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O renovado Arrufa e a vizinha Taberna Museu de Francisco Fitas
Velhos e novos taberneiros de CubaOs jovens não são fregueses das antigas vendas onde ainda se produz vinho
de talha, como a conhecida Taberna Museu de Francisco Fitas. E os mais ve-
lhos, embora ainda bebam o seu copo, já pouco cantam. Mas Cuba é, indis-
cutivelmente, uma terra de cante e há quem, na flor da idade, queira trazê-
-lo de novo ao seu habitat natural, juntando ambas as gerações. É o caso
de Vera e Pedro, casal que tem agora em mãos os destinos da Taberna do
Arrufa, um espaço renovado cujo lema é "De regresso à tradição". A "dança
de balcão" em dois registos, a dois passos da igreja matriz.
Texto Carla Ferreira Fotos José Ferrolho
Háqualquer coisa de "místico" na
forma como a velha Taberna do
Arrufa se insinuou e instalou nas
vidas de Vera Beiçudo, 26 anos, e Pedro
Guerra, 28. O jovem casal, que cumpre hojetrês semanas de portas abertas no númerotrês da travessa das Francas, em Cuba, re-corda agora como tudo se encaixou natural-
mente, parecendo obedecer a uma "lógica"
própria, alheia aos próprios planos dos mais
novos taberneiros da vila. Vera conheceu
o espaço quando se batizou, aos 11 anos, e
confessa que sempre que ali ia "sentia uma
nostalgia diferente, sempre gostei desta
casa". O namorado, natural da aldeia de
Odivelas, só viria a ser apresentado à antiga
adega - inaugurada em 2004, pela câmara
municipal local, depois de obras de remode-
lação - pelas mãos de Vera. Rapidamente,recorda, concluíram que se sentiam ali"bem acolhidos". "Algo de bom aqui aconte-
ceu e isso sente-se", reconhece Pedro.
O concurso para a concessão da explo-
ração do espaço apanhou-os em Lisboa.Rodeados de amigos, que costumavam
evangelizar para a causa alentejana atra-vés de tertúlias de petiscos e cante, mas sem
muito êxito na vida profissional. Vera, licen-
ciada em arquitetura, estava sem trabalho, e
Pedro não estava satisfeito com o empregonuma distribuidora de publicações. É o
pai de Vera que alerta o casal para a opor-
tunidade e rapidamente aquilo que pare-cia uma mera possibilidade passou a ser umassunto muito sério. "Eu no início não deimuita atenção mas depois, quando contei
ao Pedro, e estávamos num desses momen-tos de cante alentejano com os amigos, ele
ficou interessado. Pensámos mesmo: e en-
tão se a gente levasse isto para lá? Depois,concorremos e dedicámo-nos como se fosse
o projeto da nossa vida", conta Vera.A decoração foi outro dos desafios e,
também aí, a "mística" do lugar sobressaiu.
O espaço comporta dois ambientes distin-
tos, fiéis à máxima do casal: "De regresso à
tradição". O da taberna típica, à esquerda,com as talhas em pano de fundo e as me-
sas corridas em madeira maciça ao centro,iluminadas por um lustre de vidrinhos. E o
da sala de estar da avó, à direita, onde não
faltam os napperons a enfeitar as mesas,
as cortinas arrendadas, um velho telefone
preto de discar e um candeeiro de pé alto
com abajur em veludo, colocado no centrodo estrado que serve de palco para artistas
convidados e acidentais. "Quando começá-mos a montar as coisas à nossa maneira, ob-
jetos antigos, do lixo ou coisas em segunda
mão, o que apanhávamos trazíamos. E de-
pois, aqui, parecia que tinha sido tudo esco-
lhido para cada cantinho, como se houvesse
uma lógica", lembra Vera, orgulhosa do re-sultado final e da dinâmica que, no pouco
tempo passado, já se conseguiu imprimir ao
espaço. Até ao momento, e apesar do pre-conceito que ainda pesa sobre o termo ta-berna - "um sítio de velhotes que bebem vi-
nho e sem muita higiene" - o espaço tem
conseguido atrair, não só os jovens e as
mulheres, que não entram na taberna clás-
sica, mas também os tais "senhores" que en-
tram para beber um copinho. "Vêm a partirdas três das tarde e ficam aí todos ao balcão,
a cantar e a beber vinho. Depois do jantarcomeçam a aparecer os novos e é giro como
se juntam. Os velhos acabam por ficar e os
novos não se vão embora porque gostam da
presença dos velhos. Ainda ontem estava
ali um senhor a contar histórias do anti-
gamente a duas raparigas novas, e a canta-
rem modas. E eu a pensar: estamos mesmo
a conseguir o que queríamos".Além do cante espontâneo, na nova
Taberna do Arrufa há também "petiscos"a fazer lembrar a "comida de tacho an-
tiga" da avó. Entre uma cabidela, umas so-
pas de cação, uma açorda ou umas migas,sem desdenhar umas moelas ou um grãocom bacalhau. E planeia-se uma programa-ção noturna de fim de semana, cujo mote
já foi dado na "grandiosa inauguração",no arranque do mês. "Tivemos a RaquelGuerra, que veio cantar fado e música por-tuguesa, o grupo Os Bubedanas, que can-tam à alentejana e são jovens, e o DavidPereira na viola campaniça. É um bocadi-nho daquilo que queremos ter ao longo do
ano", desvenda Vera. Entre as exigênciasda Câmara de Cuba aos dinamizadores doespaço municipal estão, por um lado, a va-
lorização do cante alentejano, que já está em
marcha, e a produção de vinho de talha, o
próximo passo do casal, que também não
pensa deixar ao abandono o velho alambi-
que que mora no enorme quintal da casa.
"Queremos fazer vinho e recuperar o alam-
bique para fazer bagaço, nem que seja só
para exposições, ou para workshops, paramostrar aos jovens como é que se fazia an-
tigamente", elenca Pedro.
Uma taberna que é também um museu Se hátaberna antiga que tem nome em Cuba e fora
da vila é a de Francisco Fitas. Ou melhor:Taberna Museu de Francisco Fitas. Saídos
do Arrufa na direção da igreja matriz, são
meia dúzia de passos. Sem nenhum letreiro
que a identifique na rua, ganhou esta desig-
nação graças ao gosto pelo colecionismo do
homem que arrenda o espaço há 23 anos e
que, paulatinamente, foi forrando paredescom cangas, arados, picadeiras, medidas e
outros objetos. "O elo de ligação destes obje-tos é a agricultura", aponta o taberneiro, en-
quanto se atarefa aqui e acolá, mesmo sem
clientes à vista. Foi no campo, às máqui-nas, que Francisco Fitas trabalhou antes de
ir para trás do balcão, por causa de um aci-
dente. "Tive esta oportunidade e aqui tenho
estado", lembra, explicando a sua rotina emdias como estes, em que o movimento anda
"um pouco apagado": "Venho para aquiàs 10 e 30, 11 horas. Depois estou aqui até
às duas horas, vou almoçar, volto às três e
meia, quatro horas, e depois estou aqui até
às oito". Refeições não serve, nunca serviu,tirando um ou outro almoço combinado en-
tre amigos, em que partilha os dotes de "co-
zinheiro consagrado", como versam umasdécimas que tem emolduradas na parede,entre fotografias de festas e passeios. A ver-dade é que Francisco Fitas gosta de cozi-
nhar, e fá-lo com maestria, mas compro-missos só os assume com a família. "Façoo almoço e o jantar todos os dias na minhacasa. Tenho quatro filhas e ajudo, porquetenho vagar e gosto de o fazer".
Do que, sim, não prescinde é da produ-ção de vinho de talha que já lhe rendeu umterceiro lugar no concurso de vinhos de ta-lha da Vitifrades, em 2008, e várias men-
ções honrosas no mesmo certame. "Aindafazemos aí um tarecozito, para não se per-der a tradição. A gente chama-lhe tareco,
que quer dizer talha", explica, abafado pe-los trinados do canário que compete pela
atenção das visitas, pendurado ao lado do
lavatório. A linha de montagem, por assim
dizer, guarda-a na segunda divisão da ta-
berna, onde se avistam umas quantas talhas
devidamente tapadas e o produto final ver-tido em variadíssimos garrafões de cinco li-
tros e ierricãs.O sino da igreja matriz repica as quatro
da tarde e o único cliente da casa, chegadohá minutos, mantém-se sozinho ao balcão.
Pede um copo de três de branco, que se-
gura carinhosamente na mão enrugada.Francisco Fitas aproveita a folga para co-
mentar o espólio acumulado: "A minha casa
é muito falada, sim. Causam admiração os
objetos que eu tenho aí nas paredes. Há pes-soas que gostam de ver e um traz o outro e
vêm passeando. Turistas, não. Lá vem uma
pessoa ou outra de fora mas isso não signi-fica grande coisa". Entre as relíquias estão
também fotografias antigas do grupo co-ral Os Ceifeiros de Cuba, a dividir espaço na
parede com um calendário trazido por um
primo da outra Cuba, a ilha das Caraíbas,onde se pode ver Che Guevara em várias ex-
pressões, captado a preto e branco. "Faz-me
um bocadinho de admiração", confessa, e
retorna ao tema do cante, que em temposfez reunir muitos convivas naquela casa. "As
pessoas vão-se privando, já não há condi-
ções. E então já se vão perdendo também es-
ses hábitos. O pessoal está todo descontente
e quando isso acontece as coisas já não fun-cionam da mesma maneira. Dantes, juntá-vamo-nos aos grupos e cantava-se a moda.
Ainda acontece, mas raramente. Lá surgeuma vez, salteada, mas isso. . .", lamenta.
Sem clientela, Francisco arranca na mo-toreta para fazer recados. Quando regressa,encontra o neto e apresenta-o, orgulhoso.Acredita na juventude, gosta de saber, porexemplo, que tem dois "colegas" novos a to-
mar conta do vizinho Arrufa e que há al-
guém a "conservar as tradições" e a "pensarno futuro". Pela parte que lhe toca, aos 63
anos, vai apenas "aguentando a vida" e aju-dando como pode filhas e netos. "Vou-me
empatando aqui, até que se possa. Prejuízonão dá, que eu vou tapando os buracos com
a reforma", conclui. E o que mais importarevelam-no as tais décimas, cujo mote as-
sim diz: "Atrás deste balcão/A minha vida
eu passei/A felicidade que tenho/É dos ami-
gos que criei".
Sem nenhum letreiro
que a identifique na
rua, a Taberna Museu
de Francisco Fitas
ganhou esta designação
graças ao gosto pelocolecionismo do
homem que arrenda o
espaço há 23 anos e
que, paulatinamente,foi forrando paredescom cangas, arados,
picadeiras, medidas
e outros objetos do
mundo agrícola
Ainda ontem estava ali um senhor a contar
histórias do antigamente a duas raparigas
novas, e a cantarem modas. E eu a pensar:
estamos mesmo a conseguir o que queríamos".
Vera Beiçudo
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