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7/28/2019 Mitologias jurdicas da modernidade - Paolo Grossi
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ORIGINAL.
-M.2:>S. 1 < 2 0
Paolo Grossi
DOAOIJ U.()IENC!All J URIDICA8ReglevoNo.473.6960&1&:08/04/2009
Au1llr.GR0981. PAOLO
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Mitologias jurdicas
da modernidade
2" EdioRevisada e Ampliada
- Traduo de Amo Dal Ri Jnior-
?'ll ~~)~r o'. R -n.-.J(~~1J
,~, tJ.
FUNDAAO
BOITEUX
Florianpolis
2007
7/28/2019 Mitologias jurdicas da modernidade - Paolo Grossi
2/21
Obraoriginalpublicada na Itlia (2001)com o lt~lloMITO LOGIEGlURIDlCHEDELLAMODERNITA
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84i\'llTOLOGIJ\SJURDICAS DA MODERNIDADE
4 da pela reflexo cientfica. E se assiste a "atores modifica-
dos protagonistas do processo jurdico", a "diferentes mo-
dalidades de produo e de funcionamento das regras jur-
dicas"35, a uma crescente privatizao da produo jurdi-
ca: vitais centros monopoiticos (ou seja, produtores de re-
gras jurdicas pontualmente observadas pelos indivduos)
j esto inseridos em ncleos sociais, econmicos e culhl-
rais muito distantes dos Estados36
.
Essa uma panormica que me sinto grato de mostrar
aqui, na Civitas Amalfitana, na sede do seu municpio, nessa
extraordinria forja jurdica medieval, onde mercadores e na-
vegadores destemidos participaram da criao, mesmo sen-
do pobres de leis e de cincias, mas fortes na prpria capaci-
dade de escuta das foras econmicas e confiando quase uni-
camente na sensibilidade e na intuio do direito comercial e
martimo da koin mediterrnea da idade mdia3?
35 Como bem se expressa uma inteligente sociloga do direito em uma obra
a ser lida e meditada pelos juristas (efr. FERRARESE, M.R. Le istituzioni
d e lla g lo b al izza zio ne - d iri t to e d iri t ti n e lla soeiet transnazionale. Bologna: Il
Mulino, 2000, p. 7).36 Tratam-se de instituies internacionais de organizao cultural, de grandes
escritrios profissionais, de grupos de empresrios e assim por diante.
37 Aos mercadores e navegadores amaifitanos, que tinham slidos pontos de apoio
no mediterrneo oriental, foi concedido importar uma srie de costumes de
origens gregas. Ver, BOGNETTI, G.r. La funzione di Amaifi nella formazione di
un diritto comune dei Medioevo, inMo stra bibl iogr afia e C onv egn o inte rnaz iona le di
s tud i s lor iei d e i d iri t to ma r it t imo me d io e va le - Amaifi, julho-outubro de 1934,Atti,
Napoli, Associazione Italiana di diritto marittimo, 1934, p. 55-51.
IH
CDIGOS:ALGUMAS CONCLUSES ENTRE
UM MILNIO E OUTRO *
Trata-se do texto da conferncia final no Congresso "C od ici - Un a r i f le ssio ne d i
fine mil /en nio" (Cdigos - Uma reflexo de final de milnio) acontecido em
Florena nos dias 26 a 28 de outubro de 2000. Isto explica as referncias a
conferencistas e conferncias do mesmo congresso. Foram omitidas as palavras
iniciais de saudao, que podem ser lidas no texto publicado contendo os
"Anais" do congresso. Nesta redao - que se dirige a um pblico possivelmen-
te mais vasto, tambm de estudantes - foram inseridas notas integradoras
contendo explicaes, com a finalidade de tornar mais claras a esse pblico de
leitores, afirmaes e referncias concisas perfeitamentes compreensveis (mes-
mo na sua conciso) aos ouvintes do Congresso fiorenlino.
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1. o Cdigo e o seu significado na modernidade jurdica. - 2. O Cdigo eos elementos que historicamente o caracterizam. - 3. O Cdigo hoje: algu-
mas consideraes do historiador do direito.
1. O Cdigo e o seu significado na modernidade jurdica
Como historiador do direito sinto-me no dever de comear
essas anotaes dividindo com vocs uma preocupao. Uma
noo nunca foi to marcada por uma intrnseca polissemia
como acontece no caso da noo de Cdigo: o vocbulo unit-
rio permite aproximar o Cdigo Hermogeniano1, o Cdigo
Justinian02, o Cdigo Napolenico e todos os demais Cdi-
gos, cada vez mais freqentes na prxis contempornea, que
ouvimos mencionar nas vrias conferncias, em particular nas
proferidas pelos estudiosos do direito positivo (Cdigo dos jor-
nalistas, dos consumidores, dos seguros, dos princpios, das
regras, Cdigo comum europeu dos contratos, e, assim por
diante); o vocbulo unitrio, tendo como denominador comum
a tendncia a estabilizar o instvel, o que caracteriza toda
1 Por Cdigo Hermogeniano (Codex Hermogenianus) os historiadores do direito se
referem compilao sistemtica de atos imperiais redigidas no sculo IV d.C
pelo jurista Hermogeniano.
2 Ou seja, o recolhimento sistemtico, em doze livros, das constituies imperiais
mais relevantes, promovida e realizada na primeira metade do sculo VI d. C
pelo imperador Justiniano 1.
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I88
MITOLOCIAS J URDICAS DA :-'IODER!'-:rDADECDIGOS
,.
89
codifica03, atravs do engano que tpico de certas impass-
veis persistncias lexicais, mistura e associa realidades pro-
nmdamente diferentes por origem e por nmo, gerando con-
nlses e equvocos culturalmente perniciosos. O historiadordo direito, cumprindo o seu mtier nmdamental, que o de
comparar, relativizar, diferenciar, sente a armadilha que se
constitui no lxico, prefere abandonar o simulacro lUutrio e
cair na realidade histrica que , ao contrrio, substancial-
mente marcada por insanveis descontinuidades.
Deve ser salientada com vigor ao menos uma dupla
descontinuidade: aquela entre o "Cdigo do consumidor" de
que hoje se fala (para dar um exemplo) e o que para ns,
historiadores do direito, o Cdigo; entre esse ltimo e os
muitos Cdigos da qual estava repleta - por exemplo - a
Antigidade clssica. Os tnues elementos associados - que
existem - no devem enfraquecer a absoluta tipicidade hist-
rica daquela escolha fundamental da civilizao jurdica
moderna que pde se definir completamente entre os sculos
XVIIIe XIXna Europa continental, escolhida no por esta ou
aquela poltica contingente, mas to radical a ponto de se
colocar como marco fronteirio na histria jurdica ociden-tal, assinalando um "antes" e um "depois" caracterizados
por uma ntima descontinuidade, escolha que permite aos
3 No mbito dos trabalhos do Congresso foram dignas de ateno as palavrasiniciais de saudao do Pro-reitor, Professor Giancarlo Pepeu, docente na Facul-dade de Medicina, o qual salientou o uso que feito da palavra "Cdigo" nacincia mdica (como, por exemplo, quando se fala de "Cdigo gentico") paraindicar um conjunto de elementos marcados por uma ntima fixidade.
historiadores falar corretamente de "Cdigo smbolo", "C-
digo mito", de "forma Cdigo", de "idia de Cdigo"4.
Em outras palavras, para o historiador do direito, podem
existir e existem muitos "Cdigos", para os quais pode ser
convencional e incuo o emprego de um vocbulo unitrio,
mas, ~~.:nte um o Cdi~o, que irrompe em um determina-
do momento histrico, fruto de uma autntica revoluo cul-
tural que bate em cheio e devasta os fundamentos consolida-
dos.do, luU:~er~()jurdico; justo por essa sua carga incisiva,
justo por ser tambm e sobrehldo uma idia, o Cdigo pode
sofrer uma transposio, e, a partir do plano terrestre das
fontes comuns de direito, vir a encarnar um mito e um smbo-
lo . Porque, de fato, o Cdigo quer ser um ato de ruphua como passado: no se trata de uma fonte nova ou de um novo
modo de conceber e confeccionar com profundidade e am-
plitude a velha ordonnance 5 real; trata-se, ao contrrio, de um
modo novo de conceber a produo do direito, e, desse modo,
o inteiro problema das fontes, assim como o problema pri-
mrio da conexo entre ordem jurdica e poder poltico.
Fez bem o amigo Halprin ao nos oferecer, entre vrias
imagens significativas, a de Napoleo I quando esse rejeitava
4 Amava falar de uma "idia de 'Cdigo" um grande estudioso italiano dedireito comercial, Tullio Ascarelli. Sobre ele, vede, sobretudo, o iluminadssimoensaio: L' idea di codice nel diri tto priva to e la junzione de l i ' in terpretazione (1945).atualmente em Saggi giuridici, Milano, Giuffre, 1949.
5 Com o termo ordonnance se entendia, na histria medieval e ps-medieval doReino da Frana, a norma que expressava a vontade do prncipe-soberano.
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90MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERt'\jIDADE CDIGOS 91
o velho droit coutumiet': nessa, foi testemunhada a presun-
o do primeir07 autntico codificador da histria jurdica
europia - de romper com o passado por aquilo que o passa-
do representava sob o aspecto da viso do "jurdico" e da
posio do "jurdico" no "social" e no "poltico", Sob esse
perfil, o "Cdigo" expressa a forte mentalidade forjada nogrande laboratrio iluminista e se encontra - enquanto tal -
em spera polmica com o passado.
Com esse esclarecimento, que deve ser feito: obvio que, se
olhssemos o tecido do primeiro verdadeiro Cdigo, aCode
civil, e, ainda mais se olhssemos os seus trabalhos preparat-
rios, poderamos constatar a frtil continuidade de institutos
cunhados e aplicados na imemorvel prxis consuetudinria,
Os redatores, primeiro entre eles Portalis8
, eram homens nas-cidos e educados sob o Antigo Regime, assim como no sur-
preende o fato de esses serem portadores, nas suas subconsci-
ncias, de noes, costumes, esquemas tcnicos, enraizados na
experincia da sociedade francesa e, portanto, aceitos e vivi-
dos na vida cotidiana. Isso eu daria por certo, considerando
que a histria nunca realiza saltos improvisados, e o futuro
sempre tem um vulto antigo. O que conta o que emerge e o
6 Com a expresso "droit coutumier" entende-se, no antigo direito francs, o com-plexo do direito consuetudinrio espontaneamente florescido e aplicado nas
. vria" prticas locais e, sucessivamente, consolidado em redaes escritas.7 Por motivos que pareciam claros no desenvolvimento dessas consideraes, o
Cdigo Prussiano, o "Allgemeine Landrecht" de 1794,que adIltiaainda a htero-integrao por parte dos direitos locais, mais corretamente inquadrvel entreas consolidaes do sculo XVIII do que entre as verdadeiras codifieaes.
8 O jurista francs Jean-Etienne-Marie Portalis (1746-1807) foi um dos prota-gonistas na redao da grande codificao ordenada por Napoleo L
completo delinear de uma mentalidade energicamente nova
que investe o corao da ordem jurdica, ou seja, o modo de
conceber e de realizar a produo do direito. Neste ponto -
que uma noo cmcial sobre a qual se edilica o jurdico -,
concepes e solues esto em uma polmica frontal.
A produo acontecia no mtmdo pr-revolucionrio atra-
vs de trs elementos bsicos que a caracterizavam.
Era transbordante, ou seja, seguia sem tentar obrigar o
advir da sociedade a se manter dentro de margens muito
vinculantes: as opinies dos doutores acumulavam-se uma
aps a outra, formavam-se opinies comuns, mais que co-
muns, comunssimas9, entesourizantes naquelas confusas
colheitas dos sculos XVII e XVIII, que forneciam aos prti-
cos O suporte para as pretenses processuais; as sentenas seacumulavam uma aps a outra, sendo que os Tribtmais mais
ilustres tinham a sorte de poder imprimi-las naquelas enor-
9 Quando se fala de doutores, nos referimos aos doetores, ou seja, aos mestresdo direito, os quais, com a interpretatio do velho direito romano justiniano e dodireito cannico, constituam o instrumento de adequao daquelas normass exigncias da experincia jurdica medieval e ps-medieval em contnuocrescimento e punham-se, por isso, como autnticas fontes do direito comumeuropeu. Aquelas opiniones, pareceres jurdicos que eram expresso no so-
mente do jurista, mas que, pelo seu sucesso e pelo seu recebimento geral,poderiam parecer a expresso de toda a classe dos juristas, as chamadasopiniones eommunes, opinies comuns, conseguiam ter uma particular autori-dade junto aos juzes. Por isso, muito cedo, comeou-se a recolh-las, comepreciosos subsdios para os advogados, organizando-as segundo os vriosproblemas a que se referiam. Nessa corrida, voltada a fornecer ao advogadoinstrumentos infalveis para serem vitoriosos nas diferentes causas, existiu,no direito comum tardio (sculos X V II a X V III), uma concorrncia entre osvrios recolhe dores, que propunham no somente "opinies comuns", masat mesmo "mais que comuns" ou "comunssimas".
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mes colees sobre as quais teve o mrito de ter chamado a
. G' G lloateno - nico entre ns - o caro amIgo mo or a .
Era pluralista, ou seja, estava em conexo com a socieda-
de e com as suas foras plurais, expressando-as sem particu-
larizaes artificialmente construdas.
Era, conseqentemente, ~~s!.?-tal, ou seja - excetu-
ando as zonas que se encontravam em ntima relao com
o exerccio da soberania -, n_~.!_
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94MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERNIDADE CDIGOS 95
normas que podem ser legitimamente pensadas como _~i-. . . . . - _ . _ - - - - - -
versais e eternas, como se fossem a traduo em regras soci-
;~-da~~~l~-h~~monia geomtrica que rege o mlmdo. Aqui se
manifesta af~".:1mentao)1!~P~.~l.~~lis~~, que reveste de"., .... e_,_. .
eticidade a certeza de que o Cdigo se faz portador, j que,.
quando se torna possvel ler a natureza das coisas, a veia
tica passa a ser certa, mesmo se no fundo no existe mais o
Deus-pessoa da tradio crist, mas, no seu lugar, uma vaga
divindade panteisticamente vislumbrada; desse modo, passa
a ser certa a mitificao. No errado falar de catecismo, do
Cdigo como catecismo.
Filho do jusnahualismo iluminista, o Cdigo leva consi-
go, bem penetrado na sua estrutura ssea, a marca da gran-
de anttese jusnaturalista, a mais grave e pesada anttese da
histria do direito moderno. Na nova ultura secularizada, a
convico na capacidade do novo sujeito de ler a natureza
das coisas passa a ser acompanhada por um problema que a
velha cultura medieval e ps-medieval pde ignorar: quem
possui legg~~d1gP-Kil J~r.. ...nhlr.~.~_.ds.oisasj~...d.e_~?_a
.extrair regr~s ..~?r~l!i~.:1s?A nada serve o antigo leitor, ni-
co e necessrio, a Igreja Romana, j condenada ao sto das
supersties e eliminada da categoria das possveis fontes de
direito. Esse leitor deve obrigatoriamente sero J:>~cip":"o qual,aps ter sido gratificado no mbito da Reforma religiosa com
o comando das Igrejas Nacionais, v-se, agora, honrado e
onerado, com uma nova misso inteiramente temporal.
Pressuposto desta gratificao a sua idealizao: o Prn-
cipe , ao contrrio do juiz e do doutor, uma figura acima
das paixes e das mesquinharias ligadas aos casos particula-
res e, por isso, tem condies de fazer uma leitura serena e
objetiva. Quem no recorda, a propsito, os escritos, ao mes-
mo tempo conhmdentes e ingnuos, de Muratori ou de Becca-
ria13?Como antes fez a Reforma religiosa, tambm a culhlra
Jusnaturalista, imersa no novo mundo secularizado, precisa-
va de um vigoroso gancho no temporal, e isso foi oferecido
pelo novo sujeito poltico, vigoroso, j protagonista do cen-
rio europeu transalpino, o Estado. E toma forma um fenme-
no que poderia, primeira vista, mostrar-se como uma com-
:?leta anttese em relao ao que dissemos algumas lirthas
acima, sobre uma harmonia de geometrias eternas e univer-
sais: a estatizao do direito, tambm do direito civil, o maisdifcil a ser controlado nas malhas do poder.
O jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo
positivismo jurdico, e o Cdigo, mesmo se portador de valo-
13 Ludovico Antonio Muratori, que lembrado sobretudo pela sua importante
obra de erudito e de colecionador-editor de fontes histricas, uma figura que
interessa ao historiador do direito por uma pequena obra que publicou em
1742,enti tulada "Dei di/etti delIa giurisprudenza". Trata-se de um polmico libe-lo contra o velho direito comum e o seu confuso pluralismo jurdico, trazendo a
proposta de um novo direito tendo o Prncipe e a lei como protagonistas e que,por isso, coloca-se como testemunho genuno do iluminismo jurdico italiano.
No que diz respeito a Cesare Beccaria, faz-se referncia ao seu notrio libelo
"Dei delitti e delle pene", publicado em 1764, e por todos conhecido devido assuas propostas criminalistas, mas aqui lembrado pelos seus escritos polmicos
contra um direito comum monopolizado por doutrinadores e juzes, contra um
direito comum que, no sculo XVIII, ainda era interpretao do direito romano
e do direito cannico, e a favor de um novo direito iluministicamente resumido
em um complexo de leis soberanas.
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15 Para se dar conta desse fato, basta ler as vrias "Declaraes", comeando pela
adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assemblia Nacional Constituinte. A
enunciao mais transparente encontra-se no "Ato Constitucional" de 24 de
junho de 1793, no artigo 4: "a lei a expresso livre e solene da vontade geral; a
mesma para todos, seja qu
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~ I " ' ."r- ,
~~"~-~.~,
98MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERNIDADE CODIGOS 99
jllsnahualista revela a sua latente dimenso estratgica, ou
seja, de sagaz estratgia da classe burguesa no momento de
conquistar o poder poltico.
O problema das fontes, do sistema das fontes - de todas
as fontes -/ sentido pela cultura jurdica burguesa como
problema intimamente, genuinamente, constitucional, nocorao da constihtio do novo Estado; ou seja, no somen-
te no herico momento da conquista ou prximo a essa, mas
tambm em tempos bastantes distants, com uma continui-
dade inerte que tem muito a dizer. Vem em mente os escritos
dos civilistas italianos do incio do sculo XX, que recente-
mente reli para uma pesquisal6, os quais estariam inclinados
a reconhecer doutrina e jurisprudncia como fontes de direi-
to/ mas o negam categoricamente por motivos de ldole ex-
clusivamente constitucional: tal fato teria constitudo uma
leso coluna que sustenta todo o Estado de direito burgus,
ou seja, o princpio de diviso dos poderes.
2. O Cdigo e os elementos que historicamente o caracte-rizam
Chegamos, desse modo, aos elementos que caracterizam
o Cdigo, sobre os quais se discutiu em uma vivaz dialtica
de posies, nas mais variadas relaes.
16 GROSSI, P.ltinerarii deI/' assolutismo giuridico - saldezze e incrinature nella 'partigenera/i' di Chironi, Coviello e Ferrara, in Assolutismo giuridico e diritto priva to.Milano: Giuffre, 1998.
Uma tipicidade inconftmdvel, em relao a todas as ou-
tras fontes jurdicas que se manifestaram ao longo da hist-
ria/ -lhe impressa por uma trplice tenso que o percorre;
efetivamente, tende a ser fonte lmitria, espelho e fundamento...--" ,- . ...._"' ...."..- .' ..... ... . .... ..,,'
~a unidade de um ente esta~al; tende a ser uma fonte com-
pleta;. tende a ser uma fonte exclusiva. Est.atrplice tensocaracteriza fortemente o Cdigo, ao plenos no seu modelo
'" . __ H",. ' _, , _
0riginrio/ que nos foi proposto na realizao francesa do-.- ,_,.... _ o., ," ". __ " .
incio do sculo XIX.
Disse tenso porque, sem dvida, uma aspirao desse
tipo. De fato, no esqueamos nunca de conceber o Cdigo
- a idia de Cdigo - como o fruto extremo do comporta-
mento geral de mstica legislativa, de inseri-lo naquele
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,10 0
MITOI.(X;I;\S JURDICAS DA MODERNIDADE CODlGOS101
dos valores que caracterizavam o Antigo RegimeJ7
Qs novos
"legisladores" ainda levam sobre a pele os sinais da prpria
velhice, ou seja, de figuras educadas na poca pr-revolucio-
nria. O que conta o clima histrico, a ideologia poltica e a
cultura jurdica dominantes, das quais o Cdigo traduoem nvel normativo e que o fazem ser instrumento de um
rigoroso absolutismo jurdico. No podemos nos deixar des-
viar pela considerao se, sob o contedo vago e ambguo do
notrio artigo 4, obrigando o juiz a decidir a qualquer custo
a controvrsia submetida a ele pelas partes, exista uma von-
tade de abertura alm da lei por parte dos redatores, quan-
do, imediatamente e com duradoura forhma, d-se uma in-
terpretao positivista e legoltrica dessa, coerente com a
imperante mstica legislativa. No seu complexo, o Cdigo
uma operao ideolgica e cultural notavelmente compacta,
e bastaria, para confirmar o seu relevo - j por ns realizado
_ acerca do territrio do qual toma incio a operao, o direi-
to civil plasmado por costumes seculares e a esse reservado.
Convencidos dessa densidade, torna-se impossvel no
salientar algumas fissuras na solidssima muralha. A primei-
ra que vem em mente oferecida pelo pargrafo 7 do ABGB,
o Cdigo Austraco, que tem como hiptese, como meio ex-
tremo para preencher as lacunas legislativas, o recurso aos
17 Sobretudo no complexo Discours prliminaire, riqussimo de velhos e novos mo-
tivos, pronunciado por Portalis quando apresenta ao Conselho de Estado o
projeto de Cdigo Civil redigido pela Comisso do governo (a.tualmente po~e
ser lido na coletnea: N ai ss ance du C ode c l Uz I - l a r a ls on du l eg l sl a teur. Pans:
Flammarion, 1989)
"princpios do direito nahlral, respeitando as cirCtIDstncias
analisadas com diligncia e maduramente ponderadas"18 com
uma dio que indica abertamente, ao mesmo tempo, as in-
fluncias paralelas - enormes sobre aquele legislador - do
robusto jusnahlralismo alemo e do tambm robusto direitocomum revivido na Idade Moderna da rea germnica. Mas
atrs do Cdigo falta o embaraante Estado-nao e falta a
corrosiva incidncia revolucionria que os franceses experi-
mentaram na prpria pele. Bastaria analisar corno o ABGB
coloca-se (e resolve) o problema da propriedade e dos direi-
tos reais para se dar conta de que estamos em um planeta
jurdico muito distante do francs, um planeta ainda intima-
mente ligado estrutura feudal e s decrpitas invenes do
domnio dividido, assim corno foram teorizadas e sistemati-
zadas pelos intrpretes medievais.
Passando aos Cdigos da rea italiana que surgiram ao
longo do sculo XIX, no gostaria de supervalorizar as pou-
cas referncias ao direito comum, salientadas por Pio Caroni;
efetivamente, essas podem ser observadas ou em zonas bas-
tante separadas (corno o Canto Ticino), ou em zonas onde
ainda perdura, em pleno sculo XIX,a vigncia geral do mes-
mo direito comum (como acontece no Estado Pontifcio).
18 Trata-se da parte final do pargrafo 7 do "Cdigo Civil geral aust~aco"
( A ll gemei nes B r ger li ches Ges et z buch) de 1811. O texto completo do paragrafo
recita: "Quando no seja possvel decidir um caso nem segu,ndo as palavras,
nem segundo o sentido natural da lei, devero se~respeitados os ca~os s~lares
especificamente decididos pelas leis e os mo.h:os de outras leiS. a~a~ogas.
Permanecendo duvidoso o caso, dever ser deCIdido segundo os prmclplOs do
direito natura!, respeitando as circunstncias analisadas com diligncia e pon-
deradas com maturidade".
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19 Cdigo Civil de 1865,artigo 3: "Quando uma controvrsia no possa ser decidida
com uma especfica disposio de lei, devero ser respeitadas as disposies que
regulamentam casos similares ou matrias anlogas: onde o caso permanea
duvidoso, dever ser decidido segundo os princpios gerais de direito".
20 DELVECCHIO, G. Sui principi generali dei diritto, atualmente em Studi sul diritto.
Volume I. Milano: Giuffre, 1958.
mais encorpado, ao contrrio, o apelo aos "princpios
gerais do direito" - feito expressamente no artigo 3 das dis-
posies preliminares do primeiro Cdigo civil da Itlia
unificada, de 186519 - como ltimo subsdio oferecido ao
aplicador para preencher as lacunas normativasi porm,
com o ulterior e significativo esclarecimento que adio -
por verdade, genrica - ser sempre e constantemente en-
tendida como uma reduo do prprio espectro aos princ-
pios gerais dedutveis do direito positivo estatal italiano.
Existir - durante o longo imprio do Cdigo de 1865- quem
o interpretar com um contedo de genuno direito nahl-
ral, mas ser muito mais tarde, e ser um filsofo do direi-
to, Giorgio deI Vecchio, na conferncia que esse proferiu
em Roma em 1921
2
, dando livre curso a um debate aceso efecundo, que toma viva e enriquece a reflexo jurdica ita-
liana no incio da dcada de vinte.
Aquilo que estou delineando o modelo d;eCdigo assim
como esse veio a se desenhar, com traos ntidos na Frana,
nos primeiros anos do sculo XIX. Com o passar do tempo
tambm passa muita gua sob as pontes do Senna, do Tevere,
do Renoi e essa no passa em vo. A histria sempre traz
consigo riqueza e transformao incessante. No final do s-
21 Com o termo "Pandetstica" nos referimos sobretudo grande corrente cientfi-
ca que, tendo por base as Pandetas de Justiniano, edifica na Alemanha do
sculo XIX um saber jurdico extremamente conceitualizado, fundamentado
sobre modelos abstratos e purificado das escorias factuais de ndole econmica
e social. Na falta de uma codificao na Alemanha durante todo o sculo XIX,
a Pandetstica constri robustamente no plano terico, mas permanece domina-
da por um forte positivismo legalista.
22 Com a expresso "clusulas gerais" pretende-se salientar as referncias que o
legislador faz a noes pertencentes conscincia coletiva (boa-f, bom costu-
me, usos comuns, diligncia do bom pai de famlia, e, assim por diante) indi-
cando a~ juiz um reservatrio extra legem a ser alcanado pela sua deciso.
23 RODOTA,S.ldeologie e tecniche della riforma dei diritto civile, in Rivista dei dirittocommerciale, 1967,I.
24 Nos referimos ao "Cdigo Civil suo" (citado como ZGB) de 1907, mais do que
a qualquer outro, um verdadeiro Cdigo de autor, por ter sido fruto da
engenhos idade de somente um notvel personagem, o jurista Eugen Huber
(1849-1922), um doutrinador especializado em direito privado e inspirado na
cultura'jurdica germanista. Os traos que caracterizam esse Cdigo so a
valorizao da conscincia jurdica popular e, conseqentemente, a valorizao
do papel do costume e do juiz. tambm, por isso, que no Cdigo faz-segrande uso de "clusulas gerais".
103CDIGOS
culo, j em um Cdigo que reflete a concluso do positivismo
legalista da Pandetstica21, o Cdigo Imperial Germnico, o
BGB, existe um fervilhar de clusulas gerais22, de brechas
abertas para o juiz atravs do mlmdo dos fatos, um tema -
esse - caro a Stefano Rodot, que o desenvolveu, h muitos
anos, em uma esplndida conferncia proferida na cidade
de Macerata23 E, no incio do sculo XX, o Cdigo suo,
marcado pelas convices germanistas de Huber, surge imerso
em uma realidade consuetudinria que merece ser valoriza-
da, com um juiz que possui maior liberdade, podendo abrir
as janelas do seu mtier para absorver as mensagens soci-
ais24. Poderia-se, at mesmo, mencionar o primeiro Cdigo
de direito cannico de 1917, nico Cdigo - de que eu saiba
- expressamente aberto, com o cano6, em direo ao passa-
MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERNIDADE10 2
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104MITOLOCIAS J URDICAS DA ~IODERNI[)ADE
CDIGOS 105
do, atravs do princpio constihlcional no escrito da eqi-
dade cannica, com a possibilidade, para o juiz - sob deter-
minadas condies -, de no aplicar a norma escrita25
; mas
aqui fcil salientar que se trata de uma codificao
peculiarssima, relativa a um ordenamento sacro com
imperiosas instncias pastorais absolutamente ignoradas pe-
los ordenamentos laicos.
As matrizes jusnaturalistas pesam sobre o Cdigo. Como
norma que presume prender a complexidade do social em
um sistema fechado, o Cdigo, toda codificao, somente
pode traduzir-se em urna operao drasticamente redutiva:
se a razo civil pode e deve desenhar-se em uma harmonia
geomtrica, sob a gide da mxima simplicidade e da mxi-ma clareza, o legislador deve empenhar-se em um esforo de
depurao e decantao.
Corno norma que, rejeitando as escrias deformantes da
historicidade, pretende redescobrir o indivduo originrio em
toda a sua genuna privacidade, o Cdigo tem por protago-
nistas sujeitos abstratos aos quais se refere uma faixa de rela-
es igualmente abstratas. So os modelos desenhados sobre
pegadas pr-histricas, modelos todos iguais, sem aquela pe-
sada bagagem de camalidade humana que a histria inevi-
25 O cano6 valoriza o grande patrimnio jurdico que se acumulou na birnilenriavida da Igreja Romana e que entre os canonistas vem denominado ius vetus.Quanto eqidade cannica, ou seja, ao espao de discricionariedade concedi-do ao juiz para evitar aplicaes rigorosas da lei que pudessem ser motivo depecado para os que julgam, essa, chamada expressamente pelo cano 20 doCdigo de 1917, deve todavia ser considerada como um princpio constitucio-nal no escrito que permeia toda a codificao.
tavelmente pe sobre os ombros de quem age no seu seio. A
camalidade, no bem e no mal, era prpria do Antigo Regi-
me, onde haviam nobres e plebeus, camponeses e mercado-
res, ricos e pobres, cada um pensado no interior de uma co-
mlmidade historicamente definida, cada um desigual em re-lao ao outro graas a sua inabdicvel historicidade.
No projeto jurdico burgus, abstrao e igualdade jurdi-
ca(ou seja, a possibilidade de igualdade de fato) ~o noes
"constitucionais" que fundamentam o mesm()P!C?Je.t?E a mu-
ralha chinesa que separa o mundo do direito (e da relevncia
jurdica) do mundo dos fatos compactssima, impenetrvel.
To compacta e impenetrvel como talvez nunca se tenha reali-
zado na histria jurdica ocidental. Sinal de que o projeto se
misturava tambm com estratgia, com a exigncia de um con-
trole rigoroso no ingresso dos fatos na cidadela do direito.
A factualidade comear a ser discutida na Itlia - aps
muitas dificuldades - no final do sculo XIX por civilistas
hereges e se contrapor, ento, fria harmonia de museu
que caracterizava o Cdigo Civil, um "Cdigo privado soci-
al" em que os sujeitos so patres e empregados, ricos e po-
bres, sbios e ignorantes26 ; em suma, homens de carne e osso;
e tambm comear a ser discutida, sempre no final do scu-
lo XIX,na legislao especial- antes muito escassa - que logo
se intensificar com o objetivo de remediar as muitas necessi-
26 Tal fenmeno acontecer na Itlia, no final do sculo XIX,no mbito da correnteambgua e heterognea de ndole tipicamente solidarista que chamamos de
"socialismo jurdico".
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27 Nos referirmos, em modo particular, s primeiras leis sociais, que atenuam o
surdo individualismo jurdico da legislao burguesa, comeando a introduzir
elementos de solidariedade e tutela dos sujeitos economicamente mais frgeis.
28 Trata-se da densa e complexa obra do legislador italiano que salienta, de um
modo at ento desconhecido, por trs das urgnciaf' dos problemas blicos, a
dimenso socioeconmica com uma forte contribuio que vem a romper ou a
subverter princpios inveterados, at ento recebidos como autnticos dogmas.
29 "a majestosa igualdade das leis, que probe ao rico assim como ao pobre de dormir
debaixo das pontes, de mendigar nas ruas e de roubar o po" (nota do tradutor).
30 "ela eleva, sob o nome da igualdade, o imprio da riqueza"(nota do tradutor).
In: Le lys rouge, cp. VIII.
dades emergentes27, e, finalmente, na legislao especial e
excepcional surgida com a Primeira Guerra MundiaI28, que
se transforma em uma corda no pescoo para o organismo
rarefeito dos sujeitos e das relaes do direito burgus.
Abstrao~.igJJaldade foonal foram, talvez, as armas mais. _ . _ . _ - - - - . , . . ..,--'- ,.
afiadas
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108MITOLOCIAS J URDICAS DA MODERNIDADE
CDIGOS 109
o Cdigo fala ao corao dos proprietrios, sobretudo alei tuteladora e tranqilizadora da classe dos proprietrios,
de um pequeno mundo dominado pelo "ter" e que sonha em
investir as prprias poupanas em aquisies nmdirias (ou
seja, o pequeno mlmdo da grande comdie balzaquiana).
por isso que, ao lado da lei do Estado, nica concesso
pluralista, mas, ao contrrio, bem fechada no interior de um
surdo monismo ideolgico, admitida como nica lei con-
corrente o instrumento prncipe da autonomia dos indivdu-
os, ou seja, o contrat032. por isso que o Cdigo - mais do
que aos utentes, entendidos sempre como destinatrios pas-
sivos - fala aos juzes, ou seja, aos efetivos aplicadores nas
quais mos passa a ser entregue a tranquillitas ordinis.
Mesmo existindo a hiptese de uma lei dos indivduos a
ele paralela, o Cdigo permanece inserido em uma dimenso
autoritria. Recentemente foi medida a respeitabilidade da
fonte "Cdigo" em referncia aos contedos33, mas o subs-
tancial autoritarismo est em outro lugar, na exigncia
centralizadora do Estado monoclasse, no seu conseqente
panlegalismo, na mitificao do legislador que surge quase
como um Zeus fulminante do Olimpo, onisciente e onipoten-
te, na mitificao do momento de produo do direito como
momento de revelao da vontade do legislador. E um
32 eloqente o artigo 1123 do Cdigo Civil italiano de 1865 (reproduzindo um
idntico ditado contido no Cdigo Civil napolenico): "Os contratos legalmente
formados tm fora de lei para todos os que dele participam".
33 ZENCOVICH,V. 2.11 'codice civi le europeo', /e tradizioni giuridiche naziona/i e i/ neo-
pos itivis mo , in Foro Italiano, 1998, V, 6055.
autoritarismo que intensifica a incomunicabilidade entre
Cdigo e sociedade civi.l,j que, a respeito das incessantes
transformaes socioeconmicas, o Cdigo inevitavelmente
permanece um pedao de papel cada vez mais velho e cada
vez mais alienado.
Venho a um outro ponto nmdamental sobre o qual pe-
sam as razes jusnaturalistas do Cdigo, o ponto que h pou-
co indicvamos. A legolatria iluminista imobiliza o direito no
momento da produo; tal procedimento chega exausto
com a revelao (deve-se insistir com esse termo teolgico)
de uma vontade suprema, sendo que o momento de interpre-
tao e aplicao permanece estranho a esse. Talvez se te-
nha falado muito pouco disso no nosso congresso, como sali-entou Luigi Lombardi Vallauri.
O procedimento de normatizao conclui-se no momen-
to em que a norma vem produzida; conclui-se e extingue-se.
O resto conta pouco, porque a norma jurdica aquela abs-
tratamente confeccionada pelo legislador. certo que em se-
guida acontece o momento da sua aplicao, ou seja, da vida
da norma em contato com a vida dos utentes, mas sem dar
nenhuma contribuio a uma realidade que nasce e perma-
nece compacta e rgida, impermevel histria.
Essa mentalidade tipicamente iluminista, e no somen-
te peculiar aos entusiasmados homens do sp-culoXIX, to
impregnados do positivismo jurdico; caiu - o confessamos-
nas profundezas da alma do jurista europeu continental e,
mesmo com tudo o que aconteceu na experincia e cientifi-
i.
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110 MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERNIDADE CDIGOS 111
camente ao longo do fertilssimo sculo XX, ali permanece,
intacta, seguramente revestindo o subconsciente, mas encon-
trando tambm um pleno aceite por parte da sua conscin-
cia opaca. Perdura, intacta, a atitude de cida hostilidade
em relao interpretao - toda interpretao que no seja
a autntica - muito bem expressa por Cesare Beccaria em
memorveis escritos da literahua jurdica italiana34
Mas Beccaria est ali, no seu nicho do sculo XVIII, efi-
caz ao express-lo e, portanto, merecendo a nossa com-
preenso historio grfica. Merece uma compreenso me-
nor a rejeio da historicidade da norma, de toda norma,
mesmo da legislativa, no incontrastado domnio que tem
sobre a alma dos juristas.
A idia de Cdigo, ou seja, de uma geometria de regrasabstratas, simples, lineares, conceitualmente no concebe a
possibilidade de uma incidncia do momento de aplicao.
A ideologia jurdica ps-iluminista fica profundamente per-
turbada com a viso de uma norma que vive alm da sua
produo e elasticamente modifica-se, segundo o seu percur-
so, que continuamente se reproduz recebendo as mensagens
dos diferentes terrenos histricos por onde passa. por isso
que, nessa, a interpretao assume a nica veste que lhe
possvel, de exegese: a norma deve ser somente explicada, no
mximo penetrando no interior do crebro do Zeus legisla-
34 BECCARIA,C.De i del itti e d elle pen e (1764),capoIV -lnterpretazione delle leggi.Milano: Giuffre, 1964.
dor (procedimento desdenhosamente rejeitado pelo ortodo-
xo Beccaria) para adentrar e esclarecer a sua soberana inten-
o. Rejeita a historicidade da lei porque essa infligiria uma
leso mortal estratgia que se conclui no projeto iluminista.
Se consideramos os files mais inovadores - e tambm mais
fectmdos - do nosso sculo XX, pode-se observar que esse
diHcil itinerrio (ainda hoje no concludo) est buscando uma
valorizao cada vez maior do momento de interpretao,
da sua recuperao no interior do procedimento de produ-
o da norma como momento essencial desse mesmo proce-
J.imento, o nico que pode fazer da norma abstrata uma re-
gra de existncia cotidiana.
A experincia do sculo XIXfrancs deveria ser urna ad-
vertncia. A cincia reduz-se a exegese35, urna corte de
laboriosssimos e feetmdssimos operadores que trabalhavam
satisfeitos na sombra da codificao. O colega Rmy, de um
:nodo brilhante, teceu um elogio36 a eles, e seguramente
digna de considerao a inteligncia esclarecida e documen-
tada deles, manifestada em comentrios limpidssimos. Po-
rm, eu no poderia assinar o mesmo elogio: porque entre
eles dominava uma psicologia substancialmente passiva em
relao ao texto normativo, urna concepo que minirniza o
;5E no sem razo foi chamada "escola da exegese" a rica corte de interprtes
franceses que, em boa parte do sculo XIX, trabalhou na sombra da codificao
napolenica. Certamente esses no constituam uma "escola" unitria, mas, em
uma avaliao unitria, podem muito bem serem associados devido a um
comportamento psicolgico e metodolgico comum entre eles.
36 REMY, J.P. Eloge de l'exegse (1982), atualmente em Droits-Revue franaise dethorie juridique, I, 1985.
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direito, reduzindo-o a um texto respeitvel, uma incapacida-
de de responder e corresponder s incumbentes exigncias
de uma sociedade marcada por um forte crescimento e pre-
cisando ser ordenada com categorias e escolhas tcnicas co-rajosas e inovadoras.
Uma jurisprudncia prtica tem conscincia desse objeti-
vo e trabalha nessa direo, investida pela frico entre lei
velha e novas necessidades, tomando para si essa tarefa enor-
me, no a evita e, mesmo sofrendo uma verdadeira crucifica-
o no abismo entre surdez de um texto e transformao dos
fatos sociais, freqentemente faz as suas escolhas parando
no respeito formal a um texto que foi efetivamente esvaziado
ou violado por essa transformao; uma jurisprudncia pr-
tica que quis e soube construir "au d e l d u cod e" e "malgr le
code ", trabalhando "avec les textes", mas chegando "au dessus
des textes et par del les textes" 37 38. Pode ser extremamente
instrutivo ler os "anais" das celebraes centenrias aconte-
cidas em 1904: junto a tantos escritos triunfalistas, chamam
a ateno outros, como, por exemplo, os do Presidente da
Corte de Cassao, Ballot-Beaupre39, em que o elogio
codificao consiste no fato de essa ser vaga e genrica, no
fato de ser portadora de muitas lacunas, circunstncias que
por si mesmas no so edificantes, mas permitem aos juzes
franceses construir apesar do texto.
Isso, devido ao fato de o Cdigo ter se tomado um texto,
um texto em lun pedao de papel. Nesse contexto no posso
deixar de citar dois grandes civilistas franceses que tive a sor-
te de poder estudar profundamento: Raymond Saleilles e
Franois Gny. Estamos nos ltimos vinte anos do sculo XIX;
eles so o testemunho do que h pouco eu disse ser a crucifi-
cao de um jurista socialmente sensvel e culturalmente cons-
ciente; Gny e Saleilles, intolerantes com um direito identifi-
cado e cristalizado em um texto, orientam as suas reflexes
tentando evitar a separao funesta entre a cortia jurdica e
a subjacente linfa social e econmica, uma linfa que, por na-
tureza, mutabilssima.
Entre ns, na Itlia, deve-se obrigatoriamente recordar a
figura de Tullio Ascarelli, apaixonado por um ramb do direito
privado imerso na prtica econmica, como o direito comer-
cial, e que tentou, no convulsionado momento que tivemos
imediatamente aps a Segunda Guerra Mundial, harmonizar
formas e prxis inventando categorias de interpretao sob a
gide de um diagnstico despudorado do direito ViV041
112MITOLCX;IAS J URDICAS DA \100ER!\'InADE
CDIGOS 113
37 "alm do cdigo"; "apesar do cdigo"; "com os textos"; "acima dos textos e
alm dos textos" (nota do tradutor).
38 A proposta metodolgica e a linha de ao que constituram o fulcro da mensa-
gem de Raymond Saleilles. como acreditamos ter salientado no ensaio citado,
podem ser encontradas na nota 40.39 Nos referimos ao discurso pronunciado em 29 de outubro de 1904, nas festivi-
dades do centenrio da promulgao do Cdigo.
40 Ripensare Gny, eAss o/ut ism o giur idic o e d iritto priv a to: lun go l'itin era rio scie ntifi co
di Raymond Sa/ei l les, atualmente em Asso/ut ismo giuridico e dirit to privato,op. ci to
41 So exemplos, entre tantos ensaios ascarellianos: Funzi oni econom ich e e i st it u ti
giuridici nel la tecnica de/l' interpretazione (1946), atualmente em Saggi giuridici.
Milano: Giuffre, 1949.
1",'0
I
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3. O Cdigo hoje: algumas consideraes do historiador
do direito
42 A rica introduo premissa a:Il Codice civile della Repubblica Dem ocratica T edesca,trad. e introd. De G. Crespi Reghizzi e G. De Nova. Milano: Giuffre, 1976.
43 Pode-se ler, a respeito BUSSANI, M. et MATIEI, U. (Ed.) Making European Law
- Essays on the "Common Core" Project. Trento: Universit degli Studi, 2000.
! A esse ponto, torna-se legtima uma pergunta: a idia de( Cdigo ainda atual? Ou se trata, mesmo nesse caso, da
(\ maldio misonesta dos juristas sempre apegados a mode-
\--.19s passados e sempre tardios e avessos a super-los?
Neste contexto, impem-se algumas consideraes.
A primeira concerne rapidez da transformao social na
t\ ciY-W:z.-a.~,?n:od~,:na.AJr~~~c;-d~-~;~'~-~a e~'tre~~-\ - _ .
115CDIC.os
I?ente le?!a e podia prestar-se, tambm, a ser ordenada em
categorias no elsticas, enquanto hoje a m~~J!larlP~9:e~J~~-
qentemente obriga o legislador a uma ativic!_cl~fe1J!'U,modi-
ficando o contedo de uma norma logo aps t~laproduzido.
Penso em ns, na Itlia (e o digo somente para os amigos no
italianos), ao recentssimo Cdigo de processo penal, um C-
digo que eu - secamente, mas no inconseqentemente - tomo
a liberdade de qualificar como "redigido em versos", um texto
abstratamente respeitadssimo, mas inadequado para ordenar
uma prxis criminal que se encontra em um tumultuado e alar-
mante crescimento, que foi apresentado no sei quantas vezes
apesar do breve perodo de vigncia.
2 ) A segunda conceme _~~~plexi~l~~ da ~~~!!iza~~~_~,~~-~:?-:pornea. Se verdade que .l.codifica~~
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116 MITOLOGIAS JURDICAS DA MODERNIDADE CDIGOS 117
mico norte-americano e das suas vorazes multinacionais).
No existem dvidas quanto ao fato de o panorama geral ter _
variado muito em relao velha paisagem estatal e inter- __
~~tatal44,colocando em dificuldade o Cdigo que, mesmo se
'~~lh~do de instncias originrias e veias jusnaturalistas, his-toricamente se tomou lei nacional e nela se identificou.
}\ Enfim, uma ltima considerao, sobre o que, talvez, ti-
tt) vssemos que refletir mais profundamente. Falou-se de C-digo-Constituio. Verissimo! De fato, no existe dvida que,
quando nasceu, o Cdigo encarnou a autntica Constituio
do Estado burgus, j que, tendo as primeiras "cartas dos
direitos" se revestido de UMcarter filosfico-poltico, coube
ao Cdigo civil enunciar regras jurdicas que disciplinassem
os institutos fortemente "constitucionais" da propriedade
individual e do contrato. Na longa estrada percorrida aps
1804, o Cdigo viu multiplicarem-se os nveis de legalidade,
primeiro - no sculo XIX- a legislao especial ou excepcio-
nal do legislador ordinrio, que, porm, limitava-se a respon-
der questes contingentes que o Cdigo abstrato no tinha
conseguido responder, aps - no sculo XX - as Constitui-
es, que a essa altura j tinham se tomado verdadeiras or-
dens normativas, mas, ao mesmo tempo, ordens concrets-
simas onde podia ser enxertado de modo imediato e des-
44 "Em termos de fragmentao e opacizao da soberania, em termos de modi-ficados atores e protagonistas do processo jurdico, assim como em. ter.m?s ~;diferentes modalidades de produo e funcionamento das regras Jundlcas ,como nobremente indica uma inteligente sociloga do direito em uma obrarecente, que recomendo aos juristas (FERRARESE, M. R. Op. cit.,p. 7).
coberto o mundo dos valores, fazendo com que essas ~e tor-
nassem portadoras de um harmonioso sistema de valores. E
justamente - mesmo se bastante atrasada - a doutrina civilista
italiana colocou-se o problema da relao entre o que j ti-
nha tomado-se dois nveis de legalidade, a legalidade consti-
tucional e a legalidade do Cdig045
.
\ Impe-se uma resposta para a pergunta que acima for-
I mulamos: a idia de Cdigo atual? Nesse caso, qual papel
i 'd' 7\ podemos dar hoje para o futuro do Co 19O.L:... .
No tarefa do historiador fazer propostas operativas;
porm, o historiador pode utilizar a sua conscincia tendo o
sentido da linha histrica para incentivar o esprito crtico do
observador e projetador do presente. H pouco tempo SalvatoreTondo, a propsito da [ex mercatoria, invocada muitas vezes
nesse nosso trduo jiorentino, salientava a sua f na capacidade
de o Cdigo ordenar convenientemente essa realidade emer-
gente. Eu teria mais dvidas a respeito. Perguntamo-nos,
retoricamente, tendo por objetivo somente esclarecer melhor o
discurso, o que entendemos quando fazemos uso de um
sintagma desse tipo. Simplificando e reduzindo ao mximo,
so as invenes da prxis que em um novo cenrio econmi-
co e-t~cnolgic()precisam sempre de instrumentos novos; [e x
~ercatoria o conjunto das invenes realizadas com
criatividade e bom senso pelos homens de negcios nas praas
mercantis, nos portos, nos mercados financeiros.
45 Uma obra exemplar a respeito : PERLINGIERI, P. l i dirit to nella legalitcostituzionaie. Napoli: ESI, 1984.
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46 GROSSI,P. L'ordine giuridico medievale. Bari: Laterza, 1995.47 Uma rica resenha dos recentssimos problemas florescidos em nvel europeu
pode ser encontrada em: ALPA, G. Il codice civile europeo: 'e pluribus unum' inContratto e impresa/Europa, 1999.
Os glosadores falavam, no sculo XII, dos nova negotia,
embaraadssimos sobre como poder inserir nos esquemas
ordenantes do Corpus iur is justiniano todos esses casos que,
naquele momento, eram "zero-quilmetro" - como, por exem-
plo, todos os casos comerciais e de navegao - fervilhantes e
invasivos na grande ko in mediterrnea. Mas eles estavam con-
victos - mesmo tendo de forar e superar as categorias clssi-
cas - de que deveriam apropriar-se dessa riqueza consuehldi-
nria que a potente classe mercantil solicitava e apoiava46.
Estamos em uma situao muito semelhante a deles: ~:l!l~..
prxis que c0!1:ti!':l1~menteforma ins!:ituto~.l1ovos~.cn.~~~:
~e~t~ ..?~_~llP~!~!...l!-':as~~cE~cl~-()?_.u.c~i~~?_~?-~S'~!.~~.~~cor~ida caract~~ad~ por ~~)(tr.~m!1...gP!l~];..
Para essas criaturas elsticas e mutveis, a codificao"o. --_,~' __"-'-' __ ._... 0'- . " ~._ .,.".- .. -.,. .- -,.,------,.,--"
corre o risco de tornar-se um revestimento rgido demais, com'" '"" , ". __ 'o ,_ _~._ ~ _, _,.,~ -._.,
o ulterior rt$.,CQ. de um ~:rlVelhe.c!.~e!1t.~__p!.~co~~...~~_~:::!~~-ITP:ti"oe de uma prxis que continua a galopar seguindo._--"- .- - -._., ...._ ~ " ~.,. . -.,_ . _ _ ._._-~---,
os fatos, prescindindo das inadeq~~.~~~.re.~r~.~..~u~.?~~ri~s.
Atualmente, perante uma transformao rpida e uma
complexidade pouco dcil, re?! __.9_ciig.
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120 MITOLOGIAS JURDICAS DA MODER."lIDADE
dais. Somente dessa forma ser possvel preencher o fosso
que ahlalmente constatamos com amargura.
Retomando ao nosso tema dos Cdigos e, concluindo es-
sas consideraes finais, tambm claro que os Cdigos que,
construiremos seguindo uma linha operativa desse tipo no
tero e nem podero ter o valor do Code c iv i l e dos grandes
Cdigos do sculo XIX, vozes constitucionais do Estado
monopolizador, fontes de fontes por serem emanao da.
~ica potestade nomopoitica, o Parlamento; fontes que for-
malmente condicionam todos os rgos aplicadores na ing-
nua pretenso de oferecer um sistema normativo
tende;~i-~lrnente exaustivo.
Uma dupla descontinuidade delineia-se perante os nos-
sos olhos. No existe somente a histria descontnua que liga
esses Cdigos com o Antigo Regime. Uma outra desconti-
nuidade delineia-se: a que se encontra entre os Cdigos do
imediato futuro e a idia c.eCdigo, assim como essa se afir-
mou no sulco das eficazes sugestes ilumirlistas.
IV
AS MUITAS VIDAS DOJACOBINISMO JURDICO *
(ou seja: a "Carta de Nice", o Projeto de
"Constituio Europia" e as satisfaes
de um historiador do direito)
Publicamos aqui o texto da conferncia ministrada em Rimini, em agosto de
2003, no " Me et ing pe r /'am ic izia tra ipop o/i" , por ocasio do Encontro de agostode 2003 que tinha por tema: Se ti distrai, / 'Europa giacobina, no qual fomosconferencista ao lado de ]oseph Weiler (da New York University) e de Augusto
Barbera (da Universit di Bologna).
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