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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Simone Bueno
O Currículo de Matemática Moldado e Praticado por uma
Professora que atua na Educação de Jovens e Adultos
MESTRADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Simone Bueno
O Currículo de Matemática Moldado e Praticado por uma
Professora que atua na Educação de Jovens e Adultos
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, sob a orientação da Professora Doutora Célia Maria Carolino Pires.
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura ______________________________ Local e Data _______________
Não sei... se a vida é curta ou longa demais pra nós,
mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe,
braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia,
lágrima que corre, olhar que acaricia,
desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais,
mas que seja intensa, verdadeira, pura... enquanto durar..
Cora Coralina
À minha mãe,
Clarice, que sempre foi um exemplo de ser humano, com seu esforço
Luta e dedicação, e que
Apesar de não conhecer o código escrito, conseguiu me ensinar lições
Realmente valiosas que levarei para toda a vida e que serviram como um
Impulso para que eu continuasse e nunca desistisse... lições estas que levarei no meu
Coração assim como todo o carinho e amor por você, portanto neste momento
Eu quero que você, minha mãezinha querida, sinta-se também titulada.
AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Tudo começou com um sonho que aos poucos foi se tornando
realidade. Para torná-lo real, contei com o auxílio de várias
pessoas que me ajudaram nesses dois anos, agradeço a todos
aqueles que contribuíram para a realização desse trabalho.
A Deus, luz espiritual, por tudo o que faz a cada dia em minha vida
e por amparar e iluminar meu caminho
À minha família, em especial meu filho Rafael, razão maior de meu
viver, que me acompanha em todos os momentos, torcendo e
comemorando cada vitória e a meu irmão Alexandre, pelos
diálogos e por “olhar” nossa mãe nesses momentos de ausência
Ao meu amor da alma, Milton César, a quem sempre pude contar
nessa trajetória, por sua paciência, apoio, carinho, amor e por
entender os momentos de ausência, sempre dizendo: estamos
juntos!
À Profª. Drª Célia Maria Carolino Pires, minha orientadora, que
durante todo o tempo acompanhou-me com competência,
compromisso e carinho contribuindo definitivamente para a
concretização deste sonho.
Aos professores examinadores desta pesquisa Profª. Drª. Laurizete
Ferragut Passos e Profª. Drª. Denise Franco Capello Ribeiro pela
leitura criteriosa e importantes observações no Exame de
Qualificação.
Aos colegas do Mestrado, em especial, Douglas Tinti, Ana Paula
Perovano, Mariza Lima, Tatiane Souza, Regina Lúcia, pela
amizade sincera, pelo convívio e incentivo nestes dois anos
Aos colegas do Grupo de Pesquisa e Desenvolvimento Curricular e
Formação de Professores de Matemática, em especial, ao querido
Gilberto Januário, Adriano Vargas Freitas e Kátia Lima, pelas
reflexões e discussões em grupo
Aos professores do Mestrado, em especial Drª. Laurizete Ferragut
Passos, Dr. Amando Traldi Júnior, Drª. Sandra Magina, Dr.
Antônio Carlos Brolezzi, Drª. Sílvia Dias Alcântara Machado e
Drª. Ana Lúcia Manrique, pelo diálogo e contribuição que
contribuíram para meu crescimento acadêmico.
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos que tornou possível
a realização do curso.
Aos professores e alunos da escola investigada, por contribuírem
para que esta dissertação fosse possível.
Aos amigos que durante os momentos mais conturbados foram
colocados em segundo plano, mas compreenderam e tiveram
carinho nesse momento
Muito obrigada!
A Autora
RREESSUUMMOO BUENO, S. O Currículo de Matemática moldado e praticado por uma professora que atua na Educação de Jovens e Adultos. 2012. 160f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Programa de Estudos Pós Graduados em Educação Matemática. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. Nosso estudo tem por objetivo investigar o Currículo de Matemática moldado e praticado por uma professora de Matemática que atua na Educação de Jovens e Adultos e seus conhecimentos profissionais, sob a perspectiva do currículo enculturador. O trabalho é de natureza qualitativa, caracteriza-se como estudo de caso. Baseia-se em trabalhos acerca do Currículo de Matemática, da perspectiva cultural da Matemática e do currículo enculturador, tendo como referencial teórico Alan Bishop, estudos de Célia Pires, no que diz respeito à organização curricular e Ole Skovsmose, no que se refere a critérios de escolha dos contextos dentro de um ambiente de aprendizagem matemática. Nosso foco estava relacionado com a postura da professora, ao selecionar e desenvolver os conteúdos propostos. Notamos que as opções metodológicas contempladas nas atividades propostas, em alguns momentos faziam referência à Matemática pura, e em outros momentos encontramos situações que oportunizavam o paradigma da investigação, pois os alunos assumiram o processo de exploração. Mediante as observações das aulas da professora e com base na categoria de análise que elegemos a partir dos nossos referenciais teóricos, concluímos que, no decorrer da atividade proposta pela professora podemos encontrar situações que favorecem a enculturação matemática. Concluímos também que a professora ao estimular a articulação entre os diversos temas favorece a articulação em rede. Palavras-chave: Currículo de Matemática, Educação de Jovens e Adultos, Enculturação Matemática.
AABBSSTTRRAACCTT
BUENO, S. O Currículo de Matemática moldado e praticado por uma professora que atua na Educação de Jovens e Adultos. 2012. 160f. Dissertation (Masters in Mathematics Education) – Program of Studies Pos-Graduates in Mathematics Education. Pontifical Catholic University of São Paulo. São Paulo.
Our study has the purpose to investigate the Mathematics Curriculum framed and practiced by a math teacher, who works in the Youth and Adults’ Education and theirs professionals knowledge, from the perspective of the enculturation curriculum. The study is the qualitative in nature, characterized as a case’s studies. Based on works on the Mathematics Curriculum in the perspective cultural of Mathematics of the enculturation curriculum, having as theoretical referential Alan Bishop, studies of Celia Pires, with regard to curriculum organization and Ole Skovsmose, that is referred to the criteria choice of contexts within a mathematics learning environment. Our goal was related to the teacher’s attitude, to select and develop the proposed contents. We noticed that the methodologies options contemplated in the proposed activities, sometimes referred to the pure mathematics, and the other times we find situations that optimized the paradigm of research, so the students assumed the exploration process. Through the observations of teachers’ classes and based on the category of analysis, that elected to the ours theory references, we concluded that, in the current activity proposed by the teacher we can find situations that provides the enculturation mathematics. We also conclude that when the teacher stimulated the articulation between several subjects provides the networking articulation. Keywords: Mathematics Curriculum, Youth and Adult Education, Curriculum enculturador.
SSUUMMÁÁRRIIOO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 12
Inserção do trabalho no Grupo de Pesquisa ........................................................ 12
Trajetória profissional e motivações para o desenvolvimento do trabalho ........... 14
Relevância do tema pesquisado ........................................................................... 17
Problematização e Objetivos ................................................................................ 22
Detalhamento dos procedimentos metodológicos ................................................ 25
Estrutura do trabalho ............................................................................................ 31
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 32
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: MARCOS DE SUA TRAJETÓRIA ..................... 32
1.1 Aspectos históricos da Educação de Jovens e Adultos e o panorama atual . 33
1.2 Iniciativas da educação popular e os primeiros profissionais da educação ... 34
1.3 A consolidação da educação de adultos na década de 30 ............................ 38
1.4 A Campanha de Educação de Adultos ........................................................... 40
1.5 Novos paradigmas com o educador Paulo Freire ........................................... 43
1.6 A Educação de Adultos após a Constituição de 1988 .................................... 47
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................. 58
ESPECIFICIDADES DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ....................................... 58
2.1 A especificidade da Educação de Jovens e Adultos no tocante à
formação docente ..........................................................................................
59
2.2 A especificidade da Educação de Jovens e Adultos no tocante ao
ensino da Matemática ....................................................................................
62
2.3 Organização do Currículo ............................................................................... 68
2.4 Critérios para a escolha do contexto matemático ........................................... 72
CAPÍTULO 3 ............................................................................................................. 78
PERSPECTIVA DO CURRÍCULO DE MATEMÁTICA ...................................................... 78
3.1 A Matemática em uma perspectiva cultural .................................................... 79
3.2 O Currículo em uma perspectiva enculturadora ............................................. 81
CAPÍTULO 4 ............................................................................................................. 96
A PESQUISA DE CAMPO REALIZADA: CENÁRIO, ATORES E COLETA DE
INFORMAÇÕES ........................................................................................................
96
4.1 O Cenário da pesquisa ................................................................................... 97
4.2 O perfil dos alunos .......................................................................................... 100
4.3 O perfil da professora ..................................................................................... 102
4.4 Coleta dos dados pela pesquisadora ............................................................. 103
4.5 Roteiro de observação e categorias de análise .............................................. 104
CAPÍTULO 5 ............................................................................................................. 110
DENTRO DA SALA DE AULA .................................................................................... 110
5.1 Descrição da atividade proposta pela professora ........................................... 111
5.2 Descrição do desenvolvimento da atividade ................................................... 112
5.3 Reflexões sobre as observações das atividades e seu desenvolvimento ...... 133
CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................... 144
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 150
ANEXOS .................................................................................................................... 158
A- Roteiro da entrevista com a professora ........................................................... 158
B- Roteiro da entrevista com os alunos ................................................................ 160
12
AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Gostaria muito de mostrar, neste discurso, que caminhos segui;
e de nele representar a minha vida, como num quadro, para
que cada qual a possa julgar; e para que, retirando do comum
rumor as opiniões sobre ele formuladas, isso seja um novo meio
de me instruir, que acrescentarei àqueles de que costumo
servir-me. (RENÉ DESCARTES)
Para que o leitor possa compreender os meus propósitos e os caminhos
trilhados até a realização deste trabalho, farei, inicialmente, uma breve descrição
evidenciando a minha trajetória profissional e as motivações para o
desenvolvimento da pesquisa. Considero pertinente esta apresentação, por
entender que os caminhos trilhados contribuíram para a escolha pela temática de
investigação.
Inserção do trabalho no Grupo de Pesquisa
Nosso trabalho insere-se no grupo de pesquisa “Desenvolvimento
Curricular e Formação de Professores de Matemática”, o qual iniciou seus
trabalhos em 2000, com a finalidade de desenvolver pesquisas sobre o processo
de organização, desenvolvimento e implementação de currículos e sua relação
com o processo de formação e de atuação de professores, focalizando currículos
de Matemática da Educação Básica e da Educação Superior, objetivando
13
contribuir para a construção de conhecimentos numa área que ainda é pouco
explorada na Educação Matemática (PIRES et al., 2011).
Em relação ao currículo de Matemática, sua organização e seu
desenvolvimento constituem o cerne dos projetos de pesquisa do Grupo, dentre
eles o projeto de pesquisa denominado “O currículo de Matemática na Educação
de Jovens e Adultos: dos intervenientes à prática em sala de aula”. Esse Projeto
tem por objetivo investigar o currículo de Matemática relacionado à Educação de
Jovens e Adultos (EJA), considerando os diferentes intervenientes curriculares
destacados por Sacristán (2000), como: documentos oficiais, material didático,
avaliação, planejamento escolar, e a prática do professor ao mediar/promover
situações de aprendizagem.
As discussões no interior do Projeto são direcionadas por questões tais
como: Quais são as recomendações dos documentos oficiais, nas esferas
Federal, Estadual e Municipal, para o ensino da Matemática? Qual é a
Matemática que está sendo ensinada para estudantes dos ensinos Fundamental
II e Médio? Há diferenças e semelhanças entre o currículo recomendado pelas
Secretarias Federal, Estadual e Municipal, nessa modalidade? Em caso
afirmativo, quais são? Os materiais didáticos desenvolvidos para esse alunado
estão de acordo com as recomendações oficiais? De que modo se dá a prática do
professor ao mediar/promover situações de aprendizagem matemática?1
Nessa perspectiva, o olhar investigativo presente nesta pesquisa estará
direcionado à prática do professor de Matemática da Educação de Jovens e
Adultos, ao mediar/promover situações de aprendizagem. A partir deste ponto
será utilizada a sigla EJA com referência à Educação de Jovens e Adultos.
No tópico a seguir situaremos nossa trajetória profissional e as motivações
para o desenvolvimento da pesquisa, assim como a relevância, os objetivos, a
metodologia adotada e faremos um panorama do modo pelo qual a pesquisa está
estruturada.
_____________ 1 Em busca de ampliar o debate e responder essas questões, compõem o Projeto outras três pesquisas: (i)
Adriano Vargas Freitas: O estado da arte da Educação de Jovens e Adultos (Doutorado); (ii) Kátia Cristina Lima Santana: Currículo de Matemática da Educação de Jovens e Adultos: uma análise baseada em livros didáticos (Mestrado); e (iii) Gilberto Januario: Currículo de Matemática da Educação de Jovens e Adultos: análise de prescrições na perspectiva cultural da Matemática (Mestrado).
14
Trajetória profissional e motivações para o desenvolvimento do trabalho
Minha trajetória profissional em Educação começou ao ingressar como
professora numa escola pública de São Paulo, em 1992, ministrando aulas de
Matemática para o Ensino Fundamental e Ensino Médio, na modalidade Ensino
Regular2.
Meu primeiro contato com a Educação de Jovens e Adultos (EJA)
aconteceu paralelamente ao início de minha carreira no magistério. Ao ingressar
na carreira docente, comecei a incentivar minha mãe para que voltasse a estudar
e concluísse os estudos, realizando um antigo sonho seu que era o de saber ler e
escrever corretamente, tendo em vista que o pouco conhecimento escolar
construído com relação à leitura e à escrita, foi devido a dois anos em que
permanecera no Mobral3, mas que por dificuldades de conciliação com seu
emprego, optou por interromper. No meu entender, esse momento foi muito mais
que a realização de um sonho, representou a legitimação de um direito seu, que
lhe havia sido negado desde criança.
Lembro-me de que, em alguns finais de semana, um grupo de senhoras,
colegas de classe de minha mãe, se reunia em casa para estudar, e coube a mim
a tarefa de auxiliar, esclarecendo algumas dúvidas. Percebi que a trajetória
escolar de minha mãe juntava-se à trajetória de muitas pessoas que, assim como
ela, tiveram negado o seu direito de acesso à educação. No caso de minha mãe,
ela foi impossibilitada de iniciar seus estudos, pois seu pai considerava
“desperdício de tempo mulher estudar” e, portanto, todas as manhãs, seguia
juntamente com seu pai e sua irmã para trabalhar na roça. A partir dessa
experiência, percebi o quanto os adultos se sentiam excluídos da sociedade, o
quanto o estudo era importante para poder viver numa sociedade cerceada por
materiais escritos, onde o saber letrado é altamente valorizado e o quanto o
sistema educacional em nosso país é caracterizado por históricas desigualdades.
_____________ 2 Nesta Dissertação, por falta de termo apropriado, será utilizado a denominação Ensino Regular, para fazer
referência ao ensino de crianças e adolescentes, embora tenha consciência de que a EJA também se constitui uma modalidade regular de ensino, conforme estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996).
3 O Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), foi criado pela Lei nº. 5.379, de 15 de dezembro de 1967, propondo a alfabetização funcional, e, principalmente, a educação continuada de adolescentes e adultos.
15
Muitas vezes durante os encontros, gostava de perguntar sobre suas
trajetórias de vida, saber quais foram as motivações que fizeram com que
retomassem o estudo, objetivando me aproximar e conhecer um pouco mais
sobre as características daquele grupo, para nortear melhor o meu trabalho com
ele.
Acompanhei esse grupo de estudo até concluírem o Ensino Fundamental I,
e acredito ter sido nesse momento que o interesse pela educação de pessoas
jovens e adultas ficou latente em mim. Porém, algumas questões relacionadas à
necessidade de um currículo de Matemática próprio e a ausência de materiais
para essa modalidade de ensino me inquietavam, motivando-me, anos mais
tarde, a lecionar também para essa modalidade na rede pública de ensino.
Os diálogos com esse grupo e, posteriormente, as observações em sala de
aula possibilitaram-me identificar os sentimentos e a visão daqueles alunos em
relação à Matemática. São alunos que reconhecem essa disciplina como
fundamental para sua formação, que percebem a presença dos seus conceitos
nas diversas atividades desenvolvidas em seu cotidiano, seja no trabalho, no
lazer ou nas relações sociais e sentem que, em cada uma dessas esferas,
emerge a necessidade de raciocínios matemáticos postos por circunstâncias
determinadas.
Penso ser relevante destacar que, em minha prática pedagógica, não
diferente da de outros colegas de profissão, tenho identificado as dificuldades e
defasagens que os alunos apresentam frente aos conteúdos matemáticos
propostos pelo currículo tanto no Ensino Regular como na EJA. Embora encontre
esse perfil de aluno em ambas as modalidades de ensino, as turmas de EJA têm
chamado minha atenção.
São alunos que não tiveram oportunidades educacionais em idade própria,
ou que a tiveram de forma insuficiente e que retornam à escola para que
pudessem sentir-se incluídos e respeitados na sociedade. Muitas vezes,
emergiam algumas reflexões referentes à constituição de minha postura docente
frente ao tratamento dado ao currículo de Matemática, praticado nas turmas de
EJA, pois, considerando as particularidades dos alunos, que trazem para a sala
de aula suas trajetórias e experiências de vida, qual seria o currículo de
16
Matemática adequado para trabalhar com essa modalidade de ensino? A
preocupação devia-se ao fato de que o currículo do ensino regular não contempla
as particularidades dos alunos dessa modalidade de ensino, pois são concebidos
para crianças e adolescentes que não interromperam os seus estudos e que
apresentam objetivos de vida diferentes dos jovens e adultos.
Em relação aos jovens e adultos, é fundamental levar em consideração os
conceitos decorrentes de suas vivências e suas experiências sociais; muitos,
inclusive, já adentraram o mundo do trabalho, e apresentam noções matemáticas
aprendidas de maneira informal ou intuitiva, antes mesmo de ter contato com as
representações simbólicas convencionais.
Essas constatações, identificadas durante meu percurso como docente,
influenciaram de forma significativa na escolha do tema dessa pesquisa, pois
muitos outros questionamentos foram despertados e foram também essas
inquietações que me levaram a buscar um curso de especialização em Educação
Matemática, aproximando-me do Grupo de Pesquisa “Desenvolvimento Curricular
e Formação de Professores de Matemática”, do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP).
O contato com o Grupo possibilitou a oportunidade de entender, por meio
de pesquisa, o processo de organização e desenvolvimento curricular de
Matemática para a EJA. Desse modo, minhas inquietações coadunam-se com o
propósito do Projeto “O currículo de Matemática na Educação de Jovens e
Adultos: dos intervenientes à prática em sala de aula”.
Pires et al. (2011) esclarecem que o conjunto de pesquisas realizadas no
Grupo aponta os documentos oficiais que norteiam e orientam o currículo para a
Educação Básica, especialmente as Diretrizes Curriculares Nacionais e os
Parâmetros Curriculares Nacionais, enquanto principais agentes de fomento à
discussão sobre o currículo.
Aparecem, nesse cenário, as discussões referentes à EJA, o que instigou a
elaboração desse Projeto, o qual visa
17
investigar o currículo de Matemática relacionado à EJA, a partir de um
estudo dos diferentes intervenientes curriculares: documentos oficiais,
material didático, avaliação, planejamento escolar, uso das tecnologias e
formação do professor. (PIRES et al., 2011, p. 90).
O material didático, dentre os intervenientes destacados, corresponde a
qualquer tipo de apoio de que o professor dispõe para mediar/promover
processos de aprendizagem, por exemplo: apostilas, livro didático, paradidático,
computador, calculadora, jogos, entre outros. Nesse cenário de investigação, o
modo como o professor utiliza esses materiais, seleciona e desenvolve as
atividades para promover a aprendizagem tem instigado meus questionamentos.
Considero ser relevante destacar ter optado por uma apresentação com
ênfase na primeira pessoa do singular devido à necessidade de comunicar uma
experiência muito particular, a qual deu origem ao trabalho. A partir desse
momento adotarei, na maior parte da dissertação, a primeira pessoa do plural, por
melhor expressar a cooperação mútua entre orientanda e orientadora, produzindo
um efeito de vínculo entre nossas ideias, que acaba por convergir para uma
escrita coletiva.
Desse modo, considerando minhas inquietações e as questões de
pesquisa inseridas do Projeto nosso olhar investigativo está direcionado para a
prática pedagógica do professor de Matemática que atua na Educação de Jovens
e Adultos.
Nessa perspectiva, nosso estudo caracteriza-se pelo currículo de
Matemática em ação na Educação de Jovens e Adultos.
Relevância do tema pesquisado
Estudos no campo do currículo, como os de Pires (2004, 2008), Bishop
(1999), Pacheco (1996), Sacristán (2000), Doll Jr. (2002), Roldão (1999),
Kilpatrick (1994), revelam que diferentes pesquisadores têm se debruçado sobre
esse tema, apontando uma vasta literatura sobre as origens e definições do termo
18
ao longo do tempo, o que possibilita ampliar e diversificar cada vez mais estudos
nesse campo.
No entender de Pires (2008), os estudos sobre currículos de Matemática
“revelam que o processo de organização e desenvolvimento curricular evidencia
uma busca contínua de formas mais interessantes de trabalhar a Matemática em
sala de aula” (p. 14).
Em relação ao Brasil, Fiorentini e Lorenzato (2006) expõem que estudos
evidenciam um aumento no número de pesquisas em Educação Matemática, que
têm o currículo de Matemática como a temática de discussão. Os autores fazem
referência, também, ao texto do educador e pesquisador Jeremy Kilpatrick4
(1994), no qual currículo é identificado como uma das sete tendências de estudo
em Educação Matemática na década de 905.
Passada uma década, Pires (2004) expõe a necessidade de se ampliarem
as pesquisas sobre currículo de Matemática para os diferentes níveis de ensino.
Bishop (1999) destaca que o projeto curricular matemático surge, enquanto
novo fenômeno na Educação Matemática, nas décadas de 50 e 60. Embora,
atualmente, seja conhecido por educadores, antes desses projetos, o programa
matemático era o principal referencial curricular, sendo constituído de listas de
temas a serem desenvolvidos de modo cronológico e lógico.
No entender de Sacristán, (2000),
o currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um
modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das
crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explicita do projeto
de socialização cultural nas escolas. É uma prática, expressão, da função
socializadora e cultural que determinada instituição tem, que reagrupa em
torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas, entre as quais se
encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que
comumente chamamos de ensino. O currículo é uma prática na qual se
_____________ 4 KILPATRICK, J. Investigacion em Educación matemática: su historia y alguns temas de actualidad. In:
KILPATRICK, J.; RICO, L.; GÓMEZ, P. (Eds.). Educación Matemática. México: Grupo Editorial Iberoamérica & uma empresa docente, 1994. p. 1-18.
5 As sete tendências de pesquisas descritas por Kilpatrick são (1) Processo ensino-aprendizagem da Matemática; (2) Mudanças curriculares; (3) Utilização de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) no ensino e na aprendizagem de Matemática; (4) Prática docente, crenças, concepções e saberes práticos; (5) Conhecimentos e formação/desenvolvimento profissional do professor; (6) Praticas de avaliação; (7) Contexto sociocultural e político do ensino-aprendizagem da matemática.
19
estabelece diálogo, por assim dizer, entre agentes sociais, elementos técnicos,
alunos que reagem frente a ele, professores que o modelam. (SACRISTAN,
2000, p. 15-16),
Do ponto de vista de Pacheco (1996), o currículo é entendido como “o
conjunto das experiências vividas pelos alunos dentro do contexto escolar, ora
como um propósito bastante flexível que permanece aberto e dependente das
condições da sua aplicação” (p. 17).
Embora seja citado entre os professores, poucos demonstram ter clareza
conceitual de currículo, concebendo-o por uma lista de conteúdos a serem
trabalhados em um determinado período letivo. Disso implica que o
desenvolvimento curricular torna-se uma tarefa complexa.
A prática a que se refere o currículo, no entanto, é uma realidade prévia
muito bem estabelecida através de comportamentos didáticos, políticos,
administrativos, econômicos, etc., atrás dos quais se encobrem muitos
pressupostos, teorias parciais, esquemas de nacionalidade, crenças,
valores, etc., que condicionam a teorização sobre o currículo.
(SACRISTÁN, 2000, p. 13)
No entanto, outros fatores podem intervir no processo de elaboração e
organização do currículo, dentre os quais o material didático, a formação do
professor e as avaliações institucionais.
Mesmo sendo fundamental ao docente o entendimento conceitual de
currículo, Roldão (1999) expõe que o currículo, na linguagem do senso comum,
vem associado a programas e a disciplinas. Essa questão provoca a reflexão
sobre a prática pedagógica do profissional frente à seleção de material didático, e
a postura metodológica ao trabalhar os conteúdos abordados nos currículo
prescrito, apresentado e moldado.
A esse respeito, no entender de Pires (2004), “embora o conceito de
currículo seja muito mais amplo do que a simples discussão em torno de
conteúdos escolares, um dos grandes desafios da tarefa docente consiste
exatamente em selecioná-los e organizá-los” (p. 30).
20
Em relação à organização e ao desenvolvimento do currículo, Doll Jr.
(2002) propõe que este possua experiências ricas e que promovam uma
formação crítica, reflexiva e transformadora. Nesse sentido, o autor aponta quatro
termos que devem apresentar um currículo e que servem de critérios de escolha
dos conteúdos: riqueza, recursão, relações e rigor6.
Em relação à responsabilidade do professor frente à dinâmica curricular,
considerando as especificidades do público jovem e adulto, encontramos na
Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos, a afirmação de que
É preciso que o professor esteja atento para não encarar essas
especificidades como algo negativo, mas entendê-las e respeitá-las, a fim
de que os alunos possam realmente se sentir participantes e membros da
comunidade escolar. (BRASIL, 2002a, p. 88)
Desse modo, tanto a questão dos conteúdos como a questão da autonomia
do professor colocam-no como o planejador do currículo, sendo que, no entender
de Sacristán (2000), é fundamental que o professor se questione sobre critérios
de escolha para organizar e desenvolver os conteúdos propostos. A organização
e o desenvolvimento curricular devem ser diferenciados a cada nível e
modalidade de ensino, assumindo funções por meio de seu desenvolvimento e
atentando-se para a sua função social.
Portanto, a organização e o desenvolvimento curricular de Matemática, por
exemplo, devem ser concebidos de formas diferenciadas, ao focar a Educação
Básica (educação infantil, ensino fundamental e médio); os níveis (regular e
educação de jovens e adultos); e o ensino superior (bacharelado, licenciatura,
tecnólogo e afins).
O modo diferenciado de conceber o currículo pressupõe que se organizem
e desenvolvam conteúdos que atendam às particularidades e às perspectivas dos
diferenciados públicos, até porque, quando nos reportamos à EJA, é necessário
que se considerem suas particularidades. Portanto, a aquisição de novos
conhecimentos precisa considerar os conhecimentos prévios dos alunos, partindo
_____________ 6 Ao investigar sobre critérios de escolha dos conteúdos matemáticos para o Ensino Médio, Silva (2009)
ampliou os termos destacados por Doll Jr. (1997) e complementou com outros quatros critérios: reflexão, realidade, responsabilidade e ressignificação.
21
dos conceitos decorrentes de suas vivências, suas interações sociais e sua
experiência pessoal.
A Proposta Curricular de Matemática para a EJA propicia reflexão sobre o
currículo para essa modalidade de ensino, ao considerar que
o acesso à escolaridade deve proporcionar aos alunos jovens e adultos,
inseridos em uma sociedade letrada, a possibilidade de analisar, criticar e
enfrentar questões que fazem parte de seu contexto. Mas isso não basta. É
preciso também contribuir para sua formação intelectual, estimulando seu
pensamento, seu raciocínio, para que possam transferir aprendizagens de
uma situação a outra, abstraindo propriedades, fazendo generalizações,
usando conhecimentos em novos contextos. (BRASIL, 2002a, p. 89)
Ao levar em consideração a especificidade desse público, no que tange à
contribuição para a valorização da pluralidade sociocultural, é necessário criar
condições para que os alunos transformem o ambiente em que vivem, participem
mais ativamente no mundo do trabalho, das relações sociais, da política e da
cultura. Nessa perspectiva, a Proposta Curricular propõe que um currículo que
atenda a essa modalidade de ensino, o qual, no seu entender, deve ser “flexível,
diversificado e participativo, definido a partir das necessidades e dos interesses
dos alunos, levando-se em consideração sua realidade sociocultural, científica e
tecnológica e reconhecendo o seu saber”. (BRASIL, 2002a, p. 120).
Do mesmo modo, em reconhecimento às especificidades do grupo de
alunos da EJA, em 2010 foi criado o Programa Nacional do Livro Didático para a
modalidade Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA), o qual avaliou e aprovou
duas coleções de livros didáticos para serem implementados em 2011. O PNLD-
EJA incorporou o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de
Jovens e Adultos (PNLA) e ampliou o atendimento, incluindo o primeiro e o
segundo segmentos de EJA, que correspondem aos anos iniciais e finais do
ensino fundamental.
Portanto, quando nos referimos à organização e ao desenvolvimento
curricular, o papel do professor frente ao currículo é determinante no processo de
ensino-aprendizagem e, em especial, quando nos reportamos à EJA, que possui
especificidades diferentes do ensino regular, pois é o docente quem fará a
22
transposição do currículo apresentado em currículo praticado pelos alunos. No
caso EJA, especialmente, é necessário que o professor considere suas
particularidades.
Nessa perspectiva de dinâmica curricular, Bishop (1988, 1999) contribui, ao
propor que o currículo promova a enculturação matemática7. Também
compartilhamos das ideias desse autor sobre o modelo enculturador do currículo,
ação essa que possibilita aos alunos construírem a aprendizagem matemática de
modo reflexivo e significativo.
Problematização e Objetivos
Ao delinear o cenário em que se insere a EJA, muitos fatores contribuíram
para uma mudança de paradigma no campo da concepção assistencialista, para
uma abordagem que considera a educação como um direito de todos a ser
vivenciado ao longo da vida e nos mais diversificados ambientes sociais.
Diante desse cenário, Traldi Jr. et al. (2011) evidenciam que, nos últimos
anos, as pesquisas desenvolvidas em Educação Matemática têm contribuído para
ampliar as discussões e as reflexões em relação ao ensino de Matemática para a
EJA. A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional
(LDB) – Lei nº 9394/96 e da Resolução CNE/CEB Nº 1, que institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2000) tem
impulsionado esses estudos.
Santana et al. (2011) realizaram um levantamento das temáticas
investigadas em relação a essa modalidade de ensino em seis programas de pós-
graduação, três periódicos da área, anais das últimas cinco Reuniões da
Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd), anais do III Simpósio
Internacional de Pesquisas em Educação Matemática e anais do X Encontro
Nacional de Educação Matemática. Os dados coletados revelam que, em boa
parte, os estudos realizados, tendo enquanto temática a EJA, evidenciam os
conhecimentos pré-escolares apresentados pelos alunos; as políticas públicas; o _____________ 7 A Enculturação Matemática será abordada no Capítulo 3.
23
currículo de Matemática; a prática docente; a formação inicial e/ou continuada de
professores de Matemática; experiências de ensino-aprendizagem; práticas de
numeramento e histórico das trajetórias curriculares.
Dentre o conjunto dessas pesquisam que versam sobre o currículo de
Matemática, não há discussão que contribua para a organização e o
desenvolvimento dos conteúdos; não apresentam critérios para a seleção de
material didático e não apresentam dados que promovam a reflexão do professor
ao mediar/promover processos de aprendizagem com o livro didático.
O aluno da EJA muitas vezes vivencia experiências de exclusão,
principalmente no que diz respeito ao acesso a bens culturais e materiais
produzidos pela sociedade. Por meio da escolarização, esse aluno busca
construir estratégias que lhe permitam reverter esse processo. Desse modo, em
relação às características desse público, a Proposta Curricular para a Educação
de Jovens e Adultos considera que
os alunos jovens e adultos fazem parte de uma demanda peculiar, com
características específicas, pois muitas vezes estão inseridos no mundo do
trabalho e suas experiências pessoais, bem como sua participação social,
não são iguais às de uma criança. É preciso que o professor esteja atento
para não encarar essas especificidades como algo negativo, mas entendê-
las e respeitá-las, a fim de que os alunos possam realmente se sentir
participantes e membros da comunidade escolar. (BRASIL, 2002a, p. 88)
Nesse contexto é necessário que o educador da EJA problematize a
realidade em que se encontram inseridos esses alunos, compreendendo melhor o
aluno em sua realidade diária e levando-o a refletir sobre os conhecimentos
adquiridos em sala de aula, buscando seu crescimento pessoal e profissional.
Mais importante do que preocupar-se em reduzir os índices de analfabetismo, é
assegurar aos alunos da EJA equidade de direitos e qualidade na educação,
como previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e
Adultos, considerando que ela tem como funções: reparar, qualificar e equalizar o
ensino. Nessa perspectiva, é necessário que a escola assuma uma função
reparadora de uma realidade injusta, que não deu oportunidade nem
direito de escolarização a tantas pessoas. Ela deve também contemplar o
aspecto equalizador, possibilitando novas inserções no mundo do
24
trabalho, na vida social, nos espaços de estética e na abertura de canais de
participação. Mas há ainda outra função a ser desempenhada: a
qualificadora, com apelo à formação permanente, voltada para a
solidariedade, a igualdade e a diversidade. (BRASIL, 2002a, p. 87)
Independente da margem de independência que é conferida ao professor
frente ao currículo, no entender de Canavarro e Ponte (2005) ele é o protagonista.
Portanto, cabe ao professor, a tarefa de avaliar o currículo oficial, criticar o
currículo apresentado, elaborar o currículo planejado, efetivar o currículo
praticado e utilizar, da melhor forma, o currículo avaliado.
Nessa perspectiva, pautamo-nos na seguinte questão diretriz: DE QUE MODO
O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA É PRATICADO PELO PROFESSOR EM UMA TURMA DA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS?
Ao delimitar nosso problema de pesquisa nos propomos a investigar as
seguintes questões:
• Quais elementos enculturadores estão presentes no currículo praticado
por esse professor?
• Ao selecionar e organizar os conteúdos, de que modo estimula o
desenvolvimento dos conceitos matemáticos?
• Nas interações em sala de aula, quais opções metodológicas são
contempladas?
A partir dos dados coletados e da análise realizada, esperamos que os
resultados obtidos possam ser traduzidos em propostas que orientem e fomentem
a reflexão do professor frente ao currículo de Matemática para a EJA, e desse
modo, possam contribuir para um processo reflexivo na formação inicial,
continuada ou em curso de professos que ensinam/mediam processos de
aprendizagem matemática para jovens e adultos.
Em busca de responder nossa questão de pesquisa e discorrer sobre o
currículo de Matemática para a EJA na perspectiva cultural, utilizaremos os
conceitos e ideias de Alan Bishop acerca da Matemática como fenômeno cultural
e o processo de enculturação matemática, as ideias de Célia Pires referentes à
25
organização curricular, e no que se refere aos critérios para escolha de contextos
matemáticos, os estudos de Ole Skovsmose.
Detalhamento dos procedimentos metodológicos
Entendemos que pesquisar é dedicar-se na investigação à procura de
respostas às indagações propostas, encontrando informações que possam
contrapor-se às inquietações a respeito de algum tema; é a busca de respaldo
para pensamentos e afirmações. Nesse sentido, o fruto da investigação é a
produção de um corpo de conhecimento que transcende o “entendimento
imediato na explicação ou na compreensão da realidade que observamos”.
(GATTI, 2002, p. 9).
De acordo com Gatti (2002, p. 09), “num sentido mais estrito, visando à
criação de um corpo de conhecimentos sobre um certo assunto, o ato de
pesquisar deve apresentar certas características específicas”, evidenciando a
importância de critérios de escolhas dos procedimentos que subsidiarão a análise
e a interpretação das informações coletadas no processo da pesquisa, uma vez
que os resultados vão ao encontro não só de quem pesquisa, mas de um grupo
que compartilha as mesmas inquietações, além de outros pesquisadores que
poderão tomar esses resultados enquanto ponto de partida para novas
investigações.
A pesquisa pressupõe um processo de aprendizagem não apenas para
quem a realiza, mas também para a sociedade na qual ela se desenvolve,
configurando como um importante instrumento para a compreensão da realidade,
oportunizando um melhor entendimento das situações que nos rodeiam e que,
muitas vezes, não entendemos, auxiliando-nos, portanto, na compreensão dessa
realidade, ao que Gatti (2002, p. 33) assevera “a pesquisa nos serve acima de
tudo para dar uma base de entendimento sobre uma realidade e a partir disso
transformá-la”.
Para que a pergunta-diretriz, que me conduzirá nesse estudo possa ser
respondida, a investigação se dará por meio de pesquisa de abordagem
26
qualitativa, do tipo estudo de caso. Bogdan e Biklen (1994) descrevem esse tipo
de pesquisa enquanto uma “[...] metodologia de investigação que enfatiza a
descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais”
(p. 11) em que “as questões a investigar não se estabelecem mediante a
operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objetivo de
investigar os fenômenos em toda sua complexidade e em contexto natural” (p.
16). Esses autores descrevem cinco características que contemplam uma
pesquisa qualitativa:
na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal; A investigação
qualitativa é descritiva (ou seja, os resultados colhidos são em forma de
palavras ou imagens e não de números); Os investigadores qualitativos
interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados
ou produtos; Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus
dados de forma indutiva; O significado é de importância vital na
abordagem qualitativa. (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 47)
Além disso, a abordagem qualitativa “busca investigar e interpretar o caso
como um todo orgânico, uma unidade em ação com dinâmica própria, mas que
guarda forte relação com seu entorno ou contexto sociocultural” (FIORENTINI e
LORENZATO, 2006, p. 110).
No caminho traçado neste trabalho procuramos contemplar as cinco
características, ou parte delas, identificadas por Bogdan e Biklen (1994), em uma
pesquisa qualitativa:
• a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador
o instrumento principal;
• os dados recolhidos são em sua essência descritivos, em forma de
palavra ou imagens;
• os investigadores qualitativos interessam-se mais pelos processos do
que pelos resultados ou produtos;
• os investigadores qualitativos tendem a analisar os dados de forma
indutiva;
• o significado é de importância vital para o ponto de vista dos
participantes.
27
No entender de Trivinõs (1987) uma das características da pesquisa de
natureza qualitativa é que ela realça os valores, as crenças, atitudes e opiniões
que ajudam o pesquisador a compreender os fenômenos pesquisados.
Consideramos importante a modalidade estudo de caso, pois, em nosso
estudo, a escolha por essa modalidade se deve a algumas características desta
pesquisa. Primeiramente, por ser uma pesquisa de campo; segundo, por estar
com o olhar voltado para a observação da aula de uma professora em uma
determinada turma da EJA; terceiro, por ser um caminho que possibilita um
estudo mais aprofundado.
No entender de Lüdke e André (1986) a pesquisa do tipo estudo de caso
pode ser caracterizada pelo estudo de uma situação bem delimitada, podendo
focalizar a realidade de forma complexa e contextualizada, de modo a trazer
aspectos que visam à descoberta de novos sentidos, ou seja, o pesquisador deve
estar atento a novas situações que possam surgir no decorrer da pesquisa, sendo
nesse sentido essencial ter o conhecimento como algo inacabado e em contínua
construção.
Na perspectiva de responder as questões de pesquisa, os dados foram
coletados a partir de trabalho de campo, tendo como espaço de investigação as
aulas de uma professora que atua no 9º ano do Ensino Fundamental II, da
Educação de Jovens e Adultos, cujas aulas ocorrem no turno noturno, em uma
escola da Rede Estadual de Ensino de São Paulo, localizada na região do ABC8.
No entender de Fiorentini e Lorenzato (2006) o trabalho de campo
constitui-se uma opção importante ao considerar que “fornece elementos que nos
permitem compreendê-la e, então transformá-la” (p. 101). Em nosso estudo, o
trabalho de campo possibilita um mergulho no universo da sala de aula de uma
turma de EJA, procurando absorver as informações dos pormenores relativos à
prática pedagógica do professor, frente ao currículo em ação. Nosso olhar nesse
campo de investigação será orientado pelas nossas questões e pelo que
pretendemos investigar, no caso, a prática do professor ao mediar/promover
situações de aprendizagem matemática.
_____________ 8 Região metropolitana da grande São Paulo: Santo André, São Bernardo e São Caetano.
28
Para alcançar os objetivos propostos no trabalho, procuramos utilizar
diversas formas de coletas de dados, pois enriquecem a análise e revelam de
forma mais ampla o fenômeno pesquisado. Neste sentido, utilizamos como
instrumentos de coleta de dados, entrevistas, questionários, observações e diário
de bordo.
Utilizamos, como um dos instrumentos de coleta de dados, a entrevista
com a professora, por ser, dentre as técnicas de interrogação, a que apresenta
maior flexibilidade. No entender de Bogdan e Biklen (1994) a entrevista “consiste
numa conversa intencional, geralmente entre duas pessoas, embora por vezes
possa envolver mais pessoas, dirigida por uma das pessoas, com o objetivo de
obter informações sobre a outra” (p. 134). No nosso caso, utilizamos a entrevista
como estratégia para coletar os dados, os quais utilizamos, em conjunto com a
observação.
Também corroboramos as ideias desses autores ao afirmarem que “a
entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do próprio
sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a
maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (BOGDAN e BIKLEN,
1994, p. 134).
Optamos, também, pela realização de entrevistas semiestruturadas, por
serem as que melhor atendem nossos propósitos, a qual segundo Fiorentini e
Lorenzato (2006) “pretendendo aprofundar-se sobre um fenômeno ou questão
específica, organiza um roteiro de pontos a serem contemplados durante a
entrevista, podendo, de acordo com o desenvolvimento da entrevista, alterar a
ordem deles e, até mesmo, formular questões não previstas inicialmente” (p. 121).
No intuito de uma fonte complementar de informações, utilizamos
questionários com perguntas mistas, combinando parte com perguntas fechadas
e parte com perguntas abertas. Portanto, através desse instrumento podemos
coletar um número mais ou menos elevado de respostas, o que possibilita obter
informações acerca do que a professora sabe, de suas crenças e expectativas, e
as situações vivenciadas. Desse modo, combinamos perguntas fechadas e
abertas. As questões fechadas apresentam um conjunto de perguntas com
alternativas de respostas para que o respondente possa escolher a que melhor
29
representa a sua situação; com perguntas abertas, quando nos interessamos em
colher dados mais minuciosos, disponibilizamos um espaço em branco para
escrever a resposta sem qualquer restrição. Esse instrumento de coleta de
informações seguiu um roteiro previamente elaborado, sendo utilizado para
coletar informações relativas aos alunos, estrutura escolar e perfil da professora.
Por meio das observações, pudemos acompanhar de perto e compreender
melhor as perspectivas não exteriorizáveis, que poderiam ocorrer por meio de
uma conversa, ou mesmo de um relatório. A observação possibilitou perceber os
fatos diretamente e sem intermediações. Desse modo, no entender de Ludke e
André (1986, p. 26), a observação propicia “um contato pessoal e estreito do
pesquisador com o fenômeno pesquisado”.
Após a coleta de dados por meio da observação, procedemos a uma
análise e à interpretação do material coletado, o que conferiu a sistematização e o
controle necessários para a análise dos dados.
Durante o trabalho de campo utilizamos o diário de bordo, pois, segundo
Fiorentini e Lorenzato (2006) este se configura “como um dos instrumentos mais
ricos de coleta de informações”, pois é onde pesquisador registra as “observações
de fenômenos, faz descrições de pessoas e cenários, descreve episódios ou
retrata diálogos” (p. 118).
Bogdan e Biklen (1994) evidenciam que, no diário de bordo, o investigador
registra as notas retiradas das suas observações no campo; essas notas,
portanto, configuram-se como sendo “o relato escrito daquilo que o investigador
ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados
de um estudo qualitativo” (p. 150).
Segundo Fiorentini e Lorenzato (2006), os diários podem conter uma dupla
perspectiva: uma descritiva e outra interpretativa. No nosso caso, optamos por
contemplar as duas perspectivas, e, assim, utilizamos o diário de bordo para
registrar as informações diárias e todos os acontecimentos importantes
relacionados com a pesquisa. Numa perspectiva descritiva com nosso olhar
voltado aos gestos, atitudes, procedimentos didáticos, ambiente, dinâmica da
prática do professor e descrição dos diálogos, ocorridos em sala de aula. E, numa
perspectiva interpretativa, olhando para a sala de aula e a escola como espaços
30
socioculturais, onde se relacionam professor e aluno, com seus sentimentos,
sonhos e experiências.
Esta focalização do olhar é de extrema importância, visto que, frente às
inúmeras possibilidades e aos acontecimentos que surgem em uma sala de aula,
não poderíamos perder o nosso foco e nos afastar de nosso propósito, o que
dificultaria a análise posterior dos dados.
A utilização desses diferentes instrumentos constitui uma forma importante
de obtenção de dados de diferentes tipos, os quais proporcionam a possibilidade
de cruzamento de informação, e posterior análise dos dados coletados.
Para a etapa de análise das informações obtidas no trabalho de campo
utilizamos a categorização dos dados coletados em nossa pesquisa de campo.
No entender de Fiorentini e Lorenzato (2006, p. 134) a categorização pressupõe
“um processo de classificação ou de organização de informações em categorias,
isto é, em classes ou conjuntos que contenham elementos ou características
comuns”. Esses conjuntos devem estar relacionados a uma ideia ou a um
conceito central capaz de abranger todas as categorias.
Em busca de responder nossa questão e discorrer sobre o currículo de
Matemática para a Educação de Jovens e adultos na perspectiva cultural, e com
base nos teóricos utilizados, elegemos seis categorias sendo que para cada uma
delas elaboramos descritores referentes à sua presença ou à sua ausência nos
dados a serem analisados. Essas categorias estão explicitadas no capítulo 4,
tópico 4.5 e referem-se a:
1. Princípios do enfoque cultural do currículo de Matemática
2. Componentes do currículo de enculturação
3. Critérios de seleção de conteúdos
4. Critérios de organização de conteúdos
5. Escolha de contextos
6. Opções metodológicas
Salientamos que o texto foi construído em forma de narrativa. Optamos por
essa forma de escrever devido à maior facilidade com esse gênero textual e, além
31
disso, por esse estilo de escrita possibilitar ao leitor maior aproximação com o
contexto não só da sala de aula da EJA, mas também do próprio universo da
educação de pessoas jovens e adultas.
Estrutura do Trabalho
A dissertação está organizada em cinco capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos alguns aspectos da trajetória da
Educação de Jovens e adultos no Brasil, com a finalidade de situar as novas
discussões sobre essa modalidade no momento atual.
O segundo capítulo refere-se a especificidades da Educação de Jovens e
Adultos, no tocante à formação docente e no tocante ao ensino da Matemática.
Nesse capítulo, são apresentadas as ideias que compõem nosso quadro teórico
com estudos de Célia Pires (2000) referentes à organização do currículo e Ole
Skovsmose (2010), quanto aos critérios para a escolha de contextos
Matemáticos.
No terceiro capítulo, abordamos a concepção do Currículo na perspectiva
cultural, nos fundamentando nas ideias de Bishop (1999), e completando nosso
quadro teórico.
No quarto capítulo, iremos caracterizar, para o leitor, a escola em que a
pesquisa foi realizada, descrever o cenário onde os dados foram coletados, os
atores participantes e a coleta de informações. No último tópico, apresentamos as
categorias de análise.
O quinto capítulo é um mergulho no universo da sala de aula. Nesse
capítulo, fazemos a descrição da atividade proposta pela professora, seu
desenvolvimento e as reflexões sobre as observações que anotamos.
As considerações finais sintetizam nossas conclusões e indicam os
próximos passos a percorrer.
32
CCAAPPÍÍTTUULLOO 11
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: MARCOS DE
SUA TRAJETÓRIA
A alfabetização, concebida como o conhecimento básico,
necessário a todos, num mundo em transformação em sentido
amplo, é um direito humano fundamental. Em toda sociedade, a
alfabetização é uma habilidade primordial em si mesma e um
dos pilares para o desenvolvimento de outras habilidades. (...).
A alfabetização tem também o papel de promover a
participação em atividades sociais, econômicas, políticas e
culturais, além de ser requisito básico para a educação
continuada durante a vida. (Declaração de Hamburgo sobre a
Educação de Adultos, 1997).
Neste capítulo, vamos apresentar alguns aspectos da trajetória da
Educação de Jovens e Adultos no Brasil, com a finalidade de situar as discussões
de hoje sobre essa modalidade no momento atual.
Ao realizar essa retrospectiva, como professora de EJA, e agora
pesquisando o tema, percebi a importância de conhecê-la e a urgente
necessidade de os professores que atuam nessa modalidade se apropriarem
dessa história, assim como das histórias de vida de seus alunos.
33
1.1 Aspectos históricos da Educação de Jovens e Adultos e discussões
atuais
Ao traçar o panorama da educação de jovens e adultos ao longo das
décadas, embora possamos encontrar indícios de atividades educativas no Brasil,
desde a época da colonização, o que podemos observar é que as iniciativas
governamentais no sentido de oferecer educação a jovens e adultos são recentes.
Neste cenário, nos deparamos, também, com a falta de professores para ministrar
aulas para esses alunos. Assim, se num primeiro momento a educação esteve
nas mãos dos religiosos, sendo estes os principais promotores e organizadores
do sistema educacional da época, o que percebemos é que nas décadas
posteriores, a educação desses alunos jovens e adultos esteve nas mãos de
leigos, muitas vezes sendo ministrada em caráter de voluntariado, sendo que os
primeiros profissionais da educação surgiram somente a partir da década de 20.
A pretensão deste capítulo não é reconstruir a trajetória da educação de
jovens e adultos no Brasil, mas fazer uma síntese dos marcos importantes que
contribuíram para a fundamentação dessa modalidade de ensino, entendendo
que o papel docente, nesse sentido, é de fundamental importância no processo
de reingresso desses alunos no sistema educativo.
Ao percorrer a história da EJA, percebemos que ela apresenta variações
ao longo do tempo. As várias campanhas e os movimentos sociais não
conseguiram resolver o problema do analfabetismo no Brasil, assim como suprir a
falta de professores, que persiste ao longo das décadas. Quanto à formação de
docentes para a Educação de Jovens e Adultos, esta é praticamente inexistente,
ou seja, na prática, qualquer professor pode atuar nessa modalidade,
independente de ter sido formado para trabalhar com esse público jovem e adulto.
Talvez esse fato pudesse explicar o motivo pelo qual, no decorrer da
história da EJA, essa tenha sido vista como uma modalidade de educação que
não requer formação específica de seus professores. O histórico de cada época
provocou mudanças nos tipos de programas ofertados a esses alunos jovens e
adultos, refletindo as condições sociais, econômicas e políticas da sociedade.
34
A forma como o movimento da sociedade se reflete na educação pode ser
observada mais claramente sempre que se inicia um período de
transformações e o sistema educacional existente (ou em formação) já
não atende às novas necessidades criadas, necessitando ou de ampliação
urgente ou de movimentos paralelos que preencham as lacunas deixadas
pela organização do ensino vigente. (PAIVA, 2003 p. 29)
1.2 Iniciativas da educação popular e os primeiros profissionais da
educação
Segundo Paiva (2003), a ação educativa no Brasil iniciou-se com a vinda
dos jesuítas, em 1549, os quais desempenhavam o papel de principais
promotores e organizadores do sistema educacional da época. Diante da
impossibilidade de instrução a todas as crianças, eram escolhidos os filhos dos
caciques, mas o ensino era limitado à alfabetização e à catequização. Em relação
ao público adulto, o ensino raramente compreendia a leitura e a escrita,
reduzindo-se à transmissão do idioma que servia como um instrumento de
cristianização e aculturação.
Juntamente com os franciscanos, que também se preocupavam com a
conversão dos indígenas, o ensino abrangia um caráter muito mais religioso do
que educacional, cuja missão era difundir os padrões da civilização ocidental
cristã; assim, podemos observar que, nesse período, o ensino estava centralizado
nas mãos dos religiosos. Tal autonomia na colônia, fez com que a coroa
combatesse a ampliação desse controle, provocando a regressão do sistema
educativo implantado.
Com a expulsão dos jesuítas do Brasil foi determinado que a educação na
colônia passasse a ser transmitida por leigos, nas chamadas Aulas Régias, mas a
falta de recursos financeiros e de professores que assumissem essas classes,
culminou numa desorganização do ensino, que só voltaria a se restabelecer no
Império.
35
A vinda da Família Real portuguesa trouxe mudanças ao sistema
educacional brasileiro, no que diz respeito ao atendimento dos interesses
educacionais da aristocracia, estabelecendo cursos superiores de cunho utilitário
como Medicina, Agricultura, Economia Política, Botânica, além de Academias
Militares, Academias de Ensino Artístico, o Museu Real, a Biblioteca Pública a
Imprensa Régia, entre outras iniciativas (PAIVA, 2003). No entanto, no que diz
respeito à educação elementar, pouco foi realizado nesse período, pois a elite
brasileira adotou como prática um ensino de caráter individual, com aulas
oferecidas em suas casas, mas, em contrapartida, a educação popular não era
vista como uma necessidade social ou econômica.
Um novo panorama surgiu com a promulgação da primeira Constituição
brasileira, em 1824. Nesse período, o País encontrava-se influenciado pelos
ideais liberais que permeavam a Europa (BEISEGEL, 1974). O texto da
Constituição estabelece a todos os cidadãos a instrução primária e gratuita (art.
179). No entanto, só era considerado cidadão os livres e libertos, ou seja, desse
modo, a maior parte da população continuaria excluída.
Segundo o parecer CEB 11/2000
Num país pouco povoado, agrícola, esparso e escravocrata, a educação
escolar não era prioridade política e nem objeto de uma expansão
sistemática. Se isto valia para a educação escolar das crianças, quanto
mais para adolescentes, jovens e adultos. A educação escolar era
apanágio de destinatários saídos das elites que poderiam ocupar funções
na burocracia imperial ou no exercício de funções ligadas à política e ao
trabalho intelectual. Para escravos, indígenas e caboclos (...) além do duro
trabalho, bastaria a doutrina aprendida na oralidade e a obediência na
violência física ou simbólica. O acesso à leitura e à escrita eram tidos
como desnecessários e inúteis para tais segmentos sociais. (p. 13)
No Segundo Império, encontramos um crescente interesse não só pela
educação popular, mas também aparecem preocupações e iniciativas dirigidas à
educação de adultos, dentre as quais podemos citar a reforma de ensino proposta
por Leôncio de Carvalho que, a partir do Decreto nº 7.247, de 19/4/1879, reformou
a instrução pública primária e secundária no Município da Corte, e o ensino
superior em todo o Império. Esse Decreto autorizava o Governo Central a criar ou
auxiliar, nas províncias, cursos para o ensino primário de adultos analfabetos,
36
permitindo, inclusive, que os escravos, até então excluídos desse processo,
pudessem frequentar as escolas. Preconizava a criação de Escolas Normais e,
para evitar o improviso de professores, previa a nomeação dos docentes, além de
conferências e reuniões desses profissionais para discutirem acerca dos assuntos
educacionais, além de enfatizar a necessidade da criação de cursos noturnos.
Nessa época entrou em discussão a Lei Saraiva9 e a educação de adultos
ligou-se à reforma eleitoral.
Com relação à obrigatoriedade do ensino, estabelecido pelo Regulamento
de 1854, Paiva (2003) salienta que essa obrigatoriedade encontrou dificuldade em
ser estabelecida, não apenas pela falta de escolas, mas pela falta de professores
e em decorrência, também, das condições de vida dos alunos. No que se refere à
formação dos professores primários, foram criadas ao longo do Império várias
escolas que se preocupavam com a formação desses profissionais, mas a falta de
atrativos para a carreira do magistério, as precárias condições de funcionamento
das escolas, e a falta de estabilidade na profissão acarretaram no seu
fechamento.
Mesmo sem efetividade, essa reforma expressa a importância da instrução
popular como meio de preservar a estrutura social e econômica do país; foi um
reconhecimento de que a educação para a população adulta analfabeta não mais
poderia basear-se simplesmente na oralidade, evidenciando, também, a
preocupação de se evitar o improviso de professores que atendessem esses
alunos adultos.
Ao findar o Império, havíamos chegado em 1890, com uma população
estimada em 14 milhões, sendo que 82% dela, com idade superior a cinco anos,
era analfabeta. No entender de Haddad e Di Pierro (2000), este fato é
consequência, além da política escravocrata que vigorava no país, do Ato
Adicional de 1834, que delegava ao Governo Imperial a responsabilidade sobre a
educação.
_____________ 9 A lei Saraiva foi instituída através do Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881, teve como redator final Rui
Barbosa. O referido Decreto instituiu, pela primeira vez, o "Título de Eleitor", proibindo o voto de analfabetos, além de ter adotar eleições diretas para todos os cargos eletivos do Império. (disponível em www.tse.jus.br, acessado em 12 de maio de 2012)
37
Com a Proclamação da República, a Constituição de 1891 retirou de seu
texto a referência à gratuidade da instrução elementar (existente na Constituição
Imperial), ao mesmo tempo em que condicionou o exercício do voto à
alfabetização, ou seja, excluiu os adultos analfabetos da participação nas eleições
e isso, num momento em que a maioria da população era iletrada. Mais uma vez,
o que presenciamos foi a exclusão de grande parte da população.
Esse condicionamento tinha o propósito de mobilizar os analfabetos a
buscarem, eles próprios, por cursos de primeiras letras, mas desconsiderava a
opressão e as formas patrimonialistas de acesso a bens econômicos e sociais.
Esse período, apesar de evidenciar um descompromisso por parte da União, foi
marcado por grandes reformas educacionais10 que, de certo modo, se
preocupavam com a situação precária em que se encontrava o Ensino Básico. No
entanto, pouco efeito produziu, pois não havia uma situação orçamentária que
garantisse a efetivação dessas propostas.
O censo realizado em 1920, trinta anos após o estabelecimento da
República no país, apontou que 72% da população, acima de cinco anos,
permanecia analfabeta. (Haddad e Di Pierro, 2000).
A partir da década de 20, apareceram os primeiros “profissionais da
educação”, cuja preocupação com problemas relativos à qualidade do ensino e à
remodelação dos sistemas estaduais impulsionou algumas reformas educativas¹
da época que cobravam do Estado a responsabilidade definitiva pela educação,
visando ampliar o número de escolas e melhoria da qualidade de ensino ofertada,
inclusive estabelecer condições favoráveis à implementação de políticas públicas
para a educação de jovens e adultos.
Com relação aos primeiros profissionais da educação, Paiva (2003)
salienta que esses
_____________ 10 Essas reformas são propostas em vários Estados do país, em razão da ação dos educadores que se
organizam na Associação Brasileira de Educação – ABE. Fala-se de uma nova ciência que se diz preocupada com a técnica e a teoria.
38
frequentemente não possuem formação específica; são autodidatas
dispostos a estudar o assunto e dar opiniões que deixam de lado o aspecto
político da questão.Voltam-se para o funcionamento dos sistemas
escolares, sua eficiência e seu rendimento. Oferecem soluções para a
administração das escolas, para a formação dos professores, para a
elaboração dos currículos e métodos, para a organização dos cursos.
(PAIVA, 2003, p. 113)
Em comparação com outros países do mundo, o Brasil mantinha índices
precários de escolarização, uma preocupação cada vez mais crescente, visto que
a sociedade brasileira passava por grandes transformações, inerentes ao
processo de industrialização e concentração da população em centros urbanos, o
que fez surgir um operário urbano, em função da necessidade de mão de obra
qualificada.
1.3 A consolidação da educação de adultos na década de 30
A década de trinta é palco de lutas em favor da democratização do ensino
e, embora esse período apresente em termos educacionais fases bem
diferenciadas, em virtude do regime político adotado no país em face da ditadura
do regime de Vargas, nele emerge a ideia de uma política educacional voltada à
consolidação de um sistema público de educação elementar no país11.
Com a promulgação da Constituição de 1934, foi reconhecida pela primeira
vez em caráter nacional, a educação como direito de todos, devendo ser
ministrada pela família e pelos poderes públicos (art.149), sendo proposto um
Plano Nacional de Educação (PNE), de responsabilidade da União, que deveria
traçar diretrizes educacionais para todo o Estado, determinando de maneira clara
as competências e responsabilidades dos Estados e Municípios. Entre suas
normas deveria incluir o ensino primário integral, gratuito e de presença
obrigatória, sendo extensivo aos adultos (art.150).
_____________ 11 A primeira manifestação que anuncia o desvinculamento da educação de adultos da educação elementar
comum foi a partir da IV Conferência Nacional de Educação, realizada em dezembro de 1931, que se reuniu para tratar das Diretrizes da Educação Popular.
39
Em 1938, foi criado o Instituto Nacional De Estudos Pedagógicos (INEP)12,
cuja principal função era pesquisa para orientar a formulação de políticas
públicas, atuando na formação e aperfeiçoamento do funcionalismo público da
União. Por meio de suas pesquisas sobre a realidade nacional e em virtude da
preocupação quantitativa e em relação à educação do país, realizou-se a I
Conferência Nacional de Educação, e em 1942, através do Decreto-lei nº 4. 958,
de 14 de novembro de 1942, foi instituído o Fundo Nacional do Ensino Primário
(FNEP) que, através de seus recursos, advindos de renda proveniente de tributos
federais, visava à ampliação da educação primária. Com a regulamentação do
Fundo em 1945, ficou estabelecido que 25% dos recursos do auxílio federal
deveriam ser aplicados na educação primária de adolescentes e adultos
analfabetos, respeitando os termos do plano geral do Ensino Supletivo, aprovado
pelo Ministério da Educação e Saúde.
O Estado brasileiro, a partir de 1940, aumentou suas atribuições e
responsabilidades em relação à educação de adolescentes e adultos. Após
uma atuação fragmentada, localizada e ineficaz durante todo o período
colonial, Império e Primeira República, ganhou corpo uma política
nacional, com verbas vinculadas e atuação estratégica em todo o território
nacional. (HADDAD E DI PIERRO, 2000, p. 111).
No entender de Paiva (2003), em termos quantitativos, com a destinação
de 70% dos recursos do FNEP aliados aos esforços estaduais e programas de
ajuda externa destinados à educação, a construção de prédios escolares da rede
elementar de ensino pôde expandir-se, aumentando o número de matrículas
primárias. Segundo a autora, em 1969, o país possuía 134.909 prédios
construídos, e em 10 anos, de 1945-1955, a matrícula cresceu cerca de 70%, de
3.295.391 em 1945 para 5.617.649 em 1955.
Em termos qualitativos, a expansão da rede exigia um número maior de
professores, mas esses cargos passaram a ser negociados por políticos locais e,
em decorrência desse “jogo de interesse”, professores leigos passaram a ocupar
esses cargos e eram fatalmente substituídos, sempre que o Governo mudava.
_____________
12 O INEP é criado através do Decreto nº 580 de julho de 1938 com o objetivo de promover estudos e centralizar informações referentes à educação nacional. (disponível em www.inep.org.br)
40
Com o fim da ditadura da era Vargas, em 1945, os princípios democráticos
no país ganharam forças. Com a criação da Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), houve um apelo por parte dessa
organização para que se eduquem os adultos analfabetos, o que impulsionou a
criação da Campanha de Educação de Adultos (CEA), em 1947 concebida por
Lourenço Filho.
1.4 A Campanha de Educação de Adultos
A Campanha de Educação de Adultos pretendia estender a educação
primária à totalidade dos jovens e adultos iletrados, abrindo uma discussão sobre
o analfabetismo, e correspondia aos anseios qualitativos dos educadores; esse
momento, portanto, pode ser visto como uma tentativa de conciliação entre
quantidade e qualidade. Surgiu a possibilidade de reflexão e debate em torno do
analfabetismo no Brasil e, se antes o analfabeto era visto apenas como um
indivíduo incapaz, essa visão preconceituosa foi fortemente criticada e seus
saberes e capacidades passaram a ser reconhecidos.
O planejamento inicial da Campanha implicava uma articulação que
envolvia a União, os Estados e os Municípios. Caberia ao Ministério da Educação
e Saúde, o planejamento geral, a orientação técnica, auxílio financeiro e o
fornecimento de textos de leitura.
A Campanha preocupou-se com oferecimento de um material didático, com
a finalidade de garantir um mínimo de padronização. Contava com um currículo
especial de ensino visual, cartilhas, jornais, folhetos e textos de leitura diversas,
elaborados no Setor de Orientação Pedagógica do Serviço de Educação de
Adultos (SEA) e distribuídos em todos os cursos do país. Entre as inúmeras
publicações que foram editadas pelo Ministério da Educação, merece destaque o
Primeiro Guia de Leitura, que era uma espécie de cartilha oficial da Campanha, e
apresentava os primeiros passos da alfabetização, sendo inspirada no sistema de
Laubach,
41
A confiança na capacidade de aprendizagem dos adultos e a difusão de
um método de ensino de leitura para adultos conhecido como Laubach inspiraram a iniciativa do Ministério da Educação de produzirem pela
primeira vez, por ocasião da Campanha, material didático específico para
o ensino da leitura e da escrita para os adultos. (BRASIL, 2001, p. 21).
Podemos verificar, por meio dos dados da tabela abaixo, que o número de
jovens e adultos, atendidos pela rede de escolas de ensino nesse período, era
bem expressivo, o que confirma a realização dos objetivos quantitativos
alcançados na Campanha.
Tabela 1. Número de Cursos mantidos antes da Campanha
Ano Nº de Cursos mantidos com auxílio Federal
Total
Antes da Campanha
1943 1.809
1944 1.777
1945 1.810
1946 2.077
Fonte: BEISEGEL, 1974
Tabela 2. Número de Cursos mantidos depois da Campanha
Ano Nº de cursos mantidos com auxílio Federal
Total
Depois da Campanha
1947 10.416 11.945
1948 14.110 15.527
1949 15.204 16.300
1950 16.500 17.600
Fonte: BEISEGEL, 1974
Embora tivesse alcançado bons resultados, a Campanha de Educação de
Adultos perdeu forças a partir de 1954, em virtude das críticas que se
relacionavam tanto à carência administrativa como à financeira, além da baixa
remuneração dos professores, com o atraso no pagamento. Dessa forma, nem
mesmos os leigos se interessavam pela Campanha, o caráter do voluntariado
42
deixou de existir, a qualidade do ensino tornou-se precária e com a baixa
frequência e aproveitamento dos alunos, a campanha entrou em declínio.
Portanto, se de um lado o aspecto quantitativo foi significante, o aspecto
qualitativo ainda estava longe de atingir sua meta. Numa tentativa em encontrar
soluções mais adequadas aos problemas educacionais de jovens e adultos, tendo
em vista a falência da CEAA, foi realizado o II Congresso Nacional de Educação
de Adultos (CNEA), no Rio de Janeiro, entre 09 e 16 de julho de 1958,
patrocinado por entidades públicas e privadas, contando com o apoio do
Ministério da Educação e Cultura.
Com o objetivo de indicar diretrizes para que o Governo atuasse na
educação de adultos, o Congresso promoveu a participação dos educadores e
acenando como estímulo o incentivo de novas ideias e métodos educativos para
adultos, para que esses pudessem participar, efetivamente, da vida política do
país. No entender de Paiva (2003)
O Congresso é, pois, um acontecimento que nos oferece a oportunidade
de observar o início da transformação do pensamento pedagógico
brasileiro, com o abandono do otimismo pedagógico e a reintrodução da
reflexão sobre o social na elaboração das ideias pedagógicas. Além disso,
ele serviu também como estímulo ao desenvolvimento de novas ideias e
novos métodos educativos para adultos. Nele é possível constatar que o
realismo em educação, ou seja, a consideração dos aspectos internos do
processo educativo ao lado de sua vinculação com a vida em sociedade
tende, então, a impor-se sobre as demais posições. As preocupações quantitativas não se acompanham mais do preconceito contra o analfabeto e, ao lado delas, persiste a preocupação com a qualidade do ensino e com a revisão dos métodos. Paiva (2003, p. 239, grifo
nosso)
No mesmo ano, outra campanha foi lançada: a Campanha Nacional de
Erradicação do Analfabetismo (CNEA), que pretendia ser um programa
experimental de educação popular em geral. Tinha como objetivo a erradicação
do analfabetismo e destinava-se à educação popular de crianças e adultos,
visando, também, contribuir para o desenvolvimento econômico-social. Para o
início dessa Campanha foi escolhida a cidade mineira de Leopoldina, terra natal
do então Ministro da Educação Clóvis Salgado. Quanto à formação dos
professores, juntamente com o INEP e a CNER, a CNEA abriu curso para o
43
treinamento de professores, que compreendia todo o currículo do curso primário,
com a intenção de oferecer aos professores o domínio e o controle dessas
matérias elementares.
A experiência desse projeto teve um saldo positivo em termos nacionais e,
em algumas regiões, as recomendações do projeto influenciaram as decisões em
termos educacionais. A partir de 1961, a CNEA começa a passar por dificuldades
financeiras culminando na sua extinção13.
Segundo Haddad e Di Pierro (2000)
Nestes anos as características próprias da educação de adultos passaram a
ser reconhecidas, conduzindo à exigência de um tratamento específico
nos planos pedagógico e didático. [...] A educação de adultos passou a ser
reconhecida também como um poderoso instrumento de ação política.
Finalmente, foi-lhe atribuída uma forte missão de resgate e valorização
do saber popular, tornando a educação o motor de um movimento amplo
de valorização da cultura popular. (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p.
113).
1.5 Novos paradigmas com o educador Paulo Freire
Um novo paradigma pedagógico começou a surgir no início da década de
60, com as ideias do educador pernambucano Paulo Freire14, que pôs em prática
um autêntico trabalho de educação que identifica a alfabetização com um
processo de conscientização humana. No entender de Paiva (2003) o
pensamento de Paulo Freire “parece ter sido o que maior influência exerceu sobre
os profissionais da Educação em geral, consolidando a reintrodução da reflexão
sobre o social nos meios pedagógicos esboçada desde o início da década” (p.
279). Desse modo, a educação de adultos passou a ser percebida, não apenas
_____________ 13 Nesse período encontramos vários programas e campanhas no campo da educação de adultos, dentre os
quais podemos citar: A Campanha Nacional de Educação Rural, em 1952 e A Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, em 1958, sendo as duas, proposta pelo Ministério da Educação e Cultura, o Movimento De Educação de Base, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1961, que tinha como patrocinador o Governo Federal; o Movimento de Cultura Popular do Recife, em 1961; os Centros Populares de Cultura, órgãos culturais da UNE; a Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler, da Secretaria Municipal de Natal; o Movimento de Cultura Popular do Recife.
14 A descrição dos métodos empregados por Paulo Freire, juntamente com uma síntese dos seus fundamentos, pode ser encontrada no livro “O que é o método Paulo Freire”, de Carlos Rodrigues Brandão (2ª Ed., Coleção Primeiros Passos, São Paulo, Brasiliense, 1981).
44
como uma problemática educacional, mas como um problema de ordem social e
política, propondo uma ação educativa pautada na cultura do sujeito e baseada
no diálogo.
Segundo Paiva (2003), o método proposto por esse educador propiciava
que o analfabeto passasse a se perceber como sujeito e não como objeto,
portador de cultura e conhecimento. No entanto, esse método rejeitava as
cartilhas, sendo necessária uma adequada preparação dos coordenadores, pois
eram confeccionados os materiais didáticos e utilizados cartazes e slides, e, a
partir da realidade dos educandos e de seu universo vocabular, o alfabetizador
em contato com o grupo de alunos, listava as palavras do vocabulário mais
usadas pelos indivíduos, devendo essas ser selecionadas pela riqueza fonêmica,
nascendo palavras geradoras, que serviriam como ponto de partida para
decomposição das famílias fonêmicas que correspondiam àqueles vocábulos.
O pensamento pedagógico de Paulo Freire direcionou diversas
experiências de educação de adultos e, em 1964, com a organização de um
Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, foi convidado pelo Ministro da
Educação, Paulo de Tarso Santos, a repensar a alfabetização de adultos, num
âmbito nacional. Esse período foi marcado por uma diretriz totalmente oposta
àquela vivida pelos movimentos de educação e cultura popular, mas a
conscientização proposta por Freire passou a ser vista como ameaça à ordem
instalada. Assim, em decorrência do golpe militar em 1964, esse e outros
programas de educação popular foram reprimidos, extinguindo-se, inclusive, o
debate educacional.
O analfabetismo ainda se caracterizava como um grave problema para o
país. Paiva (2003) assevera que o Censo escolar realizado em 1964 indicava que
“44,2% dos professores do ensino elementar não possuíam qualificação para a
docência” (p. 160); portanto, o problema referente à questão dos professores
leigos, que se arrastava desde a década de 20, ainda persistia, sendo objeto de
preocupação a falta de qualidade do ensino e a baixa qualificação do professor.
45
Diante dessa problemática, o Governo assumiu o controle da alfabetização
de adultos e criou o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL)15, através
da lei 5.379, de 15 de dezembro de 1967.
Caberia ao MOBRAL promover a educação dos adultos analfabetos,
cooperando com Comissões espalhadas pelos municípios brasileiros, que se
encarregavam de providenciar as salas de aula e os professores. O Mobral
expandiu-se em todo território nacional, configurando-se como um dos programas
mais representativos do Governo Militar. Foi criado o Programa de Educação
Integrada (PEI), equivalente às quatro primeiras séries do ensino fundamental,
sendo concedida ao MOBRAL a expedição de certificados, mediante o referendo
das Secretarias Municipais ou Estaduais de Educação; mais tarde, tais referendos
passaram a ser desnecessários, quando o PEI passou a firmar convênios com
instituições particulares.
Quanto à produção dos materiais didáticos, esses foram entregues a
empresas privadas que reuniram equipes pedagógicas e produziram um material
de caráter nacional, desconsiderando a diversidade de perfis das regiões
brasileiras. Baseado na decomposição de palavras geradoras, não refletiam o
modo de vida da população, tendo em vista que cada região do país possuía suas
características peculiares, ficando evidente a concepção da imposição proposta
pelo programa, focando apenas seus interesses. O alfabetizador recebia o
Manual do Professor que, assim como o currículo, deveria ser seguidos à risca.
No entender de Paiva quanto à organização do Mobral, este foi
Organizado a partir de uma logística militar, de maneira a chegar a quase
todos os municípios do país, ele deveria atestar às classes populares o
interesse do governo pela educação do povo, devendo contribuir não
apenas para o fortalecimento eleitoral do partido governista, mas também
para neutralizar eventual apoio da população aos movimentos de
contestação do regime, armados ou não. (Paiva, 2002, pg. 337).
_____________ 15 Dois bons estudos sobre o Mobral merecem destaque: são os livros de Celso Rui Beisegel, Estado e
Educação Popular (São Paulo, Pioneira, 1974) e os estudos de Paiva (1981e1982) publicado em quatro etapas pela revista Síntese.
46
Com o processo de abertura política do país ganham impulsos as
experiências paralelas de alfabetização que eram desenvolvidas de um modo
mais crítico. Desacreditado nos meios políticos e educacionais, a imagem do
Mobral estava atrelada à ideologia e às práticas dos governos militares, sendo o
programa alvo de várias críticas, tanto as que dirimiam os critérios empregados
na verificação de aprendizagem, como questionamentos relacionados à real
redução dos índices de analfabetismo: pouco tempo destinado à alfabetização,
falta de supervisão dos cursos oferecidos, altos custos financeiros e despreparo
dos educadores.
Com relação ao corpo docente do Mobral, Paiva (2003) assevera que a
precária aprendizagem resultava, entre outros fatores, da “precária qualidade do
ensino oferecido” (p. 367). Segundo Paiva (2003), o corpo docente compõe-se de
elementos com escassa preparação escolar: na região Nordeste 23,4% dos
alfabetizadores consultados haviam concluído a 3ª série, e 26,6% dos quais
haviam concluído a 4ª série. Em relação à região Sudeste 22,9% havia terminado
a 4ª série e outros 26,6% iniciaram outras séries, sendo que não foram
entrevistados professores com menos de quatro anos de estudo. Na região
Nordeste, em relação ao treinamento, 1,8% dos entrevistados afirmou não ter
recebido treinamento algum, e 30% afirmaram nunca ter recebido qualquer
espécie de supervisão. Na região Sudeste, 40% dos professores afirmaram ter
recebido treinamento, e 30% afirmaram não ter recebido supervisão.
Podemos perceber o descrédito por parte desse programa, nas palavras do
professor Flexa Ribeiro, ex-diretor geral de Educação da UNESCO16
O Mobral seria quando muito, um ‘vendedor de ilusões’. Ilusão para o
adulto que ignora a precariedade do adestramento que recebe e
principalmente’ vendedor de ilusões’ para anestesiar a consciência da
classe letrada do país... Ninguém ignora que o diplomado do Mobral
permanece irmão gêmeo do Analfabeto. (FLEXA RIBEIRO, depoimento
na CPI do Mobral. Diário do Congresso Nacional, Seção II, 16/3/1976,
p.344, apud Paiva, 2003, p. 335)
_____________ 16 A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) foi criada em 16 de
novembro de 1945, com o objetivo de garantir a paz por meio da cooperação intelectual entre as nações, acompanhando o desenvolvimento mundial e auxiliando os Estados-Membros na busca de soluções para os problemas que desafiam nossas sociedades, atuando nas áreas da Educação, Ciências Naturais, Ciências Humanas e Sociais, Cultura e Comunicação e Informação. (disponível em http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/unesco/, acesso em 10 jul. 2012)
47
No início do governo Sarney, através do Decreto 91.980, de 25 de
novembro de 1985, o Mobral foi extinto e em seu lugar instituiu-se a Fundação
Nacional para Educação de Jovens e Adultos (EDUCAR). Segundo Haddad e Di
Pierro (2000) se, em muitos aspectos, a Fundação Educar configurou-se como
extensão do Mobral, mantendo os funcionários, as estruturas burocráticas, e
práticas político-pedagógicas, podemos levar em conta algumas mudanças
significativas, dentre as quais merece destaque a sua subordinação à estrutura do
Ministério de Educação e Cultura transformando em órgão de fomento e apoio
técnico, ao invés de instituição de execução direta. Houve uma descentralização
das suas atividades, e a Fundação passou a apoiar iniciativas de Educação
Básica de jovens e adultos.
1.6 A Educação de Adultos após a Constituição de 1988
Durante o processo de redemocratização política do país, merece destaque
a Constituição Federal de 1988, que veio ratificar o reconhecimento de alguns
direitos sociais. Esses, no entender de Haddad e Di Pierro,
Nenhum feito no terreno institucional foi mais importante para a
educação de jovens e adultos nesse período que a conquista do direito
universal ao ensino fundamental público e gratuito, independentemente
de idade, consagrado no Artigo 208 da Constituição de 1988 (p. 120).
Além dessa garantia constitucional, as disposições contidas na Carta
Magna determinavam que 50% dos recursos fossem aplicados na universalização
do Ensino Fundamental e na erradicação do analfabetismo. Contudo, o direito
garantido pela Constituição, em seu artigo 208, que o define como direito
subjetivo, acabou não se confirmando e, progressivamente, a União abandonou
as atividades dedicadas à educação dos jovens e adultos.
Apesar de o MEC apresentar-se com um discurso favorável à Fundação,
em 1990, com o início do governo de Fernando Collor de Mello – primeiro
presidente eleito por voto direto após o regime militar – a fundação foi extinta, e
as entidades civis e instituições conveniadas passaram a arcar sozinhas com as
48
atividades educativas, até então mantidas por convênios com a Fundação. Essa
medida pode ser entendida como uma maneira de contenção de gastos por parte
da União, que transferiu aos municípios a responsabilidade pública pelos
programas de alfabetização de jovens e adultos.
A falta de incentivo político e financeiro por parte do Governo Federal levou
os programas a uma situação de estagnação ou de declínio. A participação dos
municípios em relação à matrícula do ensino básico de jovens e adultos
concentrava-se nas séries iniciais do ensino fundamental, ao passo que as
matrículas referentes às séries do segundo segmento do Ensino Fundamental e
do Ensino Médio concentraram-se nos Estados.
Em substituição à atuação da Fundação Educar, o Governo criou o
Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC) que, salvo algumas
ações isoladas, promoveu mais alarde do que ações concretas. Sem apoio
financeiro e político, ficou na fronteira das intenções e caiu no esquecimento.
Nesse período, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 1990
como o Ano Internacional da Alfabetização, convocando para essa data a
Conferência Mundial de Educação para Todos, que propunha uma abordagem
global do problema educacional no mundo. Realizada em Jomtien, na Tailândia,
contou com a participação da Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e o
Banco Mundial. Muitas das orientações dessa conferência dinamizaram reformas
educativas que se haviam iniciado na década anterior, evidenciando que a
educação ganhava destaque entre as demais políticas sociais.
O Brasil configurava-se como um dos nove países que mais contribuíam
para o elevado índice de analfabetismo do mundo; para poder ter acesso ao
crédito internacional, vinculado aos compromissos assumidos na Conferência
Mundial, instituiu, em 1994, o Plano Decenal, que previa oportunidade de acesso
a 3,7 milhões de analfabetos e 4,6 milhões de jovens e adultos pouco
escolarizados (Haddad e Di Pierro, 2000).
49
O país atravessava um processo de redemocratização política. Com o
impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, assumiu o vice-presidente
Itamar Franco. O Plano Decenal foi fixado ao final do Governo de Itamar Franco
e, em 1994, com a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o novo
Presidente abandonou o Plano Decenal e priorizou a implementação de uma
reforma político-institucional da educação pública, simultaneamente à
promulgação da LDB.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9394/96 traz,
pela primeira vez, a expressão Educação de Jovens e Adultos, em substituição ao
termo Ensino Supletivo; reafirma o direito ao Ensino Básico aos que não tiveram
acesso ou oportunidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio na idade
própria, cabendo ao poder público o dever de oferecê-lo gratuitamente.
Estabelece, ainda, através do Conselho Nacional de Educação (CNE) a redução
da idade mínima de 18 anos para 15 anos no Ensino Fundamental e de 21 para
18 no Ensino Médio.
Esse rebaixamento da idade mínima sinaliza a identificação cada vez maior
entre o ensino supletivo e os mecanismos de aceleração do ensino regular.
Procura-se, certamente, evitar o atraso na obtenção da continuidade aos estudos,
medida cada vez mais aplicada nos estados e municípios.
Com relação à formação de docentes para atuar na educação básica,
segundo a LDB, esta se dará em nível superior, em curso de licenciatura, de
graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação. Segundo
essa lei, até o fim da chamada Década da Educação (em 2006), todos os
professores terão que ser habilitados em nível superior ou formados por
treinamento em serviço.
Com a reforma educacional iniciada a partir de 1995, foi aprovada a
Emenda Constitucional 14/96 que suprimiu a obrigatoriedade do Ensino
Fundamental aos jovens e adultos, mantendo apenas a garantia de sua oferta
gratuita. Essa formulação desobriga o Poder da oferta universal de ensino
fundamental gratuito para esse grupo etário.
50
Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF)17, passou a vigorar uma
nova sistemática de redistribuição dos recursos destinados ao Ensino
Fundamental. O Governo impediu que as matrículas realizadas no Ensino
Fundamental de jovens e adultos fossem contabilizadas para efeito de cálculos
dos fundos, acabando, com essa medida, por desestimular a ampliação de vagas
para essa modalidade de ensino.
Ao estabelecer o padrão de distribuição dos recursos públicos ao Ensino
Fundamental, com relação à importância destinada à EJA, estas “quando
consideradas, foram abordadas com políticas marginais, de caráter emergencial e
transitório, subsidiárias a programas de alívio da pobreza.” (DI PIERRO, 2005, p.
1123). Com relação ao atendimento a essa modalidade de ensino, ela passa a
depender “da capacidade financeira de cada Unidade da Federação, da vontade
política dos respectivos governantes, da demanda e pressão social da população
local em defesa desse direito.” (DI PIERRO, 2005, p. 1124).
Para suprir a carência de políticas públicas de educação de jovens e
adultos o Governo Federal buscou nas parcerias entre diferentes instâncias
governamentais, organizações de sociedade civil e instituições de ensino e
pesquisa, uma saída estratégica e paliativa para o problema, lançando, na
segunda metade dos anos 90, outros programas federais de jovens e adultos.
Embora o panorama que encontramos referentes à EJA, durante os anos
90, aponte para um momento desestimulador, no qual o Governo Federal se
desobriga dos encargos para o atendimento a essa modalidade de ensino,
merecem destaque alguns programas governamentais18, assim como alguns
fóruns que se preocupavam em discutir os problemas relativos à formação inicial
e continuada de educadores. Com relação à formação desses educadores, Di
Pierro (2000) assevera que
_____________ 17 O FUNDEF foi criado pela Emenda Constitucional nº 14, de 12.09.1996, e regulamentado pela Lei nº
9.424, de 24 de dezembro de 1996, e pelo Decreto nº 2.264, de 27 de junho de 1997. (disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Legis.pdf, acessado em 12 jun.2012)
18 Os programas lançados neste período são: Programa Alfabetização Solidária (PAS), o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e o Plano Nacional de Formação do Trabalhador (PLANFOR)
51
A capacitação dos educadores se impõe também pela multiplicidade de
agentes sociais envolvidos nos programas de alfabetização e educação de
jovens e adultos, muitos dos quais são voluntários ou recrutados nos
movimentos populares, sem habilitação profissional formal. As
dificuldades de instituição e consolidação de espaços de formação
decorrem de múltiplos fatores, como a persistência da visão equivocada
que concebe a educação de jovens e adultos como território provisório
sempre aberto à improvisação; a precariedade do mercado de trabalho,
que não proporciona a construção de carreiras profissionais; e o escasso
envolvimento das instituições de ensino superior com um campo
educativo de pouco prestígio e baixo grau de formalização. (p. 1132)
Um importante movimento e que representa um marco importante para a
EJA, foi a Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA),
realizada em 1997, em Hamburgo, cujo objetivo era o de caracterizar a população
jovem e adulta da EJA, destacando compromisso e perspectiva de ação para os
anos posteriores.
Desse período, também encontramos a elaboração de duas publicações de
fundamental importância para essa modalidade e ensino – uma delas a "Proposta
Curricular para a Educação de Jovens e Adultos", para o 1° segmento do ensino
fundamental, e o "Manual de Orientação para a Implantação do Programa de
Educação de Jovens e Adultos do Ensino Fundamental". Essas publicações
configuram-se como importantes instrumentos de apoio a alunos e professores da
EJA, sendo produzidas em parcerias com organizações da sociedade civil, e em
conjunto com as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação além de
Universidades. Nos anos posteriores, outras publicações seriam lançadas, o que
demarca a preocupação com essa modalidade de ensino19.
Sob a coordenação do Conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury, foi
aprovado o Parecer nº 11/2000 – CEB/CNE, que trata das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. No Parecer, a EJA é
caracterizada por apresentar funções distintas, quais sejam, equalizadora,
_____________ 19 Nesse período, destacam-se o Programa Recomeço: Supletivo de Qualidade, que tinha como meta ampliar
a oferta de vagas no Ensino Fundamental de jovens e adultos e o Programa Parâmetros em Ação, que visa ao apoio e incentivo do desenvolvimento profissional de professores e especialistas em educação, como material didático a Coleção Viver e Aprender, constituída de livros para os alunos e guias para os professores, a Proposta Curricular – 2º Segmento com o objetivo de subsidiar o processo de reorientação curricular nas escolas, e o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCEEJA).
52
reparadora e qualificadora. Esse parecer também enfatiza a necessidade de uma
formação adequada e continuada para os profissionais que atuam nessa
modalidade de ensino, considerando a especificidade desse público.
A formação dos docentes de qualquer nível ou modalidade deve
considerar como meta o disposto no art. 22 da LDB. Ela estipula que a
educação básica tem por finalidade desenvolver educando, assegurar-lhe
formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-
lhe meios para progredir no trabalho estudos posteriores (...) Com maior
razão, pode-se dizer que o preparo de um docente voltado para a EJA
deve incluir, além das exigências formativas para todo e qualquer
professor, aquelas relativas à complexidade diferencial desta modalidade
de ensino. Assim esse profissional do magistério deve estar preparado
para interagir empaticamente com esta parcela de estudantes e de
estabelecer o exercício do diálogo. Jamais um professor aligeirado o
motivado apenas pela boa vontade ou por um voluntariado idealista e sim
um docente que se nutra do geral e também das especificidades que a
habilitação como formação sistemática requer. (BRASIL, 2000, p. 56)
Desse modo, a exigência de uma formação específica para a EJA, no que
se refere à formação docente qualificada, segundo esse Parecer, constitui um
“meio importante para se evitar o trágico fenômeno da recidiva e da evasão”
(BRASIL, 2000, p. 56).
Com a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, emergem
novas perspectivas no plano das políticas nacionais para a EJA, merecendo
destaque a progressiva inclusão da modalidade ao Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação – FUNDEB20.
No cenário nacional, com base em um amplo diagnóstico da educação
nacional, foi proposto pelo Ministério da Educação, o Plano Nacional de Educação
(PNE). Para o decênio 2011-2020, o Plano, composto por doze artigos e vinte
metas, tem como foco a valorização do magistério e melhoria na qualidade de
Educação.
_____________ 20 O Fundeb atende toda a Educação Básica, substituto do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que vigorou de 1997 a 2006. O Fundeb está em vigor desde janeiro de 2007, e se estenderá até 2020.(disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12407, acessado em 25 set. 2012)
53
No que concerne à EJA, três metas são dedicadas a essa modalidade:
− Meta 8: Elevar a escolaridade média da população de 18 a 24 anos de
modo a alcançar mínimo de 12 anos de estudo para as populações do
campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% mais
pobres, bem como igualar a escolaridade média entre negros e não
negros, com vistas à redução da desigualdade educacional
− Meta 9: Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou
mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo
absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional.
− Meta 10: Oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de educação de
jovens e adultos na forma integrada à educação profissional nos anos
finais do ensino fundamental e no ensino médio.
Com relação à formação docente, encontramos quatro metas que traduzem
a importância de sua valorização:
− Meta 15: Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios, que todos os professores da
educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida
em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.
− Meta 16: Formar 50% dos professores da educação básica em nível de
pós-graduação lato e stricto sensu, garantir a todos a formação
continuada em sua área de atuação.
− Meta 17: Valorizar o magistério público da educação básica a fim de
aproximar o rendimento médio do profissional do magistério com mais
de onze anos de escolaridade do rendimento médio dos demais
profissionais com escolaridade equivalente.
− Meta 18: Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos de
carreira para os profissionais do magistério em todos os sistemas de
ensino.
Considerando as metas propostas, abaixo apresentamos o panorama atual
com os dados do último recenseamento realizado pelo Instituto Brasileiro
54
Geografia e Estatística – IBGE, referente ao número total da população e o
percentual de pessoas alfabetizadas.
Tabela 3. Total da População segundo Regiões da Federação Brasileira/2010.
Unidade Geográfica Total da população
Brasil
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
190.755.799
15.864.454
53.081.950
80.364.410
27.386.891
14.058.094
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.
Tabela 4. Percentual de pessoas alfabetizadas entre a população de 15 anos ou mais, segundo
Regiões da Federação Brasileira/2010.
Pessoas alfabetizadas entre a população de 15 anos ou mais (em %)
Unidade
Geográfica
15 a 19
anos
20 a 29
anos
30 a 39
anos
40 a 49
anos
50 a 59
anos
60 anos
ou mais
Total por
Região
Brasil
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
10,54
12,99
12,58
9,28
9,69
10,50
21,06
23,60
23,25
19,89
19,25
21,74
17,56
17,86
17,12
17,74
16,90
19,03
14,21
11,85
12,42
15,08
15,58
14,58
10,07
7,16
7,80
11,42
11,68
9,29
9,60
5,68
7,37
11,24
11,41
7,61
83,04
79,14
80,54
84,65
84,51
82,75
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.
Considerando a meta em elevar a taxa de alfabetização da população com
15 anos ou mais para 93,5% até 2015, podemos perceber, ao analisar os dados
da tabela 2, que este desafio é maior na região Norte e Nordeste do Brasil, onde o
número de pessoas alfabetizadas é menor, sendo também esse número maior
entre a população de mais de 60 anos. Vejamos como se encontra o panorama
do analfabetismo funcional21 na tabela a seguir
_____________ 21 Segundo a UNESCO, um indivíduo funcionalmente analfabeto é aquele que não pode participar de todas
as atividades nas quais a alfabetização é requerida, sendo incapaz de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas, impossibilitando seu desenvolvimento pessoal e profissional e o da comunidade.
55
Tabela 5. Taxa de analfabetismo funcional 2001/2009
Região 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Norte 26,3 24,7 23,8 29,1 27,1 25,6 25 24,2 23,1
Nordeste 42,8 40,8 39 37,6 36,3 34,4 33,5 31,6 30,8
Sudeste 20,4 19,6 18,7 18,1 17,5 16,5 15,9 15,8 15,2
Sul 21,2 19,7 18,8 18,6 18 16,5 16,7 16,2 15,5
Centro-
Oeste 25,9 23,8 22,9 22 21,4 20 20,3 19,2 18,5
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.
Com relação ao analfabetismo funcional, esse índice vem diminuindo com
o passar dos anos, como mostra a tabela, e o objetivo é a sua redução em 50%.
No cenário mundial, neste mesmo, ano foi instituída a pedido da
Assembleia Geral das Nações Unidas, a Década da Educação (2003-2012), sob o
slogan “alfabetização como liberdade”, coordenada pela UNESCO, que passou a
coordenar a Década e suas atividades internacionais. Segundo a UNESCO, a
década é instituída em virtude de três fatores:
� Elevado número de pessoas analfabetas. No cenário mundial, existem
776 milhões de analfabetos, ou seja, um em cada cinco adultos não
sabem ler ou escrever. Destaca-se, também, a diferença entre géneros,
pois desse total dois terços são do sexo feminino.
� A alfabetização, embora reconhecida como direito na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, continua sendo negada a uma grande
parte da população.
� Em virtude de possibilitar a ampliação das discussões no cenário
mundial.
Ao percorrermos a história da EJA percebemos que esta esteve
estreitamente ligada às transformações sociais, políticas e econômicas, agora,
não apenas o aspecto quantitativo precisa ser resolvido, mas faz-se necessário
enfrentar, também, o aspecto qualitativo. Se por um lado existe um percentual
expressivo da população ainda não alfabetizada e que, portanto, não teve seus
56
direitos, tanto humano como constitucional respeitados, de outro lado
encontramos o problema da qualidade da educação ofertada a essas pessoas.
Ao longo das décadas, os programas, seminários e fóruns educacionais,
discutiram questões referentes à adequação do currículo, do material didático, da
formação inicial e continuada de professores, sem, efetivamente, resolver o
problema. Portanto, ao mesmo tempo em que observamos uma preocupação com
essa modalidade de ensino, no que tange à especificidade desses alunos jovens
e adultos, atrelado a esse fato, encontramos também a preocupação com uma
mão de obra qualificada que atenda a esses alunos. Nessa perspectiva, Arroyo
(2006) considera que
O foco para se definir uma política para a educação de jovens e adultos e
para a formação do educador da EJA deveria ser um projeto de formação
que colocasse a ênfase para que os profissionais conhecessem bem quem
são esses jovens e adultos, como se constroem como jovem e adulto e
qual a historia da construção desses jovens e adultos populares.
(ARROYO, 2006, p. 25)
Desse modo, consideramos que, ao longo da trajetória da EJA, embora
possamos encontrar avanços em diversos aspectos no caminho percorrido, a
princípio poucos são os olhares lançados para o fazer dos educadores e, somente
a partir dos últimos anos, encontramos uma ênfase relacionada com a formação
docente. Ao se pensar em uma política pública para o público jovem e adulto, é
necessário, além de conhecer o perfil desses alunos que compõem a EJA, pensar
na formação dos professores e de seus formadores, que passam a ser
compreendidos como agentes de mudança, que dispõem de autonomia frente à
prática pedagógica, e não pode ficar, conforme apontam os estudos ministrados,
em caráter de voluntariado, ou a cargo de qualquer pessoa.
Desse modo consideramos que a escolarização de Jovens e Adultos deve
ser tratada não apenas numa perspectiva quantitativa, mas também
qualitativamente.
No próximo capítulo, iremos discorrer sobre as especificidades da EJA no
tocante à formação docente, apoiando-nos em algumas ideias de Maria da
Conceição R. Fonseca (2007), Maurice Tardif (2006), Marta Kohl de Oliveira
57
(1999) e da Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos. No tocante
às especificidades em relação ao ensino de Matemática, com relação aos
objetivos gerais do ensino dessa disciplina para a EJA, evidenciamos as
considerações da Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos,
segundo segmento. Em relação à organização curricular, utilizamos estudos de
Célia Pires (2000) e Nilson Machado (1995) e, quanto aos critérios para a escolha
de contextos Matemáticos, apoiamo-nos nos estudos sobre cenários de
investigação e ambientes de aprendizagem do professor e pesquisador
dinamarquês Ole Skovsmose (2010).
58
CCAAPPÍÍTTUULLOO 22
ESPECIFICIDADES DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS
Quando nos colocamos perante a pergunta: “Por que ensinar
Matemática?”, uma série de considerações, muitas vezes de
caráter filosófico, se apresenta e discussões de valores tendem
a dominar o questionamento, gerando muitas vezes acirradas
discussões. Do mesmo modo e diretamente ligada à primeira
pergunta, podemos colocar o questionamento: “Como ensinar
matemática”?” É claro, a resposta à primeira pergunta vai
condicionar a segunda, que nada mais é do que a formulação
de estratégias para se atingir os objetivos concordados.
(D’Ambrósio, 1996, p. 63)
Neste capítulo, após compreender a trajetória da EJA no Brasil e seus
imensos desafios, procuraremos nos aproximar da reflexão de um ponto crucial
nessa modalidade de ensino, que é a formação de professores que deveriam
levar em conta as especificidades da EJA.
Evidentemente, os debates que cercam a importância da formação do
professor da EJA, por várias vezes coincidem com aqueles vividos por
professores de Matemática. Entretanto, devemos considerar algumas
especificidades relacionadas a esta disciplina.
59
Focalizaremos, ainda nesse capítulo, as especificidades dos currículos
para a EJA, no caso dos currículos de Matemática.
2.1 A especificidade da Educação de Jovens e Adultos no tocante à
Formação Docente
A escolarização dos jovens e adultos que tiveram negado o acesso ou sua
permanência no sistema formal de ensino, em idade própria, constitui um desafio
não apenas para o Governo, mas para a sociedade como um todo. Se por um
lado encontramos questões de ordem quantitativa, referentes a um percentual
expressivo da população ainda não alfabetizada, de outro lado temos as questões
de ordem qualitativa.
Quanto à qualidade na educação ofertada a esse público de jovens e
adultos, questiona-se a adequação do currículo, do material didático, da
metodologia, os modos de avaliação e, sobretudo, da formação inicial e
continuada de professores, Considerando que esses alunos têm um perfil
diferente dos alunos atendidos na modalidade de ensino regular, pois são
indivíduos com história de vida marcada pela exclusão, Oliveira (1999) salienta
que
Embora nos falte uma boa psicologia do adulto e a construção de tal
psicologia esteja, necessariamente, fortemente atrelada a fatores culturais,
podemos arrolar algumas características dessa etapa da vida que
distinguiriam, de maneira geral, o adulto da criança e do adolescente. O
adulto está inserido no mundo do trabalho e das relações interpessoais de
um modo diferente daquele da criança e do adolescente. Traz consigo
uma história mais longa (e provavelmente mais complexa) de
experiências, conhecimentos acumulados e reflexões sobre o mundo
externo, sobre si mesmo e sobre as outras pessoas. Com relação à
inserção em situações de aprendizagem, essas peculiaridades da etapa de
vida em que se encontra o adulto fazem com que ele traga consigo
diferentes habilidades e dificuldades (em comparação com a criança) e,
provavelmente, maior capacidade de reflexão sobre o conhecimento e
sobre seus próprios processos de aprendizagem. (p. 60-61)
Ao considerar a especificidade desse público, é preciso que o professor
esteja atento para não encarar essas especificidades como algo negativo, mas
60
entendê-las e respeitá-las, estimulando e valorizando seus saberes, possibilitando
que esses alunos façam conexão entre os conhecimentos e saberes já
aprendidos. No processo de aprendizagem, Tardif (2006) considera que os alunos
devem tornar-se “os atores de sua própria aprendizagem, pois ninguém pode
aprender em lugar deles. Transformar os alunos em atores, isto é, em parceiros
da interação pedagógica, parece-nos ser a tarefa em torno da qual se articulam e
ganham sentido todos os saberes do professor.” (p. 221).
Nessa perspectiva, é fundamental o acolhimento desses jovens e adultos
em um trabalho de resgate de sua autoestima e da conscientização de sua
identidade por meio da valorização de suas origens. Nesse contexto, a Proposta
Curricular para Educação de Jovens e Adultos, considera que
Contribuir para o processo de acolhimento dos alunos da EJA não é tarefa
simples, pois envolve lidar com emoções, motivações, valores e atitudes,
responsabilidades e compromissos. O acolhimento ao aluno envolve tanto
a valorização dos conhecimentos e da forma de expressão de cada um
como seu processo de socialização, levando em conta, nas situações de
ensino e aprendizagem, dúvidas e inquietações, realidades socioculturais,
jornada de trabalho e condições emocionais decorrentes da exclusão
escolar. Para regressar à escola, jovens e adultos têm de romper barreiras
preconceituosas, geralmente transpostas em função de um grande desejo
de aprender. Assim, essa disposição para a aprendizagem precisa ser
alimentada por uma prática pedagógica que garanta condições para que
prevaleça uma atitude positiva diante dos estudos. Nesse contexto, um
aspecto importante refere-se à proposição de um ensino comprometido
com a aprendizagem, que considere a situação real dos alunos, dando
sentido e plenitude humana à sua existência, respondendo a problemas de
seu dia a dia e também para sua atuação mais ampla. (BRASIL, 2002a, p.
88)
Portanto, o atendimento a esse público tão heterogêneo e diversificado
culturalmente, pressupõe que o educador dessa modalidade tenha consciência de
sua importância no desenvolvimento desses educandos.
Tardif (2006) considera que o professor possui uma posição fundamental,
pois é ele quem “constrói seu espaço pedagógico de trabalho de acordo com
limitações complexas que só ele pode assumir e resolver de maneira cotidiana
apoiada necessariamente em uma visão de mundo, de homem e de sociedade.”
(p. 149). Nesse sentido, o autor (2006) considera que os professores são atores
61
competentes, sujeitos do conhecimento, e que a sua subjetividade precisa estar
no centro das investigações.
Para compreender a natureza do ensino, é absolutamente necessário levar
em conta a subjetividade dos atores em atividade, isto é, a subjetividade
dos próprios professores. Ora um professor de profissão não é somente
alguém que aplica conhecimentos produzidos por outros, não é somente
um agente determinado por mecanismos sociais: é um ator no sentido
forte do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a partir do
significado que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui conhecimento e
um saber-fazer proveniente de sua própria atividade e a partir dos quais
ele a estrutura e a orienta. (TARDIF, 2006, p. 230).
Considerando o papel do professor, Fonseca (2007) observa três valores
que julga fundamentais para a participação do professor na Educação Matemática
de jovens e adultos: honestidade, compromisso e entusiasmo. Tais valores, no
entanto, remetem a três dimensões da formação desse educador: sua intimidade
com a Matemática, sua sensibilidade para as especificidades da vida adulta e sua
consciência política.
Sobre a intimidade com a Matemática, a autora considera a relação do
educador com o conhecimento matemático. Enfatiza que, embora o professor
considere o conhecimento matemático informal, ainda há uma carência referente
a aspectos como o acolhimento, negociação, “quando a situação demanda que
criem, estimulem e/ou organizem espaços de (re)significação desse
conhecimento” (FONSECA, 2007, p. 56); considera, portanto, que é a “intimidade
com o conhecimento matemático que o proverá de recursos para que tais
proposição, negociação e desempenho sejam um reflexo da perspectiva ética e
política pela qual ele se assume como educador matemático de jovens e
adultos”(FONSECA, 2007, p. 57).
Desse modo, é fundamental que o professor conheça os conteúdos e os
procedimentos matemáticos, estabelecendo mesmo uma relação de intimidade, o
que contribui para que ele acompanhe a trajetória de construção de conhecimento
dos seus alunos. Quanto aos programas e propostas de formação docente,
Fonseca (2007), considera a importância no desenvolvimento de habilidades da
leitura. No entender dessa autora,
62
A contribuição do conhecimento da Matemática dar-se á não apenas pelo
acesso a um vocabulário específico, cada vez mais frequente nas diversas
instancias da vida social, mas também pelo provimento de modos de
tratamento, organização e registro da informação, que orientam e
sugerem critérios para o julgamento e o enfrentamento de questões
diversas da vida moderna, em seus apelos funcionais, e da vida humana,
em suas indagações arquetípicas. (FONSECA, 2007, p. 59-60)
Em relação à sensibilidade para as especificidades da vida adulta, Fonseca
(2007) considera importante que o professor conheça o seu aluno, não apenas
como indivíduo, mas também como grupo social. Em relação à seleção e critérios
que possibilitem o diagnóstico desses alunos, assinala ser necessário efetuar
registros de informação, consultá-los, socializar com os demais professores e
refletir sobre os dados encontrados.
Em relação ao papel ético e político da ação educativa, Fonseca (2007)
considera que o educador deve entender a EJA como sendo um direito do
cidadão, uma necessidade da sociedade e uma possibilidade de realização da
pessoa como sujeito de conhecimento. Desse modo, a autora considera que
todos que estão inseridos na sociedade devem lutar, não apenas pelo acesso à
escolarização, mas por uma educação de qualidade, sendo que
É também do campo da ética e da cidadania a preocupação com a própria
formação profissional e a consciência de sua repercussão na prática
pedagógica, como atitude de respeito para com os alunos que têm direito
a uma Educação de boa qualidade, para com o projeto pedagógico que
requer ações conscientes e eficazes, e para consigo mesmo, inserindo-se
num processo amplo de formação humana que envolve todos os atores
dos processos de ensino-aprendizagem no âmbito escolar. (FONSECA,
2007, p. 64)
2.2 A especificidade da Educação de Jovens e Adultos no tocante ao
Ensino da Matemática
Segundo a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos,
A matemática compõe-se de um conjunto de conceitos e procedimentos
que englobam métodos de investigação e raciocínio, formas de
representação e comunicação – ou seja, abrange tanto os modos próprios
63
de indagar sobre o mundo, organizá-lo, compreendê-lo e nele atuar,
quanto o conhecimento gerado nesses processos de interação entre o
homem e os contextos naturais, sociais e culturais. Ela é uma ciência
viva, quer no cotidiano dos cidadãos quer nos centros de pesquisas, nos
quais se elaboram novos conhecimentos que têm sido instrumentos úteis
para solucionar problemas científicos e tecnológicos em diferentes áreas
do conhecimento. (BRASIL, 2002b, p. 12)
No entanto, a Matemática, muitas vezes, provoca sensações contraditórias.
Se, por um lado é uma área de conhecimento importante, que possibilita a
resolução de problemas da vida cotidiana, interagindo com os processos sociais e
culturais, de outro lado podemos encontrar uma certa insatisfação perante os
resultados negativos obtidos em relação à sua aprendizagem, sendo-lhe
atribuída, não poucas vezes, a responsabilidade pelo fracasso escolar de jovens e
adultos.
Desse modo, o baixo desempenho em Matemática, acaba por elevar os
índices de retenção, separando os alunos que terão condições de avançar ou não
na Educação Básica; portanto, ao considerarmos este processo como sendo de
exclusão, corroboramos com o PCN quando afirma que “o insucesso na
aprendizagem matemática tem tido papel destacado e determina a frequente
atitude de distanciamento, temor e rejeição em relação a essa disciplina, que
parece aos alunos inacessível e sem sentido”. (BRASIL, 2002b, p. 13)
No que concerne aos alunos da EJA, é necessário que sejam considerados
os aspectos de seu mundo e respeitando suas vivências, o que pode servir como
fator enriquecedor dentro de uma abordagem escolar, pois, ao expor os
conhecimentos informais que esses alunos têm sobre um determinado assunto, e
que geralmente faz parte de seu cotidiano, poderá formular questionamentos e
confrontar com as possibilidades encontradas. Portanto, as conexões que este
aluno faz, podem constituir um importante ponto de partida para a aprendizagem
Matemática.
Em relação aos objetivos gerais do ensino de Matemática para a EJA,
evidenciamos que a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos
apresenta os mesmos objetivos gerais do Ensino Fundamental e afirma que
“definir com precisão os objetivos do ensino de Matemática é condição necessária
64
para realizar a seleção e a organização de conteúdos e das estratégias didáticas
mais adequadas”. (BRASIL, 2002b, p. 17)
De fato, os objetivos do Ensino Fundamental são os mesmos objetivos
propostos para a EJA, pois se trata dos objetivos gerais do ensino da Matemática.
No entanto, à medida que apresenta os objetivos gerais, a proposta faz menção
às necessidades específicas da EJA. Vejamos agora os objetivos e as
especificidades relacionadas à EJA
• Identificar os conhecimentos matemáticos como meios para
compreender e transformar o mundo à sua volta e perceber o caráter de
jogo intelectual, característico da Matemática, como aspecto que
estimula o interesse, a curiosidade, o espírito de investigação e o
desenvolvimento da capacidade para resolver problemas.
Em relação aos alunos da EJA, a Proposta Curricular para a Educação de
Jovens e Adultos, afirma ser necessário que eles percebam a praticidade da
Matemática, e que essa disciplina possibilita a resolução de seus problemas do
cotidiano, momento em que passam a exercer plenamente sua cidadania.
• Fazer observações sistemáticas de aspectos quantitativos e qualitativos
da realidade, estabelecendo inter-relações entre eles, utilizando o
conhecimento matemático (aritmético, geométrico, métrico, algébrico,
estatístico, combinatório, probabilístico).
No que concerne à EJA, a proposta orienta que deve haver uma
articulação entre as atividades e as experiências matemáticas que serão
desenvolvidas pelos alunos de seu curso.
• Selecionar, organizar e produzir informações relevantes, para interpretá-
las e avaliá-las criticamente.
Em especial, no trabalho com alunos da EJA, a seleção e a organização de
informações se configura um importante trabalho. Com a gama de informações
presente no mundo, é necessário o indivíduo saber posicionar-se e tomar
65
decisões, e a Matemática oferece ferramentas para isso, sendo importante que o
professor, ao planejar seu trabalho, priorize esses aspectos.
• Resolver situações-problema, sabendo validar estratégias e resultados,
desenvolvendo formas de raciocínio e processos, como intuição,
indução, dedução, analogia e estimativa, utilizando conceitos e
procedimentos matemáticos, bem como instrumentos tecnológicos
disponíveis.
Muitas vezes, a Matemática é ensinada de um modo mecânico, por meio
de fórmulas, ou regras prontas, o que é entendido como um empobrecimento em
termos de oportunizar que os alunos utilizem o raciocínio para chegar à
determinada solução de um problemas proposto; em relação aos alunos da EJA,
a proposta sinaliza ser necessário que eles não ocupem uma posição passiva, de
mero reprodutor de conhecimento. Portanto, é imprescindível que o ensino de
Matemática estimule o aluno da EJA, mas em momento algum se deve confundir
facilitação com infantilização, visto tratar-se de um alunado que possui
experiências próprias de seu mundo vida.
• Comunicar-se matematicamente, ou seja, descrever, representar e
apresentar resultados com precisão e argumentar sobre suas
conjecturas, fazendo uso da linguagem oral e estabelecendo relações
entre ela e diferentes representações matemáticas.
É fundamental que o aluno da EJA seja estimulado a escrever, buscando
relações entre esta linguagem e as representações matemáticas, justificando
suas hipóteses e conclusões.
• Estabelecer conexões entre temas matemáticos de diferentes campos, e
entre esses temas e conhecimentos de outras áreas curriculares.
Em relação às conexões entre os temas matemáticos e o conhecimento de
outras áreas curriculares, este possibilita uma conexão com a realidade do aluno,
e possibilita a otimização do tempo, que é muito reduzido na EJA.
66
• Sentir-se seguro da própria capacidade de construir conhecimentos
matemáticos, desenvolvendo a autoestima e a perseverança na busca
de soluções.
É fundamental que o ensino de Matemática estimule o aluno de EJA a pôr
em ação sua capacidade de resolver problemas, de raciocinar, como faz em seu
dia a dia
• Interagir com seus pares de forma cooperativa, trabalhando
coletivamente na busca de soluções para problemas propostos,
identificando aspectos consensuais ou não na discussão de um assunto,
respeitando o modo de pensar dos colegas e aprendendo com eles.
Na busca de soluções dos problemas, os alunos podem interagir com seus
pares; ao mesmo tempo em que aprendem, podem também ensinar, portanto, a
Matemática fornece um importante instrumento ao estabelecer inter-relações
quantitativas e qualitativas da realidade na qual este aluno está inserido. Em
relação ao uso da linguagem oral, salienta ser importante que os alunos sejam
estimulados a escrever, relacionando a linguagem com as representações
matemáticas, relatando conclusões e justificando suas hipóteses.
Quanto à seleção e organização de informações relevantes, se
considerarmos a imensa gama de informações presentes no mundo de hoje, é
interessante que o indivíduo saiba se posicionar, relacionando o que lhe é
relevante e posicionando-se, nos diversos campos da vida. Nesse sentido, a
Matemática dispõe de diversas ferramentas que devem ser priorizadas no
trabalho planejado pelo professor. Nesse processo o professor atua como
mediador e orientador dessas orientações, pois muitas vezes cabe a ele a tarefa
selecionar e organizar os conteúdos aos alunos.
Desse modo, considerando a heterogeneidade dos alunos da EJA, frente à
seleção dos conteúdos, Fonseca (2007) considera que
A heterogeneidade das experiências dos alunos e sua riqueza em termos
qualitativos e valorizados nos obrigam a questionar os mitos dessa
natureza, buscado compreendê-los em sua dimensão cultural e política
para podermos enfrentar, ainda que sem a pretensão de chegarmos a um
67
consenso, mas com a relativa autonomia, a questão da seleção, dentre os
conteúdos e procedimentos propostos para o ensino da matemática
escolar, daquilo que seria essencial, interessante, significativo para o
processo de construção do conhecimento matemático de nossos alunos e
a questão de como tal seleção se atrelaria (ou não) à contextualização de
seu ensino para essas pessoas jovens e adultas, em particular, como uma
contribuição para expandir e diversificar suas práticas de leitura. (p. 67)
No entanto, embora a seleção dos conteúdos seja importante no processo
de construção do conhecimento matemático, a Proposta Curricular para a
Educação de Jovens e Adultos assevera que, muitas vezes, alguns conteúdos
são ministrados em caráter de abreviação, ou também, excluídos, com o
argumento de que “não fazem parte da realidade dos alunos, ou não têm uma
aplicação prática imediata” (BRASIL, 2002b, p. 23) e, com relação à organização
dos conteúdos, encontramos a afirmação de que
De modo geral, os professores organizam os conteúdos de Matemática
para os alunos jovens e adultos de forma hierarquizada, reproduzindo
uma ideia segundo a qual cada conteúdo é um elo de uma corrente, um
pré-requisito para o que vai sucedê-lo. Sabe-se, por um lado, que alguns
conhecimentos precedem outros, e que a maneira de organizar os
conteúdos indica um certo percurso; mas sabe-se também que eles não se
subordinam uns aos outros com amarras tão fortes como as que
comumente se supõe. Nessa perspectiva, a opção em geral não é
orientada pela identificação dos conteúdos que seriam [essenciais],
voltando-se para aqueles que constituem os chamados [pré-requisitos]
para o desenvolvimento de outros. Com isso, ficam esquecidos muitos
temas que poderiam ser mais importantes para os jovens e adultos, tendo
em vista suas necessidades e curiosidades, assim como seus percursos
escolares e vivenciais. (BRASIL, 2002b, p. 25)
Nessa perspectiva, propõe-se que o currículo vença a concepção da
linearidade, ao que, particularmente, em relação ao ensino da Matemática,
Fonseca (2007) assevera que a discussão das concepções de Matemática pode
nos auxiliar na compreensão de alguns mitos fortemente estabelecidos na
Matemática Escolar, como o da linearidade com que se deve apresentar o
conteúdo matemático aos alunos, ou o da necessidade de vencer completamente
uma etapa para passar à subsequente, ou o da estabilidade e da obrigatoriedade
do cumprimento do programa, ou o da clareza inequívoca com a qual se pode
definir o que é errado, em Matemática. (FONSECA, 2007, p. 18)
68
2.3 Organização do Currículo
A organização dos conteúdos com base em uma concepção linear é
apoiada na ideia da necessidade de pré-requisitos, na qual um “conteúdo serve
de base para o que vem em seguida, embora nem sempre se faça uma relação
entre eles, dando ao aluno a impressão de que cada um deles nada tem a ver
com os anteriores” (BRASIL, 2002a, p. 126).
Figura 1: Organização Linear (BRASIL, 2002a, p. 126)
Pires (2000) expõe que a organização dos currículos de Matemática possui
a presença marcante da linearidade e da acumulação, sendo esta representada
“ora pela sucessão de conteúdos que devem ser dados numa certa ordem, ora
pela definição de pré-requisitos” (p. 66). Desse modo, acredita-se que o
conhecimento é passível de acumulação, sendo necessário que as informações
sejam dominadas antes de se ter acesso a outros conceitos.
Desse modo, a autora corrobora as ideias de Machado, quando esse autor
afirma que
De fato, internamente e no planejamento curricular, a forma de
organização linear é amplamente predominante na organização do
trabalho escolar, comprometendo-se muitas vezes desnecessariamente
com uma fixação relativamente arbitrária de pré-requisitos e com uma
seriação excessivamente rígida, que responde em grande parte pelos
números inaceitáveis associados à repetência e à evasão escolares. De um
modo geral, a organização linear perpassa o conjunto das disciplinas
escolares, embora seja especialmente aguda associação no caso da
Matemática. Aqui, talvez em consequência de uma direta entre
linearidade e formalismo, entendido como a organização dos conteúdos
curriculares sob a forma explícita ou disfarçada de teorias formais, parece
certo e indiscutível que existe uma ordem necessária para a apresentação
dos assuntos, sendo a ruptura da cadeia fatal para a aprendizagem.
(MACHADO, 1995, p. 188).
69
Portanto, a linearidade acerca da apresentação dos conteúdos requer um
encadeamento lógico e sequencial, e que, obrigatoriamente, requer pré-requisitos
por parte do educando, para o estudo de outros conteúdos na sequência
curricular. Pires (2000) expõe que
[...] nos currículos atuais, a ruptura da cadeia ainda parece ser algo fatal
para a aprendizagem. Marcos temáticos são fixados e devem ser
percorridos sequencialmente; é um caminho cujo percurso é composto de
passos, cuja lei de sucessão é ir do mais simples para o mais complexo
(ás vezes entendida como ir do mais concreto para o mais abstrato). Ao
desenvolverem seu trabalho em sala de aula, tanto os elaboradores de
currículo de Matemática quanto os professores se empenham em
organizá-lo segundo uma “estrutura” lógica, linear: cada assunto (capitulo
ou unidade) supõe conhecidos assuntos precedentes. Isso lhes parece
absolutamente natural em se tratando de uma disciplina científica e essa
suposta linearidade da aprendizagem acaba por descartar qualquer
possibilidade de um trabalho autônomo por parte do aluno (p. 67).
Portanto, podemos inferir que, intrínseca à linearidade, está a ideia de
acumulação, em que é sempre necessário um pré-requisito para passar para a
etapa posterior.
Em contraposição ao modelo linear, encontramos à ideia de uma nova
organização curricular para o ensino de Matemática, que superando o mito da
linearidade e acumulação propõe a organização em rede. Na organização dos
conteúdos em rede, o desenho curricular é composto por uma pluralidade de
pontos interligados por ramificações e caminhos, como podemos observar na
figura abaixo.
Figura2: Organização em Rede (BRASIL, 2002a, p. 126).
70
Nessa perspectiva, Pires (2000) considera que
No campo cognitivo, a ideia de rede comparece cada vez que se pretende
demonstrar que a compreensão do tema é construída por meio de
múltiplas relações, que podem ser estabelecidas entre ele e outros temas,
estejam ou não as fontes de relação no âmbito de uma dada disciplina.
Nesse contexto, o conhecimento é apresentado como uma rede cujos
pontos vão se construindo em varias direções, em vários sentidos, cuja
formação se altera e se reestrutura praticamente a cada vez que um
“ponto” é incorporado a ela; é um sistema, enfim, que passa por
momentos de caos e de alguma estabilidade. (PIRES, 2000, p. 117, grifo
nosso)
A organização do currículo em rede propicia que a aprendizagem seja
significativa ao aluno, pois, ao fazer conexões, amplia seu universo cognitivo,
mediando o seu contato com a realidade de forma crítica e dinâmica. Em relação
à educação de jovens e adultos, “uma organização de conteúdos em rede, além
de propiciar uma abordagem desse tipo, permite também a otimização do tempo
disponível e o tratamento, de forma equilibrada, dos diferentes campos
matemáticos. (BRASIL, 2002b, p. 25)
A Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos considera que
A ideia subjacente é de que a aprendizagem de Matemática está ligada à
compreensão, isto é, à atribuição e à apreensão de significado. E
apreender o significado de um objeto ou acontecimento pressupõe
identificar suas relações com outros objetos e acontecimentos. Isto significa que o tratamento dos conteúdos em compartimentos estanques, numa rígida sucessão linear, deve dar lugar a uma abordagem em que as conexões sejam favorecidas e destacadas. (BRASIL, 2002b, p. 25, grifo nosso)
Considerando o caminho que o aluno percorre na construção de seu saber,
Pires (2000) com base na caracterização de Douady, faz uma comparação entre
o saber matemático e o saber a ser ensinado em Matemática.
71
Quadro 1. Saber matemático e saber a ser ensinado em Matemática
O saber matemático O saber a ser ensinado em Matemática
O saber matemático é despersonalizado, descontextualizado (em termos das publicações), ordenado pelos problemas encontrados (ao nível do conhecimento dos pesquisadores), sincretizado (os saberes são ligados uns aos outros, sempre ao nível do saber dos pesquisadores.
O saber a ser ensinado em matemática é ordenado numa progressão de tempo; essa progressão é legal (definida pelos programas – há um tempo legal de aprendizagem) e lógica (o curso de Matemática se esforça por progredir segundo uma estrutura lógica, linear); por certo, a linearidade da aprendizagem torna o trabalho autônomo impossível.
No saber matemático, a progressão é comandada pelo encadeamento dos problemas sucessivamente resolvidos, ou seja, os problemas são o motor da evolução. O saber matemático é não linear.
No saber a ser ensinado em Matemática, ao contrário, há uma progressão no tempo a partir de uma contradição velho / novo; um capítulo elimina o outro e, no limite, o curso evacua completamente os problemas e progride linearmente em direção ao conhecimento.
Na fabricação do texto do saber a ser ensinado, o trabalho de transposição didática conduz a uma desintrincação do saber matemático: o objeto do saber é extraído de um campo de problemas a que estava ligado, como também das técnicas às quais estava associado.
Nos textos escolares, os objetos de ensino são introduzidos explicitamente por uma definição, seguida de uma lista de suas propriedades, que são objeto de demonstração a partir de um certo nível de escolaridade e, depois, vem o estudo sistemático de situações de emprego pelo aluno (aplicações). Assim, o que constituía o “entorno do objeto” é substituído por aquilo que vem antes (capítulo precedente) e pelo que vem depois (capítulo seguinte).
Fonte: (Pires, 2000, p. 164).
Com base nessas caracterizações, enquanto o saber matemático é não
linear, o saber a ser ensinado em Matemática é caracterizado pela linearidade, e
assim vem sendo praticado por vários anos. Desse modo, Pires assevera que “a
questão que se coloca é se esse processo deve ocorrer, necessariamente, dessa
maneira. Ao que tudo indica, a resposta é negativa e os fracassos acumulados
estão aí para apoiar essa convicção” (p. 164).
72
Desse modo, ao entendermos que o currículo incorpora as transformações
sociais, políticas, científicas e culturais, a ideia do currículo em rede possibilita a
articulação das disciplinas no currículo, evidenciando que a concepção de
conhecimentos em uma rede de significados é imprescindível para o bom
andamento do processo.
2.4 Critérios para a escolha do contexto Matemático
Em estudos sobre cenários de investigação e ambientes de aprendizagem,
Skovsmose (2010) faz referência aos estudos de Tony Cotton22. Em suas
observações de salas de aula, Cotton (1998) identificou que a aula de Matemática
é dividida em duas partes: na primeira parte, o professor expõe suas ideias e
técnicas referentes à disciplina; refere-se, portanto, à exposição do conteúdo. Na
segunda parte, os alunos trabalham com os exercícios propostos. Cotton (1998),
também explicita que algumas aulas são expositivas, e em outras os alunos
passam grande parte da aula, envolvidos com a resolução dos exercícios. O autor
também salienta que, como condição tradicional, configura-se o livro didático.
Nesse contexto, Skovsmose (2010) considera que a Educação Matemática
se enquadra no paradigma do exercício, que possui a premissa central de que
existe uma, e somente uma, resposta correta para questões, desafios e
problemas. No entanto, contrapondo-se a esse paradigma, o autor propõe uma
abordagem de investigação que se relaciona com a educação matemática crítica,
no desenvolvimento da materacia.
Esse modo de pensar relaciona-se com a literacia do educador Paulo
Freire. Para Skovsmose (2010) “a materacia não se refere apenas às habilidades
matemáticas, mas também à competência de interpretar e agir numa situação
social e política estruturada pela matemática” (p. 16). Nesse contexto, o autor
considera que a educação matemática crítica deve ter uma dimensão democrática
“implicando que as microssociedades de salas de aulas de matemática devem
também mostrar aspectos de democracia” (SKOVSMOSE, 2010, p. 16). _____________ 22 COTTON, T. Towards a mathematics education for social justice. Tese (Doutorado), Nottingham University.
Nottingham, 1998.
73
O autor considera que as práticas de sala de aula, baseadas em um
cenário para investigação, são aquelas em que o professor convida os alunos a
fazerem investigações, explorar, formular questões e tirar conclusões. Quando o
convite é aceito pelos alunos, estes se engajam no processo de exploração,
passam a ser os responsáveis pelo processo e, desse modo, instaura-se um
cenário para investigação.
Portanto, o professor desempenha um papel fundamental nesse processo,
considerando que uma mesma situação pode ser desenvolvida tanto por meio do
paradigma do exercício como pela da investigação, cabendo a ele mediar essa
situação de aprendizagem. No entanto, o autor ressalta que um mesmo cenário
de investigação pode não dar suporte para um outro grupo de alunos, mas esta
situação só pode ser respondida através da prática das interações de sala de aula
que envolve professores e alunos.
Nesse cenário de investigação, Skovsmose (2010) considera que existe
distinção nas práticas de sala de aula, baseado em investigação e exercício, e
considera que “a distinção entre elas tem a ver com as referências que visam
levar os estudantes a produzir significados para atividades e conceitos
matemáticos” (SKOVSMOSE, 2010, p. 22). Desse modo, o autor considera que
existem diferentes tipos de referência
Primeiro, questões e atividades matemáticas podem se referir à
matemática e somente a ela. Segundo, é possível se referir a uma
semirrealidade – não se trata de uma realidade que de fato observamos,
mas de uma realidade construída, por exemplo, por um autor de um livro
didático de matemática. Finalmente, alunos e professores podem
trabalhar tarefas com referências a situações da vida real.
(SKOVSMOSE, 2010, p. 22)
Para esse autor ao combinar a distinção entre os dois paradigmas de
práticas de sala de aula (exercícios e cenários para investigação), com os três
tipos de referência (referências à matemática pura; referência à semirrealidade e
referência à realidade), é possível obter uma matriz com seis tipos diferentes de
ambientes de aprendizagem.
74
Quadro 2. Ambientes de aprendizagem
Exercícios Cenário para Investigação
Referências à Matemática
pura (1) (2)
Referências à
semirrealidade (3) (4)
Referências à realidade (5) (6)
Fonte: (Skovsmose, 2010, p. 23).
Os ambientes (1), (3) e (5) referem-se ao paradigma do exercício com
referência à Matemática pura, à semirrealidade e à realidade, respectivamente.
Os ambientes (2), (4) e (6) encontram-se no cenário para investigação. Vamos
agora tratar das especificidades de cada um deles.
O ambiente do tipo (1) é caracterizado por exercícios com referência à
Matemática pura. Nas atividades propostas predominam exercícios com utilização
de fórmulas, cujos enunciados são do tipo, calcule, resolva, efetue.
São exemplos desse ambiente:
1. (12 . 16) + (8 . 15) =
2. (16a + 12b) - (15a + 11b) + 6b =
O ambiente do tipo (2) estabelece um cenário de investigação em torno da
Matemática pura. Esse ambiente envolve números e figuras geométricas, o que
possibilita que o aluno investigue, argumente, explore. Um exemplo de uma
situação nesse ambiente seria: “A partir da figura proposta determine e enumere
quantos triângulos e quantos retângulos podemos encontrar”.
Figura 3. Triângulos e retângulos
75
O ambiente de aprendizagem (3), envolve exercícios no contexto da
semirrealidade. A situação proposta situa-se em torno de uma realidade artificial,
portanto uma semi-irrealidade. Um exemplo de uma situação nesse ambiente é a
seguinte: Em uma loja 120 carrinhos são vendidos a R$ 5,00 cada um e em outra
loja são vendidos 100 carrinhos a R$ 4,00. Em qual loja o preço do carrinho é
mais barato? Para resolver essa atividade não é necessário fazer uma pesquisa
referente ao preço do carrinho em diferentes lojas, pois se trata de uma situação
artificial, na qual os dados podem ser inventados dentro de uma semirrealidade.
No entanto, o autor pondera que trabalhar com exercícios nesse ambiente
pressupõe uma convenção entre professor e aluno, entendendo que se trata de
uma situação artificial, portanto,
A semi-irrealidade é totalmente descrita pelo texto do exercício; nenhuma
outra informação é importante para a resolução do exercício; mais
informações são totalmente irrelevantes; o único propósito de apresentar
o exercício é resolvê-lo. Uma semirrealidade é um mundo sem
impressões dos sentidos [...] de modo que somente as quantidades
mensuradas são relevantes. (SKOVSMOSE, 2010, p. 25)
O ambiente de aprendizagem (4) convida os alunos a investigarem, permite
explorações e justificativas que podem gerar outras questões e estratégias de
solução. Reproduzimos aqui, uma situação que Skovsmose (2010) utiliza para
representar esse tipo de ambiente de aprendizagem.
Considerando uma “corrida de grandes cavalos”, a pista de corrida é
desenhada na lousa, e dois dados são jogados. De acordo com o valor da soma
que sai no dado, marca-se uma cruz.
Figura 4. O terreno da corrida de cavalos
X
X X X
X X X X X X X X
2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Fonte: (SKOVSMOSE, 2010, p. 26).
76
Ao observar a figura, percebemos que a soma 6 é a que aparece mais
vezes, em relação às demais, portanto o cavalo 6 é o vencedor, seguido pelos
cavalos 7 e 10. O autor sugere uma ampliação dessa atividade, à medida que
pode se propor que os alunos se dividam em “duas agências de apostadores
organizados na sala de aula, com um outro grupo de alunos controlando cada
agência. Um outro grupo de alunos seria o dos jogadores que fazem suas
apostas. Nesse contexto, a atividade se desenvolve dentro de uma semi-
irrealidade, e embora seja uma situação que possivelmente não faça parte do
cotidiano do aluno, este reconhece a sua existência.
O ambiente de aprendizagem (5) faz referencia à realidade, mas com
práticas voltadas ao paradigma do exercício. Desse modo os exercícios são
baseados na vida real, mas as questões que dele decorrem não são
investigativas. Nesse ambiente, podem ser elaboradas atividades que partam de
dados da vida real, podem ser utilizadas informações contidas em jornais,
folhetos, revistas, sites, utilização de gráficos. Desse modo, nesse ambiente, o
professor pode propor para que o aluno colete preços reais de um folheto de um
supermercado e, de posse das informações dos preços contidos nesse folheto,
calcular o custo unitário de alguns itens. Por exemplo, qual é o preço de um pote
de 1 quilo de geleia de morango se o preço de 350 gramas é R$ 6,50?
O ambiente do tipo (6) faz referência à realidade com foco na investigação.
Nesse ambiente, as atividades de investigação podem utilizar recursos
tecnológicos, como calculadoras, softwares, computador, e materiais
manipulativos. Os problemas são relacionados com o cotidiano dos alunos e
podem ser propostos como projetos. Nesse ambiente de aprendizagem, o
professor pode propor para que os alunos meçam alguns objetos da sala de aula,
como a porta, as carteiras, e calculem sua área, seu perímetro. Nessa
investigação, o conceito de área torna-se mais real, pois ao medir esses objetos,
os conceitos não se restringem apenas aos cálculos envolvidos, mas a objetos
reais.
Skovsmose (2010) considera que, tradicionalmente, as aulas de
Matemática acontecem no paradigma do exercício, e qualquer cenário de
investigação requer desafios para o professor e, desse modo,
77
A solução não é voltar para a zona de conforto do paradigma do
exercício, mas ser hábil para atuar no novo ambiente. A tarefa é tornar
possível que alunos e professor sejam capazes de intervir em cooperação
dentro da zona de rico, fazendo dessa uma atividade produtiva e não uma
experiência ameaçadora, o que muitas vezes pressupõe assumir riscos.
(SKOVSMOSE, 2010, p. 37)
As ideias de Pires (2000) relativas à organização do currículo e os critérios
para a seleção de conteúdos de Skovsmose (2010), fundamentam nosso trabalho
e serviram de base na elaboração das categorias de análise.
78
CCAAPPÍÍTTUULLOO 33
PERSPECTIVA DO CURRÍCULO DE MATEMÁTICA
O tema “Educação de pessoas jovens e adultas” não nos
remete a uma questão de especificidade etária, mas,
primordialmente, a uma questão de especificidade cultural. Isto
é, apesar do corte por idade (jovens e adultos são basicamente
“não crianças”), esse território da educação não diz respeito a
reflexões e ações educativas dirigidas a qualquer jovem ou
adulto, mas delimita um determinado grupo de pessoas
relativamente homogêneo no interior da diversidade de grupos
culturais da sociedade contemporânea. (OLIVEIRA, 1999:1)
Após apresentarmos alguns aspectos da trajetória da Educação de Jovens
e Adultos no Brasil e seus imensos desafios no campo das políticas sociais,
discorremos sobre a especificidade no tocante à formação docente e ao ensino de
Matemática, levando em conta as especificidades da Educação de Jovens e
Adultos.
Neste capítulo, iremos focalizar o currículo de Matemática sob uma
perspectiva cultural, pois entendemos que, ao nos referir ao tema Educação de
Jovens e Adultos, não devemos nos ater somente às questões específicas,
relativas à faixa etária, mas ir muito além disso, por se tratar de uma questão de
especificidade cultural.
79
3.1 A Matemática em uma perspectiva cultural
Howson, Keitel e Kilpatrick (1981)23 realizaram uma análise dos processos
e dos conteúdos do desenvolvimento curricular matemático, na década de
setenta, as quais, no entender de Bishop (1999) têm sido muito úteis na busca de
uma representação apropriada do currículo para a enculturação matemática.
Nas análises, esses autores identificaram cinco maneiras diferentes de
abordar o currículo que estava representado por diversos projetos curriculares: o
enfoque conteudista, o enfoque das matemáticas modernas, o enfoque
estruturalista, o enfoque formativo e o enfoque do ensino integrado.
O enfoque conteudista está baseado nas teorias de Gagne, que considera
a aprendizagem como uma mudança de estado interior e que se manifesta
através da mudança de comportamento; procurava melhorar a aprendizagem
através da “análise de tarefas” de uma determinada área de conteúdos, visando a
uma aprendizagem sequencial.
O enfoque das Matemáticas Modernas caracteriza a Matemática
reorganizada para destacar considerações estruturais apresentando uma
linguagem uniforme. O princípio de Bourbaki – a dedução de conteúdos a partir
de axiomas – ocupa um lugar em destaque no ensino dessa disciplina.
O enfoque estruturalista tem como agente teórico Bruner e Dienes,
segundo as quais, nos processos de promoção da aprendizagem torna-se
apropriada a estrutura das ciências. Para Bishop, a estrutura interna da
Matemática não deveria determinar, por si só, a natureza do currículo.
O enfoque formativo está baseado nas teorias de Piaget, apresentando
dois pressupostos: o primeiro, o de que a educação escolar visa dotar o aluno de
um conjunto básico de capacidades cognitivas, atitudes afetivas e motivação, e o
segundo, o de que estes fatores podem ser descritos em função de traços da
personalidade do aluno. Esse enfoque tem por objetivo a iniciação dos processos
de aprendizagem, sem, no entanto determiná-los.
_____________ 23 HOWSON, A. G.; KEITEL, C y KILPRATICK, J. Curriculum Development in Mathematics. Cambridge:
University Press, 1981.
80
O enfoque do ensino integrado desenvolveu-se sobre a mesma base
cognitivo-teórica do enfoque formativo, mas considerando, além dos métodos
empregados, também os conteúdos. Enfatiza uma flexibilidade nas unidades de
currículo, de modo que os próprios alunos possam controlar o processo de
resolução de problemas e, consequentemente, a evolução do processo da
aprendizagem, Além de um programa, o currículo deve incluir objetivos,
conteúdos, métodos e procedimentos de evolução.
Bishop (1999) considera uma sexta abordagem em relação aos cinco
enfoques caracterizados por Howson, Keitel e Kilpatrick – o enfoque cultural do
currículo de Matemática.
No entender desse autor, o comportamento de um grupo determina sua
cultura, e esse grupo, ao interagir com diferentes grupos, troca e compartilha
experiências e conhecimentos. Esse contato entre diferentes culturas contribui
para promover o crescimento cultural; portanto, o currículo, numa perspectiva
cultural, enfatiza a necessidade de se explicitarem os valores da Matemática nos
currículos, buscando relacionar as pessoas e sua cultura matemática.
Nessa abordagem cultural, para tornar possível o estudo da iniciação
cultural, Bishop (1988, 1999) expõe ser importante distinguir os diferentes
subgrupos existentes, em função de sua relação com a cultura Matemática e,
para isso, utiliza-se de três níveis de cultura distinguidos por Davis (1973)24: o
nível técnico, o nível informal e o nível formal.
O nível técnico da Matemática inclui todo o conjunto de símbolos e
argumentações utilizadas por matemáticos em suas investigações. Nesse nível
“se genera la multitud de técnicas y conceptos Matemáticos especializados que,
se supone, representam un avance Del conocimiento”25 (BISHOP, 1999, p. 116).
O nível informal da Matemática inclui o emprego das simbolizações e
conceitualizações da Matemática de um modo implícito e impreciso. Bishop
_____________ 24 DAVIES, I. Knowledge, Education and Power. In: BROWN, R. (Org.). Knowledge, Education and Cultural
Change. Londres: Tavistock: 1973, p. 317-338. 25 gera uma multiplicidade de conceitos matemáticos especializados e técnicas que, supostamente,
representam um avanço no conhecimento(tradução nossa)
81
(1999) expõe que a participação nesse nível acontece, em sua maior parte, de um
modo inconsciente,
por ejemplo, em una “conversación ordinária” em el nível informal, se
usarán expressiones como “siempre”, “nunca”, “igual que”, pero
normalmente no tendrán lós significados precisos que tienen em lãs
Matemáticas, y lãs técnicas aritméticas rápidas que emplean, por ejemplo,
lós vendedores ambulantes, se deriván del simbolismo o la tecnologia
actual, pero no tendrán ningún poder de generalización más allá del
contexto específico26
. (p. 115)
O nível formal da Matemática emprega, em contraposição ao nível informal,
o uso das simbolizações e conceitualizações de um modo intencional, consciente
e explícito. Nesse nível, os valores são aceitos e respaldados, portanto Bishop
entende ser o nível formal o mais importante.
Em relação à Educação Matemática de pessoas jovens e adultas,
consideramos que a aquisição do conhecimento matemático não se inicia apenas
quando ingressam no processo formal de ensino, mas decorre de experiências
vivenciadas ao longo de sua trajetória de vida. Desse modo, os valores e as
normas culturais existentes dentro dos diferentes grupos entram em contato,
sendo necessário que o currículo de Matemática considere, além do contato entre
eles, o conflito oriundo da cultura formal e informal da Matemática. Nessa
perspectiva da Matemática como fenômeno cultural, Bishop (1999) propõe a
“Enculturação Matemática”.
3.2 O Currículo em uma perspectiva enculturadora
Os valores e as normas culturais são representados pelos que vivem e
nascem dentro de uma determinada cultura, podendo ser “representados por
personas, ya sea como individuos o como productos personales (escritos,
_____________ 26 Por exemplo, em uma "conversação ordinária" em nível informal, será usado expressões como "sempre"
nunca”, “igual que”, mas geralmente não possuem os significados precisos que têm as Matemáticas, e as técnicas aritméticas rápidas que utilizam, por exemplo, os vendedores ambulantes, são derivados do simbolismo da tecnologia atual, mas não têm nenhum poder de generalização além do contexto específico.(tradução nossa)
82
artefactos, instituciones, etc.)”27 (Bishop, 1999, p. 118), sendo transmitida para
outras gerações.
Na escola, a aprendizagem cultural é um processo unidirecional que vai do
professor para o aluno; mais do que isso, a enculturação matemática pressupõe a
iniciação dos alunos nas conceituações, simbolizações e nos valores da cultura
matemática. Sendo um processo interpessoal, a enculturação é importante, não
apenas para centrar a atenção nos valores, mas também para distanciarmos de
uma imagem da educação apenas como mera transmissão. Desse modo, o aluno
constrói as ideias, cria, produz, tendo o entorno social o papel de permitir essa
construção de ideias.
Considerando que a educação formal é assumida pelas escolas, o autor
defende que a Enculturação Matemática formal deve levar em conta os conflitos
do processo de cultura informal e transmitir o nível técnico da cultura matemática.
Bishop (1999) considera três aspectos da relação de enculturação: a
natureza assimétrica da relação de enculturação, o aspecto intencional e o caráter
ideacional.
A natureza assimétrica da relação de enculturação refere-se ao caráter
dinâmico entre os participantes do processo de enculturação e o papel que cada
um desempenha; desse modo o professor tem a tarefa de criar um tipo concreto
de entorno social e o aluno em interação com esse entorno social, tem a tarefa de
construir ideias e modificá-las.
O aspecto intencional está relacionado tanto com a natureza das atividades
matemáticas como com as atitudes e valores. Neste processo “La imagen de las
Matemáticas se transmitirá a los alumnos por médio de las actividades em las que
participen”28 (BISHOP, 1999, p. 172).
O caráter ideacional refere-se às ideias matemáticas, centrando a atenção
no fato de compartilhar e comunicar essas ideias e requer que se examine a
oposição entre os significados individuais e os compartilhados; sendo um
_____________ 27 Representada por pessoas, seja como indivíduos ou como itens pessoais (cartas, artefatos, instituições,
etc). (tradução nossa) 28 A imagem da Matemática se transmitirá aos alunos por meio de atividades das quais participem. (tradução
nossa)
83
processo pessoal, é o contraste entre a nova ideia e as ideias já existentes na
estrutura do indivíduo, mais do que isso, é uma maneira particular de conhecer.
Em texto posterior, Bishop (2002) considera que, no encontro entre a
cultura formal e a cultura informal, podem surgir conflitos culturais gerados no
ambiente escolar, provocando, assim, o processo de aculturação matemática.
Para Wolcott29 (apud Bishop, 2002), a aculturação seria o processo de
modificação de uma cultura através de contatos contínuos com outra cultura.
Nesse processo, o grupo cultural que se sobressai é tido como dominante e
incorpora os elementos de sua cultura no grupo que adentrou.
Com relação às características de um currículo de Matemática que
promova os processos de enculturação Matemática, Bishop (1988, 1999) defende
a necessidade de tais currículos terem um enfoque cultural, os quais se
caracterizam por cinco princípios desse enfoque: representatividade, formalismo,
acessibilidade, poder explicativo, concepção ampla e elementar, e três
componentes: simbólico, social e cultural, os quais passaremos discutir.
O princípio da representatividade pressupõe a reapresentação da cultura
Matemática considerando não somente a tecnologia simbólica particular
desenvolvida nas atividades universais (contar, localizar, medir, desenhar, jogar,
explicar), mas, incluindo, também, os valores específicos próprios da cultura
matemática: ideologia do racionalismo, ideologia do objetismo, controle dos
sentidos, sentimento progresso, sociologia da abertura e sociologia do mistério.
A ideologia do racionalismo caracteriza-se pela ênfase na argumentação,
análise lógica, processos de abstração, teorizações e explicações. Em sala de
aula podemos perceber a presença desse valor quando, por exemplo, o professor
desenvolve nos alunos habilidades de argumentação e raciocínio lógico,
incentivando discussões por parte dos alunos na busca das explicações.
_____________ 29 WOLCOTT, H. F. The teacher as an enemy. In: SPINDLER, G. D. (Ed.) Education and cultural process:
towards an anthropology of education. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1974, p. 136-150.
84
A ideologia do objetismo30 é caracterizada por apresentar uma visão de
mundo dominada por imagens de objetos materiais. Neste princípio, as ideias se
originam a partir da interação com o meio e os objetos materiais, o que
proporciona as bases intuitivas e imaginativas para as ideias, proporcionando aos
alunos a capacidade de abstrair.
Enquanto o Racionalismo se ocupa da lógica do raciocínio, encontramos
no objetismo as bases intuitivas na busca do raciocínio, através da abstração. Em
sala de aula, esse valor é demonstrado quando o professor propõe atividades que
desenvolvam nos alunos habilidades práticas, uso de ideias, coleta de dados
experimentais.
O controle dos sentidos é o valor referente ao poder do conhecimento
matemático, domínio de regras e critérios estabelecidos, promovendo a busca
pelo conhecimento e desenvolvendo habilidades para fazer predições. Bishop
(1999) expõe que estudos relacionados ao comportamento dos planetas, por
exemplo, comprovam que esses movimentos não são aleatórios nem tampouco
imprevisíveis, portanto provocam o sentimento de segurança.
Em sala de aula, esse valor é demonstrado, quando o professor solicita
que os alunos façam uma ordenação de números ou figuras, cuja ordenação só é
possível por meio do controle que o aluno tem sobre esses números, a partir de
estruturas matemáticas.
O sentimento progresso enfatiza o valor relacionado ao sentimento de
crescimento, desenvolvimento e progresso. Um aspecto importante desse valor é
que, a partir dele, se pode conhecer o desconhecido. Em sala de aula,
percebemos a presença desse valor nas situações em que o aluno tem que
utilizar definições, demonstrações, investigações, quando, através de uma
situação-problema, esse aluno percebe novas propriedades e constrói um novo
saber.
_____________
30 Bishop utiliza o termo objectism, referindo-se a objetos, na publicação em inglês. Para o idioma espanhol o tradutor utilizou o termo objetismo. Optamos utilizar o termo na versão espanhola, pois não há tradução do referido termo no idioma português.
85
Quanto aos valores relacionados à abertura e ao mistério, tais valores se
complementam e fazem relações entre as pessoas e às instituições sociais. Na
perspectiva da abertura, o conhecimento matemático é acessível e pertence a
todos, ao que Bishop (1999) assevera que estes “no dependem de um partido
político, no varían de um país a outro, son universales y son conocimiento puro”31
(p. 103), portanto o conhecimento matemático configura-se como sendo universal.
As situações de aprendizagem, que podem propiciar aos alunos desenvolverem
esse valor, são aquelas em que são propostas que eles façam demonstrações,
formalizando as ideias matemáticas.
Na perspectiva do mistério, o autor explicita que, embora a cultura
matemática apresente os valores da abertura e da acessibilidade, sendo a
Matemática a disciplina que mais se ensina em todo o mundo, muitas pessoas
ainda se sentem envergonhadas por não compreendê-la. A esse fato, agrega-se
também a ideia de se considerar que a Matemática é exclusiva a poucas pessoas.
O mistério acerca das ideias matemáticas deve-se ao fato de que a matemática
se ocupa de abstrações; portanto, em sala de aula é interessante que o professor
propicie a construção do conhecimento, despertando no aluno o interesse pela
busca do desconhecido e possibilitando a explicação e a socialização das
descobertas, o que pode ser um elemento motivador para a construção de novas
aprendizagens.
Quanto ao princípio do formalismo, Bishop (1999), afirma que este deve
objetivar o nível formal da cultura Matemática, conectando-se com o nível informal
e introduzindo o nível técnico. Desse modo, o professor pode fazer uma conexão
das ideias matemáticas com aquelas presentes em situações do cotidiano do
aluno, enfatizando o autor que
_____________ 31 Não dependem de um partido político, não variam de um país a outro, são universais e são conhecimento
puro. (tradução nossa)
86
Mediante esta estructura cultural es fácil hacer referencia a las ideas
Matemáticas de otras culturas. Parte de la dificultad experimenta em la
actualidad por vários educadores que tratan de representar las
Matemáticas como uma matéria multicultural es que, em geral, carecen
de uma buena estructura para reconocer similitudes entre ideas
matemáticas. Para hacer que um currículo sea multicultural, primero hay
que culturizarlo32
. (BISHOP, 1999, p. 128)
O princípio da acessibilidade ressalta que o conteúdo curricular deve ter
ser acessível a todos os alunos, na direção de “baixo para cima”, criando
oportunidades para que possam estabelecer relações com elementos de sua
cultura, de acordo com seus interesses. Partindo, portanto, de uma situação
simples o professor pode possibilitar que os alunos criem conexões para entender
situações mais complexas, respeitando as capacidades intelectuais de cada
aluno. Desse modo, na perspectiva de um currículo enculturador
por desgracia, la educación puede ser um proceso que fracase em la
práctica com determinados alumnos, pero no tiene ninguna lógica
planificar um currículo de enculturación que este diseñado para que los
alumnos fracasen. La enculturación debe ser para todos: La educación
Matemática deberia ser para todos. [...] Aquí el imperativo moral, que
también se encuentra em El enfoque formativo, es encontrar maneras de
llegar a todos lós ninos33
. (BISHOP, 1999, p. 128)
O princípio do poder explicativo enfatiza o aspecto explicativo da
Matemática, que deve estar em conformidade com os significados importantes, os
quais devem surgir a partir do currículo, pois isso possibilita o entendimento das
situações do cotidiano, podendo o aluno dar significado aos conceitos
matemáticos aprendidos. Mas, para que esse poder se transmita, é necessário
que seja acessível a todos os alunos, de modo que o autor assevera:
_____________ 32 Mediante esta estrutura cultural é fácil fazer referência às ideias Matemáticas de outras culturas. Parte da
dificuldade experimentada na atualidade por vários educadores que tratam de representar a Matemática como uma matéria multicultural é que, em geral, necessitam de uma boa estrutura para reconhecer similitudes entre ideias matemáticas. Para fazer com que um currículo seja multicultural, primeiro tem-se que culturalizá-lo. (tradução nossa)
33 Infelizmente, a educação pode ser um processo falhe na prática com determinados alunos, mas não tem nenhuma lógica planificar um currículo de enculturação que está desenhado para que os alunos fracassem. A enculturação Matemática deve ser para todos: A educação Matemática deveria ser para todos.(tradução nossa).
87
No se trata de un currículo técnico [...] aunque es evidente que el poder
de explicar sólo se transmitirá por medio de la actividad de explicar que,
necesariamente, conllevará en cierta medida hacer varias actividades
Matemáticas. El problema es que, en la actualidad, los objetivos de la
mayoría de los currículos Matemáticos se centran por completo em hacer
y casi nada en explicar”34
. (BISHOP, 1999, p. 129)
O quinto e último princípio proposto refere-se à concepção ampla e
elementar, e propõe que, ao invés de ser limitado e tecnicamente exigente, o
currículo de enculturação deve ser amplo, visando oferecer vários contextos para
a manifestação do poder explicativo, e básico, entendendo que este possui um
certo tempo. Desse modo, “la limitación de um tiempo finito para la enseñanza
significa que si amplitud de la explicación y del contexto es um objetivo
importante, entonces el contenido Matemático debe ser relativamente
elemental”(Bishop, 1999, p. 130)35. Em sala de aula, o professor, ao abordar
diferentes contextos, pode proporcionar situações de aprendizagem que
favoreçam o poder de explicação. Desse modo,
el pode de explicación, que se deriva de la capacidad de lãs Matemáticas
para se conectar entre sí grupos de fenómenos aparentemente dispares, se
debe manifestar por completo[...] Pero si el objetivo es la enculturación y
si la explicación es el poder de la tecnología simbólica de la cultura,
entonces uma tecnologia com uma complejidade desmedida no podrá
explicar, no podrá convencer y, em última isntancia, no podrá enculturar.
Además, me atrevo a afirmar que incluso lós futuros Matemáticos (y, de
hecho puede que precisamente lós futuros Matemáticos) necesitan uma
sólida base enculturadora em esta matéria36
. (BISHOP, 1999, p. 130).
Desse modo, no entender desse autor, os cinco princípios que
caracterizam o currículo de enculturação Matemática
_____________ 34 Não se trata de um currículo técnico [...] embora seja evidente que o poder de explicar só pode ser
transmitido por meio de atividade de explicar o que, necessariamente, implica fazer varias atividades matemáticas. O problema é que, na atualidade, os objetivos da maioria dos currículos de Matemática centram por completo em fazer e quase nada em explicar.
35 A limitação de um tempo finito para o ensino significa que se a amplitude da explicação e do contexto é um objetivo importante, então o conteúdo matemático deve ser relativamente elementar. (tradução nossa).
36 O poder de explicação que deriva da capacidade da Matemática para se conectar entre grupos aparentemente diferentes, e deve-se manifestar por completo [...] Mas se o objetivo é a enculturação e se a explicação é o poder da tecnologia simbólica da cultura, então uma tecnologia com uma complexidade desmedida não poderá explicar, não poderá convencer e, em última instância, não poderá enculturar. Além disso, atrevo-me a afirmar que, inclusive os futuros Matemáticos (e, de fato, pode ser que precisamente os futuros Matemáticos), necessitam uma sólida base enculturadora nesta matéria. (tradução nossa)
88
• Debería representar la cultura Matemática, tanto desde la perspectiva
de sus valores como de sua tecnologia simbólica.
• Debería objetivar el nível formal de esta cultura.
• Debería ser accesible para todos loss niños.
• Debería enfatizar lass Matemáticas como explicación.
• Debería ser relativamente amplio y elemental em vez de limitado y
exigente em su concepción.37
(BISHOP, 1999, p. 130)
Além de apresentar esses princípios gerais, o autor descreve os três
componentes desse enfoque curricular: o componente simbólico, o componente
social e o componente cultural.
O componente simbólico é baseado nas conceitualizações explicativas
significativas da Matemática. Esse componente organiza-se em torno de seis
atividades universais – contar, localizar, medir, desenhar, jogar e explicar – e se
ocupa da tecnologia simbólica que deriva dessas atividades. Essas atividades
possuem grande valor para o desenvolvimento das ideias matemáticas,
estimulando diversos processos cognitivos, cada uma com seu grau de
importância, podendo-se trabalhar com essas atividades, tanto de uma maneira
individualizada, como interagindo entre si.
A estruturação desse componente garante uma cobertura ampla e
elementar das ideias matemáticas importantes e possibilita fazer uma analogia
com as ideias matemáticas de outras culturas. O autor pondera que, devido à
importância simbólica que representam esses conceitos não devem ser tratados
como temas, mas como conceitos organizadores do currículo, os quais devem ser
abordados em atividades com contextos ricos, relacionados com o entorno dos
alunos, possibilitando explorar seu significado, sua lógica, e fazer conexões com
as ideias matemáticas, o que possibilita exemplificar e validar o poder explicativo.
Contar é a primeira atividade universal para Bishop (1999). Essa é a
atividade em Matemática mais investigada na literatura cultural, pois desenvolve a
linguagem, as imagens e os sistemas numéricos. A necessidade de contar e
_____________ 37 Deveria representar a cultura matemática, tanto na perspectiva de seus valores como de sua tecnologia
simbólica. Deveria objetivar o nível formal desta cultura. Deveria ser acessível a todos os alunos. Deveria enfatizar a Matemática como explicação. Deveria ser relativamente ampla e elementar ao invés de limitado e exigente em sua concepção. (tradução nossa)
89
associar objetos com números, e registrar informações sobre quantidades, fez
com que fossem criados diversos métodos de representar as quantidades em
diversas sociedades; podemos, portanto, dizer que a atividade de contar está
relacionada com as necessidades vinculadas ao entorno do indivíduo, podendo ir
desde datas de aniversários, a situações mais estruturadas, como a resolução de
problemas de combinatória, ou o uso da calculadora. que pode oferecer
possibilidades para descobrir relações numéricas.
Menninger (1969)38 em seu livro Numer words and Number Symbols apoia
o pensamento de Bishop (1999) nesse campo e faz uma análise da
universalidade de contar e da importância da ideias de números.
Esta atividade possibilita quantificar, comparar e ordenar fenômenos
discretos, englobando os aspectos:
Cuantificadores (cada, algunos, muchos, ninguno). Adjetivos numéricos.
Contar con los dedos y con el cuerpo. Correspondencia. Números. Valor
posicional. Cero. Base 10. Operaciones con números. Combinatoria.
Precision. Aproximacion Errores. Fracciones. Decimales. Positivos,
Negativos. Infinitamente grande, pequeño. Límite. Pautas numéricas.
Potencias. Relaciones numéricas. Diagramas de flechas.
Representaciones algebraicas. Sucesos. Probabilidades. Representaciones
de frecuencias39
. (BISHOP, 1999, p. 132)
Localizar é a segunda atividade universal em Matemática, proposta por
Bishop. Esta atividade enfatiza a geometria espacial, relacionando o homem com
seu entorno numa perspectiva espacial. Descreve a relação entre lugares e
objetos, envolvendo noções de direção, ordem, e a simbolização desses
ambientes através de modelos e diagramas.
Segundo Bishop (1999), um importante trabalho relacionado a essa
atividade e que examina com detalhe a maneira de conceitualizar o espaço de
uma cultura determinada e que serve de base para seus estudos, é aquele
_____________ 38 MENNINGER, K., Number Words and Number Symbols - A Cultural History of Numbers, MIT Press,
Cambridge, Mass, 1969. 39 Quantificadores (cada, alguns, muitos, nenhum). Adjetivos numéricos. Contar com os dedos e com o
corpo. Correspondência. Números. Valor posicional. Zero. Base 10. Operações com números. Combinatória. Precisão. Aproximação. Erros. Frações. Decimais. Positivos, Negativos. Infinitamente grande, pequeno / Limite. Pautas numérica. Potências. Relações numéricas. Diagramas de flechas. Representações algébricas. Sucessos. Probabilidades. Representações de frequências. (tradução nossa).
90
proposto por Pinxten (1983)40, o qual relaciona as noções espaciais em contextos
culturais diferentes.
Atividades que podem ser produtivas são as de explorar e traçar mapas e,
quando a localização já é conhecida, pode-se trabalhar com situações
relacionadas ao entorno do aluno, cabendo, também, propor atividades
relacionadas ao estudo das coordenadas cartesianas, situações de viagens e
navegação.
A localização engloba os aspectos de:
Preposicines Descripciones do recorridos. Localización em el entorno.
N.S.E.O. Orientación en la brújula. Arriba/abajo. Izquierda/derecha/
Delante/detrás. Viajes (distância). Línhas retas y curvas. El ángulo como
giro. Rotaciones. Sistemas de localización: Coordenadas polares
Coordenadas 2D-3D. Mapas. Latitude/ longitud. Lugar geométrico.
Mecanismos articulados. Círculo. Elipse. Vetor. Espiral.41
(BISHOP,
1999, p. 133)
Medir é a terceira atividade universal. Encontramos nessa atividade
conceitos relacionados a comparar, ordenar e quantificar. Os conceitos de
medição envolvem algumas das habilidades mentais, usadas para contar, mas
desenvolvem, também, habilidades para comparar.
Atividades que podem ser proveitosas são as que fazem comparações
utilizando partes do corpo para medir. Pode-se, por exemplo, calcular as
dimensões dos objetos da sala de aula, explorar os conceitos de área e volume, a
medição do tempo, encontrar áreas de figuras irregulares, como a comparação de
continentes, por exemplo. A utilização de algumas ferramentas de medição
podem ser interessantes, despertando a curiosidade dos alunos, como a balança,
o pêndulo a bússola e relógios.
As ideias matemáticas derivadas dessa atividade são:
_____________ 40 Pinxten, R., van Dooren, I. y Harvey, F., The Antropology of Space, University of Pensylvania Press,1983. 41 Preposições. Descrições de percursos. Localização do entorno. N.S.E.O. Orientação com a bússola. Em
cima/Em baixo. Esquerda/Direita. De frente/De trás. Viagem (distância). Linhas retas e curvas. O ângulo como giro. Rotações. Sistemas de localização: Coordenadas polares. Coordenadas 2D-3D. Mapas. Longitude/ latitude. Lugar geométrico. Mecanismos articulados. Círculos. Elipse. Vetor. Espiral.
91
Cuantificadores comparativos (más rápido, más degaldo). Ordenación.
Cualidades. Desarrolo de unidades (pesado - el más pesado - peso).
Precision de las unidades. Estimación. Longitud. Área. Volumen.
Tiempo. Temperatura. Peso. Unidades convencionales. Unidades
normalizadas. Sistema de unidades (métrico). Dinero. Unidades
Compuestas.42
. (BISHOP, 1999, p. 134)
Desenhar é a quarta atividade universal relacionada à Matemática. Em
nosso cotidiano, estamos cercados de formas geométricas; desenhar, portanto, é
a atividade que mais estabelece conexões perceptivas relacionadas com a
interação matemática e seu entorno. Atividades interessantes são as que
envolvem proporção, semelhança, congruência e transformações, fazendo
correspondência e comparação. A partir da observação das formas geométricas,
tanto as que estão no ambiente, como as que podem ser construídas, podem-se
estudar suas propriedades e verificar sua interação. Assim, a atividade desenhar
possibilita fazer relações entre a forma imaginada e a relação espacial percebida,
o que possibilita o processo de abstração.
Essa atividade envolve os aspectos:
Desenho. Abstração. Figura. Forma. Estética. Comparação de objetos a
partir da comparação de formas. Grande, pequeno. Semelhança.
Congruência. Propriedades das formas. Formas, figuras e sólidos
geométricos comuns. Redes. Superfícies. Mosaicos. Simetria. Proporção.
Razão. Modelos de escala. Ampliações. Rigidez das formas.43
(BISHOP,
1999, p. 135)
O jogo é a quinta atividade universal. Para esse autor, jogar é um tipo de
atividade social diferente de qualquer outro tipo de interação social, pois
desenvolve habilidades particulares do pensamento estratégico, fazendo
suposições e planejamento, modelando a sociedade, não apenas com fins
experimentais, mas, também, com fins educativos, e nesse contexto os
_____________ 42 Quantificadores comparativos (mais rápido, mais devagar). Ordenação. Qualidades. Unidades de
desenvolvimento (pesado, mais pesado). Precisão das unidades. Estimativa. Comprimento. Área. Volume. Tempo. Temperatura. Peso. Unidades convencionais. Unidades normalizadas. Sistemas de unidades (métrico). Dinheiro. Unidades Compostas. (tradução nossa)
43 Desenho. Abstração. Figura. Forma. Estética. Comparação de objetos a partir da comparação de formas. Grande, pequeno. Semelhança. Congruência. Propriedades das formas. Formas, figuras e sólidos geométricos comuns. Redes. Superfícies. Mosaicos. Simetria. Proporção. Razão. Modelos de escala. Ampliações. Rigidez das formas.(tradução nossa)
92
participantes se tornam jogadores. Essa estrutura implica ter regras lógicas, uma
vez que envolve um, dois ou mais jogadores. Outro aspecto importante
relacionado a essa atividade, diz respeito à imitação, ou seja, em muitos jogos
percebemos uma representação da realidade, o que representa um modo
diferente de abstrair certas estruturas dessa realidade.
Os conceitos relacionados a essa atividade são:
Juegos. Diversión. Acertijos. Paradojas. Modelización. Realidad
imaginada. Actividade regida por reglas. Razonamiento hipotético.
Procedimientos. Planes. Estrategias. Juegos de cooperación. Juegos de
competición. Juegos em solitario. Azar, predección.44
(BISHOP, 1999, p.
135)
Explicar é a sexta e última atividade apresentada por esse autor. Esta
atividade se preocupa em responder a pergunta: “Por quê?”, buscando uma teoria
explicativa para esclarecer a existência de fenômenos para compreender o
mundo. Atividades interessantes que podem ser desenvolvidas, são as que
aplicam ideais de justificar e criticar e as que envolvem o raciocínio lógico, pois
são atividades que contribuem para o desenvolvimento da ideia de demonstração.
Os resultados das atividades podem ser apresentados por cartazes, relatando os
procedimentos e as soluções encontradas.
As ideias matemáticas derivadas dessa atividade são:
Similitudes. Classificaciones. Convenciones. Classificación jerárquica de
objetos. Explicaciones de relatos. Conectores lógicos. Explicaciones
lingüísticas: Argumentos lógicos Demostraciones. Explicaciones
simbólicas: Ecuación / Desigualdad / Algoritmo / Función. Explicaciones
figurativas: Gráficas / Diagramas / Tablas / Matrices. Modelación
matemática. Criterios: validez interna / generalización externa.45
(BISHOP, 1999, p. 136)
_____________ 44 Jogos. Diversão. Charadas. Paradoxos. Modelação. Realidade imaginada. Atividade regida por regras.
Raciocínio hipotético. Procedimentos. Planos. Estratégias. Jogos de cooperação. Jogos de competição. Jogos solitários. Azar, predição. (tradução nossa).
45 Similaridades. Classificações. Conversões. Classificação hierárquica de objetos. Explicações de relatos. Conexões lógicas. Explicações linguísticas: Argumentos lógicos Demonstrações. Explicações simbólicas: Equação / Desigualdade / Algoritmo / Função. Explicações figurativas: Gráficas / Diagramas / Tabelas / Matrizes. Modelagem matemática. Critérios: validez interna / generalização externa. (tradução nossa)
93
Desse modo, Bishop (1999) considera que os conceitos relacionados a
essas atividades não podem ser desenvolvidos como uma lista de temas a serem
contemplados, mas mediante atividades apropriadas e adaptadas, de acordo com
nível dos alunos, com contextos acessíveis, que respeitem a capacidade
intelectual dos estudantes, dotados de variedade de contextos e situações.
O componente social pressupõe o emprego da reflexão sobre o emprego
da Matemática nas sociedades do passado, sobre seu emprego na sociedade
atual e sobre seu emprego na sociedade do futuro. Desse modo, esse
componente social representa a dimensão histórica completa do desenvolvimento
da Matemática e tem como princípio básico a exemplificação, o que possibilita
promover uma interface entre a Matemática e a sociedade. Para Bishop (1999), a
maneira mais adequada para fazer com que os alunos participem dessas
situações é por meio de projetos, que define como sendo “un trabajo de una
investigación personal emprendida por el alumno, empleando materiales de
referencia y redactada en forma de informe”46 (p. 144).
O autor ressalta três aspectos dos projetos, os quais, no seu entender, têm
uma relação especial com o componente social. Como primeiro aspecto, os
projetos permitem uma participação pessoal profunda, o que possibilita que a
aprendizagem ocorra de modo individualizado. Um segundo aspecto é que os
projetos possibilitam o emprego de vários materiais (livros, filmes, revistas, sites,
entre outros), instigando os alunos a mobilizarem seus saberes, o que possibilita
que os valores e as ideias matemáticas se conectem a outros aspectos do
currículo escolar. O terceiro aspecto está relacionado à reflexão por parte do
aluno, pois, desse modo, através da investigação e da documentação de uma
determinada situação social, com o auxílio do professor, poderá fazer conexões
entre as ideias matemáticas e as situações concretas, iniciando um processo de
análise crítica de valores e ideias.
O componente cultural que completa o currículo de enculturação
Matemática é baseado em investigações. Esse componente enfatiza a
experimentação e a reflexão sobre o que é a Matemática e considera que, apenas
_____________ 46 Um trabalho de investigação pessoal realizada pelo aluno, utilizando materiais de referência e escrito em
forma de relatório. (tradução nossa)
94
participando de atividades de investigação matemática, é possível apreciar
completamente os valores de abertura e mistério das ideias matemáticas.
Desse modo, os alunos não se limitam a praticar uma simples técnica, mas
atuam num nível intelectual muito mais elevado e
gran parte del êxito del trabajo de investigación depende del enseñante,
em primer lugar adaptando da situación a um nível adecuado para el niño
y em segundo lugar trabajando com el niño para desarrollar la
investigación com provecho. Además, el outro aspecto importante de lãs
investigaciones es que no tienen um punto final determinado. Siempre
nos podemos inventar outra derección que emprender, u outra suposición
desde la que partir, u outra cuestón que abordar. Esto significa que lãs
investigaciones, al igual que lós proyectos, se puedem adaptar pra
satisfazer objetivos individuales y personales.Algunos alumnos puedem
profundizar más que otros em su trabajo de investigación y, em
consecuencia, además de ofrecer uma introducción a [que és ser um
Matemático], para algunos alumnos este componente puede indicar uma
futura especialización de sua carrera. De hecho, tal vez quieram llegar a
ser matemáticos47
. (BISHOP, 1999, p. 150)
Nessa perspectiva, os estudos de Alan Bishop que fazem referência à
Matemática em uma perspectiva cultural, ou seja, presente em diferentes culturas,
a partir das seis atividades consideradas como universais, propõem que, para que
as situações de aprendizagens possam ser enculturadoras, se faz necessário que
o currículo possibilite o uso de diferentes estratégias no processo de ensino e
aprendizagem e, em sala de aula, o professor atue como mediador desse
processo, possibilitando ao aluno construir a aprendizagem com um amplo
significado.
No próximo capítulo faremos um delineamento do cenário da pesquisa,
apresentaremos os atores envolvidos nesse processo, no caso o perfil dos alunos
e da professora pesquisada.
_____________ 47 Grande parte do êxito do trabalho de investigação depende do professor, em primeiro lugar adaptando a
situação em um nível adequado para o aluno, em segundo lugar trabalhando com o aluno para desenvolver uma investigação. Além disso, um aspecto importante das investigações é que não possuem um ponto final determinado. Sempre podemos inventar outra direção a seguir, ou outra suposição ou outra questão a abordar. Isto significa que as investigações, igualmente como os projetos, podem se adaptar para satisfazer objetivos individuais e pessoais. Alguns alunos podem aprofundar mais que outros em seu trabalho de investigação, em consequência, além de oferecer uma introdução [o que é ser um Matemático]. Para alguns alunos este componente pode indicar uma futura especialização de sua carreira. Na verdade, talvez queiram vir a ser matemáticos. (tradução nossa)
95
96
CAPÍTULO 4
A PESQUISA DE CAMPO REALIZADA: CENÁRIO,
ATORES E COLETA DE INFORMAÇÕES
Uma escola sem pessoas seria um edifício sem vida. Quem a
torna viva são as pessoas: os alunos, os professores, os
funcionários e os pais, que não estando lá permanentemente,
com ela interagem. As pessoas são o sentido de sua existência.
Para elas existem os espaços, com elas se vive o tempo. As
pessoas socializam-se no contexto que elas próprias criam e
recriam. São o recurso sem o qual todos os outros recursos
seriam desperdício. Têm o poder da palavra através da qual se
exprimem, confrontam os seus pontos de vista, aprofundam os
seus pensamentos, revelam os seus sentimentos, verbalizam
iniciativas, assumem responsabilidades e organizam-se. As
relações das pessoas entre si e de si próprias com o seu
trabalho e com sua escola são a pedra de toque para a vivência
de um clima de escola que busca de uma educação melhor a
cada dia. (ALARCÃO, 2001, p. 20)
Neste capítulo, vamos caracterizar, para o leitor, a escola em que
realizamos a pesquisa, descrever o cenário onde os dados foram coletados, o
perfil da professora investigada e o dos alunos. No último tópico, apresentamos
as categorias de análise.
97
A importância atribuída a este momento baseia-se na crença de que para
entender como se desenvolve o currículo praticado em uma sala de aula da EJA,
devemos observar e estudá-la em sua realidade.
No interior da sala de aula, os valores pessoais interagem, pois cada aluno
possui visões próprias de seu mundo, sua vida e, diante dessa heterogeneidade,
cabe ao professor criar possibilidades para a construção do conhecimento,
respeitando os saberes dos alunos, descobrindo o melhor modo para, a partir do
conhecimento do aluno, transmitir-lhes o conhecimento escolar.
4.1 O cenário da pesquisa
A pesquisa realizou-se em uma escola localizada em uma região central da
cidade, a uma quadra de uma avenida comercial importante, sendo de fácil
acesso através de ônibus ou trem, principalmente no caso dos alunos da EJA,
que trabalham ou moram em outras regiões, para estudarem tranquilamente, uma
vez que há transporte de fácil acesso para retornar para casa.
A área residencial no entorno da escola é constituída por casas e prédios e
a área comercial possui estabelecimentos de pequeno porte, como academias,
padarias, supermercados, restaurantes e vários barzinhos. O mesmo quarteirão
abriga uma Biblioteca Pública e um teatro.
A escola é muito bem estruturada, funcionando em três períodos: manhã,
tarde e noite. Atende na modalidade Regular o Ensino Fundamental II (6º ao 9º
ano) no período manhã e tarde, e o Ensino Médio (1º ao 3º ano), nos períodos
manhã e noite, oferecendo no período noturno a modalidade EJA.
São dois prédios distintos, um deles com a parte administrativa no térreo e,
no primeiro andar as salas de aulas, que são amplas, ventiladas e bem
organizadas, contando também com sala de professores, biblioteca e laboratório
de informática. Possui, também, no espaço externo uma quadra poliesportiva,
refeitório e cantina em área coberta. No pátio, estão dispostos dois confortáveis
jogos de sofás, os quais sempre que estive na escola visualizei alguns alunos
sentados confortavelmente. Num primeiro momento, não dei muita atenção aos
98
tais sofás no pátio, mas em certa ocasião, enquanto aguardava a professora para
a observação da aula, pude conversar com alguns alunos que lá estavam,
esperando pelo início de suas respectivas aulas, e uma senhora me relatou que
vinha do trabalho direto para a escola, de trem, e muitas vezes não via a hora de
chegar à escola para poder sentar ali e descansar um pouco a “cabeça e o corpo”
antes de começar a aula.
Considerando que cada Instituição tem uma identidade própria, fruto de
sua história particular, permeada por valores, expectativas e tradições, um olhar
atento para a escola, considerando seu entorno e o espaço físico, exprime seu
processo de construção social e nos diz muito a respeito de sua atuação e do
significado para os sujeitos nela envolvidos.
O primeiro contato foi por telefone, pois procurávamos uma escola que
atendesse alunos da EJA no Ensino Fundamental II ou no Ensino Médio. Em
virtude de essa escola contemplar a modalidade requerida, optamos por realizar a
pesquisa nessa Instituição e, também, por ser uma escola de fácil acesso,
próxima à residência de uma das pesquisadoras. Mas, para a realização do nosso
trabalho, não bastaria apenas a nossa escolha por essa Instituição, seria
necessário também a autorização da Direção e a aceitação do professor em nos
permitir assistir às suas aulas, portanto o próximo passo foi marcar um horário
para ir até a escola.
Ao chegar, quem nos atendeu foi o Coordenador da EJA e após um breve
panorama da pesquisa que pretendíamos desenvolver, ele se mostrou
interessado e, de imediato, nos indicou duas professoras com as quais
poderíamos conversar, visto que lecionavam tanto no Ensino Fundamental II
como no Ensino Médio da EJA, as quais iremos chamar de Ana e Bianca48.
Para um primeiro contato com as professoras, agendamos de acordo com
a disponibilidade delas, um encontro para apresentar nossa pesquisa, seus
objetivos, a importância das informações que seriam coletadas, e saber se elas
teriam o interesse em participar e autorizar a coleta de dados em suas aulas.
_____________ 48 Em conformidade com a conduta em pesquisas dessa natureza, tivemos o cuidado de preservar o sigilo
das informações e dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Portanto, os nomes Ana e Bianca são nomes fictícios.
99
No dia agendado, ao chegarmos à escola, o Coordenador da EJA nos
informou que somente a professora Bianca estava presente, a professora Ana por
motivos particulares não se encontrava nesse dia, e só estaria disponível na
próxima semana. O Coordenador sugeriu que conversássemos com a professora
Bianca, e caso esta aceitasse participar da pesquisa, ele acreditava que seria
mais viável realizar as observações nas salas dessa professora, considerando
que os alunos de sua turma eram mais velhos e mais comprometidos com os
estudos.
Conversamos com a professora Bianca, contamos-lhe o modo como seria
realizado nosso trabalho explicitando a importância e seus objetivos, mas embora
tenha mostrado interesse, confessou não se sentir muito à vontade com o fato de
ter suas aulas observadas. Explicamos a ela que, em conformidade com a
conduta em pesquisas dessa natureza, poderia ficar tranquila, pois teríamos o
cuidado em garantir-lhe o anonimato. Então, mais confiante com relação a esse
fato, aceitou participar, e acreditava que realizar o trabalho de pesquisa em suas
turmas seria mais interessante, devido aos alunos dessa turma serem mais
velhos, tranquilos e comprometidos com os estudos, acreditava que seria
desgastante a observação na sala de aula da turma em que a professora Ana
lecionava, confiando-nos ser uma sala muito difícil em termos de
comprometimento e indisciplina dos alunos.
Poderíamos, nesse momento, ter ajustado os dias e horários das aulas e
iniciado nossas observações. Afinal, realizar as observações em uma sala em que
os alunos são comprometidos com a aprendizagem, nos colocava de certo modo
em uma situação cômoda. Mas, ao mesmo tempo, o fato de os alunos da
professora Ana serem vistos como alunos indisciplinados e “difíceis de trabalhar”
aguçava nossa curiosidade, parecia-nos desafiador, e nos instigava saber: De
quais recursos ela dispõe para exercer seu trabalho? De que modo utiliza esses
recursos? E, mais ainda, sendo essa sala menos participativa, de que modo
mobiliza os saberes desses alunos?
Essas inquietações nos levaram a aguardar mais uma semana. Ao
conversarmos com a professora Ana, esta se mostrou acessível e interessada em
participar da pesquisa, foi simpática e se dispôs a responder a todas as nossas
100
perguntas, pedindo que, quando a dissertação estivesse pronta, tivesse acesso a
ela, como forma de conhecer uma análise de suas práticas e aperfeiçoar-se.
Também permitiu que conversássemos com os alunos e que acompanhássemos
suas aulas. Para uma melhor observação, concordamos que estaríamos
assistindo às aulas, a partir do início de um determinado conteúdo.
Com relação aos alunos dessa turma, relatou-nos que eles eram “difíceis”,
em termos de disciplina e com dificuldades em assimilar o conteúdo, e que, em
algumas atividades, se sentia “temerosa” em trabalhar com eles.
Agradecemos a atenção da professora Bianca, e por apresentar ao nosso
entender, um desafio maior ao trabalho, optamos em realizar a pesquisa com a
professora Ana.
4.2 O perfil dos alunos
Ao analisar o perfil dos alunos, observamos que 16 alunos têm até 30 anos
(88,8%), e os outros 2 alunos têm idade entre 31 a 40 anos (11,1%), o que
demonstra que a maior parte deles é composta por jovens. Uma primeira
consideração é a de que este tipo de jovem possui percursos diferentes que o de
outros jovens de sua mesma faixa etária, dos quais muitos já ingressaram no
nível superior ou cursos de especialização. Sua história assemelha-se à do
adulto, que volta à escola para concluir os estudos, em busca de uma formação,
mas suas condições tanto biológicas como psicológicas diferem destes. Fonseca
(2007, p. 22) assevera que “mesmo que estruturas socioeconômicas e culturais
imponham uma entrada cada vez mais precoce em algumas dimensões da vida
adulta, os modos como os velhos, os adultos, os jovens, os adolescentes ou as
crianças se inserem nessas dimensões são sensivelmente diferentes”.
Com relação ao sexo, 10 declaram ser do sexo masculino, sendo 8 do sexo
feminino, o que nos faz pressupor que, em relação a esta turma, a Educação de
Jovens e Adultos apresenta-se como um espaço sem distinção de gênero. Com
relação ao estado civil, 2 afirmaram ser casados, e somente 2 afirmaram ter
filhos.
101
Com relação à atuação profissional, dentre as diversas áreas em que
atuam, pudemos encontrar entre auxiliar fiscal, manicure, tecelão, frentista,
banhista de pet- shop e vendedores. Merece destaque o fato de 10 alunos
trabalharem com carteira assinada, o que representa um pouco mais que a
metade da sala de aula, e somente 4 trabalham de maneira informal. O mundo do
trabalho muitas vezes configura-se como um dos motivos de o jovem parar de
estudar, mas esse é o mesmo motivo que o impulsiona a retornar aos estudos.
Desse total, todos os alunos afirmaram ter parado de estudar em algum momento
de suas vidas.
Dentre as razões que os levaram a parar de estudar, encontramos diversos
motivos, dentre os quais: as questões familiares – 3 alunos; escola distante da
residência – 2 alunos; por reprovação – 2 alunos; para trabalhar – 11 alunos. Com
relação aos motivos que impulsionaram a volta aos estudos encontramos: entrar
no mercado de trabalho – 8 alunos; para conquistar um emprego melhor – 3
alunos; porque querem continuar estudando – 1 aluno; para melhorar a qualidade
de vida – 4 alunos; para buscar mais conhecimentos – 2 alunos.
Quando questionados sobre suas pretensões após concluírem o Ensino
Fundamental, 17 alunos pretendem prosseguir os estudos, sendo que desses, 9
alunos pensam em prosseguir no Ensino Médio, 5 alunos pretendem cursar o
Técnico e 4 alunos pretendem prosseguir até o Nível Superior.
Todos reconhecem a importância da escola em suas vidas. Com relação à
disciplina de Matemática, todos a consideram importante para sua vida fora da
escola, e quando questionados sobre o que mais sentem dificuldade na
aprendizagem matemática, apontam a resolução de problemas, dificuldades no
cálculo e que também depende do modo como o professor explica.
Assim, observamos que os alunos da EJA “percebem-se pressionados
pelas demandas do mercado de trabalho e pelos critérios de uma sociedade onde
o saber letrado é altamente valorizado”, e cumpre ao educador da EJA
“considerar esse tripé – necessidade, desejo e direito – ao acolher nossas alunas
e nossos alunos e tomá-los como sujeitos de conhecimento e aprendizagem, para
pautar nossas ações educativas, em particular, na Educação Matemática que
vamos desenvolver”, como bem o diz Fonseca (2007, p. 49).
102
4.3 O perfil da professora
Ana é graduada em Física e pós-graduada em Educação Matemática, atua
no magistério há vinte anos, sendo que desses, doze anos são dedicados à
Educação de Jovens e Adultos. Na escola pesquisada, trabalha há dois anos,
ministrando aulas para o 4º termo do Ensino Fundamental II e para o 3º termo do
Ensino Médio.
O que a motivou escolher essa modalidade de ensino para lecionar,
relaciona-se a uma escolha pessoal e à afinidade encontrada com os alunos.
Relata que os alunos da EJA se diferenciam pela maturidade, heterogeneidade,
aspirações, e pelo tempo de passagem pela escola, que é menor do que no
Ensino Regular. Percebemos, na fala de Ana, um vínculo de cunho afetivo ao se
referir aos alunos da EJA. Segundo Tardif (2006, p. 130) “boa parte do trabalho
docente é de cunho afetivo, emocional. Baseia-se em emoções, em afetos, na
capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e de
sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios
afetivos”.
Com relação ao modo como seleciona o material para trabalhar nos relata
haver muito material disponível para o professor “sabiamente” adequar a essa
modalidade de ensino e, em suas aulas, utiliza o livro didático, apenas para
algumas atividades, problemas ou exercícios, pois entende que o livro didático é
um apoio para o professor e um complemento às aulas para os alunos, tendo o
professor como condutor do processo. Ao preparar suas aulas, utiliza seus
conhecimentos sobre projetos e alguns materiais disponíveis, como o livro
didático, paradidáticos, textos.
Nas aulas, utiliza como recurso o computador, a calculadora, materiais de
geometria e instrumentos de medida, livros diversos. Relata-nos que não trabalha
com o uso de fórmulas, visto que considera que a teoria sai da prática.
Quanto à utilização de livro didático, aprovado pelo PNLD-EJA, iniciou os
conteúdos de Estatística no livro, baseado em leitura e interpretação de gráficos,
mas em virtude de muitos erros encontrados nos textos, em decisão conjunta com
os alunos optaram por não utilizá-lo. Como aspectos positivos encontrados no
103
livro, aponta a sequência das atividades, os conteúdos e as atividades, que têm
relação com os projetos que Ana desenvolve ao longo do ano, e como aspecto
negativo aponta a espessura (todas as disciplinas concentram-se num mesmo
volume). E, embora a metodologia e a abordagem adotadas pelos autores desse
material contemplem as particularidades dos alunos da EJA, ainda assim, se faz
necessária a adequação para cada turma.
4.4 Coleta dos dados pela pesquisadora
Na coleta dos dados, utilizamos como recursos o diário de bordo, máquina
fotográfica, gravador e filmadora. As filmagens foram de extrema importância,
pois, somente através dela, pudemos rever os protocolos referentes à fala dos
atores envolvidos, no caso a professora e os alunos, o que dificilmente
conseguiríamos apenas com fotos, gravações ou nossas anotações. Desse modo,
as filmagens nos revelam o movimento, os gestos, as falas, a dinâmica da sala de
aula propriamente dita.
Na sala de aula, nos posicionamos na primeira carteira no canto da sala,
em uma fileira não ocupada pelos alunos, ali permanecendo durante as
explicações da professora, evitando assim “atrapalhar” ou distrair a atenção dos
alunos. Somente após a explicação da professora, e no momento em que ela
circulava pela sala de aula, nos levantávamos e a acompanhávamos, registrando
as dúvidas dos alunos. Desse modo procuramos intervir o menos possível na sua
aula.
O questionário referente ao perfil da professora foi coletado antes de
assistirmos à sua aula, no entanto optamos por coletar os dados referentes ao
perfil dos alunos, somente após o final da atividade, pois temíamos que, caso os
dados fossem coletados antes, poderia haver maior intimidade com os alunos e
que esse fato influenciasse, depois, na coleta dos dados durante o
desenvolvimento das aulas. Pode ser que talvez um aluno resolvesse conversar
conosco durante as aulas, tirar dúvidas, ou qualquer outra informação. Desse
modo, após o desenvolvimento da atividade, procedemos à coleta dos dados dos
alunos e, como não havia mais o “temor” em comprometer os dados durante as
104
aulas, pudemos conversar com eles mais tranquilamente, saber seus anseios, e
perspectivas para o futuro.
4.5 Roteiro de observação e categorias de análise
Antes da e durante a coleta de dados em sala de aula nossa preocupação
era a de como organizar a nossa observação.
Apoiados nas referências teóricas e em reflexões com colegas do grupo de
pesquisa, do mesmo período em que assistia às aulas, fomos organizando um
roteiro de observação, destacando algumas categorias.
1. Objetivos de aprendizagem
2. Adequação do plano de atividades aos objetivos propostos
3. Gestão da sala de aula. Escolhas metodológicas,
4. Interação com os estudantes. Intervenções da professora.
5. Avaliação contínua das aprendizagens
Além desse conjunto de itens de observação, para analisar as atividades
propostas pela professora, faremos uso de um conjunto de descritores elaborados
pelo grupo de pesquisa e usado também nas dissertações de Januário (2012) e
Lima (2012).
Nos quadros a seguir, apresentamos os descritores elaborados a partir dos
trabalhos de autores como Bishop, Pires e Skovsmose.
105
Quadro 3. Descritores de Princípios do enfoque cultural do currículo de Matemática
Presença Ausência
Representatividade
As atividades visam não
apenas ao acesso à linguagem matemática, mas às explicações e teorizações,
às ideias intuitivas, à seguridade para explicar
determinados fenômenos, o
progresso, e aos porquês dos saberes.
Ênfase na linguagem
matemática, enfatizando um corpo de conhecimentos
prontos e fechados; ausência
de sentido e compreensão das ideias matemáticas.
Formalismo
As atividades incutem os conceitos matemáticos,
procurando articulá-los com
saberes informais e saberes técnicos.
As atividades privilegiam apenas um dos níveis ou apresentam os três, sem
articulá-los.
Acessibilidade
Situações de aprendizagem
que partam do contexto do aluno, ou de seu grupo
social, para o contexto da
Matemática, de modo a respeitar a capacidade intelectual do discente.
Situações que partam do
contexto matemático para o contexto do aluno – ou que só contemplem o contexto
matemático –, e que esteja acima da capacidade
intelectual daquele que
aprende.
Poder explicativo
Atividades que apresentem
explicações dos conceitos e ideias matemáticas e incutam
argumentos, para que os
alunos possam compreender e explicar situações
vivenciadas em seu meio
social.
Atividades que aplicam
conceitos e ideias matemáticas apenas por
meio de regras e técnicas.
Concepção ampla
e elementar
Atividades que estabelecem conexões das ideias
matemáticas entre diferentes contextos
Atividades apresentam aplicação de ideias
matemáticas apenas em um contexto
106
Quadro 4. Descritores de Componentes do currículo de enculturação
Presença Ausência
Componente simbólico
Apresentam os conceitos matemáticos interligados entre si, contemplando as seis atividades universais.
Os conceitos são abordados como temas estanques.
Componente social
Possibilita ao aluno utilizar as ideias matemáticas para
compreender os fatos sociais presentes em seu mundo vida, posicionando-os de
modo crítico.
Situações matemáticas desarticuladas de
acontecimentos sociais.
Componente cultural
As atividades solicitam ao aluno atitudes investigativas,
possibilitando a compreensão dos porquês dos saberes matemático.
Atividades que não solicitam o desvendar das ideias
matemáticas.
Quadro 5. Descritores de Critérios de seleção de conteúdos
Presença Ausência
Pelo uso no cotidiano
Os conteúdos mais enfatizados são aqueles que mostram a aplicabilidade da Matemática no cotidiano das
pessoas.
Nas atividades apresentadas, não são
frequentes as situações-problemas relacionadas ao
cotidiano das pessoas.
Pela necessidade de aprender mais
Matemática
Os conteúdos mais enfatizados são aqueles que
preparam o aluno para construir ideias matemáticas cada vez mais complexas.
Nas atividades apresentadas não há preocupação de sistematizar, generalizar
ideias matemáticas.
Pela tradição Os conteúdos são aqueles
guiados pela tradição pedagógica.
A ênfase é colocada em temas algébricos sem
atenção a temas referentes à geometria, à estatística entre
outros.
107
Quadro 6. Descritores de Organização dos conteúdos
Presença Ausência
Linear
Os conteúdos de cada assunto são apresentados
numa sequência linear, baseada na constituição de pré-requisitos, segundo a
lógica do mais simples para o mais complexo, mas sem
destaque às interconexões.
Tratamento de conteúdos de modo estanque, sem a preocupação com pré-
requisitos ou com a progressão do mais simples
para o mais complexo.
Em rede
Na organização dos conteúdos, estimula-se a
articulação entre os temas, permite-se maior flexibilidade
quanto ao nível de abordagem e o percurso curricular é ditado pela
atribuição de significados.
Conteúdos de modo geral são trabalhados uma única vez, sem articulação com o
que se aprendeu antes, mas supondo a existência de pré-
requisitos.
Quadro 7. Descritores de escolha de contextos
Paradigma do Exercício Paradigma da Investigação
Referências à matemática pura
Dominam atividades em que predominam procedimentos algorítmicos, uso de regras e
fórmulas, entre outros.
Dominam atividades em que predominam questões abertas, cuja solução
depende da criação de estratégias de resolução
pelos alunos.
Referências à semi-realidade
Dominam atividades como, por exemplo, compras,
vendas, cálculo de áreas a serem pintadas, mas são situações artificiais. Os
exercícios estão localizados numa semi-realidade do
aluno.
Atividades que enfatizam situações artificiais, porém
propiciam o uso de diferentes estratégias de resolução.
Referência à realidade
Atividades baseadas em situações vivenciadas pelos
alunos, tendo como finalidade o emprego de
algoritmo e procedimentos práticos.
Situações de aprendizagem que enfatizam experiências vivenciadas pelos alunos, objetivando a investigação na perspectiva de projetos.
108
Quadro 8. Descritores de opções metodológicas
Presença Ausência
O uso de diferentes
estratégias para uma mesma
atividade
Indica que os alunos têm acesso a diversas formas de solucionar a questão e são
estimulados a utilizar procedimentos próprios.
O professor não proporciona ao grupo a chance de usar diversos raciocínios para
resolver uma questão.
A presença de comentários dos
alunos com linguagem e
conhecimento próprio
Sinal de que o professor incentiva e valoriza a reflexão
e a autonomia.
Os alunos podem estar sendo levados a anotar
apenas a fala do professor ou as anotações que ele faz
no quadro.
O professor como mediador da
aprendizagem
O professor estabelece uma conversa com o estudante ao
comentar a estratégia utilizada, ou pedindo que acrescente, justifique ou
retome algum ponto.
O professor deixa de fazer observações dirigidas às
necessidades de cada aluno, usando o diálogo só nas
situações de grupo.
Progressão de desafios
Se existe uma progressão nos desafios propostos,
permitindo que o aluno use o que aprendeu anteriormente para resolver problemas mais
complexos.
Os conteúdos são trabalhados de forma fragmentada e não há variação no grau de
dificuldade nas situações propostas.
Neste capítulo caracterizamos para o leitor a escola em que realizamos a
pesquisa, descrevemos o cenário onde os dados foram coletados, o perfil da
professora investigada, dos alunos. No capítulo seguinte iremos descrever o
cenário em que a pesquisa foi realizada, no caso a sala de aula. Inicialmente
faremos uma descrição da atividade, e a seguir faremos a descrição do
desenvolvimento da atividade.
109
110
CCAAPPÍÍTTUULLOO 55
DENTRO DA SALA DE AULA
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-
fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino
continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco,
porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para
constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me
educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e
comunicar ou anunciar a novidade. (Freire, 1996, p. 32)
Neste capítulo, iremos descrever o cenário em que a pesquisa foi
realizada. Inicialmente, faremos uma descrição da atividade, apresentando ao
leitor quais materiais foram utilizados pela professora, o modo como os dados
foram coletados, organizados e analisados. A seguir faremos a descrição do
desenvolvimento da atividade.
Para diferenciar a fala do professor em relação à fala dos alunos optamos
por destacar todas as falas dos alunos em itálico.
111
5.1 Descrição da atividade proposta pela professora
Material utilizado:
� Objetos de base circular
� Instrumentos de medida
� Calculadora
� Folha quadriculada
Etapa 1 – Coleta dos dados
Escolha de alguns objetos de base circular, a seguir cálculo da medida do
diâmetro e da circunferência utilizando barbante, régua ou fita métrica.
Etapa 2 – Análise dos Dados
Os dados coletados foram organizados em uma tabela, contendo o nome
do objeto, o valor encontrado do diâmetro e o valor da circunferência. Após uma
discussão não conclusiva sobre a relação possível entre diâmetro e o perímetro
da circunferência, os alunos efetuaram o cálculo da razão de proporcionalidade
entre o valor obtido no diâmetro e no perímetro da circunferência. Esses valores
foram organizados em outra coluna da mesma tabela. A obtenção de valores
muito próximos chama a atenção sobre a sua igualdade envolvendo a discussão
sobre os erros na medida.
Etapa 3 - Análise dos resultados
Construção do gráfico no plano cartesiano e discussão sobre os valores
encontrados na atividade, cujo objetivo é transpor para um contexto prático o
comprimento da circunferência, do diâmetro, e após descobrir a presença do
número π.
A princípio, Ana não soube nos dizer onde os alunos encontrariam mais
dificuldades; primeiramente ela iria verificar o conhecimento deles sobre círculo. A
princípio, pensou em pedir para os alunos pesquisarem em casa, mas como eles
112
geralmente não o fazem, optou por ela mesma trazer os materiais, e verificar, à
medida que a aula transcorresse, quais conhecimentos eles já traziam consigo e,
a partir disso, interpretar a relação do perímetro da circunferência em relação ao
diâmetro, até os alunos verificarem o modo como se chega ao número π.
A avaliação aconteceu diariamente com a participação do aluno, e através
de questões no caderno, no final da atividade.
Ana trabalha essa atividade também na Disciplina de Apoio Curricular de
Matemática (DAC)49, visando “revisar” alguns conceitos de Geometria, realizando
medidas com o uso de instrumentos, e também cálculos de áreas e volumes. Nas
aulas, não trabalha com fórmulas, pois, no seu entender a teoria advém da
prática.
5.2 Descrição do desenvolvimento da atividade
Geralmente, as aulas começavam às 19h15min. Os alunos aglomeravam-
se do lado de fora da escola até o portão ser aberto às 19h, podendo adentrar o
espaço escolar a qualquer momento, a partir desse horário, ou dele se retirar.
Conversando com a professora, ela nos informou que havia 35 alunos
matriculados, mas que nem todos compareciam diariamente. No início do ano
letivo, a frequência era maior, mas conforme o ano foi transcorrendo os alunos
foram faltando e muitos deixaram de comparecer de vez.
Um fato que nos chamou a atenção durante a observação das aulas, foi a
rotatividade de entrada e saída dos alunos da sala. Mesmo após a entrada em
sala de aula da maioria dos alunos, os demais alunos que ainda estavam fora
poderiam estar entrando na sala de aula a qualquer momento. Do mesmo modo,
aqueles que lá dentro estavam também poderiam se ausentar a qualquer
momento, independente do sinal. De certo modo, esse fato acabava por
prejudicar o andamento da aula, pois sempre que um aluno entrava ou saía,
_____________ 49 DAC é uma disciplina do currículo do 3º ano do Ensino Médio, Regular ou EJA, do Estado de São Paulo,
que tem por objetivo discutir temas interdisciplinares facilitando a integração das diversas disciplinas dentre as quais a Matemática.
113
embora a professora não interrompesse sua aula, essa movimentação desviava a
atenção dos demais que estavam participando da aula.
Outro fato que também nos chamou a atenção foi a rotatividade em relação
à presença dos alunos. Nos dias em que realizamos as observações,
constatamos que somente alguns alunos eram sempre os mesmos, geralmente 8
alunos, os demais estavam presente em dias alternados. Esse fato dificultava o
andamento da matéria, pois sempre que um aluno entrava na sala de aula, tinha
que se inteirar com outro colega já presente, para saber em qual parte estava a
atividade. Nesse sentido, Tardif (2002, p. 133) assinala que “um dos principais
problemas do ofício de professor é trabalhar com um objeto que, de uma maneira
ou de outra, foge sempre ao controle do trabalhador”.
Apesar desse interveniente a professora procurava manter uma relação de
cordialidade com os alunos. No início das aulas, enquanto aguardava a entrada
dos alunos, sempre aproveitava para conversar com os que já estavam
presentes. Em nosso primeiro dia de observação, estavam presentes no início da
aula 6 alunos. Pudemos perceber tanto nesse dia, assim como nos demais que
transcorreram que, sempre no início das aulas, Ana gostava de conversar com os
alunos, e retomar a atividade que eles estavam realizando, enquanto os demais
iam chegando e a sala ficava com um número maior de alunos. Relata-nos essa
ocorrência como rotineira, pois, dificilmente a sala estava completa na primeira
aula, os alunos iam entrando aos poucos e, portanto ela sempre retomava
rapidamente a última aula.
Observação – a partir da descrição da didática das aulas e dos procedimentos propriamente ditos, da professora Ana, e apenas nesse contexto, usaremos o tempo presente, para manter mais nítida a vivacidade do processo.
Inicia-se a aula às 19h15. Ana explica que, a partir daquela aula, eles
estariam desenvolvendo uma atividade relacionada ao número π. Coloca sobre a
mesa uma caixa de papelão com alguns objetos “redondos”. Observamos que os
alunos ficam aguçados olhando os objetos e curiosos para saber o que estariam
fazendo com aquele material. A professora coloca uma mesa no centro da sala e
começa a dispor alguns objetos sobre ela, tais como: disco de vinil, CD, tubinho
114
do rolo de papel higiênico, frasco de remédio, tampa de objetos diversos, cano de
PVC.
Figura 5. Objetos dispostos na mesa
Foto autorizada pela Professora.
À medida que dispunha os objetos sobre a mesa, aproveita para questionar
os alunos:
− Vocês conhecem esse objeto? E esse?
Os alunos observam os objetos mostrados pela professora e, ao se
familiarizarem com eles, começavam a falar os nomes de cada um.
Após colocar os objetos sobre a mesa, Ana explica que aquelas eram
algumas sugestões que trouxera, mas que os alunos, provavelmente, teriam
outros com eles, na bolsa ou na mochila, e então os questiona:
− Ao observar esses objetos o que vocês percebem? Que tipo de forma
tem esses objetos?
− São redondos. [respondem os alunos]
− Aqui na sala de aula, olhando ao nosso redor, onde podemos encontrar
objetos com essas formas?
− Lixo, tampa do lixo, bagulho da cortina (referindo-se ao varão da
cortina). Observamos que, mesmo o aluno referindo-se ao varão da
cortina como “bagulho da cortina”, Ana respeita o seu modo de se
expressar.
115
Alguns alunos também mostram alguns objetos pessoais como batom,
anel, espelho.
− O que caracteriza as formas desses objetos?
− São redondos.
− Mas eles são diferentes?
− Sim, são.
− O que eles têm de diferenças?
− Uns são maiores e outros menores. [alguns alunos respondem]
− Então, vocês estão dizendo que eles têm o mesmo formato, mas são de
tamanhos diferentes. Se compararmos a altura deles, eles são
diferentes?
A professora pega o tubo de PVC e questiona: Como chama esse
tamanho?
− Comprimento. [alguns alunos]
− Como posso fazer para medir esse tamanho? Como faço para medir o
comprimento?
Alguns alunos gesticulam [mostrando que poderia ser medido colocando o
objeto na horizontal e outros afirmavam que na vertical].
− Posso medir com a régua?
Os alunos afirmam que sim.
Pega o rolinho de papel higiênico e questiona novamente.
− Posso medir com a fita métrica?
Mais uma vez, os alunos afirmam que sim.
Vira o rolinho e questiona. E esse comprimento, o redondo, como eu posso
medir?
116
Enquanto os demais observam o objeto, um aluno questiona:
− O diâmetro?
− Isso, o diâmetro. Como faço para medir o diâmetro desses objetos?
Os alunos olham para o objeto, mas não respondem.
− O que é o diâmetro?
Continuam a olhar o objeto, mas ainda não respondem. Então, a
professora segue com seus questionamentos.
− Temos alguns instrumentos para medir o diâmetro aqui, como a régua e
a fita métrica. Mas como fazemos para medir o diâmetro? Vocês
concordam ou não, que esses objetos têm diâmetros diferentes?
Os alunos concordam.
Mais uma vez a professora questiona. Mas, o que significa diâmetro?
− O espaço interno. [responde um aluno, enquanto os demais observam
atentamente].
Ana se dirige ao aluno que respondeu, pegou o rolo de papel e pediu para
que ele mostrasse como é que faz para medir o diâmetro. O aluno olha o rolo de
papel, mas não consegue responder. Então Ana pega o objeto, vai até a lousa e
desenha a forma redonda do rolo de papel e questionou:
− Quero que vocês olhem essa figura e me digam onde é o diâmetro.
Os alunos olham, mas não respondem. Novamente, Ana pega alguns
objetos da caixa, e questiona os alunos. Olhando só a forma redonda, como
vocês desenham o diâmetro?
− O círculo? [pergunta um aluno]
− Vocês falaram algumas palavras interessantes: redondo, comprimento,
diâmetro, e agora círculo. [escreve na lousa essas palavras]. Mas ainda
não responderam, o que é o diâmetro?
− A largura? [pergunta outro aluno].
− A largura do quê? Mostre pra mim como você mede essa largura.
117
Ana se dirige até a caixa sobre a mesa, pega a régua e o CD, e os entrega
para o aluno mostrar como medir a largura. O aluno mede com a régua,
mostrando como acreditava que fosse medir a largura.
A professora observa o modo como o aluno mediu a largura, pega, então o
CD e a régua e mostra para os demais alunos da sala o modo medido pelo aluno,
e continua com os questionamentos:
− Então o diâmetro é a medida que se obtém com a régua de um ponto ao
outro. Mas como saber se esse é mesmo o diâmetro? E não esse?
Ana desenha uma circunferência na lousa, começa a ligar vários pontos
dentro da circunferência ao mesmo tempo em que questiona os alunos:
Figura 6. Circunferência traçada na lousa
Foto autorizada pela Professora.
− Se o diâmetro é a distância entre dois pontos da circunferência, como
saber se o diâmetro é a distancia entre A e B, e não entre A e C ou as
demais distâncias que coloquei?
− Porque divide o meio certo [responde baixinho um aluno].
− Você quer dizer que é porque ele passa bem no meio, no centro da
circunferência. Então diâmetro é a distancia entre dois pontos da
circunferência quando passa pelo meio, no ponto central, ou seja,
exatamente na metade.
118
Um aluno se levanta, dirige-se até a lousa e mostra que o diâmetro é a reta
que Ana traçou no centro da circunferência, ligando os pontos a e b, afirmando
que o diâmetro é a reta que passa bem no centro e continua:
− Dividindo assim a circunferência se quiser dá para medir os ângulos
também.
− Isso mesmo, podemos falar de ângulos aqui, relacionando ângulos com a
circunferência. Quando damos a volta completa percorrendo todos os
pontos da circunferência temos 360º e quando percorremos a metade
temos 180º. Então somando a metade com a outra metade temos 360º.
Mas, vamos, agora, nos concentrar nas medidas que iremos utilizar, no
caso o comprimento da circunferência. Vocês sabem qual a diferença
entre circunferência e círculo?
Os alunos olham, mas não respondem.
− A circunferência é todo esse comprimento (mostrando aos alunos todo o
contorno) e círculo seria toda a área interna desse limite. Agora vocês
vão escolher um objeto aqui na caixa e medir o diâmetro. Todos já
sabem medir o diâmetro?
Os alunos afirmam que sim.
− Vamos medir a circunferência também. Como podemos medir essa
circunferência? Dá para medir com a régua?
− Não, só com o barbante. [afirma um aluno]
− O diâmetro vocês podem medir com a régua. A circunferência vocês
podem medir com a fita métrica ou utilizar o barbante e depois transferir
os dados para a régua.
Ana pede para cada aluno pegar um objeto na caixa, desenhar no caderno
o objeto escolhido, medir o diâmetro e a circunferência, e depois trocarem o
objeto com os colegas de sala, até todos usarem os objetos escolhidos por cada
um, desenhado e medido no caderno. Depois que todos tivessem concluído as
medições, os dados seriam colocados na lousa.
119
Todos se dirigem à caixa e escolhem um objeto. Nesse momento,
observamos um clima de total interação na sala, tanto no que diz respeito aos
alunos entre si como entre a professora e os alunos. A professora Ana se
movimenta na sala durante todo o tempo em que os alunos realizam a medição,
auxiliando-os em suas dificuldades.
Após os alunos realizarem as medidas e anotarem os dados no caderno,
Ana propõe que os dados sejam dispostos em uma tabela. Desenha uma tabela
na lousa e mostra o modo como deveriam dispor seus dados. Na tabela, deveriam
constar o valor do diâmetro, representado pela letra D, o valor da circunferência,
representado pela letra C, e a razão entre o diâmetro e a circunferência,
representado por C/D, e utilizar como unidade padrão de medida o centímetro.
Tabela 6. Modo como os alunos deveriam dispor os dados no caderno
D(cm) C(cm) C / D (cm)
Ana pede para que os alunos digam os valores encontrados, para que ela
possa colocá-los na lousa para a visualização de todos.
− Qual a maior medida de circunferência que vocês encontraram?
− 139 cm, responde um aluno, enquanto os demais afirmam ter encontrado
39 cm.
Ana se volta para o aluno que encontrou 139 cm e questionou:
− É isso mesmo? Não pode ser esse valor, se em 100 centímetros temos 1
metro, então não pode ser esse valor, porque esse valor é o CD (o maior
objeto que eles mediram) e não temos um CD medindo 1,40 cm.
− Vamos medir a circunferência do lixo?
Pede ajuda ao aluno e medem a circunferência do lixo encontrando como
resultado 133 cm. Nesse momento, notamos a presença do princípio do Poder
explicativo, pois Ana explica que o valor encontrado (no CD) não condizia com
uma medida possível, portanto o aluno passou a compreender o modo correto de
medir, não apenas por meio de regras técnicas, mas vivenciando essa situação,
podendo perceber na prática onde cometera o erro ao fazer marcar aquele
resultado.
120
A professora Ana se volta para a sala e continua perguntando as medidas
encontradas pelos alunos, mas agora pede que eles digam os valores na ordem
crescente, indo do menor para o maior valor encontrado.
− Quem tem o menor valor do diâmetro? O menor objeto foi o botom, qual
o valor do diâmetro?
− 2,5 cm.
− E a circunferência?
− 8,5 cm.
Ana continuava perguntando os valores para os alunos até preencherem
toda a tabela.
Com a tabela pronta, a professora pede para que todos a copiem no
caderno, pois ela serviria de base para a construção do gráfico. Também pede
para que os alunos calculem a razão entre a circunferência e o diâmetro,
explicando que, para esse cálculo, os alunos poderiam utilizar a calculadora. Para
isso, demonstra na lousa o modo como eles estariam calculando essa razão,
tomando os valores do cesto do lixo com circunferência medindo 133 cm e
diâmetro 41,5 cm. Anota o valor encontrado na tabela e pede aos alunos que, à
medida que fossem encontrando os valores, completassem a tabela no caderno.
Tabela 7. Valores coletados pelos alunos
D (cm) C (cm) C/D
2,5 8,5 3,40
3,5 12 3,42
4,0 12 3,00
4,5 13 2,88
5,5 18 3,27
6,5 20 3,07
9,0 32 3,55
11,8 39,2 3,32
3,8 12,2 3,21
6,0 17 2.83
41,5 133 3,21
121
Agora eu quero que vocês olhem para esses números aqui [referindo-se ao
valor encontrado da razão C/D]. Eles são parecidos ou não?
− São diferentes.
− Mas eles são muito diferentes?
Alguns alunos respondem que “não”, outros que “mais ou menos”.
− Qual o menor número? [referindo-se ao menor número da tabela]
− 2,83 cm.
− E o maior?
− 3,55 cm.
− De 2,83 cm até 3,55 cm quanto dá, mais ou menos, a média?
− 10 cm? [responde um aluno]
− Não brinca comigo.
− Qual a metade?
− Aproximada?
− Isso. A média entre o menor e o maior é, aproximadamente, 3,2 cm.
Nesse momento, Ana mostra aos alunos como calcular a média dos
valores encontrados da circunferência; encontrando 3,2 cm como resultado,
chama a atenção dos alunos com relação a valores muito próximos, quando se
calcula a razão entre diâmetro e a circunferência.
Ana é interrompida pelo sinal, que anuncia o término da aula, e avisa aos
alunos que na próxima aula eles estariam construindo o gráfico.
No início da nova aula, Ana retomou o assunto, afirmando que a tabela já
estava completa e que, então, iriam construir o gráfico.
− Com a tabela concluída, vamos agora colocar esses valores no gráfico.
Na verdade o que é um gráfico no plano cartesiano?
122
Os alunos não respondem.
− Esses gráficos que estamos fazendo no caderno, que características eles
têm? Nós fizemos vários gráficos, como o gráfico de pizza, barra, coluna,
e também o gráfico de linha, onde a gente colocava dois eixos.
O gráfico cartesiano é caracterizado pelo seguinte: são dois eixos
orientados que se cruzam, ou seja, é uma reta orientada dos valores menores
para os valores maiores e eles se cruzam no centro do plano cartesiano que é a
chamada origem, onde os valores abaixo do zero são os valores negativos e os
valores acima do zero são os valores positivos. No eixo horizontal, os valores
antes do zero são os negativos e após o zero são os valores positivos, e têm um
nome esses eixos, o eixo horizontal é chamado de abscissa e também conhecido
como eixo x, onde no nosso caso iremos colocar os valores do diâmetro.
O eixo vertical é chamamos de eixo das ordenadas, também conhecido
como eixo y, onde iremos colocar os valores da circunferência; portanto,
colocaremos os valores do diâmetro na abscissa e os valores da circunferência na
ordenada. Vocês se lembram dos pares ordenados? Então, por exemplo, se eu
tenho um valor para x = 1 e a ele vai corresponder um valor y = 4. Associando
esses valores, no caso (1,4), esse par de números que um corresponde ao outro
é chamado de coordenada.
Sabe aquela historia da batalha naval que você localiza um ponto que vai
ser atingido. No nosso caso, o mar seria o plano, e nesse sistema de eixos você
vai localizar os alvos.
− Os submarinos, destroyers, navios.
− Isso mesmo, nesse caso se o submarino da batalha naval estiver
localizado aqui no nosso plano cartesiano, como é que você vai
especificar a localização deles? Você vai dizer o valor da coordenada
dele, no caso 1 e 4.
− Outra coisa, se pensarmos no plano como um todo, os dois eixos que se
cruzam na origem dividem o espaço em quantas partes?
− Quatro.
123
− Cada uma dessas partes é chamada de quadrante. Aqui temos o 1º
quadrante. Onde vocês acham que está o 2º quadrante? Onde vocês
colocariam o 2º quadrante?
Os alunos olham e cada um aponta onde colocaria o 2º quadrante. Ana
explica que a ordem dos quadrantes obedece ao sentido horário.
− Pensem no ponteiro do relógio, ele gira no sentido horário (gesticula com
as mãos para os alunos, mostrando como é o sentido horário). Como
seria o sentido anti-horário?
− O contrário. (Alguns alunos gesticulam com as mãos).
− Então, o sentido para dar nome ao quadrante é o sentido anti-horário, ou
seja, contrário ao giro dos ponteiros do relógio. No nosso gráfico vamos
trabalhar com o quadrante que tem os valores de x e de y positivos,
porque o diâmetro e o comprimento da circunferência são medidas
positivas.
Ao fazer uma analogia do plano cartesiano com regras do jogo da batalha
naval, explicar o sentido anti-horário, utilizando como exemplo os ponteiros do
relógio, Ana possibilitou que o aluno utilizasse os conceitos matemáticos para
compreender e fazer analogias situações presentes no seu mundo vida,
características essas que podemos encontrar no Componente social.
Ana começa a traçar os eixos na lousa e pergunta: Qual o nome, no caso
desse exemplo que estamos fazendo, da variável x?
− Não sei, fala aí. [responde um aluno, enquanto os demais observam].
− Já falei é a abscissa, mas no caso da nossa medida é o diâmetro ou a
circunferência?
− Diâmetro. [respondem os alunos]
− Vamos colocar o diâmetro em que unidade?
− Ah! não sei, depende... [responde o mesmo aluno].
− Você não estava na aula de segunda feira...
− Não tava meu. [afirma o aluno]
124
− Então, nós medimos com a régua e com a fita métrica, e qual a unidade
de medida que utilizamos? Em milímetro? Em centímetro? Em metro?
− Em centímetros, [respondem os alunos].
− Vamos concentrar nossa atenção no 1º quadrante do plano cartesiano, e
construir a escala numérica para colocar esses valores. Para isso temos
que saber o limite, que vai do menor diâmetro até o maior. Qual o menor
diâmetro que vocês têm na tabela?
− 2,5 cm. [respondem os alunos]
− Isso mesmo, 2,5 cm, acho que foi o valor do botom. Então, o menor valor
é 2,5 cm, e o maior foi a tampa de lixo, mas como o valor da tampa está
muito distante do nosso conjunto de valores, não vamos colocá-la.
A professora pega uma folha quadriculada e pede para que os alunos
façam o mesmo, para que verifiquem o modo como irão colocar os dados na
folha. No caso, na vertical serão colocados os dados do comprimento da
circunferência e na horizontal os valores do diâmetro.
− Sendo a maior medida 12 cm, se colocarmos de um em um quadradinho,
quantos quadradinhos teremos que usar?
− 12 quadradinhos. [respondem os alunos]
− Contem e vejam se dá para colocar.
− Dá para colocar metade. [responde um aluno]
− erá que dá para pôr, então, de dois em dois quadradinhos cada cm para
ocupar todo o espaço do papel?
− Dá sim, professora. De dois em dois quadradinhos dá. [responde um
aluno]
− Então vamos fazer a cada dois quadradinhos, que, na verdade, é um
centímetro, então nós vamos representar 1 cm mesmo, olha que
interessante, se vocês pegarem a régua, cada quadradinho tem 0,5 cm.
Então a cada dois quadradinhos vocês tê1cm. E aí vocês vão localizar os
valores de diâmetro na reta numérica. Vamos colocar até 12 cm porque o
maior valor é 11,8. Vamos lá, que nosso tempo é rápido. Qual o maior
valor da circunferência? Acho que 40 cm ou 39 cm, né?
125
− 39 cm professora [responde um aluno]
− Então vamos fazer de 5 cm em 5 cm cada dois quadradinhos, que acho
que dá. Essa é uma sugestão, mas se quiserem podem fazer de outro
jeito também.
Um aluno fala que não tem régua para fazer. A professora explica que ele
recebeu o papel quadriculado, e embora menos preciso, dá para ele fazer; dirige-
se até o aluno e mostra como ele pode fazer. Conforme anda pela sala, os alunos
vão perguntando se o modo que eles estão fazendo está certo, pois cada qual
adota uma escala. Ana vai olhando cada um, até o final da aula.
Poderíamos conjecturar que seria mais simples e rápido se Ana já dissesse
aos alunos qual a medida exata poderiam “todos” utilizar, mais eis que aí se
encontra o desafio, o mistério, para os alunos. O modo como Ana propôs
possibilitou que fossem juntos construindo a ideia, no caso, qual a melhor escala
poderiam utilizar. Percebemos também que essa descoberta foi de uma maneira
direcionada, convencionando-se, desse modo, que para o eixo das ordenadas
seria colocado o valor circunferência, utilizando dois quadradinhos para
representar cada centímetro, e no eixo das abscissas, o valor do diâmetro,
utilizando 5 cm a cada dois quadradinhos.
Como o tempo não foi suficiente para fazer a construção do gráfico, teve
que retomar o trabalho no início da aula seguinte. A aula começa com a
professora traçando o eixo x e y na lousa, ao que um aluno pergunta:
− É para copiar isso aí professora?
− Sim.
− No caderno?
− No caderno, ou melhor, fazer no papel quadriculado.
Outro aluno pergunta: É pra copiar isso que você ta escrevendo aí agora?
− Do que você ta falando?
− Do gráfico.
− É para fazer, não é para copiar, é diferente... é para você ir
acompanhando e fazendo no seu papel quadriculado.
− Qual? (referindo-se a qual papel quadriculado)
126
A professora pede para que uma aluna dê o papel quadriculado ao aluno.
− Mas tem que fazer na folha?
− Tem que fazer, não é copiar, porque quando é só copiado você nem
entende o que está fazendo, você vai ter que ter a tabela do lado, porque
eu não tenho a tabela aqui e não vou copiá-la de novo, senta com
alguém que tem a tabela, que eu vou fazer os primeiros e vocês
continuam os seguintes.
Uma aluna interfere, dizendo que esses alunos estavam presentes no dia,
mas como ficaram conversando não anotaram os dados da tabela no caderno.
A professora tenta prosseguir, mas um dos alunos levanta para mostrar o
caderno e para a professora ver se ele tem a tabela. Mais uma vez, a professora
tenta prosseguir, mas nessa aula os alunos se mostram falantes e dispersos.
− Psiu... vocês falam muito junto comigo, assim ninguém entende nada,
nem eu entendo.
Mas, ainda assim, os alunos continuam a conversar na aula, sendo que os
que não estão com a tabela sentam com alguns colegas para pegar os dados.
Diante do tumulto a professora tenta explicar como irão fazer o gráfico, mas não
consegue prosseguir.
− Gente, posso falar? Vamos retomar, já falei desde o primeiro dia de aula
para vocês, os meus alunos eu não quero que sejam papagaios, que
fiquem só repetindo, nós somos seres pensantes, temos que pensar e
entender o que está sendo falando, não só copiando, copiando,
copiando, então eu gosto que os meus alunos participem da aula, então
vamos juntos. Vamos colocar a escala do diâmetro em centímetros.
Olhando na tabela, olhem para a tabela, olhem para a ta- be-la, [fala
pausadamente, e em tom mais alto] vamos fazer a leitura da tabela
[reforça a fala para que os alunos se concentrem].
− Com relação ao diâmetro, qual o menor diâmetro que vocês mediram?
− 2.5 cm [respondem os alunos]
− E qual foi o maior, tirando o valor do lixo?
− 11,8 cm [respondem os alunos]
127
− Então vamos fazer uma escala de 0 a 15 cm [referindo-se ao eixo das
abscissas, onde coloca o valor do diâmetro], vamos pôr um pouco a mais
para ficar esteticamente melhor. No quadriculado anotem como se fosse
uma régua e anotem só a divisão maior, de 5 cm em 5 cm e cada
quadradinho valendo 1 cm. No valor do diâmetro vamos colocar cada
quadradinho valendo 1 cm. Ana coloca os valores na lousa.
Percebemos que nenhum aluno, dos que estavam presentes na última
aula, lembrou a professora de que já haviam convencionado que seria de 2 cm
em 2 cm. Ana vai caminhando pela sala para ver o modo que os alunos estão
fazendo. Durante seu percurso pela sala vai de mesa em mesa, observando se os
alunos estão conseguindo fazer. Alguns alunos utilizam a escala proposta por
Ana, outros preferem utilizar outras.
− Quero que vocês acompanhem, para depois vocês fazerem um
exercício. Agora vamos construir a escala da circunferência.
Vai caminhando na sala e pergunta para uma aluna. Onde esta sua tabela?
− Minha tabela está aqui na minha mente. [em tom de brincadeira]
A professora seriamente vai retornando para a frente da sala e a aluna
então diz.
− Olha aqui minha tabela, professora.
− Não [diante da brincadeira a professora prefere não mais olhar a tabela]
− Olha aqui [insiste], olha aqui a minha tabela professora. A professora
retorna e a aluna mostra a tabela no caderno.
− Agora localize na sua tabela a menor circunferência e a maior
circunferência medidas aqui na sala.
− 2,5 cm. [responde a aluna]
− Isso é diâmetro ou circunferência?
− Eu não marquei professora.
− O que é o diâmetro gente? [perguntando a todos da sala]
Um aluno responde: A circunferência menor é 8,5.
128
A professora retoma, explicando que circunferência é a medida da volta
toda que eles mediram, e diâmetro é a medida da distância entre os pontos. E
continua: Qual o maior valor da circunferência?
− 133 cm [responde um aluno]
− Não, esse valor nós excluímos, que é o valor da boca do lixo, qual o
outro valor?
− 39,2 cm. [responde o mesmo aluno]
Alguns alunos ainda estão com dificuldade para colocar os valores na
abscissa, então a professora novamente caminha entre eles, indo de mesa em
mesa, atendendo todos os alunos que estavam com dificuldade em colocar os
valores no gráfico. À medida que atende os alunos em sua mesa, alguns alunos
mostram o modo como estão fazendo. Alguns utilizam a escala adotada por Ana,
outros adotam outras escalas.
A professora retorna à lousa e continua.
− Qual o valor que vocês falaram?
− 39,2 [respondem os alunos]
− Então vamos fazer 0,40cm.
− 0,40 professora? Será que cabe? [pergunta um aluno]
A professora vai ate a mesa do aluno para verificar se cabe no
quadriculado
O sinal toca... e uma aluna diz:
− Tchau professora
− São duas aulas...
− Duas hoje??? [em tom alto e irônico...]
− Nós não estamos no fundamental da tarde estamos numa sala de EJA.
− Que EJA?
− Educação de jovens e adultos.
− Que adultos professora? (mais uma vez em tom de ironia).
129
A professora continua na mesa do aluno, e após verificar no quadriculado,
diz:
− Então aqui nós vamos fazer diferente. Cada quadradinho aqui vai valer
dois, de modo que se quando a gente andar cinco quadradinhos vamos
ter o número 10, vamos fazer uma escala reduzida, porque nós temos
que ir até 40.
Um aluno chama a professora e fala que fez de 10 em 10.
− Parabéns, você não estava fazendo nada... [em tom de admiração], olha
ele estava conversando e fez tudo!! Se vocês fizerem como ele fez, vai
ficar lá no limite [da folha quadriculada], pode ser que até falte um
[quadradinho], mas não tem problema, se faltar espaço é só colar a folha
no caderno e completar. Eu não vou fazer assim porque a lousa não vai
dar, então eu vou fazer menor.
Entram mais dois alunos, a professora distribui a folha quadriculada e pede
que coloquem os dados no gráfico. Caminha até a mesa de alguns alunos que
estão com dificuldades e os auxilia.
Chama a atenção de uma aluna que não está fazendo a tarefa e pede que
depois ela faça o gráfico, pois essa atividade irá valer nota. Os alunos começam a
falar demais, a professora percebe que eles começaram a perder o foco da
atividade, então se dirige à frente da sala e solicita que eles olhem para a tabela e
procurem no gráfico traçado na lousa onde se encontra o valor 2,5 cm do
diâmetro.
Os alunos olham para a lousa e Ana continua.
− É aqui né, na metade entre 0 e 5. Agora vou procurar qual o valor da
circunferência correspondente, quando o diâmetro é 2,5 cm, quanto
mede a circunferência?
− 8,5 cm [respondem os alunos]
− Então, esse é o ponto que representa o par ordenado 2,5 e 8,5. Ana
coloca os valores no gráfico.
− E o segundo ponto, qual é? O maior depois de 2,5 cm?
− 3,5 [respondem os alunos]
130
− Isso 3,5 cm, agora vocês vão fazendo, se tiverem dúvida me chamem
porque eu vou fazer o meu, o processo é esse, eu não quero que vocês
copiem, quero que olhem na tabela, procurem o próximo valor do
diâmetro e vejam a que valor corresponde à circunferência.
− Qual é o primeiro professora? [Pergunta um aluno].
Nesse momento, percebendo que alguns alunos ao fundo não sabiam
sequer qual era o primeiro número da tabela, pede para que tirem o fone do
ouvido [estavam ouvindo música] e guardem o equipamento eletrônico, desse
modo poderiam prestar mais atenção, e assim ela não precisaria falar tão alto.
Como alguns alunos não têm a tabela, assim como alguns alunos que
entraram ao longo da aula, mesmo que a princípio Ana tenha afirmado que não
colocaria os dados da tabela na lousa, nesse momento decide colocá-los, para
que os alunos que não têm os valores possam traçar o gráfico. No entanto, ao
perguntar aos alunos quais os valores da tabela, percebemos que os valores que
estes informam diferem dos valores anotados na primeira tabela.
Tabela 8. Valores da circunferência e do diâmetro
D(cm) C(cm)
0 0
2,5 8,5
3,5 12
4,0 12
4,5 13
5,5 18
6,5 20
9,0 32,0
11,8 39,2
− Tô perdido aqui, professora [fala um aluno].
− Você tem a tabela? [como o aluno não tem a tabela, Ana vai até o aluno,
pede para ele olhar os valores da lousa e explica como colocar os pontos
no gráfico]. Dirige-se à lousa e continua colocando as coordenadas dos
pontos no gráfico.
131
− Pronto, esses são os pontos experimentais dos valores... [não consegue
concluir, pois uma aluna interrompe]
− Esse aí é qual professora? Esse último aí [referindo-se à coordenada dos
pontos].
− Qual você acha que é? Localize na tabela o par ordenado que
corresponde a esse ponto aqui.
− Qual que é?
− Eu que pergunto.
− 11?
− Qual o valor de diâmetro correspondente a esse ponto aqui?
− 12
− Isso mesmo, faça assim com todos.
A professora se dirige à classe novamente, perguntando se alguém ainda
tem dúvida. Conforme anda pela sala, pega o gráfico de uma aluna que terminou
e mostra aos demais alunos da sala como fica o gráfico pronto. Uma outra aluna
mostra que utilizou uma escala menor.
− Isso mesmo, que belezura! [elogia a professora]
Continua auxiliando os demais até o término da aula, indo mesa por mesa,
conforme os alunos a chamam.
Figura 8. Valores colocados na lousa pela professora
Foto autorizada pela Professora.
132
− Vamos agora traçar um reta, não vai passar por todos os pontos, mas vai
passar mais ou menos, mas passando pela origem que é o zero.
Ana traça a reta passando pela origem [o zero], pede para os alunos
fazerem o mesmo com o seu gráfico, e após colar a folha quadriculada no
caderno. Coloca algumas questões na lousa, e pede para os alunos copiarem e
respondam no caderno.
E Ana conclui:
É tão bom... ver que conseguiram...primeiro o tumulto e agora essa paz!
Os minutos seguintes da aula, a professora utiliza para ir de mesa em
mesa verificar como os alunos estão construindo o gráfico. Avisa aos alunos que,
como avaliação, irá olhar e “carimbar” o gráfico no caderno, reforça que vale nota
a construção do gráfico. Também passa algumas questões para eles
responderem no caderno e trazerem na próxima aula.
• Determine o valor da circunferência para o diâmetro 8 cm.
• Encontre o diâmetro de um objeto cujo valor da circunferência seja 30
cm.
• Ache a relação matemática entre C e D.
• Calcule o valor médio da razão C/D.
Na aula seguinte a professora Ana fez um fechamento da atividade,
explicando aos alunos que a razão entre o perímetro de uma circunferência e o
seu diâmetro produz o número Pi, que é representado pela letra grega π, e na
maioria dos cálculos é comum aproximar o valor de π para 3,14. Portanto, se uma
circunferência tem perímetro P e o diâmetro D, o número Pi será a razão entre
eles. Salientou, também, que em atividades de medição deve-se sempre
considerar o erro na medição do objeto. A seguir, começa a olhar e carimbar os
cadernos dos alunos, verificando o modo como eles construíram o gráfico no
caderno e como responderam as questões propostas.
133
4.3 Reflexões sobre as observações das atividades e seu desenvolvimento
Em busca de responder nossa questão de pesquisa e discorrer sobre as
observações do currículo de Matemática praticado em uma turma da Educação
de Jovens e Adultos, nesse momento iremos proceder à análise das aulas da
professora e das tarefas propostas, considerando nossas reflexões a partir das
seis categorias que elegemos numa perspectiva cultural e com base nos teóricos
utilizados. Com relação ao princípio do enfoque cultural do currículo de
Matemática, iremos identificar a presença ou a ausência dos descritores:
representatividade, formalismo, acessibilidade, poder explicativo e concepção
ampla e elementar.
No diálogo estabelecido entre a professora e os alunos, detectamos a
presença do valor denominado progresso, pois, a todo o momento, a professora
estimulava o desenvolvimento do pensamento matemático dos alunos por meio
de seus questionamentos, ouvindo suas intervenções atentamente e acreditando
no desempenho dos alunos. Também encontramos a presença do sentimento
controle, quando Ana pediu para que colocassem os valores do diâmetro e da
circunferência na tabela em ordem crescente; de abertura, quando a professora
estimulou os alunos a explicarem, demonstrarem, entendendo a lógica
empregada, por exemplo, quando pediu para o aluno medir o diâmetro e localizar
através da medição onde ficava o diâmetro, a maior distância entre dois pontos;
nas ideias, mistério, quando a professora enfatiza as ideias abstratas da
Matemática, portanto ela propicia a construção do conhecimento ao estimular os
alunos a atribuírem significados às ideias abstratas.
Podemos constatar que toda manifestação da professora em relação à fala
dos alunos é acompanhada de um reforço verbal ou de gestos de confirmação ou
negação. Desse modo, no decorrer da atividade, encontramos a presença do
enfoque cultural do currículo de Matemática relacionado à representatividade,
pois a professora enfatiza não apenas a linguagem matemática, mas proporciona
aos alunos percorrerem os caminhos das ideias intuitivas, das teorizações para
explicar determinados fenômenos, possibilitando que compreendam as ideias
matemáticas envolvidas. Sendo assim, o conhecimento não é apresentado como
pronto ou fechado, mas ao contrário, a professora vai construindo esse
134
conhecimento aos poucos, primeiro a partir da observação, depois através de
seus questionamentos.
O princípio da representatividade pressupõe a reapresentação da cultura
Matemática considerando não apenas a tecnologia simbólica particular
desenvolvida nas atividades universais (contar, localizar, medir, desenhar, jogar,
explicar); inclui, também, os valores específicos próprios da cultura matemática:
ideologia do racionalismo, ideologia do objetismo, controle dos sentidos,
sentimento de progresso, sociologia da abertura e sociologia do mistério.
Um momento da aula que oportunizou esse princípio foi quando a
professora solicitou aos alunos medissem o diâmetro e a circunferência dos
objetos. Nesse momento, para realizar a medição do objeto cada aluno adotou
uma estratégia própria; assim, enquanto uns mediram utilizando a régua, outros
utilizaram a fita métrica, e outros mediram com o barbante, para depois passarem
a medida desse comprimento na régua. Desse modo, com o uso de estratégias
próprias, puderam medir os objetos, comprovar os valores encontrados e
socializar, num segundo momento, esses valores.
No desenvolvimento da atividade, a professora Ana estabeleceu uma
relação de interação com os alunos, circulando o tempo todo na sala,
conversando com eles, e através de seus questionamentos procurando articular o
saber informal com saberes técnicos. Por exemplo, no momento em que
perguntou quais formas os alunos observam nos objetos, a partir da resposta
“redondo”, ela constrói junto com os alunos alguns conceitos referentes às teorias,
aos elementos da circunferência, e à diferença entre círculo e circunferência.
Desse modo, nos processos desenvolvidos pelos alunos, ao procurar
articular o saber informal com saberes técnicos, explora os significados, os
conceitos, e incute nesse momento o princípio do enfoque cultural formalismo.
Um momento da aula em que pudemos encontrar esse princípio foi quando a
professora desenhou na lousa uma circunferência e ligou vários pontos dentro
dessa circunferência, perguntando aos alunos quais dos pontos representariam o
diâmetro. Quando o aluno se referiu ao diâmetro como sendo aquele que “divide o
meio certo”, Ana respeitou a linguagem utilizada pelo aluno, e complementou sua
observação afirmando: “Você quer dizer que é porque ele passa bem no meio, no
135
centro da circunferência. Então diâmetro é a distancia entre dois pontos da
circunferência quando passa pelo meio, no ponto central, ou seja, exatamente na
metade”.
O princípio da acessibilidade também foi contemplado na atividade
desenvolvida, pois as situações de aprendizagem partiam do contexto dos alunos,
de suas experiências, seus conhecimentos, para o contexto da Matemática.
Notamos a presença desse princípio na aula, pois, primeiro, Ana perguntava ao
aluno o nome que ele daria a determinado conceito ou objeto, para depois
construir a teoria. Um fato interessante, é que a professora já tinha como objetivo
que os alunos medissem o diâmetro da circunferência, no entanto, em momento
algum ela pediu de modo direto para que os alunos o fizessem. Podemos
observar que, através dos questionamentos da professora é que o elemento
“diâmetro” foi mencionado por um aluno e o modo como mediriam o diâmetro
também foi indicado por eles.
Apresentando as explicações dos conceitos e aplicando os conceitos e
ideias de modo prático, incute também o princípio do poder explicativo. Desse
modo, em diferentes momentos no decorrer da aula os alunos com o uso de
estratégias próprias, após medirem os objetos, e comprovarem os valores
encontrados, puderam articular suas ideias e socializar os valores encontrados.
Na construção do gráfico, a professora sugeriu uma escala que eles poderiam
adotar, mas deixou livre para que cada um optasse por sua estratégia.
Ao estabelecer conexões das ideias matemáticas dentro do próprio
contexto matemático durante a atividade, oportunizou o princípio da concepção
ampla e elementar.
Em relação aos indicadores dos componentes do currículo de enculturação
– Simbólico, Social e Cultural – encontramos a presença do componente
simbólico quando, ao interligar os conceitos matemáticos, contemplou, em
diferentes momentos da aula, as seis atividades universais: explicar, contar,
localizar, medir, desenhar e jogar.
A atividade desenhar é contemplada quando, ao observar as formas
geométricas, tanto as que estão no ambiente – como a tampa do cesto do lixo,
136
grade do ventilador – como as que a professora trouxe – CD, botom, tubo de PVC
– e as que os alunos trouxeram – batom, espelho – os alunos as desenharam no
caderno. Desse modo, o aspecto desenhar pode ser encontrado quando, partindo
da observação das formas geométricas dos objetos, os alunos desenharam sua
forma no caderno para, depois, medir o diâmetro, o que favoreceu, além de
estudar suas propriedades, verificar sua interação e a oportunidade contempla
também a abstração. Entendemos que, desse modo a professora, partia de
situações relacionadas ao entorno do aluno, o que possibilitou uma maior
interação e acessibilidade dos alunos com o saber matemático.
Identificamos a atividade medir quando, após desenhar no caderno, os
alunos procederam à medição dos mesmos objetos, utilizando como instrumentos
de medida – régua, fita métrica, barbante – o que favoreceu ao aluno explorar os
objetos e os conceitos de diâmetro e circunferência e cada aluno, ao fazer sua
escolha relacionada à qual instrumento estaria utilizando para fazer a medição
pôde socializar a sua escolha. Nesse contexto, entendemos que, ao explicar o
modo como estavam medindo o diâmetro e a circunferência, puderam utilizar
argumentos fundamentados nos saberes matemáticos para explicar os
procedimentos que utilizaram para chegar no valor encontrado. Esse momento da
atividade também possibilitou que o aluno pudesse explicar matematicamente o
modo como pensaram e chegaram até as resoluções apresentadas;
identificamos, portanto, nesse momento a atividade universal medir.
Ao longo da atividade, em vários momentos encontramos a atividade
contar. Após desenhar e medir os objetos, o aluno registrava e quantificava as
informações encontradas. Portanto, foi necessário observar, analisar como medir,
anotar os resultados, comparar com os valores encontrados com os colegas de
sala, transpor os dados para o caderno, colocar esses dados em ordem crescente
na tabela e depois proceder à construção do gráfico. Ao propor que os alunos
colocassem os dados em uma tabela, e depois construíssem um gráfico com
esses valores, a professora proporcionou a utilização da atividade universal
localizar.
Em relação à atividade jogar embora não utilizada pelos alunos, a
professora faz menção em relação a essa atividade universal, ao comparar o jogo
137
batalha naval, com o plano cartesiano, em que o mar seria o plano, e para
afundar os submarinos a localização seria dada pelo sistema de eixos.
Em nossas observações notamos a presença das atividades universais em
outros momentos da atividade proposta pela professora, algumas vezes estas
aparecem sozinhas e em outros momentos interagindo uma com a outra. Bishop
(1999) enfatiza que esses conceitos devem ser tratados como eixos
organizadores do currículo, os quais devem ser abordados em atividades com
contextos ricos relacionados com o mundo-vida dos alunos, deve explorar seu
significado, sua lógica, e fazer conexões com as ideias Matemáticas, o que
possibilita exemplificar e validar o poder explicativo.
Desse modo, a professora, ao propor essa atividade propicia que os alunos
mobilizem saberes e percorram o caminho da descoberta, façam pesquisas,
deduções e verificações apresentando processos de verificação que contemplam
os aspectos do currículo enculturador.
Podemos identificar em nossas observações a presença do componente do
currículo de enculturação relacionada ao componente social. Ao apresentar para
os alunos objetos que estão presentes em seu cotidiano, como tampa do cesto de
lixo, varão da cortina da sala de aula, tampa de garrafa, CDs, entre outros,
entendemos que a professora proporciona a articulação das situações
matemática com fatos sociais presentes no mundo e, ao promover nos alunos
atitudes investigativas, possibilita que eles compreendam e construam as ideias
matemáticas.
A professora poderia ter apresentado os dados já escritos em uma tabela e
solicitar apenas que os alunos calculassem a razão entre eles, mas ao manipular
os objetos e fazer a medição, a professora Ana possibilitou aos alunos que
interagissem com os materiais, observando, manipulando, medindo, o que
possibilita uma aprendizagem significativa. Em certo momento da aula, Ana
perguntou aos alunos qual a maior medida de circunferência encontrada por eles,
na medição de um CD, ao que um aluno respondeu ter sido 139 cm. A professora
explicou, então, que aquele valor seria impossível, pois 100 centímetros fazem 1
metro, e não existe nenhum CD de “1 metro e 40 centímetros”.
138
Para deixar bem clara a sua explicação, pega a fita métrica e com a ajuda
do aluno, medem a circunferência do lixo, mostrando ao aluno a diferença entre a
circunferência do lixo e a do CD. Este é um momento em que encontramos
características do poder explicativo, pois, ao medir a circunferência do lixo, o
aluno passa a compreender o modo correto de medir, utilizando a fita métrica, não
apenas por meio de regras técnicas, mas vivenciando a situação, e, portando,
conseguindo perceber, na prática, onde havia cometido seu erro ao dizer que o
CD media 139 cm, ao invés de 39 cm. Teve, também, como comparação o
tamanho do lixo, com 133 cm, com o do pequeno CD, o que o fez concluir ser
impossível aquela medida.
A presença do componente do currículo de enculturação relacionada ao
componente cultural é encontrada no decorrer da atividade em diferentes
momentos, ao considerarmos que, em relação aos alunos jovens e adultos a
aquisição do conhecimento matemático não se inicia apenas quando este
ingressa no processo formal de ensino, mas decorre de experiências vivenciadas
ao longo de sua trajetória de vida, portanto, ao socializar suas ideias, a sala de
aula passa a ser um local em que outros valores e as normas culturais entram em
contato.
Com relação aos descritores de critérios de seleção de conteúdos,
observamos que os conteúdos mais enfatizados são os que mostram a
aplicabilidade da Matemática relacionando ao cotidiano do aluno. Em diversos
momentos durante a aula, a professora exemplificava com situações conhecidas
pelos alunos. Na construção dos eixos das ordenadas e abscissas, ao mostrar a
localização dos quadrantes e que este são colocados em sentido anti-horário,
pediu para que os alunos fizessem uma analogia com os ponteiros do relógio, que
giram no sentido horário, e que no caso dos quadrantes esses são colocados em
sentido oposto ao giro dos ponteiros do relógio. Nesse momento pudemos
observar que muitos alunos olharam para seus relógios, e outros que não os
portavam olharam para os relógios dos colegas de sala.
No diálogo estabelecido entre a professora e os alunos, Ana atuava como
mediadora da aprendizagem; em alguns momentos, no decorrer da aula, ao
questionar os alunos, ajudava a dar significado aos conhecimentos matemáticos.
139
No tocante aos alunos jovens e adultos é importante considerar esses
conhecimentos, pois sua aprendizagem matemática ocorre durante toda sua vida
e, portanto, antes mesmo de retornarem à escola. A necessidade de aprender
mais Matemática prepara-os para que construam ideias matemáticas cada vez
mais complexas e, aos poucos, elas vão sendo construídas junto com os alunos.
Com relação à organização dos conteúdos, para atender a esse descritor
utilizamos as ideias de Pires (2000), referentes à organização linear e à ideia de
rede.
Na entrevista com a professora Ana, ela nos relata que o objetivo da
atividade é transpor para um contexto prático o comprimento da circunferência, do
diâmetro, e após isso, descobrir a presença do número π. Para tanto, a
professora poderia organizar em uma tabela os valores do diâmetro e da
circunferência e solicitar aos alunos para que calculassem a razão entre eles. No
entanto, o modo como conduziu a atividade possibilitou que os alunos
compreendessem outros conceitos matemáticos, valorizando a cultura
matemática e, nesse contexto, pôde estimular a articulação entre os diversos
temas tratados atribuindo significado, ao que, no entender de Pires (2000),
a apropriação da Matemática, pelo aluno, não pode limitar-se ao
conhecimento formal de definições, de resultados, de técnicas e de
demonstrações: é indispensável que os conhecimentos tenham significado
para ele a partir de questões que lhe são colocadas e que saiba mobilizá-
las para resolver problemas” (PIRES, 2000, p. 36)
Nesse contexto, a forma como foi conduzida a atividade possibilitou que os
alunos trabalhassem e retomassem alguns conceitos como gráficos, médias,
cálculo de diâmetro, elementos da circunferência, razão, unidades de medida,
plano cartesiano, eixo das ordenadas, coordenadas, quadrante, escala de
medida, ângulos, números naturais, números decimais. Esse modo de trabalhar
permite perspectivas interessantes para o ensino na abordagem curricular em
rede, e proporciona maior flexibilidade com relação ao nível de abordagem,
respeitando o nível do aluno e possibilitando uma ampla investigação e
exploração dos diversos conteúdos do currículo de Matemática. Desse modo, o
140
percurso curricular é ditado por uma aprendizagem significativa, sem a
necessidade de se prender na atual fragmentação do currículo.
Podemos observar na figura, os diversos conteúdos contemplados e
articulados no decorrer da atividade
Figura 9. Conteúdos contemplados na atividade
Fonte: Elaboração nossa.
Nesse percurso curricular, não há como prever qual caminho será o mais
curto, o mais fácil ou o mais interessante, pois à medida que os conteúdos são
apresentados, é por meio da interação com os alunos que o professor identifica
em quais momentos os eles apresentam maiores dificuldades. No entender de
Pires (2008),
Escolhidos alguns temas (nós), não importa quais, os primeiros fios
começam a ser puxados, dando início a percursos ditados pelas
significações numa ampliação de eixos temáticos. Com isso, há condições
de se fazer com que o estudo de qualquer conteúdo seja significativo para
o aluno e não justificado apenas pela sua qualidade de pré-requisito para
o estudo de outro conteúdo. (p. 54)
141
Com relação aos critérios para a escolha do contexto Matemático, na
análise desse descritor utilizamos a matriz com os seis tipos diferentes de
ambientes de aprendizagem propostas por Skovsmose (2010), que combina a
distinção entre os dois paradigmas de práticas de sala de aula (exercícios e
cenários para investigação), com os três tipos de referência (referências à
matemática pura; referência à semirrealidade e referência à realidade), é possível
obter uma matriz com seis tipos diferentes de ambientes de aprendizagem.
Quadro 2. Ambientes de aprendizagem
Exercícios Cenário para Investigação
Referências à matemática pura (1) (2)
Referências à semirrealidade (3) (4)
Referências à realidade (5) (6)
Fonte: (SKOVSMOSE, 2010, p. 23)
Considerando os ambientes (1), (3) e (5) que se referem ao paradigma do
exercício com referência à Matemática pura, à semirrealidade e à realidade,
respectivamente, e os ambientes (2), (4) e (6) que se encontram no cenário para
investigação, iremos analisar em que momento esses ambientes se fazem
presentes na atividade proposta pela professora Ana.
Encontramos o paradigma do exercício referente à Matemática pura,
ambiente (1), no momento em que a professora pediu para que os alunos
fizessem a tabulação dos dados na tabela, em ordem crescente. Nesse momento,
predomina o uso de procedimentos e a utilização de regras, podendo fazer uso da
calculadora para verificar o valor da razão entre a circunferência e o diâmetro.
Ainda com relação à referência à Matemática pura também encontramos
situações que oportunizam o paradigma da investigação, ambiente (2), por
exemplo, quando o aluno utiliza de estratégias próprias para medir, calcular e
organizar sua escala na folha quadriculada.
Em relação à referência à semirrealidade, no tocante ao paradigma do
exercício, ambiente (3), e ao paradigma da investigação, ambiente (4), retoma-se
Skovsmose (2010) que indica que nesses ambientes predominam atividades que
142
enfatizam situações artificiais e, portanto, localizados numa semirrealidade. Na
situação analisada os dados contidos nos exercícios foram coletados pelos
alunos, portando não são artificiais, e estão situados na realidade, ou seja, no
entorno do aluno.
O ambiente do tipo (5) e (6) fazem referência à realidade. Nesse ambiente,
as atividades são baseadas em situações vivenciadas pelos alunos, e têm como
finalidade o emprego de algoritmos e procedimentos práticos, considerando que
na atividade proposta os dados foram coletados pelos alunos.
Entendemos que a atividade apresentada pela professora Ana contempla
esse ambiente de aprendizagem, pois a todo o momento ela instiga, orienta, e
medeia a aprendizagem, proporcionando ao aluno assumir a posição de sujeito
ativo na construção do conhecimento, utilizando diferentes estratégias de
resolução. Desse modo, a atividade proposta contempla tanto a perspectiva do
paradigma do exercício, ambiente (5), como a perspectiva do paradigma da
investigação, ambiente (6).
Com relação à metodologia adotada pela professora, utiliza diferentes
estratégias no desenvolvimento da atividade, propiciando ao aluno encontrar o
melhor caminho, através de estratégias próprias, pois podendo fazer uso do
barbante, fita métrica ou régua, eles podem decidir qual o melhor método, sendo
estimulados a utilizar estratégias próprias, para conseguir a medição necessária.
Com relação à presença de comentários dos alunos com linguagem e
conhecimento próprio, a professora procurava respeitar a linguagem e o
conhecimento do aluno.
Ao pedir para que eles observassem ao seu redor na sala de aula,
observaram formas redondas, um aluno se referiu ao varão da cortina, como
sendo o “bagulho da cortina”, mas em nenhum momento, tanto nessa passagem
como em outras, a professora desapontou o aluno se exigindo o nome “exato” ou
ao que comumente é utilizado; ao contrário, respeitou sua linguagem, mas
orientou discretamente quanto ao nome utilizado, como observamos quando ela
retorna ao aluno: “isso... o varão da cortina”.
143
A professora atuou como mediadora da aprendizagem, pautada no diálogo
com os alunos; em alguns momentos ao questioná-los e conforme a resposta
dada, pedia para que justificassem sua escolha, caso, por exemplo, de quando
deu a régua e o CD para o aluno medir e mostrar qual modo ele mediria o
diâmetro.
Com relação à progressão dos desafios, a Professora Ana permitiu que o
aluno utilizasse os dados para resolver problemas mais complexos, no nosso
caso, a partir das medidas os alunos puderam construir o gráfico, calcular a
média. Ana perguntou aos alunos quais formas tinham os objetos que ela expôs
na mesa, ao que os alunos responderam que eram redondos, a partir do que, aos
poucos, ela foi construindo a teoria de círculo, circunferência, respeitando,
portanto a capacidade intelectual do aluno.
Desse modo, a professora ao propor essas atividades propiciou a
oportunidade de os alunos mobilizarem saberes e percorrerem o caminho da
descoberta, estimulando-os a que façam pesquisas, deduções e verificações;
procura transmitir ao aluno conhecimentos próprios da cultura formal da
Matemática, possibilitando a interação da linguagem informal, aquela próxima do
cotidiano do aluno para uma linguagem matemática formal.
144
CCOONNCCLLUUSSÕÕEESS EE CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS
Na dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando educador vão ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este conjunto de saber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens, no mundo e com ele, explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação. (FREIRE, 1983, p. 36)
Ao concluir esta pesquisa, gostaria de destacar, inicialmente, a importância
do curso de Mestrado Acadêmico em Educação Matemática no meu
desenvolvimento profissional, pois possibilitou ampliar meus conhecimentos sobre
a Educação de Jovens e Adultos. Nessa trajetória, foram de grande relevância as
disciplinas que cursei durante o mestrado, a participação no grupo de pesquisa,
as leituras realizadas, as reflexões e as intervenções pontuais de minha
orientadora.
O contato com o grupo de pesquisa possibilitou-me entender, por meio de
pesquisa, o processo de organização e desenvolvimento curricular de Matemática
para a Educação de Jovens e Adultos e a discussão dos dados desse estudo
levou-me a questionar, inclusive, minha prática, compartilhando minhas angústias
com os professores da escola em que leciono.
No trabalho, apresentamos alguns aspectos da trajetória da Educação de
Jovens e Adultos no Brasil, com a finalidade de situar as discussões atuais sobre
essa modalidade e entender o grau de importância que sempre foi dado à EJA e,
145
embora possamos encontrar avanços em diversos aspectos no caminho
percorrido, a princípio poucos são os olhares lançados para o fazer dos
educadores.
Desse modo, partimos do pressuposto de que, ao se pensar em uma
política pública para o público jovem e adulto, é necessário conhecer além do
perfil desses alunos que compõem a EJA e pensar na formação do professor,
quando nos referimos à organização e ao desenvolvimento curricular. Nesse
caso, o papel do professor frente ao currículo é determinante no processo de
ensino-aprendizagem e, em especial, quando nos reportamos à Educação de
Jovens e Adultos, que possui especificidades diferentes do ensino regular, pois é
o docente quem fará a transposição do currículo apresentado para o currículo
praticado pelos alunos.
Nessa perspectiva, com o desenvolvimento da pesquisa, procuramos
responder a seguinte questão diretriz: – De que modo o currículo de Matemática é
praticado pelo professor, em uma turma da Educação de Jovens e Adultos? Ao
delimitar nosso problema de pesquisa também procuramos responder outras
questões que se desdobraram a partir dessa:
• Quais elementos enculturadores estão presentes no currículo praticado
por esse professor?
• Ao selecionar e organizar os conteúdos, de que modo procura estimular
o desenvolvimento dos conceitos matemáticos?
• Nas interações em sala de aula, quais são as opções metodológicas
contempladas?
Apoiados pelos estudos de Alan Bishop (1988, 1999, 2002), que faz
referência à Matemática em uma perspectiva cultural, presente em diferentes
culturas, a partir das seis atividades consideradas como universais, além dos
estudos de Célia Pires (2000) referentes à organização curricular com reflexões a
respeito do currículo linear e currículo em rede e, ainda, das contribuições de
Oleo Skovsmose (2010) referentes aos critérios para a escolha de contextos
matemáticos, procuramos respostas para nossas questões. Para tanto, optamos
por uma pesquisa qualitativa, realizando um estudo de caso, no qual os dados
146
foram coletados a partir de trabalho de campo, tendo como espaço de
investigação as aulas de uma professora do 9º ano do Ensino Fundamental II, da
Educação de Jovens e Adultos.
Durante a entrevista percebemos na fala de Ana, um vínculo de cunho
afetivo ao se referir aos alunos da EJA, fato esse que pudemos comprovar ao
adentrar o espaço da sala de aula. Percebemos em nossas observações um
clima de interação, bem-estar e segurança dos alunos em função da prática da
professora.
Quanto ao modo que seleciona e organiza o material para trabalhar, na
entrevista Ana nos relata haver muito material disponível para o professor
adequar a essa modalidade de ensino e, em suas aulas, utiliza o livro didático,
apenas para algumas atividades, problemas ou exercícios, pois entende que o
livro didático é um apoio para o professor e um complemento às aulas para os
alunos, tendo o professor como condutor do processo. Nas observações em sala
de aula, em nenhum momento Ana utilizou o livro, confirmando o que ela afirma
na entrevista, que somente “em algumas atividades” ela faz uso do mesmo. Mas
mesmo não utilizando o livro durante a atividade desenvolvida, ela sempre levava
dois livros didáticos e deixava-os sobre a mesa.
Com relação aos recursos disponíveis, Ana nos relata que utiliza o
computador, a calculadora, materiais de geometria e instrumentos de medida,
livros diversos. Em nossas observações percebemos que Ana fez uso de quase
todos os instrumentos mencionados. Com relação ao uso do computador,
geralmente ela o utiliza para fazer um fechamento da atividade, mas como esse
recurso não estava disponível no momento ela não pode utilizá-lo.
Considerando que na sala de aula, o professor coloca em prática as ações
que planejou por meio de nossas observações, com relação aos elementos
enculturadores presentes no currículo praticado, percebemos a presença de
princípios do enfoque cultural (representatividade, formalismo, acessibilidade,
poder explicativo concepção ampla e elementar) e dos componentes (simbólico,
social, cultural) que caracterizam um currículo de enculturação. Apesar de
identificarmos a presença desses elementos, gostaríamos de salientar que sua
presença se dá em momentos pontuais no decorrer da atividade; em alguns
147
momentos, dependendo da abordagem conferida pela professora, aparecem
juntos interagindo um com o outro e, em outros momentos, isoladamente.
Entendemos que a presença desses elementos é propícia ao ensino da
Matemática, pois em relação à Educação Matemática de pessoas jovens e
adultas, a aquisição do conhecimento matemático não se inicia apenas quando
ingressam no processo formal de ensino, mas decorre de experiências
vivenciadas ao longo de sua trajetória de vida. Desse modo, é necessário que o
professor, ao fazer a transposição do currículo apresentado, possibilite uma
aproximação do saber formal, assumido pela escola, com os saberes que os
alunos trazem de suas vivências, e explore processos de abstração,
argumentação e teorizações, incentivando discussões por parte dos alunos na
busca das explicações.
Com relação à seleção e organização dos conteúdos, entendemos que a
professora, ao propor uma atividade com contexto acessível, apropriada e
adaptada de acordo com nível dos alunos, respeita a capacidade intelectual dos
alunos. A variedade de contextos e situações oportunizadas durante a atividade
estimula o desenvolvimento dos conceitos matemáticos pelos educandos.
Entendemos, também, que o modo como a atividade foi conduzida contempla
uma abordagem curricular em rede, pois possibilitou que os alunos partissem de
uma situação simples, a princípio a observação dos objetos de forma dita
“redonda”, para outras mais complexas. Desse modo, por meio da generalização
das ideias, os alunos calcularam o valor do diâmetro, da circunferência, a razão
entre eles e procederam à construção de tabelas e gráficos.
A retomada constante de exemplos possibilitou que os alunos
mobilizassem seus saberes fazendo conexões com situações já conhecidas por
eles, o que favorece entender a aplicabilidade da matemática e, ao dar ênfase a
diferentes conhecimentos matemáticos no decorrer da aula, evidenciar a relação
entre eles. Também possibilitou perspectivas interessantes para o ensino na
abordagem curricular em rede, proporcionando maior flexibilidade com relação ao
nível de abordagem, contemplando uma maior investigação e exploração dos
diversos conteúdos do currículo de Matemática, ao relacionar números, álgebra e
geometria.
148
Nas interações em sala de aula, pudemos perceber que as opções
metodológicas contempladas na atividade em alguns momentos faziam referência
à Matemática pura, tanto no paradigma do exercício, como no cenário para
investigação, visto que em alguns momentos da atividade predominaram o uso de
procedimentos e a utilização de regras e em outros momentos encontramos
situações que oportunizavam o paradigma da investigação, pois os alunos
assumiram o processo de exploração e, desse modo, o cenário de investigação
tornou-se um novo ambiente de aprendizagem.
Em nossas observações percebemos que, no decorrer da atividade, a
professora trabalhou no ambiente de aprendizagem relacionado à realidade, pois
os dados utilizados não foram valores artificiais, sugeridos por Ana, a professora,
o que contemplaria o ambiente situado numa semirrealidade. Desse modo, os
dados coletados pelos alunos por meio de suas observações e com a utilização
de estratégias próprias contemplaram o ambiente de aprendizagem relacionado à
realidade.
Para contemplar o ambiente de aprendizagem numa semirrealidade, a
professora poderia consolidar o que os alunos trabalharam por meio de exercícios
relacionados a situações hipotéticas, pois trabalhar somente no ambiente da
realidade pode desenvolver no aluno a sensação de que Matemática é apenas
utilitária naquela situação; acreditamos, portanto, que enfatizar situações artificiais
também pode proporcionar perspectivas interessantes de trabalho. Desse modo,
corroboramos o pensamento de Skovsmose (2010), ao sustentar que “a educação
matemática deve se mover entre os diferentes ambientes tal como apresentado
na matriz” (p. 32).
No tocante à metodologia adotada pela professora, percebemos que
atuava como mediadora da aprendizagem e oportunizava aos alunos que
utilizassem diferentes estratégias no desenvolvimento da atividade, o que
consideramos como positivo, pois permite maior flexibilidade ao propiciar ao aluno
a oportunidade de encontrar o melhor caminho através de estratégias próprias,
não ficando condicionado apenas ao que a professora coloca na lousa.
Com relação à presença de comentários dos alunos com linguagem e
conhecimento próprio, no decorrer da aula percebemos que a professora
149
procurava respeitar-lhes a linguagem e o conhecimento que traziam. Com relação
à progressão dos desafios, percebemos que, na atividade proposta, a professora
procurou, a partir de uma situação mais simples conduzir os alunos a resolverem
situações mais complexas, propiciando que mobilizassem seus saberes e
percorressem o caminho da descoberta, fazendo pesquisas, deduções e
verificações.
Consideramos que no percurso curricular não há como prever qual
caminho será o mais curto, o mais fácil ou o mais interessante, pois à medida que
os conteúdos são apresentados, é por meio da interação com os alunos que o
professor identifica em quais momentos eles apresentam maiores dificuldades.
Acreditamos que essa interação é de suma importância para que ocorra o
sucesso no processo ensino aprendizagem e, no tocante aos alunos jovens e
adultos, consideramos que o currículo de Matemática para a EJA deve levar em
consideração as características e necessidades dos alunos que compõem essa
modalidade de ensino, possibilitando uma prática educativa coerente com a
realidade cultural de seus educandos, sendo imprescindível que estes sejam
incentivados para que não deixem que os problemas rotineiros os afastem da
escola.
Acreditamos que os estudos teóricos e as pesquisas são fundamentais
para que o professor por intermédio desse suporte possa situar-se de uma
maneira crítica frente aos contextos históricos, sociais e culturais em que está
inserido, sendo importante que conheça as metodologias atuais e as que tiveram
êxito para melhor poder atender seus alunos, pois, somente assim, poderá intervir
na realidade com que trabalha e transformá-la.
Desse modo, espera-se que os resultados possam contribuir para um
processo reflexivo na formação inicial, continuada ou em curso de professores
que ensinam/mediam processos de aprendizagem matemática para jovens e
adultos.
150
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157
158
AANNEEXXOOSS
A- Roteiro da entrevista com a professora
Prezado Professor,
Este questionário é parte do projeto de pesquisa que desenvolvo na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, através do grupo de pesquisa estudos Pós
Graduados em Educação Matemática. Agradeço sua participação nesta pesquisa,
lembrando que a tabulação dos dados será feita anonimamente, caso precise de mais
espaço para responder as questões utilize o verso da folha.
Parte I - Formação Profissional
Nome
Tipo de instituição que se formou Tipo de Graduação e Ano em que se formou
Pública Particular Outras
Tempo de Magistério Tempo que atua nesta escola Tempo que atua na EJA
Tipo de instituição que trabalha (EJA) Quais séries leciona na EJA?
Municipal Estadual Particular
159
Parte II - Quanto à utilização do livro didático na sala de aula
O livro didático é seu principal instrumento de apoio?
Além do livro didático utiliza outros recursos nas aulas
Utilizo somente o livro Retropojetor Quadro Negro Computador
Data Show Outros. Quais?
Calculadora
Qual a freqüência em média de uso do livro didático na semana?
1x 2x 3x 4x 5x
O que o motivou a escolher essa modalidade de ensino para lecionar?
Quais diferenças você percebe com relação a EJA e outras modalidades de
ensino (no caso ensino regular) ?
Acredita que essa modalidade necessita de um material específico para ser
trabalhado?
O que é um livro didático para você?
Quais características favoráveis deve conter um LD
Que papel você se atribui ao usar o livro didático?
Que papel você atribui ao livro didático?
Como avalia sua relação com o livro, qual função ele desempenha na sua prática
pedagógica?
Quais são as caraterísticas favoráveis do livro utilizado pela coleção aprovada
pelo PNLD EJA. Faça suas apreciações acerca do livro
Quais são as críticas ou sugestões de melhoria acerca desse matérial?
Quando prepara as suas aulas, que material utiliza?
160
B- Roteiro da entrevista com os alunos
Sexo Idade Trabalha atualmente ?
Masc Fem
Não Sim. Qual função?
Estado Civil Tem filhos? Em caso afirmativo quantos?
Casado Solteiro Outros
Viúvo Divorciado
Não Sim. Quantos?_________
Qual motivo te levou a interromper os estudos?
Questões familiares Para trabalhar
Escola distante da residência Problemas de saúde
Ausência de escola ou vagas Não gostava de estudar
Problemas financeiros Achava o curso muito difícil
Por que fui reprovado(a) Outro(s) Motivos: _____________________________________________________
Quais são motivos que te impulsionaram a voltar a estudar
Entrar no mercado de trabalho Buscar mais conhecimentos
Conquistar um emprego melhor Melhorar a qualidade de vida
Exigência da família Acompanhar estudos dos filhos na escola
Para continuar estudando
Outros motivos. Quais?_____________________________________________ Após concluir o ensino Fundamental pretende continuar estudando?
Não
Sim. O que pretende cursar?
Concluir Ensino Médio Ingressar Ensino Técnico/ Profissionalizante
Ingressar na Faculdade Outros. Quais. Como você vê a importância da escola para a sua vida? Em relação a sua aprendizagem o que sente mais dificuldade? Com relação a disciplina de matemática, acredita que ela seja importantes para a sua vida, fora da escola?
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