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Novas Aventuras de Calorinho em Terras Angolanas
Foi entre 14 de Janeiro e 1 de Fevereiro que voltei a terras angolanas. Desta vez
desloquei-me entre Lobito, Catumbela e Benguela.
No Lobito fiquei numa casa de uma família ligada ao Graal –
Dona Rosália Makakwela, da Promaica, sua filha Patrícia
Muenho, marido Dino e duas inesquecíveis crianças, Desire
e Arcanjo. Na família angolana há sempre lugar para mais
um e, no dizer de Dona Rosália, cada visita é “uma bênção
de Deus”. O Miguel Vale de Almeida fala de “deslocamento
cultural”.
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Lobito é uma cidade outrora
lindíssima, um dos maiores
portos da costa oeste de África,
com praias absolutamente
idílicas que se estendem por
uma península chamada
“Restinga” em que, do lado
oposto ao mar se espraia uma
baía sinuosa alongada em U que é o porto. Do outro lado, praias de areia fina e dourada,
mar azul, azul, divididas entre si por paredões em pedras.
Algumas acácias laranjo-avermelhadas num desenho urbano degradado, mal cuidado.
Quando chove alargam-se os buracos que se transformam em enormes poças de água.
Mas, de longe, intui-se uma cidade bela, semeada de palmeiras com o porto e seus
guindastes, e a Restinga ao fundo, desenhando o azul no horizonte.
Tive o privilégio de poder ir todas as manhãs à praia, já que a formação do grupo
emergente do Graal se realizava aos fins de tarde: 12 mulheres profissionais
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(professoras, uma jurista, uma enfermeira, uma assistente social, uma contabilista...),
com filhos, grande parte mães solteiras. A família alargada coopera no cuidado das
crianças, entre elas várias adoptadas.
Praias paradisíacas, praticamente privativas,
um mar azul quando rompia completamente o
sol, desenrolando-se em ondas leves de água
fresca. Várias vezes vi nadarem cardumes de
peixes e claro que um dia fui mordida por uma
alforreca. Que bem que soube nadar mar
adentro, água temperada. Há muitos anos não
fazia assim 15 dias seguidos de praia, alapada
na areia devorando um livro e indo com
frequência ao mar refrescar-me. Um
verdadeiro privilégio. Só um dia choveu.
Vou centrar-me em alguns aspetos desta
estadia que darão mais cor e pormenor às
minhas experiências:
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Fruta: Praticamente em cada esquina da cidade estavam “mamãs” vendendo fruta
disposta artisticamente em grandes bacias de plástico: mangas absolutamente sublimes
de perfume, sabor e macieza da polpa; ananases, papaias pequenas, maracujás grandes
de casca amarela do tamanho de uma toranja, bananas, abacates. Podia ter-me
alimentado só a fruta. Alguns mas mais raros legumes, colocados em montinhos
separados e que eram vendidos à porção. Esplêndido.
Táxis: chamava-se “táxi” ao transporte público. Eram carrinhas de 10-12 lugares,
degradadas – algumas
com plásticos a
substituir vidros -,
inúmeras, surgindo de
todos os lados quais
formigas, velozes,
verdadeiramente a
sensação de se estar
numa montanha russa,
especialmente se se viajava ao lado do motorista.
Em duas semanas nunca vi um branco usando este transporte. Só eu. O motorista fazia
prodígios na condução e havia sempre lugar para mais um. O que interessava eram a nota
de 100 kwanzas (cerca de 60 cêntimos) que era o preço único de cada viagem. Não havia
paragens assinaladas: apenas grupos de gente à espera. A carrinha abrandava e o
condutor anunciava em voz forte: Restinga! ou Africano/Lixeira! Caso houvesse um aceno
o motorista parava. Quando alguém queria sair assinalava a esquina em que queria ficar
ou gritava “pára aqui!”
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O condutor dava
duas batidas na
chapa da carrinha e
esta parava. Os
interessados
saltavam
carregando os seus
pertences – cestos,
bacias de fruta, incluindo crianças de colo que rapidamente eram aconchegadas às costas
das mães, confortavelmente seguras num pano. Tanta, tanta criança! Trânsito caótico. E
as carrinhas ultrapassavam-se umas às outras num frenesim, tentando apanhar primeiro
o seguinte magote de pessoas. Pessoas a atravessarem as ruas em qualquer sítio. O
mesmo se passava nas duas vias da estrada Lobito-Benguela, ao lusco-fusco, apenas se
intuindo formas movediças a atravessar a estrada. Lembrei-me das estradas na Índia.
Lixeira: Há lixo em cada canto da rua, os poucos contentores deitados ao chão, espalhando
detritos mal-cheirosos que atraem moscas e mosquitos. Claro que não há qualquer
preocupação em separar os lixos. Pessoas a catar o lixo, nomeadamente velhos e crianças.
Fabulosa a colina onde se espraia um bairro apelidado de “Lixeira”, todo construído sobre
montanhas de lixo, albergando casinhas sumárias em chapa e tijolo cinzento de cimento,
sem água canalizada e com puxadas de electricidade, construídas ilegalmente pela
população mais pobre. Mas não se imagina a beleza à noite, qual cascata, com luzinhas
tremelicantes indicando a presença de uma casa. Tudo depende da perspectiva. Da
Lixeira descem todas as manhãs mulheres levando bacias de plástico colorido à cabeça,
vendendo tudo o que se possa imaginar, de escovas de dentes e champô a livros escolares
e canetas.
Leituras: Li rapidamente o romance de Pepetela “Lueji, o Nascimento de um Império”.
Depois um livro fotocopiado sobre Teresa de Ávila que aguardava há meses tempo e
sossego para ser lido e estudado. Esgotou-se-me a literatura. Pedi informações – quase
sempre vagas e imprecisas – e acabei por desembocar numa Escolar Editora que não
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tinha um livro sequer de literatura angolana, prevalecendo, além dos livros escolares,
uma boa quantidade de literatura estrangeira, incluindo portuguesa. O mais “próximo”
que encontrei do contexto em que vivia foi um ensaio de José Lins do Rego sobre a
colonização do Brasil e do papel cultural da escravatura, “Casa Grande e Sanzala”.
Também lido este lá consegui encontrar em Benguela um livro de Paula Russa, “Na Pele
de Zimbo Maimba”, um romance passado em Benguela durante a colonização portuguesa
até à independência.
O que foi interessante constatar foi que o preço de um livro era praticamente o preço de
uma garrafa de azeite – para podermos entender o preço de qualquer alimento ou
produto de primeira necessidade importado de Portugal.
Foi também interessante tomar consciência de que, quando não tenho à mão um ou dois
livros para ler, fico como que desazada, sem chão, inquieta...
Luz: Constantes falhas na eletricidade. Segundo a Patrícia Muenho a Central não aguenta
tanta necessidade pelo que se vão alternando os cortes de energia pelas diferentes partes
da cidade. Quem pode adquire um barulhento gerador que incomoda os vizinhos. Enfim,
adaptamo-nos a tudo. Só era menos agradável subir completamente às escuras quatro
lances de escadas em que em certos pontos faltavam corrimões.
Pessoas: Nunca por uma vez me senti menos segura, ao contrário do que se passa em
Luanda.
Linda, a empregada doméstica que vem todas as manhãs limpar a casa e tratar da roupa,
afirma, quando inquirida por mim sobre quantos filhos tinha: “Tem 5, agora tem 3”,
indicando que dois morreram. Achei interessante continuar a falar deles usando o tempo
presente. A mortalidade infantil nesta terra é confrangedora.
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As crianças são lindas, alegres – muitas! -, autónomas, as meninas com as suas trancinhas
semeadas de bolas coloridas e laços. Brincam com muito poucos brinquedos.
Dona Rosália, que me acolheu na sua casa, é uma matriarca altamente implicada na vida
da paróquia. Afirma que, além dos seus filhos, criou mais 5 sobrinhos de um irmão que
morrera. “Cada visita é uma bênção”, afirma ela insistentemente de cada vez que eu
relembro o trabalho que lhe estou a dar. O calor humano é genuíno e faz-nos sentir bem.
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Em geral as pessoas são alegres e com sentido de humor, uma espécie de natureza pujante
irrompendo das agruras e dificuldades de cada dia. Generosidade genuína, dão daquilo
que não têm. Sabem parar e usufruir. Pontualidade nunca, ao mais simples problema
falham na sua presença. Nunca morrerão de stress, tenho a certeza. Mas talvez seja a
única forma de sobreviverem. Isto dificultou o meu trabalho com o pequeno grupo de 12
mulheres, não valendo de nada os meus protestos dizendo que “têm de aprender a fazer
parte de um movimento internacional”.
Lembro um rapaz na cozinha de um bar junto à praia onde às vezes fui saborear uma
coca-cola fresquíssima. Cantarolava a canção do Rui Veloso “Anel de Rubi”. Perguntei-lhe
se sabia qual o autor daquela canção e rapidamente me respondeu quem era. Quando o
informei de que era da mesma cidade que ele, o Porto, subi rapidamente, digo
exponencialmente!, na sua consideração.
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Arcanjo, neto de D. Rosália, um verdadeiro
terrorista, energia irreverente e provocadora,
imparável. Os adultos suspiram: “Aiué...”. Só
sossega quando a avó (ou a mãe) o coloca às costas
ajustado o pano, acompanhando o ritmo e passada
da avó. Uma doçura... Não tem explicação...
Paróquia: S. José de Caponde, ao virar da esquina.
Vida comunitária forte, missas longas, sem pressa,
com cânticos, danças, muitas palavras do padre.
Cheia de ritual. As mulheres vestidas com os seus
trajes mais belos. Missa prolonga-se em avisos que incidem sobre as datas de matrícula
na escola (o novo ano vai começar...), a necessidade de recenseamento para se poder ir
votar, etc... Assuntos bem “profanos”.
Vou acompanhando a SIC notícias quando posso. Forum Económico Mundial de Davos: a
desigualdade cresceu entre 1988 e 2011. Os oito mais ricos acumulam tanta riqueza como
a metade mais pobre da população mundial. Juntas, as dez maiores companhias do
mundo têm uma receita maior do que a de 180 países. De bradar aos céus!
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Fiz 68 anos
enquanto
estava em
Angola. Picnic surpresa com as famílias na Restinga, desta
vez do lado da baía por causa das crianças, para poderem
brincar à vontade. Um bolo de anos, muitas palmas, calor
humano não faltou.
Eu tinha levado vinho do Porto e cozinhei bacalhau assado.
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No último domingo fomos a sul de Benguela, estrada já a dar ares de deserto da Namíbia,
morros escalvados, beleza bruta, vegetação rasteira, cactos gigantes.
De repente, depois de subir, desenha-se o mar azul azul lá em baixo. Lembrou-me a
Arrábida sem verde. Descemos por uma escadaria branca, rochas abaixo. Daí salta-se
para um mar fresco e ondulante, água transparente onde navegam cardumes de peixes
bebés.
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Depois de muito nadar, pic-nic em casa de amigos, frango na grelha, salada e pão. Cerveja
saborosamente fresca. Manjar dos deuses... Pôr-do-sol na Baía Azul. Praia lindíssima,
caminhando para o anoitecer. Um local de culto do bom jazz africano.
As burocracias e postos de controle nos aeroportos são tãooooo cansativas! Mas nada se
compara a meados dos anos 80 quando estive em Angola em plena guerra civil: mais de
uma hora para sair do aeroporto, enquanto toda a gente à minha frente tinha “esquemas”
para sair, acabando por ficar sozinha na fila.
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Noite em Luanda nos missionários Espiritanos que
generosamente me acolheram e levaram e
trouxeram do aeroporto. Casa na Alta de Luanda,
perto dos edifícios rosa escuro da Assembleia
Nacional e dos edifícios do Governo. Descia-se um
pouco e estava-se no business center, prédios
altíssimos e luxuosos, cá fora as ruas degradadas e
sujas, um caos... calor abafado, gente pobre pelas
esquinas. Penso que no quotidiano as pessoas se
vão habituando a viver e a não reparar neste meio
degradado e não cuidado. Dizia Paulo VI: “O
mundo rico tem o mundo pobre à sua porta”. E isso
é que confrange, os olhos habituarem-se à
pobreza, ignorando-a. Há sempre em mim um leve
choque, uma espécie de “estranhamento” (Miguel
Vale de Almeida) e não me conformo com isto.
Seria tudo tão belo se...
No Lobito o calor era suportável, mesmo aconchegante, Calorinho dourando a pele,
espreguiçando-se na praia e esquecendo todas as maleitas. Na viagem de regresso,
esgotados os livros, escrevo esta crónica. Não foi uma experiência fácil, desta vez. O que
vale é que me vou contentando comigo própria e um bocadinho que seja de beleza
retempera a minha alma. E não há dúvida que a natureza bruta é bela!
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2017.
Ticha
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