. Não queremos dizer que elas devem ser ignoradas
enquanto tecnologias úteis ao campo e à vida nele, mas a necessidade de se pensar e produzir
outros saberes que tenham, como descrito por Caldart (2009, p. 45), outra lógica de pensamento
e de produção de conhecimento, que fujam à lógica colonizadora moderna.
Isso dialoga com a necessidade de se refletir sobre os paradigmas de construção do
conhecimento, há muito, colonizados pela modernidade. A construção de um curso de
educadores para o campo deve buscar não dicotomizar a divisão entre trabalho manual e
intelectual própria do capitalismo, utilizando a Pedagogia da Alternância como importante meio
para buscar um diálogo com os saberes Outros, propondo a construção de um conhecimento
125
intercultural, porque, reconhecido seu vínculo histórico, político e social, afirmam processos e
práticas Outras de produção de conhecimento, não se resumindo à simples assimilação de
conhecimento científico.
Para tornar real esse diálogo intercultural, é necessário expor os motivos que
impossibilitam o diálogo, expor as marcas e os sentidos coloniais presentes nas formas de pensar
e de produzir o conhecimento, possibilitando que a decolonialidade emerja das lutas contra essas
formas e sentidos coloniais do conhecimento. Produzir um conhecimento intercultural não pode
ser entendido como um conhecimento “inferior” ao científico, por advir (também) das práticas,
mas sim como um conhecimento com uma lógica distinta de produção.
Assim como Molina (2015) nos adverte sobre os perigos da Pedagogia da Alternância
cair numa relativização e num espontaneísmo sobre o que é conhecimento, Caldart (2009)
também nos diz dos “perigos” de uma aproximação com os saberes populares no espaço
acadêmico. Segundo a autora, isso pode causar um distanciamento dos trabalhadores à histórica
luta que travaram ao acesso à ciência e ao conhecimento que ajuda a produzir pelo seu trabalho,
caindo numa espécie de relativismo; entretanto, a própria autora nos faz uma ressalva
É preciso perguntar se negar a contradição produzida pelo
capitalismo no modo de produção do conhecimento, que absolutizou a ciência ou a
racionalidade científica, ou uma forma dela, ao mesmo tempo em que a fez refém de
uma lógica instrumental a serviço da reprodução do capital e definiu mecanismos de
alienação do trabalhador em relação ao próprio conhecimento que produz pelo seu
trabalho, não é um risco ainda maior para nossos objetivos de superação do capitalismo.
(CALDART, 2009, p. 45)
5.2.3. Docência Multidisciplinar
A parte do PPP dedicada a detalhar as formações específicas por áreas de conhecimento
é a mais extensa, ocupando mais da metade do projeto. Cada área de formação apresenta seu
modelo de formação. Em algumas áreas, como é o caso da CVN e da LAL, é possível perceber
maior detalhamento nos objetivos teóricos e concepções que balizam a estrutura da área de
formação, o que não fica tão evidente nas áreas da CSH e Matemática; isso não impossibilita,
todavia, entender as propostas discutidas nessas áreas. Para facilitar a compreensão do leitor,
retiramos do PPP pontos que possibilitem demonstrar os objetivos de cada área de formação.
126
Dentro dos objetivos apresentados por cada área, inquieta-nos sua desvinculação com o
campo. Os pontos discutidos nas áreas do saber poderiam ser facilmente confundidos ou
discutidos em outros cursos de licenciatura. Coube à habilitação na área de Matemática ser a
Ciências da Vida e da
Natureza
Línguagem, Arte e
Literatura
Ciências Sociais e
Humanas Matemática
Po
nto
s a
ser
em d
esen
vo
lvid
os
na
s á
rea
s d
o
sab
er
• Conhecer referências
bibliográficas básicas
confiáveis sobre
conteúdos e sobre
abordagens teórico-
metodológicas desses
conteúdos em classe.
• Instrumentalizar o
docente para planejar,
desenvolver e avaliar
atividades pertinentes a
um currículo CTSA.
(Ciência Tecnologia
Sociedade Ambiente)
• Apropriar-se de uma
visão crítica, argumentada
e histórica do
desenvolvimento
científico e tecnológico e
da relação deste com a
sociedade e o ambiente.
Promover a aprendizagem
de alguns conceitos e
ideias-chave da química,
da física, da geologia
e da biologia.
• Apresentar uma
abordagem temática e
integrada de conteúdos
oriundos de diferentes
campos disciplinares.
• Discutir diferentes
abordagens curriculares
avaliadas e questionadas
em pesquisas em
educação
em ciências. (PPP, 2016,
P.12)
1) Habilidades e
competências nos usos da
linguagem oral e escrita,
levando em conta os
diversos gêneros
discursivos e as funções
sociais da língua e da
linguagem;
2) Habilidades e
competências nos usos de
outros sistemas semióticos
e de diversas tecnologias:
televisão, cinema, teatro,
música, pintura,
fotografia, dança,
escultura;
3) Conhecimento e
posicionamento crítico
sobre os usos, funções e
modos de produção e de
disseminação dos meios de
comunicação, das novas
tecnologias, das artes e da
ciência;
4) Concepções de língua,
de linguagem, discurso e
texto, orientadas por um
referencial sócio histórico
e conectadas com as
diversas dimensões da
linguagem: sociológica,
psicológica, histórica,
antropológica, política,
pedagógica, lingüística,
entre outras. (PPP, 2016,
p.27)
A área tem como pergunta
inicial: o que é
imprescindível (da
Geografia, da História, da
Sociologia, Antropologia
e da Filosofia) para a
formação de
educadores/as do campo?
Os primeiros tempos (II e
III) estarão voltados para
os fundamentos históricos
e filosóficos para refletir
sobre os diferentes
percursos do
conhecimento e, ao
mesmo tempo, para
definir os eixos
articuladores da área. Na
formação específica
acontecerão
aprofundamentos em cada
um dos campos
disciplinares, mas sem
perder o elemento
articulador da área e a
formação para a docência.
(PPP, 2016, p. 62)
(...)serão propostas
atividades que resgatem
modos de contar em
diversas situações da vida
cotidiana no campo; com
isso espera-se repertoriar
modos de medir
comprimentos,
capacidades, massas,
áreas e tempo, nas
diversas regiões onde
vivem ou já viveram os
trabalhadores e
trabalhadoras do campo (e
das cidades) e suas
famílias, agentes de
também diversificados
fenômenos migratórios;
será realizada uma
investigação que buscará
compreender modos de
dispor e classificar objetos
por sua forma, material,
utilidade ou outros
atributos, ampliando
assim as possibilidades
variadas para ensaiar a
urdidura de teias de
significação para a
abordagem de conceitos
relacionados aos sistemas
de numeração, de medidas
ou de classificação de
formas geométricas, por
exemplo. Entretanto,
temos clareza que não
revelarão utilidade da
Matemática que a escola
veicula para a solução de
situações da vida prática.
(PPP, 2016, P.77)
127
única a, ao menos, citar que os conceitos trabalhados terão relação com o campo e com seus
trabalhadores e trabalhadoras.
Alguns conceitos são trabalhados como centrais para a formação nessa área, como língua,
linguagem, texto, discurso e letramento. Permeando essas rápidas discussões, discute-se também
a importância, para o curso, da figura do professor-leitor-autor. Ou seja, para que haja um
envolvimento dos alunos com as leituras, compreende-se que o professor deve antes se apropriar-
se dos diversos domínios e práticas que se vinculam à cultura escrita; deve ser um professor que
lê e que escreve.
Segundo Veiga (2003), existem duas propostas básicas de construção de PPP: uma
relacionada à inovação reguladora e uma que se vincula à inovação emancipatória. Já ressaltamos
antes de dissertar sobre as duas formas, que, para além de colocar o projeto político do LeCampo
em um ou outro projeto, nossa intenção aqui é trazer estudos que nos possibilitem analisar o PPP
do LeCampo.
Para Veiga (2003), a inovação regulatória faz com que a elaboração e o desenvolvimento
do PPP sejam marcados pelo caráter regulador e normativo da ciência conservadora. Assim, seu
caráter de inovação está em uma rearticulação no sistema de forma acrítica de critérios e
conceitos, impossibilitando o desenvolvimento e a articulação de novas relações entre o ser, o
saber e o agir coletivos.
Já seu caráter de inovação emancipatória tem uma procura maior pelo diálogo e a
comunicação com os saberes locais e seus sujeitos, por reconhecer que o PPP tem uma lógica
temporal histórica e social. Na perspectiva da inovação emancipatória, o PPP possibilita pensar
a instituição para além das lógicas reprodutivistas, como local de confronto, resistência e relações
de poder.
Um dos pontos fundamentais para a construção da perspectiva emancipatória, que está
pouco desenvolvida no PPP na área de formação específica, é a relação do conhecimento com o
seu meio. Não há uma descrição mais estreita de como a referida área de formação (LAL) se
vincula à formação de educadores do campo, o que aparenta criar um curso de licenciatura em
Educação do Campo com um amplo histórico de militância e habilitações específicas que
parecem não se aproximar a essa identidade mais ampla do curso.
Nas outras áreas de formação também é possível perceber esse distanciamento entre a
produção do conhecimento na universidade e a sua relação com o campo. Na configuração das
áreas específicas de formação parece haver um distanciamento da principal luta campesina, que
é o reconhecimento de que a luta por ocupar os latifúndios do saber, os espaços acadêmicos, não
128
se desvincula de seus saberes e suas lutas pela terra, pelo território, pela história e pelas memórias
que constroem em relação com a materialidade do campo.
Compreendendo, como descrito por Caldart (2012), que a escola é mais do que escola
para os movimentos sociais e sujeitos do campo, e que as universidades são mais do que
universidades, porque esses sujeitos buscam uma ressignificação desses lugares e uma
repolitização do tradicional direito à escola, buscamos entender os objetivos trazidos no PPP para
o desenvolvimento do curso.
O objetivo geral do curso é apresentado da seguinte forma
Contribuir na construção de alternativas de organização do trabalho escolar e
pedagógico que permitam a expansão da educação básica no e do campo, com a rapidez
e qualidade exigida pela dinâmica social e pela superação da histórica desigualdade de
oportunidades de escolarização vivenciadas pelas populações do campo. (PPP, 2015, p.
13)
Já os objetivos específicos são expressos da seguinte maneira:
• Formar Educadores para atuação nas séries finais do ensino fundamental e médio em
escolas do campo aptos a fazer a gestão de processos educativos e a desenvolver
estratégias pedagógicas que visem a formação de sujeitos autônomos e criativos capazes
de produzir soluções para questões inerentes à sua realidade, vinculadas à construção
de um projeto de desenvolvimento sustentável do campo e do país;
• Desenvolver estratégias de formação para a docência em uma organização curricular
por áreas de conhecimento nas escolas do campo.
• Formar e habilitar profissionais em exercício na educação fundamental e média;
• Habilitar professores para a docência por Áreas do Conhecimento;
• Construir coletivamente, e com os próprios estudantes, um projeto de formação de
educadores que sirva como referência prática para políticas e pedagogias de Educação
do Campo.
• Construir alternativas para a nucleação da rede escolar. (PPP, 2015)
Como seria a atuação e a construção de um “projeto de desenvolvimento sustentável do
campo e do país”? Esse projeto estaria associado ao bojo do desenvolvimento dos pequenos
produtores? Ou vinculados à lógica da “sustentabilidade” empregada pelo capital? Apesar de o
primeiro objetivo ser o que mais detalha a aproximação entre o curso e a comunidade, não fica
claro qual seria o projeto de sociedade que o curso apoia.
A presença dos sujeitos estudantes, não como depositários do conhecimento, mas sujeitos
que participam da discussão e da construção, como descrito no quinto objetivo, dos projetos e
propostas do curso, consolidam um espaço menos unívoco e mais plural, sendo esses sujeitos
deslocados de objetos de conhecimento a narradores e construtores de políticas e pedagogias do
campo, o que promove a ressignificação dos espaços acadêmicos trazida por Caldart (2012).
Ao trazer a importância dos sujeitos que compõem o curso para a construção de
referências práticas para pautas vinculadas à educação do campo, como os objetivos do curso,
permite que o espaço universitário rompa com as lógicas universalistas, distributivas e
129
compensatórias, trazendo para os sujeitos do campo formados no curso, a possibilidade da
construção de prática mais horizontalizada.
Parece ser esse um movimento de ruptura com a noção de totalidade do conhecimento
acadêmico, viabilizando a construção de uma pedagógica que não seja dominadora. Como
descrito por Dussel (1977), a ontologia pedagógica de dominação sobre o educando nunca o
permitiu que ele pensasse a si mesmo como Outro, mas sempre o alienou dentro do mesmo,
portanto, oportunizar e propor a escuta e o acolhimento do Outro para pensar os processos
educacionais do campo numa relação face a face é o início da construção de processo decoloniais.
5.3. Os sujeitos pesquisados
Oito sujeitos participaram da roda de conversa. Elaboramos uma tabela que nos permite
visualizar, de maneira primária, suas características básicas.
O perfil dos estudantes que se dispuseram a conversar conosco é similar ao perfil da turma
de LAL acompanhada. Como se percebe, há uma prevalência de alunos na faixa etária entre 20
e 25 anos, sendo maior a presença de participantes do sexo feminino, além de prevalecer o perfil
de alunos solteiros35. Como já comentado, para o ingresso no curso é necessário ser morador de
área rural, mas algumas especificidades podem ser percebidas entre os sujeitos pesquisados.
Júlia, Felipe e João são moradores de área quilombola e se reconhecem como quilombolas.
Bianca é moradora de área indígena, mas não se reconhece com essa identidade.
Para facilitar a visualização dos locais de residência dos alunos que compuseram a roda
de conversa, elaboramos uma ilustração com a localização de seus municípios. Ressaltamos que
não há alunos no curso que residem em Belo Horizonte, a marcação foi feita para identificamos
a localidade da UFMG.
35 É necessário observar que casais que decidem cursar o LeCampo juntos têm direito a quartos individuais durante
a permanência no TE, como era o caso de um casal que fazia parte da LAL.
130
Elaborado pela pesquisadora
Para compreendermos de forma mais verticalizada a atuação e o relacionamento desses
sujeitos com suas comunidades, perguntamos se alguém entre eles já havia entrado no LeCampo
por meio de movimentos sociais. Dois alunos responderam que sim: são eles Felipe e Pedro. Os
demais disseram que passaram a ter vínculos com associações e sindicatos após o ingresso no
LeCampo. Bianca e Ana disseram nunca terem participado de nenhum movimento social ou
sindicato. As associações mencionadas pelos alunos foram:
131
ALUNOS ASSOCIAÇÕES/MOVIMENTOS
Pedro Associado ao Movimento Comunitário de Produtores
Rurais
Felipe Diretor de Formação Sindical dos Trabalhadores Rurais e
Representante das Mulheres e Jovens de Jenipapo de
Minas
Lira Secretária da Associação Comunitária de Icaraí.
Gabriela Associada na Associação Comunitária de Pequenos
Produtores Rurais Fazenda Catulé
Júlia Duas associações quilombolas e do sindicato
João Duas associações quilombolas e do sindicato.
FONTE: nossa pesquisa
Entre as atribuições desenvolvidas por esses sujeitos nas associações em que informaram
participar, a de Felipe destaca-se das demais, por apresentar papel de diretividade dentro do
sindicato. Gabriela deixou transparecer em nossas conversas que seu papel na associação a qual
se vincula é apenas de associada, não comparecendo às reuniões e encontros promovidos por
eles. Júlia e João nos chamam a atenção por dizerem participar da associação quilombola e do
sindicato, mas não souberam informar o nome de nenhum dos dois grupos aos quais se
pertencem.
Numa conversa com Gabriela, ela me informou que ela e algumas pessoas que ela
conhece acabaram se associando a sindicatos, principalmente, para conseguirem alguns
benefícios, como linhas de créditos diferenciadas e outros benefícios conduzidos a trabalhadores
do campo, que só podem ser acessados se o indivíduo apresentar vínculo com tais sindicatos.
Não é nossa intenção afirmar que seja essa a situação de todos os sujeitos pesquisados,
mas é possível dizer que há algum distanciamento desses sujeitos dos seus sindicatos e
associações, mesmo sendo vinculados a eles. A participação desses sujeitos não nos pareceu
propositiva e ativa dentro desses ambientes, restringindo-se apenas à presença nas reuniões.
5.4 Observação de Campo
A primeira atividade acadêmica acompanhada foi a palestra “Conjuntura política atual”.
Para compor a mesa foram chamadas quatro pessoas: uma professora da FaE, um representante
da FETAEMG, um Deputado Federal e uma aluna do curso.
132
Entre as provocações trazidas pelos convidados, foi interessante a fala da professora do
LeCampo sobre a responsabilidade dos alunos com a manutenção do curso, numa leitura muito
clara sobre os desafios do desenvolvimento do curso frente a uma possível ruptura democrática
no país. Tal fato poderia diminuir o repasse de verbas ao curso, o que seria impeditivo para se
realizar o próximo TE. Afinal, o deslocamento dos alunos das suas respectivas cidades, bem
como sua manutenção na cidade – custeio de alimentação e hospedagem, são responsabilidades
financeiras arcadas pelo LeCampo com repasse de verba do governo federal.
Durante o período da tarde os alunos do curso se dividiram para realizarem discussões de
como havia sido o TC: os desafios, as dificuldades e os aprendizados.
Como descrito no plano de ensino do curso, os objetivos da disciplina são
Fazer a discussão teórica e vivência prática da organicidade – por turma – TE e TC.
Organização em Grupos de Trabalho. Apropriação teórica de conceitos relativos à
organização e processos grupais, engajamento social e lideranças.
Foi possível vislumbrar objetivamente a execução dos objetivos dessa disciplina no
encontro do dia 15 de julho de 2016. Nesse dia, os alunos separados em Gt’s desenvolveram
avaliações sobre o desenvolvimento das disciplinas no TE. As avaliações foram compartilhadas
no fim do dia no auditório da FaE, assistida pelos alunos de todas as áreas e pela professora que
conduziu a disciplina.
Entre as observações, considerações e ponderações que os alunos trouxeram sobre o
desenvolvimento do TE, até aquele momento, algo que chamou a atenção, não apenas minha,
mas dos demais alunos foi a fala dos alunos recém-ingressos da habilitação em Matemática.
Conforme registrado no diário de campo 08 de julho de 2016 o aluno responsável por partilhar
as percepções coletivas da sala trouxe um problema vivenciado com alguns professores: “há
professores do curso que desviam o foco ao darem aula, falando de política e religião e não
expondo o conteúdo”.
É curioso perceber que essa crítica trazida pelos alunos se desvincula do propósito basilar
da educação do campo, de ser um conhecimento que relacione teoria e prática ao mundo real; um
conhecimento propositivo, capaz de modificar a sociedade. Assim, a Educação do Campo se
apresenta como
(...) um movimento real de combate ao ‘atual estado de coisas’: movimento prático, de
objetivos ou fins práticos, de ferramentas práticas, que expressa e produz concepções
teóricas, críticas a determinadas cisões de educação, de política de educação, de projetos
de campo e de país, mas que são interpretações da realidade construídas em vista de
orientar ações/lutas concretas. (2009, p. 40)
133
Os serões de estudo também foram mencionados. Como registrado em meu diário de
campo 08 de julho de 2016 os alunos reafirmaram sua importância, “por nos ajudarem a conhecer
mais sobre os movimentos sociais do campo”. Os serões são atividades complementares
desenvolvidas fora do horário de aula regular dos educandos, com duração de aproximadamente
duas horas, normalmente realizadas no hall do prédio em que estão alojados, no período da noite.
Até aquele dia, havia sido realizado um serão com o tema “Movimentos Sociais I: sucessão da
juventude no campo”.
Esses dois pontos trazidos pelos alunos são significativos para evidenciarmos, alguma
incompreensão e incômodo, por parte dos alunos, quando os professores se aproximam de temas
tidos como “alheios” às disciplinas ministradas por eles. Apesar de não presenciarmos tais
momentos em sala de aula junto à turma caloura, as pontuações trazidas por eles nos permitem
inferir que eles distinguem o que seria um conhecimento que não “se mistura” com política, ou
que não deveria se misturar; mas existe outro saber que, talvez, por não estar em sala de aula,
pode se vincular as discussões políticas, como ocorreu durante os serões.
Aproximar-se dos movimentos sociais como conhecimento teórico desvinculado da
prática e/ou se aproximar da proposta de uma Educação do Campo como teoria, mas distante da
prática, descaracteriza, desestabiliza e invalida a proposta que nasce de transformação social, de
pensar processos de ruptura e de construção do novo, que nascem junto à Educação do Campo.
Daí ser curiosa a presença de alunos no LeCampo que defendam ser necessário separar política
e “sala de aula”, aderindo a uma proposta marcadamente colonizadora sobre a concepção de
conhecimento, indo contra toda a construção teórica que alicerça o curso.36
No dia 18 de julho, os alunos do LeCampo se reuniram para decidir se participariam de
forma coletiva do “Festival Nacional de Artes e Cultura da Reforma Agrária”, que se realizaria
no dia 21 de junho de 2016. Os alunos optaram por ir, entretanto, apensar de não ter números
exatos, é possível afirmar que menos da metade dos alunos presentes naquele TE de fato
compareceram ao evento. É curiosa a ausência dos alunos, visto que o evento tratava de forma
eminente da temática do campo, em suas abordagens políticas, culturais e sociais. Os alunos que
compareceram ao evento participaram da palestra de abertura, que contou com a participação do
coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile, e a coordenadora geral do Sind-Ute/MG,
Beatriz Cerqueira.
134
Seguido ao momento de discussão, houve uma caminhada junto aos militantes do MST
até o local onde estava organizada uma feira com exposição dos produtos produzidos pelo MST.
Acompanhei a feira junto aos alunos da LAL, e o que mais me chamou a atenção foi a curiosidade
dos educandos da LAL sobre a mística realizada no evento. Segundo eles, ela trazia “uma
emoção” que eles não percebiam na mística realizada por eles dentro do LeCampo. Entre as
conclusões as quais pareciam chegar, estava a de que eles nunca haviam realmente feito uma
mística, porque eles nunca haviam lutado e participado diretamente das lutas de movimentos
sociais como aquele grupo que ali estava.
5.4.1. A observação em sala de aula
A observação sistemática foi realizada junto à disciplina denominada “Educação,
Conhecimento e Cultura”. A ementa da disciplina apresentada pelo professor à turma no primeiro
dia de aula se diferenciava daquela que havia recebido na secretaria do curso durante o processo
de escolha das disciplinas a serem observadas. A ementa da disciplina traz os seguintes dizeres
A educação como processo social. Educação e processo de socialização. Análise
sociológica das desigualdades sociais e escolares. Processos educativos em diferentes
contextos.
Como se percebe, há uma proposição para a leitura dos temas voltados para as relações
sociais, não sendo a educação trabalhada exclusivamente como aspecto da escolarização. São
quatro os textos bases indicados na bibliografia básica. Para facilitar a visualização, elaboramos
o seguinte quadro com as referências indicadas:
135
CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS – BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Unid. I: Visão marxiana da sociedade
capitalista
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
Feurbach: oposição entre a concepção
materialista e a idealista. In.: A ideologia
Alemã. São Paulo. Martins Fontes. 2001.
P. 3-54
Unid. II: O conceito de cultura, suas
variações e implicações para a análise
social das desigualdades.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia.
In: Crítica y emancipación: Revista latino-
americana de Ciencias Sociales. Buenos
Aires: CLACSO. Ano 1, nº 1, jun/2008. P.
53-67.
Unid. III: O capital cultural e a cultura
escolar: desigualdades escolares e
desigualdades sociais.
BONAMINO, Alicia; ALVES, Fátima,
FRACO; Creso. Os efeitos das diferentes
formas de capital no desempenho escolar:
um estudo à luz de Bourdieu e de
Coleman. In: Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro: ANPED. Vol.
15, nº: 45, set./dez. 2010, p. 487-594.
Unid. IV: A educação do campo e as
experiências de escolas do campo.
ARROYO, Miguel. A educação básica e o
movimento social do campo. In:
ARROYO, M. FERNANDES, M. A
educação do campo e o movimento social
do campo. Brasília: Articulação Nacional
por uma Educação Básica do Campo.
1999, p. 13-29. Fonte: realizado pela autora a partir do plano de aula da disciplina
Perguntamos ao professor Mário o porquê da escolha desses textos para discussão dos
conceitos de educação e, principalmente, o porquê da escolha de Marx.
Mário: Eu sempre me desafio a preparar aulas e a discutir uma concepção mais ampla,
um objeto mais amplo, para aportar as contribuições da sociologia. Então normalmente
eu sempre faço escolhas que vão dentro de um certo é... campo... que é pensar a relação
Estado e sociedade, o campo do direito, a escola como um direito, né? Essa disciplina
que você acompanhou, eu resolvi discutir a ideologia alemã, porque os alunos [de outras
turmas] sempre reclamavam da ausência de um debate mais conceitual dentro do
marxismo. Eles achavam que eles viam muito pouco Marx, e como eu queria discutir a
relação com o conhecimento, o nome da disciplina é esse inclusive?! Escola,
conhecimento e cultura eu acho.... Como está no título da disciplina eu peguei a
Ideologia Alemã pra discutir um pouco da produção do conhecimento na sociedade
capitalista e a leitura do Marx, pra como é que esse conhecimento é atravessado pela
dinâmica de classe. E os outros textos surgiram inclusive dessa escolha de Ideologia
alemã né? Então tanto é.... o texto da Marilena Chauí é... é.... é.... o.... (o professor
parece ter esquecido o nome do autor; nesse momento sugiro o nome de um autor
trabalhado em sala)
Pesquisadora: É o sobre Bourdieu ?
136
Mário: Isso! Surgiram muito daí. Muito dessa coisa de relaciona a sociedade,
desigualdade social, perspectiva de classe e conhecimento. Então é isso... Eu acho que
a disciplina tento fazer essa conversa.
Percebe-se que as escolhas teóricas estão centradas na perspectiva marxiana e de autores
que dialogam com essa teoria. Cientes que a proposta da Educação do Campo para a formação
de professores está voltada para uma compreensão mais abrangente de sociedade e de
conhecimento, buscando construir uma perspectiva omnilateral da educação, a escolha de textos
que relacionem e tencionem as perspectivas de educação, conhecimento e cultura parece
comungar com a proposta de formação de professores do campo.
Apesar de não comentado pelo professor Mário como se deu a escolha do texto da última
unidade, escrita pelo professor Arroyo, é possível inferirmos sentidos a essa escolha. Por ser um
dos textos iniciais da proposta de construção da Educação do Campo, esse texto possibilita aos
estudantes articularem os outros textos a pontos específicos da educação básica do campo e de
suas relações com os movimentos sociais, oportunizando um momento de síntese das teorias
apresentadas junto à proposta dos movimentos sociais para a educação do campo.
Foi possível comprovar na sala de aula da LAL o ponto trazido na fala do professor Mário
sobre o pouco conhecimento a respeito de Marx. Durante a primeira aula, o professor indagou à
turma quanto a contatos anteriores com os textos de Marx e se conheciam os conceitos elaborados
pelo autor. Após alguns minutos de silêncio, os alunos disseram conhecer Marx vagamente das
disciplinas de Sociologia e Filosofia do ensino médio, citando alguns conceitos como classe, luta
de classe e proletariado. Mesmo que os alunos tenham citados esses conceitos, nem sempre
sabiam explicá-los, necessitando de uma intervenção do professor.
Percebido o desconhecimento da turma em relação a Marx, o professor enumerou
algumas opções de filmes que possibilitaria a discussão de alguns pontos sobre a teoria marxiana
para serem assistidos na próxima aula, no dia seguinte, e acordou-se, junto à turma, que seria
assistido ao filme “Eles Não Usam Black-Tie”.37
Após o filme, seguiu-se a discussão. Curioso perceber que nenhum aluno da turma
problematizou as relações e os sentidos trazidos no filme dentro dos conceitos abordados na aula
anterior, relacionando-os à greve e aos direitos trabalhistas.
Os comentários trazidos pela turma centraram-se no papel de Tião: segundo eles, a
escolha de Tião em não participar da greve era correta, uma vez que ele precisava se casar e
37 O filme brasileiro de 1981, dirigido por Leon Hirszman, narra a história de um movimento grevista iniciado numa
fábrica e a postura conflitante de dois sujeitos, pai e filho, frente à greve. Enquanto Tião, o filho, se demonstrava
preocupado com questões pessoais, boicotando a greve e delatando alguns colegas de trabalho em troca de aumento
salarial, seu pai se demonstrava um ávido defensor dos direitos coletivos e líder do movimento grevista.
137
sustentar sua namorada, que estava grávida. Quando os alunos se dispuseram a falar sobre o pai
de Tião, não pouparam críticas: a principal centrava-se no que os alunos denominaram de falta
de respeito do pai à vontade do seu filho em não participar da greve. Já a outra forte pontuação
trazida pelos alunos estava na análise que realizavam do pai de Tião como um homem “sonhador”
e “esperançoso”, como anotei em meu diário de campo. Ainda, segundo alguns alunos, o pai de
Tião não havia compreendido como “a vida é” e, portanto, se colocava numa luta infrutífera, a
favor dos interesses coletivos.
Observamos que os alunos não trouxeram, ao comentar o filme, nenhuma associação a
experiências vivenciadas no campo, ou relatos de situações análogas. Os traços individualistas
trazidos nas falas dos sujeitos que compõem a turma da LAL nos levam a perceber o
distanciamento destes dos sentidos coletivos trazidos dentro de organizações e movimentos
sociais.
Conforme descrito por Restrepo e Rojas (2010, p. 163), o distanciamento dos sentidos
coletivos provocam a negação da construção de outro mundo, deixando a criatividade e os
interesses pelos seres humanos e pela celebração da vida em um plano secundário, privilegiando
o êxito individual e meritocrático da acumulação de dinheiro. Nessa perspectiva, pensar a
decolonialidade do ser é buscar romper com a narrativa totalizante do capitalismo, que resume
todos os processos a mercadoria, construindo processos Outros de cooperação e de relação com
o Outro numa perspectiva face-a-face, ou seja, uma relação de horizontalidade, e não numa
relação dominadora, onde um se vende e o outro compra.
Por não haver uma problematização dos sentidos de coletividade e de individualidade
para a compreensão das questões abordadas no filme, podemos afirmar, aproximando-nos das
leituras de Freire, que o processo de conscientização não foi percebido na turma naquele
momento. Aqui entendemos o processo de conscientização como de criticização das relações
sociais e, a partir daí, da construção de uma condição para o comprometimento diante do contexto
histórico-social de mudança da realidade. Essa conscientização distancia-se, como descrito por
Freire (1991), da concepção de conscientização como uma “pílula mágica” a ser aplicada nas
pessoas para torná-las conscientes do mundo, aproximando-se de uma concepção de consciência
que nega o fatalismo e concebe a história como construção humana, sendo todas as lutas,
portanto, válidas, necessárias e frutíferas.
Perguntamos em nossa entrevista ao professor Mário como ele percebia os comentários
que a turma realizou sobre o filme:
138
Mário: No curso que tem a origem que tem, né? Quer dizer, um curso que surge das
demandas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo por uma escola com identidade
do campo, é... um pouco de estranhar esse tipo de fala né? Como é que alguém pode ter
uma posição, de uma saída individual para um conflito que não é individual que é
coletivo né?! Então é... isso de certa forma me surpreende. Mas, ao mesmo tempo eu
acho que isso faz parte da vida social. Quer dizer, é obvio que... formas... e saídas
individuais, posições individuais estão presentes em meio as decisões mais coletivas,
né? Então os alunos podem ter esse tipo de percepção e de posição porque ela circula
socialmente né? Então de certa forma está explicado. E eu acho que a ideia da disciplina
se torna ainda mais necessária, né? Porque se torna mais necessário ainda o debate, né?
Os princípios da educação do campo para a formação de professores, como descrito nos
Cadernos de Educação do Campo elaborados por Caldart e Benjamin (2002) e Arroyo e
Fernandes (1999), pautam-se nos valores da coletividade, corroboramos a perspectiva trazida por
Mário da necessidade dessas discussões dentro da disciplina por ele ministrada, possibilitando
que os alunos reflitam sobre o conhecimento não em uma perspectiva de saída individual e
meritocrática, mas como construção coletiva de uma elevada universalidade dos saberes. Como
descrito por Caldart e Benjamin
Nenhum educador tem o direito de atuar individualmente, por sua conta e sob sua
responsabilidade. Exatamente porque ninguém consegue ser um educador sozinho. O
processo pedagógico é um processo coletivo e por isto precisa ser conduzido de modo
coletivo, enraizando-se e ajudando a enraizar as pessoas em coletividades fortes. (2002,
p. 53)
Percebe-se, já no fim da discussão sobre o filme, que uma das alunas da sala, como relatei
em meu diário de campo 11 de julho de 2016, disse não entender por que a família e os amigos
de Tião o obrigavam a fazer parte da greve, e comparou essa situação à sua como aluna do
LeCampo. Haveria, em suas palavras, uma exigência para que todos sejam militantes, todos
participem da mística, e uma não aceitação de alguns posicionamentos dos alunos. Quando
questionada pelo professor Mário sobre sua fala, a aluna relatou um desentendimento ocorrido
com uma professora do curso. Segundo ela, ao se apresentar afirmando que é moradora de área
indígena, mas que não se identifica como indígena, a professora teria dito que ela mudaria de
opinião e reconheceria sua identidade no decorrer do curso. A aluna relatou ter se sentido
ofendida em seu reconhecimento identitário e desrespeitada em sua opinião.
Segundo Dussel (1977) a relação com o Outro só pode verdadeiramente existir se não for
dominadora; só é relação quando se dá no face-a-face, quando os sujeitos se reconhecem
enquanto iguais, fugindo-se assim das relações em que o Eu subsome o Outro, criando relações
de mesmidade. A fala de Bianca nos chama a atenção para os processos de mesmidade que
ocorrem mesmo em meios que se propõe ser dialógicos.
139
Freire (2014) nos chama a atenção para a importância de estarmos atentos à coerência de
nossas escolhas: “Não vale um discurso bem articulado, em que se defendem o direito de ser
diferente e uma prática negadora desse direito”. (FREIRE, 2014, p 45). Reconhecendo que a
educação não é neutra, e optando por uma educação dialógica e, portanto, democrática, é
imperativo que haja coerência entre as escolhas e as práticas, para não ocorrer na mesma relação
de dominação que é imposta aos sujeitos Outros e as suas identidades dentro do padrão
moderno/colonizador.
5.4.2. A mística no LeCampo
O Tempo Escola teve início no dia 04 de julho de 2016, dando abertura a mais um período
de aproximadamente trinta dias, em que os alunos das diferentes áreas de formação se encontram
no campus da FaE. Além disso, também era momento de acolhida do grupo de estudantes
calouros do curso que foram aprovados para a área de Matemática.
A recepção dos alunos ocorreu com a realização da mística, resgatando as bandeiras dos
movimentos sociais como o MST, o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Via
Campesina e a bandeira do LeCampo. Uma das alunas do curso entoa o grito “Educação do
Campo direito nosso...” ao que todos respondem “... dever do Estado”.
É perceptível que a mística carece de emoção nos alunos que a desenvolvem. Ela é
realizada com os alunos lendo pequenos textos escondidos atrás das bandeiras que carregavam,
e suas vozes não transmitiam a energia necessária a quem se lembrava das lutas e das histórias
dos movimentos sociais que carregavam aquelas bandeiras.
Após o fim da mística, foi realizado um momento de cânticos. Foram entregues algumas
letras de músicas que diziam sobre o campo e a educação do campo, e todos os que estavam ali
presentes, professores do curso, alunos veteranos e calouros, cantaram. Nesse momento, o
sentido de coletividade parecia estar presente na unidade que se trazia junto às músicas.
Mas o que seria a mística? Segundo Ademar Bogo (2012), é possível dizer na atualidade
de três sentidos atribuídos à mística: os sentidos religiosos, os atribuídos pelas ciências políticas
e os sentidos trazidos pelos movimentos populares. Os sentidos empregados pelos movimentos
populares são
(...) de fundamentação filosófica, os movimentos populares compreendem a mística
como expressões da cultura, da arte e dos valores como parte constitutiva da experiência
edificada na luta pela transformação da realidade social, indo em direção ao topos, a
parte realizável da utopia. (BOGO, 2012, p. 476)
140
A mística passa a ganhar força na América Latina junto a movimentos decoloniais de
resistência, no bojo da Teologia da libertação. Como descrito por Souza (2012) em sua tese de
doutorado sobre a mística como mediadora na formação dos sujeitos do MST, a mística é
apropriada pelo MST como possibilidade de se pensar novas ideais que sejam alternativas e
emancipatórias ao projeto de vida ensejado pela lógica do capitalismo, que retoma os processos
de luta histórica dos sujeitos do campo e cria uma unidade, mesmo que momentânea, em torno
dos ideais do MST.
O Outro nesse instante se reconhece enquanto sujeito coletivo com histórico comum de
negação dos seus direitos e, principalmente, da negação do direito a terem seus direitos. Junto a
essa identidade coletiva passam a buscar formas Outras de organização da sociedade e a
questionar as epistemes vigentes, reconhecendo até mesmo a força educativa que emerge dos
sentimentos.
É dentro da educação popular, como descrito por Streck (2013), que os sentimentos e a
mística se relacionam de forma intrinseca, não como forma de irracionalidade ou de pieguice,
mas como parte da transformação social, ou seja, não se parte do indivíduo, mas do coletivo e
dos sentimentos de uma construção de uma educação e de sociedade Outra.
A realização da mística no LeCampo demonstra ser uma forma de coadunar esses
processos históricos de resistências do campo e da própria construção de um projeto de educação
voltada para Outros sujeitos. Devido a sua forte vinculação com o MST, o curso trouxe desde a
primeira turma, ainda Peterra, uma demanda vinda dos alunos para a realização da mística.
Entretanto, quando o curso se tornou regular, a partir de 2009, houve o ingresso de
educandos desvinculados de movimentos sociais. Não sabemos afirmar qual é atualmente o
número de ingressos no curso que são militante de movimentos sociais, mas foi possível
perceber, em conversas informais, que o curso é marcado pela heterogeneidade de sujeitos e de
suas relações com movimentos sociais, sindicatos e participação na política partidária.
Mas como esses sujeitos que hoje ocupam o curso, depois de se tornado regular,
compreendem a prática da mística? Conversas informais com alguns educandos do curso
demonstram tanto a existência de estudantes que não sabiam o que era a mística antes da sua
entrada no curso quanto estudantes que já conheciam e participavam de forma mais sistemática,
por serem ligados a movimentos sociais do campo.
A turma da LAL trouxe várias vezes a temática da mística em nossas conversas informais,
o que me fez querer observar com um cuidado maior o distanciamento da turma com a mística.
Os estudantes narraram, em uma das conversas ocorridas logo no primeiro dia de
observação, que quando a turma ficou responsável por realizar a mística em um evento do curso,
141
eles modificaram os rituais, utilizando algumas técnicas que haviam aprendido sobre o Teatro do
Oprimido, de Augusto Boal. Segundo os educandos, isso gerou certo desconforto em algumas
turmas do curso, que ficaram insatisfeitas com as modificações realizadas. Vale destacar o perfil
das turmas insatisfeitas, marcadas por uma presença maior de educandos advindos de
movimentos sociais.
Como anotado em meu caderno de campo no dia 15 de julho de 2016, a estudante Gabriela
narrou que, após a realização dessa mística “diferenciada”, houve certa indisposição por parte de
alguns professores, que diziam não ter a turma o “perfil de pessoas do curso”. Apesar dos alunos
não dizerem nome dos professores era perceptível que os alunos da LAL se sentiram em algum
momento, ainda no início do curso, deslocados do curso, por não fazerem parte de alguma
militância ou associação, não havendo a identificação com o papel de militante.
As tensões que existiam nesse momento estavam centradas em quem são esses Outros
sujeitos que, apesar de virem do campo e passarem pelo processo seletivo do curso38, não eram
familiarizados com a história de luta vivenciada dentro dos movimentos sociais e,
consequentemente, apresentavam certa resistência ao realizar a mística.
O que compreendemos por realizar a mística não está vinculado a um simples
procedimento burocrático, mas à elaboração de um momento que é produto da experiência dos
sujeitos ali presentes, aproximando-se dos sentidos apresentados por Bogo (2012) de uma
experiência edificada na luta pela transformação da realidade social.
A construção coletiva, o uso do corpo, da afetividade e dos cantos criam outros momentos
para a Universidade, não como momentos de estratégias de ensino, mas formas de pertença ao
mundo, significativos de histórias de lutas comuns nos variados âmbitos da vida campesina.
Esses Outros sujeitos, na construção do giro decolonial, conceito descrito por Maldonado-Torres
(2008), constroem formas de negar o ocultamento de suas histórias e de si como sujeitos.
Entretanto, na turma em que observei, percebi que, apesar do potencial decolonial da
mística como promovedora desses Outros sujeitos e de Outras práticas, na turma da LAL a
mística aparece muito mais vinculada a processos burocráticos do que a processos
emancipatórios e de sentimento de coletividade.
Como tomado nota no caderno de campo no dia 11 de junho, uma aluna comentou em
sala de aula que tinha presenciado a mística em outro curso ofertado pela FaE, o FIEI, curso de
38 O processo seletivo do curso é diferenciado porque exige que sejam moradores do meio rural os sujeitos,
comprovando isso através de documentação específica e de uma carta de encaminhamento de algum sindicato ou
movimento popular da sua região.
142
Formação Intercultural de Educadores Indígenas, e que tinha chegado à conclusão que não se
realizava mística no LeCampo, porque segundo contava, “faltava emoção nas nossas místicas”.
Durante a roda de conversa, a mística foi um dos assuntos trazidos por uma aluna do curso
que comentou sobre o seu sentimento e desenvolvimento
- Mas foi depois que eu vim para cá, que eu conheci os movimentos sociais, a primeira
vez que eu vi uma mística eu falei '”Gente do céu, o que é isso", né? Será que eu tô no
lugar certo? Ai depois... houve até alguns questionamentos meus com as pessoas que já
faziam parte dos movimentos sociais, que a gente já chegou assim... até a... porque... eu
senti que isso estava sendo imposto, né? E quando é uma coisa muito imposta não tem
essa boa recepção. Mas, aí depois a gente foi conversando e aí a gente vai vendo que
tem coisas que vão surgindo naturalmente, igual a mística hoje, toda segunda feira como
é agora, a gente vê a mobilização das turmas, para poder fazer. E aí já vai dando uma
acalmada mesmo, mas no primeiro momento eu tive esse estranhamento.
-Mas hoje você gosta de participar da mística?
- Eu participo. (Bianca)
Como percebido na fala de Bianca, ela associa a existência da mística no curso não como
um ritual nascido neste, mas como uma extensão dos sentidos das lutas dos movimentos sociais
que foram incorporados ao curso. Assim, um dos desafios vivenciados pelo curso está em como
não totalizar as práticas nascidas dentro do MST, que hoje compõe o curso, dentro dos outros
sentidos e vivências trazidos para dentro do curso por seus integrantes.
Já o comentário tecido por Felipe , ao ouvir o relato de Bianca, durante a roda de conversa
traz outros sentidos sobre o mesmo tema
Igual você tá falando a questão da mística, a mística é um processo de super... de
formação mesmo. A mística é ao mesmo momento que você vai colocar e relembrar o
histórico de luta é... ver o que já se conquistou. E aí você vai projetar o futuro. É através
do passado, do presente e do futuro. Pra quem convive no contexto e sabe de todas as
lutas que foram pra conquistar o LeCampo, a mística é... você tá lá... você arrepia. É
uma coisa. (Felipe )
Como sujeito participante de sindicato na região onde mora, o discurso de Felipe se
aproxima de uma perspectiva militante e demonstra as relações de poder e de sentidos que estão
atribuídos à mística, aproximando-se dos sentidos voltados à percepção do coletivo.
Já existe farto material acadêmico, em diferentes áreas do saber, que se debruçaram sobre
a compreensão da mística e sua aproximação com os aspectos da religiosidade, da identidade
coletiva e da resistência vinculados a movimentos sociais especialmente ao MST, como as
pesquisas desenvolvidas por Coelho (2011) e Bogo (2000). Entretanto, não encontramos
pesquisas que buscam analisar os sentidos atribuídos à realização da mística dentro dos cursos
de Formação de professores, uma vez que nem todos os sujeitos que ali estão compartilham de
um mesmo histórico de lutas e crenças em uma utopia coletiva como em movimentos sociais.
143
Assim, pensando nos sentidos atribuídos à maior parcela da turma da LAL sobre a
mística, nota-se um sentimento, por vezes, de cumprimento burocrático de seu desenvolvimento.
É valido ressaltar que esta não é desenvolvida apenas no início do TE, havendo, dentro de cada
sala de aula, um grupo que se responsabiliza por pensá-la e desenvolvê-la, como parte da
organicidade do curso, sendo, portanto, parte constante do mesmo.
Após a mística, houve o acolhimento da turma recém ingressa no curso (habilitação em
Matemática), com um ritual que, segundo os alunos me relataram, ocorre todos os anos. É dado
aos alunos um anel de tucum e uma flor de girassol artificial; o anel de tucum é feito a partir de
uma palmeira da Amazônia. Os membros religiosos ligados à teologia da Libertação foram os
responsáveis por difundir o uso desse anel como símbolo da aliança com as causas indígenas e
populares. Assim, aqueles que o carregam demonstram se preocupar com as causas dos
oprimidos e da construção de uma sociedade mais justa.
O girassol é entregue por ser o símbolo da educação do campo, mas não apenas do
LeCampo. Diferentemente do símbolo do anel de tucum, há inúmeras explicações e apropriações
que os cursos, movimentos e sujeitos neles envolvidos fazem do símbolo do girassol. A
explicação mais comum diz da relação que a flor tem com o sol, sempre o seguindo e se
orientando por ele; assim também seriam os trabalhadores (as) do campo, que tem no trato com
a terra, as estações do ano e a natureza uma relação muito próxima.
As pessoas responsáveis pela entrega do anel de tucum e do girassol aos calouros eram
alunos da turma de Ciências Sociais e Humanas, ou seja, da turma que havia entrado um ano
antes. Uma aluna veterana do LeCampo explica aos alunos da turma de Matemática que cabe aos
que entregaram os símbolos aos recém ingressos serem seus respectivos padrinhos e madrinhas,
e que quaisquer dúvidas sobre os espaços escolares da FaE, ou mesmo sobre o desenvolver e a
organicidade do curso, deveriam ser retiradas com eles.
Esse ambiente de coletividade e de comunidade formado na recepção dos educandos no
Tempo Escola, além de romper com os laços do individualismo (muito presente na vida
acadêmica), traz ao curso o sentimento de que as pessoas que ali estão são responsáveis pela sua
sequência e andamento.
A recepção dos calouros e a abertura do TE é finalizada com um café da manhã coletivo,
no qual professores e professoras do LeCampo se reúnem com os monitores (as) e alunos (as).
144
5.5 A voz do Outro?
O que é ouvir o Outro? Reconhecemos que é difícil empreender tal tarefa, afinal significa
buscar compreender o Outro como sujeito da ação. É preciso cuidado para, dentro da nossa
pesquisa, não subsumirmos o Outro, reforçando na análise as características de mesmidade
sofridas por eles nos processos de colonialidade. É árduo, todavia, distanciarmo-nos da nossa
perspectiva de ouvinte.
Diante do exposto, questionamos: quais os sentidos atribuídos aos alunos à sua escolha
em um curso de licenciatura em Educação do Campo? Como se deu essa escolha? Cientes de que
a educação não é neutra, e de que a razão para a criação dos cursos de licenciatura do campo está
vinculada à disputa pela ocupação da universidade como espaço de poder e saber e, portanto, de
legitimação do que é tido como conhecimento, propomo-nos a conhecer quem são esses sujeitos
que ocupam esse curso e quais foram suas motivações.
5.5.1. Os sujeitos do curso e sua institucionalização
Apesar de nascido de demandas de movimentos sociais do campo para garantir a
formação de seus militantes como educadores em áreas do campo, o curso veio modificando seu
público após a sua condição de curso regular da FaE, a partir de 2009. Sendo assim, buscamos
compreender por que esses sujeitos, mesmo com fraca adesão a movimentos sociais, ou mesmo
desvinculados, optaram por se matricular no LeCampo.
Dos oito participantes da roda de conversa, seis apresentaram respostas similares ao
porquê da escolha do curso.
LIRA: Eu quis fazer o curso por uma indicação de uma ex professora nossa, que formou
aqui na FAE. E ela me indicou. (...) E o meu sonho, assim... na verdade... não era ser
professora, só que a partir do momento que eu comecei a minha vida escolar como
estagiária realizando as atividades do PIBID, despertou em mim essa vontade de levar
a diante essa profissão. GABRIELA: - Então a licenciatura não era sua primeira opção? - Não, foi a segunda.
Não foi uma escolha minha, na verdade, foi o que apareceu ali na hora.
JÚLIA: Ela [minha madrinha] fez licenciatura aqui. Me explicou para que que era,
voltado para o campo, para nossa realidade, lá do campo. Eu me interessei muito, mas
na época, eu queria fazer psicologia. Eu ia fazer psicologia. Mas, aí eu fiz inscrição para
aqui, para o curso, e aí antes deu passar em psicologia eu passei aqui. Ai no caso eu
comecei a estudar.
JOÃO: Assim, é... a respeito de querer fazer licenciatura, eu optava por um outro curso,
entendeu? Mas se fosse para fazer a licenciatura também eu optaria por outra área, seria
145
a matemática né? Mas aí né, como eu cai no português, na LAL né? Ai a gente foi
desenvolvendo e eu fui identificando né?
BIANCA: E ai a minha prima que formou na turma de 2011, que a gente fazia debate
aqui né? E ai ela me contou do curso. Contou da facilidade que é... assim... digamos...
Quando eu falei isso um dia até falei não é que é fácil não, até me repreenderam. Esse
curso aqui não é fácil não. Ela me contou de como é que era o desenvolvimento do
curso, e me interessou bastante. Né? Por conta deu ter filho, e eu fui tendo um filho
atrás do outro. E isso dificultou muito.
ANA: No meu caso, eu digo, que o curso me escolheu. Por que? Porque eu tinha
terminado o ensino médio em 2002 só voltei para o curso superior através desse curso,
né, foi em 2014. Então devido à família e tal, o curso conciliava mais com as atividades
né? Que eu levo na minha vida normal e se fosse um curso regular e talvez eu não
conseguiria devido a isso
Pode-se traçar como comum a essas respostas a vontade que os sujeitos apresentam de
terem um curso superior. As quatro primeiras respostas são marcadas pelo desejo desses sujeitos
de realizarem outros cursos de graduação, mas, por algum motivo, não conseguiram o ingresso
neles e acabaram optando pelo LeCampo. Já nas últimas duas opiniões das participantes percebe-
se a vontade de realizar um curso superior e impossibilidade de cursá-lo em razão da
incompatibilidade entre os horários da graduação e o cotidiano dos participantes da pesquisa.
Pedagogia da Alternância foi um diferencial para que optassem pelo LeCampo.
Como se percebe, as escolhas desses sujeitos não estão marcadas pela influência de algum
coletivo ou de movimentos sociais, distanciando-se dos discursos de identidade coletiva e de
compromisso com o grupo social de sua comunidade, geralmente vinculados aos docentes que
ingressam em cursos com forte presença de movimentos sociais.
Para podermos olhar com maior cuidado para o perfil dessa turma, achamos necessário
compreender como o curso constrói a sua formação de público e como movimentos sociais, como
o MST, interferem na escolha desses alunos.
Como nos conta Antunes-Rocha (2011, p.46), houve duas entradas com editais
diferenciados nos anos de 2005 e 2008. Para participar do processo seletivo, era necessário que
os candidatos residissem ou desenvolvessem práticas educativas dentro de acampamentos e/ou
assentamentos e apresentassem uma carta escrita pelo líder comunitário confirmando que atuam
ou possuem residência no campo. Dessa forma, mantinha-se a especificidade de público através
de três pontos: público atendido pelo Pronera, público de reforma agrária e de movimentos
sociais.
O perfil que se buscava nesse momento estava estreitamente relacionado ao objetivo do
curso, ainda como projeto piloto, que, como nos conta Zárate (2011), era a formação de
professores para atuarem especialmente em assentamento da reforma agrária. Sendo o objetivo
146
do curso direcionado a um público específico dentro do campo, era maior a aproximação com os
movimentos sociais e a coesão entre os interesses do curso e seus ingressos.
Num artigo publicado pela primeira turma do LeCampo (Turma Vanessa dos Santos), os
alunos relataram seus olhares sobre o curso e descrevem uma identidade em comum aos que
ingressavam no curso; além da vontade de serem educadores, havia um histórico de luta e sonhos
coletivos que pareciam unificar a turma
Para a grande maioria, era a primeira vez que nos encontrávamos. Vimos que
conhecemos algo em comuns: a opressão, a exclusão, a repressão, sonhos tolhidos,
utopias e projetos coletivos a construir. Nesse ínterim, cada história individual completa
a nossa formação, à medida que partilhamos da mesma indignação e da possibilidade
do novo. (TURMA VANESSA DOS SANTOS, 2011, p. 164)
Esse discurso corrobora o de outros estudos feitos sobre o LeCampo, como o artigo
publicado pelas professoras Antunes-Rocha, Martins e Machado (2012), que focaliza as turmas
iniciadas em 2005, 2008 e 2009. Segundo as autoras, os estudantes que ingressavam no curso,
nesses momentos, eram percebidos como sujeitos coletivos. A entrada e permanência no curso
representavam não apenas seus interesses, mas de um coletivo, o que provocava inquietações e
modificações na lógica da universidade, principalmente devido as práticas isolacionistas e
competitivas.
Entretanto, a partir do ano de 200939 o curso tornou-se regular, o que obrigou a instituição
a modificar a especificação contida no edital para que fosse garantida a universalização do acesso
às vagas na universidade. Entretanto, era necessário que alguns critérios fossem mantidos, para
que não se perdesse a especificidade do curso, voltado para o campo e aos seus sujeitos. Assim,
o novo edital tinha como objetivo universalizar a oferta, mas se atentando à sua especificidade.
Como descrito no PPP do curso, os atuais critérios específicos para ingresso no curso são:
Declaração de vínculo com a família produtora rural, redigida de próprio punho;
“Carta de Intenções”, redigida de próprio punho e assinada, com no máximo
duas laudas, explicitando o(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) pretende cursar a Licenciatura
em Educação do Campo, destacando: sua identidade como sujeito que reside/trabalha
no campo; experiências em educação do campo; ideias/propostas que considera como
relevantes para a promoção do direito à Educação do Campo.
Documentos comprobatórios da condição “residir e/ou trabalhar no espaço
socioterritorial do campo”. (PPP, 2015 p.114)
39 As turmas de 2009 e 2010 emergem como curso regular no âmbito do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidade Federais REUNI.
147
Constatamos que não são apenas as formas de ingresso que se modificaram após o curso
se tornar regular, mas também os objetivos que norteiam sua a existência. Se nos anos de 2005 e
2008 o objetivo se centrava numa prática especialmente voltada aos assentamentos de reforma
agrária, após 2009 seus objetivos, como dispostos no PPP, passam a ser mais amplos, buscando
a expansão da formação de educadores do campo para a educação básica do e no campo.
Essa modificação permite que compreendamos as mudanças do perfil dos ingressos no
curso. Apesar de mantida a especificidade de alunos com aproximação com o campo e seus
modos de vida, essa aproximação não se dá, necessariamente, mediada pela participação em
movimentos sociais. Isso modifica os sentidos de ingresso na universidade, que, como percebida
nas respostas dos estudantes do LeCampo, passam a se distanciar da noção de sujeitos coletivos,
e se aproximando de interesses e perspectivas individuais no ingresso na universidade.
As noções decoloniais trazidas no bojo do desenvolvimento dos movimentos sociais,
pensadas na superação coletiva das formas de opressão perpetradas contra os sujeitos do campo
e suas formas de pensar e construir um outro projeto de educação, não encontram lugar dentro
de um discurso hegemônico. Assim, o acesso à universidade é pautado, dentro desse discurso
totalizante, com uma lógica de benefícios individuais e de aposta numa possibilidade de mudança
do status econômico.
Como descrito por Frigotto (2012), há uma aproximação dos interesses individuais ao
acesso à formação superior como estratégia de enfrentamento do desemprego e inserção no
mercado de trabalho, vinculando à educação a noção de capital humano40. Em uma sociedade
neoliberal, essa lógica suprime os direitos coletivos e universais e centra-se no indivíduo. Na
educação, faz com que os sujeitos se preocupem com as noções vinculadas a competências,
empregabilidade e empreendedorismo, e que se distanciem de uma educação emancipadora e
preocupada com a construção de novas relações sociais.
Amplia-se o objetivo disposto no PPP para a formação de professores, não apenas nas
áreas de reforma agrária, mas para atender também as demandas percebidas no campo por
formação docente, dessa forma, o público que passa a compor o curso torna-se heterogêneo, o
que não implicou no distanciamento do curso das discussões sobre uma formação de educação
do campo pensada de forma contra-hegemônica, mas nas disputas de sentidos atribuídos a fazer
parte do curso.
40 Entendemos por Capital Humano, segundo Frigotto (2012), a lógica de investir nos indivíduos para buscar
promover o aumento de sua produtividade levando-os a uma mobilidade social. A educação nessa perspectiva é
mera adaptadora a um sistema que necessita de um sistema produtivo para a manutenção e crescimento do capital,
buscando produzir tanta conformidade ou consenso quanto for capaz.
148
A entrevista com o professor Mário é reveladora quanto à modificação do perfil desses
sujeitos.
MÁRIO: Eu não peguei o curso quando ele tinha uma relação muito forte com o MST
e com os assentamentos, as pessoas que são mais antigas do curso falam que as
primeiras turmas eram muito marcadas, por um certo ethos, né? De identificação com a
luta campesina e com a luta pela terra. As turmas atuais eu acho que elas já não têm
tanto esse vínculo, mesmo que tenha se mantido o critério para os alunos para se
matricularem, né?
A presença de sujeitos muito mais plurais, que estão além da simples dicotomia de
pertencer ou não a movimentos sociais, caracteriza a heterogeneidade da turma, percebida na
diversidade de opiniões, percepções e tipos de envolvimento com essas formas de organização
coletiva que diretamente modificam os sentidos empregados por esses alunos na sua prática e em
seu processo de formação como educadores do campo.
Percebo ainda a preocupação com o perfil de ingressos no curso entre os próprios alunos.
Em uma das conversas, realizada no dia 15/06/2016 entre alunos de turmas com número maior
de militantes, pude perceber a tensão de posicionamentos: os alunos militantes não são adeptos
a tamanha abertura, argumentando que esta enfraquece os sentimentos de luta e a identidade
militante do curso. Por outro lado, os alunos que não pertenciam a movimentos sociais, mas que,
em função do curso, passaram a conhecê-los, defendem a abertura do perfil de ingressos,
acreditando ser essa uma oportunidade de trazê-los para os movimentos sociais vinculados às
causas campesinas.
Entretanto, como dito, a pluralidade de pessoas que participam do curso não se resume às
que já participam ou às que, um dia, passarão a participar de movimentos sociais, mas também a
pessoas que não são adeptas às causas de movimentos sociais. O professor Mário comentou um
pouco sobre esses perfis presentes na turma da LAL em que realizei a observação.
Eu acho que isso vem se intensificando [modificação no perfil de estudantes do curso],
a turma que você teve e você fez a observação, pra mim é a turma que mais tem essa
característica, inclusive pessoas que tinham uma posição muito clara dentro da sala de
crítica, as concepções e as percepções de uma escola do campo, inclusive de um ponto
de vista conceitual e até mesmo um certo marco ideológico assim, tinham alunos que
por vezes, além de não se reconhecerem como do campo, ainda se diziam e se
colocavam numa posição muito de crítica a... vamos chamar... uma certa orientação,
política e ideológica que o curso tem. Bem, eu não sei como resolve isso.
Constatar que o fato dos movimentos sociais serem sujeitos centrais na construção do
curso alimentou expectativas entre professores e alunos quanto ao perfil de alunos que
ingressariam. Também nos escritos de Caldart (2012a) e Arroyo (2012, 2007) é possível notar
essa expectativa com relação ao perfil de alunos para comporem a formação de professores para
149
o campo: sujeitos que tenham algum engajamento em lutas sociais e que participem de
movimentos sociais e sindicatos, sujeitos que tenham participado do que Arroyo (2007)
denominada “tomada de consciência coletiva”, que faz com que esses sujeitos sejam
questionadores e que se afirmem junto às suas identidades coletivas, ao saberes e culturas
presentes no campo.
A busca por esse perfil converge para a própria concepção que o projeto de Educação do
Campo tem, não apenas de educação, mas de sociedade. Como nos diz Caldart (2012), a educação
do campo não nasce de uma crítica à educação, mas de uma compreensão Outra de sociedade
que busca romper com a exploração e negação do Outro, entendendo a escola e as universidades
como importantes lócus a serem disputados para a construção desse Outro projeto de sociedade
pela construção de um conhecimento que rompa com o projeto hegemônico.
A escrita de Molina (2015) nos é esclarecedora quanto à relação do perfil de ingressos no
curso e o desenvolvimento da Educação do Campo.
É a inserção concreta nas lutas pela terra; pela manutenção dos territórios; pelo não
fechamento e pela construção de novas escolas; pela não invasão do agronegócio nos
assentamentos; pelo acesso à água; pela promoção de práticas agroecológicas e pela
garantia da soberania alimentar, enfim, por tantos e tão relevantes desafios concretos
que enfrentam os camponeses, que, podem, verdadeiramente, dar sentido à concepção
e ao perfil de educadores do campo, dignos deste nome, para o qual foi concebida a
proposta de formação das Licenciaturas em Educação do Campo.. (2015, p. 165)
Não obstante, em um dos meus primeiros dias de observação, anotada em meu diário de
campo no dia 05 julho 2016, a aluna Bianca, durante uma conversa, disse se sentir desconfortável
com tamanha pressão vinda dos professores para que os alunos se tornassem militantes. Perguntei
a ela como isso se dava; ela me disse morar em área indígena, mas não se reconhecer como tal,
já foi motivo de tensões, como no fato de alguns professores dizerem que ela sairia do curso se
reconhecendo/preocupada com as questões indígenas.
Além disso, Bianca narrou um episódio ocorrido em sua cidade onde, segundo conta, um
grupo de indígenas havia entrado em uma fazenda e, além de quebrar algumas partes da
propriedade, fizeram um churrasco com os animais que lá estavam. No intuito de entender um
pouco mais sobre sua narrativa, perguntei a situação da fazenda e sobre quem eram esses sujeitos
que ali entraram, se ela os conhecia. Fui interrompida. Antes que eu terminasse de falar, ela disse
que o nome que ela dava a isso era roubo, que ela não defendia ladrões e não se reconhecia junto
a eles. Pela sua exaltação, percebi que o assunto da conversa a incomodava de forma particular
e optei por encerrá-la.
150
Como descrito por Dussel (1977), a dominação se transforma em repressão quando o
oprimido tenta buscar algum meio de libertar-se da opressão que sofre, mas a pressão social o
oprime e o chama de “incivilizado”. Assim, ocorrerá sempre quando o oprimido tentar se libertar
da situação que está enfrentando de forma a promover a ruptura com o padrão de poder, porque
as normas culturais introjetadas ensinam que aqueles sujeitos estão agindo de forma “desordeira”
e “bárbara”.
Tanto na fala do professor como na conversa com Bianca é possível inferir que a
hegemonia presente no curso faz com que os sujeitos presentes em sua construção não demandem
a construção de um saber Outro para realizarem a sua formação como educadores do campo;
distanciam-se assim de conhecimentos que busquem uma emancipação do Outro, aproximando-
se da inclusão do Outro no Mesmo.
Na contramão da perspectiva emancipatória passa-se, por vezes, a ter como demanda no
curso de um conhecimento que adapte os movimentos sociais ao padrão de poder e a uma
pedagogia de característica funcional, que retirem esses sujeitos da sua situação de “rebeldes”,
colocando-lhes na condição de civilizados. O Outro é, portanto, como o diferente, o mau, aquele
põe a unidade em perigo, como descrito por Dussel (1977), e assinalá-lo e inseri-lo no sistema é
necessário para que a ontologia possa descansar em paz.
Distanciando das perspectivas até aqui apresentadas sobre o porquê da escolha desses
sujeitos pelo LeCampo, o aluno Felipe é enfático ao dizer que a sua escolha pelo curso se deu
por ser um curso voltado para a licenciatura em Educação do Campo. Ele retira o foco do curso
da sua área de especificidade e ressalta ser um curso voltado para o campo.
FELIPE : Escolhi pelo fato de ser licenciatura em Educação do Campo. A nossa
formação é em licenciado... Licenciatura em Educação do Campo. Mas, numa área
específica que é a Língua, Arte e Literatura. É.. Aqui, o curso eu conheci, o curso,
através da minha irmã e por causa também que ela já estava no curso, e através em 2012,
quando eu participei de um encontro em 2012 na FETAEMG da juventude que a
professora Isabel estava lá falando sobre o curso, foi... eu me interessei mais a fazer o
curso e conheci como realmente funciona o curso. Então quando eu cheguei aqui eu já
sabia tudo como funcionava o curso.
O primeiro ponto de distanciamento da resposta de Felipe às demais está na sua
vinculação a eventos realizados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de
Minas Gerais, a FETAEMG. Entre os alunos que participaram da roda de conversa, Felipe é o
único que já entrou no curso possuindo forte vinculação com sindicatos41 em seu município de
41 Ver quadro de categorização dos alunos que integram a roda.
151
moradia, o que nos permite inferir sua identificação com a proposta do curso, aproximando-se
ao perfil descrito por Molina (2015).
Para Molina e Sá (2013), a presença de um perfil militante é, também, importante para o
curso, porque tenciona as relações não apenas com a Universidade, mas com os docentes que os
formam, cobrando a realização de “uma outra abordagem sobre o conhecimento e sobre a escola
nas suas relações internas e com o contexto onde ela se insere. ” (2013, p.417)
Na fala do professor Mário essas tensões não parecem ocorrer com a turma do LeCampo,
por perceber nos alunos do curso um reconhecimento e uma legitimidade muito forte do espaço
da Universidade
Primeiro porque existe a legitimidade da formação que os alunos vêm buscar aqui, ela
já está dada porque eles adoram a UFMG. Eles acham que aqui é o suprassumo do
reconhecimento acadêmico. Teve vários alunos falando isso aquele dia, ne? Como é
que estudar na UFMG, isso dá... um selo de qualidade.
O segundo motivo apresentado por Mário está na proposta de escolarização vinda do
projeto de Educação do Campo: há uma aposta na escola, o que facilita a relação de formação
desses professores, sendo diferente, segundo ele, da sua atuação como professores do curso de
Formação Intercultural Educadores Indígenas (FIEI), onde ele diz perceber distanciamento e um
desconhecimento da UFMG como os educandos do LeCampo possuem.
Eu acho que um pouco do que a escola do campo se propõe é criar uma identidade pra
escola do campo que tenha como perspectiva de formação e de carreiras escolares que
sejam próprias para o campo, mas que seja marcadas pela lógica da escolarização.
Enquanto os indígenas não. Eles não tão aqui pra isso, entendeu?. Eles querem se
apropriar da linguagem acadêmica, da linguagem cientifica pra.. é se posicionarem
contra hegemonicamente. Eles querem usar as armas dos brancos contra os brancos. E
eu acho que as populações do campo esse contra não é tão contra assim, entendeu? É
contra numa perspectiva de classe assim, contra no sentido de vamos lutar contra o
latifúndio, contra as formas de expropriação de homens e mulheres do campo, mas
vamos lutar por uma escola escolarizada, a gente acha que a escola é a saída de alguma
forma, entendeu? Enquanto as populações indígenas têm uma certa desconfiança disso,
a escola é algo doutrinador.
As teorizações de Caldart (2012, 2013) sobre a da Educação do Campo e seu próprio
lema, “Educação do campo, direito nosso dever do Estado”, criado pelos movimentos sociais,
nos remetem a aproximações com a perspectiva trazida pelo professor Mário. Há, de fato, uma
luta dentro dos movimentos sociais e do projeto de Educação do campo por uma escolarização e
pelo acesso ao conhecimento científico. Entretanto, como descrito por Arroyo (2014) e Zanardi
(2012), há uma busca e uma disputa pela construção de um conhecimento escolar Outro que
152
nasça junto à construção de um projeto alternativo de sociedade e que seja capaz de competir
com a totalidade em que se formou o capitalismo e os discursos.
A escola é reconhecida como importante meio para a construção desse Outro projeto de
sociedade, logo, disputar os sentidos da formação dos professores para o campo é disputar os
sentidos das escolas do campo. Possibilitar uma formação de professores do campo crítica é
possibilitar uma formação de sujeitos que analisem os processos históricos que lhes negaram o
direito de saberem-se e de se apropriarem da palavra que realiza a leitura do mundo.
Como descrito em Dussel (1977), essa apropriação da palavra só se realiza quando há
uma relação face a face, quando não se tem processos de formação que buscam subsumir o Outro
dentro do projeto do Mesmo de maneira totalizante e colonizadora. Pensar a formação de
professores do campo é romper com a lógica da totalidade presente na universidade, como aquela
que arroga a si a universalidade do conhecimento para a “salvação” dos sujeitos que dela fazem
parte, entregando aos sujeitos nela presentes a mercadoria chamada “conhecimento”, mesmo
acreditando na lógica da escolarização.
Assim, o conhecimento que forma o educador do campo é aquele que permite a ele dizer
a palavra, como descrito em Freire (2012), e não apenas esgotar o sentido da educação em
processos mecânicos de escolarização. A formação de educadores do campo requer que a palavra
dita seja crítica e libertadora, que rejeite as construções hegemônicas que compreendem os
sujeitos do campo como “incivilizados” e “baderneiros”, mas que seja palavra problematizadora
e que, mesmo sendo mediada por conceitos científico-tecnológicos universais, não impossibilite
a contextualização da palavra pronunciada.
Dizer a palavra é central nessa perspectiva Outra de construção da formação de
educadores do campo, porque rompe com o silencio em que os seres do campo têm sido
colocados historicamente, permitindo-lhes pensar e dizer o novo através de processos que findam
com a colonialidade a qual seus corpos e suas ideias foram enquadrados e subjugados
historicamente. Para existir humanamente, é necessário dizer a palavra, pronunciar o mundo e
modificá-lo.
Isso transcende, conforme descrito por Walsh (2011), fazer da escola processos de “maior
escolarização”, para que as pessoas sejam incluídas na lógica do mercado e possam nele ser bons
produtos, ou de pensar como incluir “os diferentes” dentro de uma sociedade exclusiva por
essência. O projeto de educação bancário corrobora essa perspectiva, subsumindo o Outro dentro
do Mesmo; já o projeto libertador faz com que as pessoas se tornem mais conscientes, livres e
humanas, construindo em coletivo Outro projeto de educação, de formação docente e de
sociedade.
153
5.5.2 O que é ser educador do campo para esses sujeitos?
Compreendido que as escolhas desses sujeitos para a realização do curso estavam
vinculadas mais a um sentimento de realização pessoal no ingresso no ensino superior do que a
ligações com movimentos sociais, nos questionamos como esses sujeitos veem a sua atuação
como professores do campo. Quais os sentidos em ser professor do campo?
Um dos sentidos recorrentemente descritos pelos pesquisados está em ensinar aos sujeitos
do campo a “boniteza em ser do campo”: ensinar a eles a valorização de suas culturas, crenças e
linguagens, problematizando junto a eles a compreensão da cidade como um lugar superior ao
campo.
É vasta a literatura sobre educação do campo que converge para essas perspectivas, afinal,
a luta é por uma educação que seja do e no campo. Essa perspectiva liquida o projeto moderno,
que insiste em uma dimensão única de civilização (a urbana). Buscar construir a permanência
desses sujeitos no campo não está atrelado a uma dominação “às avessas”, que obrigaria esses
sujeitos a ficarem no campo, mas possibilita pensar a resolução de problemas de forma coletiva
e de buscar construir outra lógica para o campo e para a permanência nele.
Pensar a permanência desses sujeitos no campo, como elaborado pela Educação do
Campo, é problematizar as relações do Brasil como um país eminentemente agrário-exportador,
que se sustentou sobre as bases do latifúndio e da escravidão. É problematizar a noção do campo
como lugar do atraso e buscar elucidar os contornos históricos e as consequências do padrão de
poder moderno colonial sobre os sujeitos, sobre o acesso a seus direitos e em seus sentidos de
mundo. É necessário reconhecer a colonialidade do ser e do saber, desmitificando a naturalização
dos discursos totalizantes e desvelando as relações de poder que existem nele, para que se
empreenda uma postura decolonial de crítica a essa opressão e se permita a construção de planos
de existir humanos pautados em outras relações epistêmicas e econômicas.
A permanência não é entendida pela necessidade de alocar-se dentro do projeto
hegemônico como coadjuvante, mas da construção de outro mundo possível. Ser incluído seria
como introduzir o Outro no Mesmo, o que inviabilizaria a construção de Outro projeto de
sociedade. Assim, a luta não está na inclusão, mas na transformação.
Entretanto, por vezes, o que percebemos nas respostas dos sujeitos pesquisados é uma
estreita relação com a lógica da inclusão.
154
LIRA: Pra mim o que é ser e a importância de ser um educador do campo, além de levar
uma educação de qualidade para aquele sujeito que tive lá no campo. É tenta mostrar
para eles, que o mundo não é... que a beleza do mundo não é sair do campo e ir para a
cidade. (...) E também juntamente a importância de me tornar uma professora do campo
é levar isso para alunos de um jeito que eles entendam a importância de permanecer no
campo, né? E preservar a cultura, né? Que eles trazem de suas famílias, e não ficar
apenas na visão de algo ruim que o campo é atrasado, que o campo não vai fazer com
que ele se torne um sujeito bem sucedido na vida.
PESQUISADORA: E como que o professor pode ajudar eles a serem sujeitos bem
sucedidos na vida?
LIRA: E nada mais do que um professor, né? Do campo, pra levar isso pra eles. Porque
talvez um colega ou alguém da família fala e aí eles vão e ficam com isso pra eles. Ai
as vezes se o professor fala ó... eu também fui... Sou filha de agricultores, consegui fazer
a faculdade e tô aqui com vocês e vocês também podem conseguir. Né? Pode ser um
médico veterinário voltado para o campo, pode ser uma psicóloga para atuar no campo
na área da educação, então o campo é algo maravilhoso e eles precisam de alguém que
reforce isso pra eles.
Como descrito por Freire (1967) há vários tipos de consciência. A consciência transitiva
ingênua é aquela em que o sujeito já percebe a existência de uma contradição social, contudo,
ainda tem ações no campo do conformismo. Afinal, compreender a consciência não é apenas
perceber os modos de ver o mundo, mas suas formas de agir sobre eles.
É interessante perceber que a fala de Lira sobre ser educador do campo se distância das
lutas e das dificuldades apresentadas para a sobrevivência no campo, aproximando-se quase
ingenuamente de sentidos vinculados à “beleza do mundo” e à “preservação da cultura”, porque
romantiza as relações no campo, sendo assim, não consegue ser crítica em face dos problemas
existentes no campo, distanciando-se da construção de uma educação que seja autônoma.
Os sentidos por ela atribuídos a “ser bem-sucedido na vida” estão amparados em sua
própria história: uma moça filha de agricultores que conseguiu fazer faculdade. Isso a possibilita
permanecer no campo, mas distante do trabalho com a terra. Assim, o educador do campo passa
a ser exemplo de alguém que se sobressaiu no meio do campo, porque nele permaneceu, mas
longe do trabalho na lavoura.
Como descrito por Quijano (1995, 1992), o padrão de poder colonial não se consolida
apenas junto à dominação no campo do poder econômico, mas também na construção de um
discurso hegemônico da hierarquização e construção de um único sentido de trajetórias de vida
que, quando naturalizadas, passam a ocultar as outras narrativas; quando não conseguem ocultá-
las, passam a inferiorizá-las.
Mesmo que a fala de Lira traga a necessidade do retorno ao campo, o sentido da existência
do campo encontra-se fora dele, na aquisição de algo que possibilite àquele sujeito permanecer
ali com uma condição distinta dos demais sujeitos, distanciando-se dos ideais políticos da
155
Educação do Campo, dos princípios de educação propostos pelo MST e da própria concepção
ampliada de educação construída pelo MST.
Um processo pedagógico que se assumo como político, ou seja, que se vincula
organicamente com os processos sociais que visam a transformação da sociedade atual,
e a construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais sejam, a
justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e socialistas.
(DOSSIÊ MST ESCOLA, 2005, p.61)
O mito sacrifical da negação do Outro, proposto por Dussel (1993) para analisar as
relações de negação do Outro colonizado, pode ser estendido à nossa análise. Em comparação,
a função do educador do campo seria conduzir os alunos do campo à inclusão por meio da
educação, garantindo a eles permanecerem no campo, mas com uma posição distinta daqueles
que permaneceram trabalhando na terra. O Outro continuaria a ser negado mediante outra forma
de racionalidade que o libertaria e o conduziria a uma adaptação social.
Nessa perspectiva, a racionalidade totalizadora presente na figura do professor não
conduz a processos dialógicos de relação face-a-face, mas a processos individuais e de doação
de saberes que possibilitariam a esses sujeitos se incluírem no sistema.
Outros alunos também se aproximaram da compreensão trazida por Lira ao serem
questionados sobre a importância em ser um educador do campo
ANA: Principalmente, por que a maioria dos pais dos alunos do campo não possui a
formação escolar, a maioria tem o primeiro grau incompleto outros não chegaram a
estudar, então é um trabalho até de... de.. de... Consciência da comunidade, porque às
vezes os pais que não concluíram nem o primeiro grau pra eles os filhos concluírem ou
chegarem no ensino médio já formou, já está pronto. Eu falo isso, por experiência
pessoal. Eu tive sim o incentivo de estudar, mas depois que eu conclui o ensino médio
meus pais não incentivaram tanto, e isso acontece ainda nas comunidades.
GABRIELA: Eu acho que o maior desafio de nós como educadores do campo, é...
porque a gente vê... E eu acredito que todo mundo passou por isso... no ensino médio,
principalmente no ensino médio, que é a fase decisiva de que você vai fazer... ou se
você vai fazer faculdade ou se vai trabalhar fora ou se vai pra cidade grande. Acho que
é tentar levar pra esse alunos que tem forma deles permanecerem ali com vida digna,
eles não, nós como sujeitos do campo, temos direito como qualquer um outro.
João: É ensinar que o campo não é isso... O campo é muito mais que isso, o campo é
um lugar como uma cidade. Entendeu? E não é porque tá no campo também que não
pode fazer uma faculdade, não é porque tá no campo que ele não pode ser um
empresário, ai é isso.
A dificuldade apontada por Ana pode nos levar a reflexões sobre a relação da comunidade
e escola do campo: como os professores do campo podem motivar os alunos a irem à escola?
Como podem se aproximar dos pais para que eles levem os filhos à escola? Quando respondidas
através da relação dialógica entre comunidade, professores e escola, essas perguntas podem
156
conduzir a processos decoloniais de existência da escola do campo, porque cessa a violência que
impede o Outro a falar e se propõe a ouvi-lo, construindo com eles uma educação
verdadeiramente do campo, porque feita com eles.
Como descrito por Freire em pedagogia da autonomia
Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são
saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respeitosa aos outros e, de
quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro
como objetivo da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética
da abertura, seu fundamento político sua referência pedagógica; a boniteza que há nela
como viabilidade do diálogo. (FREIRE, 1996)
Todavia, o direcionamento que Ana confere à sua fala não está voltado ao diálogo com a
comunidade. Parece já existir um sentido fixado à escola do campo, e esse sentido deve ser
transferido aos pais, familiares e aos próprios alunos do campo: a universidade.
Compartilhando de uma perspectiva semelhante, Gabriela nos traz que, em sua
concepção, o maior desafio da educação do campo está em auxiliar os jovens do ensino médio a
fazerem boas escolhas e estarem cientes de seus direitos. Entretanto, essas escolhas se resumiriam
a apenas duas possibilidades: ao fim do ensino médio, resta ir para a cidade ou realizar um curso
superior; não há, entre suas opções, a possibilidade da permanência como trabalhador do campo.
Assim, a permanência com “vida digna” no campo se resume a ter conhecimento dos seus direitos
e das possibilidades de realizar um curso superior “como qualquer outro” tem direito a realizá-
lo.
Há também na fala de João a presença marcante da importância da inclusão do Outro
camponês dentro do projeto de mesmidade capitalista. Como descrito em sua fala, “não é por
morar no campo que não se pode ser um empresário ou fazer uma faculdade”. Ser empresário e
ter curso superior seriam meios de se distanciar da lógica do trabalho no campo com a terra e se
manter no campo com certa distinção social.
Nas três falas, há uma fixação muito forte de sentidos que se aproximam à lógica de uma
interculturalidade funcional e se distanciam de uma relação dialógica de educação. Como
descrito por Walsh (2007), na lógica funcional há fortes traços de integração dos grupos: a lógica
moderno/neoliberal e pouca preocupação em compreender os processos que os produziram como
marginais ao sistema. Não há uma discussão trazida pelos sujeitos pesquisados sobre as
desigualdades que geraram as distorções de oportunidades da cidade para o campo para o acesso
ao ensino superior, ou qualquer questionamento mais amplo sobre o acesso ao ensino superior.
157
Outrossim, é necessário ressaltar que eles reconhecem não haver uma espontaneidade do
sistema que os faria ingressar nele. Como descrito por Gabriela, é necessário “saber de seus
direitos” para conseguir acessá-los, demonstrando a consciência das disputas de poder e de
fronteiras políticas que existem para assegurar a manutenção da hegemonia capitalista, e até
mesmo a sua inclusão neles.
Como traços da interculturalidade funcional, há uma exaltação do indivíduo e de seus
méritos para conseguir permanecer no campo junto a um novo status que não seja o de
camponeses. O termo multicultural, como descrito por Walsh (2007), nos remete a uma aparente
ruptura com a hegemonia, uma vez que se aceita a inserção da língua, de partes da cultura e da
organização desse Outro no seio da hegemonia, não para romper com as estruturas, mas para
administrar a diversidade, evitando sua radicalização e a ocultação dos conflitos e lutas sociais.
Ser educador do campo, na perspectiva apresentada por esses sujeitos, se aproxima da
noção freireana de educação bancária, na medida em que mantém os sujeitos educandos imersos
no mesmo nível de consciência ingênua e reproduz a acriticidade, reprimindo a curiosidade e
corroborando a construção de uma educação que se distancia da problematização e da leitura do
mundo.
Também se aproxima da noção da ontologia pedagógica formulada por Dussel (1977), na
qual se critica a ação dos sujeitos professores serem tidos responsáveis por depositar nos sujeitos
do campo os saberes necessários para se completarem devido as suas faltas e atrasos, e se
incluírem no projeto de mesmidade, não mediante a uma nova racionalidade insurgente, mas a
partir de uma racionalidade castradora, dominadora, moderna e colonial.
A Educação do Campo, como conceito que nasce da prática e das demandas dos sujeitos
do campo organizados em coletivos, destaca-se por pensar a educação de forma vinculada ao seu
meio que, conforme Caldart (2013, p.263), concebe intencionalidade educativa na construção de
novos padrões de relação social, novas formas de produção, outros valores e compromissos
políticos.
Estar sempre atento a esses objetivos da Educação do Campo é pertinente por
compreendermos que a luta pelas licenciaturas não é um fim em si mesmo, mas se constitui em
um meio que propicia o acúmulo de forças para a construção de Outro projeto de sociedade e de
campo, no qual se rompa com o padrão moderno de colonização e se permita visualizar e
enfraquecer as relações coloniais que subjugam os saberes dos povos do campo.
Em dissonância às falas desses sujeitos, estão os sentidos atribuídos por Felipe para ser
educador do campo
158
FELIPE: Logo quando eu já entrei, eu já... uma coisa que já veio de antes é ser um
educador do campo... eu acho assim... é... ter a capacidade de... de... é... derrubar os
muros da escola igual a gente fala. Porque muitas vezes, a escola ela tá muito separada
da vida do aluno. Isso aí é algo assim... que... nós como educadores do campo temos
que estar atentos. O aluno tá lá na escola, mas muitas vezes, lá na casa dele está passando
dificuldade, igual a própria comunidade que ele participa a questão da... do... da escola
numa comunidade tradicional quilombola mesmo, ela de forma nenhuma pode ta
separada dessa relação que tem na comunidade, da cultura da comunidade, é.... e falar
de educação do campo também, é valorizar essa organização que tem também na.... nas
comunidades.
Essa perspectiva apresentada por Felipe , além de se distanciar das demais, aproxima-se
de um dos desafios apresentados por Molina para a expansão da educação nas licenciaturas em
educação do campo.
Promover e cultivar um determinado processo formativo que oportunizasse aos futuros
educadores, ao mesmo tempo, uma formação teórica sólida, que proporcionasse o
domínio dos conteúdos da área de habilitação para a qual se titula o docente em questão,
porém, extremamente articulada ao domínio dos conhecimentos sobre as lógicas do
funcionamento e da função social da escola e das relações que esta estabelece com a
comunidade do seu entorno. (...)A proposta e o desafio é realmente materializar práticas
formativas durante o percurso da Licenciatura em Educação do Campo que sejam
capazes de ir desenvolvendo e promovendo nos futuros educadores as habilidades
necessárias para contribuir com a consolidação do ideal de escola edificado por este
movimento educacional protagonizado pelos camponeses nestes últimos 15 anos: uma
Escola do Campo (MOLINA, 2015, p. 153)
A fala de Felipe busca associar três critérios a escola do campo: a cultura da comunidade,
seus problemas e suas formas de organização. Essa construção de educador do campo vinculado
às questões do campo se articula, como demonstrado por Molina (2015), à compreensão da
educação do campo construída ao longo dos mais de 15 anos de construção da Educação do
Campo. Pensar uma escola que rompa com os muros da escola é legitimar a construção de um
processo de formação de professores diferenciada, e construir uma educação do campo que não
aceita a inclusão nos processos de Mesmidade nem as marcas da colonialidade dos saberes desses
sujeitos do campo.
A luta dos movimentos sociais pela ocupação das políticas públicas voltadas à educação
e pela construção de políticas específicas às lutas do campo está centrada, como descrito por
Arroyo (2007), na luta pela terra. Não em uma terra abstrata, mas na terra enquanto território de
produção da vida, cultura e de identidade que se vincula ao lugar do campo.
Em comunhão com o primeiro princípio filosófico do MST, “Educação para a
transformação social”, a educação que rompe com os muros da escola é aquela que possibilita
uma educação com sujeitos capazes de intervir na sociedade, que pensem a construção de um
espaço social de transformação e possibilidades, não de determinismos.
159
Essa aproximação da escola e da comunidade transcende a idas de pais e mães em
reuniões para ouvirem falar sobre o rendimento do seu filho ou filha; essa aproximação que
derruba os muros da escola, pensada e gestada dentro dos movimentos sociais e base para a
formulação de políticas públicas diz de uma apropriação, por parte desses sujeitos de suas
histórias, que problematiza a totalidade histórica colonizadora, que ora os oculta e ora os coloca
como incivilizados.
Assim, o educador do campo se distancia e rompe com a compreensão única de sentidos
empregados à escola e à sua prática docente, porque agora se pauta não na condução do aluno à
vida acadêmica, mas nas possibilidades que também podem inclui-la; autônomo e crítico, o aluno
do campo consegue discernir sobre suas escolhas.
Complementando a perspectiva trazida por Felipe, a fala de Pedro é bastante significativa,
trazendo maior sensibilidade em suas impressões sobre o vínculo entre escola e campo.
PEDRO: É, é... professor, que atua no campo, ele é muito mais do que aquele professor
que reproduz conhecimento. Mas que faz a mediação entre o teórico com a prática e faz
com que o aluno produza o seu próprio conhecimento. Como é que aquele aluno vai
usar aquilo que ele aprendeu dentro de uma sala de aula é... no seu cotidiano. É... ele
também vai buscar trazer para a escola a comunidade, porque a escola em si ela já da
abertura a participação da comunidade, desde o PPP até nas reuniões de pais e mestres.
A fala de Pedro aproxima-se da perspectiva apresentada pelo MST (1995) na sua
descrição sobre os princípios pedagógicos da educação, que, já em seu primeiro aspecto, ressalta
a importância da relação entre a prática e a teoria. Há assim uma superação da escola como o
lugar de depósito do conhecimento teórico para posterior prática, e um rompimento do professor
como aquele que passa as verdades e os conhecimentos “superiores” aos alunos. Existem
processos sociais que são formativos, tanto junto a prática do professor para a construção do
conhecimento a ser discutido em sala de aula, quanto junto ao aluno do campo, que passa a
ressignificar esse conhecimento frente às suas práticas sociais.
O saber articulado pelo educador do campo não pode, portanto, ser um saber que se
distancia desse Outro, não podendo se dar no campo da Mesmidade. Se assim o fosse, lhe
impossibilitaria de articular junto a sua prática. Segundo nos conta Zanardi (2013), esse é o saber
contextualizado, ou seja, aquele que dialoga com a experiência não só de educadores e
educandos, mas da comunidade.
Esse distanciamento da escola com a comunidade pode ser percebido de forma muito
clara na fala de Bianca, apesar de não ser esse o direcionamento empregado por ela para concluir
a sua fala.
160
BIANCA: Porque eu como educadora do campo, eu me deparo muito com aquele aluno
cansado, sabe? Que ele tem que trabalhar, tem que ajudar o pai na roça. E ai quando ele
faz, termina o nono ano, ai fala; não não vou estudar mais não! Tenho que trabalhar! E
aí é uma luta pra você conseguir, que aquele aluno permaneça na sala de aula, todo dia.
Chegou o caso do... da... dos professores irem na casa conversarem com os pais, eu
encontrei o aluno na rua e perguntei, mas porque você não ta indo pra escola? Porque
minha mãe falou que eu não preciso estudar mais não. Que eu tenho que ajudar meu
pai. E aí você vai na casa, trabalha, conversa, com o pai, né? Olha é muito importante...
ele diz: não é nada! Não é importante não! É.... ele tava estudando e ai cortou o... cortou
o bolsa família, também não mandei ele mais não. Mas, não gente! A importância de
você manter o seu filho na escola não é para você receber de um programa social, um
benefício, isso aí você ta buscando futuro pra seu filho. Né? É muito... é assim... um
trabalho que se você não tiver amor você não faz.
A necessidade de os filhos ajudarem no trabalho com a terra junto à família, a evasão da
escola e uma aparente “falta de sentido” no papel da mesma frente à comunidade parecem ser
pontos centrais trazidos na fala de Bianca ao caracterizar a sua prática docente. Entretanto, a
conclusão a que ela chega na análise desses fatores distancia-se daquelas empregadas por Felipe
e Pedro, que, em síntese, se resume ao papel da escola junto à comunidade, não em uma
perspectiva salvacionista, mas em uma perspectiva dialógica de relação do conhecimento com o
meio.
A perspectiva trazida por Bianca ressalta a importância do amor pela escola e pela sua
profissão mesmo com os problemas percebidos. Como descrito em várias oportunidades por
Freire, é necessário que o ato de educar seja amoroso:“Amor é um ato de coragem (...) Onde quer
que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de
sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso é dialógico. ” (2014, p. 45)
Entretanto, a fala de Bianca não parece se vincular a essa perspectiva trazida por Freire
(2014), mas se aproxima de um amor missionário, que reconhece e aceita os problemas existentes
no campo, numa perspectiva ingênua de fatalidade e de impossibilidade de modificações.
Portanto, é um amor que não busca pelo diálogo sua resolução, mas que compreende os
problemas como inexoráveis.
Perguntamos aos alunos se eles se sentiam preparados para atuarem em sala de aula, se o
curso lhes possibilitava serem educadores do campo, considerando todas essas perspectivas e
sentidos que eles já haviam trazido em nossa conversa, embora todos já estiveram em sala de
aula seja atuando pelo PIBID ou sendo regentes de turma.
As respostas de Pedro e de Ana destacaram-se das demais, por trazerem pontos de
destaque à organização do LeCampo.
161
PEDRO: Eu acho assim, que em questão de formação, devido a ser um curso que ele é
contextualizado é... com a cultura camponesa, e com essa questão da defesa das políticas
públicas é que, na maioria das vezes a gente não vê como discussão nas instituições de
ensino é de garantir a instrução básica gratuita e de qualidade a esses alunos do campo.
Ser um “curso contextualizado” remete-nos aos escritos de Arroyo (2007) sobre a
importância de cursos de formação de professores do campo se distanciarem de uma perspectiva
generalista, mas que verticalizem as problemáticas reais e as contradições existentes dentro das
escolas do campo. Rompe-se com a lógica do conhecimento neutro e universal e se constrói um
conhecimento necessário a qualquer grupo, apropriando-se de um conhecimento que dialoga com
os problemas e possibilita soluções.
A fala de Pedro vai ao encontro da perspectiva trazida por Molina (2015). Segundo a
autora, um dos desafios contínuos da Educação do Campo está em formar educadores que sejam
capazes de questionar a realidade das escolas do campo e que indaguem a realidade, buscando
construir elementos que propiciem a compreensão do porquê das escolas do campo estarem sendo
fechadas, negando a esses sujeitos uma educação no campo e a construção de uma Educação do
Campo.
Já a fala de Ana é marcada pelos sentidos coletivos encontrados no campo junto a sua
organicidade
ANA: Eu destaco a organicidade do curso. Porque ajuda muito no viver coletivo porque
ser educador também é lidar com a diversidade e com o viver coletivo. Então eu destaco
a organicidade a forma que tem, na união da turma em GT, de quando surge um
problema a forma coletiva de resolver, então esses é um dos diferenciais. Porque na
iniciação básica, não generalizando, mas existe um certo individualismo. As vezes a
gente não vê a pessoa tão preocupada com o coletivo e com o social. É só o aluno no
individualismo, e a formação do Le Campo quebra essa barreira do individualismo.
O conceito de organicidade nasce junto ao MST e, segundo Bahniuk e Camini (2012, p.
334), “significa o movimento orgânico presente em suas estruturas organizativas e as relações
entre elas”. No LeCampo, a organicidade se apresenta como uma tentativa de transpor as práticas
sociais já consolidadas nos movimentos sociais, que abrange planejamento e condução da
organização para a proposta pedagógica do curso. Essa prática foi direcionada ao curso na
primeira turma do LeCampo, que, por sua forte vinculação aos movimentos sociais, conseguiu
transpassar esse modelo.
162
Atualmente a organicidade do LeCampo se divide nos seguintes Grupos de Trabalho
(GT’s): cultura42, mística43, cuidado44, comunicação45, formatura46, finanças47 e disciplina48.
Cada turma, portanto, dispõe de sete GT’s, que se encontram semanalmente para resolverem as
demandas que lhes cabem; devem também se encontrar semanalmente com os GT’s
correspondentes das outras habilitações por área. Dos encontros por GT’s que incluem outras
turmas saem não apenas os planejamentos, mas também a elaboração de relatórios e balanços
das ações realizadas, que são socializadas a todas as turmas em plenária.
Ainda, segundo as autoras Bahniuk e Camini (2012), nas escolas do campo próximas aos
movimentos sociais é comum utilizarem a organicidade do movimento como base de organização
das escolas
Na escola, a Organicidade refere-se às várias formas de organização vivenciadas pelos
educadores e educandos, bem como à relação da escola
com a comunidade acampada e as instâncias do Movimento [...] exercita-se a
organização e aprende-se a desenvolver a coletividade [...]. Os tempos educativos, como
tempo aula, tempo formatura, tempo auto-organização, tempo trabalho, entre outros,
desafiam a escola a mover-se, estimulando formas mais participativas de gestão. Estes
tempos são uma tentativa de buscar desenvolver a formação humana em todas as suas
dimensões: cognitiva, política, estética, afetiva [...]. (BAHNIUK E CAMINI, 2012, p.
336).
É curioso perceber na fala de Ana, que apesar dela destacar a importância da organicidade
como importante elemento formador, ela não trouxe exemplos de vivência prática ou de
possibilidades da utilização da organicidade para contribuir com sua prática. Dessa forma, sua
pontuação sobre a importância da organicidade para romper com o individualismo fica meio
desconectada de sua atuação docente. Entretanto, compreendemos que a preocupação de Ana em
romper com sentidos individuais da educação dialoga com o nascimento da organicidade
enquanto base de organização das escolas.
42 O GT de cultura é responsável por organizar as noites culturais que ocorrem durante o TE aos sábados e na
divulgação e viabilização de idas a eventos que ocorrem em Belo Horizonte. 43 O GT de mística é responsável por organizar o desenvolvimento das místicas se atentando a questões como quando
elas irão ocorrem, quem serão os responsáveis pela realização e quantas vezes por semana. 44 O GT de cuidado ocupa-se do cuidado com a saúde das pessoas da turma, principalmente enquanto estão no TE.
Caso seja necessário levar ao médico, fazer exames ou simplesmente comprar remédios o GT torna-se responsável. 45 O GT de comunicação aproxima-se ao de cuidado, sendo responsável por auxiliar as pessoas que passam por
algum tipo de problema no curso no decorrer no TE que o afasta das atividades e das pessoas do curso, como por
exemplo, saudades de casa. 46 O GT de formatura como o próprio nome sugere se responsabiliza por cuidar das questões relativas a formatura
da turma 47 O GT de finanças é responsável por arrecadar e gestar o dinheiro arrecadado para demandas do curso, como a
formatura, alguma despesa na área de saúde que algum aluno não consiga pagar. 48 O GT de disciplina é responsável por cuidar da disciplina dos alunos em sala de aula, advertindo em caso de
conversas paralelas, por exemplo.
163
5.5.3. A alternância pedagógica
Dois alunos, Júlia e João, apontam a Pedagogia da Alternância como fundamentais em
seus processos de formação de educadores do campo
JÚLIA: Uma forma interessante que eu acho é a forma de alternância. Porque você vem
aqui você fica um mês, você pega o conteúdo e você... como é que eu falo? Aprende
aqui na Felipe ria, aí você vai e fica seis meses tentando desenvolver o que você
aprendeu aqui em prática, lá no campo.
JOÃO: A alternância sabe, porque a gente teve uma disciplina com a Isabel, explicando
tudo de como foi construída a pedagogia da alternância e aí a gente faz esse intermédio
ai de TC e TE. Pra gente saber o que faz lá e o que faz aqui e isso é muito importante
pra nossa formação como educação do campo. No mesmo tempo que você está aqui na
faculdade tendo aulas e adquirindo seu conhecimento e tem um momento que você vai
tá lá no campo vendo a realidade você vai tá podendo pegar esse conhecimento que
você... você... absorveu aqui, né? Não é bem essa a palavra. Mas, ai você pode tá
pegando esse conhecimento pra poder ta desenvolvendo lá, de tá podendo observar
outras realidades lá, você sai daqui com outra visão, você chega lá com uma visão mais
crítica uma visão mais detalhada, de vários aspectos da escola e da comunidade e dos
alunos em geral.
As falas de Júlia durante a roda de conversa foram bastante pontuais, o que dificulta uma
análise mais elaborada sobre os pontos trazidos por ela, embora seja possível perceber que há ao
menos um ponto de convergência entre a fala de ambos: a noção de que no Tempo Escola você
adquire conhecimentos, e no Tempo Comunidade você o repassa à comunidade.
Apesar de João afirmar sair com uma visão mais crítica do curso, em razão da prática da
Pedagogia da Alternância, suas falas não trouxeram elementos que nos permitisse caracterizar
essa visão crítica e detalhada do campo. Como dito anteriormente, a fala de João e de Júlia
aproximam a Pedagogia da Alternância a uma formação dicotomizada. Essa perspectiva se
distancia da proposta da Alternância tanto vinculada tanto à Educação do Campo tanto aquelas
ainda utilizadas nas Escolas Famílias Agrícolas. Como descrito por Silva, em sua pesquisa
seminal de doutoramento, a concepção que se tem da Pedagogia da Alternância, quando
articulada ao campo, deve estar voltada para a
(...) valorização das experiências de alternância enquanto uma escola e uma educação
vinculada às condições de vida, interesses, necessidades e desafios enfrentados pela
população rural. Uma escola e uma educação específica e diferenciada que, enraizada
na cultura do campo, contemple no processo de formação os valores, as concepções, os
modos de vida dos grupos sociais que vivem no campo (...). Uma escola com e uma
educação que contribua para a formação humana, emancipadora e criativa da pessoa;
orientada por princípios de justiça e solidariedade. (SILVA, 2003, p. 243)
164
Apesar de João e Júlia apontarem o potencial formativo da Alternância como diferencial
em sua formação como educadores do campo, não há convergência entre suas falas e a leitura
que a proposição da Educação do Campo traz da Alternância, ou seja, distanciam-se de seu
potencial em construir um saber historicamente localizado e problematizador das situações
concretas vividas pelos povos do campo.
Em ambas as falas é muito presente a noção de “pegar o conhecimento” adquirido no TE
e leva-lo para o TC. Essa noção aproxima-se de uma lógica de assimilação dos conhecimentos
do mundo urbano, moderno e colonial pelo campo. Assim, o TC passa a ser muito mais um
espaço de prática para o deslocamento do conhecimento científico, do que um espaço para a
produção de um conhecimento Outro, que, como descrito por Maldonado-Torres (2008), propicie
a construção de um giro-decolonial dos conhecimentos a partir das tradições orais, histórias,
canções e saberes dos povos colonizados.
Negando uma metodologia espontaneísta de produção de conhecimento, a Alternância
pode proporcionar uma formação de professores pesquisadores, que, ao dialogarem com o saber
do campo e com as noções acadêmicas, produzem um saber Outro que transgrida com a noção
do campo como um ambiente que apenas se contrapõe a cidade, reconhecendo-o como lugar de
cultura e de construção de saberes que lhe é próprio, abandonando a universalidade dos
conhecimentos modernos/coloniais.
A perspectiva da Alternância pensada nesses pressupostos enfraquece os dois pontos
fundacionais e essenciais, descritos por Lander (2005), da sociedade moderna colonial. A
construção da sociedade industrial liberal, como o fim unívoco de todas as sociedades, passa a
ser contestada, uma vez que o Campo passa a ser reconhecido como produtor de culturas e de
conhecimentos, e não como um lugar inferior que precisa da lógica industrial para se civilizar e
modernizar. O segundo ponto diz da ruptura com o conhecimento universal europeu, uma vez
que o “fim” das culturas não é unívoco: formas Outras de produção de conhecimento passam a
ser compreendidas como válidas, abrindo espaço para uma pluralidade de conhecimentos.
5.5.4 Movimentos sociais e a materialidade do curso
Também perguntamos aos alunos do curso como eles viam a relação do professor do
campo com o conhecimento, e se o conhecimento tinha algum poder transformador. Nesse
momento, os alunos do curso começaram a nos contar algumas experiências, que consideram
exemplos do poder transformador do conhecimento.
165
JOÃO: Pois é, a esse respeito desse conhecimento eu acho que ele transforma, na minha
comunidade e no município de Ouro Preto em geral tem uma grande população de
jovens, ne? Que atua na licenciatura em educação do campo, ne? E depois desses jovens
entrarem na universidade que apareceu lá... nas reuniões lá... eles fizeram a criação de
uma escolinha pras crianças tipo uma pre escola, onde os jovens da licenciatura em
educação do campo são voluntários e dão aula pra esses meninos e toda semana tem,
entendeu? Então já muda a forma de tá levando esse conhecimento daqui e está levando
pra eles lá, entendeu?
A organização de alunos e ex-alunos do curso, enquanto grupo, para buscarem formas de
resolução dos problemas da comunidade, nos aponta para um sentimento de coletividade, que se
inicia no curso, mas o transcende. Os professores do curso se colocam aqui como agentes que
propõem e se articulam para a modificação de suas comunidades, rompendo com os laços do
individualismo, demonstrando uma preocupação com a negação de um direito a crianças de suas
comunidades.
Não foi contado na roda de conversa se há ações paralelas à atuação dos alunos para
exigirem da prefeitura educação escolarizada ou creche para essas crianças. O reconhecimento
de uma mobilização desse tipo por parte dos alunos implicaria aqui também em uma análise do
reconhecimento do “direito a ter direito” pelas crianças da comunidade.
Pedro iniciou contando que havia um encontro dos Jovens Gerazeiros que se reuniam
uma vez por mês, mas foi Gabriela quem forneceu detalhes sobre esses encontros.
GABRIELA: Eu ia seguir mais ou menos a mesma linha de raciocínio dele [do Pedro].
Esse coletivo [Jovens Gerazeiros] surgiu justamente da necessidade que a gente viu,
que a gente tinha lá um número enorme de alunos da educação do campo, aí tinha a luta
dos gerazeiros e dos quilombolas, das comunidades tradicionais de lá de Rio Pardo e
nesse coletivo a gente já conseguiu se organizar, participou do... do... do... a gente já
produziu dois seminários da Educação do Campo e estamos indo para o terceiro agora
no primeiro semestre de 2016.
PESQUISADORA: Com os alunos nas escolas?
GABRIELA: Com os alunos, a comunidade, a gente participou da... a gente conseguiu
colocar algumas... no plano decenal do município, a gente conseguiu colocar algumas
ementas da educação do campo pras escolas, a gente já está conseguindo se mobilizar
foram 16 ementas que conseguimos colocar, pras escolas do município. O município
não é pequeno e o município de Rio Pardo de Minas é o maior do alto Rio Pardo e...
todas as escolas são consideradas escolas do campo, ai diante disso a gente viu a
necessidade de... que não tinha nada relacionado a escola do campo e no plano decenal
a gente conseguiu colocar.
Apesar de Gabriela não deixar claras as formas de participação e atuação do coletivo para
conseguirem alterações no Plano Decenal do Município, nossos estudos sobre as dinâmicas de
criação do plano decenal nos levam a inferir que eles participaram como coletivo ou sociedade
civil organizada nas reuniões ou audiências públicas que culminaram em sua construção.
166
É interessante perceber que o primeiro ponto que, segundo Caldart (2009, p. 60), deve ser
intensificado pelos sujeitos que constroem a educação do campo é a “pressão por políticas
públicas que garantam o acesso cada vez mais ampliado pelos camponeses, do conjunto dos
trabalhadores do campo, à educação. ”.
Já a fala de Lira sobre a relação entre Educação do Campo e o conhecimento a ele
veiculado é bastante interessante
É... muitas vezes a gente nos deparamos com alunos que tem o pensamento... talvez
bastante é... controverso do que é a realidade, ai o conhecimento que a gente adquire
aqui faz com que a gente consiga mostrar pra aquele aluno que ele pode estar vendo
aquilo de uma forma totalmente individual meio que errada do ponto de vista do
coletivo. Muitas vezes a gente pode se depara com um aluno que... tenha uma visão
que a política não deve existir e que não se deve ficar envolvendo com politicagem
e ficar totalmente fora disso. E aqui no curso como a gente estuda essa parte a
gente vê que é necessário você está dentro desse contexto. Então ai você vai e chega
naquele aluno e fala tal filosofo falou isso e isso... é... a gente viu isso quanto estava
na faculdade, talvez você poderia ir por outro caminho. É nesse momento o que a gente
aprendeu pode ser muito útil pra transformar o pensamento dele que lá na frente poderia
não ser muito bom pra ele.
Lira desenvolve as noções de coletividade e política, dois sentidos centrais para a
Educação do Campo e seu papel como educadora, relacionando-os com o conhecimento, a
importância da coletividade e a importância da participação política como forma de modificação
da sociedade.
Seja com autores da Educação do Campo como Arroyo (2013) e Caldart (2009), seja nos
escritos do MST (1996) e também nos escritos de teóricos decoloniais como Dussel (1997ª),
Freire (2014) e Walsh (2014) há uma concordância da centralidade das formas de coletividade
que se constrói quando os sujeitos se reconhecem Outros, colonizados e explorados, e passam a
reivindicar, lutar e a construir de forma coletiva histórias Outras, distintas daquelas de opressão
vivenciadas historicamente. Uma das formas de se lutar, ensinadas por esses coletivos, está
também no campo da política, como é o caso da Educação do Campo: houve luta para se
constituir a Educação do Campo como política pública específica para o campo através,
inicialmente, do Pronera. Compreender o campo da política como meio de conquista de direitos
reflete o grito cotidiano que ecoa dentro da FaE pelos alunos do LeCampo “Educação do Campo:
direito nosso, dever do Estado”.
Curiosamente o desfecho da fala de Lira não converge para toda a concepção teórica e
prática vivenciada pelos movimentos sociais e pelas práticas decoloniais, mas para uma acepção
de conhecimento desvinculado da prática, da coletividade e de sua própria acepção de política.
167
Mas por que esses sujeitos se mantem tão fixos aos sentidos de permanência no campo,
se eles se mantêm tão distantes dos sentidos de trabalho com a terra? Chamou a minha atenção
no curso uma reunião realizada no auditório da FaE com as turmas no dia 20/08, como anotado
em meu caderno de campo. Para conseguir falar à frente do auditório, em função da dispersão
dos sujeitos, era necessário falar ao microfone com um volume de voz um pouco mais elevado,
porém não foi essa a estratégia utilizada pelo monitor, que também já foi professor do LeCampo.
O monitor João pegou o microfone e cantou “Não vou sair do campo pra poder ir pra escola...”
e os alunos responderam “(...) educação do campo é direito e não esmola”. Ele repetiu isso por
três vezes até que todos voltaram à atenção para ele e se silenciaram.
Músicas e palavras de ordem parecem ser comuns no desenrolar do curso, buscando
sempre lembrar aos sujeitos os sentidos e as vinculações da licenciatura com a vida no campo.
No evento “Festival Nacional da Reforma Agrária” os alunos também levaram músicas e gritos
de ordem. Ao fim da roda da nossa roda de conversa, quando ainda os agradecia pela conversa,
Lira gritou “Educação do Campo...” e todos responderam “(...) direito nosso, dever do Estado”
sendo comum, em momentos que as turmas se reúnem para fazer alguma atividade, a presença
dos gritos e dos cantos.
É interessante perceber que sempre é reforçado junto aos alunos esses sentidos de
importância de permanência no campo por professores do curso. Apesar de não perceber isso na
fala do professor Mário, as falas dos professores e monitores que coordenavam a disciplina
“Processos de Ensino-Aprendizagem” e principalmente, as falas na palestra de acolhida das
turmas expunham de forma significativa a demanda por tal permanência: não para a fixação,
como reforçam os professores, mas para a transformação, incentivado aos alunos participarem
de movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos em suas cidades.
Entretanto, parece-nos que os pontos trazidos sobre o coletivo carecem de sentido junto
aos alunos que conversamos na roda de conversa. Assim, o retorno ao campo e a presença parece
se dar muito mais numa lógica que afirma o indivíduo do que qualquer outra coisa.
Sentimos ainda a necessidade de saber se esses sujeitos se sentiam preparados para serem
educadores do campo. Como eles percebiam a formação até o quinto período do curso? Eles
reconheciam que a formação lhes possibilitaria serem educadores do campo? Há unanimidade
na resposta: todos dizem se sentir preparados para serem educadores do campo. Contudo, a
resposta de Ana e João nos chamam a atenção.
ANA: Eu me sinto preparada aqui dentro do curso, eu penso... porque não é uma
formação só como educador, mas é uma formação política, que a gente aprende é
um processo de abrir os olhos. A gente não assiste mais uma reportagem com a mesma
168
visão de antes, com uma visão crítica a questão da lida com o social a formação que a
gente tem para isso e principalmente no caso do curso como educador do campo é
essencial.
JOÃO: Eu me sinto preparado, e o curso faz essa preparação sabe, para você ser
educador do campo. Como eu já disse, eu já tinha um conhecimento a respeito dessa
educação, antes da gente vir pra cá, mas depois que chegou cá a gente foi aperfeiçoando
ela mais e mais e hoje em dia você olha a realidade que está no campo com outros
olhos.
Segundo esses sujeitos, eles se sentem preparados para serem educadores do campo,
principalmente porque o curso lhes forneceu uma leitura política do mundo e, consequentemente,
das relações de poder que existem no campo e em suas escolas, bem como na construção do
projeto de uma Educação do Campo.
Essa concepção coaduna com as referências teóricas decoloniais utilizadas por nós, como
Dussel (1993), Arroyo (2012), Caldart (2012) e Walsh (2010), porque denunciam que a educação
não é neutra e evidenciam o lado político dos projetos educacionais que se dizem neutros.
Salientamos aqui a importância de Freire (2014b), que dedicou a esse tema a escrita do livro
“Política e Educação”, demonstrando que a relação com o conhecimento sempre é mediada por
um projeto de sociedade e de construção do mundo.
Outrossim os teóricos da Educação do Campo também evidenciam essa convergência e a
importância de ter clara a relação entre o projeto educacional e político. Entretanto, a fala desses
sujeitos sobre a importância da política e da educação se distancia do conceito freireano de
palavra: não percebemos, ao longo da roda de conversa, exemplos de atitudes que evidenciassem
modo Outro de ação sobre o mundo.
Ao serem solicitados a elencarem pontos no curso que considerem diferenciais em sua
formação, eles dizem
ANA: Eu destaco a organicidade do curso. Porque na iniciação básica, não
generalizando, mas existe um certo individualismo. As vezes a gente não ve a pessoa
tão preocupada com o coletivo e com o social. É só o aluno no individualismo, e a
formação do LeCampo quebra essa barreira do individualismo.
PEDRO: Eu acho assim, que em questão de formação, devido a ser um curso que ele é
contextualizado é... com a cultura camponesa, e com essa questão da defesa das políticas
públicas é que, na maioria das vezes a gente não vê como discussão nas instituições de
ensino é de garantir a instrução básica gratuita e de qualidade a esses alunos.
Apesar dos sujeitos lançarem em seus argumentos palavras centrais para a construção de
sentidos decoloniais de seus processos de formação, destacando pontos chave da construção
histórica da Educação do Campo esses conceitos parecem, por vezes, esvaziados de sentidos
junto a esses sujeitos. Há uma dificuldade de articulação desses conceitos com sua atuação
169
docente e em algumas narrativas é possível perceber conflitos entre suas falas e a proposta de
uma Educação do Campo.
Há fortes sentidos de individualiadade presentes nas falas desses sujeitos, aproximando-
se assim do que Walsh (2014) definiu como interculturalidade funcional. O acesso a universidade
não como meio de ruptura ou questionamento do padrão de poder, mas sua mera inclusão a ele.
Entretanto, como um campo de disputas e como espaço de diálogo compreendemos que
esses aspectos são constantemente disputados e, portanto, podem ser resignificados. Daí ser
interessante os momentos em que narram as experiências coletivas que transcendem o período
de tempo de formação na universidade, reunindo alunos em suas cidades formados no curso para
discutirem sobre a educação em suas regiões.
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi intenção, nesta dissertação, realizar uma análise do curso ofertado pela UFMG, o
LeCampo. O especial cuidado que tivemos de ouvir os sujeitos que compõem o curso, em
conjunto com a análise do PPP e dos planos das disciplinas observadas, não significou uma
comparação entre o prescrito e o vivenciado, mas a busca por uma análise mais ampla, que nos
possibilitasse evidenciar referencias da (de)colonialidade presentes em diferentes aspectos do
curso.
A luta e conquista do curso em si expressa marcas da decolonialidade. Conquistado no
bojo da organização nacional de Universidades, movimentos sociais e sujeitos campesinos na
construção de uma educação que seja do campo e no campo, o LeCampo representa a luta
empreendida em Minas Gerais poe meio da articulação entre MST e a UFMG para garantir o
direito dos povos camponeses a um curso de licenciatura que os reconheça como sujeitos Outros
produtores de cultura e de histórias.
Outrossim, o curso nasce estreitamente vinculado às lutas para a construção de uma
sociedade Outra, tendo forte vínculo com os movimentos sociais do campo e apresentando como
objetivo, conforme descrito no PPP, a formação de professores especificamente para os
territórios rurais. É possível perceber, por meio da proximidade com as áreas de assentamento,
movimentos sociais e sujeitos Outros, que a criação do curso não é um fim em si mesmo, mas
meio para a construção dessa sociedade Outra iniciada na luta pela terra.
Daí ser notória uma ruptura com estruturas moderno-colonizadoras, visto que, para a
construção dessa sociedade Outra, problematizou-se o conhecimento hegemônico, eurocêntrico,
articulou-se à formação desses sujeitos os conhecimentos que traziam de suas lutas dentro dos
movimentos sociais, suas vivênciais e suas formas de organização em Grupos de Trabalho
(GT’s), para a construção de uma nova proposta de educação e de organização do espaço
universitário.
A conquista desse espaço de forma coletiva rompeu não apenas com os sentidos únicos
de conhecimento, mas também problematizou a marca do “sucesso pessoal” que se vincula ao
acesso à universidade em uma sociedade capitalista. A ressignificação do espaço acadêmico
como de luta e de ocupação do “latifúndio do saber” trouxe uma ampliação dos seus sentidos
que, pautados na coletividade, buscam romper e questionar as desigualdades e os sentidos
acadêmicos que os concebem como inferiores por serem sujeitos camponeses.
Outra marca decolonial do LeCampo é a construção do curso de maneira mais
horizontalizada rompendo com a pedagogia dominadora que compreende os sujeitos Outros
171
como depositários de conhecimento contando com a presença de representante dos movimentos
sociais e dos alunos do curso em sua coordenação.
A utilização da Alternância Pedagógica, conquista histórica dos movimentos de Educação
do Campo, é também entendida como traço decolonial do curso, porque reconhece a comunidade
como espaço de aprendizado assim como o espaço acadêmico, diminuindo as distâncias entre o
que seria considerado “o” conhecimento e os “demais conhecimentos”, passando a desenvolver
os processos de formação de forma mais dialógica.
Todavia, significativas mudanças ocorrem no curso a partir de 2009, ano que o curso
torna-se permanente na FaE. A expansão e a institucionalização dos cursos de Linciatura passam,
portanto, a ter de ofertas Processos Seletivos Especiais para garantir o ingresso desses sujeitos
camponeses à Educação Superior. Daí a importancia do uso de estratégias variadas, como as
utilizadas pelo LeCampo, que incluem elaboração de memorial e comprovação de moradia no
campo. Hage e Molina (2016) são enfáticos em ressaltar a importancia da seleção e do debate
dos critérios no curso para evitar sua descaracterização.
No LeCampo, após sua institucionalização, é possível perceber que novos sujeitos passam
a compor o curso. Em sua maioria são filhos (as) de camponeses criados no campo, mas que nem
sempre possuem vínculos com movimentos sociais e associações comunitárias; ou seja, são
sujeitos que apresentam vínculos frágeis com as organizações coletivas camponesas, que lutam
a favor dos direitos dos sujeitos Outros e para estes não sejam subsumidos dentro da lógica da
mesmidade moderna e colonizadora.
Daí parece se originar um dos principais desafios do LeCampo na atualidade: como
conduzir um curso pensado de forma tão intrínseca às lutas e sujeitos vinculados a movimentos
sociais, quando os sujeitos que ingressam no curso distanciam-se cada vez mais desse modelo?
É possível perceber nos teóricos que pensam a Educação do Campo na atualidade, como
Molina (2015), Hage e Molina (2016), Arroyo (2014) e Caldart (2009), um delineamento do
perfil dos sujeitos que se espera para compor os cursos de Licenciatura em Educação do Campo.
Esses teóricos acabam por fazer a defesa do ingresso de sujeitos que já tenham algum vínculo
com as causas sociais do campo e que reconheçam a necessidade de uma construção de sociedade
Outra. Mesmo sem abandonar a caracterização desse perfil, Molina (2015) nos diz que a
expansão dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo pode trazer uma ruptura com a
identidade do curso, e que é preciso estar atento para que tal situação não ocorra. Afinal, caso os
cursos de Licenciatura em Educação do Campo percam sua vinculação com a terra, com o campo
e com as demandas dos sujeitos Outros camponeses, eles não se diferenciariam dos demais cursos
de licenciatura.
172
Foi possível perceber na maioria dos sujeitos que participaram da roda de conversa um
distanciamento desse ideário de aluno presente nos escritos dos teóricos da Educação do Campo.
Possuindo fracos vínculos com os coletivos campesinos, esses sujeitos não objetivavam fazer o
curso porque este se volta para as questões do campo e, em muitos casos, não tinham como
objetivo profissional serem professores; suas escolhas estão centradas no “ganho pessoal” de
realizar um curso numa universidade pública.
O ingresso de sujeitos com fraca articulação a movimentos sociais não se dá sem conflitos
com as formas de organização do curso e com o seu projeto político, visto que o curso ainda
mantém muito da organização pensada a partir das turmas piloto. Daí, por exemplo, tamanha
resistência à mística, momento de grande importância para os movimentos sociais, mas de pouco
sentido e vinculação aos sujeitos que atualmente compõem o curso. Outro ponto que destaca
esses conflitos foi a fala de Bianca, quando nos diz que a professora, ao saber que ela não se
reconhece como indígena, responde que a aluna “sairia do curso reconhecendo sua identidade
indígena”. Essa fixação de sentidos e de identidades nos parece traços de uma tentativa de
subsumir o Outro em processos de mesmidade, suprimindo o diálogo e fazendo prevalecer a
imposição de sentidos únicos.
Esses conflitos também podem ser percebidos na concepção do curso sobre a participação
e o engajamento em movimentos sociais. Foi perceptível, na observação de campo, que os
professores incentivam os sujeitos a participarem de movimentos sociais, sindicatos e da vida
política partidária. Não obstante, essa vinculação acontece de forma acontece com forte viéz
burocrático, apresentando pouca organicidade na presença e na contribuição das discussões
promovidas pelas referidas associações
Reconhecendo que a proposta de criação das Licenciaturas em Educação do Campo não
finda em si mesma, mas é meio necessário para se pensar a educação como instrumento
privilegiado para a construção de uma sociedade Outra, acreditamos que um dos cuidados
centrais ao qual o curso deve se ater é de, mediante a esses conflitos, não perder os seus traços
decoloniais, de vínculo com os sujeitos campesinos e com um propósito Outro de sociedade, com
o inédito viável, porque reconhecemos nessas as bases que fazem com que o LeCampo se
diferencie dos demais cursos de licenciatura.
Parece-nos que o único instrumento que se tem para mediar essa tensão está no diálogo
entre o curso e os sujeitos que o compõe. Ou seja, uma postura saudosista das primeiras turmas
do LeCampo e críticas à “falta de perfil” dos sujeitos que hoje o compõem não parecem ser
caminhos que conduzam a uma resolução dessas tensões, mas ao seu aprofundamento.
173
Parece-nos, portanto, necessário que o LeCampo desenvolva, com seus professores,
coordenadores e monitores, em conjunto aos alunos, os sentidos primários da luta por uma
educação construída junto aos sujeitos do campo, desvelando os sentidos históricos que fizeram
a cidade ser reconhecida como “superior” ao campo e demonstrá-los a importância dos coletivos,
organizados em movimentos sociais, para a construção dos direitos dos povos do campos e da
luta para o reconhecimento de que são eles sujeitos que tem direito a ter direitos.
Dito de outra forma, acreditamos que é necessário que os sentidos de resistência a lógica
moderna colonial sejam construídos juntos aos alunos, reconhecido o distanciamento desses
sujeitos com as resistências campesinas a essas formas de opressão. Como descrito por Freire
(2014), isso não pode equivaler a depositar nos sujeitos uma “consciência crítica” e/ou uma
obrigatoriedade para participarem/vincularem a movimentos sociais, mas um esforço no sentido
de construir junto a esses sujeitos os sentidos de coletividade e de uma consciência crítica a
respeito dos problemas enfrentados pelo Campo. Como foi evidenciado na fala de Bianca, aonde
a professora tentou impor um sentido, uma identidade Outra a aluna, distanciando-se da postura
de contrução de sentidos e aproximando-se de dominação do Outro pelo Mesmo.
Acreditamos que a partir desse diálogo é possível evitar o rompimento com as
caratersíticas essenciais da construção do LeCampo, possibilitando a reconstrução de alguns
organizações trazidos das turmas piloto e construção de novos aspectos junto a esses sujeitos.
Não cabe a nós nomearmos esses aspectos, mas acreditamos que pelo diálogo é possível que
esses sujeitos construam em conjunto esses pontos que, para ambos, carecem de serem
modificados.
Assim, consegue-se problematizar junto aos alunos a concepção, comumente trazida por
eles na roda de conversa, de que a função primeira do professor do campo é conduzir o maior
número de sujeitos possível para a Universidade. Todavia, essa compreensão distancia-se
daquela almejada pelos movimentos sociais, reduzindo os sentidos da educação básica ao
ingresso a universidade e distanciando-se do paradigma crítico de formação de professores. Se
couber ao professor apenas conduzir os alunos a universidade, qual a necessidade de apropriar-
se de um conhecimento Outro? Qual a necessidade de que esse professor se aproprie de um
conhecimento decolonial que se propõe a ser crítico da modernidade? E, principalmente, qual o
vínculo da escola com o projeto Outro de sociedade?
A propriação dos espaços universitários por esses sujeitos Outros sem o questionamento
dos sentidos moderno/coloniais do acesso à educação superior potencializa uma possível
interculturalidade funcional à construção da Educação do Campo, pois fornecerá o acesso desses
sujeitos a esses espaços sem o devido questionamento dos padrões de poder e desigualdade do
174
projeto social e epistêmico. Cabe aqui retomar a fala de João, que diz “(...) não é porque tá no
campo que ele não pode ser um empresário, ai é isso.”. Ou seja, não é porque se está no campo
que não se pode participar do capitalismo e das suas estruturas.
Como descrito por Fanon (2008), é comum que os colonizados, diante de estruturas de
colonização, compreendam (erroneamente) que, quanto mais se assimilar os valores da metrópole
e quanto mais se distanciar dos seus valores “selvagens”, melhor colocado na sociedade
colonizadora ele estará. Essa lógica de inclusão do Outro no Mesmo, ou nas palavras de Freire
(2014), o sonho do oprimido é virar opressor, é um dos cuidados que se deve ter no dialogo junto
aos sujeitos que compõem o curso.
Dessa inclusão funcional ao sistema capitalista nos pareceu vir os sentimentos de retorno
desses sujeitos ao campo. Todos os sujeitos, sem nenhuma exceção, mencionaram a importância
de voltar para o campo. Entretanto, esse retorno, na quase totalidade das falas dos sujeitos, parece
se distanciar da importância com a lida com a terra, aproximando do destaque da ocupação de
outro status social, ou seja, distanciar-se da terra, da lavoura e do trabalho no campo.
Há pelo menos um aluno que se posiciona de forma diferente dos demais. Seu vínculo
aos sindicatos pode explicar sua aproximação com uma abordagem interculturalidade crítica. O
que, para nós reporta a importância dos movimentos e sindicatos no fortalecimento do curso.
O MST, enquanto movimento marginal ao sistema capitalista, traz cotidianamente essa
marginalidade para dentro das instituições acadêmicas. Calart (2012, p. 226) nos diz que “a
educação pode ser mais do que educação, e que escola pode ser mais do que escola, à medida
que sejam considerados os vínculos que constituiem sua existência.”. Assim, cabe também ao
Movimento ser tensionador para que o curso não perca a sua radicalidade e seu vínculo com os
movimentos e as lutas por uma sociedade Outra, especialmente num momento em que os
educandos começam a desenvolver uma consciência crítica das problemáticas do campo.
Reconhecer que a educação pode ser mais do que educação parece-nos mais do que
compreender a educação como x, mas lutar pela defesa pela defesa de um projeto que vá além
da escolarização e da lógica meritocrática da sociedade capitalista. É pensar a educação como
proposta política de sociedade, de atuação em comunidade; é pensar as vivências dentro dos
movimentos sociais e no campo como processos formadores de sentidos e de conhecimento que
não podem ser suprimidos por um projeto totalitário. Assim sendo, é possível a Universidade ser
mais que Universidade, quando compreendemos nela, um dos espaços de desenvolvimento dessa
construção Outra de sociedade, forjada a partir dos sujeitos Outros.
175
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