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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 3088
MEMÓRIAS DE MARIA HELENA DE NORONHA: UMA INCURSÃO PELOS MEANDROS DA EDUCAÇÃO DE SURDOS NO ESTADO DA GUANABARA
Leila de Macedo Varela Blanco1
[...] Voces que quizá no hablarian “solas” sin la presencia de un interlucutor, sin un otro con quien compartir esse “volver a vivir” que el linguage, con su cualidad performativa, trae como correlato obligado del “(volver a) decir” (ARFUCH, 2010, 2, p. 150)2.
Este trabalho toma como objeto a imbricação da professora Maria Helena de Noronha
com a educação da criança surda no antigo estado da Guanabara. Sua dedicação no que diz
respeito à organização desta área de ensino na esfera pública e privada, à formação
continuada de professores e à exploração de metodologias e práticas pedagógicas que
levassem ao sucesso da aprendizagem escolar e da comunicação, está presente na narrativa
de suas memórias e na de profissionais que com ela trabalharam. A trajetória profissional de
Maria Helena de Noronha protagoniza a inserção de surdos nas escolas públicas
guanabarinas, na década de 1960 e início dos anos 1970.
O depoimento de Maria Helena de Noronha faz parte do conjunto de entrevistas
produzidas pelo Instituto Municipal Helena Antipoff3 (IHA), nos anos 2000. Esta coleção,
composta de mais de vinte narrativas de professoras visando narrar a história da Educação
Especial desenvolvida nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, de 1975 a 2004, após
tornar-se um município capital do estado do Rio de Janeiro, inclui depoimentos, como o de
Maria Helena de Noronha, de profissionais que estruturaram o serviço na cidade durante sua
condição de estado da Guanabara, após a transferência do Distrito Federal para a cidade de
Brasília. Nesse artigo, portanto, trabalho com o período compreendido entre os anos de 1961
e 1973 como recorte temporal.
1 Mestre em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de História da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. E-Mail: <leilablanco50@gmail.com>.
2 O texto correspondente na tradução é: Vozes que, talvez não falassem, solitariamente, sem a presença de um interlocutor, sem um outro com quem compartilhar esse “voltar a viver” que a linguagem, com sua qualidade performática, traz como correlato obrigatório o “(voltar a) dizer”.
3 O Instituto Helena Antipoff foi criado em 10 de dezembro de 1959, na Secretaria Geral de Educação do Distrito Federal, com o nome de Instituto de Educação do Excepcional (EEX), visando a assistência social, física, de saúde, econômica e moral, prioritariamente, daqueles que apresentavam deficiência intelectual. Em 1974 recebeu o nome de Instituto Helena Antipoff, após a morte da educadora russa. Em 2008, passou a ser chamado Instituto Municipal Helena Antipoff. Mais informações na publicação SME/Rio, Instituto Helena Antipoff 25 Anos de História – 1974/1999, 1999.
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Estudos sobre a Educação Especial pública da cidade, utilizando a coleção de
depoimentos do IHA como fonte e objeto, foram feitos por mim4, mas torno a olhar a
narrativa de Maria Helena de Noronha para, encontrando outros ângulos de análise,
possibilitar nova compreensão sobre o período e, nesse caso, a especificidade da educação da
criança surda.
A narrativa em tela foi gravada, em 23 de março de 2007, por Maria Helena de
Noronha, como convidada, e a professora Elisa de Fátima Magalhães, responsável, à época,
pelo trabalho de história oral do Instituto Municipal Helena Antipoff (IHA). É, portanto, uma
fonte construída sob a ótica das inquietações dos anos 2000 tendo como horizonte o debate
com os professores cariocas em exercício e as futuras gerações. Partindo do cotidiano das
práticas e das realidades vividas por professores para a institucionalização da Educação
Especial pública da cidade, os depoimentos foram produzidos para o alargamento da
historiografia sobre o assunto.
A surdez na memória e na narrativa
Leio e analiso a entrevista que foi transcrita e não sofreu a necessária revisão (por força
da descontinuidade intempestiva do projeto de história oral em consequência da mudança de
direção do IHA). Retomo a leitura do depoimento de Maria Helena de Noronha, depois de
algum tempo, com a convicção de que é possível um novo diálogo com essa narrativa
4 BLANCO, Leila. Convocando outras vozes: a trajetória de Maria Therezinha Machado na História da Educação Especial do Município do Rio de Janeiro. 2014. 170 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014. BLANCO, Leila. Um protagonismo muito especial: trajetória de uma professora na rede de escolas públicas cariocas dos anos 1960, 1970. In: VI Congresso Internacional de pesquisa (auto)biográfica - entre o público e o privado: modos de viver narrar e guardar, 2014, Rio de Janeiro, 2014. BLANCO, Leila. Um caso muito especial: a educação de crianças com deficiência física na cidade do Rio de Janeiro (1975-1985). In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação: circuitos e fronteiras da História da Educação no Brasil, Cuiabá. 2013. BLANCO, Leila. Começar de Novo: as tensões dos anos 1980 na velha educação pública da cidade maravilhosa. In: V Congresso Brasileiro de Educação Especial e VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da Educação Especial, 2012, São Carlos, SP. 2012. BLANCO, Leila. Se podes ver... a educação de crianças cegas e de baixa visão na perspectiva de Maria Terezinha de Carvalho Machado. XI Congresso Iberoamericano de Historia de la Educacion Latinoamericana. Toluca, México. 2014. BLANCO, Leila. Por trás da Porta: o nascimento da Educação Especial na escola pública carioca. VII Seminário Internacional - As Redes Educativas e as Tecnologias: transformações e subversões na atualidade. Rio de Janeiro. 2013. BLANCO, Leila. Práticas que viajam: substituição do modelo francês pelo modelo americano. IX Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. Lisboa. 2012. BLANCO, Leila. Contando de Si e Encantando os Demais: narrativas de professoras da educação especial. V Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica: lugares, trajetos e desafios. Porto Alegre. 2012. BLANCO, Leila. O Trabalho com Alunos no Estado da Guanabara (1961 A 1974). VIII Congresso Brasileiro de Historia da Educação: matrizes interpretativas e internacionalização. Maringá. 2015. BLANCO, Leila. Maria Therezinha de Carvalho Machado na Educação Pública da Cidade do Rio de Janeiro. XII Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana. Medellín. 2016.
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autobiográfica. No diálogo com Alberti (1994) busco a produção de novos sentidos para a
maior compreensão da história educacional de crianças surdas cariocas porque há muito por
entender sobre esse período em que se instala e se desenvolve a Educação Especial nas
escolas públicas.
Sendo uma entrevista autobiográfica, mediada por uma professora especialista em
educação especial, para a formação de um acervo voltado para essa área do conhecimento,
creio que deve ter sido um momento particularmente difícil para a narradora que
rememoraria o período em que a educação de surdos instituiu a oralização, isto é, ensinar o
surdo a falar e a fazer leitura labial e que vem sendo muito criticado pela comunidade surda e
especialistas da área. Maria Helena de Noronha, desde o início de seu testemunho, pareceu-
me ter a preocupação de justificar a concepção educacional que adotaram. Em 2007, ano em
que se deu o depoimento, o IHA orientava os professores municipais na utilização da Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS) como primeira língua, e pregava, como objetivo e prática
escolar, a construção de respostas educativas às necessidades dos alunos com deficiência
numa escola inclusiva. Ao narrar suas memórias, portanto, Maria Helena de Noronha o faz
justificando a escolha, atualizando suas lembranças pelas marcas do presente, porque,
[...] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.[....] A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 2001, p. 55)
Maria Helena de Noronha, em sua primeira fala, indica o ano de 1952 como o de sua
formatura no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, sua experiência inicial, com
alfabetização, nas escolas públicas da cidade e sua mudança para Belo Horizonte, em 1957,
acompanhando o marido transferido para o Colégio Militar de Belo Horizonte, recém-
fundado. Maria Helena ainda informa que:
[...] para não ficar sem trabalhar eu dava aulas de latim, para os meninos do Colégio Militar, que tinham muita dificuldade [...] eu tinha uns quinze alunos. Não ganhava dinheiro, quase. Porque, meu marido dizia assim: "Coitadinho! O pai dele tem dificuldade." Então, a gente começou [...] a trabalhar pelos mais necessitados, desde aquela época de Belo Horizonte (sic) (NORONHA, 2007) (Grifos nossos).
Com essa afirmação, a narradora, parece iniciar a construção de sua imagem como de
pessoa preocupada e solidária com os mais necessitados e, talvez, desta maneira costurar sua
imbricação com a educação da criança e do jovem surdo. Nesta releitura, observei um
movimento não percebido em leituras anteriores em que outros diálogos foram propostos ao
material. A narradora parece trazer a solidariedade como marca da percepção de si para
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deixar à entrevistadora e à entrevista gravada. “[...] essa percepção da vida e da identidade
[...], como uma unidade apreensível e transmissível, um fio que vai se desenvolvendo numa
direção, a ilusão biográfica” (ARFUCH, 2010b, p. 254-255).
Corroborando essa impressão, destaco sua fala sobre o período em que trabalhou com
turmas de séries mais adiantadas, antes de residir em Belo Horizonte. Nesse episódio, ela
acrescenta que levava seus alunos para sua casa e que, com isso, todos estudaram e se
formaram. “Eu trouxe os alunos para minha casa, os que queriam estudar. E coloquei-os
todos, fizeram faculdade e tudo” (Maria Helena de Noronha, 2007).
Em 1961, a família retorna à cidade do Rio de Janeiro que se organiza como um novo
estado − estado da Guanabara – e Maria Helena de Noronha é convidada a fazer parte do
grupo responsável por colocar em prática a Constituição Estadual, de 27 de março de 1961,
que determinava em seu Título V, Capítulo II, Artigo 60 que, “A educação de excepcionais
será objeto de especial cuidado e amparo do Estado, assegurada ao deficiente a assistência
educacional, domiciliar e hospitalar” (MACHADO; ALMEIDA, 1971, p. 13). Este direito que as
crianças com deficiência passaram a ter legalmente é, ainda, reafirmado pela primeira Lei de
Diretrizes e Bases Nacionais ─ Lei 4024 de dezembro de 1961 ─ que trouxe em seus artigos,
88 e 89, a orientação à escolarização da pessoa com deficiência, ressaltando a necessidade de
abertura dos sistemas educacionais na incorporação dessa modalidade.
Art. 88. A educação de excepcionais deve, no que fôr possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade. Art. 89. Tôda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais de educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá dos poderes públicos tratamento especial mediante bôlsas de estudo, empréstimos e subvenções. (BRASIL, 19615)
A Secretaria de Educação e Cultura, estabelecida sob a nova ótica, incorpora a
necessidade de formação de equipe para as exigências legais de atendimento ao aluno com
deficiência nas escolas públicas. Maria Helena de Noronha narrou a formação de equipe,
então, com poucos critérios tecnicos, mas com a responsabilidade de acertar. Ela nos
aproxima dessa realidade contando que Edy Pinheiro Alves foi a professora encarregada da
formação da equipe e sua primeira coordenadora. Explicitando as áreas de deficiência pelas
quais cada uma das convidadas iria se responsabilizar comentou que:
[...] ela me chamou para a parte de surdos. Chamou a Therezinha Machado para a parte dos deficientes mentais; Flora, para os deficientes visuais. E
5 Informação disponível no site http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4024.htm. Acessado em 6 de abril de 2013.
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chamou a Marly Peixoto, para as classes hospitalares (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).
Não sabendo atender às responsabilidades que lhe foram confiadas, Maria Helena de
Noronha procurou o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), referência nesta área
de ensino, para aprender e iniciar a preparação dos professores da rede pública da cidade.
Contou com os professores Mario Barreto e Felipe Carneiro em sua formação e na de outros
professores. Por meio do ensino a distância, por correspondência, fez o curso oferecido pela
Tracy Clinic.6 “E usei muito do que eles davam para instruir meu pessoal, aqui” (Maria
Helena de Noronha, 2007).
Lendo o depoimento, é possível observar que ela se esforçou para organizar,
cronologicamente, os fatos vividos, fazendo lembrar a reflexão de Bourdieu (2002), que
aponta para esse tipo de situação de entrevista como orientada “pela representação mais ou
menos consciente que o investigado fará da situação de investigação” (p. 189).
Do primeiro curso para professores, realizado na Biblioteca Municipal, no centro da
cidade, Maria Helena de Noronha escolheu lembrar quatro primeiras professoras. Foram elas
as “[...] pessoas, que ficaram ligadas diretamente a mim. [...]. E com elas, nós começamos a
divulgar e a criar as turmas (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).
Surdez: como diagnosticar e atender?
A professora continuou lembrando o início do atendimento especializado e como
trabalhavam com a suspeita de surdez. Iam, ela e as outras quatro, para as escolas e faziam
um teste simples que consistia em falar palavras, em distância apropriada, para que a
criança, de costas para o emissor, ouvisse e repetisse o que estava sendo dito, cada vez mais
baixo. Após essa testagem rudimentar, separavam,
[...] aquelas que nós desconfiávamos, que tivesse alguma perda auditiva; aí, nós mandávamos para as clínicas, para as lojas, essas que vendem aparelhos, porque elas têm interesse em dizer se a criança tinha perda de audição ou não, para tentar nos vender os aparelhos, que nós não comprávamos, porque não tínhamos dinheiro. Mas, eles faziam o exame lá; e então, ficava comprovada, a perda de audição ou não. Foi assim, que nós começamos a fazer o trabalho. Quer dizer: foi um trabalho sério, responsável e que deu muito bom resultado (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).
6 A John Tracy Clinic é uma instituição privada, norte-americana, fundada na década de 1940, pelo ator Spencer Tracy e sua esposa, com o nascimento de um filho surdo. A clínica orienta profissionais e familiares de várias partes do mundo.
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O entrosamento entre a educação e as agências de saúde parecia não fazer parte das
demandas da equipe. A menção a exames feitos em firmas particulares de comercialização de
aparelhos auditivos para a confirmação de surdez, além da fragilidade das testagens feitas
pelas professoras para efetivar o encaminhamento, demonstram que não havia apoio
governamental ao trabalho iniciado. Porém, mesmo assim, o caminho estava sendo trilhado,
as turmas formadas e os atendimentos feitos. Há, entretanto, referências da narradora a
médicos que auxiliam na formação dos professores como “Murilo Drumond, que era casado
com uma professora de surdos: a Nara. E ele deu um curso inteirinho de neuro-fisiologia,
[...]porque nós pedimos. [...] eu conseguia que o Murilo desse toda parte médica de
identificação da deficiência[...]” (Maria Helena de Noronha, 2007).
Para algumas áreas de deficiência conta, eram aplicados testes psicológicos, mas no
caso da deficiência auditiva os testes não serviam. Com isso, a cientificidade pretendida pelo
grupo precisava de outros tipos de legitimação como, por exemplo, a participação de médicos
nas atividades de formação. Para Marila Brandão Wernekc, uma das quatro primeiras a fazer
parte da equipe de Maria Helena Noronha, a identificação de alunos surdos nas escolas
públicas “era mais aquela triagem grosseira, [...] repetir as palavras[...]” (Marila Brandão
Werneck, 2006). Depois de identificados, os alunos eram encaminhados para audiometria. A
triagem a que Marila Brandão Werneck se referia foi montada para a identificação de
problemas de visão e audição. As equipes iam juntas às escolas e “a gente chegava tinha mais
de 200 crianças esperando, era uma coisa alucinante[...]” (Marila Brandão Werneck, 2006).
Alguns casos, segundo esta narradora, apresentavam problemas de saúde e, “às vezes,
nem podia ficar perto da gente, o ouvido purgando [...] tinha que ser encaminhado. [...] para
posto médico, para vários lugares particulares” (sic) (Marila Brandão Werneck, 2006).
Afirma, com isso, a parceria com o comércio especializado ou o trabalho voluntário, mas
deixa entrever certa proximidade com as agências públicas de saúde por meio do posto
médico.
Em sua narrativa, Marila Brandão Werneck comenta que percorriam todas as escolas
da cidade em carros próprios, levantando a suspeita de surdez e encaminhando os alunos
para que fosse feito o diagnóstico. Crianças com baixa audição e baixo desempenho tinham,
dessa forma, a chance de sofrer um trabalho especializado. Com essa estratégia, houve
divulgação e as crianças surdas sem escolas começaram a procurar o atendimento
especializado feito, nas escolas comuns, em núcleos que ela define como “classes especiais
para surdos”. Assim, Marila Brandão Werneck apresenta, em nomenclatura atual para o
período de sua entrevista, os “Núcleos de atendimento” dos anos 1960. No depoimento de
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Maria Helena de Noronha essa estratégia também aparece, mas é contada como censo. Após
uma exclamação, ela diz: “[...] esqueci de dizer uma coisa: para criar essas turmas, nós
fizemos um censo nas escolas” (Maria Helena de Noronha, 2007).
Maria Helena de Noronha traz, em seu depoimento, um aspecto interessante sobre a
formação de turmas. Iniciando o atendimento na metade da década de 1960, ela comenta ter
chegado a mais de 60 turmas. Em cada uma das turmas poderiam estudar de 6 a 8 alunos
totalizando, então, um mínimo de 360 alunos surdos. É um período curto para uma
ampliação tão expressiva, denotando a demanda reprimida. Para dar conta de tantas turmas
foi necessário um número significativo de professores e o aproveitamento dos mais
experientes na formação e no acompanhamento dos mais novos no trabalho.
Formação de especialistas: o trabalho artesanal
Para compreender o que trazem as memórias sobre a formação dos professores
especialistas recorro a Goodson (2007), Tardif e Lessar (2012). Foi possível observar, em
seção anterior desse artigo, que Maria Helena de Noronha e a equipe que foi formando,
contaram com a solidariedade de médicos e especialistas do INES para iniciar o trabalho.
Porém, como lembram e narram o que fizeram para crescer em qualidade e numericamente?
O conhecimento de anatomia, do funcionamento do sistema nervoso, das doenças e
outros agentes causadores da surdez, dentre os muitos aspectos das ciências médicas,
possibilitava algum conhecimento sobre esses novos alunos sem, entretanto, formá-las para a
prática educacional especializada. Portanto, era necessário um conhecimento pedagógico
próprio, criado por elas com base nos novos conhecimentos médicos, para educar crianças
surdas em escolas públicas, diferentes das escolas especializadas, modalidade quase
exclusiva, até então. Como trabalhar com os surdos nas escolas concebidas para ouvintes?
O centro de estudos passou a ser uma atividade valorizada para a composição de toda a
Educação Especial carioca. Durante sua realização eram discutidas as novidades e
confrontadas as práticas. As diferentes áreas de atendimento auxiliavam umas às outras com
o aprofundamento de alguns conhecimentos. Além do Centro de Estudos geral, cada uma das
áreas de atendimento fazia, com os professores de sua responsabilidade, um centro de
estudos mensal e visitas periódicas às turmas para observar se o professor estava aplicando,
em suas práticas cotidianas, o que havia sido estudado nos cursos e nos centros de estudo.
Nas narrativas de Maria Helena de Noronha, de Marila Brandão Werneck e Olímpia
Saldanha Marinho, aparece, com destaque, a construção de recursos para a formação do
professor e para o trabalho direto com os alunos. Mas, parece, deixar indícios de que a partir
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da solidariedade os materiais puderam ser produzidos. Assim, trabalhavam além dos
horários devidos, aos sábados e domingos, em suas próprias casas e com suas famílias. O
trabalho, mesmo sendo profissional, parecia apresentar características missionárias. Olímpia
comenta que conseguiu, mesmo que com a censura do marido, conversar com o diretor do
banco em que ele trabalhava e pedir uma sala emprestada para uma exposição desses
materiais muito bem-sucedida.
“Fizemos 15 dias de exposição, de material didático. Foi (o) secretário de educação [...] Foi para a imprensa, porque nós queríamos divulgar. Era tudo feito à mão. Nós não tínhamos poder aquisitivo, para ter aquelas coisas [...] importadas, de madeira. Não tínhamos, então nós, fabricávamos. Nós pegávamos papel cartão e pintávamos papel cartão com tinta esmalte, para ele ficar mais resistente (sic) (Olímpia Saldanha Marinho de Araújo, 2007).
As necessidades dos alunos surdos, dos seus professores, das escolas e as
particularidades da administração do sistema exigiam uma qualidade diferente de
envolvimento com o trabalho. Traduzir o que aprendiam sobre as questões de saúde, e de
desenvolvimento infantil, em novas formas de ensinar e aprender os conteúdos escolares
previstos para os demais já seria, em si, uma dificuldade para os especialistas. Mas, ainda
havia os aspectos das habilidades a serem desenvolvidas com cada uma das crianças surdas.
Como fazer? Como dar conta da tarefa a não ser pela experiência inicial discutida,
realimentada por cada um dos casos com que se enfrentavam, com cada nova criança para a
qual não tinham nenhuma informação? Tardif e Lessard (2012), apontam o caminho ao
afirmar que “somente o contexto do trabalho cotidiano permite compreender as
características cognitivas particulares da docência [...]”(p 32-33). Acrescento, ainda, que essa
é uma docência incomum. Suas protagonistas traziam para a escola os alunos que haviam
sido rejeitados por características individuais que confirmavam a inelegibilidade prevista nos
regulamentos. Esse trabalho tratava de um tipo particular de docência onde a permeabilidade
do cotidiano ainda se fazia mais necessária à análise.
A constituição de conhecimentos que legitimavam o especialista ainda estava em
disputas e, dentre elas, a que contrapunha o oralismo à Língua de Sinais, ainda não
reconhecida oficialmente7. Maria Helena de Noronha optou pelo oralismo porque:
O que me preocupava muito nos surdos era a falta de comunicação [...]. A falta de integração deles, até com a família [...] A criança ficava meio jogada. [...]se nós fôssemos passar para ensinar só essa parte de gestos, de linguagem gestual, nós não conseguiríamos integrar aquelas crianças,
7 A Língua Brasileira de Sinais – Libras − só foi reconhecida em 2002
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totalmente nas turmas... nas escolas e na família. (Maria Helena de Noronha, 2007).
Foi nos estudos das realidades de outros países que Maria Helena de Noronha se
respaldou para sua escolha “E a maior alegria dos pais era quando o surdo, chegava e falava
em casa” (2007). Nega a metodologia alemã por ser radical na oralização mesmo que
considerada muito eficiente. Não chegariam ao ponto de amarrar as crianças, como diz ser
feito na Alemanha, porque as culturas latinas completam a comunicação com gestos, "Eu vou
por ali! Eu vou pela direita. Eu vou pela esquerda! Você, ajuda com as mãos”, segundo ela.
Sua justificativa para a escolha também acontece na atualização de suas memórias
quando afirma que “[...] a fala inclui o surdo. Há inclusão, há integração; como eu usava o
termo: integração do surdo na sociedade; no meio dele, na família dele; porque ele está
falando” (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007). A palavras “inclusão” e “inclui”, utilizadas
nesse recorte, parecem servir para dar maior força a argumentação.
Portanto, a produção de material técnico para embasamento dos professores seguia a
diretriz da oralização. Apostilas e materiais pedagógicos foram construídos com essa
finalidade. Entretanto, Maria Helena de Noronha diz ter-se dado conta que os vários livros
estrangeiros, principalmente em castelhano, não auxiliavam adequadamente à formação dos
professores pelas diferenças fonéticas. Um livro brasileiro, segundo ela o primeiro, foi escrito
a quatro mãos com Maria Helena Rodrigues e muitas ajudas.
O Deficiente da Audição e a Educação Especial, da José Olympio Editora, foi lançado
em 1973, quando Maria Helena de Noronha e Maria Helena Rodrigues se despediam da
Educação Especial carioca. Entretanto, a orientação sobre a emissão e classificação dos
fonemas foi sendo experimentada e trabalhada com os professores por meio das apostilas.
Para essa produção, Maria Helena conta que:
[...] nós fizemos um estudo de como, cada fonema era produzido na pessoa. E aí, partindo daí, [...] fizemos esse livro, que todos os professores tinham. E eles faziam com as crianças, essas aulas todinhas aqui, mostrando a eles, que cada fonema: "á-á-á....", o som, aonde saía. A onde vibrava: "í-í-í..." Ele, sentia na cabeça. Então, a gente foi fazendo, outras coisas, que a pessoa... o lábios. Como é que fica o lábio? E fizemos esse quadrinho aqui, olha aqui: esse se quiser, pode levar, mas está tão velhinho. Está vendo? Com todos os fonemas (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).
Ao comentar sobre o livro do qual foi coautora, Maria Helena de Noronha relata um
episódio junto à editora que a fez interrogar sobre um possível plágio. Afirma que ao
retornar, o material que havia sido encaminhado para um perito pela própria editora, trazia
uma folha esquecida, que comprovava terem feito cópia dos desenhos que representavam a
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colocação adequada do fonema. O fato era grave e as autoras cobraram respostas do editor.
Entretanto, o que faz com que o episódio apareça neste arquivo é a permanência, nos
guardados de Maria Helena de Noronha, do papelzinho dobrado. Sua preservação parece
legitimar o ineditismo e a beleza do trabalho que fizeram. Em diálogo com Mignot (2006)
percebo uma possibilidade de resposta quando afirma que
Guardar é diferente de esconder. Guardar consiste em proteger um bem da corrosão temporal para melhor partilhar; é preservar e tornar vivo o que, pela passagem do tempo, deveria ser consumido, esquecido, destruído, virado lixo. [...] (MIGNOT, 2006, p.41).
A narradora, não só arquivou, mas, parece, fez questão de mostrar à entrevistadora o
que considera a prova, não do delito, mas da qualidade de seu trabalho. A multiplicação do
“arquivamento do eu” por meio da gravação da narrativa faz pensar sobre a importância dada
por ela para a autoria do livro e de sua trajetória profissional.
Mas, a vivência curricular do aluno surdo imerso na aprendizagem da palavra oral e
escrita, era ampliada pelos conteúdos desenvolvidos com os demais. Marila Brandão
Werneck também narra a imperiosa necessidade de “fazer tudo”. Trabalhavam nas turmas,
davam aulas nos cursos para os professores iniciantes, preparavam o material, visitavam
escolas para a “triagem grosseira” e realização dos encaminhamentos. E, com a experiência
dos anos posteriores ela acrescenta: “porque não tinha [...] nenhuma máquina; naquela época
era máquina de escrever, catando milho, para fazer todas as publicações” (sic) (2006). Seu
destaque a essa experiência vai sendo aprofundado, talvez porque as lembranças das
dificuldades minimizadas pelas tecnologias atuais a fizessem recordar de que, mesmo que
médicos especialistas trouxessem um conhecimento que consideravam indispensável e
mesmo diferenciador do professor comum, a pedagogia estava a cargo delas. Eram elas as
responsáveis por formar professores especialistas por meio das reflexões sobre suas próprias
experiências e com o estudo sobre o que era feito nas escolas segregadas e em outras partes
do mundo.
Marila Brandão Werneck enfatiza a coesão do grupo e a importância da liderança
quando afirma que as líderes exigiam muito delas, mas estudavam junto, pesquisavam para
elas (Marila Brandão Werneck, 2006). A ideia da coesão aparece no comentário sobre a
participação de todos e é traduzido nos recortes dos fatos com a utilização dos lemas “um por
todos e todos por um” e "juntos venceremos". A narradora concluiu dizendo que é verdade
que o grupo tem muito mais força do que uma pessoa sozinha. O vínculo à equipe e ao
trabalho estimulava àqueles que, novos, aventuravam-se na tarefa da qual, mesmo que
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formados, ainda precisam aprender as manhas, o olhar acurado e a satisfação do
envolvimento com a coisa pública. Goodson (2007) chama atenção para o descaso das novas
políticas educacionais com os velhos profissionais, aqueles que formavam os novos por meio
das relações cotidianas. Sobre essa característica, acrescenta que a relação estabelecida com o
profissional experiente forma mais do que instrui nas técnicas e “significa uma visão de
ensino onde o profissionalismo é expresso e experimentado como mais do que meramente
um emprego, mas como uma vocação afetiva” (GOODSON, 2007, p 28).
Esse envolvimento afetivo, observado por Goodson (2007), aparece nas duplas
jornadas de trabalho, na confecção de materiais pedagógicos, no envolvimento de familiares
nas tarefas, dentre outras formas solidárias de ação e valorizadas pela liderança de Maria
Helena de Noronha. Esse saber que foram construindo com cuidado e respeitosamente de
maneira coletiva era a fórmula de constituir mentores, isso é, aquelas que não só
informavam, mas principalmente formavam profissionais competentes e envolvidos com a
transformação.
Goodson (2007) e Tardiff e Lessard (2012) auxiliam na compreensão desse cenário
formador. Goodson (2007), em suas pesquisas com histórias de vida, diz que tem se
“familiarizado com a ecologia dos serviços públicos, com a maneira através da qual as
pessoas conduzem suas vidas profissionais e criam, por esses meios, significados e missões
profissionais e pessoais” (GOODSON, 2007, p. 14). Essa imbricação do aspecto pessoal e
profissional resulta na constituição de profissionais que denomina de “corações e mentes da
instituição”. Entendo que esses “corações e mentes” envolvem os que chegam e, na bagagem
da história da instituição que trazem, e dividem com os iniciantes, multiplicam os “corações e
mentes” que ajudam a constituir as novas gerações. Ou seria o contrário? São envolvidos
pelos iniciantes que precisam dos órgãos vitais do corpo profissional? A instituição se torna
mais sólida ao amalgamar o velho e o novo. Tardif e Lessard (2012) introduzem uma questão
que me permite refletir sobre esse passado quando apresentam um cenário de transformação
na longa pergunta:
Pode-se imaginar num futuro próximo uma escola em que os professores não consagrassem todo o seu tempo aos alunos mas tivessem um tempo para si mesmos e para projetos coletivos, pesquisas, debates e práticas inovadoras? (TARDIF; LESSARD, 2012, p. 279)
O envolvimento afetivo, possibilitado por um grupo de pertencimento, ultrapassava as
fronteiras do pessoal e incluía até mesmo as famílias e suas residências, como afirmaram.
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Depois, pelo que apresentam nas narrativas, foram sendo incorporados outros espaços de
trabalho para o grupo que precisou enfrentar novos desafios.
A vertente filantrópica do atendimento ao surdo
O grupo precisava lidar com a questão do limite de 12 anos para a obrigatoriedade
escolar. Aos 13 anos, como afirma Maria Helena de Noronha, os alunos eram desligados da
escola. A preocupação com a parcela de pessoas consideradas mais necessitadas volta a
aparecer na continuidade da narrativa.
Só, que por exemplo, quando chegava aos treze anos, a criança tinha que sair da escola [...]. E eles saíam, sem estar preparados para a vida. Sem ainda, falar direito, porque não tinha dado tempo, eles entraram tarde para a escola. Então, nós começamos a ficar muito angustiadas com isso. Eu e o meu grupo. E já estava com as professoras trabalhando. Elas também queriam ajudar. Tem Regina... aí, têm várias, que se propuseram a dar aulas para a gente, sem ganhar nada (Maria Helena de Noronha, 2007)
O viés da solidariedade é retomado em seu discurso junto com o olhar profissional.
Nessa seção, outras pessoas, as professoras de surdos, parecem ser atraídas ao trabalho
voluntário. Os alunos que chegavam tarde à escola, ainda não haviam desenvolvido as
habilidades consideradas, por elas, como indispensáveis à vida. Entretanto, a legislação não
assegurava o direito de permanência dos alunos com mais de 12 anos, independente da
certificação ou nível de escolaridade. A narradora não comenta sobre estratégias ou diálogos
com autoridades para desfazer esse ordenamento. A saída é a solidariedade que, nesse
momento, irá contar com outras pessoas que não vão “ganhar nada”. Entretanto, essa
estratégia não é exclusiva desse grupo. A solução prevista e organizada é legitimada pelas
inúmeras instituições espalhadas pelo país e pelo mundo no que diz respeito às pessoas com
deficiência. A luta pela educação não se caracteriza pela igualdade de direitos, mas pela
necessidade de minimizar as sequelas adquiridas com a deficiência, individualmente, e pela
necessidade de tornar cada uma dessas pessoas em cidadão produtivo e integrado à
sociedade pelos esforços empreendidos como necessários para a sua aceitação ou seu
assujeitamento.
Maria Helena de Noronha funda, então, a Associação de Pais e Amigos de Surdos
(APAS), com o pagamento de mensalidade dos associados para poder pagar o aluguel de uma
sala, no bairro da Tijuca, na Rua General Roca, 826. Ela “amparava” essas crianças que eram
desligadas da escola pela idade. Crianças, adolescentes e jovens que não tiveram
oportunidade de escolarização no tempo considerado adequado e que eram expulsos antes da
escolarização pretendida e. estão, possível para cada um deles. É importante, porém,
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observar o termo “ampara” proferido por ela. O verbo amparar é usado com o sentido de
proteger ou defender da sociedade para a qual não estavam, ainda preparados.
Para essa empreitada, diz ter contado com a ajuda de Erica Maria Maestri, que
trabalhava com crianças surdas no Paraná e ter seguido a orientação e o modelo trazido por
ela que visitou o Rio de Janeiro várias vezes.
A vinculação do aluguel da sala ao pagamento de mensalidades pelos sócios, entretanto, não surtiu o efeito esperado por ela porque, “depois, os cinco reais, não (não chegavam) para o aluguel. E eu fiquei muito desesperada. E fiquei até, doente [...]. Porque, eu não sabia o que, que eu ia fazer com aquelas crianças (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007).
A adequação do dinheiro do associado à moeda atual parece traduzir a realidade que
Maria Helena quer imprimir em sua narrativa. Não há como saber, para esse artigo, a quantia
encaminhada por cada um dos sócios, o número de sócios, de alunos e de professores
participantes dessa associação. O desespero a que se refere é focalizado na necessidade do
atendimento das crianças. Maria Helena de Noronha não faz comentários sobre contrair uma
dívida e sentir o peso da consequência do não pagamento. Seu desespero e doença se
restringem ao não saber como fazer para dar continuidade ao atendimento.
Com a colaboração de outra família, a associação foi transferida para a Rua Ipiranga,
em Laranjeiras, e lá permaneceu por 10 anos, segundo sua informação. Essa fase de sua
narrativa é envolvida de certa melancolia. Deixando-se narrar, até então, pelos fatos e versões
de que se orgulhava, Maria Helena de Noronha precisou falar do encerramento do trabalho
na associação pela imposição de um novo presidente que, inclusive, “a aparelhagem, que
estava lá, ficou jogada. Ele não deu para ninguém” (2007).
A tristeza de informação sobre o fim do trabalho na associação é seguida da explicação
sobre sua saída da Educação Especial municipal. A narrativa, nesse momento, toma outro
rumo e outras questões aparecem. A insatisfação ausente nos demais depoimentos, torna-se
um lamento sobre o que não mais conseguiu fazer. Mesmo lendo, sem ter o áudio ou vídeo
que permitissem observar seu comportamento e suas expressões, é possível perceber a
tristeza e a desesperança que ela guarda na memória.
A narradora, dando continuidade a seu discurso, agora triste, comenta:
[...] eu também, quando chegou em 73, eu fui ficando assim, com várias decepções: de pedir as coisas; de querer fazer as coisas; de querer melhorar o ensino; de dar uma atenção maior aos professores, que atendiam essas crianças; e não se conseguia nada. [...] a gente ia para a secretaria; subia, ia para o secretário, andava, andava... A minha vida era quase que uma peregrinação, pelos órgãos. Aí você era reconhecida: a assembleia te dava "a
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mulher do ano"; "personalidade do ano". Essas coisas, eu tenho. Mas e as coisas? (sic) (Maria Helena de Noronha, 2007)
A pergunta que deixa no ar diz muito sobre os recursos de que precisava, sobre as
mudanças políticas que precisavam ser feitas, sobre os apoios governamentais inexistentes. A
continuidade de sua narrativa fala da luta “[...] junto ao deputado Paulo Duque8 [...] para
colocar aparelhagem nas classes de surdos das escolas [...]”. O trabalho com o oralismo, como
concebido por ela, prevê aparelhos coletivos de amplificação sonora para auxiliar na
estimulação auditiva. O fechamento da associação e a descontinuidade do apoio
governamental para o trabalho nas escolas públicas motivam Maria Helena de Noronha a
mudar. Em 1973, ela fez concurso para professora do ensino normal e assume em 1974.
Mas, como uma fênix, ao final da entrevista, Maria Helena de Noronha volta a falar do
livro, da nova edição que pretende fazer e do convite para retornar à associação de surdos
comentando que: “Outro dia, a Léa me ligou. Foi a que me chamou, que me levou para lá:
‘Você, precisa voltar para lá!’ E eu digo: ‘Um dia, eu penso em voltar’” (Maria Helena de
Noronha, 2007).
Retomando a palavra
Tornar a ler a narrativa de Maria Helena de Noronha me possibilitou ver com outras
lentes a sua trajetória de vida e trabalho. Sendo mãe de 5 filhos e interrompido sua carreira
para acompanhar o trabalho do marido, esta mulher conta sobre lutas e envolvimentos
significativos com a educação e, particularmente, com a educação de surdos.
Retornando aos lugares de memória, Maria Helena de Noronha parece refazer o
caminho trilhado enfatizando a solidariedade como o fio condutor da coerência de sua
trajetória de vida. Suas memórias trazem detalhes do período que implantou e desenvolveu a
educação de surdos nas escolas públicas. São memórias consequentes, como observa Kotre
(1997), lembranças nítidas e duradouras de experiências passadas no período em que
reiniciou sua carreira de professora da rede pública de sua cidade. Experiências que
possibilitaram a continuidade de sua carreira. Maria Helena de Noronha narra memórias de
um passado em que foi valorizada, recebeu prêmios e condecorações, em que teve seguidores
e escreveu um livro por uma editora consagrada que distribuía seus volumes por todo o país.
8 Foi deputado estadual durante oito mandatos, dois pelo Estado da Guanabara e seis pelo novo estado do Rio, surgido com a fusão, em 1975, sendo um dos representantes do chaguismo, corrente política dentro do antigo MDB comandada pelo ex-governador Chagas Freitas. Chegou a ser candidato a vice-governador na chapa de Amaral Netto nas eleições de 1965, obtendo o 3.º lugar. Na Constituinte Estadual de 1989 atuou como relator.
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Em sua narrativa autobiográfica, Maria Helena de Noronha parece reavaliar o que
realizou durante sua experiência com a educação de surdos e, talvez amalgamando suas
opções com os valores católicos com que foi educada, tinge sua narrativa com as cores da
solidariedade presente nas ações filantrópicas e na fé que professa. Maria Helena narra a vida
que se mescla com a educação especial carioca nos anos de 1960 e início dos anos 1070, em
sua ascensão e declínio institucional.
A professora Maria Helena de Noronha, com seu depoimento, permite reafirmar que
retornar aos lugares de memória... “têm como razão de ser fundamental, parar o tempo,
bloquear o trabalho do esquecimento, imortalizar a morte, materializar o imaterial, fechar o
máximo de sentido no mínimo de signos” (NORA, 1984, p. 35 apud MIGNOT, 2002, p. 51).
Referências
ALBERTI, Verena. "Idéias" e "fatos" na entrevista de Afonso Arinos de Mello Franco. In: FERREIRA, M. M. (Coord) ENTRE-VISTAS: abordagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1998. ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: ADUERJ, 2010. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FEREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 183-191. BRASIL. Lei 4024, 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1961. GOODSON, Ivor. Pessoas Solitárias: A luta pelo significado privado e o propósito público. In MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. Políticas do Conhecimento: vida e trabalho docente entre saberes e instituições. Goiânia: Cegraf, 2007. KOTRE, John. Luvas Brancas: como criamos a nós mesmos através da memória. São Paulo: Mandarim, 1997. MACHADO, Maria Therezinha de Carvalho; ALMEIDA, Marlene Concetta de Oliveira. Ensinando Crianças Excepcionais. Rio de Janeiro, J. Olympio, Coleção Didática Dinâmica, 3ª Edição, 1973. MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Baú de Memórias, Bastidores de Histórias: O legado pioneiro de Armanda Alvaro Alberto. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; CUNHA, Maria Teresa Santos. Razões para guardar: a escrita ordinária em arquivos de professores/as. Revista Educação em Questão, Natal, v. 25, n. 11, p. 40-61, jan./abr. 2006.
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NORONHA, Maria Helena de; RODRIGUES, Maria Helena. O Deficiente da Audição e a Educação Especial. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1973. TARDIF, Maurice ; LESSARD, Claude. O Trabalho Docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2012.
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