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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL
PÓSCRÍTICA/ DEDC II- ALAGOINHAS/BA
JOSELIA SANTOS DA SILVA
MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA
Alagoinhas — BA
2018
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL
PÓSCRÍTICA/ DEDC II- ALAGOINHAS/BA
JOSELIA SANTOS DA SILVA
MARGENS: FORMAS DE RESISTÊNCIA E REEXISTÊNCIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Crítica Cultural do
Departamento de Educação – DEDC II da
UNEB como requisito para obtenção do título
de mestre em Crítica Cultural.
Orientador: Professor Dr. Roberto Henrique Seidel
Alagoinhas — BA
2018
Dedico este trabalho aos colaboradores da
pesquisa: o coletivo Sarau da Onça e o
programa de rádio Evolução Hip-Hop.
Agradeço a minha família pelo apoio de
sempre;
À Edna por todo apoio, cuidado e motivação;
Às amizades adquiridas ao longo desse
percurso pelas palavras de apoio e incentivo;
Aos colaboradores da pesquisa, o Sarau da
Onça e o Programa de Rádio Evolução Hip-
Hop;
À banca examinadora deste trabalho pelas
sinceras contribuições;
Ao Programa de Pós-Graduação em Crítica
Cultural por ter possibilitado uma grande
experiência no campo do conhecimento;
Ao orientador por oportunizar o meu
amadurecimento no percurso acadêmico.
[...] É preciso fazer proliferar uma outra
sensibilidade micropolítica, macropolítica,
biopolítica, ecopolítica, cosmopolítica, dar nome
aos bois, romper um consenso que nos quer
abduzir a capacidade de pensar. Sim, fazer do
pensamento uma conspiração cotidiana, uma
insurgência indomável. Ideais fortes precisam às
vezes de centenas de páginas para serem
devidamente desdobradas. Mas por vezes também
cabem em livros minúsculos, sintéticos,
baratíssimos, de fácil circulação, prestes a
passar de mão em mão, nessa forma inusual
entre a análise, o manifesto, o grito, a arma
(PELBART, [online]).
[...] Curiosamente, é quando mais se fala em
defesa da vida que ocorrem as guerras mais
abomináveis e genocidas ‒ o poder de morte se
dá como um complemento de um poder que se
exerce sobre a vida de maneira positiva
(PELBART, 2011).
RESUMO
A presente dissertação propõe uma reflexão sobre as potências de vida que emergem das
margens e se mostram dispostas a contestar a cultura hegemônica e resistir às formas de vida
impostas por esta. Para isso, será tomado como fonte que conduzirá a reflexão o Sarau da
Onça, situado no bairro de Sussuarana, e o programa de rádio Evolução Hip-Hop. O trabalho
aqui apresentado, dessa forma, investiga como que o Sarau da Onça e um programa de rádio
comunitária __
o Evolução Hip-Hop __
tem sido meios de resistência e espaços de contestação,
politização dos discursos e construção de conhecimento. A periferia, embora seja vítima de
vários estigmas e das violências simbólicas, nela existem potências que, colocadas em ação,
podem ser instrumentos contra o sistema hegemônico e opressor. Sendo assim, são colocadas
as seguintes problematizações: O que podem as margens? Como são construídos os modos de
resistência e reexistência? Estes questionamentos são colocados como pontos norteadores da
presente pesquisa, que não objetiva dar conta de todas as indagações, mas propor reflexões
pertinentes ao tema proposto. A dissertação está dividida em três capítulos. No capítulo de
abertura discuto as formas de deslegitimação pelas quais passa a periferia. Desse modo, será
investigado como que a periferia as margens passam pelo processo de desumanização e
negação de suas formas de vida, bem como de sua produção cultural. O capítulo dois traça um
caminho interpretativo que possibilite pensar o Sarau da Onça e o programa Evolução Hip-
Hop enquanto tomadas de posição e, sobretudo, espaço de resistências. O capítulo três é
conduzido por uma reflexão acerca do saber enquanto forma de resistência. O saber será
tomado como via pela qual as margens constroem o autoconhecimento e podem, a partir
disso, questionar a ordem estabelecida e o que foi imposto como forma de vida. Dessa forma,
as lutas serão travadas pela tomada da palavra e do discurso.
Palavras-chave: Margens. Sarau da Onça. Programa Evolução Hip-Hop. Resistências.
ABSTRACT
The present dissertation was a reflection on the potentialities of the life of the emerging
companies and showed itself willing to a hegemonic culture and resistive to the life forms
imposed by this one. For this, the saru of the ounce, located in the neighborhood of
Sussuarana, and the Hip-Hop Evolution radio show, will be taken as a source. The work
presented here, in this way, investigates how the saru of the ounce and a community radio
program __ The Hip-Hop Evolution __ has been means of resistance and spaces of
contestation, politicization of speeches and construction of knowledge. The periphery,
although it is the victim of various stigmas and symbolic violence, there are powers that, put
into action, can be instruments against the hegemonic and oppressive system. Thus, the
following questions are posed: What can the margins? How are modes of resistance and
reexistence constructed? These questions are placed as guiding points of the present research,
which does not aim to account for all inquiries, but to propose reflections pertinent to the
proposed theme. The dissertation is divided into three chapters. In the opening chapter I
discuss the forms of delegitimation through which the periphery passes. In this way, it will be
investigated how the periphery - the margins - go through the process of dehumanization and
denial of their forms of life, as well as their cultural production. Chapter two outlines an
interpretive path that makes it possible to think of the saru of the ounce and the Hip-Hop
Evolution program while taking positions and, above all, a space of resistance. Chapter three
is led by a reflection on knowledge as a form of resistance. Knowledge will be taken as the
way by which the margins build self-knowledge and can, from this, question the established
order and what was imposed as a way of life. In this way, the struggles will be fought by the
taking of the word and the speech.
Keywords: Margins. saru of the ounce. Hip-Hop Evolution Program. Resistors.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................... 9
1. DESLEGITIMAÇÃO DAS MARGENS ................................................................. 12
1.1 A cor das margens ........................................................................................................... 16
1.2 A fabricação das formas de vida ..................................................................................... 29
2. UMA CONSPIRAÇÃO: PENSAR, FALAR E AGIR ........................................... 41
2.1 Sarau da Onça ................................................................................................................. 43
2.3 Programa Evolução Hip-Hop .......................................................................................... 58
2.4 Vozes da resistência ........................................................................................................ 62
3. QUER SER PERIGOSO? VÁ LER UM LIVRO! ..................................................... 67
3.1 O tráfico da palavra ......................................................................................................... 67
3.2 O que podem as margens? .............................................................................................. 74
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 80
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 82
ANEXOS ......................................................................................................................87
9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho intitulado Margens: formas de resistência e reexistência é fruto de
um fascínio antigo pela arte das ruas, que toma forma através dos corpos que vivenciam a
realidade fabricada para as margens. Corpos que sentem tal realidade longe de ser algo
natural, embora naturalizada. É pelo ato de sentir a vida nas condições em que ela é colocada
quando se pensa em espaços periféricos que tais corpos, por meio da arte, criam rotas para a
resistência e fortalecimento dos sujeitos da periferia.
Assim, a questão que conduz a pesquisa é as formas de articulação criadas pelas
margens para driblar os dispositivos de poder que tentam aniquilar a capacidade de pensar dos
sujeitos. A partir da questão levantada o objetivo proposto aqui é refletir sobre modos de
resistência e reexistência na periferia de Salvador a partir da produção cultural do Sarau da
Onça e do programa de rádio Evolução Hip-Hop.
Através do questionamento é possível seguir os rastros, interpretar os sinais e indícios
que podem e dizem muito de uma realidade. Desse modo, é por essa via que a ordem
estabelecida pode ser desvelada mostrando as várias relações de poder, de exploração e
violência simbólica que o sistema opera contra as classes menos prestigiadas. Sendo assim, a
leitura do mundo deve ser feita pelo ato de questionar o que é visível e naturalizado como
verdade absoluta. Foi por esta via que a pesquisa em questão foi desafiada a se desenvolver,
uma vez que sua proposta de estudo requer a descentralização e a crítica do olhar do
pesquisador (a).
Além disso, o estudo realizado entende o Sarau da Onça e o programa Evolução Hip
Hop não como objeto desta pesquisa e sim como colaboradores, uma vez que as ideias
dispostas aqui não são sobre ambas as produções culturais, mas foram construídas a partir
delas.
Nesse sentido, a presente pesquisa se mostra significativa e relevante, visto que propõe
pensar as margens e sua força criativa e política a partir do Sarau da Onça e do programa
Evolução Hip Hop, verificando como estes configuram espaços de resistências e reexistências
dentro da periferia de Salvador.
O Sarau da Onça é uma produção cultural do bairro de Sussuarana que foi criada como
iniciativa de jovens diante da imagem negativa que a mídia divulgava e/ou divulga acerca do
10
bairro. Assim, os encontros quinzenais promovidos pelo Sarau da Onça se constituem como
uma ação contra-hegemônica, uma vez que contradiz a ideia veiculada na mídia a respeito do
bairro de Sussuarana enquanto lugar dominado pelo tráfico de drogas e pela violência,
mostrando que em Sussuarana existe arte e cultura e é esta imagem que precisa ser
visibilizada.
No que diz respeito ao programa de rádio Evolução Hip Hop, este vai ao ar na Rádio
Educadora FM aos sábados às 17 horas e contribui para o fortalecimento e divulgação do
movimento e cultura Hip Hop, bem como da cultura negra no Estado da Bahia. O programa
Evolução Hip Hop é produzido pela CMA HipHop- Comunicação, Militância e Atitude, que
trabalha com comunicação, mobilização social e produção cultural em que o objetivo é
fortalecer o movimento Hip Hop e o movimento negro, contribuindo para o enfrentamento
dos obstáculos impostos para a realização de mudanças sociais.
No que tange ao percurso metodológico utilizado para desenvolver a pesquisa, as
ferramentas usadas para a coleta de dados foram entrevistas, estudo de materiais e
informações obtidas através do acesso à página do Sarau da Onça e do programa Evolução
Hip-Hop no Facebook.
A entrevista com Sandro Sussuarana, um dos integrantes do Sarau da Onça, foi
realizada por meio da ferramenta de bate-papo do Facebook entre final de março e abril de
2017. Além da entrevista se constituíram como material para estudo as observações feitas em
cada participação no Sarau e o acesso as poesias produzidas pelos organizadores /
idealizadores, bem como por poetas que também se apresentam ou já se apresentaram no
Sarau da Onça.
No tocante ao programa Evolução Hip-Hop, foi realizada entrevista gravada com o DJ
Branco em maio de 2017. Além da entrevista, o site e a página do programa no Facebook
foram essenciais para compor um plano de estudo que culminou no trabalho aqui disposto.
Não posso deixar, porém, de ressaltar a importância do Whatsapp nesse processo de tessitura
da pesquisa, uma vez que este aplicativo possibilitou o acesso a informações e acontecimentos
novos no que diz respeito à Cultura Hip-Hop.
A presente dissertação está dividida em três capítulos. No capítulo de abertura discuto
sobre as formas de deslegitimação pelas quais passa a periferia. Desse modo, será investigado
como que a periferia as margens passam pelo processo de desumanização e negação de
suas formas de vida, bem como de sua produção cultural. Neste capítulo será apresentado dois
11
subtítulos. No primeiro será analisada a deslegitimação da periferia pelo viés do racismo
científico. No segundo partirei da discussão dos processos de subjetivação aplicados à
periferia e como que as formas de vida são mediadas por tal processo.
O capítulo dois traça um caminho interpretativo que possibilite pensar o Sarau da
Onça e o programa Evolução Hip-Hop enquanto tomadas de posição e, sobretudo, espaço de
resistências. É discutido também a importância da voz tanto na produção do Sarau da Onça
quanto na Cultura Hip Hop.
O capítulo três é conduzido por uma reflexão acerca do saber enquanto forma de
resistência. O saber será tomado como via pela qual as margens constroem o
autoconhecimento e podem, a partir disso, questionar a ordem estabelecida e o que foi
imposto como forma de vida. Dessa forma, as lutas serão travadas pela tomada da palavra e
do discurso.
12
1. DESLEGITIMAÇÃO DAS MARGENS
Neste capítulo de abertura proponho uma reflexão acerca dos processos de
deslegitimação aos quais a periferia é submetida. Antes quero destacar a palavra “margens”,
que compõe a nomeação do capítulo. A escolha da palavra foi feita para referir-se à periferia
e, para isso, o termo passa por uma ressignificação necessária para atender o propósito deste
trabalho. Ao utilizar a expressão “margens” parto não do significado negativo que o termo
pode propor, mas tomo como princípio o sentido positivo que a palavra oferece. Se
considerarmos, então, que margem é aquilo que se encontra em torno de algo, pensemos que
estar localizado na parte de fora, ao redor pode ser uma posição privilegiada.
Assim, a margem pode ser um lugar estratégico e privilegiado, uma vez que se
encontra no lado de fora. Nesse sentido, os sujeitos que vivem nas margens da sociedade se
encontram nessa posição, sendo possível enxergar a realidade de modo que se sintam parte do
todo, que é a sociedade, mas ao mesmo tempo à margem dela. A partir disso pode emergir um
processo de reflexão em torno da realidade observada seguida de tomada de posição a favor
da resistência daqueles que são subalternizados.
As linhas aqui dispostas oferecem um caminho permeado por discussões a respeito das
margens, termo aqui utilizado, como já foi esclarecido, para fazer referência à periferia/favela.
Sendo assim, cabe levantar a questão: O que caracteriza a favela? Para refletir acerca dessa
questão considero pertinente trazer as contribuições teóricas que Licia do Prado Valladares
traz em seu livro A invenção da favela1. Neste livro a autora discorre sobre as diversas
representações sociais a respeito da favela desde o seu surgimento no Rio de Janeiro.
De acordo com a autora, o cortiço pode ser considerado o “germe” da favela, tendo em
vista que os primeiros interessados em investigar o cenário urbano e popular do Rio de
Janeiro dedicaram atenção ao cortiço, que foi considerado da seguinte forma:
[...] Considerado o locus da pobreza, no século XIX era local de moradia tanto para
trabalhadores quanto para vagabundos e malandros, todos pertencentes à chamada
“classe perigosa”. Definido como um verdadeiro “inferno social”, o cortiço carioca
era visto como antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às
epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral. Percebido como espaço
propagador da doença e do vício, era denunciado e condenado através do discurso
médico e higienista, levando à adoção de medidas administrativas pelos governos
das cidades (VALLADARES, 2005, p. 24).
1 Aporte teórico sugerido pelo professor Dr. Luciano Justino na qualificação deste trabalho.
13
O descobrimento das primeiras favelas no Rio de Janeiro revelou que as habitações
nelas encontradas eram semelhantes às do cortiço. Assim, a favela passou a ser o novo lugar
da pobreza sendo interpretada como problema e se tornado tema do discurso higienista de
médicos e também de engenheiros. A partir disso, a representação da favela enquanto
habitação anti-higiênica, lugar propício às doenças era respaldo para construção de projetos de
eliminação das favelas.
Entre os recenseamentos que foram realizados no Rio, o de 1950 mostrou que nas
favelas existe uma população trabalhadora, dado que questiona os discursos anteriores
difundidos sobre a favela como lugar da preguiça e da vagabundagem. Vale ressaltar também
que a inclusão da categoria relativa a conjuntos de habitações precárias no recenseamento,
“encontrados até hoje sob o título de ‘aglomerado subnormal’, a partir do caso do Rio,
contribuiu para a generalização do uso da palavra favela que, progressivamente, passou da
categoria local a categoria nacional” (VALLADARES, 2005, p. 71).
Valladares (2005) afirma que a partir de uma análise de algumas pesquisas realizadas
sobre a favela foi possível perceber uma convergência de características atribuídas a ela. A
partir disso, a autora considera tais características como verdadeiros “dogmas”, uma vez que
são compartilhadas sem que se faça nenhum tipo de questionamento.
O primeiro “dogma” diz respeito à forma particular como a favela ocupa o espaço
urbano, seu modo diferente de crescimento em relação aos demais bairros. O segundo
“dogma”, definido pela autora como forte, se refere à ideia construída acerca da favela como
“o locus da pobreza, o território urbano dos pobres” (VALLADARES, 2005, p. 151). A força
de tal dogma, retomado das representações anteriores acerca da favela, consiste no seu amplo
compartilhamento, atitude também verificada nas ciências sociais. O terceiro “dogma”
consiste em uma unidade da favela, ou seja, se pensa e se discute a favela no singular
desconsiderando, pois, a sua heterogeneidade.
A repetição dos três dogmas citados acima tem como consequência a perpetuação de
ideias redutoras e preconceituosas acerca da favela. Em vista disso, Valladares (2005) aponta
para a necessidade de adotar o questionamento de tais ideias para que se possa construir novas
interpretações levando em consideração a complexidade do processo de diferenciação social
na sociedade brasileira e nas favelas.
14
Nesse sentido, o que foi apresentado aqui no que se refere a algumas representações
construídas acerca da favela tem o intuito de fazer pensar de forma questionada sobre o tema
provocando a desconstrução de estereótipos.
Diante disso, voltamos à questão: o que caracteriza a favela? Cabe dizer que a
favela/periferia no sentido em que é tomada aqui não está condicionada às ideias redutoras
provenientes das representações anteriores sobre a favela. A favela é constituída pela
heterogeneidade em sua realidade espacial e social. Ela não é lugar exclusivo da pobreza. O
tráfico de drogas não é a sua atividade dominante. Na realidade complexa da favela que a
mídia esconde, não por acaso, existe empreendedorismo, existe criação de arte, cultura e
produção de novas formas de vida, de resistências.
É interessante ressaltar o conceito de cultura marginal, uma vez que este perpassa o
presente trabalho. O conceito de cultura, segundo Chauí (2009), vem do verbo latino colere,
que significa o cultivo. Com o passar do tempo o conceito de cultura evoluiu e passou a
designar o mesmo que civilização. De acordo com a autora:
[...] Com o Iluminismo, a cultura é o padrão ou o critério que mede o grau de
civilização de uma sociedade. Assim, a cultura passa a ser encarada como um
conjunto de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite
avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução
( p. 24-25).
Nesse contexto a cultura servia para medir o grau de evolução da sociedade baseando-
se no modelo ocidental. Dessa forma, a cultura que fugisse a esse padrão era vista como
primitiva.
Na segunda metade do século XX a cultura passa a ter um sentido mais abrangente,
como nos afirma Chauí (2009, p. 28-30):
A cultura passa a ser compreendida como o campo em que os sujeitos humanos
elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si
próprios o possível e o impossível, a direção da linha do tempo (passado, presente e
futuro), as diferenças no interior do espaço (a percepção do próximo e do distante,
do grande e do pequeno, do visível e do invisível), os valores – o verdadeiro e o
falso, o belo e o feio, o justo e o injusto – que instauram a idéia de lei e, portanto, do
permitido e do proibido, determinando o sentido da vida e da morte e das relações
entre o sagrado e o profano.
15
O conceito de cultura é um tanto complexo, uma vez que ao falarmos de cultura temos
que, inevitavelmente, lembrar que a cultura é submetida a divisões assim como a sociedade é
dividida em classes. Dessa forma, podemos falar em cultura dominante, cultura popular,
cultura marginal, etc.
A ideia de cultura como sofisticação, atributo que um indivíduo possui e, por isso, é
considerado um “tipo especial de pessoa”, como afirma Williams (1969), desde sua invenção,
colocou o outro, o povo, “despossuídos desse atributo” em um lugar inferiorizado. De acordo
com o autor, esse tipo de cultura alimentada por certas pessoas “consiste em diferenças
triviais de comportamento, em sua variedade trivial de modos de falar” causando assim a
divisão social segundo o critério do que é ou não é cultura.
Esta ideia de cultura como algo restrito a uma parcela da população e, por isso, se diz
especial, consiste em sacralizar, isolar tudo o que for considerado e definido como cultura. A
ideia é que todas as coisas que forem designadas como tal fiquem protegidas para que
ninguém toque, apenas contemple, é a cultura como algo sagrado. Nesses termos ela será
reservada a poucos, aos cultivados, enquanto o povo não pode ter acesso.
Seguindo essa lógica, ao passo que um grupo hegemônico define certas coisas como
cultura para sacralizá-las, por outro lado tudo o que não for incluído nesse círculo será
amplamente rejeitado e divulgado como vulgar, ou seja, do povo, da massa, do outro
desconhecido. Isto se baseia na ideia das massas em que as pessoas comuns são encaixadas.
Williams contrapõe essa concepção, enfatizando que “as massas não existem de fato, o que
existe são modos de ver pessoas como massas”. No entanto, como afirma o autor, o termo
“massas” tornou-se a nova palavra para referir-se aos outros, desconhecidos, aos sujos, à
multidão, “que não me inclui”.
[...] a vulgaridade do gosto e dos hábitos, algo que seres humanos imputam com
facilidade a outros seres humanos, foi tomada como pressuposto, como uma forma
de estabelecer contato. A nova cultura foi construída a partir dessa fórmula [...]
(WILLIAMS, 1969, p.17).
Essa noção de vulgaridade das massas construiu as bases de uma cultura sacralizada.
Contrapondo a essa concepção, Williams (1969, p. 12) assevera que:
16
[...] Uma cultura são significados comuns, o produto de todo um povo, e os
significados individuais disponibilizados, o produto de uma experiência pessoal e
social empenhada de um indivíduo.
Nesse sentido, a cultura é algo comum a todos, ela pertence a todos e não apenas a um
pequeno grupo dominante. A produção artística e cultural da periferia exemplifica muito bem
o que se vem discutindo até aqui.
Não é nenhuma novidade o fato de a periferia ser um espaço que tem seus direitos
negados. Para ir mais longe, podemos ainda dizer que a periferia passa por um processo de
desumanização, de deslegitimação da vida em seu aspecto mais natural e de todas as formas
em que essa vida existe e resiste. Diante dessa constatação, cabe dizer que para o grupo
dominante da sociedade, a cultura e a arte é incompatível com a periferia e vice-versa.
A produção artístico-cultural da periferia é confrontada pelas ideias de um grupo
hegemônico que se considera possuidor de uma cultura que não se define como comum. A
Cultura Hip Hop, por exemplo, não é legitimada enquanto cultura pelo grupo dominante. Pelo
contrário, é vista e entendida por este como um conjunto de práticas de pessoas ignorantes da
periferia (dança, música...), destituídas de significados. Em outras palavras, se o hip hop é da
periferia, portanto, é coisa do povo, das massas que habitam as favelas, que não sabem falar e
não tem conteúdos, logo não é cultura, de acordo com os termos que vimos.
Dessa forma, a arte produzida na periferia não é vista como produção artística e
cultural, até porque quando se pensa ou se fala em favela a última coisa que se projeta é a
periferia como produtora de arte e cultura.
Isto envolve não apenas o julgamento quanto à forma e ao conteúdo da arte periférica,
mas sobretudo a origem social e racial dos sujeitos produtores dessa arte. O preconceito
construído acerca da periferia, na verdade, se resume no preconceito contra as pessoas deste
lugar, que não possuem poder econômico e são, em sua grande maioria, de pele negra, fato
que por si só é gerador de inúmeros estereótipos.
1.1 A cor das margens
A periferia é um espaço marcado pela estigmatização e abandono por parte do poder
público. O discurso oficial, da cultura dominante, se apropria da visão negativa que se
17
construiu a respeito das periferias para difundir e perpetuar o estigma sobre os jovens negros
moradores de favelas. Vale dizer que o estigma que a periferia carrega tem cor. A segregação
social pela qual passam os moradores de periferias está fundamentada não apenas na classe
social de origem, mas também na cor da pele.
Desde que a noção de raça foi criada para colocar o negro em posição de inferioridade
e sempre o separando, colocando-o à margem com base em definições totalizadoras, as
pessoas de cor ainda no contexto contemporâneo resistem e lutam pela garantia de espaço.
É nesse sentido que a palavra negro não pode jamais ser considerada vazia de sentido,
uma vez que ela carrega consigo toda história de escravização, inferiorização, violência e,
sobretudo, de resistência de um grupo humano específico. Além disso, como aponta Cuti
(2010), a palavra negro remete de imediato para o fenótipo, alvo das ações racistas. É por esse
motivo, segundo o autor, que a palavra negro vem sendo combatida, pois a mesma faz
lembrar a história social e o fenótipo do homem de cor e, consequentemente, tira o véu que
encobre o racismo, trazendo à tona a reivindicação antirracista.
As diferenciações entre negros e brancos só passaram a existir quando os brancos
entraram em contato com outros povos com diferenças fenotípicas em relação a eles, como a
cor da pele, o tipo de cabelo e formato do nariz. A partir desse encontro os povos brancos
atribuíram às suas características físicas uma superioridade que Cuti (2010) chamou de
congênita. Sobre isso o autor faz a seguinte ilustração:
Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares seus,
estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar para ele,
obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente diferente de
você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a você, acreditar nisso e
fazer até você crer nos argumentos dele [...] Racismo é isso (CUTI, 2010, p. 2).
Assim, a ideia de superioridade de um grupo social em relação a outro foi imposta,
injetada no imaginário social, de modo que as práticas de discriminação foram legitimadas
pelos argumentos criados pelos racistas. Cuti (2010, p. 3) enfatiza:
Uma pessoa racista é uma pessoa complexada, ou seja, alguém com doença
psíquica. Se um individuo diz que ele é o Super Homem, está querendo dizer que
tem poder mais que os outros. O sentimento de superioridade congênita, por que se
tem a pele e olhos claros, nariz estreito e cabelo liso, é uma doença psíquica.
18
Como aponta a citação acima, o sentimento de superioridade branca é, na verdade,
uma doença que faz com que um grupo humano acredite ser superior a outro grupo baseado
em diferenças triviais.
Desse modo, a atitude do racista lhe garante uma série de vantagens e privilégios na
sociedade devido a seu fenótipo dominante. A prática racista para chegar a tal objetivo utiliza
a estratégia mais bem calculada em termos de crueldade. O homem branco criou sua própria
superioridade em relação ao mundo negro e, através da violência e humilhação, fez o homem
de cor acreditar fielmente na sua inferioridade. Sobre o racismo Moore (2007, p. 282- 283)
enfatiza:
Parece suficientemente óbvio que o racismo corresponde a uma forma específica de
ódio; um ódio peculiar dirigido especificamente contra toda uma parte da
Humanidade, identificada a partir de seu fenótipo. É o fenótipo dos povos
denominados negros que suscita o ódio: um ódio profundo, extenso, duradouro,
cujas raízes se perdem na memória esquecida da Humanidade e que remetem a
insolúveis conflitos longínquos.
Esse ódio contra a Humanidade especificamente negra possui uma existência histórica
e está presente em todos os âmbitos da sociedade. Segundo Moore (2007), todo esse ódio,
preconceito dos brancos racistas contra as diferenças fenotípicas dos negros, carrega um
indiscutível objetivo: se aproveitar da condição de inferioridade imposta aos negros para
usufruir de todos os privilégios e vantagens reservados unicamente aos brancos. Vale salientar
que essas discussões tecidas até aqui vem pontuando questões acerca do racismo científico,
que foi a base para subjugar o mundo negro. Mais adiante veremos como que a construção da
inferioridade do povo negro, a sua condição social no período escravocrata se constitui como
base para produção das classes sociais excluídas.
A estratégia de imputar a inferioridade ao outro ao longo dos anos foi modelada,
aperfeiçoada e fortalecida, de modo que o mundo negro foi submetido à alienação racial da
qual Fanon (2008) fala. Além disso, todo o processo de subjugação do povo negro causou
neste a neurose que Fanon (2008) aborda com maestria em Pele negra máscaras brancas.
De acordo com Fanon (2008), o sentimento de inferioridade que se desenvolveu no
negro acabou provocando neste a neurose. Esta leva o indivíduo negro a assumir a atitude de
recuar ou obedecer às ordens de um branco por acreditar na sua inferioridade. Por outro lado,
19
o negro, sob o efeito da neurose, pode tentar se aproximar do branco e querer se apropriar de
sua cultura e de seu modo de ser, numa tentativa incansável de provar aos povos
despigmentados a sua condição de ser humano, sua inteligência e capacidade. Nas palavras de
Fanon (2008), “[...] o preto, escravo de sua inferioridade, o branco, escravo de sua
superioridade, ambos se comportam segundo uma linha de orientação neurótica” (p. 66).
De acordo com as palavras de Fanon, tanto o sentimento de superioridade quanto o de
inferioridade, o primeiro alimentado pelo branco e o segundo pelo negro, leva ambos a um
estado doentio, que resulta em comportamentos neuróticos.
O complexo de inferioridade do negro, bem como os significados negativos atribuídos
à palavra negro tem origem na mentalidade racista do branco, que levantou a questão da
humanidade dos povos negros e fez com que estes duvidassem da sua condição de humanos.
[...] começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe
uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer
originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu
acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou uma besta fera,
que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de
cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo” (FANON,
2008, p. 94).
As palavras supracitadas exemplificam os efeitos do racismo, como o estado de
neurose experimentado pelo negro ao se deparar com estratégias discriminatórias, que
deslegitimaram sua vida, esvaziando-a de sua humanidade e valor.
O discurso racista, colonial, se apoia no estereótipo como ferramenta para propagar e
fortalecer a ideologia racista. Os estereótipos negativos impostos ao negro foram fixados
como verdades inquestionáveis e para sua manutenção a ideologia racista emprega a repetição
ininterrupta.
Nesse sentido, o racismo nos dias atuais se encontra cada vez mais arraigado na
consciência do povo brasileiro, uma vez que, à medida que o tempo passa e a sociedade se
transforma, ele, o racismo, também passa por metamorfoses e se insere nas novas estruturas,
cada vez mais forte e eficaz.
Longe de recuar diante da educação e da ciência, e em vez de ser contido pelo
acúmulo crescente de conhecimentos, o racismo adentra-se na ciência e converte-se
20
em modo de educação. Ele ressurge como um racismo mais “científico”, mais
“refinado” e, crescentemente, mais “cordial” e “educado” (MOORE, 2007, p. 289).
Como afirma o autor, o racismo consegue se adequar facilmente às novas realidades e
se efetivar de forma sutil e, consequentemente, cada vez mais eficiente. Desse modo, o
racismo mantém os privilégios do segmento hegemônico intocáveis. Os benefícios que tal
grupo possui estão praticamente em todas as dimensões, social, política, econômica,
psicológica, enquanto todos esses recursos são negados à população alvo das agressões
racistas.
Diante de todo histórico de subjugação e inferiorização do homem de cor, surgiu a
necessidade de criar uma resposta às ideias que despersonalizaram e desumanizaram o povo
negro. Assim, foi de dentro dessa parcela da Humanidade que se originou o grande
movimento de reivindicação antirracista, o movimento da Negritude. Tal movimento tem
como idealizadores Aimé Césaire e Leópold Sedar Senghor.
Em seu Discurso sobre a Negritude Aimé Césaire afirma que o conceito da Negritude
tem suas bases na Revolução do Haiti, em que se elaborou uma resposta do mundo africano
escravizado ao mundo ocidental hegemônico. Daí decorre a importância da Revolução do
Haiti, uma vez que foi nesse momento histórico que a Negritude foi colocada de forma
radical.
A Negritude assim como proposta por Aimé Césaire busca a desalienação do mundo
negro, seu protagonismo, valorização e legitimação. Em outras palavras, o que o movimento
da Negritude propõe é a autoafirmação, a revalorização antirracista do ser negro. Para o autor,
a negação do negro deve ser seguida de uma afirmação racial, é transformar o negativo em
positivo e legitimar isso. Nesse ponto Cuti (2010) também enfatiza que, se a palavra “negro” é
carregada de significados negativos que são utilizados para ofender, deve-se partir, então, da
ressignificação dessa palavra, atribuindo-lhe um teor positivo e assumindo-a com orgulho.
Feito isto, corta-se o mal, tira-se, portanto, a arma de ofensa das mãos dos racistas.
Cabe dizer que as margens não sofrem violência e opressão sem resistência e produção
de respostas ao poder que aí é investido. As margens a periferia resistem, reagem e
mostram essa força cada vez maior. Pensemos no Sarau da Onça, na força que tal iniciativa
possui e na importância dela para o bairro de Sussuarana como para outras periferias de
Salvador. É um espaço que convida a pensar, a refletir, a questionar verdades estabelecidas e
estereótipos e lugares criados para o negro, sobretudo da periferia. Melhor que falar é sentir o
21
que se está dizendo, olhos atentos nas palavras de Negreiros Souza presente na antologia do
Sarau da Onça (2017, p. 77):
É detector de metal ou melanina?
Passei por 5 agências bancárias, tirei tudo de dentro da bolsa
Só prá não ter ouvir aquela porta de vidro travar
Seguida daquela vozinha insuportável da gravação eletrônica
Me dizendo:
- Deposite seus objetos de metal na caixa ao lado
Moedas, chave, celular, sombrinha...
E por um triz minha alma não ficou por lá
Mas a porta tem um problema comigo e insiste em travar
Pensei em fazer um strip
Em tirar a roupa TO-DA, mas, sabia que se fizesse isso ainda não
ia dar conta
Poderia ser taxada como escandalosa, louca, tonta
O guarda do banco me interpelou com o olhar e me disse:
- Senhora, já tirou tudo de dentro da bolsa?
Olho prá ele e lhe respondo
- Já tirei tudo de dentro da bolsa
Não tenho DIU no útero ou você quer dá uma olhada?
E novamente na agência eu tento adentrar, mas a porta novamente insiste em apitar.
Então eu olho pro guarda e digo:
Meu filho eu já tirei tudo, será que seu tirar além da roupa,
minha alma e minha pele eu consigo entrar?...
E sem quase nada, sem cor, sem dignidade, realizo a minha terceira tentativa
E novamente a porta insiste em travar
O problema não tava na bolsa, no corpo tá no meu DNA
Então, o que me resta é apenas questionar
é detector de metal ou melanina?
Na pequena narrativa fica bastante claro o tom de revolta e crítica perante o sistema
racista e opressor que ainda impera em nossa sociedade. Questiona-se para quem é
direcionada a criação do sistema de segurança, a exemplo da agência bancária. Em outras
palavras, a questão que se coloca é sobre o alvo da condenação, opressão e humilhação em
que o padrão escolhido é o sujeito negro e periférico, o que fica claro nas últimas frases:
Então, o que me resta é apenas questionar é detector de metal ou melanina? Para ir mais
além, cabe dizer que esse padrão é baseado também na origem social dos sujeitos, uma vez
que a questão de raça está ligada à classe social. Isso encontra uma razão de ser no fato de a
classe desfavorecida de hoje se constituir como herança de um passado escravocrata. Assim,
quem ocupa, em sua maioria, a classe menos prestigiada é o negro. Isso não é um cálculo
guiado por um determinismo. Não está sendo dito aqui que o negro pertence à classe
desfavorecida, sendo impossível a este uma ascensão social. Se essa classe social é, em sua
22
maioria, composta por negros isso se deve ao passado de escravização e a produção de
desigualdades, que desde o início colocou o povo negro em condições desfavorecidas.
Contudo, as barreiras impostas pelas desigualdades são enfrentadas e derrubadas, exemplo
disso é a entrada de jovens negros nas universidades.
Dentre as ações e movimentos que se inspiraram na Negritude de forma prática vale
ressaltar o movimento Hip Hop. A cultura Hip Hop, segundo Miranda (2018), nasceu nos
Estados Unidos em 1970, influenciada por elementos de outros lugares. De acordo com o
autor:
[...] Tudo começa com os DJs. Dois deles se destacaram. O primeiro foi o DJ Kool
Herc, jamaicano que na adolescência migra com a família para os EUA, em busca de
melhores condições, indo morar no Bronx, bairro popular de Nova York. Leva duas
importantes tradições: uma refere-se aos sound systems (sistemas de som), que
passou a armar nas ruas para suas festas e a outra, ao hábito de falar em cima de
bases rítmicas [...]. Estabelecia-se ali o ponto crucial para uma verdadeira revolução
(p. 204-205).
Conforme o autor afirma, essas festas atraíam grande quantidade de jovens, incluindo
muitos membros de gangues, que enxergaram na manifestação uma nova forma de competir,
mas com o uso da arte e não da violência. Assim, dessa arte de improvisar um discurso
rimado, surgiram os raps, sigla para rhythm and poetry e em português quer dizer “ritmo e
poesia. Nesse contexto também se desenvolveu o breaking, espécie de dança, assim como o
grafite já começava a ser utilizado pelos jovens para demarcar território. O outro DJ, segundo
Miranda (2018), é Afrika Bambaataa, que fundou a Universal Zulu Nation em 12 de
novembro de 1973. Trata-se de uma organização que definiu os princípios universais para o
Hip Hop, estabelecendo uma base teórica para o movimento. O termo Hip Hop é empregado
para se referir aos quatro elementos, a saber: o DJ (Disc Jockeys), o MC (Mestre de
cerimônia), o grafite e o Breaking (a dança). De acordo com Miranda (2018, p. 69), “[...]
diferente do Rap e do Breaking, o Graffiti e o DJ tiveram origem anterior à existência do Hip-
Hop”. Segundo o autor, no seu sentido original o graffiti, no italiano, fazia referência a
“assinaturas, frases ou desenhos feitos espontaneamente nas ruas”. Foi com a sua
incorporação enquanto elemento do Hip Hop que a prática do graffiti ganhou contornos
diferentes, com a utilização de tinta spray e desenhos mais elaborados. O DJ, enquanto
elemento do Hip Hop, com o uso de toca-discos e aparelhagens como o Sampler e o Mixer,
elabora composições sonoras que são a base para os discursos elaborados pelo/a MC. O MC
23
ou a MC, por sua vez, é responsável pelo discurso rimado, pela poesia a ser cantada, isto é,
pelo rap. Ainda há um quinto elemento, o Conhecimento, que “agrega os demais elementos
artísticos, imprimindo um caráter de comprometimento pedagógico e histórico”, afirma
Miranda (2018, p. 13). Sobre as razões para incorporar o Conhecimento enquanto quinto
elemento do Hip Hop, o autor assevera que:
[...] A partir da década de 1980, nos Estados Unidos, a indústria musical e a mídia
passaram a tratar o Hip-Hop como sinônimo de Rap, deixando os outros elementos
de fora. Resultado: Hip-Hop passou a ser difundido como um estilo musical,
chegando a ser considerado por uns como apenas sinônimo para Rap e, por outros,
como estilo diferente. Essa ideia espalhou-se de modo equivocado, preocupando
seriamente a Zulu Nation que, buscando superação do problema, promoveu o
Conhecimento como o 5° elemento. Esse passou a ser enfatizado enquanto
necessidade de se conhecer a história do Hip-Hop, bem como seus princípios
filosóficos (MIRANDA, 2018, p. 13-14).
Assim, a união dos cinco elementos do Hip Hop constitui o movimento que se
caracteriza por seu caráter sociopolítico e de reivindicação de direitos. Vale salientar que o
Hip Hop é heterogêneo, ele tem particularidades. Não dá para afirmar, por exemplo, que o
Hip Hop nacional é uno. Outra questão interessante é no que diz respeito às diferenças entre
Cultura Hip Hop e Movimento Hip Hop. A partir do que consegui colher das leituras que
realizei, construí a compreensão de que a Cultura Hip Hop é a prática de cada elemento
artístico, seja o DJ, o rap, o grafite, a dança. Por outro lado, o Movimento Hip Hop se
configura na união dos cinco elementos, assumindo a responsabilidade de se organizar, de
discutir sobre questões diversas, criar projetos de transformação social, etc. Contudo, ambos,
a Cultura e o Movimento são interdependentes.
A partir de seu surgimento nos Estados Unidos o Hip Hop ganhou o mundo. Vale
destacar que o movimento em cada lugar se desenvolveu de forma dinâmica. No livro Bahia
com “H” de Hip-Hop, o autor Miranda (2018), já citado aqui, trata da história do Hip Hop na
Bahia. O autor mostra como que o movimento foi adentrando cada espaço e como que o
cinema e a TV tiveram uma influência inegável nesse processo. O autor dá exemplos de
diversos filmes que representaram uma forma de os sujeitos conhecerem a Cultura Hip Hop,
novidade até então. Assim, foi na década de 1980 que surgiram as primeiras manifestações da
Cultura Hip Hop na capital baiana.
De acordo com Souza (2011), o rap, que foi o pontapé inicial para o desenvolvimento
do que hoje conhecemos como Hip Hop, está associado “a práticas culturais da África
24
tradicional — recriadas na atualidade —, nas quais a linguagem oral assume papel central”. O
rap é fundado a partir de narrativas orais que falam das experiências do cotidiano e é
justamente esta prática da oralidade que se constitui como herança dos africanos. A oralidade
foi ressignificada pelos rappers e é a principal arma de resistência negra e combate às
desigualdades sociais e raciais.
Como afirma Souza (2011), a inserção dos negros na escola passou por um grande
processo de rejeição e humilhação. O acesso à escola sempre foi visto como possibilidade de
ascensão social por uma parcela dos negros, embora este mesmo espaço seja o local por
excelência das práticas de exclusão e cerceamento dos sujeitos. Um dos mecanismos
utilizados para excluir os indivíduos negros do espaço de escolarização é o desprezo pela
linguagem destes e imposição da língua hegemônica como a única forma de expressão do
modo de ser e ver o mundo. É nesse sentido que Souza (2011, p. 37) confere ao Hip Hop o
caráter de agência de letramentos de reexistência.
Letramentos de reexistência aqui será a reinvenção de práticas que os ativistas
realizam, reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco
contada, nos quais os usos da linguagem comportam uma história de disputa pela
educação escolarizada ou não. Para os rappers, a educação e a posse da palavra são
marcadas pelo esforço de reconhecimento de si, desafiando, de diferentes maneiras e
em diferentes formatos, a sujeição oficialmente imposta, ainda materializada no
racismo, nos preconceitos e discriminações.
A Cultura e o Movimento Hip Hop são via para o acesso ao mundo letrado, de modo
que a linguagem dos sujeitos é utilizada como forma de legitimação de si e das experiências,
bem como um modo de resistência da identidade negra.
Os letramentos de reexistência mostram-se singulares, pois, ao capturarem a
complexidade social e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da
linguagem, contribuem para a desestabilização do que pode ser considerado como
discursos já cristalizados em que as práticas validadas sociais de uso da língua são
apenas as ensinadas e aprendidas na escola formal (SOUZA, 2011, p. 36).
O letramento pode ocorrer de forma autônoma, na maioria das vezes, uma vez que o
Movimento Hip Hop conduz os sujeitos na busca de conhecimentos variados, sobre a própria
25
história do movimento, sobre questões sociais, políticas, raciais, entre outros. Miranda (2018)
enfatiza justamente esse aspecto formador do Hip Hop:
Escola é um local de aprendizado e diz-se que uma universidade é um tipo de escola
onde o saber é superior. Se assim o é, o Hip-Hop desde a sua origem é um
verdadeiro campo acadêmico para os seus adeptos. É onde também se desenvolve
conceitos e teorias a fim de se analisar e compreender fenômenos diversos (p. 204).
O Hip Hop possibilita, dessa forma, a apropriação de conhecimentos pelos sujeitos,
bem como o desenvolvimento da capacidade de ler e interpretar o mundo, a própria história e
criar estratégias de intervenção na realidade que os cerca. Em seu livro Miranda (2018)
esclarece como que o Hip Hop se organiza no estado da Bahia e, especificamente, em
Salvador. O autor aborda o desenvolvimento e articulação da Rede Aiyê Hip-Hop,
“Organização do Hip-Hop que congregava artistas e ativistas dos municípios de Salvador e
Lauro de Freitas” (p. 11), bem como da Posse Orí. Posse se refere ao “núcleo de Hip-Hop
organizado em um bairro específico” (p. 123). Nesse contexto, aconteciam reuniões para se
discutir questões e elaboração de projetos. Sendo assim, essas organizações são essenciais
para o Letramento de Reexistência abordado por Souza (2011), uma vez que esses espaços e
momentos criados pelo Hip Hop oportunizam aos sujeitos a aquisição de conhecimentos
diversos, bem como o aprimoramento da prática da leitura e escrita e de seus usos para
planejar ações.
Assim, frente ao racismo e aos estereótipos depreciativos que a população negra e,
sobretudo, das periferias é alvo, o Hip Hop surgiu nas ruas como um movimento
reivindicatório, de protesto e revalorização das pessoas de cor. É a tomada da palavra por
sujeitos donos de sua história, que, ao assumirem sua identidade, a sua negritude, desconstrói
as imagens negativas em torno do ser negro e as transformam em símbolo de resistência
dentro da periferia.
Como já sabemos, a presença do negro é amputada em todos os espaços de poder e
não existe uma representação de si, pelo menos positiva, isenta de estereótipos. A sua
presença continua sendo ausência, visto que esta presença sempre está nos termos do grupo
hegemônico de poder.
Nesse sentido, o Movimento Hip Hop se configura como um espaço de representação
e ressignificação do negro e de sua cultura. É um ato de resistência negra contra as agressões,
humilhações, violências e o ódio propagado pelo racismo. Através das ações do hip hop
26
derrubam-se aos poucos as barreiras que impedem a periferia “negra” de se expressar e
mostrar o seu potencial de produção artística e cultural.
O rap é um dos gêneros no qual podemos observar a brincadeira com a linguagem
que sustenta um dizer que é autônomo, contestador, contra-hegemônico e promotor
de um conhecimento mobilizador. Mesmo quando um rap é lido, a sonoridade está
presente de forma tão fundamental que é possível “ouvi-lo”. A subversão da escrita
por meio da oralização confere ao rap uma originalidade e autonomia perante a
escrita escolarizada que mostra a inventividade e a agência de sujeitos que querem
expressar as peculiaridades da vida marginalizada por meio de uma escrita também
“marginal” (SOUZA, 2011, p. 118- 119).
O rap, um dos elementos que compõem o Hip Hop, através do uso singular da
linguagem aciona conhecimentos históricos no que diz respeito à população negra e à da
periferia, trazendo à cena as experiências de um povo que é vítima de um ódio implacável, do
abandono. Nas letras de rap há a construção de novos sentidos, de uma nova subjetividade em
relação à questão racial. Há um empoderamento do negro através da sua autoafirmação, do
orgulho de sua cor e da negação e enfrentamento ao preconceito e discriminação.
Dessa forma, o Movimento Hip Hop se constitui como movimento cultural e político
de grande potência no debate em torno da questão racial. Trata-se de uma voz, um grito negro,
que emana da periferia e tem sede e fome de transformação. É um grito consciente, engajado,
empoderado, cuja arma é a linguagem.
Os discursos no Hip Hop são produzidos de acordo com a posição socioideológica dos
sujeitos. Portanto, ao produzir seus discursos e, consequentemente, sentidos, os sujeitos o
fazem de acordo com o seu lugar de fala. E é esse lugar e o posicionamento desses sujeitos
frente à realidade que irá conferir potência ao Movimento Hip Hop, uma vez que são eles, os
próprios negros da periferia, que vão soltar a voz de protesto, que vão recontar a história do
negro sobre outra ótica, diferente da versão contada pela cultura dominante.
A cultura marginal está ligada à produção artística e cultural de grupos marginalizados
que através da arte se posicionam como porta-vozes da realidade da periferia. Nesse sentido,
segundo Nascimento (2009, p. 93), “[...] o hip hop brasileiro é abordado como um modo
singular de apropriação do espaço urbano e do agir coletivo dos moradores das periferias
urbanas e está associado às experiências dos jovens afrodescendentes”.
27
Desse modo, tal expressão cultural se desenvolveu sob fortes influências de grandes
movimentos que lutaram e lutam por direitos da população negra. Nesse sentido, a Cultura
Hip Hop tem contribuído para o fortalecimento dos debates e lutas contra o racismo e
visibilidade da cultura e identidade negra. Nele a negritude é colocada em ação, é vivenciada
enquanto símbolo de resistência por negros da periferia.
Face ao racismo científico, conceito discutido neste capítulo, temos o culturalismo.
Para tratar deste conceito recorro aqui às discussões do sociólogo Jessé Souza presentes em
seu livro A elite do atraso2. De acordo com Jessé Souza (2017), o culturalismo, na verdade,
não representa a superação do racismo científico, uma vez que ele funciona nos termos deste.
Em outras palavras, o culturalismo, assim como o racismo científico, separa os indivíduos em
classes superiores e inferiores.
Ao analisar a sociedade brasileira Jessé Souza (2017) aponta a escravidão como um
ponto de origem das desigualdades sociais que caracterizam o Brasil até os dias atuais.
Segundo ele, é da escravidão que advém o ódio e o abandono aos pobres, os quais passam
pelo processo de animalização e humilhação, assim como ocorria com os negros escravizados
no período escravocrata. De acordo com o autor, se o racismo científico era praticado de
forma explícita, o culturalismo racista age de forma camuflada, embora seus efeitos sejam
sentidos com tamanha força. Nesse sentido, Souza (2017) mostra com suas análises que o que
está em jogo refletindo seus efeitos não são unicamente as questões raciais, mas também as
questões sociais e de classes.
Assim, as classes sociais desfavorecidas foram relegadas ao abandono e desprezo,
destinadas a ocupar trabalhos braçais, que exigem o uso do esforço corporal de forma
semelhante ao que ocorria com os negros no período da escravidão. Cabe dizer que a classe
pobre é composta por indivíduos de cor de pele negra e branca, sendo que os primeiros estão
em maioria. Essa situação, também explicada por Souza (2017), se deve ao fato de que as
classes excluídas são continuidade da escravidão, praticada de outras formas. A partir disso, o
autor explica como ocorreu a formação de uma classe que ele chama de “ralé de novos
escravos”:
[...] entre as classes sociais que formaram o Brasil moderno, foi a “ralé de novos
escravos”, que soma ainda hoje em dia mais de um terço da população, agora de
todas as cores de pele, mas, herdando o desprezo social de todos que era devotado
2 Leitura indicada pela professora Dra. Maria Neuma Mascarenhas Paes na banca de qualificação.
28
ao escravo negro, o elemento mais importante para singularizar o Brasil (SOUZA,
2017, p. 102).
Nesse sentido, a classe social abandonada passa pelo processo de opressão herdada do
período escravocrata em que a cor da pele negra se constitui como motivação para uma
maldade adicional.
O que está por trás da desigualdade social é exatamente a manutenção dos privilégios
e a divulgação deste enquanto atributo inato aos indivíduos. A manutenção dos privilégios se
dá através do processo de socialização familiar, que ocorre de forma diferente nas classes
privilegiadas e nas classes desprivilegiadas. Souza (2017) exemplifica tal situação mostrando
que, na classe média, os pais compram o tempo dos filhos para que eles se dediquem
exclusivamente aos estudos, enquanto na classe pobre muitos têm que dividir o tempo entre
escola e o trabalho. Além disso, em uma família de classe média as crianças são incentivadas
a adquirir o hábito da leitura, a se dedicar aos estudos e a planejar o futuro. Os filhos seguem
o exemplo dos pais. Na classe desfavorecida ocorre o contrário. Geralmente no contexto
familiar a criança não possui estímulos no que diz respeito à leitura e a dedicação aos estudos.
Sendo assim, a criança tende a imitar os pais, que também tiveram uma socialização familiar
parecida com essa. Em outras palavras, o que ocorre é a transmissão de classes de geração a
geração.
É preciso partir, portanto, literalmente do “berço”, ou seja, da socialização familiar
primária, para que se compreenda as classes e sua formação e como elas irão definir
todas as chances relativas de cada um de nós na luta social por recursos escassos. As
classes são reproduzidas no tempo pela família e pela transmissão afetiva de uma
dada “economia emocional” pelos pais aos filhos. O sucesso escolar dependerá, por
exemplo, se disciplina, pensamento prospectivo - ou seja, a capacidade de renúncia
no presente em nome do futuro – e capacidade de concentração são efetivamente
transmitidas aos filhos. Sem isso, os filhos se tornam no máximo analfabetos
funcionais. É esse “patrimônio de disposições” para o comportamento prático, que é
um privilégio de classe entre nós, que vai esclarecer tanto a ocupação quanto a renda
diferencial mais tarde, como cada classe social tem um tipo de socialização familiar
específica, é nela que as diferenças entre as classes têm que ser encontradas e
refletidas (SOUZA, 2017, p. 88).
Isso advém também de uma herança da escravidão, uma vez que nesse período os
negros escravizados não tinham o direito à socialização familiar, à construção da autoestima e
ao desenvolvimento da capacidade de planejar o futuro.
29
Cabe ressaltar que tal realidade não existe sem que haja resistências que busquem a
transformação. As margens resistem através da arte e cultura e das intervenções realizadas
com essas ferramentas, além da ocupação de espaços dominantes. Se o capital cultural, o
acesso à universidade é um privilégio que uma classe dominante tenta proteger barrando a
entrada das minorias, os sujeitos da classe desfavorecida “arrombam” os portões e ocupam os
espaços transformados em privilégio de classe ao longo dos séculos. O termo “arrombar” é
empregado para destacar que elementos que eram para ser direito de todos, são transformados
em privilégios de poucos, o que deixa claro os lugares ocupados pela classe dominante e pela
classe desfavorecida socialmente como sendo fruto da construção e manutenção dos
privilégios na sociedade brasileira. “Arrombar” os portões, então, significa tomada de direitos
secularmente negados à classe desfavorecida.
1.2 A fabricação das formas de vida
Na raiz de todo dispositivo, está, deste modo, um desejo
demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a
subjetivação deste desejo, numa esfera separada,
constituem a potência específica do dispositivo
(AGAMBEN, 2009, p. 44).
Nossa sociedade é composta por relações de poder no interior das quais estão as
hierarquias, as forças dominantes que estão sempre em choque com as instâncias menos
favorecidas na sociedade. Posto isso, o pensamento de Agamben (2009) supracitado nos
servirá como guia para tentar entender as forças de controle social responsáveis pela
manutenção do sistema capitalista. O dispositivo, de acordo com o autor, é tudo aquilo capaz
de estabelecer controle, fabricar e moldar comportamentos dentro de uma sociedade. Assim,
apoiando-se em Foucault, Agamben (2009, p. 40) define dispositivo:
[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e
assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.
30
O autor ainda enfatiza:
Não seria provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento
capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de
dispositivos. Certamente, desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos,
mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não
seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo (2009, p. 42).
Entramos agora na questão chave para esta breve discussão. O capitalismo ganhou
proporções gigantescas em nossa sociedade de modo que tudo é mediado por ele. Com esta
lógica a produção de desigualdades sociais tem crescido muito, uma vez que a camada da
população que não consegue se encaixar na lógica capitalista é lançada à margem.
Por outro lado, o sistema capitalístico penetra a vida dos indivíduos em suas mais
diversas esferas deixando seus efeitos tão bem enraizados que em certa medida olhamos tudo
com naturalidade, esta também fabricada pelo sistema. O modo de ver e entender o mundo, de
agir, de pensar, de ser é essencialmente moldado e controlado sem que as pessoas percebam.
A subjetividade é fabricada e modelada. Pensemos no sistema capitalista como um dispositivo
de dominação dos indivíduos. Primeiro esse dispositivo injeta desejos e necessidades nas
pessoas para em seguida capturar tais desejos e produzir os processos de subjetivação que irão
controlar os indivíduos a cada segundo de sua vida, levando-os a pensar dessa forma e não
daquela, a tomar uma decisão e não outra, a comportar-se de um modo e não de outro. Em
outras palavras, os indivíduos terão a ilusão de uma liberdade que se traduz, na verdade, em
verdadeira prisão.
Esta fabricação de subjetividades nas camadas desfavorecidas da sociedade tende a
produzir, em certa medida, efeitos cruéis na maioria dos casos. Pensemos como tais efeitos
podem se configurar dentro das margens. Como vimos, a favela desde a sua criação foi
colocada no plano de representações negativas, associada à proliferação de doenças e
criminalidade. Se compararmos tais representações com as de hoje veremos que não mudou
muita coisa, tendo em vista que a periferia ainda é associada à violência, pobreza e ao tráfico
de drogas pelo discurso midiático. Contudo, se o discurso da mídia tenta impor aos sujeitos
da periferia uma subjetividade que os caracteriza enquanto indivíduos propensos ao crime, tal
medida não acontece sem que haja a produção de respostas por esses sujeitos.
Cabe ressaltar que frente aos processos de subjetivação há os processos de
singularização, meio pelo qual é possível romper com a subjetividade dominante e com o
31
controle que ela exerce sobre os indivíduos. Considerando o potencial da poesia no que diz
respeito ao enfrentamento político e a transformação social, o Sarau da Onça se configura
como espaço de produção de novas subjetividades que se caracteriza pelo processo de
singularização, conceito proposto por Félix Guattari e Suely Rolnik assim definido por eles:
A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a idéia de que é possível
desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de
“processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de
encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de
telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade,
modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que
produzam uma subjetividade singular (GUATTARI, ROLNIK, 1996, p. 17).
O conceito de singularização da forma como foi explicitado por Guattari e Rolnik
(1996), propõe que os sujeitos se libertem da dependência com relação ao poder global e
adquiram a capacidade de ler e interpretar a própria história, sua realidade, criando, assim,
suas próprias referências. Nesse sentido, o Sarau da Onça é um espaço que produz a
singularização na medida em que os sujeitos que escrevem e recitam suas poesias estão
captando elementos da realidade, lendo, conhecendo e (re) interpretando a própria história,
transmitindo experiências através da arte, da voz e performance. Como dizem Guattari e
Rolnik (1996, p. 46): “Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de
criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante”. Além
disso, através do Sarau a poesia é desconstruída enquanto arte inatingível e produzida por uma
elite para ser reconhecida e recriada como parte da experiência dos sujeitos marginalizados,
bem como utilizada como arma para o enfrentamento político e a transformação social. O
Sarau da Onça possibilita aos sujeitos a reflexão e desconstrução de padrões e preconceitos
arraigados na sociedade brasileira. Assim, a poesia que o Sarau faz ecoar aborda e provoca
reflexões sobre diversos temas, como o racismo, a intolerância religiosa, machismo,
homofobia, empoderamento negro e feminino, entre outros. Convido a leitura da poesia “A
vida sob letras” de Sandro Sussuarana (2017, p. 10-11) para nos ajudar a pensar o que vem
sendo dito.
Quando que eles acreditaram em nós?
32
Que escreveríamos a nossa história?
Nos tornaríamos nossos próprios heróis?
Que deixaríamos de acreditar
Em tudo que nos era imposto
E passaríamos a acreditar
Nas verdades estampadas
Em nossos rostos?
É, eu sei que eles não queriam
A gente escrevendo, falando
Deve ser mais foda ainda
Eles vendo os pretos tudo se formando!!
Indo no caminho inverso da alienação;
quebrando correntes, derrubando muros
E cada vez mais carregado de informação.
Que é pra eles entenderem
Que nem a Choque, muito menos o Bope
vão impedir a nossa transformação
Porque já fomos mortos, caçados, jogados ao mar
Agora eles vão ter que engolir
“Nós” tudo equipado com conhecimento suficiente pra nossa história protagonizar.
Já tamo cansado de todas essas apropriações
De branco querendo ser preto
Falando em nome dos preto
Mas só serve ser preto em algumas ocasiões
Não serve por exemplo na entrevista de emprego
Quando eles não são desclassificados por conta de seus cabelos
Ou na hora de ir comprar e o vendedor simplesmente não te enxergar
Mas já tamo vacinado contra esse tipo de opressão
Que quer nos fazer pensar que no Brasil não existe discriminação
É com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento
E se escrever tiver incomodando: eu só lamento
E como nunca tivemos apoio
Vamos continuar assim, sabendo que é verdadeiro olho no olho
Que é pra gente tá sempre fortalecido
E saber que esse sistema racista que sempre foi nosso inimigo
Muito antes de Zumbi
Quando Akotirene era Rainha
E eles já tentavam nos extinguir
Firmes, resistimos a todas essas truculências
Pra mostrar que além de Pretos, empoderados
Somos RESISTÊNCIA!
As palavras da poesia colocam em questão o processo de singularização que Guattari e
Rolnik explicam. Em vários trechos da poesia supracitada fica clara a construção de
subjetividades que contrapõem a subjetividade imposta aos sujeitos negros e da periferia,
como:
É, eu sei que eles não queriam
A gente escrevendo, falando
Deve ser mais foda ainda
Eles vendo os pretos tudo se formando!!
Indo no caminho inverso da alienação;
33
quebrando correntes, derrubando muros
E cada vez mais carregado de informação.
quebrando correntes, derrubando muros
E cada vez mais carregado de informação.
Que é pra eles entenderem
Que nem a Choque, muito menos o Bope
vão impedir a nossa transformação
O trecho acima nos conduz à reflexão do lugar criado para o negro dentro da
sociedade. Lugar ligado à criminalidade e aos vícios. Ser negro, pobre e da periferia se
constitui um padrão para a perseguição policial. O trecho supracitado nos faz refletir sobre o
olhar negativo e carregado de estereótipos de uma minoria branca e rica em relação ao negro
e, ainda, como não faz parte do desejo dessa parcela da sociedade ver a população negra
ocupando espaços privilegiados. Além disso, a poesia em questão denuncia a mão armada do
Estado, referência feita na frase Que nem a Choque, muito menos o Bope, que diz respeito a
uma política camuflada para caçar negro, pobre e morador da periferia. Assim, ao mesmo
tempo em que denuncia, mostra uma resposta para o problema, a saber, a resistência, o
enfrentamento através da arte.
A resistência se constitui como resposta a imposição de uma subjetividade dominante
na medida em que os sujeitos estão destruindo as barreiras secularmente construídas para
impedir o povo negro de protagonizar a própria história. Cada palavra da poesia consegue
explicitar os modos de saída e enfrentamento contra o jogo de injustiça criado pela cultura
dominante:
Que quer nos fazer pensar que no Brasil não existe discriminação
É com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento
E se escrever tiver incomodando: eu só lamento
A primeira frase do trecho acima nos faz refletir sobre o tema do mito da democracia
racial, que propõe pensar a sociedade brasileira sob o ponto de vista da igualdade racial. Logo
na linha seguinte a voz de um sujeito que fala de uma realidade coletiva revela uma
contraposição ao discurso dominante quando deixa claro que os pretos e periféricos estão
prontos para o enfrentamento, cuja munição é o conhecimento, a arte, a literatura. Ao dizer: É
com a literatura que fazemos o nosso enfrentamento, se está fazendo referência aos sujeitos
do Sarau da Onça e de outros espaços, que produzem suas poesias e fazem destas verdadeiras
armas para a resistência e transformação social.
34
Assim, é possível constatar que o processo de singularização é operado na medida em
que o sujeito ou os sujeitos que falam na poesia criam novas formas de vida, produzem
reflexões sobre a própria realidade ao mesmo tempo em que constroem modos de resistir e
promover a transformação por meio de uma arma que não é física, a saber, a palavra.
O conceito de biopoder pensado por Foucault se configura como uma forma de poder
sobre a vida desenvolvido a partir do poder disciplinar, sendo que este visava disciplinar os
corpos individuais e aquele exerce o controle da população, da massa.
Diferente da sociedade disciplinar, em que os indivíduos eram controlados pelo
método da vigilância, da disciplinarização e docilização dos corpos, o biopoder, também
pensado por Foucault, é responsável por administrar a vida nas mais diversas esferas. Em seu
texto intitulado Biopolítica, Pelbart (2007) descreve como essa forma de poder penetra a
nossa vida:
[...] o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da
existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o
corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade.
Tudo isso foi violado, invadido,colonizado; quando não diretamente expropriado
pelos poderes (p. 57).
Nesse sentido, o poder não investe sobre os corpos por meio da repressão e sim pela
sua capacidade de gerir a vida fornecendo ao indivíduo a ilusão de que suas escolhas são
livres. Retomando Agamben, Pelbart (2007, p.59) descreve o biopoder contemporâneo da
seguinte forma:
[...] segundo Giorgio Agamben, o poder contemporâneo já não se incumbe nem de
fazer viver, como postulava Foucault, nem de fazer morrer, como antigamente era a
incumbência do regime de soberania. Mas o biopoder contemporâneo, o poder sobre
a vida, faz sobreviventes, cria sobreviventes e produz sobrevida – é a produção da
sobrevida. O biopoder contemporâneo teria essa incumbência, de produzir um
espaço de sobrevida biológica, reduzir o homem a essa dimensão residual, não
humana, vida vegetativa, [...]
Face ao conceito de biopolítica elaborado por Foucault, Achille Mbembe formulou o
conceito de Necropolítica, bastante interessante para analisarmos o contexto atual. Tal
conceito se refere à política da morte, isto é, o poder de decidir quem deve morrer. A partir
dessa noção, podemos pensar o contexto social brasileiro contemporâneo. Assim, refletir
sobre o poder de decidir sobre a morte nos coloca diante de uma realidade facilmente
35
constatável, que é o genocídio da população negra e periférica. Diante do crescente número de
jovens negros assassinados é possível constatar que o Estado já determinou há muito tempo o
alvo para a imposição da morte. Isso está ligado às características do segmento negro no que
diz respeito a seus processos históricos. A vida do negro foi destituída de seu valor,
desumanizada e objetificada. Sobre esse processo Mbembe (2016) afirma:
De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda
de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda tripla equivale a
dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de
modo geral) (p. 131).
Essa tripla perda de que o autor fala se constitui como uma marca herdada pela
população negra da experiência colonial, que ainda é alvo de perseguição, uma vez que foi
associada à criminalidade pelo projeto racista. No que tange ao projeto de violência e
extermínio destinado a esse segmento da população, Flauzina (2006) analisa o sistema penal
brasileiro e sua íntima relação com o racismo.
[...] Fruto de uma colonização portuguesa de números exponenciais, responsável
pelo extermínio massivo da população indígena e da mais impressionante empresa
de tráfico e escravização dos povos africanos, o sistema penal brasileiro está
vinculado ao racismo desde seu nascedouro (p. 33).
A autora ainda enfatiza:
[...] A forma como nosso sistema penal incide sobre os corpos está condicionada
pela corporalidade negra, na negação de sua humanidade. Esse é o fator central de
sua dinâmica. Disciplinado na violência do extermínio de uma massa subumana é
esse o trato que o aparato policial está preparado a dar a quem for direcionado. Em
outras palavras, o racismo deu o tom e os limites à violência empreendida pelo
sistema penal e este a carrega consigo na direção de toda a clientela a que se dirige
(FLAUZINA, 2006, p. 81-82).
Isto explica o gritante número de mortes de jovens negros registradas cotidianamente.
Essa política de aniquilamento de uma parcela escolhida da sociedade se realiza ancorada na
estrutura racista e se esconde por trás do mito da democracia racial.
Nesse sentido, o conceito de necropolítica nos ajuda a entender as razões da guerra
criada contra o segmento negro dentro da sociedade brasileira. A escolha pelo abandono, pela
morte simbólica e física dessa população é um projeto político sustentado por uma estrutura
36
racista, que tende a descartar e aniquilar o povo negro de forma naturalizada, uma vez que se
apoia na justificativa da inferioridade do negro. É desse modo que a morte de negros,
principalmente dentro das periferias, não provoca choque, não comove, justamente porque
essas vidas são destituídas de sua humanidade, elas não interessam ao sistema político. A
mídia desempenha o papel de reforçar essa ideologia racista na medida em que banaliza o
terror nas periferias, promove a naturalização do corpo negro morto. O negro é associado ao
que não presta, à vagabundagem, à criminalidade. Sendo assim, quando um negro é morto é
como se um bem fosse feito à sociedade. Basta pensar na intervenção militar nas favelas,
justificadas pelo objetivo de estabelecer a “paz”. A “paz” que se procura estabelecer à custa
do sangue negro derramado.
Podemos pensar, ainda, no conceito de sociedade de controle já previsto por Foucault
e ampliado por Deleuze. A sociedade de controle surge justamente da forma de exercício do
poder disciplinar e do biopoder. Assim escreve Deleuze (1992):
É certo que entramos em sociedades de “controle”, que já não são exatamente
disciplinares. Foucault é com freqüência considerado como o pensador das
sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o
hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos
primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando
para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que
funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação
instantânea (DELEUZE, 1992, p. 215-216).
[...] Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma
modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a
cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro
(DELEUZE, 1992, p. 221).
Desse modo, na sociedade de controle o poder age em toda parte, ele não é fixo, não
requer o confinamento dos corpos. O poder é exercido ao ar livre, em todo âmbito da vida
sem que seja percebido e, por isso, é tão eficaz. O controle exercido sobre os corpos traduz
sua força na sutileza com que penetra e gere a vida dos sujeitos de tal modo que esses sejam
cúmplices do exercício do poder sobre suas vidas sem que percebam isso.
Nesse sentido, mesmo tendo a vida manipulada pelas instâncias de poder, ainda existe
uma escapatória que só será possível pelo processo de singularização operado pelos
indivíduos. Isto não quer dizer que tal processo é fácil de ser criado e desenvolvido, tendo em
37
vista que o contexto pós-moderno é caracterizado por uma onda gigante de transformações,
em que o sistema capitalista tem mostrado sua força e poder incontestáveis.
Dentro dessa máquina de transformações constantes as identidades também assumem
um caráter múltiplo e provisório. Assim, os indivíduos têm a sua frente uma multiplicidade de
significações e identidades com as quais poderão se identificar. É por este motivo que o
processo de singularização faz-se necessário, embora encontre forças externas que tentam o
tempo todo suprimi-la. Nesse contexto, “singularizar” é a capacidade e liberdade de
autonomia, de criar as próprias referências para interpretar uma situação, bem como
desenvolver a autoafirmação.
Como afirma Hall (2003), a marginalidade se constitui como um espaço produtivo,
dentro da cultura, capaz de fazer aberturas para se lutar por espaços na sociedade. Dessa
forma, as margens se configuram como lugar de criação de novas subjetividades e modos de
resistência pelos sujeitos que, através da arte e da cultura se posicionam, assumem sua
condição e lugar de fala para produzir respostas às ações da cultura dominante.
No movimento Hip Hop, bem como na poesia produzida na periferia, o termo
“marginal” é ressignificado a partir da apropriação do discurso pelos sujeitos. Discurso que
foi sempre negado aos sujeitos negros e da periferia que, agora, entram na disputa pelo direito
de dizer, de significar. Como afirma Foucault (1996), a produção do discurso na sociedade é
controlada por um número de procedimentos responsáveis por dominar, regulando o que pode
ser dito, como deve ser dito e quais sujeitos podem dizer3. Aí se configura o procedimento da
exclusão, que permeia a produção de todo discurso.
Sendo assim, o discurso está no plano das lutas por espaços de dizer e de poder.
Segundo Foucault (1996, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou
os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar”.
Retomando a oposição entre razão e loucura abordada por Foucault (1996), podemos
pensar que, assim como o discurso do louco não tem a livre circulação, pode não ser aceito,
ser anulado por não possuir um estatuto de verdade, o discurso dos sujeitos subalternizados
também passa pelo mesmo processo de separação e rejeição dentro da sociedade.
3 Podemos pensar no conceito de Formação Discursiva e Acontecimento Discursivo proposto por Michel
Pêcheux. O primeiro se refere aquilo que pode e deve ser dito em um determinado momento. O segundo diz
respeito ao lugar de ressignificação e ruptura de uma memória, ou seja, de sentidos já construídos.
38
Isto porque, como já mencionado, a produção dos discursos, mesmo que de forma
implícita, é controlada, organizada e selecionada pela classe dominante. Assim, os discursos
produzidos pelos sujeitos marginalizados são submetidos ao processo de deslegitimação
operado pela mídia. Cabe dizer que as margens sempre tiveram voz, o que ocorreu ao longo
da história foi a tentativa de silenciamento dos discursos oriundos de espaços subalternizados.
Dessa forma, o processo de singularização que podemos observar tanto no Sarau da
Onça quanto no Programa de Rádio Evolução Hip Hop se caracteriza por provocar a
desconstrução tão necessária das verdades fixadas, da história única construída, disseminada e
estrategicamente repetida sempre contra as classes menos favorecidas.
Vale ressaltar que a educação mesmo sendo também o meio de controlar os discursos
é a principal via de acesso e apropriação desses. No entanto, é sabido que a educação
oferecida não é de qualidade e se torna uma ferramenta para a manutenção da exclusão das
camadas menos favorecidas da sociedade.
Pensando na democratização do acesso a bens culturais, sabemos que essa é uma
questão problemática em uma sociedade elitista e hierarquizada, em que a preocupação está
centrada na preservação de um patrimônio cultural, de uma produção e circulação cultural
restrita à classe dominante.
A circulação do livro, nesse sentido, passa longe das minorias, bem longe de espaços
subalternizados como a periferia. Segundo Lindoso (2004), embora a diversidade da oferta
seja notável na indústria editorial, essa oferta não é acessível para a maioria da população. De
acordo com o autor, as políticas culturais não são voltadas “para a abertura de possibilidades
de acesso aos bens culturais pela maioria da população” (LINDOSO, 2004, p. 38).
Basta pensar nas bibliotecas escolares e em bibliotecas públicas para se ter uma noção
de como o acesso a bens culturais é fechado, restrito. As primeiras, quando existem, possuem
um acervo totalmente precário, desatualizado e insuficiente e, ainda, há casos em que estas
permanecem fechadas e os estudantes são impedidos de terem acesso __
isso é no mínimo
assustador. As segundas, bibliotecas públicas, pode-se considerar que são raras. Como afirma
Lindoso (2004), grande parte dos municípios brasileiros não possui nenhuma biblioteca
pública e a parcela de municípios que tem constituem-se em bibliotecas desatualizadas, com
acervo reduzido, além de não existir nenhuma ação para atrair a comunidade. Isso demonstra
a incoerência das políticas públicas que são colocadas em prática, uma vez que a construção
de bibliotecas públicas deveria ocorrer em ampla escala e oferecer um acervo significativo em
quantidade e qualidade, além de ter programas que aproximem bibliotecas e comunidade,
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convidando-a para adentrar o universo da leitura, além de outros eventos artísticos
promovidos pela própria biblioteca.
Políticas culturais que investem em bibliotecas públicas traduzem-se em uma política
de inclusão. Com essa ação a população desfavorecida será também beneficiada, incluída,
pelo menos em termos de acesso ao livro. Entretanto, para que isto ocorra faz-se necessário
que a importância de bibliotecas públicas seja notada e compreendida. Há uma demanda por
saúde, segurança, educação enquanto a implementação de bibliotecas não é vista como
necessária. Por parte das autoridades esta falta de percepção pode ser estratégica, na medida
em que o que interessa à elite está longe de ser uma população que tenha acesso ao
conhecimento e à informação, uma vez que um povo letrado e que pensa pode oferecer perigo
à ordem estabelecida. Por outro lado, a população ainda não consegue perceber a importância
de bibliotecas públicas, a sua ligação com uma educação de qualidade. Faltam projetos que
visem informar e conscientizar a população para a importância da biblioteca, levando esta a
reivindicar a existência dessa instituição como de extrema necessidade, assim como a
existência e funcionamento de postos de saúde, escola e outras instituições e serviços.
Os sujeitos pertencentes a espaços marginalizados como a periferia têm o acesso aos
bens culturais barrado. Dessa forma, surge aí a emergência de meios que possibilitem a
abertura para que esses sujeitos tenham acesso ao mundo letrado, mesmo que seja fora de
ambientes que não permitem sua entrada.
Os ativistas do movimento Hip Hop, nesse sentido, são sujeitos que dentro da periferia
criam situações de inserção dos jovens no mundo letrado, fazendo das práticas artísticas
formas de engajamento político e social. Desse modo, como afirma Souza (2011), o Hip Hop
pode ser considerado como uma agência de letramentos4, uma vez que este proporciona aos
sujeitos a inserção em práticas sociais de uso da escrita, fazendo da linguagem a principal
ferramenta de protesto e transformação da realidade.
A produção cultural da periferia, como no caso do hip hop e dos saraus, foge a padrões
estéticos e formais da cultura dominante, assumindo uma nova postura, novo posicionamento
diante da realidade. Além disso, tanto o Sarau quanto a cultura Hip Hop não conta com apoio
financeiro para realizar suas atividades. Diante disso, cabe dizer que essas ações promovidas
na periferia conseguem fazer o que o poder público não faz, que é a valorização da juventude
negra e da cultura das ruas, produzida na periferia. Desse modo, a juventude negra através de
4 Letramento, de acordo com Kleiman (2005), diz respeito às práticas sociais de uso da escrita para além da
escola.
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organização de saraus, oficinas de arte e rodas de conversa, constroem contra-narrativas e
promove o fortalecimento e autoestima da comunidade negra e periférica.
Nesse sentido, as tecnologias tem sido uma importante ferramenta para o
fortalecimento da cultura marginal, uma vez que através delas é possível que os sujeitos
divulguem suas produções culturais, fazendo com que estas circulem para além da
comunidade criadora.
No próximo capítulo nos concentraremos no estudo da produção do Sarau da Onça e
do programa Evolução Hip Hop, ampliando as discussões que foram traçadas até aqui e
trazendo poesias no sentido de se fazer ouvir essas produções.
41
2. UMA CONSPIRAÇÃO: PENSAR, FALAR E AGIR
Retomando algumas ideias do capítulo anterior, vale ressaltar que a deslegitimação
através da cor dos sujeitos que constituem a margem, bem como a negação da capacidade de
pensar desses sujeitos são, entre outras formas, as mais eficazes.
A margem aqui referida, – a periferia – é escura. Tal característica carrega consigo,
acima de tudo, a resistência. Resistência às mais variadas formas de opressão e violência, que
não cessam em tentar negar, deslegitimar a vida na periferia.
Para continuar a linha de pensamento aqui inserida propomos o empréstimo do
conceito de “abismo” utilizado por Seidel (2007) em seu livro Embates simbólicos. De acordo
com o autor, o termo abismo vem do grego ábyssos e tem várias acepções sempre no plano
negativo. Tomando por base o conceito de abismo como aquilo que separa, distancia que pode
provocar medo ou espanto, passamos então, a ensaiar um gesto interpretativo das margens.
Iniciemos, pois, com o questionamento: Que abismo (ou abismos) construiu as margens? A
questão pode parecer insana ou óbvia demais, porém o propósito não é instituir nenhum tipo
de sensatez ou verdade intocável e absoluta e sim provocar o deslocamento do próprio ato de
pensar para conseguir construir um caminho para se chegar à interpretação.
As margens consideradas aqui neste trabalho são constituídas por pessoas que são
afetadas por todo tipo de desigualdade percebida no meio social – as periferias são as margens
da sociedade – e os que vivem nela, os marginalizados. Voltando à questão inicial, quem
produziu isso? Quem fabricou essa realidade?
Somos guiados pela ilusão de que somos mestres e donos do nosso pensar, do nosso
sentir, do nosso agir e perceber o mundo e as pessoas, a fantasia de que controlamos nossa
existência e nossas atitudes na sociedade. Tudo vai bem até despertarmos do sonho! Depois
disso o cenário vai se desnudando e aos poucos, dia após dia, percebemos nós e os objetos
sendo marionetes do sistema de poder.
Nesse sentido, o que percebemos hoje como divisão social das classes em que uma
minoria detém a riqueza e o poder enquanto a maioria – a que produz toda riqueza – é
deserdada é uma realidade fabricada sempre a favor de quem fabrica.
O preconceito, o racismo, a pobreza, as desigualdades sociais e raciais foram
fabricadas sempre para e contra uma camada específica da sociedade. Tal parcela da
população foi deserdada não apenas dos bens materiais, mas também dos bens imateriais, a
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saber, o direito à Educação de qualidade, assistência à saúde, acesso a bens culturais, como o
livro, cinema, teatro, além de espaços e incentivo para expressar formas artísticas e culturais.
Eis o abismo que constrói e mantém as margens. Como todo abismo este provoca medo,
estranhamento e, sobretudo, vontade de superação. Entretanto, sem querer dar lugar ao
pessimismo, faz-se necessário refletir sobre o processo de naturalização de realidades trágicas,
ao qual somos submetidos.
Nesse aspecto, podemos pensar nas relações construídas com o outro. Trata-se de uma
análise crítica do ato de olhar, de enxergar o outro, aquele que se distingue de nós. Para isso,
recorremos a outro conceito também proposto por Seidel (2007), denominado de
alogeneidade. Segundo o autor, na cultura grega clássica a denominação de estrangeiro, do
outro era dada de acordo com as especificidades desse outro. Assim, “allos seria o outro de
qualidade diferente, em oposição a héteros o outro de mesma qualidade”. Desse modo, o
termo alogeneidade serve para descrever a experiência de ver o “outro como sendo de
qualidade diferente”, em oposição ao outro da mesma qualidade.
O conceito acima descrito nos ajuda a entender a relação com o outro construída
socialmente, sobretudo no sentido vertical da estrutura hegemônica da nossa sociedade.
Dessa forma, as camadas desfavorecidas submetidas a toda sorte de violência simbólica,
aqueles que vivem nas margens são os desconhecidos, os bárbaros, o outro com qualidade
diferente. Percebidos com esse olhar ocorreu o que antes foi mencionado aqui como o
processo de desumanização.
Ver o outro como sendo de qualidade diferente também é uma estratégia letal utilizada
pelo sistema capitalista para produzir subjetividades que estejam alinhadas a padrões
estabelecidos pelo consumo. Assim, o efeito que se produz é a culpabilização das margens.
Em outras palavras, isso quer dizer que a margem, ou os marginalizados são colocados entre o
abismo já descrito aqui e ao ter a subjetividade modelada pelo sistema tentam se alinhar a ele,
mas não conseguem pelas próprias condições em que são submetidos. Daí advém o
sentimento de culpa, de impotência.
O cenário urbano é violentamente dividido. De um lado o luxo de casas e edifícios em
que habitam os detentores do poder, de outro lado casas humildes localizadas no entorno da
cidade, habitadas por sujeitos que lutam pela sobrevivência cotidianamente ameaçada pelo
sistema capitalista.
É desse lugar que compõe o cenário urbano, a periferia, que emergem as lutas contra
as desigualdades sociais e raciais, contra a discriminação racial e opressão policial. É na
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periferia que surgem práticas e movimentos de resistência e reivindicação por direitos a bens
materiais, sociais e culturais. Nesse contexto práticas culturais como o sarau e ações do hip
hop se desenvolvem e tornam-se o meio para lutar por direitos, bem como resistir às
violências físicas e simbólicas praticadas contra a periferia.
2.1 Sarau da Onça
O Sarau da Onça se caracteriza por ser uma atividade cultural desenvolvida em
Sussuarana, bairro de Salvador. Para melhor situar tal produção cultural acredito ser
pertinente trazer à tona um resumo da história do bairro onde o Sarau da Onça acontece.
A origem do nome Sussuarana está relacionada à onça Suçuarana que podia ser
encontrada na região, onde havia uma densa mata. Além disso, havia nesse território uma
fazenda, que através de uma invasão deu origem ao bairro que conhecemos hoje como
Sussuarana. Nesse sentido, podemos entender o bairro de Sussuarana como espaço de lutas e
resistências do povo negro até os dias atuais.
Como sendo um bairro periférico e negro de Salvador, Sussuarana carrega marcas do
racismo e estereótipos que colocam o bairro como lugar perigoso devido aos índices de
Figura 1: Foto retirada da página do Sarau no Facebook.
44
violência. Desse modo, a mídia se encarrega de veicular uma visão estereotipada acerca do
bairro, apagando, pois, a imagem de uma Sussuarana produtora de arte e cultura e que é
espaço de resistências diárias.
Para contrapor o discurso dominante e lutar contra o racismo e toda sorte de violência
e estigmatização, o Sarau da Onça surgiu através da ação de jovens inconformados com tal
realidade. O referido sarau é produzido pelo Grupo Ágape, que conta com sete integrantes
moradores de Sussuarana. Todos os integrantes são formados, sendo que dois possuem nível
superior e um está com o curso em andamento. Na entrevista realizada com Sandro
Sussuarana, um dos produtores do Sarau da Onça, ele fala do surgimento do Sarau e de sua
importância para o bairro:
a partir de jovens que descontentes com as noticias veiculadas a cerca do bairro de
Sussuarana, resolveram então contrapor o que estava sendo veiculado, para mostrar
que a periferia é um berço de cultura, com muitos talentos e que precisa ser
visibilizada com as qualidades que tem e os milhares de grupos culturais que atuam
diariamente no resgate das crianças, dos jovens, idosos, de todos que necessitam de
um cuidado... no entanto esses grupos não são visibilizados, ao contrário, vivem no
anonimato sem os devidos reconhecimentos pelos seus lindos trabalhos. O Sarau da
Onça acontece desde o dia 7 de maio de 2011. Começou com 4 produtores, hoje
conta com 7. (Sandro Sussuarana)
Verifica-se que a criação do Sarau da Onça se constitui com tomada de posição por
parte dos sujeitos no sentido de contrapor as verdades construídas sempre contra o bairro de
Sussuarana. O poeta continua dizendo:
acredito que o Sarau da Onça, assim como outros saraus na cidade, tem uma
importância, por tratar de questões como: Racismo, descriminação, empoderamento,
amor, autoestima, etc. Com muita propriedade. Vê em cada sábado jovens, crianças,
idosos reunidos para ouvir e declamar poesia, feitas por eles, os próprios
frequentadores, é de fato uma grande transformação, ainda mais por conta de os
bairros periféricos estarem em muitos casos distantes dos grandes centros. Criando
assim um circuito cultural de periferia. (Sandro Sussuarana)
O Sarau da Onça, nesse sentido, é um espaço de resistência, autoafirmação da
população negra de Sussuarana, bem como de ação revolucionária, uma vez que é um lugar de
onde as vozes que emanam são as que foram historicamente silenciadas e que agora operam
um movimento coletivo de destruição das mordaças. Não é à toa que nas palavras do poeta,
Sandro Sussuarana, a poesia representa para o bairro de Sussuarana “um Grito de Liberdade”.
45
O Sarau da Onça completou sete anos e já publicou duas antologias poéticas. A
primeira O diferencial da favela: poesias quebradas de quebrada em 2014 e a segunda
Poesias e contos de quebrada em 2017, com a participação de diversos poetas. O Sarau já
esteve em diversos espaços do Brasil, já saiu em jornais impressos e matérias de televisão e
teve sua primeira antologia exportada para outros países.
Além das antologias, Sandro Sussuarana também publicou um livro individual de
poesias e contos intitulado Verso (s) sob (re) mim em 2017. Recentemente, em julho deste
ano, foi lançado no Sarau da Onça o livro Poéticas periféricas: novas vozes da poesia
soteropolitana, que conta com textos de inúmeros poetas e poetisas da periferia de Salvador-
BA.
Figura 2: Primeira antologia do Sarau da Onça
(disponível na página do Facebook)
Figura 3: Segunda antologia (por Lis Pedreira)
Figura 4: Livro de poesias e contos de
Sandro Sussuarana (Fonte: Galinha
Pulando)
46
O Sarau da Onça é um espaço de produção de conhecimento e afirmação da identidade
negra. É lá que um grande número de jovens negros se reúne quinzenalmente, aos sábados,
para ouvir e declamar poesias, bem como participar de rodas de conversa com temáticas de
relevância para a comunidade negra. Há outras atividades desenvolvidas pelo Sarau, como o
oficinas de poesia e o Slam da Onça, que se configura como uma competição de poesias
autorais valendo prêmios para os ganhadores. O Slam é uma ação potencializadora, uma vez
que incentiva a apropriação da poesia e da arte pelos jovens da periferia. Além disso, as
intervenções culturais e artísticas do Sarau têm chegado a diversos espaços, como em escolas,
faculdades, outros espaços dentro da capital baiana, bem como em outras cidades e estados.
Para pensar o Sarau da Onça enquanto lugar de resistência vale ressaltar as formas de
lutas e de sobrevivências que os povos negros construíram no período da escravização, sendo
a oralidade um dos instrumentos de resistência recriados na atualidade.
Nesse sentido, o Sarau da Onça se configura como um espaço de encontro de jovens
negros e negras onde estes podem se expressar através da poesia, ouvir e serem ouvidos,
afirmar as identidades e, sobretudo, escrever e contar a própria história. O Sarau da Onça é
grito de liberdade, quebra de silêncio que o grupo dominante impôs à minoria. É o
desmascaramento da realidade de injustiças, desigualdades e violência fabricada para a
periferia, levando em consideração aqui não apenas o bairro de Sussuarana, mas as periferias
que compõem o cenário de Salvador.
Falar do Sarau da Onça nos leva a pensar no conceito de Literatura Marginal tão
discutido e carregado de complexidades. Para tratar inicialmente dessa questão quero trazer
como referência o estudo que Érica Peçanha do Nascimento faz em seu livro: Vozes
marginais na literatura. A autora, para conduzir a reflexão em torno do conceito de Literatura
marginal, faz uma breve descrição das duas palavras Literatura e Marginal
separadamente. Retomando Antonio Candido (1969), Nascimento (2009, p. 36) considera a
Literatura:
[...] como a produção escrita de toque poético, épico ou dramático da qual se origina
um sistema simbólico de obras ligadas por denominadores comuns, tais como:
características internas (língua, temas, imagens), um conjunto de escritores mais ou
menos conscientes do seu papel, um conjunto de receptores e um mecanismo
transmissor.
47
Considerando a definição supracitada, a produção considerada Literatura parece se
restringir a certos padrões preestabelecidos, de modo que todo um conjunto de produções não
reconhecidas fica fora de tal designação. Em relação ao termo marginal a autora faz a seguinte
retomada:
Já marginal adjetiva aqueles que estão em condição de marginalidade em relação à
lei ou à sociedade e possui, portanto, sentido ambivalente: assim como se refere,
juridicamente, ao indivíduo delinquente, indolente ou perigoso, ligado ao mundo do
crime e da violência; aplica-se, sociologicamente, aos sujeitos vitimados por
processos de marginalização social, como pobres, desempregados, migrantes ou
membros de minorias étnicas e raciais, e tem como sinônimo o adjetivo
marginalizado (PERLMAN, 1977 apud NASCIMENTO, 2009. p. 36).
A junção dos dois termos formando um único, Literatura marginal, adquire, dessa
forma, diferentes sentidos. De acordo com Nascimento (2009), o significado da expressão
mais difundido está associado ao contexto da ditadura militar na década de 1970, em que
houve “a criação de circuitos de produção e divulgação alternativos ou marginais no teatro, na
música, no cinema e na literatura”. O termo marginal era utilizado para designar uma
produção que privilegiava um tipo de linguagem, temas e uma forma gráfica dos livros. Os
poetas eram “estudantes de classe média e alta ligados as atividades do cinema, teatro,
música” (p. 41).
A Literatura marginal produzida no período da ditadura militar é bastante divergente
da Literatura marginal produzida por outro grupo de escritores da contemporaneidade. A
partir de um projeto de Literatura na revista Caros Amigos intitulado “Literatura Marginal: a
cultura da periferia” o escritor Férrez se apropriou da expressão ressignificando o termo
“marginal” para trazer à tona escritores da periferia que até então não haviam publicado. Para
falar da origem do projeto o escritor declara o seguinte:
Eu sempre fui chamado de marginal pela polícia e quis fazer como o pessoal do hip
hop que se apropriou de termos que ninguém queria usar. Já que eu ia fazer a minha
revista maloqueira, quis me autodenominar marginal. Eu fiz como os rappers, que
para se defenderem da sociedade, aceitam e usam os termos ‘preto’ e ‘favelado’
como motivos de orgulho. Depois surgiu a revista, porque eu já colaborava com a
Caros Amigos e fiz a proposta de trazer outros escritores em um número especial,
mas tinha que ser da periferia, disso eu não abri mão. [...] (Ferréz em fala na “Mostra
48
Artística do Fórum Cultural Mundial”, realizada em 30 de junho de 2004 no SESC
Consolação/ SP apud NASCIMENTO, 2009, p. 43-44).
Na fala do escritor já fica claro que o emprego da expressão “marginal” é diferente
daquele feito pelo grupo de escritores da década de 1970. Os escritores marginais da nova
geração estão ligados ao termo mencionado não apenas pelas características de suas
produções, mas também por fazer parte de minorias que estão em situação de marginalidade
social. Nesse sentido, a Literatura marginal da nova geração, mesmo que não assuma um
compromisso social, está sendo espaço de luta e resistência, bem como de transformação por
meio da palavra.
Desse modo, quando um sarau é organizado dentro de um bairro periférico isso se
configura como ato transgressor e por que não dizer revolucionário? A periferia, sabemos nós,
tem seus direitos furtados, para ficar no raso, cito a privação do acesso ao conhecimento e à
cultura, que objetiva anular a capacidade de pensar dos sujeitos. Sendo assim, uma
organização cultural como o Sarau da Onça se constitui como frente armada contra as
intempéries vivenciadas na periferia. É lugar onde é dada a oportunidade de sujeitos
silenciados falarem de suas vivências e formas de resistência. No sarau a poesia declamada é
um convite à reflexão e à tomada de consciência em torno da realidade de violências e
injustiças tão naturalizada quando se trata da periferia. “A Poesia é uma Bala”, título de uma
das poesias de Sandro Sussuarana presente em seu livro Verso (s) sob (re) mim nos faz pensar
a respeito da importância da poesia em um contexto que o direito de dizer e de pensar é
anulado a todo instante, discretamente sem que os indivíduos percebam.
O silêncio é uma prece,
a Poesia uma bala,
pela boca dispara,
na mente dos inconscientes.
Escute-a.
Ela veio para te falar,
mostrar a realidade,
das mulheres que são mães de verdade,
que buscam no dia-a-dia da periferia,
a sua felicidade.
Mulheres mães que trabalham e estudam
e com suor árduo os seus filhos educam.
Não a despreze.
Sinta-a.
Pare um só momento e reflita.
49
Eu vim para denunciar
falar das falcatruas e mentiras
que eles afirmam vim das ruas.
Bocas sujas.
Eu vim para exaltar quem comigo trabalha,
nos becos e vielas, nos morro das favelas,
Para sua mente mudar e o seu mundo transformar.
Eu vim para que todos tenham o dom
dom da palavra falada, da música cantada
da realidade cruel mudada e as vossas almas lavadas.
Não me despreze.
Sinta-me.
Eu sou a vida em busca de cura,
a cura de todos os dias.
Pare.
Reflita.
Sou a POESIA!
Nas palavras supracitadas fica evidente o papel que a poesia assume. Ela irrompe o
silêncio para denunciar as injustiças e a opressão contra as minorias, ela dispara feito bala na
mente dos inconscientes, isto é, ela faz pensar, refletir sobre a realidade que nos cerca:
Pare um só momento e reflita.
Eu vim para denunciar
falar das falcatruas e mentiras
que eles afirmam vim das ruas.
Bocas sujas.
Eu vim para exaltar quem comigo trabalha,
nos becos e vielas, nos morro das favelas,
Para sua mente mudar e o seu mundo transformar.
A poesia, como sinalizada acima, pode se configurar como lugar de singularização dos
sujeitos ao passo que por meio dela as situações são (re) interpretadas havendo a
desconstrução de verdades pré-construídas.
Nesse sentido, as poesias produzidas no/pelo Sarau da Onça são de caráter provocativo
no que diz respeito aos temas e questões abordadas, uma vez que são temáticas que sinalizam
feridas em aberto de uma parcela da sociedade que passa por processos de desumanização e
injustiças. “Jovem Negro Vivo”, poesia de Sandro Sussuarana, aborda um dos temas mais
discutidos nas produções do Sarau da Onça. Vejamos:
O perigo é constante
nas periferias do Brasil
diariamente vejo mães
procurando os seus filhos
50
e sei que é mais um que sumiu.
no país mais negro fora da África
quem mata os preto
recebe honraria e medalha
Legitimam o extermínio em massa,
enquanto, a esperança do nosso futuro
estão por aí, nas ruas, vivendo de catar lata
Sem ideia do que significa a tal vida digna que prega a constituição
Tá foda viver nessa situação
falam que nos dão oportunidade
mas a todo o momento
nos tiram a liberdade
nos exploram
e ainda nos escravizam
querem a todo o custo
tirar as nossas vidas
apagaram nossos reis da história
para não termos boas referências
em nossas memórias.
sofremos em todos os momentos
Tentando alcançar a vitória
A pergunta que fica é:
quando um jovem Negro morre
Você se importa?
A poesia acima traz à cena a questão da situação do negro na sociedade brasileira no
que diz respeito à negação de seus direitos, inclusive o direito à vida, uma vez que o padrão
criado para perseguição policial é negro periférico. Podemos pensar também no conceito de
necropolítica de Achille Mbembe, uma vez que essa forma de poder decide quem deve
morrer. Assim, a partir do questionamento que a poesia acima elabora é possível constatar que
o jovem negro da periferia é o alvo de tal política de morte. Além disso, mostra como os
sujeitos são controlados, explorados por um sistema opressor que fabrica sobreviventes:
falam que nos dão oportunidade
mas a todo o momento
nos tiram a liberdade
nos exploram
e ainda nos escravizam
Sobreviventes porque são fruto de uma estrutura social que produz desigualdades em
diversos níveis. Podemos pensar no biopoder contemporâneo, sobre o qual fala Pelbart
(2007), que ao gerir a vida produz sobreviventes.
É possível observar também que a voz que fala na poesia conhece a realidade que está
sendo narrada e se insere nela, isso fica claro no uso da primeira pessoa. Dessa maneira, a
51
realidade descrita é uma experiência vivida por uma coletividade, traduzida por uma voz que
ecoa na poesia.
Uma série de outros temas são colocados como ponto de reflexão nas poesias
produzidas no/pelo Sarau da Onça como forma de chamar para o debate, para o ato
revolucionário de pensar sobre questões que são alvos de tentativas de silenciamento.
Além de temas como racismo e violência, na segunda antologia de poesias do Sarau da
Onça há uma grande quantidade de poesias que abordam questões de gênero e de opressão
contra a mulher. A produção do Sarau é vasta, é impossível trazer todas as poesias em um
único trabalho, por esse motivo tive que selecionar alguns textos, tarefa muito difícil, por
sinal.
Desse modo, como já trouxe aqui produções com temas voltados para o racismo e suas
consequências para o povo negro, bem como a violência na periferia, prossigo trazendo agora
poesias sobre questões de gênero, a opressão criada pelo machismo e empoderamento
feminino e negro. Comecemos com a poesia “Mulher de verdade”, da poetisa Gleise Sousa
(Sarau da Onça, 2017, p. 65).
Pra se mulher de verdade
A gente só precisa existir.
O resto é invenção
Pra nos limitar e nos dividir.
Numa sociedade que espanca Luanas,
Que arrasta Cláudias,
13 mulheres são assassinadas por dia,
E a cada 11 minutos uma é estuprada.
números crescentes de violência,
Onde por falta de assistência tantas mulheres morrem
Deveria ser óbvio que entre o estado e a igreja
A dona do corpo é quem escolhe.
Uma das causas
Da situação parecer imutável
É que do outro lado
Tudo parece estar confortável.
A manutenção dos seus privilégios
Consiste em nos diminuir
Desde a imposição das obrigações domésticas
Até o assédio nojento que temos que ouvir.
O respeito, assim como a dignidade
Não é negociável.
A porta do machismo separa os gêneros
E o nome da chave é equidade.
Se a dor é nossa,
Pode deixar que a gente grita
Mas se pergunte até onde você coopera
Pra que essa violência exista.
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O título da poesia já nos conduz para a construção de alguns sentidos. Mulher de
verdade nos leva a pensar se existem parâmetros para definir o que é e o que não é mulher em
nossa sociedade e quais representações são utilizadas para fazer referência ao ser mulher. Nas
primeiras linhas a poesia nos dá pistas sobre essa questão:
Pra se mulher de verdade
A gente só precisa existir.
O resto é invenção
Pra nos limitar e nos dividir.
No trecho podemos perceber que há uma atitude de contraposição às ideias
dominantes construídas acerca da mulher. Podemos pensar na construção do que é ser mulher
em uma sociedade machista, em que o padrão de beleza é etnocêntrico. Nesses termos, mulher
tem que ser delicada, recatada, dedicada ao lar e a família, subserviente e dona de uma beleza
física, tendo em vista a objetificação do corpo feminino. A desconstrução provocada pela
poesia mostra, também, que tudo o que foi construído enquanto padrão feminino tem o
objetivo de impor limites a nós mulheres e causar a nossa divisão. Sendo assim, se na lógica
as mulheres deveriam se unir contra toda opressão, o que acontece, na maioria das vezes, é
uma rivalidade. Assim, a voz feminina constrói a autoafirmação do ser feminino livre de todas
as imposições e representações de uma cultura machista.
No desenrolar da poesia vai se evidenciando a denúncia e a crítica direcionada a
estrutura machista e patriarcal em nossa sociedade, como no trecho:
Numa sociedade que espanca Luanas,
Que arrasta Cláudias,
13 mulheres são assassinadas por dia,
E a cada 11 minutos uma é estuprada.
números crescentes de violência,
Onde por falta de assistência tantas mulheres morrem
Deveria ser óbvio que entre o estado e a igreja
A dona do corpo é quem escolhe.
Há uma referência clara no que diz respeito à dominação e opressão da mulher na
sociedade quando é destacada a quantidade de mulheres que sofrem violência cotidianamente,
bem como o número de assassinatos de mulheres, que só cresce em nosso país. É possível
refletir também sobre a fragilidade da justiça quando se trata da violência contra mulher. Tal
53
violência, assim como as imposições direcionadas a mulher são frutos de uma sociedade
patriarcal, sexista e machista, na qual a mulher é coisificada e seus direitos de ser, de ir e vir
são podados ou limitados. As duas últimas frases do trecho supracitado nos instigam à
reflexão sobre isso. O final da poesia deixa uma provocação para que possamos refletir
seriamente:
[...] se pergunte até onde você coopera
Pra que essa violência exista.
Entendo que esse “você” colocado no primeiro verso pode está se direcionando tanto
para homens, quanto para mulheres. Esse chamado é para que reflitamos sobre até que ponto
contribuímos para que essa situação se perpetue. Podemos aqui imaginar uma série de
situações, como por exemplo, um contexto familiar em que tanto o pai quanto a mãe acaba
passando imagens distorcidas a respeito da mulher para o filho, ao invés de ensiná-lo a
respeitar, entendendo que elas têm os mesmos direitos que os homens e que elas não são
propriedade destes. Pensemos aqui na masculinidade, o quanto que ela reforça a cultura
machista na medida em que homens não refletem sobre atitudes tão naturalizadas em nossa
sociedade. Outro exemplo é em relação a nós, mulheres. Cabe se perguntar até que ponto
contribuímos com a legitimação de tal estrutura. Posto isso, continuemos a reflexão.
Tendo em vista a dupla opressão que a mulher negra sofre, cabe destacar a
importância do feminismo negro, visto que este promove reflexões acerca das várias
opressões que estão na base da estrutura social.
As questões da mulher negra acabam ficando de fora das pautas de luta do feminismo,
uma vez que o movimento se volta para a discussão de gênero sem levar em consideração a
realidade diversa da mulher negra. Esta tende a ocupar o lugar mais inferior na hierarquia
homem branco, homem negro e mulher branca. Se as questões da mulher negra são
desconsideradas isso implica na deslegitimação da natureza feminina negra. Dessa forma,
lembrando uma fala de Djamila Ribeiro, deve-se ter cuidado quando reivindicamos e
debatemos sobre os direitos de um determinado grupo social para não tentar combater uma
estrutura opressora alimentando outras. Como exemplo, o feminismo ao desconsiderar a luta
das mulheres negras, está, pois, sustentando o racismo, que faz parte da mesma estrutura
opressora que se encontra o machismo. Sendo assim, dizia a autora “ser feminista
necessariamente precisa ser antirracista porque existem mulheres negras”. É nesse sentido que
54
o feminismo negro, como afirma Ribeiro (2016), é importante, visto que propõe a reflexão
sobre as diversas opressões.
Pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma
opressão sobre as outras e que, sendo estas estruturantes, é preciso romper com a
estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de
forma isolada, mas sim de modo indissociável (RIBEIRO, 2016, p. 101).
As reflexões levantadas pela autora são pertinentes para pensarmos sobre as
identidades e não uma identidade, tendo em vista que somos seres plurais, múltiplos, daí a
importância de se pensar e se combater, como diz a autora, as opressões, já que elas se cruzam
o tempo todo.
Prosseguindo com a discussão leiamos agora a poesia “Desabafos” de Joyce Melo
(Sarau da Onça, 2017, p. 58).
Eu compartilho do sonho de King,
Suplico que um dia a cor da pele, os traços faciais, o meu cabelo,
não seja determinante.
Mas enquanto for o afrontamento será constante.
Vocês não terão sono.
E eu vou avisar desde aqui
Querida gente branca,
Vocês vão ter que me engolir.
Eu sou o meu corpo violentado,
O corpo negro que eu neguei,
O que não passa uma rua sem ser abusado
Aquele mesmo que é coisificado.
Com 17 anos, símbolo de força.
A resistência dormiu e acordou no corpo de uma moça.
A criança tímida, hoje é a voz de tantas outras.
O ABC que a gente aprende
Vem com doses de inferior.
Não permita ser mais uma vítima
Sou o que sou
Pra mostrar que a incompetência não é genética
E que ter meu cabelo e minha cor não me faz ser menor
E não me faz te perceber como superior.
Na poesia acima, como algumas que vimos aqui, traz um discurso engajado em torno
das questões raciais, mas também aborda o tema da opressão feminina. Nos primeiros versos
há uma referência a Martin Luther King, ativista norte-americano que lutou contra a
55
discriminação racial e defendeu os direitos dos negros5 para falar do sonho de um dia os
traços fenotípicos não serem o fator para inferiorizar o povo negro. A poesia, de forma
simples, expõe o racismo científico e suas consequências sentidas até hoje por quem é negra e
negro. A voz que fala na poesia revela a construção do empoderamento feminino e negro,
bem como a resistência enquanto arma de enfrentamento político. No tocante à reconstrução
de uma referência que não se ampare no padrão branco, Neusa Santos Souza em seu livro
Tornar-se negro nos ajuda a entender esse processo:
A possibilidade de construir uma identidade negra‒ tarefa eminentemente política ‒
exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras
primeiras ‒ pais ou substitutos ‒ que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco.
Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições de possibilidade que lhe
permitirão ter um rosto próprio (SOUZA, 1983, p. 77).
A experiência do povo negro é marcada, dentre outras coisas, pela tentativa de
aproximação do branco, de suas características físicas, de seu comportamento, para, assim,
conquistar o sentimento de dignidade e humanidade, tendo em vista que fora desse padrão o
negro não era considerado nem mesmo uma pessoa. Dessa forma, como afirma Souza (1983),
o negro que conseguia uma ascensão social tornava-se uma exceção à regra para o
pensamento racista e, para manter tal condição, era necessário agir de acordo com o padrão
branco, isto é, usar as máscaras brancas de que Fanon fala para ser aceito, o que implica a
negação de si. Nesse sentido, como propõe Souza (1983), para se construir uma identidade
negra faz-se necessária a contestação e o rompimento com o modelo branco, promovendo,
pois, a afirmação de si.
A poesia propõe a reflexão também sobre a opressão feminina, nesse caso, uma dupla
opressão: uma por ser mulher, outra por ser negra. A mulher negra ao longo da história sofreu
todo tipo de humilhação e violência, tendo seu corpo comumente coisificado e explorado.
Levando isso em consideração, a mulher negra sente os efeitos tanto da opressão racial quanto
da opressão feminina. bell hooks (2014, p. 40) escreve:
A desvalorização da natureza feminina negra ocorreu como resultado da exploração
sexual das mulheres negras durante a escravatura que não foi alterado no decurso de
centenas de anos. Já previamente mencionei que enquanto muitos cidadãos
interessados simpatizaram com a exploração das mulheres negras quer durante a
5 https://www.ebiografia.com/martin_luther_king/
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escravatura quer após, como todas as vítimas de violação da sociedade patriarcal
elas eram vistas como tendo perdido valor e dignidade como resultado da
humilhação que elas suportaram.
Como afirma a autora, a desvalorização da mulher negra se estendeu para além do
período da escravatura. Os efeitos disso podem ser sentidos ainda hoje, contudo, as
resistências têm ganhado força no sentido de que as mulheres negras estão ocupando espaços
antes restritos.
O racismo conseguiu fazer com que as características de uma pessoa negra fossem
associadas ao que é feio e ruim. Isso é sentido tanto pelo homem negro quanto pela mulher
negra. O cabelo é um dos pontos mais afetados pelo discurso racista e a mulher negra tende a
sentir isso com maior impacto. Sigamos com mais uma poesia, intitulada “Símbolo de
Resistência”, de Maiara Silva (Sarau da Onça, 2017, p. 94).
Preta desde que nasci,
Mas, só descobrir o valor da minha pele quando cresci
Me negaram o direito de ser quem eu sou
Me ensinaram que meu cabelo é ruim
Até me faziam achar que era um castigo ser assim
O tempo passou e informação virou minha arma contra toda opressão
E hoje minha palavra reflete minha cor, minha vivência,
minhas dores, minha essência
E me irritam quando dizem que meu cabelo é moda
O fato é que fugimos do padrão e que o crespo incomoda
E turbante não é fantasia moça, só para usar quando está em evidência
Porque não é moda e nem tendência, é o nosso símbolo de resistência
E ver meu povo preto no poder é o que quero
Poesia que recito, corpo que grita, alma que expresso
e peço nada além disso, representatividade e sucesso.
A voz que “grita” na poesia coloca em evidência o processo de negação de si,
colocado em funcionamento através dos discursos de inferiorização das singularidades da
pessoa negra. Nesse sentido, a transformação do cabelo crespo em algo ruim é uma das coisas
que mais afeta a autoestima de uma criança negra, uma vez que o crespo foge ao padrão
europeu instituído enquanto belo. Nilma Lino Gomes ao abordar sobre o cabelo crespo
enquanto símbolo da identidade negra afirma que:
O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele
comunica e informa sobre as relações raciais. Dessa forma, ele também pode ser
57
pensado como um signo, pois representa algo mais, algo distinto de si mesmo
(GOMES, s/d, p. 8).
Assim, o cabelo crespo em uma sociedade racista como a nossa revela uma série de
tensões e conflitos que envolvem a construção da identidade negra. A designação do cabelo
crespo como “ruim” carrega o processo de imposição da inferioridade do ser negro, uma
ideologia que ditou o que seria bom e o que seria ruim e a quem essas denominações estariam
direcionadas. Desse modo, o sentido que o sujeito atribui ao cabelo pode caminhar em duas
direções:
Assim como a democracia racial encobre os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o
tipo de penteado, de manipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os
adota podem ser usados para camuflar o pertencimento étnico/racial, na tentativa de
encobrir dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra. Mas tal
comportamento pode também representar um processo de reconhecimento das raízes
africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o racismo [...]
(GOMES, s/d, p. 8).
Dessa forma, o cabelo crespo é ressignificado na poesia supracitada enquanto símbolo
de resistência do povo negro. Representa, pois, como a autora diz, um processo de
reconhecimento e afirmação das raízes africanas.
Nesse sentido, a voz poética, ao trazer à tona sua identidade negra e sua experiência,
mostra que conseguiu desconstruir o que havia aprendido de negativo acerca de sua origem e
reconstruir sua história através da informação. Trata-se de um processo que Neusa Santos
Souza define da seguinte forma: “[...] ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a
ser. Ser negro é tornar-se negro” (1983, p. 77). A identidade negra, portanto, para se construir
passa por todos os conflitos e tensões que as relações raciais podem originar.
Posto isso, a partir das poesias aqui dispostas, é possível constatar que o Sarau da
Onça oportuniza o exercício do pensamento crítico em que os sujeitos realizam o
autoconhecimento, a autoafirmação e a releitura da própria história. Dessa forma, temas que
representam opressões que estão na base de nossa estrutura social são discutidos, de modo que
todo tipo de opressão que as minorias sofrem não seja banalizada, mas combatida
diariamente. É importante sinalizar que as opressões atravessam umas às outras. Em vista
disso, o Sarau pode ser percebido como uma insurgência, na medida em que se questiona toda
uma estrutura opressora. Assim, a luta não é apenas contra a opressão racial, mas também de
gênero e de classe.
58
No tópico seguinte veremos como que o programa de rádio, o Evolução Hip-Hop,
também pode ser percebido enquanto uma “máquina” contra-hegemônica, em que uma
pluralidade de vozes entra em cena.
2.3 Programa Evolução Hip-Hop
Figura 5: Imagem retirada da página do Evolução Hip Hop.
O Evolução Hip Hop é um programa que vai ao ar na Rádio Educadora FM 107.5 e
tem com produtor e apresentador Hamilton Oliveira, o DJ Branco. O programa foi ao ar pela
primeira vez em 24 de novembro de 2007, ocupando o primeiro lugar na audiência entre os
programas de rádio do Estado da Bahia. Devido ao seu sucesso foi indicado ao Prêmio
Nacional Dinamite de Música Independente. Cabe destacar que o Evolução Hip Hop foi o
único programa de rádio baiano a disputar no referido evento e, além disso, é o único
programa de rádio do gênero no Brasil. Também recebeu da prefeitura de Salvador o
Certificado de Excelência por colaborar no Observatório da Discriminação Racial, violência
contra a Mulher e LGBT além de ser Selo Prêmio Cultura Viva do Ministério da Cultura.
Essas e outras informações podem ser encontradas no site: www.irdeb.ba.gov.br, uma das
fontes da presente pesquisa, além da entrevista realizada com DJ Branco, produtor e
apresentador do programa Evolução Hip Hop.
O programa de rádio mencionado também se constitui como fonte de estudo da
presente pesquisa. O objetivo foi realizar um estudo da produção do programa Evolução Hip-
Hop enquanto agente que contribui para o fortalecimento da cultura das ruas, bem como para
o debate de questões sociais em diálogo com a população. Para entender mais um pouco sobre
o programa a fala de seu produtor e apresentador, DJ Branco, nos esclarece muitas coisas:
59
O programa Evolução Hip Hop, né, ele é um programa de rádio que trabalha com
comunicação e cultura. A gente começou no ano de 2003 na Rádio Comunitária
Popular FM, lá em Mussurunga. A rádio fechou por conta de perseguição da Anatel,
que a rádio não era legalizada e em 2007 a gente apresenta um projeto em um evento
que a rádio Educadora FM fez, chamado o Primeiro Encontro da Educadora FM
com a produção musical baiana, né, e esse projeto ele é aprovado. É... o Programa
Evolução Hip Hop é produzido pela CMA HIP HOP, que é uma organização que
trabalha com comunicação, mobilização social e produção cultural, né, é um
programa independente, a gente não tem nenhum tipo de vínculo empregatício com
a rádio Educadora nem com instituições e instituto de rádio e difusão educativa da
Bahia, nem com a TVE, né. A gente entra com o conteúdo, né, com a produção e
eles entram com equipamento técnico e com o sinal. E é um programa que para além
do hip hop é um programa que dialoga com a cidade, um programa que dialoga com
o Estado, né, para além de dialogar com os adeptos, simpatizantes da cultura hip
hop. É um programa que vai além porque ele trata também de questões sociais
dentro do programa, tem matérias diversas, né, então é um espaço aberto, né,
também, claro, pra cultura hip hop, mas também pra o movimento social em geral ir
lá falar sobre suas pautas. Ele é dividido em três partes, né. Ele tem entrevista, né,
ele tem música e tem um quadro de notícias que é o quadro de agenda cultural CMA
hip hop informa. Eventualmente a gente cria algum quadro novo no Evolução Hip
Hop, a exemplo de 2012 que a gente criou um quadro chamado Trabalho infantil em
foco, né, pra discutir as problemáticas que tem referente ao trabalho infantil durante
o Carnaval de Salvador. A gente fez uma parceria na época com a SINCOP,
comunicação interativa e a gente produziu o conteúdo em conjunto e rodou na
Educadora FM. (DJ Branco)
Como foi proferido pelo produtor cultural, o programa Evolução Hip-Hop trabalha
com comunicação, cultura e mobilização social, sendo que a programação não é
exclusivamente voltada para a Cultura Hip Hop, mas direciona-se para o diálogo em torno de
múltiplas questões sociais e políticas, criando espaço para que segmentos da população
discutam suas pautas. Vale salientar que o referido programa de rádio é mais uma conquista
do Movimento Hip Hop no contexto baiano. Isso mostra que o Hip Hop enquanto movimento
organizado possui um potencial político que conduz os sujeitos para a reivindicação de
direitos e transformação social de forma planejada.
Dessa forma, como sendo mais um espaço conquistado, o programa de rádio também
tem sido lugar de resistência, uma vez que é responsável por divulgar e valorizar a cultura das
ruas, a cultura negra e o Hip Hop, além de abordar questões de interesse público, como
discriminação racial, desigualdade social, violência contra mulher, direitos humanos,
promovendo também um diálogo com o Estado. Nesse sentido, o Evolução Hip-Hop se
configura como um programa de rádio diferenciado, já que é um espaço em que vozes
marginais e suas produções são visibilizadas e valorizadas. É o único programa de rádio em
60
que a cultura Hip Hop é divulgada e valorizada, tendo em vista que o rap é criminalizado e
alvo de preconceitos que no fim está resumido ao preconceito baseado na origem social e
racial dos sujeitos que produzem tal gênero musical.
Levando em consideração o caráter do programa Evolução Hip-Hop não precisamos
de muito esforço para imaginar o impacto de um programa como esse em uma rádio
conceituada como a Educadora FM. O DJ Branco deixa claro que houve resistência na
implementação do Evolução Hip-Hop na programação da Educadora FM.
[...] vários ouvintes da rádio, conservadores, né, porque a rádio sempre teve um
perfil de um público de acima de 30 anos e com nível superior completo, tal, pessoas
críticas na área de música, na área de cultura, na área de política e criticaram,
falaram que a rádio não podia ter, uma rádio conceituada, educativa como a
Educadora, um programa de Hip Hop. É... “ah não porque é música de bandido,
música de ladrão, que fala de drogas, que fala de violência, não pode. Ah, os
Tambores da Liberdade não pode, música do Ilê Aiyê, música de macumba, de
candomblé e tal”. E aí ficou nessa, né, só que na época o diretor da rádio que foi o
cara que assinou em baixo, falou: “não, acho que tem que rolar, se a rádio é pública
ela tem que atender a diversidade cultural do estado da Bahia, tem que beneficiar
mesmo esses segmentos que tem um propósito social”. E aí a grande resposta teve
muita resistência até por parte interna, mesmo de alguns funcionários da rádio, da
instituição, pra o programa ir ao ar, mas a resposta foi que entrou no ar em 24 de
novembro de 2007 e em janeiro de 2008 chegou a pesquisa do Ibope e a gente tava
em primeiro lugar em audiência, né, o Evolução Hip Hop ficou três anos em
primeiro lugar em audiência [...] (DJ Branco).
Uma informação presente na fala acima vale ser destacada, a saber, a colocação em
primeiro lugar em audiência do programa Evolução Hip-Hop. Não é porque isso configura
uma novidade e sim porque é um dado revelador para a discussão que vem sendo
desenvolvida aqui.
As margens, a periferia, habitada por sujeitos excluídos e violentados por uma
estrutura social extremamente desigual e preconceituosa também produz arte e cultura. O que
sempre faltou e ainda se faz ausente é a garantia de direitos a essa parcela da sociedade. Dessa
forma, um programa como o Evolução Hip-Hop representa muito mais que um simples
programa de rádio. Se constitui, pois, como espaço de ação contra-hegemônica, de resistência
e valorização do movimento hip hop, uma vez que através do programa, criado e apresentado
por pessoas que representam o movimento, tal iniciativa permite estabelecer o diálogo com a
população fornecendo informações e saberes sobre o próprio movimento e outros temas
ligados direta ou indiretamente. Sobre a importância do programa de rádio e da cultura hip
hop o produtor e apresentador do programa afirma:
61
O Evolução Hip Hop representa evolução, representa a quebra de paradigmas, né, o
rompimento de fronteiras e dizer que o Hip Hop ele não é uma tribo, o hip hop é o
mundo e tem que estar em qualquer espaço. O Hip Hop hoje nas periferias de
Salvador, né, ele representa a maior forma de organização popular de jovens na
periferia do Brasil. Né... a linguagem cultural que dialoga diretamente com aqueles e
com aquelas que estão, é... propositalmente, ignorados e criminalizados, né, que
sofrem injustiças sociais por parte do poder público, por parte do estado brasileiro,
né. O Hip Hop ele representa a voz dos excluídos, o Hip Hop representa mudança,
como é que fala um discurso crítico engajado politizado, né, então o Hip Hop nas
comunidades ele é muito importante pra contribuir pro resgate da autoestima da
juventude, né, e da elevação da consciência (DJ Branco).
Sendo assim, o Hip Hop representa para a periferia de Salvador organização política
de jovens no sentido de que esses se apropriam de um discurso crítico e contra-hegemônico,
sendo, pois, a transformação e agente dela dentro da periferia.
O programa caminha no sentido da evolução, como o próprio nome diz. Se trata de
uma iniciativa que dá visibilidade à cultura negra baiana através de apoio, de sua divulgação e
fortalecimento. É um grito de resistência contra as tentativas de silenciamento das vozes da
cultura negra e da periferia. O Evolução Hip Hop traz à tona uma pluralidade de vozes que
vem resistindo à opressão e estratégias de silenciamento.
Com relação à valorização da cultura Hip Hop, um programa de rádio como o
Evolução Hip Hop consegue divulgar o conhecimento a respeito de tal cultura, mostrando seu
compromisso social, seu caráter reivindicatório, sua resistência. Assim, o programa é um
contraponto a uma mídia a serviço do capital que pretende transformar o movimento Hip Hop
em simples estilo de vida, vazio de sentido, resumindo-se na maneira de se vestir, de se
comportar, de falar, de agir, assumida por sujeitos da periferia.
O grande problema é que o mercado da cultura no Brasil sabe disso, sabe do poder
que essa cultura tem, né, de chamar atenção das pessoas de envolver as pessoas, de
chamar, de fazer com que as pessoas reflitam sobre seu papel na sociedade, né,
como pode contribuir ou não, que bloqueiam. Bloqueiam porque é a cultura Hip
Hop? Não. Não é porque é a cultura Hip Hop, é porque é uma cultura de periferia.
Tudo que é cultura de periferia, né, de alguma forma eles tentam, como é que fala?
É... limitar, limitar pra que essa cultura não chegue a muitas pessoas, né, porque é a
cultura, é arte, ela é uma arma na mão dessa juventude, né, então se chegar muito
longe vai impactar, vai mexer com interesses de quem domina o poder econômico
no país (DJ Branco).
Que acontece, como eu falei, que a gente trabalha com ciências políticas, sempre
participando de espaços de controle social que são os conselhos de direitos. A gente
tem prova hoje suficiente, eu tenho até palestra que fala sobre isso, que a cultura Hip
Hop contribui significativamente pro processo educativo de adolescentes e jovens da
escola pública, né, por conta da linguagem. É uma linguagem fácil, é uma
62
linguagem que se identifica, é a linguagem deles, né, contribui no processo
educativo (DJ Branco).
Dessa forma, a tentativa de impedir que a cultura produzida na periferia seja
reconhecida se configura como estratégia para manter a ordem das coisas como estão, isto é, a
garantia dos privilégios de poucos, já que se sabe da potência da margem para a luta e a
transformação. É justamente essa transformação que é alvo de anulação dos poderes políticos
e econômicos. A transformação se mostra como inimiga perigosa, tendo em vista que ela
coloca em jogo aquilo que insistem em nos fazer acreditar como sendo algo passado pelo
sangue, portanto, inato. Eis o privilégio.
Entretanto, se de um lado há investidas para impedir a transformação, por outro, há
várias redes de resistências que se conectam e ajudam a construir e fortalecer novas redes que
caminham para a luta contra as injustiças sociais e todas as barreiras construídas pelas
desigualdades que separam os sujeitos através da esfera do privilégio versus carência.
Recentemente a cultura teve mais uma conquista, que foi a assinatura do “ato de
Autorização de Uso de bem Público para a implantação da Casa do Hip-Hop Bahia, cedida
pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac)” 6. Isso representa uma
grande conquista tanto para o movimento Hip Hop quanto para a população jovem e negra da
Bahia.
2.4 Vozes da resistência
Nas tradições orais o ato de narrar é de suma importância para a manutenção da
existência e da memória de um povo, sendo as performances narrativas ou de canto
constitutivas de formas de vida. Vale dizer que tais tradições passam por um processo de
mudanças e permanências que as constituem como um “tecido vivo”. Nesse sentido, é
pertinente pensar como que essas mudanças ocorrem e, para isso, podemos tomar como
exemplo o rap, uma vez que este se configura como uma narrativa do cotidiano da periferia.
Podemos partir do pressuposto que o articulador do rap é, em certa medida, uma versão
6 https://www.irdeb.ba.gov.br/evolucaohiphop/?tag=hip-hop-em-salvador.
63
atualizada dos griôs, já que é através da voz que narra as vivências e fatos do cotidiano da
periferia.
No seu livro Vozes plurais7, Adriana Cavarero (2011) tece uma complexa discussão
em torno da temática da voz, de modo que se propõe pensar a palavra a partir da pluralidade
de vozes. A autora mostra como que a voz foi desprezada pela filosofia e encarada enquanto
desprovida de significação. Escreve a autora:
Capturando a phoné no sistema da significação, a filosofia não só torna inconcebível
um primado da voz sobre a palavra como também não concede ao vocálico nenhum
valor que seja independente do semântico (CAVARERO, 2011, p. 52).
Dessa forma, ao se fechar no plano da palavra e do conceito se ignora que a palavra
encarnada na voz comunica a unicidade de cada sujeito.
[...] mais que revelar ela comunica. E comunica precisamente a unicidade
verdadeira, vital e perceptível de quem a emite. Não se trata, porém, de uma
comunicação fechada no circuito entre a própria voz e o próprio ouvido, mas de um
comunicar-se da unicidade que é, ao mesmo tempo, uma relação com outra
unicidade (CAVARERO, p. 20).
Assim, no momento em que o sujeito fala, sua voz está revelando quem ele é, sua
singularidade. A voz é viva justamente porque é encarnada em um sujeito de carne e osso e
que é atravessado por histórias e experiências. Nesse sentido, como afirma Cavarero (2011), é
necessário focalizar o dizer, tendo em vista que é através desse que “a unicidade de cada
falante se faz ouvir como uma pluralidade das vozes” (p. 232).
Daí advém a importância e potência da voz, que se revela no exercício do dizer dos
sujeitos. O rapper se apropria profundamente das experiências da vida na periferia, dos
estereótipos que as pessoas deste lugar carregam nas costas para transformar isso em arma de
combate. Há um lugar de onde se fala e do qual se fala. O discurso está inscrito neste lugar,
existe um posicionamento, um empoderamento político. Desse modo, quando o sujeito canta
um rap, de imediato, ele comunica a sua singularidade, explicitando os sentidos do seu
discurso de modo que quem ouve se conecta e sente o que está sendo dito como um discurso
autêntico, uma vez que parte de um ser único, carregado de historicidade. O rap, ao ser
dirigido por uma voz, expressa, pois, uma realidade particular com a qual uma pluralidade de
7 Contribuição teórica do professor Dr. Luciano Justino na banca de qualificação deste trabalho.
64
vozes se identifica. Nesse sentido, o conceito de “fratria” de Maria Rita Kehl (1999) cabe
muito bem no rap, uma vez que nas letras de rap existe uma voz que fala de uma
coletividade, há um sentimento de irmandade para com os sujeitos da favela. Como aponta a
autora, fala-se em um “nós”, que resume a totalidade dos sujeitos da periferia.
Segundo Pucci (2006), na voz encontramos variadas expressões. Em uma performance
de canto ou conto a voz assume papel central, uma vez que ela conduz a construção e
recepção dos sentidos.
O rapper fala das mazelas de onde vive, de seu bairro, de sua periferia, dos seus
ritos diários. Ele precisa se mostrar um grande articulador de ideias através da
palavra rimada. Assim consegue reunir pessoas de sua comunidade em torno de sua
voz. É, de algum modo, um herói, pois se mostra capaz de dizer o que sua
comunidade quer ouvir como dito. A base rítmica regular é suporte para a palavra,
que vive uma expressão em relevo (PUCCI, 2006, p. 6).
Assim, a voz é responsável por estabelecer uma relação de irmandade com o público,
suscitando uma reflexão acerca da realidade e das mazelas da periferia, bem como sobre
injustiças sociais como a desigualdade racial e social pela qual passa os sujeitos negros da
favela.
Do mesmo modo, a voz exerce um papel importante nas performances da poesia.
Assim sendo, a voz do sujeito é o meio pelo qual as ideias e reflexões propostas na poesia
ocupam o espaço e a mente dos espectadores, conduzindo-os à experimentação de ouvir e
dialogar com discursos que os representam. No contexto do sarau, em que há um grande
número de espectadores, a voz da/do poeta que declama suas poesias consegue materializar
em suas palavras a unicidade de seu ser, de suas experiências. Além disso, a voz, sua
entonação, bem como o conjunto de gestos e movimentos corporais que a/o poeta utiliza tem
a potencialidade de prender a atenção do público e envolvê-lo com o discurso que está sendo
construído na manifestação poética.
Dito isto, cabe enfatizar que a voz é um elemento essencial à vida humana, ela é
responsável pela conexão de experiências e de sentidos que atribuímos ao mundo. Ela é
portadora da pluralidade dos seres e de suas potencialidades.
Assim, entendida como elemento integrador de um sistema de comunicação que dá
sentido à vida, a voz se constitui de um conjunto de técnicas e procedimentos que o
homem exerce para existir e conviver. Se considerarmos que as culturas __
“versões”
da vida __
são teias que orientam e constroem modos de ser e estar no mundo;
65
veremos que a voz marca nossa presença nessas redes do viver. Afinal, a voz diz
quem somos, o que somos, o que pensamos, o que fazemos (PUCCI, 2006, p. 3).
Quando uma pessoa canta, conta uma história ou declama um poema, algo a move
para isso e, com a voz, ela atribui sentidos ao trabalho, à cura, à comunicação entre
as pessoas e com seu entorno. Essas atribuições variam conforme os povos, as
etnias, os clãs, as categorias sociais (p. 3).
Dessa forma, a voz tem grande importância nas mais diversas sociedades, seja ela
materializada nas narrativas, nas poesias ou nas músicas. Como afirma Pucci (2006), “[...] o
fato é que todas essas vocalidades exercem um poder, sejam elas localizadas, nômades,
virtuais, explícitas ou subliminares” (p. 9).
Nesse sentido, o uso da voz pela cultura negra assim como em outras culturas é de
extrema importância na constituição de identidades e na manutenção das formas de vida. No
entanto, as práticas culturais africanas que tem como suporte o uso da voz, da musicalidade,
passaram por um rígido processo de negação e construção de estereótipos. Isso faz parte do
projeto racista que buscou e ainda busca dominar a cultura negra através dos discursos de
supremacia da cultura ocidental sobre a cultura africana.
Dessa forma, a antropologia tem contribuído muito para o estudo do som, uma vez que
há uma abertura para se discutir o som para além de seus aspectos físicos.
A importância do enfoque antropológico sobre a música se dá justamente quando ele
consegue quebrar ideias estreitas do fenômeno musical, alertando, inclusive, para
posturas provincianas ___
para não dizer etnocêntricas e preconceituosas ___
em
relação a práticas musicais de outros povos, e mesmo de outros grupos sociais
dentro do próprio país (PINTO, 2001, p. 275).
As ideias etnocêntricas subjugaram a cultura negra através da sua inferiorização e
caracterização enquanto primitiva e irracional. Como consequência, as práticas musicais da
cultura negra foram colocadas à margem na educação formal enquanto práticas musicais
europeias foram prestigiadas.
[...] Se considerarmos aqueles instrumentos identificados ou relacionados no
imaginário com a cultura popular brasileira, reconhecidos como de matrizes
africanas ou associados às culturas negras, eles são representados em formas
estereotipadas e hierarquizadas. A atitude mais frequente perante esses instrumentos
66
é contrastável com a atitude e tratamento prestigiosos dados aos instrumentos
europeus __
sérios, merecedores de grandes investimentos de energia e tempo na
educação musical formal (MAKL, 2011, p. 57).
Entretanto, a cultura negra resistiu às tentativas de seu apagamento da história e foi
recriada em cada espaço onde aportou. Não é à toa a presença de ritmos musicais hoje que
tem suas origens em raízes africanas. Graças à resistência dessas práticas musicais ao longo
dos anos que temos o samba, o funk, o rap, o blues, o jazz, o maracatu, o afoxé.
O estudo da música da cultura negra irá mostrar que tal prática musical é tão
complexa quanto a arte musical mais prestigiada. Para além dos aspectos físicos da música de
matriz africana faz-se necessário entender que o uso das sonoridades é de fundamental
importância no processo de resistência e afirmação de identidades na cultura negra.
Como vimos, o rap e a poesia marginal ganham vida, comunicam singularidades dos
seres através da voz. O uso da voz implica em resistência e sustentação de um discurso
autônomo, que contesta, protesta e propaga a autoafirmação de um grupo social. É um
discurso individual que fala por uma coletividade, trazendo à tona o sentimento de irmandade,
uma vez que os sujeitos da interlocução são protagonistas de uma mesma realidade.
São justamente essas vozes plurais que vemos no Sarau da Onça e no programa
Evolução Hip-Hop. Vozes que rompem o silêncio e comunicam, antes de tudo, a sua
unicidade carregada de histórias. Vozes que se empoderam e promovem o empoderamento de
uma pluralidade de vozes que passaram ou passam pela experiência do silenciamento. E é
através da atividade do pensamento enquanto uma “insurgência indomável”, como diz Pelbart
(2017), que as vozes que tomam corpo no Sarau da Onça e no programa Evolução Hip-Hop
provocam as rupturas com as opressões. Sendo assim, prossigamos com a reflexão da
capacidade de pensar e do conhecimento enquanto armas para busca de transformação.
Passemos para o próximo capítulo.
67
3. QUER SER PERIGOSO? VÁ LER UM LIVRO!
3.1 O tráfico da palavra
[...] Um livro pode ser muita coisa, entre outras uma arma, um instrumento em meio
a um combate, uma ferramenta de análise, catapulta de ideias incendiárias e de
afetos vários, coléricos, mas também amorosos [...] (PELBART, 2017 [online]).
O trecho supracitado nos serve de ponto de partida para adentrarmos numa discussão
no mínimo excitante. Tomando de empréstimo as palavras do autor, “o livro pode ser muita
coisa, pode ser uma arma, um instrumento de combate, uma máquina de ideias incendiarias”.
Fica a critério do escritor ou do leitor tomá-lo em tal sentido.
A partir do pensamento de Pelbart proponho pensar o livro e o ato da leitura como
perigosos. O próprio nome atribuído a este capítulo nos conduz a esta reflexão. Quer ser
perigoso? Vá ler um livro! É uma frase presente em uma das poesias de Sandro Sussuarana,
que de antemão nos colocou a par do que o Sarau da Onça se propõe.
Numa sociedade em que se construiu abismos gigantescos entre a classe dominante e a
classe desfavorecida, em que os direitos são negados à última e tomados de assalto pela
primeira não é estranho pensar que o acesso ao conhecimento pode ser perigoso.
Uma estrutura social como a nossa baseada em dois extremos, os privilégios e as
carências, coloca a cultura como a última das coisas que se poderia colocar ao alcance das
minorias (maioria desfavorecida). Essa é uma lógica enraizada e renovada constantemente.
Como o nome já diz, privilégios não engloba a maioria, o termo invoca uma restrição,
seleção, exclusão. Se o privilégio é restrito, sobram, então, as carências para abraçar a maioria
deserdada e caracterizada pela carência de natureza diversa.
[...] As carências são tão específicas e singulares, tão particulares, que não chegam a
transformar as demandas em interesses gerais de um grupo ou uma classe social nem
muito menos a universalizar-se e aparecer como direitos. Os privilégios, por seu
turno, porque o são, não podem generalizar-se em interesses comuns e menos ainda
universalizar-se como direitos (CHAUI, 2006, p. 73-74).
Quando pensamos nos privilégios inevitavelmente nos referimos à classe dominante.
O emprego do termo “inevitável” é justificado pela construção da nossa sociedade em que os
lugares e condições da classe dominante e da classe dominada foram sempre bem definidos.
68
Dentre os inúmeros privilégios da classe dominante se encontra o do prestígio. Este
coloca a classe dominante como a detentora do saber e, por isso, se impõe como a melhor,
superior em relação às demais camadas sociais. Constituída como detentora do conhecimento,
a “elite” legitima o seu poder através do seu discurso competente. Dessa forma, a organização
social e política passa pelo processo de naturalização e aceitação justamente pelo efeito criado
pelo discurso competente da classe dominante.
Assim, os conflitos e as diferenças são anulados da forma mais camuflada possível,
injetando na consciência da classe subalterna o efeito ilusório de que somos todos iguais e que
privilégios não existem. É desse modo que o poder vai se alimentando e se tornando quase
intocável. O esquema foi muito bem construído e implantado de tal modo que sua perpetuação
é decorrente de um processo histórico.
Eis o esquema implantado e produzindo seus efeitos até os dias de hoje. Uma
determinada classe social se impõe como o padrão, exalta e implanta suas características
como símbolo de superioridade em oposição a uma outra classe que tem suas particularidades
eleitas como inferiores. Cabe dizer que a superioridade implantada pela classe dominante
como pertencente originalmente a ela é baseada na manutenção dos privilégios. Isso implica
em outra particularidade: a das carências e da luta pela sobrevivência da classe oposta.
A camada prestigiada, legitimada como superior e por isso denominada de elite
cai em um paradoxo apontado por Chauí (2014, p. 50): “a ideia de padrão cultural único e
melhor implica, por um lado, a imposição da mesma cultura para todos e, por outro lado,
simultaneamente, a interdição do acesso a essa cultura “melhor” por parte de pelo menos uma
das classes da sociedade”. Vale ressaltar que o autoritarismo de tal ação esclarece uma outra
ação, a saber: a de ver e tratar as camadas desfavorecidas como massa. Isto porque os sujeitos
enquadrados dentro do conceito de massa não são percebidos enquanto produtores de cultura
e sujeitos sociais participantes da sociedade, são apenas uma “multidão sem rosto e coração”,
como diz os Racionais MC’s em uma de suas letras. Portanto, os indivíduos vistos como
massa não produzem, não pensam, logo não devem ter acesso à cultura.
O autoritarismo por trás de seu caráter ameaçador esconde uma fragilidade. O
medo de o povo não ter mais medo e erguer a cabeça para se apropriar das armas. Quais
armas? O pensar, o ler, o escrever. A posse de tais armas desconstrói o projeto de apagamento
das diferenças, se constitui, pois, como tomada de posição contra a negação dos direitos e
manutenção dos privilégios.
69
Em uma sociedade cuja base é a divisão de classes e consequentemente a
diferenciação de ambas através dos privilégios concedidos à classe que exerce o poder, não é
novidade que a relação entre elas sempre foi permeada por conflitos. Há uma guerra travada
contra a classe desfavorecida. Guerra de caráter sutil, escamoteada pelo discurso da
organização e da ordem, capaz de naturalizar toda e qualquer espécie de barbárie. Entretanto,
como propõe Pelbart (2017 [online]):
Não é bom, em meio a um contexto tão sinistro, deixar-se afundar no catastrofismo
melancólico e derrotista. Porque todo poder visa também a isto: nos separar de nossa
força, inculcar a tristeza, a angústia, o medo, a culpa e sobretudo a sensação de
impotência.
A partir do pensamento de Pelbart, podemos estabelecer relação com o conceito de
disciplina proposto por Foucault (1987), uma vez que a disciplina enquanto forma de exercer
o poder sobre os corpos tem a capacidade de separar os sujeitos de suas forças, injetando a
impotência no âmbito do pensar e do agir.
[...] O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma
“mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o
corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se
determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
“dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em
uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”,
uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverter por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita
(Foucault, 1987, p. 119).
O exercício do poder sobre os sujeitos cria um efeito do tipo anestésico que elimina a
capacidade dos sujeitos de perceber e pensar a realidade de forma crítica e questionada,
fazendo-os passar pelo processo de naturalização e banalização da injustiça e da barbárie. Em
contrapartida, as resistências e reexistências vêm sendo criadas. Se a todo tempo as minorias
sociais são atacadas, tal situação, como diz Pelbart (2017 [online]), tem a vantagem de fazer
pensar e pensar de outras maneiras. Nesse sentido, as armas utilizadas para encarar um
contexto sombrio e perigoso são o pensamento e a palavra. Dito de outro modo, o ato
constante e árduo de pensar e a apropriação da palavra, bem como o tráfico dela.
70
Ao pensarmos a cultura como um direito do cidadão temos que inevitavelmente nos
questionar: direito de qual cidadão especificamente? Fazendo esta pergunta entramos
novamente na questão do privilégio, que faz parte da estrutura desigual de nossa sociedade.
Desse modo, a cultura entendida como direito funciona, na verdade, como mais um privilégio
das classes mais favorecidas. Corroborando o que Chauí (2006) discute a respeito do direito à
cultura, a cultura como um direito de todos os cidadãos só é possível de ser efetivada quando
os direitos deixarem de ser privilégios.
Contudo, se o direito de acesso ao conhecimento e a cultura é negado, tomado de
assalto e transformando em privilégio pela/para classe dominante, as margens reagem e criam
suas próprias vias de acesso ao conhecimento. Para sentir na prática o que vem sendo
abordado retomemos, então, como base a produção do Sarau da Onça e o programa de rádio
Evolução Hip Hop.
O Sarau da Onça é um espaço em que se ensina e convida o público de jovens negros
a pensar, não um pensar sem consciência e criticidade, mas exercer a atividade do pensamento
crítico e questionador, fazer do pensar uma reação, uma conspiração contra-hegemônica
diária. No sarau os jovens negros têm acesso à palavra, ao conhecimento e têm a liberdade de
expressão para produzir arte e poesia, falar de suas vivências e resistências, contar a própria
história. A produção, bem como a escuta de poesias por jovens, promove a afirmação da
própria identidade, o empoderamento e a autoestima. Assim, passam a levar a poesia para
além do espaço onde o Sarau da Onça acontece.
A sabedoria e a força para resistir, criar e recriar formas de vida são inerentes ao
povo negro e tal peculiaridade está marcada na história, naquela que o discurso oficial tentou
esconder. A voz e o corpo ainda são usados como arma de resistência do povo negro. O uso
de ambos é claramente percebido no Sarau quando os poetas e poetisas declamam suas
poesias. O tom da voz, a entonação, as pausas, o silêncio, a sonoridade em conjunto com a
performance do corpo que ocupa o espaço, pisa firme, dança, produz uma energia intensa
colocando o ambiente em movimento, levando o público a se deparar com um turbilhão de
emoções: o choro, a revolta, a reflexão sobre o passado, presente e futuro, a vontade de lutar e
ver a mudança, o reconhecimento de si nas palavras proferidas pelo/pela poeta.
Cabe dizer que o tráfico existe no Sarau da Onça, mas é o tráfico da palavra, da
informação. Esse dado confronta os estereótipos acerca do bairro Sussuarana divulgado na
mídia, mostrando, pois, que o referido bairro produz poesia, arte, cultura e resiste às
violências simbólicas fabricadas pelo sistema.
71
A arma usada para contrapor o discurso dominante a respeito da periferia é o
conhecimento. Vejamos a poesia intitulada de “A Perifa”, de Sandro Sussuarana (2017, p. 6)
para melhor compreendermos o que vem sendo dito neste capítulo:
Onde eu moro o som de bomba
Causa a mesma reação que o som de tiro.
Tensão. Susto. Conflito.
No mesmo instante correria, choro e grito.
Gente tentando colocar seus pensamentos em ordem
E pedindo para Deus que não seja mais nenhuma morte
Mas logo o silêncio vem e leva-nos para a tranquilidade.
Por mais alguns segundos até estarmos de frente com a
realidade.
Porque segurança na quebrada meu amigo, é coisa rara.
Quem deveria nos proteger na verdade é quem nos mata.
Enquanto na cadeia só tem vaga pra mim, porque sou “rasta”.
Os maiores ladrões continuam circulando de terno e gravata
É sempre o mesmo assunto eu sei,
Mas de 5 mortos no final de semana
os pretos são ao menos três.
Vivemos diariamente uma guerra não declarada, contra
quem?
O governo ou a polícia mal preparada?
Ou melhor, alienada! Alienada como porcos em ordem de
batalha
Postura de quem não sabe se te protege ou te caça!
Não pense e não haverá conflito.
Pois, enquanto eles roubam,
nós é que levamos a fama de bandido
Mais uma vez eu digo, meu amigo:
- Quer ser perigoso?
Vá ler um livro!
A voz que se faz ouvir na poesia acima relata a realidade vivenciada na periferia em
que a violência faz parte do cotidiano dos sujeitos. O tom de revolta revela um discurso
contra-hegemônico que reconhece uma guerra contra as minorias criada e mantida pelo
sistema de poder vigente, questionando a respeito da segurança que só protege um lado da
sociedade e os lugares criados como sendo próprios para aqueles que têm a pele negra. Souza
(2017) ao tratar da construção da desigualdade de classe mostra como o negro enquanto
parcela majoritária da classe dos excluídos é colocado como alvo da repressão. Segundo o
autor:
O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e
inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de
polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da
72
violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de política pública
informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que
construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão com outros meios
se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e
selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos (p. 83).
Dessa forma, estamos vivenciando uma continuidade da escravidão no sentido de
que toda opressão e perseguição à classe dos excluídos continuam sendo praticadas de novas
formas. Podemos notar a referência a esta perseguição contra os negros no trecho da poesia
que diz:
Quem deveria nos proteger na verdade é quem nos mata.
Enquanto na cadeia só tem vaga pra mim, porque sou “rasta”.
[...]
É sempre o mesmo assunto eu sei,
Mas de 5 mortos no final de semana
os pretos são ao menos três.
O trecho nos leva a pensar justamente no que Souza (2017) diz a respeito da
continuidade da opressão sobre o excluído de outros modos, isto é, antes era o capitão do
mato, hoje é a polícia, cuja missão é perseguir preto e pobre. Uma outra parte da poesia
complementa o que já foi dito:
Vivemos diariamente uma guerra não declarada, contra
quem?
O governo ou a polícia mal preparada?
Ou melhor, alienada! Alienada como porcos em ordem de
batalha
Postura de quem não sabe se te protege ou te caça!
Na primeira frase se questiona sobre o alvo de uma guerra não declarada. Esse alvo
tem um padrão bem definido que se resume em duas palavras: negro e pobre. Logo em
seguida é disparada uma crítica à polícia que a define como alienada, assumindo uma postura
controversa. Isso corrobora o que Souza (2017) afirma acerca do que ele chama de política
pública informal, que se configura como uma licença para caçar e matar preto e pobre criada
para higienizar as cidades e promover a “paz”. De acordo com o autor, tal política tem o apoio
das classes médias e altas. É justamente nesse ponto que a poesia bate ao denunciar a
alienação e a má preparação da polícia. Instruída para garantir a “paz” derramando o sangue
dos alvos da perseguição.
73
Assim, no fim da poesia o conhecimento é afirmado como via de transformação da
realidade por aqueles que sempre foram oprimidos. O conhecimento é a arma para combater a
opressão da classe dominante.
A cultura Hip-Hop, assim como os saraus, também se configura como espaço de
construção do conhecimento e exercício do ato de pensar. Tendo em vista que os meios de
comunicação são controlados por uma cultura dominante e estão, em sua maioria, a serviço
dela, a existência de um programa de rádio disposto a colocar em pauta assuntos do interesse
dos sujeitos, levar informação e conhecimento, além de dar visibilidade a produções culturais
da periferia é, sem dúvida, uma ação que caminha no sentido contrário da dominação e
opressão dos sujeitos. Trata-se, pois, de uma (re) ação que transforma a comunicação em
instrumento de luta contra o silenciamento e a alienação da maioria desfavorecida, as
minorias sociais.
Nesse sentido, o programa Evolução Hip-Hop se mostra como lugar de
posicionamento e reação em que as vozes e os ritmos da cultura negra são visibilizados.
Assim, tal programa de rádio se constitui como ação contra-hegemônica que subverte os
padrões na medida em que se dispõe a tocar e divulgar música negra, principalmente o rap,
que é cercado de estereótipos.
74
3.2 O que podem as margens?
As margens que sempre foram negligenciadas e oprimidas são, por outro lado, uma
ameaça para a tradição vampiresca de exercício do poder. Pensando dessa forma, passamos a
refletir na questão que dá nome a este subtítulo, a saber, “o que podem as margens?”.
Retomando Pelbart (2011), o capital penetrou nossas vidas nas mais diversas
dimensões, de modo que o que somos e fazemos sofre influências nem sempre explícitas.
Somos tomados pela ilusão de que a origem da nossa visão de mundo, dos nossos desejos está
em nós. Contudo, como nos lembra Pelbart (2011 [online]), “o que nos é vendido o tempo
todo, senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O
fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida [...]”.
Dessa maneira, é possível pensar como o poder é exercido sobre a vida, como ele
consegue investir na vida através das formas mais variadas. Pelbart (2011) retoma o conceito
de biopolítica em seu sentido inverso ao que Michel Foucault havia pensado. Dessa forma, a
ideia de biopolítica enquanto poder sobre a vida passa por uma inversão, de acordo com o
autor, inversão explicitada por Deleuze, a saber, o poder da vida, a potência política da vida.
Assim:
[...] aquilo mesmo que o poder investia a vida era precisamente o que doravante
ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta inevitável. Ao poder sobre a vida
deveria responder o poder da vida, a potência “política” da vida na medida em que
ela faz variar suas formas e reinventar suas coordenadas de enunciação (PELBART,
2011 [online]).
A partir das palavras do autor podemos dizer que a vida é uma via de mão dupla, se de
um lado ela é o objeto no qual o poder investe, de outro ela é também o lugar em que se
produzem os modos de resistir.
Se como resposta ao poder sobre a vida existe a potência dessa mesma vida, quando
falamos e pensamos sobre as margens jamais poderemos direcionar nossos sentidos
unicamente para o lado oprimido e injustiçado da periferia, como alvo do poder, mas também
para a potência de vida que emerge desse espaço como resposta a opressão. Nesse sentido,
para pensar nas formas de resistência, na potência política existente nas margens o programa
Evolução Hip-Hop (pensar também a cultura Hip Hop) e o Sarau da Onça são nossos
condutores.
75
Dentro da cultura Hip Hop o rap assume um papel importante no que diz respeito ao
uso da linguagem oral e escrita como forma de resistência e construção de um novo espaço de
dizer que revelam as identidades dos sujeitos e a posição, o lugar de onde os discursos
emergem. Sobre a importância da linguagem na cultura Hip Hop, Souza (2011) faz uma
importante consideração:
No universo hip-hop, uma das questões centrais diz respeito à necessidade de
produzir novas formas de experimentar e apropriar-se de conhecimentos e saberes
socialmente construídos e, nesse sentido, os usos da linguagem ganham importância
fundamental. [...] Participar do hip-hop tem significado aprender a inserir-se no
universo letrado, alterando as imagens naturalizadas sobre as práticas de letramento
dos jovens de periferia, dos jovens negros e pobres (SOUZA, 2011, p. 80).
O rap, enquanto poesia marginal e, mais amplamente, o Hip Hop, como cultura
marginal, são de grande importância para jovens da periferia, já que estes passam por um
processo de letramentos, bem como de autoafirmação identitária, empoderamento e
desenvolvimento de um pensamento crítico sobre o mundo e a realidade na qual se vive.
Vamos tentar perceber isso na prática com trechos da letra de rap “Morro maloca” do grupo
de rap baiano A Febre, que surgiu na Boca do Rio, bairro de Salvador no ano de 2008 e conta
com cinco integrantes:
Morro, maloca, quebrada, favela
Não tem estrutura e educação para os moleque então já era
[...]
Um dia irei representar a boca do rio irmão de ponta a ponta
Através do rap, informação, humildade, responsabilidade
Alegria aqui é sem sofrimento
Jesus Cristo é o nosso escudo e o rap o meu talento
É resistência, cultura, periferia rua
Eu estou cansado de ver preto nordestino rebolando a bunda
E nada faz para mudar nosso cotidiano
Nós queremos exemplo, educação para as criança irmão
Não pornografia, enganação como a tv nos mostra
Um monte de otários rebolando e falando bosta
R-a-p veja essa sigla e mantenha respeito
Revolução não viadagem para o povo preto
Sou afro brasileiro e jamais vou negar minha origem
Sou descendente de zumbi, guerreiro forte humilde
Respeito é fundamental pra continuar ativo
A boca do rio quer informação é o nosso objetivo
Muitos moleque ali não pensam em puxar o cano
Vacilou irmão já era, sai da frente eu tou pocando
76
Ei dá um tempo meu irmão, pare um pouco reflita
Com a arma que você atira é que tira sua vida
Veja como exemplo muitos irmãos que já se foram
Antes um consciente vivão, do que um bravo morto.
A letra do rap supracitada começa falando de uma situação presente na favela, isto é, a
ausência de estrutura e educação para os jovens e como que isso acaba provocando
consequências catastróficas, como a entrada dos jovens no mundo do crime, como fica claro
na frase: Não tem estrutura e educação para os moleque então já era. A partir daí, a voz
presente na letra faz uma reflexão em torno da realidade da periferia fazendo uma crítica
àqueles que caem nas ciladas da opressão e, ao mesmo tempo, chamando os sujeitos para o
exercício do pensamento crítico e da tomada de posição. Além disso, o discurso presente no
rap produz a autoafirmação do sujeito enquanto afrodescendente deixando claro que a luta é
para que a educação, a informação chegue à favela. A partir disso, o rap é apresentado
enquanto via para a transformação social na periferia, se constituindo, pois, como uma
verdadeira revolução do povo preto.
Vejamos outra letra de rap intitulada “Evolui” do grupo, também baiano, O Quadro.
Formada em Ilhéus em 1996, a banda conta com oito integrantes.
Máquinas fantasmas produzindo ilusões
Nada parece ser, nítidas impressões me levam a crer
Mundo resumido, indivíduos portando controles
Possuídos por motores
Atores, mágicos, ilusionistas
E o caos prossegue à mística
Apocalipse pré-escrito
Do fundo do poço gritos imploram por socorro
Gritos em torno, lei do retorno
Piso certo na selva de concreto
Enquanto lá atrás a babilônia cai, lucros são contados
Justos eliminados em nome do dólar, a favor de quem explora
Liberdade restrita
Há um controle remoto em sua vida
Acorde, desligue
Dentro de você há um líder
Há um líder dentro de você
A letra acima traz também uma crítica ao controle que é exercido sobre nossa vida. Na
frase: Máquinas fantasmas produzindo ilusões podemos pensar no próprio poder exercido
sobre a vida, de modo que é criada a ilusão de que está tudo bem. Essa forma de exercer o
poder sobre os corpos está entre os mecanismos mais sofisticados de controle, uma vez que é
77
possível dominar e controlar os sujeitos sem que eles percebam. Isto fica evidente também na
frase: há um controle remoto em sua vida. Nas últimas palavras a voz alerta para uma tomada
de posição e de consciência mostrando, pois, que há um líder dentro de cada sujeito e que este
precisa ser acordado. Nesse sentido, quando o discurso proferido faz tal alerta é possível intuir
que existe aí o reconhecimento de que há uma potência de vida no sujeito e esta deve
responder ao “poder sobre a vida”.
Em suma, em ambas as letras de rap apresentadas aqui foi possível constatar que tal
expressão artística se configura como forma de resistência, potência política da periferia.
Cabe ressaltar que a cultura Hip Hop cria espaços para construção de novas subjetividades
dentro da periferia, de modo que fica evidenciado que os sujeitos cotidianamente excluídos
pelo sistema conseguem e podem fazer sua própria arte, seguindo os rastros de suas formas de
vida e vivências, e por mais que este modo de se produzir não seja considerado como arte e
cultura, tais manifestações artísticas e culturais ousam a se mostrar e ocupar o cenário social.
A periferia se apresenta sob nova ótica, diferente daquela criada pela cultura dominante.
Em relação ao Sarau da Onça, a sua potência política se traduz na construção de novas
subjetividades, de autoestima e empoderamento da identidade negra, bem como de produção
de conhecimento e exercício da atividade de pensar e de fazer reflexão sobre verdades e
padrões pré-construídos.
Dentre tantas poesias dos poetas do Sarau da Onça que podem explicitar o que vem
sendo dito, leiamos a poesia “Não nego voz” de Evanilson Alves (2017, p. 81-82):
Pratos limpos e mesa posta
Pra por o assunto na mesa
É preciso falar dessa violência que mata
Que não permite que o outro exista
E não permite que o outro seja
Dizer que estamos atirando no reflexo
Não é e não será o bastante
Quando ao mesmo tempo nos fazem pensar
Que quem vemos no espelho
Não é importante
Enquanto você bate panela
Repetindo discurso
Como se fosse um mantra
Não entende que do outro lado
Alguém dorme sem janta
Pré-vestibular para branquitude
Resta o doze pra Rafael
E função na madrugada
Falar de meritocracia é cruel
Arrepia até a alma
Passar ao lado da viatura
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Camburão que leva assassinos
E cúmplices da ditadura
País, estado ausente,
Que tortura, mata e prende,
Limitando as possibilidades
E ceifando os sonhos da gente
Não negociarei com racistas
Pão e circo não fará minha festa
Ocupar espaços de poder é o que quero
E menos que isso não me interessa
Estado que silencia
E potencializa as armas de combate
Mas é incapaz de investir na poesia
E nos sonhos de quem está atrás das grades
Sinto medo e não nego
Mesmo assim não me permito desistir
E mesmo com a garganta cheia de nós
Sou linha de frente e não nego voz.
Logo nas primeiras linhas da poesia supracitada percebemos uma chamada para um
diálogo, cujo tema é a violência que mata, que não permite que o outro exista, que não
permite que o outro seja. Quem é esse outro? Prosseguindo com a leitura conseguimos
entender através de um discurso crítico e contra-hegemônico que esse outro está fazendo
referência ao negro da favela, que é vítima da violência policial e da negação de seu direito de
existir e de ter igualdade de oportunidade, o que se pode verificar nas frases: Pré-vestibular
para branquitude/ Resta o doze pra Rafael/ Falar de meritocracia é cruel. Outro dado que
podemos notar na poesia é a menção à classe média que não pensa:
Enquanto você bate panela
Repetindo discurso
Como se fosse um mantra
Não entende que do outro lado
Alguém dorme sem janta
A referência à classe média é clara quando se menciona alguém que bate panela, isto
é, vai às ruas para protestar em prol de seus privilégios. A respeito do comportamento da
classe média Souza (2017) assevera:
É hoje inegável para qualquer pessoa que tenha ido à avenida Paulista, ou qualquer
das grandes avenidas das grandes cidades brasileiras, protestar só contra o Lula e o
PT que a corrupção era fachada para o verdadeiro objetivo das classes médias, que
era interromper o projeto de ascensão social dessas classes para que continuem
sendo ‒ exatamente como os escravos do passado ‒ odiadas, superexploradas e
desprezadas (p. 102).
79
O comportamento revoltoso da classe média se justifica pelo medo da perda de
privilégios, já que tem se percebido que uma parcela da classe popular tem conquistado certo
grau de ascensão social. De acordo com o autor, a classe média é cúmplice dos golpes
operados contra as classes populares, justamente para impor barreiras para que essa classe não
consiga ter acesso ao capital cultural e econômico. Para Souza (2017), a reprodução e
manutenção dos privilégios de classe ocorrem através de estratégias que consistem em
transformar o capital econômico e o conhecimento, o bom gosto estético, isto é, o capital
cultural em algo inato, transmitido “pelo sangue”. Desse modo, a poesia consegue suscitar
uma reflexão em torno da construção de desigualdades que está ligada à reprodução dos
privilégios na sociedade.
São inúmeras poesias tão instigantes quanto as que estão presente neste trabalho. É um
conjunto de ideias incendiárias e dispostas a romper com verdades e formas de vida impostas
pela cultura dominante. Seria quase impossível trazer todas essas produções neste trabalho,
mas as que aqui se fazem presente já dão uma ideia da qualidade e da importância do Sarau da
Onça.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estas singelas palavras que aqui expus tiveram o intuito de desenvolver algumas
reflexões em torno dos processos de deslegitimação, mas também e, sobretudo, de reação e
resistência dentro das margens, palavra apropriada aqui neste trabalho para designar a
periferia. Para tanto, o Sarau da Onça e o programa de rádio Evolução Hip-Hop se
constituíram como fonte para o desenrolar do que se propôs discutir aqui.
O Sarau da Onça possui uma vasta produção poética de vários autores publicada em
livro, sendo assim, a presente dissertação não pretendeu dar conta de toda essa produção, para
isso, seria necessária a realização de outros trabalhos. Contudo, houve um esforço para trazer
uma reflexão acerca do Sarau que o contemplasse como um todo, não desconsiderando, pois,
a imensa quantidade de poetas e poetisas e suas produções.
Como diz Pelbart (2017), “é preciso fazer do pensamento uma conspiração cotidiana,
uma insurgência indomável.” Eis a forma mais potente de reação e resistência, uma vez que a
capacidade de pensar é justamente o que o poder tenta aniquilar.
Nesse sentido, o Sarau da Onça, a Cultura Hip Hop e o programa de rádio Evolução
Hip-Hop tem se constituído como uma insurgência na medida em que o principal meio de (re)
ação é o pensamento. Atividade diária de pensar na contramão do sistema de poder, provocar
a desconstrução de verdades e padrões enraizados na sociedade, questionar os lugares
ocupados pelo oprimido e pelo opressor, bem como reivindicar a garantia de direitos para
aqueles que verdadeiramente produzem a riqueza do país.
O Sarau da Onça tem promovido a reconstrução da identidade negra através da tomada
de consciência, autoafirmação e empoderamento. Ele tem oportunizado a fala para aqueles
que tiveram o direito de falar negado. Nesse sentido, a denominação “o diferencial da favela”
faz todo sentido, uma vez que é um espaço em que jovens negros e negras da periferia são
protagonistas e contam a própria história.
Desse modo, se observa que a transformação pela poesia tem alcançado muitos lugares
e pessoas, provocando o despertar para a luta, para a busca de justiça e igualdade social. A
poesia se configura como a arma, a resistência contra as injustiças e opressões impostas às
minorias.
81
O programa Evolução Hip-Hop também é constituído pela resistência, pela
insurgência política, uma vez que nele se faz ouvir vozes plurais, que se mostram, se afirmam,
gritam as suas singularidades. A cultura negra, a cultura das ruas, as vozes que sempre foram
alvos da tentativa de silenciamento e deslegitimação se impõem e mostram as suas forças.
As discussões que aqui se apresentam não se instituem como prontas e esgotadas.
Trata-se de considerações que buscam contribuir de alguma forma para reflexões em torno
das questões insinuadas aqui.
82
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88
ANEXOS
89
ENTREVISTA A SANDRO SUSSUARANA, PRODUTOR DO SARAU DA ONÇA
PERGUNTA: Em primeiro lugar quero agradecer pela disponibilidade e pela atenção. Para
início de conversa gostaria que você falasse um pouco da história do Sarau da Onça (como e
quando surgiu, quem são os participantes e colaboradores, etc.).
R: a partir de jovens que descontentes com as noticias veiculadas a cerca do bairro de
Sussuarana, resolveram então contrapor o que estava sendo veiculado, para mostrar
que a periferia é um berço de cultura, com muitos talentos e que precisa ser
visibilizada com as qualidades eu tem e os milhares de grupos culturais que atuam
diariamente no resgate das crianças, dos jovens, idosos, de todos que necessitam de
um cuidado... no entanto esses grupos não são visibilizados, ao contrário, vivem no
anonimato sem os devidos reconhecimentos pelos seus lindos trabalhos. O Sarau da
Onça acontece desde o dia 7 de maio de 2011. Começou com 4 produtores, hoje conta
com 7.
PERGUNTA: Levando em conta que a literatura construiu seus limites em torno do que é
reconhecido como cânone, como você percebe a relação entre o que chamam de alta literatura
e a literatura produzida na periferia?
R: Eu acredito que quem define o que é ou não literatura é quem s lê/ouve... durante
muito tempo só se via um formato de literatura, que só serviu para uma parte de
leitores... hoje isto está mudado e a literatura produzida pela periferia é de qualidade
tão boa quanto a literatura tida como “verdadeira”.
PERGUNTA: E quanto a recepção da literatura produzida por vocês, como ela pode ser
definida? Ao longo da trajetória do Sarau da Onça foi percebida alguma resistência do
público?
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R: ao logo do nosso trabalho e de todos os espaço que passamos, temo tido muitos
elogios. A recepção tem sido cada vez mais frequente, porque as pessoas que nos ouve
se identificam com o que fazemos e escrevemos, cria um certo reconhecimento em
nossos textos com suas vidas, o que facilita o entendimento e aceitação.
PERGUNTA: Como que a poesia tem contribuído para o empoderamento dos sujeitos?
R: um Sarau de Poesia dentro de uma comunidade periférica tem uma importância
significativa, pois faz com que as pessoas que os frequentam passem a acreditar ainda
mais em si, a comemorar a vitória do outro e acima de tudo a lutar em conjunto, por
dias melhores, melhores condições de vida, educação, saúde, etc.
PERGUNTA: Qual a importância do Sarau da Onça para o bairro de Sussuarana e para a
cidade de Salvador em geral? Quais os impactos causados pelas intervenções do sarau?
R: acredito que o Sarau da Onça, assim como outros saraus na cidade, tem uma
importância, por tratar de questões como: Racismo, descriminação, empoderamento,
amor, autoestima, etc. Com muita propriedade. Vê em cada sábado jovens, crianças,
idosos reunidos para ouvir e declamar poesia, feitas por eles, os próprios
frequentadores, é de fato uma grande transformação, ainda mais por conta de os
bairros periféricos estarem em muitos casos distantes dos grandes centros. Criando
assim um circuito cultural de periferia.
PERGUNTA: Como você percebe essa apropriação da poesia por sujeitos aos quais foram
negados tantos direitos, inclusive o da expressão artística e do direito de fala?
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R: Eu vejo que a gente sempre produziu... Que apenas não tínhamos como mostrar
estas produções como temos hoje. Isto mostra que desde sempre criamos alternativas
para celebrarmos tanto a literatura quanto a arte em si.
PERGUNTA: De que forma você acredita que o governo deveria contribuir para a difusão e
valorização da cultura e arte produzida na periferia de Salvador?
R: Patrocinando estas ações culturais. Não só na questão financeira... mais de
comunicação, formação etc.
PERGUNTA: De quais maneiras o Sarau da Onça tem feito intervenções tanto na
comunidade de Sussuarana quanto em outros espaços?
R: Promovendo debates, participando de mesas temáticas, ajudando e potencializando
a criação de outros Saraus.
PERGUNTA: O que representa a literatura para você? O que ela representa para a
comunidade Sussuarana?
R: Para mim representa uma vida. Para a comunidade representa um Grito de
Liberdade
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ENTREVISTA A HAMILTON OLIVEIRA, PRODUTOR E APRESENTADOR DO
PROGRAMA DE RÁDIO EVOLUÇÃO HIP HOP
PERGUNTA: Quero agradecer, em primeiro lugar, pela atenção e pela disponibilidade em
conceder esta entrevista. Gostaria que falasse um pouco sobre o programa de rádio Evolução
Hip Hop (como e quando surgiu, quem mais, além de você, está por trás da produção do
programa, etc.).
R: O programa Evolução Hip Hop, né, ele é um programa de rádio que trabalha com
comunicação e cultura. A gente começou no ano de 2003 na Rádio Comunitária Popular
FM, lá em Mussurunga. A rádio fechou por conta de perseguição da Anatel, que a rádio
não era legalizada e em 2007 a gente apresenta um projeto em um evento que a rádio
Educadora FM fez, chamado o Primeiro Encontro da Educadora FM com a Produção
Musical Baiana, né, e esse projeto ele é aprovado. É... o Programa Evolução Hip Hop é
produzido pela CMA HIP HOP, que é uma organização que trabalha com Comunicação,
Mobilização Social e Produção Cultural, né, é um programa independente, a gente não
tem nenhum tipo de vínculo empregatício com a rádio Educadora nem com instituições e
instituto de rádio e difusão educativa da Bahia, nem com a TVE, né. A gente entra com o
conteúdo, né, com a produção e eles entram com equipamento técnico, né, e com o sinal.
E é um programa que para além do Hip Hop é um programa que dialoga com a cidade,
um programa que dialoga com o Estado, né, para além de dialogar com os adeptos,
simpatizantes da cultura hip hop. É um programa que vai além porque ele trata também
de questões sociais dentro do programa, tem matérias diversas, né, então é um espaço
aberto, né, também, claro, pra Cultura Hip Hop, mas também pra o movimento social em
geral ir lá falar, é, sobre suas pautas. Ele é dividido em três partes, né. Ele tem entrevista,
né, ele tem música e tem um quadro de notícias que é o quadro de Agenda Cultural CMA
Hip Hop informa. Eventualmente a gente cria algum quadro novo no Evolução Hip Hop,
a exemplo de 2012 que a gente criou um quadro chamado Trabalho infantil em foco, né,
pra discutir as problemáticas, né, é, que tem referente ao trabalho infantil durante o
Carnaval de Salvador. A gente fez uma parceria na época com a SINCOP, comunicação
interativa e a gente, é, produziu o conteúdo em conjunto e rodou na Educadora FM.
Então, assim, tem alguns quadros eventuais, a gente tem alguns novos pra lançar aí, no
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momento agora o Evolução Hip Hop, ele tá, tá sendo só gravado, né, não tá rolando ao
vivo, por conta mesmo de custo financeiro, como a gente não tem patrocínio, é difícil
conseguir patrocínio para o Evolução Hip Hop, né, e é um espaço que desde quando
estreou na Educadora FM no dia 24 de novembro de 2007, né ele contribuiu, né pra o
fortalecimento e desenvolvimento da Cultura Hip Hop, não só em Salvador, mas no
estado da Bahia. A partir do momento que o Programa Evolução Hip Hop foi pra rádio,
né, um outro público, né outras classes, outras culturas começaram a entender, né, a partir
do programa de rádio, o que é o Movimento Hip Hop, quais são suas pautas de luta, né, o
que é que produz de conhecimento, quais são seus produtos e aí começou a quebrar,
contribuiu pra quebrar estereótipos, né, que as pessoas ainda tem contra o Movimento
Hip Hop, quebrar preconceitos. Então contribuiu de forma significativa, é pra isso, né, é
assim, esse é o papel do programa Evolução Hip Hop, mas para além de fortalecer o
Movimento Hip Hop e de fomentar cultura, né, traz pautas específicas sobre questões
sociais.
O que é que acontece, querendo ou não o Movimento Hip Hop ele ainda é um movimento
muito criminalizado, né, existe ainda algum tipo de rejeição e majoritariamente esse
movimento é formado por jovens negros e negras de periferia, né, então assim, os
anunciantes, os patrocinadores, né, os anunciantes publicitários não enxerga, né que o
programa Evolução Hip Hop tem um público consumidor, não enxerga, mas a resposta
disso a gente dá na prática, né, quando anunciou na rádio, a rádio começou a fazer
propaganda que ia estrear novos programas na rádio em 2007, não só o Evolução Hip
Hop, mas os Tambores da Liberdade, programa de Ilê Ayê rádio África, vários ouvintes
da rádio conservadores, né, porque a rádio sempre teve um perfil de um público de acima
de 30 anos e com nível superior completo, tal, pessoas criticas na área de música, na área
de cultura, na área de política criticaram, falaram que a rádio não podia ter, uma rádio
conceituada, educativa como a Educadora, um programa de Hip Hop. É, “ah não porque é
música de bandido, música de ladrão, que fala de drogas, que fala de violência, não pode.
Ah, os Tambores da Liberdade não pode, música do Ilê Ayê, música de macumba, de
candomblé e tal”. E aí ficou nessa, né só que na época o diretor da rádio.... que foi o cara
que assinou em baixo é... falou, não, acho que tem que rolar, se a rádio é pública ela tem
que atender a diversidade cultural do estado da Bahia, tem que beneficiar mesmo esses
segmentos, né, que tem um propósito social. E aí a grande resposta teve muita resistência
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até por parte interna, mesmo de alguns funcionários da rádio, da instituição pra o
programa ir ao ar, mas a resposta foi que entrou no ar em 24 de novembro de 2007 e em
janeiro de 2008 chegou a pesquisa do Ibope e a gente tava em primeiro lugar em
audiência, né, o Evolução Hip Hop ficou três anos em primeiro lugar em audiência,
ganhando pras rádios, é, do porte da Educadora, que é a rádio medi, não essas rádio que
chamam de rádio popular, de... de rádio de comunicação de massa, mas a Nova Brasil, a
Globo FM, a Transamérica, a Metrópole, a gente tava ganhando pra essas rádios. Na
liderança em audiência a gente foi o único programa de rádio da Bahia a ser indicado ao
prêmio nacional de música, que foi o prêmio Dinamite, né, isso foi em 2009, né a gente
ganhou um Selo do Ministério da Cultura, um Selo Prêmio Cultura Viva do Ministério
da Cultura de reconhecimento na categoria Cultura e Comunicação e em 2015 a gente
foi o único programa de rádio que ganhou o prêmio Camélia de Liberdade na categoria
veículo de comunicação, né, o único programa da Bahia que ganhou esse prêmio também
por reconhecimento que trabalha no programa conteúdos e temáticas voltadas para o
combate ao racismo e a intolerância religiosa. Então a gente ganhou esse prêmio junto
com a novela angolana, com a novela Windeck, com o Jornal Globo, com a Rádio
Nacional de Brasília, né, então, assim, é um reconhecimento de trabalho, mas existe
barreira e existe resistência, né, porque o mercado ele vai investir, não investir em
programa que vai tocar música, música que fala sobre o preconceito, música que
denuncia a injustiças sociais, o mercado ele vai investir ne música, aquela música que é
só pra o entretenimento, aquela música que num leva as pessoas a adquirir conhecimento,
que não contribui em nada pra nossa sociedade, então um programa que tem um contexto
social, que tem um discurso engajado, politizado, as empresas elas não vão querer
investir, existe uma resistência.
PERGUNTA: O que o Evolução Hip Hop representa no contexto atual? Qual a importância
do programa para a cultura Hip Hop?
R: O Evolução Hip Hop representa evolução, representa a quebra de paradigmas, né, o
rompimento de fronteiras e dizer que o Hip Hop ele não é uma tribo, o hip hop é o mundo
e tem que estar em qualquer espaço.
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O Hip Hop hoje nas periferias de Salvador, né, ele representa a maior forma de
organização popular de jovens na periferia do Brasil. Né... a linguagem cultural que
dialoga diretamente com aqueles e com aquelas que estão, é... propositalmente, ignorados
e criminalizados, né, que sofrem injustiças sociais por parte do poder público, por parte
do estado brasileiro. Né, o Hip Hop ele representa a voz dos excluídos, o Hip Hop
representa mudança, como é que fala um discurso crítico engajado politizado, né, então o
Hip Hop nas comunidades ele é muito importante pra contribuir pro resgate da autoestima
da juventude, né, e da elevação da consciência. E também para discussão dos problemas
sociais, exatamente pra organizar o público, várias pessoas refletir a música rap,
especificamente, que é o pilar de sustentação do Hip Hop que é dividido em quatro
elementos, né, tem a dança, tem o grafite, tem o DJ, tem o MC, e tem a música rap, né, a
música rap é o pilar de sustentação, né, é ela que chega a locais que são propositalmente
ignorados e esquecidos e estão a margem da sociedade que estão criminalizados,
marginalizados.
PERGUNTA: Nesse sentido, o Hip Hop contribui para o enfrentamento político?
R: Com certeza, na verdade o Movimento Hip Hop ele contribui pra o povo se organizar,
pra fazer incidência política. E aí o que é incidência política? Incidência política é você se
organizar pra reivindicar direitos, agora reivindicar direitos de uma forma organizada, né,
reivindicar direitos em coletivo, então o Movimento Hip Hop ele ajuda as pessoas a se
organizar dessa forma.
PERGUNTA: De quais formas o Hip Hop tem feito intervenções nas periferias de Salvador?
R: Movimento Hip Hop na Bahia ( ) ele começou em 96, ( ) ele tem 21 anos, né, 21 anos
de Movimento Hip Hop organizado na Bahia. Então, antigamente era mais forte, né,
movimento organizado em comunidade enquanto movimento sócio-político-cultural.
Existe os conceitos de posse, que é o grafiteiro, b. boy, o MC, o cara que é colaborador
do Movimento Hip Hop, que não domina nenhum elemento da cultura, mas que lá é
jornalista, fotógrafo, é um produtor cultural, que é um educador, né, que fazem parte
desse conceito, dessa organização. Posse que hoje dá o nome de associação nas
comunidades e esses grupos se organizavam nas comunidades pra organizar atividades
96
culturais, atividades de formação política, né, grupos de estudos nas comunidades, mas
como propósito central de organizar a comunidade pra reivindicar seus direitos de uma
forma organizada, os direitos que são violados.
É... hoje se enfraqueceu mais essa coisa de Movimento Hip Hop organizado,
especificamente em Salvador. Mas ainda é muito forte isso no interior da Bahia,
especificamente no sudoeste baiano. Recentemente teve o encontro de Hip Hop do estado
baiano, o terceiro que aconteceu na cidade de Itarantim. E a gente consegue ver isso.
Existe Cultura Hip Hop e Movimento Hip Hop. A Cultura Hip Hop depende do
movimento e o movimento depende da cultura, mas não obrigatoriamente aquele jovem
hoje que começou a grafitar ou que começou a cantar rap, ele tem que fazer parte do
Movimento Hip Hop. Ele é um elemento da Cultura Hip Hop, ele contribui com o
fomento da Cultura Hip Hop e aí vai quem estiver próximo dele pra dialogar e falar sobre
a essência, né, sobre a base ideológica e política do Hip Hop, pra isso. É... hoje nas
comunidades são ações que acontecem em Salvador, ações pontuais. São ações de
intervenções culturais, né, é o que tá muito forte hoje, que o Hip Hop querendo ou não ele
se agregou aos saraus de poesia que acontecem nas comunidades, então assim, vários
poetas, vários MC´s, ajudam, organizam e participam desses espaços, que é um espaço
para além de um espaço de lazer, entretenimento, é um espaço de formação política, é um
espaço de formação popular, né, é um espaço que tem as poesias e lá traz um discurso
todo politizado, engajado. Fala sobre os problemas sociais, fala sobre questão racial, fala
sobre questão de gênero, fala sobre violação de direitos. Então, assim, hoje
especificamente é dessa forma, fora algumas ações pontuais que acontece que são
festivais, né, acontece muito festival... é... mutirão de grafite, né, por exemplo,
Cajazeiras, Castelo Branco, Cabula, ali na Gamboa de Baixo sempre os grafiteiros se
reúnem pra pintar painéis nas comunidades. São grafiteiros de vários bairros, né, isso
para além de intervenção artística, é intervenção política também, porque aquele grafite
ele tá passando uma mensagem, né, então ele se organiza nas comunidades dessa forma,
né, agora a Cultura Hip Hop ela tá querendo ocupar os espaços também pra esses jovens
que fazem parte, que dominam os elementos da cultura seja reconhecido como artista.
Então, assim, existe uma coisa chamada permuta que alguns produtores de música rap e
os MC’s fazem com as casas de show. Chega nas casas de show, por exemplo, no Rio
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Vermelho, sabe... aí chega lá e aí faz um acordo dividindo a porcentagem de portaria com
o dono da casa pra ter uma casa de show pra tocar, que não existe um espaço físico pra
dizer assim: esse espaço é um espaço de referência do Hip Hop em Salvador, não tem, né,
por exemplo , em Teixeira de Freitas tem, né, tem casa do Hip Hop lá. A gente tá lutando
também pra ter a casa do Hip Hop aqui em Salvador, só que existe um diálogo ainda pra
ver aonde vai ser essa casa, se vai liberar concessão de espaço, se não vai, mas a gente se
organiza assim dessa forma. São essas ações que, independentemente de a ação ser no
centro da cidade ou a ação ser na periferia, são ações que contribuem para o
florescimento da cultura e do movimento.
PERGUNTA: Nos espaços que ocorrem essas ações qual é a reação da comunidade, a reação
do público?
R: Não, primeiro que assim, a cultura, os elementos da Cultura Hip Hop todos eles
chama muita atenção de quem conhece, de quem não conhece e os curiosos. Agrega as
pessoas, por exemplo, se você tiver andando pelo centro da cidade e chegar ali na praça
da Piedade, né, e parar dois meninos, dois dançarinos de Breaking e começar dançar ali,
né, todo mundo vai parar, quem tá no ponto do ônibus vai perder até o ônibus, né, que vai
parar pra vê eles dançar porque é mágico o que eles fazem, é... o movimento é mágico e
chama a atenção, mobiliza as pessoas pra vê o que é aquilo ali, pra depois procurar
pesquisar saber que cultura é essa. Então, assim, o impacto, logo, é esse. Se você passa
em uma comunidade você vai vê um muro todo abandonado cheio de mato, aí você vai
trabalhar de manhã, tá tudo lá abandonado cheio de mato. Quando você volta a noite tá
grafitado. É uma outra impressão, né, pra aquele morador, aquela moradora. Embeleza
mais a comunidade, colore a comunidade e sei lá... fazem até as pessoas passarem e vê o
grafite bonito e esquecer dos problemas. A pessoa vai trabalhar, vai estudar, sei lá, vai pra
festa mais feliz com aquela arte que viu na parede. Então, assim, é, o impacto que as
ações da Cultura Hip Hop tem, ele é imediato, quando você chega no ônibus e você vê,
sabe, um jovem recitando uma poesia isso faz as pessoas pensar, isso impacta, né, isso
faz as pessoas chegarem em casa, no trabalho, na faculdade ou o local que vá, depois
comentar: pô eu vi um menino, vi um menino no ônibus recitando, que legal. Ela vai
procurar saber o que é isso, então assim, impacta diretamente, chama atenção.
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O grande problema é que o mercado da cultura no Brasil sabe disso, sabe do poder que
essa cultura tem, né, de chamar atenção das pessoas de envolver as pessoas, de chamar,
de fazer com que as pessoas reflitam sobre seu papel na sociedade, né, como pode
contribuir ou não, que bloqueiam. Bloqueiam porque é a Cultura Hip Hop? Não. Não é
porque é a Cultura Hip Hop, é porque é uma cultura de periferia. Tudo que é cultura de
periferia, né, de alguma forma eles tentam, como é que fala? É... limitar, limitar pra que
essa cultura não chegue a muitas pessoas, né, porque é a cultura, é arte, ela é uma arma na
mão dessa juventude, né, então se chegar muito longe vai impactar, vai mexer com
interesses de quem domina o poder econômico no país.
PERGUNTA: Tendo em vista os estereótipos sobre Cultura Hip Hop, como você vê a
relação com a cultura erudita?
R: É... que acontece, muitas vezes acham muito bonito, muito interessante, mas não
chamam para ajudar a construir junto, não chama os autores pra ajudar a construir juntos
e quando convidam pra fazer esse diálogo entre a cultura de rua, a cultura de periferia que
é a cultura Hip Hop, com a cultura erudita, chamam pra abrilhantar ou pra enfeitar,
abrilhantar a festa deles ou pra enfeitar o bolo. É... chamam só pra... como é que fala? É...
entende? como espetáculo, é pra abrilhantar mesmo a festa deles, é uma coisa que não
acontece muito, né, acontece pouco mas as poucas vezes que acontece os jovens da
cultura Hip Hop tem tanto talento que consegue tomar de assalto a cena, né, a ação que
ele faz tem mais visibilidade, tem mais reação do público do que a ação da cultura
contemporânea porque é algo inovador, né.
Então, assim, hoje a gente consegue levar o Hip Hop pro teatro, né, pra participar de
festival internacional de dança contemporânea, de dança erudita. É um momento mágico
porque todo mundo para pra ver, né, porque pra eles é novo e assim, eles também, muitas
vezes se apropriam dos elementos da Cultura Hip Hop pra aperfeiçoar suas técnicas, né,
na arte.
PERGUNTA: Então você considera que essa não aceitação deles seria um medo?
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R: Não, não é não aceitação. Eles aceitam, mas eles aceitam de uma forma limitada, né, e
as vezes impõem limite, a Cultura Hip Hop, o movimento, a gente não aceita limite,
entendeu? Porque já existe tantos limites pra gente, né, pra desenvolvimento sócio-
político-cultural e econômico dessa juventude, desses artistas, né. É que as vezes fragiliza
o diálogo, mas eles abrem, mas abrem uma flechinha pequenininha, né, e quando ver que
a gente tá avançando um pouco a mais eles cortam, né, não dá espaço porque sabem que
se a gente entrar de vez a gente toma de assalto. É essa a realidade. É medo na verdade.
PERGUNTA: Eu gostaria que você falasse um pouco mais sobre os obstáculos que a cultura
Hip Hop enfrenta aqui em Salvador.
R: Os obstáculos ainda é entender esses jovens que fala em parte da Cultura Hip Hop
enquanto artistas. Reconhecer que são artistas e que são artistas de periferia. É quebrar
mais ainda o preconceito e estereótipos que ainda existe em relação a esses jovens, não,
as vezes, porque eles fazem parte da Cultura Hip Hop, mas por que são jovens negros de
periferia, né, essa é principal barreira que é a questão do racismo que é predominante. Pô,
é até bonitinho, até que é legal, mas ele é preto não vou botar ele aqui pra não misturar,
então a coisa é muito limitada. Então assim, isso é uma barreira ainda, isso é uma
dificuldade, isso é um obstáculo pra a gente conseguir vencer. Pra as pessoas conhecer a
gente enquanto artista independente da cor da pele. O mercado que não se abre, né, a
música, por exemplo, não entende a música rap como música, né, outros gêneros
musicais, os artistas de outras músicas não entende a música rap como música. A grande
verdade é essa, não entende, é preciso entender. É alguns dos obstáculos que tem que se
vencer.
PERGUNTA: A cultura Hip Hop tem apoio do Estado?
R: O que acontece, como a gente sempre trabalhou com incidência política, né, a gente
diz que sim, o estado é um Estado democrático de direito, né, se existe os editais a cultura
Hip Hop também tem que ser contemplada nesses editais. Hoje a gente tem uma
flexibilidade de alguns projetos de Hip Hop (que) passa em alguns editais. Não existe
nem um tipo de apoio direto do Estado pra Cultura Hip Hop nem aqui nem em lugar
100
nenhum, mas existe uma forma mínima de reconhecimento e esse diálogo tá se
avançando. A gente está com um diálogo com o Estado agora que está se desenhando, é
um edital específico de Hip Hop provavelmente sai até final de agosto... esse ano ainda
esse edital... eu acho que quando se tem um diálogo tem um espaço na rádio Educadora
FM, que é uma rádio estatal, uma rádio pública, mas que é uma rádio ligada ao organismo
do Estado querendo ou não.
É... eu acho que esse é um tipo de apoio, é um tipo de incentivo. Existe uma
flexibilidade, mas existe outros interesses por trás das forças que não tinha interesse que a
gente consiga alcançar muito, mas a gente quer muito, quer mais e a gente tá continuando
o diálogo.
O Governo Federal abriu duas edições, já lançou no prêmio um edital específico de Hip
Hop, que foi o prêmio de cultura Hip Hop 2010, que premiou 135 iniciativas no mundo
inteiro. Em 2010 eu ganhei esse prêmio. Em 2014 relançou o prêmio e 15 iniciativas de
Hip Hop da Bahia foram premiadas, prêmio de 13 mil reais. Então assim, pra gente isso é
importante. O Estado da Bahia foi o quarto Estado que mais teve inscrições no mundo
inteiro, então, assim, isso é um avanço. Quando o Governo Federal abre edital específico
pra apoiar as ações da Cultura Hip Hop, (é) pra apoiar, não pra premiar as iniciativas que
já existem, pra gente é importante. O Governo da Bahia tá tendo diálogo, provavelmente
vai abrir um prêmio até o final do ano.
PERGUNTA: De que forma o Hip Hop contribui para o Letramento dos sujeitos da
periferia?
R: Que acontece, como eu falei, que a gente trabalha com ciências políticas, sempre
participando de espaços de controle social que são os conselhos de direitos. A gente tem
prova hoje suficiente, eu tenho até palestra que fala sobre isso, que a Cultura Hip Hop
contribui significativamente pro processo educativo de adolescentes e jovens da escola
pública, né, por conta da linguagem. É uma linguagem fácil, é uma linguagem que se
identifica, é a linguagem deles, né, contribui no processo educativo.
Hoje (tem) dois programas do Governo Federal que foi criado na época do Governo Lula
e (teve) continuidade no Governo Dilma, agora não sei como é que tá. Tanto no Mais
101
Educação, que acontece nas escolas Municipais, como no Mais Cultura nas escolas, que é
do Ministério dos Esportes e do Ministério das Culturas e o Mais Educação é do
Ministério da Educação. Na grade curricular de ação interdisciplinar, de ação
extracurricular tem a categoria Hip Hop. Entendeu? Então, assim, o MEC, o Ministério
da Educação hoje já reconhece a contribuição do Hip Hop () para além de música que
fala de problema social, denuncia a violência, denuncia a (injustiça) social.
A música rap ela traz muitas músicas educativas, que contribui para o processo de
aprendizado da juventude. Tem música que fala de matemática do começo até o fim, tem
músicas que fala sobre a contribuição do povo negro pra formação desse país, que fala
sobre a história do povo africano de uma forma verídica, daquela forma que não está nos
livros, né, por exemplo, os reis, rainhas, faraós do Egito eram negros, né, não eram com
aquelas características que passavam nos desenhos animados, nas revistas, nessas coisas e
tal. Entendeu? Então é dessa forma que a Cultura Hip Hop contribui.
PERGUNTA: Como você interpreta a lei que criminaliza o Grafite? O que há por trás dessa
lei? E quais os impactos que ela pode trazer para a cultura Hip Hop?
R: Na verdade é assim, essa lei criminaliza a pichação, como vandalismo. Automaticamente o
grafite entra nisso porque se você chega em um muro num terreno baldio limpar e grafitar, né,
vai dizer que é vandalismo porque não teve autorização. É... o que acontece, pichação é
demarcação de território, a pichação nunca deixará de existir, né, já existia a pichação desde
as pirâmides. Desde os tempos das pirâmides, dos reis, rainhas, faraós do Egito... já existia a
pichação. Aquelas grafias que eles riscavam com pedra na parede pra próximas gerações
chegar e ler e entender o que se passou por ali, aquilo se chama demarcação de território, né,
aquilo ali se chama liberdade de expressão. Esse projeto de lei explicitamente ele é uma
violação a liberdade de expressão e ele criminaliza a arte de rua. Por que em época de eleição
a gente sabe que existe várias pichações poluindo a cidade de Salvador, do Estado da Bahia,
pichações com letras e nomes dos candidatos a eleição, né, e ninguém fica inelegível por isso,
ninguém perde a legenda eleitoral por conta disso, né, então isso é vandalismo também. E
depois deixa a cidade toda suja aí, eles não cobrem. Os grafiteiros não, eles deixam a cidade
mais florida, eles deixam a cidade bonita. Todos os grafiteiros, eles já foram pichadores um
dia e os que não fazem pichação, na verdade todos fazem pichação, todo mundo picha de
102
alguma forma, todo mundo demarca seu território. Então, assim, esse projeto é uma violação
dos direitos humanos, uma criminalização da arte de rua e tá indo contra a liberdade de
expressão que é garantida na Constituição, Declaração Universal de Direitos Humanos.
PERGUNTA: Há quanto tempo você é adepto da cultura Hip Hop?
R: Eu me engajei no Movimento Hip Hop enquanto militante, enquanto articulador do
movimento Hip Hop no ano de 2002. Na verdade eu já fazia programa de rádio, eu
comecei fazendo programa de rádio, programa () no Bairro da Paz e já fazia programa de
Rap, mas até então não sabia o que era Movimento Hip Hop, o que era movimento social.
Mas desde 2002 que eu me engajei enquanto militante e articulador do Movimento Hip
Hop na Bahia, né, e aí, em 2005 eu vi a necessidade, né, que existe até hoje não só do
Movimento Hip Hop, mas dos movimentos sociais em geral, todas as organizações dos
movimentos sociais, que é a questão da comunicação () as pessoas não conseguem
divulgar qual é seu grupo político, falar de sua articulação, o que é que você produz de
conhecimento, o que é que você produz de conteúdo, né, o que é sua arte, sua cultura, né,
como você se organiza pra o mundo, pra o grupo fora dali. Por isso eu sempre digo: o
Hip Hop não é uma tribo, o Hip Hop é um mundo. Então, assim, a gente criou a CMA
Hip Hop em 2005, que trabalha com Comunicação, Mobilização social e Produção
cultural pra fazer a sociedade baiana entender que o Hip Hop é um movimento
sociopolítico cultural, existe cultura, existe movimento e são jovens promotores de
cultura, né, são jovens promotores de conhecimento também, que precisam ser
respeitados. Não é aquele marginalzinho que canta aquela música rebelde, como diz.
Entendeu?
PERGUNTA: Para finalizar eu gostaria que você deixasse um pensamento sobre a produção
cultural da periferia.
R: Na verdade, é uma frase que sempre carrego comigo que serve tanto para a área da
comunicação, da educação como da cultura que eu fiz o resumo, na verdade, depois que
eu li o livro Relatório da Cúpula Mundial sobre a sociedade da comunicação que
aconteceu em 2013 em Genebra. Esse livro fala sobre os direitos de todas as gerações, da
criança, da adolescente, da juventude, da maioridade, é sobre o direito à cultura,
(sobretudo à comunicação). E o que a cultura e a comunicação contribui para o processo
103
de desenvolvimento sociocultural e econômico do país. Aí eu digo que: “A diversidade
cultural é um patrimônio comum da humanidade, educação pela comunicação para
democratizar as oportunidades. A estrada é muito longa,cheia de sinais, mas nunca
apague os faróis dos seus ideais”.
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